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O Elefante de Marfim “Fabrico um elefante de meus poucos recursos. Um tanto de madeira tirado a velhos móveis, talvez lhe dê apoio. E o encho de algodão, de paina, de doçura. A cola vai fixar suas orelhas pensas. A tromba se enovela, é a parte mais feliz de sua arquitetura. (...)” Carlos Drummond de Andrade
Aos amigos, melhores inimigos, empates.
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Índice:
~ Projeto de Próera: 0. Introdução ao Projeto: 1 . Projeto Conceitual: 2 . Objetivos Conceituais: 3. Objetivos Processuais: 4 . Justificativa Processual: 5. Interlocuções: 6. Plano Criativo: 7. Aeongrama: 8. Orçamento: 9. Poesia Escrita no Mapa do Museu: 10. Justificativa Conceitual: 11 . Carta da Compositora:
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~ Libreto de Ópera: 12 . Projeto Dramático: 13. Simbologia do Texto Dramático: 14 . Personmargens: 15. Prólogo no Teatro: 16. Prelúdio: 17. Ato Primeiro: 18. Segundo Ato: 19. Ato Final:
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~ Portitura de Ciberfonia: 20. Projeto Aural: 21 . Personmargens Aurais: 22. Ópera Elefante:
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O Elefante de Marfim Projeto para Próera em Três Interatos
“Se você houvesse nascido nas costas do elefante, rapidamente aprenderia a ver a mentira da terra.” Provérbio Hindu
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0. Introdução: No mês de Setembro do ano passado, eu estava presente à cidade de Belo Horizonte para o Fórum Internacional de Dança 2010 - “Por Uma Museologia do Corpo Que Dança” acompanhando um dançarino que apresentava. Um dia após o término do festival, decidimos visitar o museu de Inhotim na cidade de Brumadinho, como nos havia indicado uma amiga. Pagamos um motorista do festival para nos levar até lá e de lá direto ao aeroporto de Confins, onde eu deveria pegar meu voo para compromissos inadiáveis em São Paulo. Chegamos cedo e o museu se encontrava vazio, talvez devido à época. Seguimos os três apreciando a atmosfera dos jardins e galerias e suas obras, vagarosamente, sem nos preocupar em acolher o museu com sua imensa poética nesta visita de última hora. Ao sairmos da obra ‘Da Lama Lâmina’ de Mathew Barney, uma cobra caiu de uma árvore no meu pé esquerdo e a matei. De tal absurdo acaso, nos vimos numa perplexa meditação. Por algum motivo levei a cobra comigo embrulhada numa folha. Por horas este silêncio gigantesco nos tomou. Quando da hora do almoço, deixei a cobra sobre a mesa da área externa do restaurante Hélio Oiticica e fui lavar meu rosto e me servir. Quando retorno, uma ave negra tinha a cobra em seu bico. O segurança a afastou e a ave levou a cobra ao mato onde a derrubou. Pedi ao segurança que a trouxesse de volta, dizendo se tratar de uma obra de arte que eu estava empreendendo através de um processo de scineciclagem. Ele a buscou rindo. E na volta, ao me entregar ela com uma pena da ave, embrulhados num guardanapo, perguntou “Qual o nome da obra?” “‘O Elefante de Marfim’”- respondi sem pensar. Quando meu amigo volta com seu prato feito, ele me pergunta se não vou comer. Eu digo que sim, e que algo muito algo estranho estava acontecendo. Comemos e me ponho a escrever no meu mapa do museu enquanto tomamos um vinho. Havia sido uma exaustiva semana de trabalhos e oficinas e diálogos. Me vi tomado, como que finalmente em contato com aquela beleza toda, até então apática e distante. Tive que realizar a obra. Comecei a recolher lixo e excedentes das exposições (pedra de vidro, esferoides de pólvora usados comummente como veneno para ratos, chip, flor, terra seca umedecida em água potável, uma folha de plástico celofane, micro pedaços de papéis de divulgação distintos, um fungo púrpura fractal) enquanto ampliava no mapa do museu sua descartografia. Meu acompanhante seguia dançando a dança do festival, mas agora num silêncio sem público. As pessoas perguntavam de que se tratava e dizia que era um Elefante de Marfim, alguns se assustavam com a cobra enquanto outros (uma criança e uma idosa) me deram coisas para somar à obra. Depois, o motorista, que a esta altura falava poesia, me entregou um escaravelho e fez questão de ir até a lanchonete atrás de um pacote de cachorro-quente, pois temia pela integridade da obra durante o voo a São Paulo. Chegando em casa pus tudo numa caixa de acrílico que uma artista plástica, que desconheço, havia deixado com um crânio de metal pintado com tinta também acrílica branca para uma amiga que morava comigo, antiga moradora da residência ao fundo da vila. Esfreguei as esferas adesivadas sobre o acrílico para que parecessem nuvens.
Dispus os objetos na caixa de modo que formassem uma cena kitsch: uma cobra com pena de corvo ao fim da cauda voando junto a um escaravelho montado num cogumelo atravessando uma flor (meio natural-seca, meio de plástico de embrulhar doce) que nasce de uma micro placa de som de um celular com terra viva dentro, sobre uma nuvem de pedra de vidro e outra de plástico e outra de tela e outra de escultura e outra de instalação e outra de um lugar onde bailavam e outra de um teatro armado sem cena e outro de uma cena sem palco e outro de jogos de coxias e montagens e desmontagens e ainda outras tantas em labirintos de midiatecas, véus. Quando um amigo viu a peça sobre a mesa perguntou o que era e eu lhe disse, perguntou o nome e eu lhe disse. E ele falou num tom irônico: “Com esse nome, você poderia cobrar o mesmo preço do Tubarão do Damien Hirst.” Me lembrei de uma multidão de artistas de várias gerações que conheci nos últimos quinze anos e como eles ampliaram minha relação com arte e vida, de uma maneira semelhante (numa dimensão ainda ulterior) à que os museus haviam feito quando passei a frequentá-los. E outra vez não entendi por que eles permanecem na borda do grande circuito da arte, se seu papel social era de tamanha importância em diversos campos e suas atuações atendiam uma abrangência estética precursora e inegavelmente potente. Me pareceu que esta humildade deles devia ser ressaltada e a maneira apropriada para isto era um gesto grandiloquente, senão megalomaníaco. Assim comecei a escrever o projeto que se segue. Quatro intuitos me nortearam enquanto escrevi: 0.1 . Tratar destes artistas que são museus em si mesmos e atuam cotidianamente com humildade e singeleza, estes que forjam o carácter dos que os cruzam e mantêm-se em ética sem apelar ao arrivismo ou deixarem-se levar pela cooptação do mercado sobre a arte, heróis-marginais stricto-sensu. 0.2 . Vislumbrar os engrandecimentos para o papel do museu, sua simbologia e seu campo de atuação através do entranhamento destes na sua visão curatorial em tempos de abertura cibernética de todos os sistemas, incluindo o cultural. 0.3. Aprofundar a relação do espectador em relação à arte e à vida ao propor-lhes que também se tornem artistas tais como estes que tanto admiro. & 0.4 . Pôr à prova os valores da criação (autoria e autoridade), da mediação (remix sistêmico) e da fruição artística-estética na cultura de consumo e produção simultâneos...
