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como de abdicação do juízo diante de Europa e progresso, uma posição racional e sem absolutos, que em cem anos não envelheceu. É talvez uma explicação para o paradoxo que havíamos visto, da impressão combinada de amalucamento — contingente e individual por natureza — e necessidade incontornável. Sartre, comentando a situação do escritor francês depois de 1848, fala em “neurose objetiva”: uma patologia imposta pela conjuntura real, a que não há como escapar. Neste sentido, a dualidade de critérios que está no fundamento da arte machadiana é talvez a transposição e exploração literária de algo como um “despeito objetivo”, que era da situação histórica, uma incongruência ideológico-moral imposta pela atualidade aos brasileiros esclarecidos, incluída neste último adjetivo a implicação de classe que ele trazia.
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I “Casa velha” foi publicado pela primeira vez por Machado de Assis em 1885-86, na revista carioca A Estação, em 25 episódios. Depois, permaneceu esquecido até 1944, quando foi republicado, sob forma completa, por Lúcia Miguel-Pereira; devemos nosso conhecimento da obra, na verdade, à sua paciência e perseverança na busca dos números perdidos da revista.192 Numa introdução caracteristicamente modesta a essa “segunda” edição, ela revelou suas dúvidas sobre seu próprio procedimento, dizendo que “Casa velha” “não pertence à melhor maneira do seu autor, nada vem a acrescentar à glória do nosso maior homem de letras”.193 Ela está interessada na história por razões extrínsecas: pode dizer-nos alguma coisa sobre a grande casa em que Machado cresceu, ou sobre seu desenvolvimento literário. Ela argumenta que, como o texto revela “uma visão do mundo que já não era então [isto é, em 1885] a do seu autor”, este seria um trabalho anterior, exumado para cumprir obrigações jornalísticas, embora ela admita que não pôde ser encontrada nenhuma prova concreta para atestar essa afirmativa (nem essa prova foi descoberta desde então).194 O consenso crítico sobre a obra de Machado como um todo mudou muito, durante os últimos cem anos. Como sua mensagem é complexa, escondida numa ironia que pode confundir até os leitores inteligentes, essas mudanças são talvez 191 Publicado em Ficção e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Tradução de Sônia Coutinho. 192 Machado de Assis, Casa velha, ed. Lúcia Miguel-Pereira, p. 27-29. 193 Casa velha, org. Lúcia Miguel-Pereira, p. 20. 194 Casa velha, org. Lúcia Miguel-Pereira, p. 17-19. J. Galante de Sousa, embora menos dogmático do que Miguel-Pereira com relação a datas, está igualmente convencido de que a obra é de qualidade inferior: “Devemos lembrar, entretanto, que outros escritos aparecem no referido periódico, nessa ocasião e em épocas posteriores, nos quais se desmentem as grandes qualidades do contista. Tratar-se-á de altos e baixos no potencial artístico do autor, ou realmente do aproveitamento de fundos de gaveta?” (Bibliografia de Machado de Assis).
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naturais e necessárias. A condenação de “Casa velha” por Lúcia Miguel-Pereira foi orientada por esse consenso referente ao que era “o melhor Machado” e o que, “consequentemente”, deveria pertencer a um período anterior e imaturo.195 Em geral, o que era irônico, pessimista e psicologicamente sutil foi considerado melhor, e portanto posterior, e o que era romântico, otimista e moralista, tido como anterior. Aos poucos, surge um novo consenso que, embora não contrarie de modo geral a correção dessa divisão, passa a descobrir em Machado uma linha de pensamento que não é apenas irônica e pessimista e cujo realismo não é simplesmente psicológico. Minha reavaliação de “Casa velha” pretende ser uma contribuição para esse novo consenso. Segundo acredito, existe, escondido na ficção de Machado, um grau muito maior de especulação intencional — e extremamente anticonvencional — em torno da natureza da sociedade brasileira, sua história e sua política, do que até agora foi percebido. Em muitos contos e romances, especialmente (embora não de forma exclusiva) os escritos depois de Memórias póstumas de Brás Cubas e da famosa “crise dos quarenta anos”, o leitor deve estar alerta para a possibilidade de que nem tudo seja o que parece. Machado, podemos estar certos, confiou, para sua própria tranquilidade, que seus contemporâneos fossem daqueles que não buscam a verdade de forma muito profunda ou diligente — o notável é que se sentisse tão fortemente impelido a arriscar sua reputação. Fez um jogo perigoso, com espantoso sucesso. O narrador ficcional de “Casa velha” é um velho cônego da Capela Imperial; lembra (em data indeterminada) os eventos em que se envolveu muitos anos antes, em 1839, quando tinha trinta e dois anos. Estes eventos giram em torno dos habitantes da própria “casa velha”, uma aristocrática casa nos arredores do Rio, descrita, com sua imponente solidez e auto-suficiência, no primeiro capítulo. D. Antônia, a chefe da família, é a viúva de um ex-ministro de Pedro i; seu único filho, Félix, apaixonou-se por Lalau (Cláudia), uma agregada que foi criada por d. Antônia, após ficar órfã em 1831. O padre-narrador, que foi à casa pela primeira vez em busca de documentos para uma planejada história do Primeiro Reinado, envolve-se no drama criado por essa situação porque, apesar de seu afeto por Lalau, d. Antônia não pode aceitar um casamento de seu filho abaixo de sua condição social. O padre tenta persuadi-la a permitir o casamento, até que ela, como último recurso, sugere que o casamento dos dois seria incestuoso; Lalau, insinua (embora não declare), é produto de um caso ilícito entre seu falecido marido e a mãe da menina (agora morta). O padre, então, fica do lado de d. Antônia e ajuda-a a separar os enamorados, dizendo-lhes a “verdade” sobre a origem dos dois. Mas, no último dia de suas pesquisas históricas, ele descobre um bilhete, escrito pelo ex-ministro, 195 “Casa velha” motivou, o que é surpreendente, muito pouca especulação literária (ao contrário da biográfica), pelo que me foi dado descobrir. Dieter Woll, em Machado de Assis: Die Entwicklung seines erzählerischen Werkes, nota os paralelismos entre as tramas de “Casa velha”, Helena, Iaiá Garcia e um conto antigo do escritor, “Virginius”, mas, embora questione as datas propostas por Lúcia Miguel-Pereira, ainda considera “Casa velha” uma obra anacrônica e conservadora. Parece que os preconceitos sobre o que é ou não conservador coloriram os pontos de vista de todos, com relação ao livro. O fato de ter sido reclassificado entre os primeiros trabalhos de Machado é apenas um sintoma dessa concepção. John Kinnear talvez seja o único crítico que percebeu que “Casa velha” poderia ter um lugar lógico no desenvolvimento de Machado. Num rápido comentário, em “Machado de Assis: to Believe or not to Believe”, Modern Language Review, 71 (1976), p. 63, ele destaca a importância da narrativa na primeira pessoa.
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que se refere a uma criança morta (“um anjinho”). Achando que este “anjinho” (e não Lalau) pode ter sido o produto do caso amoroso, ele conversa com a tia de Lalau e descobre a verdade. Lalau não é a filha do ex-ministro, mas sua mãe realmente teve um caso com ele, que resultou no “anjinho”. Quando esta notícia é revelada a d. Antônia, ela fica altamente chocada, pois sua “revelação” inicial era uma simples mentira, visando a obter a ajuda do padre. No entanto, mesmo agora, que o principal empecilho para o casamento está afastado, Lalau recusa-se a casar com Félix, dizendo que não pode esposar o filho de um homem que desonrou sua mãe, a quem ela adorava. No fim, cada qual se casa dentro de sua classe social e o comentário final do narrador é: “Se ele e Lalau foram felizes, não sei; mas foram honestos, e basta”.196 Essas são as linhas centrais de uma história que contém muito mais coisas; é o suficiente, no entanto, para explicar a intuição de Lúcia Miguel-Pereira de que a história foi escrita antes de 1880. A trama tem semelhanças notáveis com os primeiros romances, mais especialmente, talvez, com os imediatamente anteriores a Brás Cubas, Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Ambos falam do amor de um rico jovem (Estácio, Jorge) por um membro de seu clã doméstico: no primeiro caso uma suposta irmã ilegítima (Helena), no segundo uma agregada (Estela). Como Helena, “Casa velha” gira, em certa etapa, em torno da possibilidade de incesto, que se revela falsa; como Iaiá Garcia, tem como figura central uma mãe dominadora que não se detém diante de nada para impedir um casamento socialmente desastroso (em Iaiá Garcia, Valéria está preparada até para mandar seu filho para uma possível morte na Guerra do Paraguai). Num sentido, o tema comum a essas três obras, qual seja o das dificuldades criadas pelo amor entre homens de classe superior e mulheres dependentes, fica reduzido, em “Casa velha”, aos seus aspectos mais essenciais.197 As implicações incestuosas de Helena, que dependem das falsas identificações tão frequentemente empregadas para criar e resolver conflitos nos romances românticos, são aqui meramente um artifício utilizado não pelo autor, mas por um personagem (d. Antônia); não passam de uma mentira que conduz à descoberta da verdade real e ao castigo da mentirosa. Também somos poupados, aqui, das complexidades do segundo caso amoroso em Iaiá Garcia, entre Jorge e Iaiá, que ocupa mais de metade do livro e apaga as linhas nítidas criadas pela tentativa de estupro — ou “beijo à força” — de Jorge contra Estela. Vale a pena destacar a simplicidade das linhas da trama de “Casa velha”, ainda mais quando sugiro que o texto tem inesperadas complexidades de significado. Até o aparente chamariz do incesto vai demonstrar o ponto principal, que é moral ou social. Não são os acidentes da (suposta) consanguinidade que impedem o casamento (nem mesmo, como acontece em Helena, causam muita tensão interna para os personagens). Em vez disso, como fica muito claro com a recusa final de Lalau de se casar com Félix, todos os desastres resultam diretamente dos atos irresponsáveis do predatório chefe de família, cujos pecados arruínam as vidas de seu filho, da filha de sua amante e de sua viúva (cuja constante fé no marido é des-
196 “Casa velha” está no volume iii, p. 190. 197 Schwarz argumenta convincentemente, segundo seu ponto de vista, que as dificuldades morais das mulheres que não podem amar sem parecerem ambiciosas ou “aventureiras” são o tema real de Helena, e não o incesto (Ao vencedor as batatas, p. 109-10).