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1. Projeto Conceitual: 1 .1 . ‘O Elefante de Marfim’ é uma obra hipermidiática que entrelaça uma pluralidade de auto-referências processuais, artísticas e técnicas contidas num grande museu; ao mesmo tempo que tece uma ópera com as linhas museológicas, de modo a criar uma rede de sentidos convergentes numa mesma poética trazendo à tona as infralógicas arquetípicas do fazer artístico em geral e em suas diversas especificidades (dispostas aqui sem classificação ou hierarquia): poesia, desenho, pintura, colagem, escultura, arquitetura, paisagismo, cenografia, economia, tinturaria, ecologia, música, dança, teatro, gastronomia, perfumaria, filosofia, tecelagem, alfaiataria, cinema, programação, performance, intervenção, produção, museologia, iluminação, curadoria, administração, instalação. 1 .2 . Tal gama de gestos visa lidar com a saturação sensível contemporânea reciclando o conceito de Gesamtkunstwerk (obra de arte total) ao Gesamtkunstwelt (ecossistema artístico) no ideal da produção operística. A mudança, ocorrida por todo o século XX e início do XXI, tanto nos meios de produção quanto no papel social da arte, incluiu ao fetiche do objeto artístico a valorização do processo. A densificação da experiência relacional proposta pelos artistas, levou-nos da atuação de cenas em peças fechadas à interação interventiva em espaços públicos, fazendo com que passássemos da representatividade sazonal de óperas ao ativismo em redes cotidianas na harmonia contextual, isto que chamamos de próera (ou ópera 2.0). 1 .3. Partindo da performance abstrata situacionista (site-especifica) como action-painting cinética, referência direta ao ready-made conceitual (Marcel Duschamp jogando xadrez com John Cage) mesclado ao realismo fantástico (Salvador Dalí na quimera povera de Aoka), uma escultura totêmica cinemática in-progress abre uma brecha no mercado dos signos da arte (Banksy pixando com Cremaster), desvelando uma poesia órfica da land-art ( Jorge de Lima e Haroldo de Campos fazendo uma décollage nas Galáxias), onde a obra traz à tona as redes cibernéticas da criação coletiva algorítmica generativa (Christo rindo das obras em chamas com Ricardo Rosas) do final do século XX e início do XXI.
1 .4 . A pintura mesclada à intervenção urbana culminou no graffiti (Basquiat e Pollock com os situacionistas ouvindo Jazz), a dança com o teatro e as artes plásticas resultaram na arte performática dos acontecimentos (Butoh Fluxus), a escultura elétrica junto à poesia linguística gerou diversas linguagens de programação complexas, as próprias mostras de obras através da expografia (Schwitters e a esculturação da visão de Escher) e dos processos autorais de curadoria se tornaram obras, mesmo as obras híbridas já começam a interagir, tal como a pixação de códigos de programação pela cidade ( Jorge de Lima e Borges escrevendo editais) assinada por um tal Dante em estilo lowbrow, nos mostram que nada nos cerceia mais nas disputas classificatórias da arte em tempos de visualização da informação; e que podemos levar o hibridismo estrutural contemporâneo panfágico (Oswald, Pagu e Hakim Bey em um elogio ao ócio) a um limite de sua própria poética, gerando: danças de graffitis sobre o lixo, arquitetura biomolecular, performances textuais, concertos filosóficos, livros escritos por dentro das vestes, paisagens trouvée, arquitetar tendas para chás e zonas autônomas temporárias, fazer música com tintas, pintar com nossos suores, lágrimas, gozos e sangues.
1.5. Todas estas possibilidades enredadas sob um mesmo gesto coletivo formam a próera proposta, onde os próprios agentes da produção, mediação e consumo artísticas são suas personagens (uma tragédia da comedia de l'arte): 1.5.1 . O museu e os papéis que o compõem: administradores, faxineiros, cozinheiros, galeristas, arquitetos, curadores, visitantes, monitores, educadores, seguranças, advogados, vendedores, propagandistas, colecionadores, jardineiros, artistas. 1.5.2 . Os espaços de virtualização da arte: teatro, cinema, revistas de arte, publicações críticas, internet, rádio, TV, etc. & 1.5.3. O público participador: através de um chamamento coletivo de atualização do projeto por parte de artistas profissionais e diletantes em museus de suas cidades mundo afora.
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2. Objetivos Conceituais: 2 .1 . Um projeto que seja uma obra de arte conceitual em si mesmo e assim seja julgado, inquirindo avaliadores sobre a relação de interação, empatia e nepotismo nas redes de seleção de obras de arte, enquanto intervenção sistêmica (próera). 2 .1 .1 . O projeto deve ser entregue integralmente ao público, como programa da próera , em qualquer apresentação ou exposição vinculada ao mesmo. 2 .2 . Conectar e partilhar experiências na produção simbólica de um encontro de distintas pessoas produzindo uma rede de obras em um atravessamento de mídias numa transcuradoria (Gesamt) que potencialize as micro-redes de criação estética social mundo afora. 2 .3. Somar uma camada de experiência da alteridade no público quanto ao que possa ser arte através da realização de um gesto simbólico que atravesse o museu enquanto ícone cultural, signo curatorial, sintaxe museológica, símbolo social, dado estético do atual modo de vivência do campo sensível (Kunst). 2 .4 . Perceber os limiares da saturação na produção humana de bens de consumo e arte subjetiva (Werk), além das amálgamas cibernéticas potencializadoras das singularizações que despontam no ruído informacional; e propor uma culturfagia (remythx). 2.5. Instaurar o conceito de Ab_Ismo : o in-manifesto da rede de vanguarda contínua contemporânea imperceptível (Welt), onde: a música se torna ab_surdo, a dança ab_gesto, a pintura ab_strato, a escultura ab_ate, a performance ab_rigo, a poesia ab_sê.
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3. Objetivos Processuais: 3.0. De modo a ressoar nos procedimentos de feitura a poética do cuidado do encontro de que trata o projeto, buscamos uma série de interações durante a criação coletiva que convergem, inicialmente, nos seguintes processos: 3.1 . Encontros presenciais (com telepresença ubíqua) semanais para organizar o plano de ação e ainda caminhadas, visitas a museus, e procedimentos a serem encontrados. 3.2 . Uma performance no museu de Inhotim a ser coreografada com precisão e gravada de modo que consigamos um vídeo de alta qualidade cinematográfica. 3.2 .1 . Inúmeras obras plásticas , de diversas técnicas e materiais, dos diversos colaboradores e interlocutores com suas proliferações poéticas da obra servem de referência às poéticas da intervenção. 3.3. Um vídeo de alta qualidade cinematográfica [videomapping] que servirá de cenário em realidade expandida para uma ópera. 3.4 . Uma peça de teatro musical (ópera) que atua no campo simbólico da intervenção sobre a cultura através de uma história comparada dos elefantes com a de artistas de todos os tempos. 3.4 .1 . Uma dança a ser transversalmente à ação narrativa e áudio-visual da ópera, dando-lhe um corpo. 3.4 .2 . Cenografia integrada com as obras realizadas na ópera a intervenção artística. 3.4 .3. Uma peça de video-arte com as gravações da ópera e da intervenção mescladas. 3.5. Um edital de chamamento para que as pessoas façam intervenções inspiradas na performance e na ópera. 3.5.1 . Inúmeras obras de diversas técnicas e materiais de pessoas mundo afora com suas proliferações poéticas da obra. 3.6. Uma exposição (instalação) com o material adquirido a ser executada simultaneamente em museus interessados. 3.7. Uma intervenção poética no sistema artístico a que chamamos de Negociação Social da Dádiva que sirva como colaboração ao que Christoph Schlingensief chamou de Escultura Social.
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4. Justificativa Processual: 4 .1 . De tempos em tempos ocorre uma intensificação na contínua reavaliação e reestruturação pelas quais passa a cultura artística, quando são desacomodadas necessidades subjetivas que já perderam seu significado, e se reciclam as sensibilidades, intuindo novas formas de apreciação dos sentidos e experiências vitais. 4 .2 . No período atual, os comportamentos sofreram uma profunda mudança através da crescente propagação da rede de telecomunicação analógico-digital (a internet) que vêm democratizando o acesso à informação e ao conhecimento no que podemos chamar de um processo de intelectualização de massa. 4 .3. A cultura ubíqua da informação (cibernética social) conectou toda uma rede cognitiva global, criando uma inteligência coletiva que modificou a maneira como entendemos o virtual, de um consumo de ideias concebidas como produtos à atualização contínua de um ecossistema de criatividades. Sua contracultura hacker, por outro lado, trouxe à tona práticas conceituais como código aberto, economia da dádiva, infiltração de sistemas, lo-fi (gambiarra). Tais, se desdobraram para além dos campos da informática (cultura nerd), alcançando ressonância em toda cultura, incluindo na arte, dando vazão a novas tensões dos poderes em voga. 4 .4 . Nos encontramos num sistema simbólico que cultua a liberdade de consumo de produtos artísticos, que alimentam as hierarquias de poder autorizado do conhecimento, bem como a indústria, do mecenato como abatimento de impostos e do entretenimento como conforto metafísico alienador. Esta, ao mesmo tempo que demanda a permissão prévia de qualquer ato de produção poética desincentiva-os, o que gera um vão enorme entre as necessidades de experimentação e fruição estética e a potencialidade humana de criação.
4 .5. Por muito tempo a revolta e a permissividade enfraqueceram grande parte dos bons artistas, que, ou se contrapunham às galerias e fugiam, mesmo da arte, atuando nos movimentos sociais ou no terrorismo sistêmico como forma de resistência a tais valores, ou tentavam atuar como vírus no então chamado ‘mercado da arte’ formando a classe do cognitariado cooptado. A todos esses chamamos: ‘precariado artístico heroico’. 4 .6. Se a ópera é a forma artística totalizadora do século XIX e o cinema a do século XX, propomos que a interface seja a forma que melhor atualiza as relações de aparelhamento dos sentidos e captura das experiências na arte hoje, no século XXI. Nos parece preciso que a arte reflita com afinco, portanto, a posição humana nestes sistemas de interfaces que naturalizam a artificialidade. 4 .7. Urgimos um gesto fundante de recriação completa da visão de mundo aferida à arte, de modo a contrapor uma economia da dádiva ao capitalismo cognitivo (cf.), como uma ferramenta de cuidado do humano frente ao ímpeto restritivo das leis de propriedade intelectual enquanto códigos obsoletos de mais-valia da percepção estética. 4 .8 . É preciso que criemos uma interface humana, social e simbólica potencializadora da beleza e da sublimação através das culturas (verdadeiramente populares) das práticas recombinantes (remythx) para mantermos o cuidado dos bons encontros como base da poética. 4 .8 .1 . Numa resposta a algumas Bienais de São Paulo: A alteridade do mundo é potência quando precisamos de todos juntos em nossa solidão, pois sempre há um mar que não pode ser contido em nossos copos e a poética é sempre uma imanência.
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5. Interlocuções: 5.1 . ‘O Elefante de Marfim’ é, antes de mais nada, uma prece de agradecimento, uma meditação sobre a escuta que a arte séria demanda do espectador. Na obra estão diálogos silenciosos com pessoas e grupos (estes faróis conceituais num mar de desencanto e piadas) que formaram minha compreensão da experiência artística enquanto revolução estética continuada e educação dos próprios sentidos. Provavelmente me esquecerei de muitos nomes, e esta lista não deve ser lida como um cânone nem tampouco segue algum tipo de ordenação hierárquica, até porque seria muito difícil saber onde termina um e começa outro coletivo. 5.2 . Não buscamos uma legitimação, mas sim não perder de vista o atual estado da arte. Para além do revisionismo, que sempre elege seus heróis, buscamos apontar pontos de ação criativa que geram condições para que as questões continuem atuais, ganhem adeptos, sejam expostas, extrapoladas em novas formas de sensibilidade. Tudo vai virar arte pra vender souvenir, mas são os gestos de resistência cotidiana por uma cultura livre e de cultivo coletivo que nos importam. O caso local só serve para propiciar uma soma de camada de leitura à rede dos acontecimentos. Você também está no ab_ismo. 5.3. A todxs, imensa gratidão por vossas escutas e meus pequenos préstimos. •Baobá Voador com sua cultura de sustentabilidade e cuidado, com sua paz... •Barulho.org com sua alegria exposta, com a abertura de campos socializantes... •Bijari com suas máquinas de sobrevivência, com seus vírus sistêmico, com suas estratégias... •Catadores com a câmera ovo, as micro-intervenções sutis no cotidiano, as terapêuticas para tempos de transição poética, pelos silêncios e os gritos, por não ceder perante a violência... •Circuitos Compartilhados , com seus mapeamentos de locais abandonados em plena cidade, seu posicionamento preciso, sua entrega à escuta dos outros, como o delicado humor de filmar amigos desligando seus televisores... •Contato & Fora do Eixo com sua organização transversal... •Coro com sua imensa capacidade de conciliação e de abertura de diálogos, com sua simplicidade e doçura... •GNU com sua abertura dos códigos de produção de consumo... •Descentro & Submidialogia com suas compreensões de intervenção diagonal sistêmica, com sua calma e paciência para empreender gestos singulares, com seu diálogo com comunidades afastadas bem como com grandes instituições... •E/Ou Descartógrafos com suas resinificações dos locais, com suas mitologias inventadas para coisas prosaicas... •Eco com sua força impactante de atuação... •Empreza com sua fuleiragem, com seus desabrigos, sua crueza... •Escola Nômade com sua potencialização do saber enquanto possibilitador prático, com sua criação de ferramentas para o pensamento... •Esquizotrans com sua ampliação das possibilidades afetivas além dos gêneros, com os prolegômenos de uma ontologia andrógina, com os domínios do demasiado...