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truída pela descoberta de sua infidelidade). “Casa velha” foi estruturado de maneira a culminar com a revelação desses atos e, assim, concentrar o que, em Helena e em Iaiá Garcia, dispersa-se em complexidades subsidiárias. II Vários fatores contribuem para dar a essa trama simples uma maior profundidade e ressonância. São caracteristicamente machadianos, pois o leitor desatento poderia interpretá-los erroneamente, ou não se dar conta deles; não contradizem, no entanto, a mensagem clara (isto é, não funcionam da mesma maneira que a descoberta da possibilidade da inocência de Capitu, que pode modificar todo o ponto de vista do leitor de Dom Casmurro). Contudo, despertam-nos para as sutilezas e possíveis dimensões de uma história cujos lineamentos gerais são bastante simples. O primeiro desses fatores, ou seja, o mais óbvio e disseminado, é o próprio narrador-padre. Ele é, na superfície, meramente o agente através do qual a verdade é descoberta, o estranho no mundo patriarcal, fechado, da casa-grande e que tropeça em seus mais terríveis segredos. Mas é mais do que isso; ele próprio nos diz, em diversos trechos, que não está com a consciência tranquila, acerca do seu papel no caso, como se esse papel não se houvesse limitado a reações necessárias e bem intencionadas a acontecimentos que impunham suas próprias exigências. Ele acha que seu papel foi mais ativo do que parece, e envolveu sentimentos que preferiria não ter alimentado. O mais óbvio aspecto de sua má consciência é sua atração por Lalau, que vai além da benevolência sacerdotal: Criatura espiritual e neutra, cabia-me tão-somente alegrar-me com a declaração da moça, aprová-la e santificá-la ante Deus e os homens. Que incômodo era então esse? Que sentimento espúrio vinha mesclar-se à minha caridade? Que contradição? Que mistério? Todas essas interrogações surgiram do fundo da minha consciência, não assim formuladas, com a sintaxe da reflexão remota e fria, mas sem liame algum, vagas, tortas e obscuras. Já se terá entendido a realidade. Também eu amava a menina. Como era padre, e nada me fazia pensar em semelhante coisa, o amor insinuou-se-me no coração à maneira das cobras, e só lhe senti a presença pela dentada do ciúme.
Poderia parecer que esses sentimentos pouco saudáveis não têm efeito algum na trama; mas a cena em que d. Antônia revela a suposta consanguinidade de Félix e Lalau mostra que o contrário é verdadeiro. Ela, na verdade, não articula — e nem pode — a mentira. Instiga então o padre, para que ele chegue a conclusões em seu lugar. A mentira é um esforço conjunto, como diz o padre: “Não adverti sequer na minha cumplicidade. Em verdade, eu é que proferi as palavras que ela trazia na mente; se me tenho calado, chegaria ela a dizê-las? Pode ser que não, pode ser que lhe faltasse ânimo para mentir”. Os gestos dos dois também enfatizam sua conspiração inconsciente: “Caminhei para ela, estendi-lhe as mãos, ela deu-me as suas, e apertando-lhas, disse-lhe que não devia ter ajuntado à fatalidade do nascimento o favor das circunstâncias”. Lúcia Miguel-Pereira, bem familiarizada com as sutis e desagradáveis motivações de tantos personagens de Machado, sugere, certamente com razão, que o ciúme inconsciente está trabalhando aqui.198 O padre, apesar de 198 Casa velha, org. Lúcia Miguel-Pereira, p. 26-27.
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todo seu aparente desejo de encorajar o casamento, mostra aqui que ele, por razões próprias, na verdade gostaria de impedi-lo; quer que a mentira de d. Antônia seja verdade. Com frequência, suas emoções, pensamentos e ações não são exatamente o que parecem. Por que, por exemplo, ele suspeita, baseado em tão poucas ou inexistentes provas, que Félix tem outras intenções para com Lalau, além das conjugais? Ou por que denegriria o caráter de Lalau perante d. Antônia, sugerindo que ela poderia lutar para se apoderar da herança e da “casa velha”? Ou ainda, por que espera “alvoroçado” pela revelação (do perigo do incesto) prometida para o dia seguinte? Uma confissão anterior de falta lança uma luz ainda mais sinistra na relação do narrador com Félix. O trecho deve ser citado extensamente. Félix mostra-lhe a biblioteca em que trabalhará: [...] casualmente, dei com os olhos na Storia Fiorentina, de Varchi, edição de 1721. Confesso que nunca tinha lido esse livro, nem mesmo o li mais tarde; mas um padre italiano, que eu visitei no hospício de Jerusalém, na antiga rua dos Barbonos, possuía a obra e falara-me da última página, que em alguns exemplares faltava, e tratava do modo descomunalmente sacrílego e brutal com que um dos Farneses tratara o bispo de Fano. — Será um exemplar truncado? — disse eu. — Truncado? — repetiu Félix. — Vamos ver — continuei eu, correndo ao fim. — Não, cá está; é o capítulo 16 do livro xvi. Uma coisa indigna: In quest’anno medesimo nacque un caso... Não vale a pena ler; é imundo. Pus o livro no lugar. Sem olhar para o Félix, senti-o subjugado. Nem confesso esse incidente, que me envergonha, senão porque, além da resolução de dizer tudo, importa explicar o poder que desde logo exerci naquela casa, e especialmente no espírito do moço.
Os fatos apresentados por Machado são corretos. A Storia Fiorentina, uma história de Florença no século xv e no início do xvi, já foi publicada em várias edições expurgadas.199 O capítulo mais chocante contém um relato do estupro homossexual do jovem bispo de Fano por Pier Luigi de Farnese, filho do papa Paulo iii: o bispo, mais tarde, “morreu de vergonha”.200 Não é preciso entender tanto a natureza humana quanto Machado, para saber o que Félix fará, da próxima vez em que entrar sozinho na biblioteca (ainda mais quando o padre lhe dá o capítulo e o verso). Não apenas isso, entretanto; parece provável que Machado esteja sugerindo algo tão malsão na relação entre o padre e Félix quanto existe no seu relacionamento com Lalau. Chamar a isso de estupro homossexual é, obviamente, exagerar (embora seja, no 199 Ver Opere, de Benedetto Varchi. Milão, c. 1900, I. Estou grato a srta. Lucrezia Zaina, do Departamento de Italiano da Universidade de Liverpool, por me mostrar uma edição expurgada: Opere, Benedetto Varchi (Milão, 1843). A passagem relevante está em i, p. 500. 200 A menção a este evento parece calculada para lançar a pior luz possível sobre a Igreja Católica. O próprio papa concedeu uma indulgência a seu filho, que jamais foi punido. O escândalo foi utilizado pelos luteranos para atacarem a Igreja: “Questa abbominevol nuova pervenuta con istupore e querimonia d’ogmmo nell’Alemagna, diede larga matéria di ragionare a’Luterani, dicendo in derisione e vituperio dei papi e dei papisti, questo essere un nuovo modo de martirizzare i Santi” (Varchi). Em seu Vida e obra de Machado de Assis, iii, R. Magalhães Júnior entra em consideráveis detalhes com relação a essa passagem, informando-nos que as obras de Varchi estavam na biblioteca de Machado. Ele não entende, entretanto, a introdução da referência: “Tal passagem nada tem que ver com o desenvolvimento da intriga, embora acrescente cerca de meia página à narrativa...”. Muito consistente em suas crenças quanto à respeitabilidade de Machado, ele é forçado a acusar o próprio romancista de inconsistência: “Nisso, ele inverteu um dos seus próprios preceitos morais: o de que pior, depois do escândalo, é a publicação do escândalo”.
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mínimo, estranho, que Machado tenha introduzido aqui esse exemplo de uma erudição um tanto exótica), mas devemos entendê-lo em algum sentido metafórico, ainda mais que Félix é descrito como “subjugado”. O ciúme da “criatura espiritual e neutra” (de um gênero neutro, nem masculino nem feminino?), como ele descreve a si mesmo, viola a vida de Félix, sem dúvida, do mesmo modo que a de Lalau. Outro detalhe sugere com mais força ainda seu papel ambivalente e inconscientemente sinistro; ele está pensando em sua relação com o jovem casal: “É bem possível que eu fosse como o traço de pena que liga duas palavras; é certo, porém, que gostavam de mim. Eu, entre ambos, com a minha batina (deixem-me confessar esta vaidade) tinha uns ares do bispo Cirilo entre Eudoro e Cimódoce”. Cirilo, Eudoro e Cimódoce são os três principais personagens da epopeia cristã em prosa de Chateaubriand, Les Martyrs.201 O que o nosso não-nomeado narrador-padre se esquece de mencionar é que são os enamorados, Eudoro e Cimódoce, os martirizados. O bispo, embora ache que poderá ser destinado ao martírio, na verdade é poupado. A inocente “vaidade” do padre revela outra vez, embora lhe seja desconhecida, sua posição equívoca com relação aos jovens. A menção de Chateaubriand tem outra dimensão; conduz-nos à caracterização do padre como um intelectual, assunto em torno do qual Machado nos dá algumas chaves não muito lisonjeiras. Sugere a defesa emocional e estética do cristianismo, tão característico do romantismo; anteriormente, o padre cita o severo santo Agostinho (chamando-o “o meu grande santo Agostinho”), mas usa a frase mencionada, “Amor non improbatur”, para justificar sua aprovação puramente emocional e vicária do amor de Félix e de Lalau. Repetidamente, também, nós o vemos usando os lugares-comuns do cristianismo para justificar suas próprias ações questionáveis, e as dos outros. Muita coisa está resumida nesta frase: “Entre a verdade daquele conceito (a ideia de que ele não tem nenhum direito de se envolver nos problemas da família) e o impulso do meu próprio coração, introduzi um princípio religioso e disse a mim mesmo que era a caridade que me obrigava, que no Evangelho acharia um motivo anterior e superior a todas as convenções humanas”. Não é de surpreender que esse cristianismo emocional, diante da verdadeira crise ceda lugar à realidade social. Seu fraco apelo a “Nosso Senhor Jesus Cristo, que nasceu nas palhas”, quando defende os jovens enamorados perante d. Antônia, logo é derrubado pela arremetida furiosa com que ela o acomete: — Sim senhor; mas nesse caso que mal há em casar com o Vitorino? Filho de segeiro não é gente? Diga-me! Para que ela case com meu filho, Nosso Senhor nasceu nas palhas; mas, para que case com o Vitorino, já não é a mesma cousa... Diga-me! — Mas, senhora dona Antônia... — Qual! — disse ela levantando-se...
Podemos muito bem descrever o padre como um romântico que não se sabe romântico; ele jamais emprega a palavra, mas às vezes sua linguagem o trai: “Eu, com os estudos clássicos que tivera, e a grande tendência idealista, dava a tudo a cor das minhas reminiscências e da minha índole, acrescendo que a própria realidade externa — antiquada e solene nos móveis e nos livros, recente e graciosa em Lalau 201 Chateaubriand, Oeuvres Romanesques et Voyages. Paris, 1969.
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— era propícia à transfiguração” (grifos meus).202 O resultado é uma afetação e uma confusão intelectual que antecipam o terrível José Dias em Dom Casmurro (que lê Walter Scott tão bem, em voz alta). O padre desaprova escritores anticristãos como Voltaire e Rousseau, quando encontra suas marcas na biblioteca do ex-ministro, mas (mesmo deixando de lado o fato de que ele “discretamente” esconde sua desaprovação de Félix) suas palavras mudam diante de nossos olhos: “Entretanto, como era também discreto, deixei de manifestar um reparo que fiz comigo acerca da promiscuidade de coisas religiosas e incrédulas, alguns padres da Igreja não longe de Voltaire e Rousseau, e aqui não havia afetar nada, porque os conhecia, não integralmente, mas no principal que eles deixaram” (grifos meus). Isto cheira a conhecimento de segunda mão; que escritores conhece ele, embora não “integralmente” — Voltaire e Rousseau, ou os padres “não longe” deles? A confusão intelectual e outros tipos de incerteza seguem de mãos dadas. Embora ele seja padre, não é fundamentalmente um homem religioso e confessa que, não sendo talhado para o púlpito — e por que escolher o púlpito como símbolo dos deveres sacerdotais? —, ele tentou fazer várias outras coisas, chegando finalmente à história política. Mas este trabalho, embora com tal fim ele conclua suas pesquisas, jamais é escrito. O que é, de qualquer modo, história política (pelo menos, neste caso)? Pode-se imaginar que, ao lidar com um período tão recente e controvertido quanto o Primeiro Reinado, as categorias certamente irão confundir-se. Outro padre, seu antigo professor, a quem ele confidencia suas esperanças de descobrir “alguma coisa de valor político”, durante sua pesquisa, manifesta-se contrário ao projeto: “Monsenhor Queirós abanou a cabeça, desconsolado. Era um bom filho da Igreja, que me fez o que sou, menos a tendência política, apesar de que no tempo em que ele floresceu muitos servidores da Igreja também o eram do Estado. Não aprovou a ideia; mas não gastou tempo em dissuadir-me. ‘Conquanto, disse-me ele, que você não prejudique sua mãe, que é a Igreja. O Estado é um padrasto’”. Pode-se muito bem suspeitar que a atitude do narrador para com a política seja guiada pela mesma frustração que desempenha um papel tão sinistro na “casa velha” — incapaz de agir diretamente, ele interfere por meio das palavras. Ou, para citá-lo diretamente: “Sou antes especulativo que ativo; gosto de escrever política, não de fazer política”. Quanto mais se investiga o caráter do narrador, mais tenebrosas se tornam as sombras, e igualmente percebemos a existência de mais coisas em jogo nesta história do que parece à primeira vista. O próprio padre está meio consciente dessas questões, mas é pouco provável, por sua própria situação, que tenha uma percepção plena delas. O posto que ocupa na ocasião da narração da história — cônego da Capela Imperial — é em si um indício de seu convencionalismo. Ele não está absolutamente consciente de outro possível nível de significado em sua história, no que diz respeito à sua planejada obra sobre o reinado de Pedro i.
202 É verdade, dato, que o movimento romântico propriamente dito só começou no Brasil a partir de 1836, com a publicação da revista Niterói. Mas isso só serve para explicar as razões de o padre não ter consciência de suas próprias posições. Machado está, na verdade, caracterizando-o com grande exatidão histórica. Talvez o relacione com uma importante figura histórica, Frei Francisco do Monte Alverne, popular e influente pregador, altamente influenciado por Chateaubriand, e que pertenceu a uma geração anterior. Ver, de Antonio Candido, Formação da literatura brasileira. i. As expressões “estudos clássicos” e “tendência idealista” são cuidadosamente escolhidas.
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III A “história”, naturalmente, nunca é escrita, como ele nos conta: “Não escrevi a história que esperava; a que de lá trouxe é esta”. Esta talvez não seja a história que ele queria escrever — poderá, no entanto, ser a história (não intencional) do reinado de Pedro i. Quando tenta persuadir d. Antônia a lhe contar alguma coisa de sua própria experiência da vida política, ele diz essas palavras significativas: “Tudo pode ser política, minha senhora; uma anedota, um dito, qualquer coisa de nada pode valer muito”. A história que ele conta e que parece, ou parecia na ocasião, relativamente sem importância — “Tudo isso era bem pouco para quem tinha na cabeça a história de um Imperador” — é, de fato, uma dessas “anedotas”. Suas linhas revelam uma verdade que a história política (especialmente, suspeitamos, quando escrita por uma pessoa dessas) ignoraria. Em vários momentos, no texto, são transmitidas ao leitor fortes sugestões (desconhecidas para o narrador, naturalmente), de que há paralelos entre as esferas privada e pública, de maneira que se torna natural e necessário procurar o significado político do relato. Como acontece com a trama, esse nível político/histórico une dois momentos, um presente, de fevereiro a agosto de 1839, e um passado, no Primeiro Reinado (o período em que o pai de Félix foi ministro e o de seu caso com a mãe de Lalau). O presente refere-se, sobretudo, aos eventos que conduziram à prematura Maioridade de Pedro ii em 1840, e à ameaça de revolução e secessão no Rio Grande do Sul (a Guerra dos Farrapos), que culminou naquele ano com a captura de Laguna, em Santa Catarina, pelos rebeldes liderados por Garibaldi. O momento de maior tensão nesses eventos (a captura de Laguna) coincide com a principal crise na trama, o recurso de d. Antônia à insinuação do perigo de incesto. Machado utiliza um truque simples para dar consciência ao leitor desse paralelo. O padre comparece ao seu encontro com ela: [...] por que é que não fui mais cedo? — Não pude; estive sabendo as más notícias que vieram do sul. — Sim? — perguntou ela. Contei-lhe o que havia, acerca da rebelião; mas os olhos dela, despidos de curiosidade, vagavam sem ver e, logo que o percebi, parei subitamente. Ela, depois de uma pausa: — Ah! então os rebeldes... Repetiu a palavra, murmurou outras, mas sem poder vinculá-las entre si, nem dar-lhes o calor que só o real interesse possui. Tinha outra rebelião em casa e, para ela, a crise doméstica valia mais que a pública.
Outra vez, eventos particulares e “desimportantes” assumem a precedência sobre a crise pública, mas a frase inacabada de d. Antônia não pode deixar de unir as duas rebeliões na mente do leitor. O passado histórico (o do Primeiro Reinado) é posto em jogo de maneira um tanto diferente, embora ele também se articule, a certa altura, com uma frase incompleta. Quando o padre entra pela primeira vez na biblioteca, logo depois de identificar a Storia Fiorentina, ele vê dois retratos, lado a lado: Havia ali dois retratos, um do finado ex-ministro, outro de Pedro i. Conquanto a luz não fosse boa, achei que Félix parecia-se muito com o pai, descontada a idade, porque o Fortuna crítica John Gledson
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retrato era de 1829, quando o ex-ministro tinha quarenta e quatro anos. A cabeça era altiva, o olhar inteligente, a boca voluptuosa; foi a impressão que me deixou o retrato. Félix não tinha, porém, a primeira nem a última expressão; a semelhança restringia-se à configuração do rosto, ao corte e viveza dos olhos.