•Etc com seus errorismos, com sua versatilidade e ironia... •Experiencia Imersiva Ambiental com sua atuação sobre o corpo encarcerado e sobre as relações urbanas, com seus jogos de desmontar regras... •GIA com sua alegria e seus gestos coletivizantes... •Ibrasotope com sua precisão e preciosismo, com sua seriedade de pesquisa e rigor de atuação... •Matilha Cultural com seu atravessamento de fronteiras em prol de necessidades reais... •Metareciclagem com sua reatualização contínua de si, com sua lucidez e pragmática... •Naborda com seu incansável trabalho de manter todas estas pessoas reunidas e trabalhando nesta zona poética, sem nunca esperar reconhecimento... •Neomitosofia com seus hipermetasimbolismos e ampliações da literatura imagética... •Núcleo de Subjetividade & Escola Nômade com sua potencialização dos saberes e das relações entre eles... •Opavivará com seu tesão enorme de viver, suas tomadas de naturalização dos artifícios... •Orquestra Organismo & Movimento dos Sem-Satélites com sua expansão contínua das possibilidades linguísticas, com sua apreensão do erro enquanto estética, com o hacking artístico na programação cultural, com a escuta mais ampla que já conheci... •Pharmakón com sua dança de poéticas, com sua entrega... •Poesia Maloqueirista com sua irreverência e vitalidade... •Poro com a delicadeza e sutileza, com o senso da beleza do tempo não esculpido... •Pravida , Riverão & Exorcity com sua memória e inteligência, com suas experimentações de si, com suas palavras nos muros, todas aquelas poesias em guardanapos soltas ao vento... •Rádio Livre com a abertura do espectro da escuta, com a insubmissão a desmandos autoritários, com suas táticas... •Radioatividade & Frente 3 de Fevereiro com suas incansáveis intervenções precisas e alegres, com suas pedagogias práticas, com suas danças de limpeza... •Rizoma.net & Mídia Tática com sua interlocução e sabedoria conectiva, sua alquimia cognitiva... •Ruidocracia com a hidráulica das conexões afetivas, com as redes de conhecimento libertador... •Transnoise com seu ruído corporal, sua alegria, seu porno terrorismo... •Universeless com o toque, com o vestir que não mascara, com o aconchego, com a disciplina e perseverança contínua, com o erotismo dos signos...
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6. Plano Estratégico: 6.0. Sigilo absoluto deve ser mantido com relação ao projeto até após sua divulgação coordenada. 6.0.1 . Somente escrever no estado da mais absoluta solidão e concentração ritualística, desapegando de qualquer desejo de como a obra venha a ser. ~ Primeira Rede de Atos: 6.1 . Pré-Produção da Intervenção: 6.1 .0. Depender o mínimo possível de colaborações, mas trazer a inspiração de todxs consigo durante o processo. 6.1 .1 . Sempre utilizar o método mais longo e complicado possível para a realização do projeto. 6.1 .1 .1 . Tal que as intervenções devem ser pensadas em termos de auto-sustentabilidade (ou sua negação proposital) de execução. 6.1 .1 .2 . É importante ressaltar aqui, que pretendemos agir dentro dos limites legais da instituição. Caracterizando as intervenções não como ataques mas como ressonâncias espontâneas de visitantes. 6.1 .2 . Tornar o processo o mais coerente com o assunto tratado, de modo a ritualizar sua preparação. 6.1 .2 .1 . Escrever o projeto a mão, passar a limpo na máquina de escrever e prestar atenção peculiar à postura corporal ao digitar. A diagramação segue o mesmo princípio usando software livre, fontes abertas, imagens em creative commons, papel reciclado de fezes de elefante. 6.1 .2 .2 . Pesquisar exaustivamente o assunto em todas as suas nuances, mesmo que pareçam inúteis ao tema proposto e ao processo, de modo geral. 6.1 .2 .3. Ir até Brumadinho a pé ou de bicicleta sem pressa, documentando o processo. 6.1 .2 .4 . Permanecer em Brumadinho por um período de sete dias, pesquisando e produzindo a intervenção. 6.1 .2 .4 .1 . Escrever a partitura musical durante esta viagem interventiva (às pressas). 6.2 . Execução da Intervenção: A intervenção não deve sofrer nenhum tipo de influência intelectual da pesquisa conceitual abstrata, deixando que o corpo encontre sua poética naturalmente. 6.3. Edição do Primeiro Vídeo: Gravar decupando e levando em conta a câmera-cúmplice utilizada por Alan Clarke em Elephant (1989), e Gus Van Sant em Elephant (2003). 6.3.1 . Buscar um olhar fotográfico que remonte a Storm Togerson e às pinturas visionárias pós Alex Gray.
~ Segunda Rede de Atos: 6.4 . Pré-Produção da Ópera: Eu não irei me envolver na produção da ópera, mas posso designar consultorias para a mesma. 6.5. Execução da Ópera: As mais diversas montagens devem ser incentivadas, desde aquelas que só tomem o texto como ponto de partida até as que só executem a música sem levar em conta os outros aspectos da obra. 6.6. Edição do Segundo Vídeo: Filmar levando em conta as obras de Jan Svankmajer, Alejandro Jodorowsky e Andrei Tarkovsky. Procurar um olhar que fotográfico que remonte ao organicismo pós H. R. Giger de Moebius. ~ Terceira Rede de Atos: 6.6. Viralização: Criação de um sítio virtual colaborativo com obras inspiradas no processo com um design próximo ao dos sítios de ONG’s de proteção aos animais com texturas de marfim. 6.6.1 .Estabelecer um concurso não competitivo mundial de próeras. 6.7. Edição do Filme Final: Um documentário tentando descobrir sobre meu silêncio, onde eu nunca apareça e outra mulher faça minha voz de narradora. 6.8 . Negociação Social da Dádiva: Encontrar parcerias para a realização desta performance de intervenção subjetiva sobre a valoração econômica.
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7. Aeongrama, Tempo Elefante: 7.1 . Não trabalhamos com cronograma . O trabalho segue um tempo próprio, fora das normas de regimentação extrativista da experiência de duração, de modo a que seu processo possa ser sentido presentificadamente. Este projeto foi todo escrito levando-se em conta a ambientação temporal da ópera O Elefante de Marfim, este tempo elefante. Segundo seu tempo mítico, estamos na era (kalpa ou éon) Kali Yuga, a era de marfim (ou segundo Ovídeo nAs Metamorfoses “a era do ferro”), os tempos da loucura onde o elefante cosmóforo se sustenta sobre uma só perna e só nos resta um quarto da sabedoria humana. 7.2 . O conceito de Idade o qual estamos acostumados a lidar é atrelado ao conceito de período histórico, que, por sua vez, é determinado por premissas culturais que resultam na “historiografia oficial” e num controle dos períodos rítmicos contrabiológicos. Esse modo de determinar o fluir da consciência histórica é de conformação totalmente sinárquica e plutocrática, onde os fatos históricos são valorados de acordo com o processo geral da sinarquia destinados ao cumprimento de determinadas pautas culturais e ativação de determinados arquétipos. A divisão do fluir temporal é determinada pelo período de manifestação de um mito, onde uma era é o espaço temporal dominado entelequialmente por um deus (centro tonal mitológico) e a estrutura arquetípica por ele condicionada, de forma cíclica. 7.2 .1 . Æon: Este é o conceito arquetípico do tempo fora do tempo que vislumbra este pleno de várias eras, ou etapas, ou períodos; e uma destas etapas dá lugar à outra quando a influência arquetípica de um modo de experiência, o seu predomínio cultural e simbólico, é substituído por outros. Por exemplo, a era viking acaba quando o poder de Odin sobre o sujeito anímico coletivo daquele povo já desfaleceu (aliás esta é a própria essência do Ragnarok), a era Asteca conclui quando os espanhóis substituem Hutzilopochti pela cruz cristã (mas claro que isto envolve inúmeros outros fatores arquetípicos que foge ao nosso escopo). O mesmo que ocorre com deuses pode ser vislumbrado em mitologias mais laicas e prosaicas (como bem o nota Roland Barthes), em períodos artísticos sendo superados por novas técnicas de expressividade. Após esta “derrota”, o mito anterior ainda permanece encrustado no inconsciente coletivo do povo o qual ele animava, sujeito a revigorar sua força arquetípica novamente quando da formação de uma determinada estratégia psico-social que trabalhe a atualização dos símbolos que sustentam a manifestação desse deus. Que tipo de implicações este conhecimento tem para a vivência do tempo no cotidiano de uma operação artística? Qual o teu Aeon?
7.2 .2 . A Era de Kali está caracterizada pelo completo desequilíbrio temporal já presenciado na humanidade, nunca antes na história (de acordo com as fontes védicas) houve um período em que a sabedoria (conhecimento com amor) estivesse tão degenerada e debilitada devido à desarmonia entre os mitos pessoais de cada um consigo e com os outros. O fatalismo hindu diz que isto faz parte de um ciclo, sendo impossível revertê-lo, “salvar” a humanidade. Estamos presos neste tempo por força do próprio tempo. Quais as implicações de se colocar fora do tempo social, num aeon, neste sentido? Acredito que a musicalidade que almejo esteja justamente neste fora do contemporâneo crônico, e esta próera se desenha como uma saída para minha escuta, não por métodos ascéticos como no caso dos brâmanes hinduístas, mas na via oposta, por um excesso que leve a um limite a cognição crônica. 7.2 .3. Os aspectos sensíveis da degeneração, como vislumbrados na cada vez maior perseguição ao conhecimento e às relações afetivas, são apenas o manifestar desta idade sombria na intimidade dos legisladores e controladores dos meios de produção. Se não existissem as drogas e outras formas de entorpecimento e (des)controle social, o Kali Yuga ainda estaria em marcha, a degradação espiritual se manifestaria de outras maneiras. A manifestação da queda espiritual (para além do tempo) funciona exatamente como o princípio fundamental do aprisionamento do espírito à matéria: doar sentido aos entes; as barbaridades presenciadas no nosso tempo não são o motivo final delas mesmas. Quando o tempo se torna uma forma de controle das valorações de experimentações, a aproximação da enteléquia de todos os arquétipos sociais se vê tomada por pedágios semióticos, cessamos a doação de sentido aos entes potencialmente úteis ao desenvolvimento humano, e iniciamos a doar sentido aos entes puramente úteis à realização dos desejos anímicos do animal-homem. Quais as implicações na feitura artística deste tipo de utilitarismo sincrônico? 7.3. De acordo com King Parikshit, embora haja tantos males na era de Kali, é de grande importância, porém, que lembremos suas benesses: a apreciação da sabedoria que nas outras eras tomavam toda uma vida agora podem ser realizadas em um piscar de olhos, os males de um implicavam em punições a todos e na era de Kali a punição tende a crescer exponencialmente no próprio feitor dos males, etc. Podemos notar que as pessoas com modos de vida mais simples são exatamente as que menos caem vítimas da degradação do Kali Yuga, por seu modo aiônico (em termos musicais, pulsional) de lidar com o fluxo das experiências vitais. Da mesma maneira podemos notar que o advento da religião é sincrônico com a degradação das sociedades tradicionais e impõe a industrialização da fé e a burocratização dos encontros. Cada povo partiu para se degenerar aos seus próprios modos, tal como fizemos todos com os povos paquidermes e de outras espécies não-humanas. Qual o peso (gramma) das eras (aeon) em cada gesto?
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8. Valores, Orçamento Elefante: 8.0. Eu não devo ganhar nada pela composição desta obra. 8.1 .Negociação da dádiva e suas contrapartidas: Estabelecemos a inauguração de um processo de redução de danos econômicos, nos moldes do trabalho realizado com dependentes de substâncias aditivas, ao mesmo tempo que uma diminuição o culto à personalidade artística e seu paralelo culto ao consumo e produção material de desejos desnecessários. 8.1 .1 . Demandamos uma doação anônima no valor atualizado pelo mercado de arte da obra “The Physical Impossibility Of Death In the Mind Of Someone Living” de Damian Hirst para a Afrikan Operhaus idealizada por Christoff Schlingensief. 8.1 .2 . Demandamos uma doação no valor atualizado pelo mercado de arte das obras completas de Banksy a ser distribuído para todas as entidades reconhecidas de defesa aos direitos dos elefantes, bem como a obras de cuidado e infraestrutura social das populações que vivem nas mesmas regiões que os elefantes. 8.1 .3. Demandamos uma doação no valor atualizado de todas as obras do Ciclo Cremaster de Mathew Barney para a criação de um festival não competitivo mundial de próera para a instauração de casas de ópera em todas as capitais de estado do mundo. 8.1 .4 . Demandamos que Bernardo Paz reduza ao nível mais próximo de zero a produção extrativista de sua mineradora Itaminas. Que seu amor à arte se demonstre de fato em custo de seus lucros. Demandamos que Jeff Koons siga tal exemplo e compre uma mineradora inglesa repetindo o processo. 8.2 . Demandamos a instauração de um pavilhão para exibição permanente de obras anônimas em todos os museus de arte do mundo, com arquitetura e meios de conduta condizentes com suas produções. 8.2 .1 . O público visitante deve recebe0r uma moeda de M$1 (um marfim, cujo valor é sempre igual ao total de giro das obras de arte mundo afora) como pagamento simbólico por sua visita e apreciação estética das obras. Esta moeda deve ser forjada com papel reciclado dos lixos de Inhotim e das fezes de elefantes e com metal doado pela Itaminas. 8.2 .2 . Deve haver uma rádio televisão pública livre e comunitária conectada globalmente num sítio virtual. 8.2 .3. Deve haver uma área para residências artísticas e moradias gratuitas a serem agendadas a qualquer interessado, cujos períodos variam de acordo com a demanda. 8.3. Demandamos que todos os funcionários de museus e teatros sejam tratados como artistas e assim sejam julgados em suas tarefas. Que tenham oportunidade de aprendizado concernente à produção subjetiva para uma revisão do controle como forma organizacional.