Se a justaposição não fosse o bastante, qualquer leitor familiarizado com a história ou com os retratos históricos brasileiros notaria a parecença entre o Imperador e seu ministro; o retrato de um poderia muito bem descrever os traços mais conhecidos do outro,203 e todos três adjetivos — arrogante, inteligente, voluptuoso — coincidem com traços bem conhecidos do caráter de d. Pedro. A identificação dos dois fica clara no fim do mesmo capítulo, quando Lalau olha para os dois retratos: Conhecia os retratos, distinguiu-os logo; ainda assim parecia tomar gosto em vê-los, principalmente o do ex-ministro; quis saber se ela o conhecia, respondeu-me que sim, que era um bonito homem, e fardado, então, parecia um rei. Seguiu-se um grande silêncio, durante o qual ela olhou para o retrato e eu para ela, e que se quebrou com esta frase murmurada pela moça, entre si e Deus: — Muito parecido... — Parecido com quem? — perguntei. Lalau estremeceu e olhou para mim, envergonhada. Não era preciso mais; adivinhei tudo. Infelizmente tudo não era ainda tudo.
Diante da frase “fardado então parecia um rei”, parece mais provável que as palavras de Lalau, como as de d. Antônia — “Então os rebeldes...” —, possam ser também ambíguas, e referir-se à mesma parecença entre o Imperador e seu ex-ministro (embora na superfície se refiram à semelhança entre Félix e seu pai). O que significam esses paralelos, sem dúvida intencionais? Como reconstruiremos a história política que o padre inadvertidamente escreveu? As especulações políticas e históricas de Machado muitas vezes são assim ocultas e implícitas. Mas podem ser desvendadas e compõem, com muito mais frequencia do que suspeitavam os críticos, um aspecto essencial de suas intenções como escritor. Os “sucessos do sul”, referidos repetidas vezes em “Casa velha”, relacionavam-se, na mente de Machado, com a Maioridade de Pedro ii, em 1840. Numa crônica de 1895, na qual lembra a crise constitucional de 1868, ele os relaciona: “[...] ouvirás falar daquele dia de julho (1868) como os rapazes de então ouviam falar da Maioridade ou do fim da República de Piratinim, que foi a pacificação do sul, há meio século”. Em “Casa velha”, coronel Raimundo, um velho parente da família, propõe a Maioridade como solução para a crise: “O melhor de tudo era logo aclamar o imperador. Dessem-lhe cinquenta homens — vinte e cinco que fossem — e se ele em duas horas não pusesse o imperador no trono e os ministros na rua, estava pronto a perder a vida e a alma. Uns lesmas! Tudo levantado, tudo sublevado, ao norte e ao 203 Ver, por exemplo, o retrato de Simplício de Sá, “Visita dos Imperadores à Casa dos Expostos”, reproduzido na História de Dom Pedro ii, de Heitor Lyra, ed. Alexandre Eulalio i, ilustração 3 (depois da página 65). Esse retrato serviu para uma litografia de Sisson (1859), que pode ser vista em reproduções, e.g., na História do Brasil, de Pedro Calmon, v, p. 1485. Litografias como essas foram muito importantes para transmitir aos brasileiros imagens de importantes figuras políticas e históricas. A mais famosa referência que Machado faz a elas está em “O velho Senado” (ii, p.591), no qual sua evocação do Senado, como o conhecera em 1860, é inspirada por uma série de litografias de Sisson.
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sul...”. Outra solução, diz o velho conservador, seria a volta do pai de Félix: “— Aquele não era paz-de-alma — disse o coronel, apontando para o retrato. — Fosse ele vivo! Não era militar, como sabe — continuou, olhando para mim —, mas era homem às direitas”. Isto, por sua vez, o leva a lembrar, para vergonha e desgosto de Félix, as aventuras amorosas do ex-ministro: “Velhacos, repito, não digo velhacos para tratantadas, mas para amores; era maroto com as mulheres — prosseguiu rindo e esquecendo inteiramente a rebelião”. Félix, cujas opiniões sobre política são mornas, é entretanto um representante fiel de sua classe, e assim enuncia suas opiniões, ao justificar sua decisão de se tornar deputado (decisão que tomou, simplesmente, para evitar a proposta de sua mãe, de que deveria ir para a Europa): “Como sabe há muitos desgostos contra o Regente... Se o Imperador tivesse a idade da constituição é que era bom; ia-se embora o Regente e o resto...”. O elo entre a rebelião no Rio Grande do Sul e a Maioridade permite-nos ver como a estrutura da trama de “Casa velha” é paralela à da história política entre 1822 e 1840. Os pecados do pai (Pedro i, bem conhecido tanto por seus métodos ditatoriais como por suas irregularidades sexuais)204 estão prestes a serem castigados através de seu filho, Pedro ii, que era, como Félix, seu oposto em termos de caráter. A própria Maioridade, sempre considerada, na história oficial, como um ato de vontade por parte do Imperador de quinze anos, é vista como o produto de uma reação de classe à ameaça do caos. Exatamente como as tentativas de Pedro ii para liberalizar o Império tiveram de enfrentar as realidades do poder oligárquico, a tentativa de romper com o passado, por parte de Félix, fracassa. Na verdade, não deixa de ser significativo que Machado introduza dúvidas quanto à seriedade da tentativa. Embora a especulação do padre em torno das possíveis intenções do jovem de tornar Lalau sua amante sejam provavelmente uma prova de seu ciúme inconsciente, mesmo assim causa suspeita o fato de a reação de Félix à notícia do perigo de “incesto” ser muito menos intensa que a dela. Ele, afinal, acaba por se casar com Sinhazinha, cujo nome serve como indicação da condição de membro da classe superior e que, curiosamente, é uma rio-grandense e, assim, tem suas vinculações próprias com os “sucessos do sul”, embora, claro, pertença à classe oposta à dos rebeldes Farrapos e à República de Piratinim. Se nos voltarmos para Lalau, essa interpretação política se torna mais fascinante, embora um pouco mais problemática. Como muitas das heroínas dependentes de Machado, Lalau, apesar de todo o seu encanto e inocência, é uma pessoa muito decidida — como Capitu, ela é repetidas vezes descrita como meio-menina, meio-mulher. “Não depender de ninguém” é o seu ideal, na ocasião em que é rejeitada por Félix, e acaba por romper as normas de conduta entre os sexos, pedindo a Vitorino, o filho do cocheiro de d. Antônia, que se case com ela. Mais que isso, é mostrada sua simpatia especial pelas classes que lhe são inferiores. No início do capítulo v, aparece em companhia do velho escravo sineiro, o “Gira”, que enlouqueceu — sendo ela a única a respeitá-lo e a falar com ele. Sem dúvida, se quisermos condenar “Casa velha” como sentimental, aqui está a evidência — mas não pode haver dúvida quanto à intenção, por parte de Machado, em unir dependente e escravo. Essa cena é 204 O mais famoso de seus ataques à liberdade, a dissolução da Constituinte em 1824, é mencionado em termos dramáticos pelo coronel Raimundo.
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seguida por outra com claras implicações simbólicas, que o próprio Machado isola, descrevendo-a como um “quadro” — um quadro que se pretende que o leitor interprete como tal. D. Antônia e o padre estão conversando na sacristia da capela anexa à casa, quando dois moleques cruzam o pátio, perseguindo Gira. Lalau, por simpatia para com o velho, pega-os e os segura. Neste ponto, aparece Félix, ficando sua mãe e o padre a observar, entre horrorizados e fascinados, os dois enamorados dizendo trivialidades um ao outro, enquanto Lalau segura um dos moleques. Os gestos são registrados com precisão: Olhei para os dois, adivinhei o que estariam dizendo, e, pior ainda, o que estariam calando, e que se lhes podia ler no rosto e nas maneiras. Lalau era agora mulher apenas, sem nenhuma das coisas de criança que a caracterizavam na vida de todas as horas. Com as mãos no ombro do moleque, ora fitava os olhos na carapinha deste, ouvindo somente as palavras de Félix; ora erguia-os para o moço, a fim de o mirar, calada ou falando. Ele é que olhava sempre para ela, atento e fixo.
As implicações são claras, embora a cena seja complexa. Lalau, com a atenção deslocando-se de Félix para a criança (cuja cor é enfatizada pelo uso de “carapinha”), elimina a separação entre senhor e escravo — algo que não pode ser tolerado. Ela é um elo vital numa cadeia que não pode ser formada, embora se aproxime perigosamente da formação. Por trás da fachada aparentemente estável da casa mora a desconfiança, a espionagem e uma série de rígidos limites que foram traçados para o comportamento permissível. Lalau está revestida de considerável significado simbólico — o que não é de surpreender, considerando que é função sua representar todas as classes não-dirigentes. Isto fica mais claro nas cenas apresentadas, mas também cabe especular sobre três outros detalhes, aparentemente insignificantes, mas que podem ganhar mais significado quando vistos sob essa luz. Em primeiro lugar, ela nasceu em 1822 (tem 17 anos em 1839) e ficou órfã em 1831. Estas são, claro, as datas da Independência do Brasil e do fim do Primeiro Reinado e podem sugerir uma identificação com o próprio Brasil — ideia que não é nova na ficção de Machado.205 Se for este o caso, ele sugere a verdade bastante óbvia, mas não destituída de importância, de que o papel do monarca é paralelo ao do pai, que pode ser tirânico, mas cujo afastamento, por outro lado, talvez seja perigoso para o Estado. Talvez a visão de Machado, quanto ao Império, não seja nem indevidamente hostil nem acriticamente aprovadora; a própria comparação das estruturas políticas e familiares sugere que há alguma coisa natural no sistema monárquico em si, por mais inclinado ao abuso que ele possa ser. Mais interessante ainda é a cena em que Lalau é apresentada pela primeira vez. O padre escuta uma agitação em frente à biblioteca em que está trabalhando: é a sege de d. Antônia, transportando Lalau e sua tia, que quase bateu em um carro de bois. Na primeira visão que ele tem, a moça está inclinada para fora da sege, rindo; mais tarde, ela diz que estava mais excitada do que alarmada com a perspec205 Naturalmente, é verdade que seu pai não é o ex-ministro (embora pudesse ter sido); a referência à perda dos pais é mais geral que isso. Para encontrar exemplo anterior do uso simbólico de datas, ver o conto “Valério”, publicado em dezembro de 1874, que conta a trajetória do herói dependente, ignorado pela família à qual se dedica e que “veio à luz com a revolução de 1831” (ii, p. 1299).
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tiva de uma colisão: “Confessou que não tinha medo de nada, e até que queria ver um desastre para compreender bem o que era”. É fácil ver que seu senso de independência e vontade de correr riscos a colocam em oposição à fechada casa velha e a relacionam com a “experiência republicana”, que terminou prematuramente em 1840. Uma chave final pode ser dada por seu nome real ou completo, Cláudia, que se associa com a república-arquétipo, a de Roma, e pelo nome de seu verdadeiro pai, Romão Soares. Esse emprego dos primeiros nomes em Machado é bastante frequente, embora a interpretação concreta do significado deles seja sempre uma questão delicada. E d. Antônia, nesse contexto? Ela tem, como seria de se esperar, pontos de vista decididamente direitistas e encara 1831, a data da abdicação de Pedro i, como o início de todo o mal: “Realmente não sei que ideias entraram por aqui depois de 31. São ainda lembranças do padre Feijó”. Ela é, a certa altura, chamada a “Imperatriz” da casa: “O padre Mascarenhas dissera-lhe uma vez, ao almoço, que era a imperatriz da casa velha, e d. Antônia sorriu lisonjeada, com a ideia de ser imperatriz em algum ponto da terra. Não batia com o cetro em ninguém, mas estimava saber que lho reconheciam”. É possível que ela represente, bem como sua classe, a continuação da instituição da Monarquia através do período da Regência — um poder real, mesmo que não imediatamente eficaz. Nesse contexto político, também, o papel do padre-narrador assume nova dimensão. Já se sugeriu que, ideologicamente, como em outros sentidos, ele é um vacilante. Opõe-se aos padres influenciados por Voltaire e Rousseau, mas critica o hábito de d. Antônia de casar por obediência: “Tendo casado por eleição e acordo dos pais, tendo visto casar assim todas as amigas e parentes, d. Antônia mal concebia que houvesse, ao pé deste costume, algum outro natural e anterior”. Os últimos dois adjetivos, em particular, sugerem que as teorias sociais de Rousseau coloriram seu pensamento mais do que ele percebe. É bem possível que Machado esteja comentando o papel da igreja brasileira na política da época, muitas vezes liberal na aparência (como deixa claro o desprezo de d. Antônia por Feijó), mas que, no fim, contribuiu para a manutenção do regime, talvez porque o cristianismo e os ideais liberais sejam mais difíceis de conciliar do que o imagina o padre; talvez, também, os próprios padres fossem, em última instância, mais dependentes do status quo do que eles próprios sentissem. O método aqui ilustrado da interpretação de “Casa velha” como uma obra em parte alegórica, contendo uma discussão política oculta, subjacente à trama, é novo, pelo que sei, no contexto da ficção de Machado, pelo menos quando empregado de maneira sistemática (como acredito que deva ser, para possuir algum valor e interesse reais). E considerando-se que pode muito bem ser aplicado a outros romances e contos, vale a pena que seja encarado de maneira mais geral, antes que eu passe a tratar do nível que acredito ser o mais fundamental para o significado da narrativa. Em primeiro lugar, é bom esclarecer que não cabe identificar as trajetórias dos personagens de ficção de maneira demasiado próxima às das verdadeiras figuras históricas. O ex-ministro não é Pedro i, nem tampouco (embora seja certamente curioso que ele receba, de passagem, o mesmo prenome) José Bonifácio de Andrada, Fortuna crítica John Gledson
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o chamado Patriarca da Independência.206 As idades e as datas não coincidem; o ex-ministro, por exemplo, nasceu por volta de 1785 [estando com 44 anos em 1829 enquanto dom Pedro nasceu em 1798 e José Bonifácio em 1763]. Os cálculos numéricos desse tipo raramente são frutíferos para a interpretação, simplesmente porque Machado não estava tão interessado em figuras históricas individuais quanto em coisas mais gerais: movimentos, regimes, classes. Talvez, na verdade, seja mais coerente identificar o ex-ministro com o regime do Primeiro Reinado. O texto, realmente, dá algum apoio a essa teoria. É curioso que não sejamos informados da data de sua morte mas simplesmente de que ele se acha morto “desde muitos anos”, e que se encontrava ainda vivo “pouco antes de 1831”. As datas do nascimento de Lalau e de sua orfandade revelam, possivelmente, uma variação no rigor do significado simbólico atribuído aos personagens: d. Antônia, como somos informados em termos deliberadamente vagos, “devia ter quarenta e seis a quarenta e oito anos”, embora não se deva excluir a possibilidade de que a imprecisão tenha sua exatidão própria — como representante de sua classe e da dominação desta, ela em certo sentido não tem idade. Claramente, no entanto, o que fascina Machado — em contraste, como podemos imaginar, com o seu padre-narrador — não são as personalidades históricas, mas a escala mais ampla na qual a política realmente se torna história. Neste nível, também, seu interesse é menos o de um partidário de uma ideologia ou de outra (embora, como sabemos através da biografia de Jean-Michel Massa, ele fosse um liberal convicto na juventude).207 Examinava, assim, os acontecimentos com um olhar mais distanciado, mais próximo ao de um verdadeiro historiador, ou mesmo de um cientista social. Entretanto, não se mostra disposto a minimizar eventos históricos dramáticos, considerando-os puramente superficiais. A abdicação, a Regência e a Maioridade fascinaram Machado, segundo parece pelo fato de mostrarem que a sociedade brasileira (ou sua oligarquia dirigente) precisavam de um símbolo de autoridade (mesmo quando encarnado num menino de quinze anos). Ela podia tolerar um flerte com o liberalismo (o ex-ministro com seus livros “céticos” e seu caso com a mãe de Lalau), mas nada demasiado sério e, sobretudo, nenhuma aliança ou compromisso. As contradições, as ilusões e desapontamentos do Primeiro Reinado e a Regência se encerram, assim, no mundo mais sóbrio de Pedro ii, mas não sem transmitir um legado de frustração e amargura. A última e desiludida declaração do padre soa em nossos ouvidos, ao término da narrativa: “Foram honestos, e basta”. Mas será mesmo o bastante? IV A alegoria política/histórica é apenas uma possível dimensão do significado presente na trama. Para explicar alguns de seus aspectos mais marcantes — notavelmente, a ameaça de incesto — temos de lembrar o que é, em certo sentido, mais óbvio. “Casa velha” é um drama de família, mas que Machado utilizou com o objetivo claro 206 O nome em comum é estranho, entretanto; pode ter reflexos pouco lisonjeiros sobre o caráter volúvel do “Patriarca”, que muitas vezes causou controvérsias entre os historiadores embora, pelo que eu saiba, Machado jamais o mencionasse de maneira desrespeitosa. Maiores detalhes encontram-se em “José Bonifácio: mito e histórias”, de Emília Viotti da Costa, em Da Monarquia à República: momentos decisivos. 207 A juventude de Machado de Assis.
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de refletir realidades sociais, e também políticas, mais amplas — na verdade, como demonstrei, os acontecimentos políticos em si parecem ser produzidos pelas necessidades e limitações de um certo tipo de sociedade. Está bem claro que a família é representativa; na realidade, as mudanças de um nível de significado para outro estão baseadas numa atitude generalizante, que aparece insistentemente no início da narrativa e está presente em toda ela. No começo, Machado concentra nossa atenção na casa, a que o padre não dá nome (“casa velha” é, simplesmente, como a chama a população local). Procura, sem dúvida, preservar assim seus segredos, mas a descrição que faz leva a mente do leitor, por outro lado, a se concentrar em seu vulto físico e espiritual: “A casa, cujo lugar e direção não é preciso dizer, tinha entre o povo o nome de casa velha, e era-o realmente; datava dos fins do outro século. Era uma edificação sólida e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde criança, conhecia-lhe a parte exterior, a grande varanda de frente, os dois portões enormes, um especial às pessoas de família e às visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas que iam e vinham, às seges, ao gado que saía a pastar”. Mais adiante, no mesmo capítulo, ele descreve a casa como “uma espécie de vila ou fazenda”, “um pequeno mundo”; além dos animais aqui mencionados, somos casualmente informados de que eles recebem frutas e verduras da roça uma ou duas vezes por mês. Esses detalhes, que vale a pena registrar de passagem, são relativamente comuns em Machado — o que não é tão comum é a ênfase no cenário “realista”. Na verdade, como no caso da casa de Bento, no início de Dom Casmurro, os objetivos são apenas parcialmente descritivos. A casa faz a perspectiva histórica recuar até os dias “inocentes” de 1780, quando o avô de d. Antônia voltou de uma visita à Europa “com ideias de solar e costumes fidalgos”. Ela encarna o ancien régime; e o que, acima de tudo, impressiona o padre é sua autossuficiência, tanto do ponto de vista social como físico. Até contém, dentro de seus muros, uma capela particular, usada também pelas pessoas da região, e não apenas pelos moradores da casa propriamente dita: “Casa, hábitos, pessoas davam-me ares de outro tempo, exalavam um cheiro de vida clássica. Não era raro o uso de capela particular; o que me pareceu único foi a disposição daquela, a tribuna de família, a sepultura do chefe, ali mesmo, ao pé dos seus, fazendo lembrar as primitivas sociedades em que florescia a religião doméstica e o culto primitivo dos mortos”.208 Este notável parágrafo mostra que Machado levava suas especulações sobre a natureza da sociedade e a família até um nível antropológico, comparando a família ampliada a uma tribo primitiva, em seu reduto autoprotetor. Essa frase dificilmente brotaria de uma mente convencional da época; mostra com clareza como Machado via que as questões de família podem refletir realidades sociais muito mais amplas. Machado descreve as ações de seus personagens em termos que são, em última instância, muito mais sociais que morais; está interessado na atuação de um grupo social, não na distribuição de culpas. D. Antônia não tenta impedir o casamento de Lalau e Félix por rancor, mas porque ela age — de maneira bem intencio208 O uso de capelas particulares era, de fato, comum no Brasil do século xix, mas não deixava de ser criticado. Isto acontecia com frequência; como os leitores contemporâneos de Machado provavelmente lembrariam, a Igreja cada vez mais se opunha a essa “religião doméstica” e, em 1886, o Internúncio publicou uma carta circular condenando a prática de dizer missa em casas. Ver Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre.