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9. Poesias escritas no mapa do museu: Corvos de algodão a humildade da ave olhos abertos e úmidos com a serpente ao bico chilra, assui, issia, canta cantamos Sinos de Vigas na montanha o escaravelho a dança dos lagos abaixo do monte, fosso onde se ouve Spem in Nunquam (onde a plateia se torna invisível) palco coxia (no palco) palco (seu coro de máquinas e coribante código) O Espetáculo da Sociofonia especificidade instantânea nada deita, balança a rede, a rocha o mausoléu do vício in ars T ’ração geodésica dos signos fractoflora de caleidozoma escorrendo creme ocor pó da lâmina quimera terrena da bruma raízes, mapas, mesas, cadeiras, c’asa Mar de carne goteira de sangue ver-m’v-lho azurre jogo cerâmico chaminaves if ’ ungos
Abraçados somos um orquídea e tronco Palimpsecto destratos, pingos metálicos estruturas no peso da elasticidade veneno contratos Odútos montanhas bailarinas em mármore livre queda valor de velar subterfício da malha esferam entre véus ao carmesim ó Inútil Panarquitextura amenos despasso docaos Bebiam Morfina pra Vomitar Seda mercúrio e enxofre ao sal grosso máquina de acelerar ruínas, catracas um pelourinho à fixidez imagótica caminhar na beira da estrada rumo à câmara dos cartazes de flim Sacrossilente escuta o som interior fresta, festa, resta dos sentidos a obscultar a mão e a... fratura, fatura, atura esta do engenho embaralhadores de motores contagem dos hilos às brumas vesséis desviam a transparência do desejo dluz deixada a forma cabeça no corpo do outro, no chão
Sob orio ecoavoã
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10.
Justificativa Conceitual:
10.0. Por Que Elefantes e Marfins? A arte é tanto um sujeito quanto um objeto de consumo, tanto artista, o que este executa, como o que de ambos é sacrificado. Em prol de uma poética sociológica e uma estética cognitiva, pela abertura que esta traz tanto à matemática composicional quanto à intuição sinestésica das lógicas sociais de produção de subjetividade (poieses) queremos entender a inutilidade de um gesto poético. Nos por a transitar entre humanidades, arte e ciência, ao prover um campo de atuação (os territórios distantes dos antípodas dos quais fala Huxley) dentro do qual, artista e cientista inovadores executam essencialmente a mesma atividade: a criação de paradigmas através dos quais a experiência se torna inteligível e o conhecimento atuante. 10.0.0. Mito, arte, linguagem e ciência aparecem enquanto símbolos; não no sentido de meras figuras que se referem a alguma realidade dada por meios de sugestão e rendas alegóricas, mas no sentido de forças que produzem um foco próprio sobre o mundo. No mesmo sentido que a fórmula toma aspecto de personagem operístico, máscara da música. 10.0.0.1 . Embora tais formas simbólicas não sejam imitações, mas atualizações de realidade (órgão sem corpos) , é somente pelo seu agenciamento que qualquer coisa real se torna um objeto realizado pela apreensão intelectual, e enquanto tal, se faz visível para nós. Não se coloca a questão de uma escolha entre formulação intelectual e intuição do sentido, mas quais as suas mútuas limitações e suplementaridades? Em que sentido a ópera opera a musicalidade além da linguística estritamente aural e da linguagem paradigmática da música em si mesma?
10.0.1 . Artistas e cientistas inovadores nos mostram que o mundo é composto de fatos facta, coisas feitas anteriormente. Distintos códigos, modos de vida ou padrões de categorias, diferentes atos. Reconhecer os dados antigos em novas formas requer que nós re-conheçamos os dados em si mesmos. A natureza não imita meramente à arte. Ela é mais um produto da inovação de descrição e discurso. Se subtrairmos de seu mundo os fatos que são dados a uma criadora pelas concepções anteriores a ela, nós obtemos a rede de contribuições dela. Esta, é a medida de sua soberania conceitual e a extensão de sua real obra. De um lampejo poético, como desvencilharíamos o que deste já foi utilizado aos mais incontáveis fins utilitaristas? Como poderíamos pesquisar até que ponto uma intuição poética que tivemos não se encontra já tomada de significações paradoxais a nossos intentos senão nos deixando levar por esta complexificação contínua? 10.0.2 . Partimos de uma visão estética da racionalidade, pois se as obras científicas requerem uma adequação estética, as obras de arte também produzem conhecimento. É preciso notar que a instituição música se encontra neste ponto de contato com a escuta agora, enquanto tecnicamente mediada e altamente controlada pelo viés da pesquisa científica e pela burocratização da pesquisa. Para a estética cognitiva tanto ciência quanto arte (sistemas de coerência), pressupõem vários critérios de economia, congruência, consistência, técnica, elegância, originalidade e visão. Mas há ainda algo de animal no raio que me arrebata. 10.0.2 .1 . Se a ciência empreende uma busca da verdade na realidade das coisas, nos eventos “lá fora” objetivos explicados e comprovados deterministicamente; a arte busca a beleza nos símbolos dos sentimentos, nos significados “aqui-dentro” subjetivos interpretados e intuídos com liberdade. Arte sem ciência é um autismo ensimesmado, ciência sem arte é a superficialidade fria da máquina. Gritos do silêncio e poiedros seriais. 10.0.2 .2 . É claro que elefantes e humanos não falam numa mesma língua, mas estabelecem relações entre elas numa linguística aplicada por ambas as partes. Assim também entre ciência e arte, que apesar de serem ambos sistemas de coerência, distinguem-se quanto à natureza objetiva e subjetiva de seu objeto processual. O elefante lembra que a música trata de algo além da ciência musical e seus paradigmas acústicos, bem como a ópera supera o teatro na operação simbólica de abstrações musicais (leitmotiv).