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nal e consciente, é claro — de acordo com os ditames de sua classe: “Nós não vivemos no mundo da lua, reverendíssimo. Meu filho é meu filho, e além desta razão, que é forte, precisa de alguma aliança de família. Isto não é novela de príncipes que acabam casando com roceiras, ou de princesas encantadas. Faça-me o favor de dizer com que cara daria eu semelhante notícia aos nossos parentes de Minas e de São Paulo?”. Fica bem claro que o amor entre os dois jovens é em parte causado por ela, desde que seu afeto por Lalau a fez aceitar sua presença na casa, mesmo já tendo suspeitado da verdade. O afeto de d. Antônia pela agregada é um dos aspectos estranhos da narrativa, porque persiste através de todas as vicissitudes, até que os laços são rompidos pela própria Lalau. Ela deseja a moça de volta na casa velha, logo que Félix está bem casado, mesmo depois de insinuar que Lalau é filha ilegítima de seu marido. É bem possível que a explicação seja psicológica; somos informados de que ela teve dois filhos, Félix e “uma menina que morreu com três anos”. Ou talvez ela a queira por perto para poder vigiá-la, em caso de possíveis problemas. Tudo isso torna mais singular o fato de que ela não se deterá diante de nada para impedir o casamento. O momento mais chocante e revelador da trama é quando ela insinua que o casamento dos dois seria incestuoso. Fica bem claro que a “confissão” — claro que é uma mentira — a afeta profundamente. Deve estar consciente dos danos psicológicos que inflige a seu filho e à agregada, a ponto de não conseguir articular as palavras, deixando assim lugar ao padre para que seja seu intérprete. Mas a insinuação é bastante clara e, por uma perversa ironia, ela acaba se aproximando mais da verdade do que seria capaz de imaginar. Lalau poderia ser filha do ex-ministro mas, na verdade, nasceu antes de começar a ligação entre ele e sua mãe. O mais notável aspecto do uso do incesto por Machado não é o tema em si nem a revelação do verdadeiro pai, em lugar do falso. Ambos os aspectos são bastante comuns na ficção romântica e empregados pelo próprio Machado em Helena. Aqui, parece que Machado não está sequer interessado (como acontece, em certa medida, no romance anterior) nos problemas psicológicos causados pela ameaça de incesto, mas utiliza-o para mostrar os extremos a que irá a família (ou classe) para impedir elementos estranhos de se casarem com um de seus membros. Existem, porém, outras implicações, já que o incesto foi evitado apenas por uma questão de sorte, ou seja, pelo fato do caso entre o ministro e a mãe de Lalau ter acontecido numa época anterior ao nascimento desta. Curiosamente, então, o incesto não é apenas uma arma usada em defesa do sistema da família, mas também uma ameaça real à sua existência. A afirmação voluntária de seus poderes de exclusão, e os resultados indesejáveis que tal exclusão pode trazer, são comunicados por uma única ideia — e isto mostra, segundo parece, que essa classe está, em última instância, disposta a colaborar em sua própria destruição. Neste contexto, a frase “culto primitivo dos mortos” começa a assumir um novo e sinistro significado, e a propagar sua influência para o futuro, além de se exercer no passado. V É possível que Machado pensasse na trama de “Casa velha” em termos quase antropológicos, como sugere sua comparação da família com uma tribo. Certo é que, para dar a esse enfoque uma maior ressonância, ele também recorreu ao mito ou,
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para sermos mais exatos, a uma paródia da principal história mítica da sociedade que está descrevendo — a de Cristo. Diante do choque que os fiéis teriam, se entendessem como Machado usa as figuras centrais de sua religião, não é de surpreender que esse nível seja mais oculto do que a alegoria política já desvendada. Mas não pode haver dúvida de sua presença, que é, como mostrarei, cuidadosamente calculada. As provas mais importantes centralizam-se em d. Antônia e, em particular, em sua ligação com a Virgem, numa de suas encarnações, a de Rainha do Céu. Quando o padre acaba de fazer seu apelo a “Nosso Senhor Jesus Cristo, que nasceu nas palhas”, ele comenta que ela não está interessada na Virgem no estábulo, mas em outra: “Voltando, deu alguns passos sem dizer nada, indo e vindo, desde a porta até a parede do fundo, onde pendia uma imagem de Nossa Senhora, com a coroa de ouro na cabeça e estrelas de ouro no manto. D. Antônia fitou durante alguns momentos a imagem como para defender-se de si mesma. A Virgem coroada, rainha e triunfante, era para ela a legítima deidade católica, não a Virgem foragida e caída nas palhas de um estábulo”. Esta imagem poderia muito bem ser tomada como incidental, não fosse o fato de Machado articular cuidadosamente sua trama para fazer a revelação de incesto coincidir com o feriado desta Virgem, o “Dia da Glória”, ou a Festa da Assunção, o 15 de agosto.209 Um feito considerável, porque ele consegue também fazer a data coincidir com a de um evento histórico, a captura de Laguna, que ocorreu em 24 de julho de 1839. O recurso por ele utilizado é o de avançar e recuar os dois eventos no tempo, ao mesmo tempo que faz a revelação do incesto durar uma semana. A promessa de d. Antônia de revelar um impedimento ao casamento, na cena na sacristia de que tirei a citação anterior, ocorre em dia não-identificado. No dia seguinte, a revelação é adiada com a chegada de hóspedes vindos da roça; chegaram antes do previsto, para “assistir à festa da Glória”. O dia pode ser datado com mais precisão, pois sabemos que foi entre 6 e 10 de agosto, já que d. Mafalda chega para levar Lalau às novenas da Glória — a mãe de Lalau era, como ela diz, uma devota fiel de Nossa Senhora da Glória. Por sugestão de Félix, entretanto, eles prometem vir para jantar no próprio “Dia da Glória”, o 15 de agosto. O dia seguinte, quando d. Antônia faz sua revelação ao padre, é o da chegada das notícias de Laguna (retardadas, supõe-se, pelas lentas comunicações).210 Quatro dias mais tarde o padre conta a Félix o perigo de incesto, mantendo-se depois afastado da casa durante vários dias, reaparecendo somente após ter a crise chegado ao seu auge, em 20 de agosto. Como se pode observar, essa escala de tempo é completamente coerente e refletida, embora sem definição precisa. Retardando as notícias de Laguna e alargando as festas da Glória para incluírem a novena, Machado junta o que só poderia 209 Um detalhe estranho: a história do padre começa com a seguinte frase: “Não desejo ao meu maior inimigo o que me aconteceu no mês de abril de 1839”. Na história, nada desastroso acontece que se possa com segurança datar de abril. O padre entra na casa em fevereiro e a crise é em agosto. Será que Machado mudou seu plano? Ou — o que é ainda mais chocante — será que ele, inicialmente, pretendia que o sacrifício coincidisse com a Páscoa? Como “Casa velha” foi publicado por capítulos, e jamais republicado por Machado, seria impossível, naturalmente, ele corrigir o trabalho. 210 Fui informado pelo dr. e sra. R. F. Colson que a notícia demoraria uma semana para chegar ao Rio, a depender do vento e do tempo, que muitas vezes é ruim, nessa época do ano. Teria vindo por escuna. Chegou, de fato, no dia 7 de agosto, como nos informa, por exemplo, O Despertador do dia 8.
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ser unido com dificuldade. O que é mais notável, ele faz coincidir o 15 de agosto com o momento potencialmente mais trágico da muito adiada revelação do incesto, durante o qual o padre não se acha presente. Trata-se do primeiro encontro de Lalau com Félix depois que ele foi informado da consanguinidade. É o “Dia da Glória” de d. Antônia; ela se eleva entre eles, como a Virgem coroada, “rainha e triunfante”, entre dois mártires. A associação de d. Antônia com a Virgem leva a alegoria para um nível religioso embora, obviamente, não seja um nível ortodoxo: o fato de Machado abordar, mesmo de maneira indireta, o caso de um bispo estuprado pelo filho de um papa não indica lá muita simpatia ou respeito pela Igreja Católica, mesmo se não dispuséssemos de nenhuma outra prova neste sentido. O que lhe interessa é o poder da Igreja e, com relação a isso, é interessante lembrar a frase de monsenhor Queirós ao padre-narrador, na qual ele o associa com o poder feminino: “Conquanto, disse-me ele, que você não prejudique sua mãe, que é a Igreja. O Estado é um padrasto”. A Virgem Coroada e o padre político — a Igreja encarada sob sua luz mais mundana — reúnem forças para aprisionar a geração mais jovem, como eles próprios estão aprisionados. D. Antônia, naturalmente, está encerrada na estrutura da família e da casa que representa, e com a qual é repetidamente associada. Ela foi criada ali — na verdade, a “casa velha” pertence à sua família, não à de seu marido — e diz que jamais a deixará. O padre, por sua parte, está encerrado, acima de tudo, em seu voto de castidade, que distorce seus sentimentos mais naturais, transformando-os em ciúme, a mais machadiana das emoções. Juntos, eles formam — intencionalmente, segundo creio211 — uma espécie de paródia da Sagrada Família, uma Virgem Mãe e um pai substituto que, na verdade, colaboram para o martírio e sacrificam seu único filho para salvar, não a humanidade, mas os estreitos interesses de uma classe. Sendo ou não esses modelos intencionais, o resultado é profundamente chocante; implicam a visão de uma classe dominante dedicada à adoração de seus mortos e antes disposta a imputar a si mesma os mais terríveis efeitos da exclusão de pessoas alheias à família (o incesto), do que nela permitir o seu ingresso; e cujo senso da religião que adota oficialmente tornou-se tão pervertido a ponto de deixar que encene — embora inconscientemente — uma paródia tão terrível da doutrina cristã. No entanto, isso é apenas uma parte da verdade. Concentrando-nos em d. Antônia, deixamos de lado necessariamente o fato de que o incesto não é apenas uma mentira arquitetada por ela em cumplicidade com o padre. É quase a trama da narrativa, um “fato” criado pelas malfeitorias do pai. A curiosa sensação causada pela revelação da verdade concreta, no final do relato, é a de que as duas tramas se desenvolveram de forma simultânea: um incesto falso, e criado de maneira intencional, e outro quase verdadeiro, mas que teria sido acidental.