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10.0.2 . Buscamos analisar os vários modos de produção conceitual a partir de um ponto de vista estético. Os cegos tateiam o elefante e é a soma de suas cegueiras que nos leva a uma visão clarificadora do animal, um passo atrás, de fora do conto. A metaperspectiva de uma obra de arte conceitual nos faz notar que dentre ao leque de categorias e abordagens, nós não esperamos nos referir ao elefante “real”, ao conhecimento “real”, ou à sociedade “real”, no sentido de que estes possam ser absolutamente conhecidos. A música não pode ser ouvida, nossas escutas se interpõem de maneira demasiado feroz entre nós. Qual a operação que as ciência artísticas e as tecnologias artificiantes promovem nos campos de força harmônico entre as escutas e suas afinações distintas? 10.0.2 .1 . Uma lição a ser tirada da multiplicidade de abordagens que competem na arte e na ciência, é a de que a poética social se conduz a partir de algumas abordagens, de modo a não se deixar levar pela vertigem do Aquiles de Zenão perante a infinitesimal computabilidade. Embora o elefante seja grande, ele é finito. Embora hajam muitas opiniões sobre ele, estas são finitas. Nos propomos, assim, a uma operação nas escutas que tenha a proporção aproximada da massa corpórea de um elefante em relação a um humano, mas também seu contrário. 10.0.3. Nosso propósito nesta pesquisa é sugerir uma poética de ações cognitivas dentre à cultura dos sistemas de coerência, tal que a multiplicidade de abordagens potencialize as ações da rede cognitiva. Somando à cultura dos produtos culturais (onde o conhecimento da história e do mundo social são incertos, se não impossíveis, devido à sua impossibilidade de asserção na linguagem objetiva à maneira de geômetras e demais físicos matemáticos), uma outra de afetividade culturante (onde justamente porque a história e a sociedade são feitas por pessoas, nós a entendamos melhor que às leis físicas, que nos são alienígenas). Sentimos a necessidade de complementar os vieses maximalistas com uma escuta menor e mais sutil da estocástica aural assumindo os limites da sensibilidade mnemônica.
10.0.3.1 . Mudando nosso foco de perguntas como “Qual é a estrutura do mercado da arte?” e “Qual a identificação desta obra no contexto da história da música?” para “Como estamos compondo a realidade social das artes esteticamente?” e “Como podemos ampliar a relação das pessoas com suas escutas e as de outrxs?” nos permitimos visualizar as pressuposições do funcionalismo museológico no cerne da produção contemporânea de musicalidades. Tais concepções a priori como papel, status, ou classe, e a alegação de clareza sem ambiguidade envolvida em usar termos como estilo, influência, conceito escondem a parcela ideológica da produção artística e musical. 10.0.3.2 . Como estabeleceríamos um compromisso claro e sem ambiguidades aos valores vistos como necessários, se a arte tivesse de ser feita um recurso para mudança social? E como isto poderia ser alcançado sem violar os cânones do pensamento funcionalista, tanto da complexidade científica de pesquisa como da hipnose sensorial mercantil, vigentes na rede de controle social da produção e fruição artísticas? 10.0.4 . Para tanto, ‘O Elefante de Marfim’ tem como critério de adequação teórica e crítica aos estudos das artes, no mínimo, as seguintes perguntas: 10.0.4 .1 . Como tornar a obra fenomenologicamente verossímil à complexidade de grandes escalas de dados sensíveis, de modo que seja esta ressoante no campo social à percepção das experiências (‘modos de atualização da ‘realidade’) de todos os envolvidos na produção e fruição da arte? Como, num gesto poético, organizar um campo de escuta propício para que uma música possa ser ouvida como o deseja sua compositora: sem compositor? 10.0.4 .2 . Como tornar a obra hermeneuticamente auto-consciente, de modo que seja dialeticamente reflexiva de seus próprios método e repertório? Como tornar uma música consciente de seus próprios processos, de modo a levá-los em conta na sua própria modulação da complexidade das escutas numa outra ordem de harmonia contextual? 10.0.4 .3. Como tornar a obra explicativa de si mesma (a ironia de um elefante feito de partes de outros elefantes) em termos de comparações controladas; fazendo com que ela dê base para as argumentações “se X, então Y” da crítica e, como tal, nos informe de novos futuros imaginários e provenha um guia para ações sociais estéticas? Como proporcionar uma música que não exista e ainda assim possa ser ouvida logicamente? Como compor uma não-música? 10.0.4 .4 . Como tornar a obra uma teoria abrangente ao seu próprio processo, que esteja apta a compreender a realidade social na qual se insere em qualquer nível de abstração ou em qualquer gama de dados? A escuta é um elefante a ser composto.
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10.1 . Memórias Elefantes: De tudo o que lembramos será possível partir para algum lado, pirijete erepato? Seria otimismo ou imprudência pensarmos que sim? Por outro lado, como severo crítico dos excessos da arte (e dos estudos estéticos comparativos entre as escolas técnicas e estilísticas), e das extrapolações dos seus partidários hierarquistas, não deixamos de assumir uma postura quando nos deleitamos numa obra de arte: Aquela de espectador-investigador da segunda década do século XXI perante ossadas afetivas, pinturas conceituais, gravuras políticas, estatuetas sociais, de poucos anos atrás que se assemelham a relíquias arqueológicas. Neste sentido, a chave não reside em se fazer tábua-rasa do que se é (aliás impossível), mas em filtrar todas as informações não diretamente recolhidas (a quase totalidade), por crivos sucessivos de malha cada vez mais apertada. Crivos que pressupõem prescrições rigorosas, e severos controles de passagem: 10.1 .1 . Serão os fatos em análise unívocos? Se a ambiguidade, a polivalência significante do objeto artístico (as ossadas de mamutes como primeiros ready-mades), escondem quase sempre o seu verdadeiro simbolismo (uma vez que este só é recuperável se as estruturas contextuais forem igualmente recuperadas), o crítico e o historiador não poderão vez alguma deixar de o ter em conta ao procurarem interpretar traços, ainda por cima necessariamente tênues, de um comportamento desaparecido. Que cantará o vosso Fausto, máquina? 10.1 .1 .1 . A arte quando capturada do instinto, é um sistema de gestos operatórios codificados, adotados coletivamente e articulados, provavelmente, numa série de histórias em distintos modos de uso de diversas linguagens e linguísticas. Histórias estas que, enquanto traduções polissêmicas do mito e mito elas próprias, organizam a gruta, enquanto museu primordial, e criam nela um espaço de ligação do mundo imediato dos humanos a um outro, eminentemente explicativo (pixação e desenhos rupestres). Por isso, mesmo sendo altamente útil (diálogo arquitetônico do abrigo como base do nascimento da poética plástica), as palavras, os gestos, as técnicas, diluem-se num outro ambiente, em que ganham outros significados e onde acabam por funcionar como cimento de gentes e comunidades. Assim são os gestos poéticos dos elefantes, e assim foram as nossas bases culturais.
10.1 .2 . Partem de métodos coerentes ao assunto? O mito substitui aqui o gesto técnico, tornado insuficiente para domar uma certa realidade inexplicada, tal qual a diferença entre um assassinato de um elefante num safári esportivo e num sacrifício ritual. O rito, por sua vez, surge agindo de forma idêntica à lascagem do marfim extraído, em contraposição à composição por soma de pontos imagéticos do mito. O mito transforma ações anônimas em um ritual inteligível e útil, tal como o elefante tem cinco utilidades básicas: seu espírito de animal sagrado, sua força de trabalho, sua violência de guerra, seu controle como entretenimento (circo), suas matérias físicas (carne, couro, óleos, marfim).