211 Muitas vezes é difícil saber ao certo até que ponto eram conscientes esses modelos simbólicos. Quando, mais tarde neste capítulo, abordarmos Dom Casmurro, no qual o mesmo modelo é repetido (como mostrarei), poderemos cotejar bastantes evidências, como nomes etc., demonstrando que era impossível Machado não ter consciência do que estava fazendo. Aqui, além da associação cuidadosamente planejada de d. Antônia com a Virgem, as repetidas referências ao martírio, no contexto cristão (a Storia Fiorentina, a epopeia de Chateaubriand), levam-me a pensar que os modelos foram empregados de maneira plenamente intencional.
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Não devemos cometer o erro de supor que, com o fato de d. Antônia ser tão intimamente associada à casa velha, Machado considerasse matriarcal, em qualquer sentido, a família que descreve. Ele chama a própria casa de patriarcal e deixa bem claro que os deuses domésticos — os ancestrais de d. Antônia, do sexo masculino, e seu marido morto — são todos homens. Embora Machado tenha criado, mais de uma vez, essas mulheres fortes, e há sugestões de que existe uma tradição dessas mulheres na cultura brasileira,212 parece que elas aparecem nem tanto por contradizerem a norma patriarcal, e mais por permitirem que ela seja questionada: embora, no final, através de uma aliança com alguma força repressiva (aqui, é a Igreja), elas consigam reafirmar o poder dessa norma. Em outras palavras, permitem que o sistema seja testado e se descubra sua solidez. Essa me parece a mais satisfatória explicação para a dupla trama. A repressão exercida pela mãe é mais tortuosa que a do pai e revela mais sobre as perversões sociais e intelectuais nas quais se fundamenta o poder da oligarquia; mas, em última instância, conduz à mesma conclusão. VI O leitor cético pode achar que, mesmo que essa interpretação seja verdadeira, “Casa velha” é uma exceção no trabalho de Machado — e será que essa aparente aberração não se explica por seu provável elemento autobiográfico, ou algo desse tipo? Certamente, o fato de que Machado jamais o republicou parece confirmar essa ideia — mas acredito que seja equivocada. Talvez já tenha anteriormente ocorrido ao leitor menos cético que havia paralelismos muito acentuados entre “Casa velha” e Dom Casmurro. São, na verdade, tão notáveis e existem em níveis tão variados (superficiais e também profundos) que Machado pode ter percebido que o trabalho anterior era um esboço para a obra-prima posterior, considerando-o uma experiência a ser esquecida — mais ainda, talvez, porque “Casa velha” apresenta com contornos mais nítidos a mensagem heterodoxa que existe ainda oculta em Dom Casmurro. Sem dúvida, de todas as obras anteriores que se afirma conterem “chaves” para entender o romance mais famoso de Machado, “Casa velha” me parece a mais credenciada.213 O que mais surpreende são as coincidências de detalhe — é realmente espantoso o fato de que tanto Bento quanto o padre escrevam suas histórias como alternativas para aquelas que desejariam escrever, a fim de demonstrarem sua capacidade de se saírem melhor que padre Luis Gonçalves dos Santos, em suas Memórias do reino de dom João vi.214 O personagem tio Raimundo, em “Casa velha” “é” tio Cosme, em Dom Casmurro, dezessete anos antes, partilhando sua paixão pela política (em particular, seu ódio pelo padre Feijó),215 pelas mulheres e, o que é o traço mais característico dos dois: pelos jogos inofensivos, como o gamão ou o voltarete; mesmo os nomes de ambos os personagens estão ligados (mundo = cosme). Há 212 Ver Freyre, Sobrados e mocambos, i. 213 Ressurreição é empregado dessa maneira por Helen Caldwell, em O Othelo brasileiro de Machado de Assis, e A mão e a luva, por Wilson Martins, na História da inteligência brasileira, iii. São dois casos, entre outros — seu interesse exclusivo, entretanto, na questão da culpa ou inocência de Capitu, impede-os completamente de verem Dom Casmurro, ou os “precursores”, como um todo. 214 “Casa velha” e Dom Casmurro. Ver também O enigma de Capitu, de Eugênio Gomes. 215 Ver “Casa velha”. O desafio da baronesa ao coronel, “Preferia o seu amigo Feijó?”, é obviamente sarcástico.
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nomes paralelos: d. Antônia, com sua associação com o “Dia da Glória”, torna-se d. Glória.216 O padre, que associamos com São José, torna-se José Dias;217 Félix, Bento (feliz, abençoado); e Lalau e Capitu são ambos apelidos de nomes vinculados com a antiga Roma (Cláudia, Capitolina). O que é mais importante, no entanto, é a repetição da trama básica, embora com uma nova sutileza e a exclusão do sentimentalismo e do melodrama (Lalau e Gira, o tema do incesto sob a forma óbvia). Numa casa dedicada à adoração dos mortos (“a casa dos três viúvos”, em Dom Casmurro) uma mãe viúva e seu aliado “neutro”, porém intrometido, unem forças para frustrar as esperanças do jovem casal, formado pelo filho da viúva e uma moça da classe inferior que, até certo ponto, depende da família da viúva. Em “Casa velha”, fazem isso através de uma mentira — que acaba revelando-se quase real — sobre o perigo de incesto. Em Dom Casmurro, a crueza dessa ameaça é substituída por uma forma de destruição mais insidiosa, porém paralela. Se o incesto é uma mentira, ou uma quase-verdade na narrativa anterior, e em ambos os casos funciona como metáfora para o autoconfinamento da família, no romance posterior Machado dispensa-o em favor de um retrato imensamente sutil e complexo daquele autoconfinamento revelado na narração de Bento. Ele só constitui ameaça direta quando Escobar sugere um casamento entre Ezequiel e Capituzinha que, se as obsessões de Bento têm algum fundamento concreto, são filho e filha de Escobar, com Capitu e Sancha respectivamente. Muito mais importante, no entanto, é a demonstração feita por Machado de como a natureza reclusa da família afeta a índole psicológica de Bento, a ponto de torná-lo incapaz de se movimentar ou, finalmente, de ver além do casulo que foi tecido para ele, entre outras coisas, pelo voto feito por sua mãe de fazê-lo padre, antes mesmo de seu nascimento, da influência de José Dias sobre ela e sobre ele, Bento, cuja imaturidade emocional permite a Capitu ganhar o predomínio num casamento socialmente desigual. Não pode haver dúvida de que “Casa velha” aponta na direção de Dom Casmurro — mas o que poderemos dizer sobre sua procedência? Uma vez rejeitada a hipótese de Lúcia Miguel-Pereira, de que tenha sido escrito mais cedo, parece que seus antecedentes mais diretos são os primeiros romances, principalmente Helena e Iaiá Garcia. Já mencionei importantes paralelismos entre suas tramas e a de “Casa velha”; parece mais provável que nossa história seja um elo perdido entre essas primeiras (e falhas) meditações sobre o sistema do favor, e o brilho e complexidade de Dom Casmurro. Como já sugerimos, “Casa velha” reduz à sua forma essencial o tema comum a ele e aos dois romances anteriores; constitui-se, de fato, um ataque muito mais direto à raiz de todo o mal, a família patriarcal de classe superior. “Casa velha” faz parte de um processo gradual de desenvolvimento e refinamento que Machado levou avante durante toda sua vida de escritor, com uma 216 O paralelismo é ainda mencionado por Helen Caldwell, em O othelo brasileiro, como também a analogia entre José Dias e são José, embora ela não perceba a sugestão em torno deste tema, feita por Machado ao leitor, em trecho que cito na nota seguinte. 217 Em certo momento, em Dom Casmurro, Machado refere-se, através de uma observação casual de Bento, à ligação entre José Dias e são José: “Um dia, porém, um dos familiares que serviam de endossantes da letra [isto é, José Dias], falou da necessidade de entregar o preço ajustado; está num dos capítulos primeiros. Minha mãe concordou e recolhi-me a São José”. O São José referido é o seminário, mas, no contexto, um possível significado da frase é “Recorri a São José [José Dias]” — seu principal aliado na luta para evitar sua ida para o seminário.
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espantosa mistura de paciência, autocrítica e autoconfiança. Silviano Santiago expressa isso com muita exatidão e indica, corretamente, qual a tarefa do crítico: “Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado como um todo coerentemente organizado, percebendo que certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas, à medida que seus textos se sucedem cronologicamente”.218 Juntamente com a causalidade literária, não se podem excluir possíveis elementos autobiográficos da gênese de “Casa velha”. É, certamente, curioso que detalhes importantes de seu cenário e do cenário da infância e juventude de Machado coincidam e que sua ação transcorra no ano do nascimento do romancista.219 Claro, é muito difícil especular sobre as razões para essas coincidências, por mais fascinantes que sejam. Uma explicação possível, embora apenas conjetural, é a de que Machado se sentiu preparado para empregar um pano de fundo tão pessoal para sua história porque alcançara, pela primeira vez, algo próximo a uma real e exata crítica do mundo que o alimentara e formara. Neste sentido, ao contrário de Quincas Borba, cuja publicação começou em A Estação, apenas meses depois de estar concluído “Casa velha”, essa história é um trabalho curiosamente pessoal — embora seja bom lembrar que a maioria dos leitores de Machado não fosse perceber o que ele estava fazendo, dada sua bem conhecida discrição quanto a seu passado. Trata-se de especulação, embora seja uma hipótese com a vantagem de valorizar a experiência pessoal apenas na medida que ela se integra em questões mais gerais. Como Machado sempre percebeu, e como Schwarz nos fez perceber outra vez, a relação difícil e muitas vezes trágica entre a oligarquia e seus dependentes serve para esclarecer assuntos sociais e políticos aparentemente muito afastados de sua arena, que é necessariamente doméstica. Para entender plenamente os objetivos e os êxitos de Machado em “Casa velha” é preciso passar a um nível mais geral de argumentação. Uma das possibilidades mais interessantes, e que põe em relevo as características próprias da narrativa, é o fato de ele ter elaborado uma trama que utiliza a simplicidade e o engenho para abordar um fenômeno central tanto na sociedade brasileira do século xix, quanto na do período colonial — o poder absoluto do chefe masculino da família oligárquica. Quando descrevo a trama como simultaneamente simples e engenhosa, penso, sobretudo, nas tramas duplas, paralelas, em torno do incesto, uma tendo à frente o pai, a outra a mãe. Poderia parecer simples abordar a questão do pai unicamente, pois o seu poder é o fato principal;220 a dificuldade, contudo, vem do próprio absolutismo 218 “A retórica da verossimilhança”, de Silviano Santiago, presente nesta Fortuna Crítica. 219 Machado foi criado como membro de uma família ligada a uma grande casa nas imediações do Rio; o principal membro da família era Maria José de Mendonça, a viúva de um ministro, Bento Barroso Pereira. Ver A juventude, de Massa, e a Vida e obra, de Magalhães Júnior. 220 Um notável conto da juventude de Machado, “Frei Simão” ( ii, p. 136), publicado inicialmente em 1864, descreve o exercício irrestrito da autoridade paterna. Quando surge o perigo de Simão casar-se com Helena, uma parenta pobre, seu pai manda-o simplesmente viajar, casando Helena com outra pessoa. A única concessão ao subterfúgio é ter sido Simão mandado embora, em vez de apenas proibido de se casar. A tarefa de mantê-lo afastado é delegada ao correspondente do pai, um ex-romancista que, por meio de histórias mentirosas, consegue impedir a sua volta. Não somos informados sobre o teor dessas invenções — talvez Machado tenha achado difícil imaginar qual poderia ser. Os resultados desse despotismo patriarcal são previsivelmente horrendos — enlouquecem, primeiro o filho e depois o próprio pai.
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do poder paterno, que reprime o conflito e, consequentemente, a trama. A trama de Machado, como eu já disse, não nega o poder patriarcal. Pelo contrário, afirma seu absolutismo mas, estando o pai fisicamente ausente, tendo deixado atrás de si os resultados de suas ações, Machado pode, ao mesmo tempo, mostrar o absolutismo do poder e seus mecanismos de autodefesa, quando ameaçado. Também podemos analisar sob uma outra luz a dupla trama, de forma mais otimista. Talvez Machado esteja mostrando o que Freyre chama de situação “semipatriarcal”, na qual as características mais rígidas do passado começam a ceder, diante dos acontecimentos históricos.221 O fato de “Casa velha” ter sua ação situada numa casa que, embora parecendo de fazenda, está localizada na cidade, é uma confirmação dessa suposição; mais sugestiva ainda é a exatidão histórica da narrativa, com suas referências a ideias liberais, rebelião política etc. Não há dúvida de que Machado pretendia mostrar o desenvolvimento histórico; surgem dúvidas, porém, quando consideramos se ele encarava esse desenvolvimento como progresso. O poder patriarcal — repetimos — não está enfraquecido em “Casa velha”, mas é preservado às custas de todos os envolvidos, até mesmo de d. Antônia. Em Dom Casmurro, que mostra um momento histórico mais tardio (estamos em 1857, a casa da rua de Matacavalos é claramente urbana e, na ocasião em que o romance é escrito por Bento, já existem caminhos de ferro no Rio), o curso do poder patriarcal é consideravelmente mais tortuoso, sem deixar de ser menos absoluto e destrutivo. Machado não nega a mudança, mas não a chama de progresso; pelo contrário, o que mais parece impressioná-lo, acima de qualquer outra coisa, é o conservadorismo da classe dirigente, sua capacidade de resistir à mudança ou ignorá-la. Num cenário físico e social tão transformado como o do Rio em 1899, Bento ainda pode pensar em construir uma casa com o mesmo “aspecto e economia” que a de sua infância. Em um sentido, Dom Casmurro representa um maior afastamento de qualquer perspectiva de mudança — embora isso seja, em parte, uma questão de tom. Pelo menos, em “Casa velha”, encontramos uma personagem (Lalau) rompendo os tabus que separam a classe superior da inferior, assim como esta dos escravos. Ela não é, afinal, a filha do ex-ministro, mas de Romão Soares, que “exercia um ofício mecânico”. É verdade que Lalau realmente representa a possibilidade de uma ruptura, de uma mente consciente que pode encontrar a força para se revoltar; mas o próprio fato de, ao criá-la, Machado incidir no sentimentalismo sugere os problemas com que ele se defrontava. Não é nada original dizer que Capitu é uma personagem profundamente ambígua — em Dom Casmurro, a supressão do sentimentalismo, que Machado sabia ser necessária, também representou a supressão de qualquer figura claramente superior ao sistema, ou que esteja para além do seu funcionamento. As questões mais gerais são inseparáveis dos problemas de coerência e tom da narrativa. O que me deixa inteiramente seguro de que “Casa velha” é um produto dos anos 1880 é que esta obra avança muito em direção à solução de dois importantes problemas, que Machado não resolvera em Iaiá Garcia (1878);222 a obra ocupa 221 De Freyre, Sobrados e mucambos, passim. 222 Ver, de Schwarz, Ao vencedor as batatas.
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seu lugar bem naturalmente entre as experiências desses anos, das quais a mais importante e complexa foi Quincas Borba. O primeiro desses problemas é a abordagem histórica, algo que ele tentara fazer em Iaiá Garcia, mas que só consegue com Brás Cubas e em alguns contos de Papéis avulsos — neste sentido, “Casa velha” não apenas faz parte de uma tendência mais ampla: é a primeira tentativa de escrever um romance histórico plenamente estruturado no qual os personagens, os detalhes incidentais e, acima de tudo, a trama em si, contêm significados históricos inter-relacionados. O segundo problema diz respeito à primeira questão discutida aqui, o papel do narrador-padre. É isso que proporciona a prova crucial contra a teoria de que se trata de uma obra anterior a Brás Cubas. O padre representa a possibilidade de uma verdadeira ruptura com o passado, mas que está encaixada dentro de uma adesão básica a seus valores, e é isto que constitui o tema e a estrutura da narrativa. Machado descobriu que, para escrever sobre o universo da oligarquia, tinha de penetrar nele, de ser um “colaborador”, como o próprio padre. Neste sentido, como em tantos outros, “Casa velha” está bem próximo de Dom Casmurro, no qual Machado penetra na mente de um membro pleno da oligarquia, que colabora para sua própria destruição e a de sua família. Mas, ao contrário de seus dois narradores, Machado permanece, nas palavras de João Cabral, um “inconformado conformista”,223 que colaborou sim, mas conseguiu tirar sua vingança pessoal e secreta. Se não fosse possível conceber uma trama fora do contexto do sistema patriarcal e oligárquico, seu trabalho serviria para demonstrar que as tramas concebidas dentro desse sistema acabam em incesto, em destruição, loucura, esterilidade e morte.
Vidas póstumas: o caso de Machado de Assis Susan Sontag
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Imaginem um escritor que, no curso de uma vida moderadamente longa, durante a qual nunca viajou mais que 120 quilômetros além da capital onde nasceu, criou uma obra vasta... um escritor do século xix, me interromperão vocês; e estarão certos: autor de uma profusão de romances, novelas, contos, peças, ensaios, poemas, resenhas, crônicas políticas, bem como repórter, editor de revista, burocrata do governo, candidato a um cargo público, fundador e presidente da Academia de Letras do seu país; um prodígio de realizações, de superação da doença social e física (era mulato, filho de uma escrava num país onde a escravidão só foi abolida quando ele tinha quase cinquenta anos; era epiléptico); que, durante essa carreira intensamente prolífica, exuberantemente nacional, conseguiu escrever um número considerá-
223 “Poema(s) da cabra”, Poesias Completas (Rio de Janeiro, 1968, p. 171). 224 Texto publicado originalmente como posfácio a Machado de Assis, Epitaph for a Small Winner. Nova York: Noonday Press, 1990. Recolhido em Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, tradução de Rubens Figueiredo.
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