10.1 .2 .1 . Nos afastemos um pouco da instituição da história oficial da música permitindo que esta potência possa atuar livremente das especulações lógico-filosônicas, dando-nos chance de pensarmos as correlações do fazer musical com o fazer artístico geral, e compreendendo esta mesma instituição (a história da música) como um museu de escutas. Voltemos ao texto (nosso elefante, aqui), e no que se refere em particular à leitura da arte (nossa cegueira sobre o ensaio), há algumas contribuições quanto à coerência processual que valem ser sublinhadas: 10.1 .2 .1 .1 . A coerência da mensagem transmitida com os modos de socialização dos elefantes em paralelo aos movimentos de economia da dádiva (notadamente iniciativas artísticas) em toda história. 10.1 .2 .1 .2 . O levantamento integral e a topografia estatística das situações referentes ao fazer artístico, permitindo separar as dominantes dos casos minoritários, remete-nos à solução (no sentido químico) polissêmica resultante da história dos cegos com o elefante. 10.1 .2 .1 .3. A redistribuição do valor dos temas estéticos no sistema artístico, bem como a necessidade de uma ciência das questões sociais para a estruturação de uma revolução imanente contínua como, por exemplo, numa reflexão sobre os modos de relação entre humanos e elefantes (exemplo factível de nossa incapacidade de estruturação de uma ética animal, imprescindível à eco-sustentabilidade, até o presente momento).
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10.1 .2 .1 .4 . A re-interpretação dos signos e sua distribuição por um sistema binário matricial (projeto) retoma os paquidermes como primeiros animais simbólicos e ritualísticos (conhecem-se através da etnografia numerosos exemplos de crânios ou de ossadas de animais conservados ou utilizados com fins religiosos) bem como égide da memória e da própria ideia de uma cultura e civilização da espécie humana (com todas suas idiossincrasias). 10.1 .2 .1 .5. A definição de uma atitude crítica fundamentada na indispensabilidade de um registro exaustivo, de modo a não perpetuarmos as iniquidades sistêmicas (seja da arte, da ciência, das religiões ou da ecologia), propiciando uma melhor divisão de recursos e trabalhos. Trazer assim à tona o estado de exaustão por excesso informacional à qual humanos e elefantes estão propensos, com a diminuição das reservas naturais e com o avanço civilizatório. 10.1 .2 .2 . A solidez das interpretações é diretamente proporcional à qualidade do trabalho de campo, o que nos leva a inferir a necessidade de mudança do pagamento de fomentos para ‘obras realizadas’ em detrimento dos processos de pesquisa. Enquanto isto não se altera, mantemos a pesquisa textual e o encarceramento do corpo, elefantes de zoológicos que somos. 10.1 .3. Quais os contextos verificados? Os museus (comparem ao caso das casas de ópera e salas de concerto) não nos proporcionam somente as experiências que neles procuramos, isto é, suas obras. Mas ainda uma enorme carga de ideologias institucionais. Estas culminam, hoje, no discurso de "Uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público e que adquire, conserva, investiga, difunde e expõe os testemunhos materiais do homem e de seu entorno, para educação e deleite da sociedade" como clama o Conselho Internacional de Museus. 10.1 .3.1 . Os próprios museus não assumem um método coerente com seu sujeito de estudo (a arte), que seria, o de obras desordenadamente lançadas sobre as paredes e espaços por gerações sucessivas, caos no qual bastaria observar as sobreposições, e triar, para reencontrar fatias de cronologia. Inhotim não nos chocou pelo pulular das épocas mas pela unidade de cada um dos conjuntos que propunham um recorte geracional arbitrário dentre à explosão de temporalidades que é o contemporâneo. 10.1 .3.2 . Além de extraordinária unidade do conteúdo subjetivo, o museu é instaurado no sentido oposto ao que é declarado na carta de suas diretrizes conceituais: Gerido para não ser alvo de intervenções, mas meramente visitado de modo a manter a constância extraordinária do dispositivo simbólico, que serve de moeda (base de trocas de valores) no capitalismo bio-estético. As obras num museu são cadáveres.
10.2 . Cemitérios de Elefantes: Perante um objeto de arte de outro tempo ou contexto, adota-se, primeiramente, a hipótese simbólico-religiosa tal qual o arqueólogo perante um cemitério de elefantes. Desta forma houve quem pretendesse constatar que os primitivos gostavam de trazer para as grutas as cabeças de animais caçados ritualisticamente ou que os elefantes tenham ritos funerários. A relação primária com qualquer espetáculo artístico é inerentemente ritualizante. 10.2 .1 . Ao aferir a probabilidade de uma mudança dietética nos elefantes mais velhos e uma diminuição na sua capacidade de seguir a manada como motivação da busca dos animais idosos por recônditos protegidos de predadores nos pântanos, os cemitérios de elefantes são tratados atualmente como postos da memória de uma espécie e asilos. Talvez os mais velhos só quisessem ser esquecidos, também. De qualquer maneira, nos servem assim ao pensamento como exemplo relevante da religiosidade da arte (com sua fé na memória cultural da espécie) e trazem à tona a questão do cuidado com os mais frágeis da manada. 10.2 .2 . Não seriam os museus cemitérios de elefantes, locais aonde se dirigiriam os afetos já cansados das estultícies dos processos humanos? E não estamos nós tratando os museus como asilos e as experiências artísticas como velhices a serem esquecidas? Assim sendo, porque já temos museus contemporâneos? Estamos petrificando mesmo nossa capacidade de agir no presente das sensibilidades estéticas em nome de instituições que demonstraram suas funções sinárquicas plutocráticas? Que ressonâncias estes aspectos (enquanto símbolos) têm nas condutas cotidianas? 10.2 .2 .1 . A obra “The Physical Impossibility Of Death In the Mind Of Someone Living” de Damian Hirst torna-se assim, além de um commoditie do instinto predador do ‘mercado da arte’, uma declaração da extinção de tais instintos pela posição da arte contemporânea como pré-história já arqueologizada de um novo modelo de experimentação dos valores estéticos. Novo modo de experimentação este, que vislumbramos potencialmente nos artistas do que chamamos ab_ismo. 10.2 .2 .2 . O nascimento da arte esteve ligado a uma expedição subterrânea. As primeiras representações humanas são quiméricas, mesclando animalidades e humanidades, humanos elefantes, xamãs cantando com cabeças de marfim. A música está representada na arte a partir deste ponto de fuga. Os pintores rupestres cantando ao pintar. 10.2 .2 .2 .1 . As caves dos sonhos esquecidos não são santuários de imagens, mas instrumentos musicais cujos muros foram decorados. A escolha das paredes pintadas foi a do eco e da ressonância. O local do duplo (a representação) sonoro é o eco do mesmo modo que o duplo visível é a máscara de elefante. O eco é a voz do invisível. Deus só sangra na audição e na noite, é na ópera que o esfaqueado canta e os animais sonham.
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10.3. Cultos Elefantes: A questão da “arrumação de ossos” ao longo das paredes e habitats das grutas e descampados se refere aos problemas de interlocução entre arte e público devido à variação referencial. Assim como o arqueólogo não sabe se um posicionamento é proposicional e, caso o seja, qual seu sentido; também o espectador não sabe se um gesto artístico é intencional e, caso o seja, qual seu sentido poético. Da mesma maneira, como poderia uma curadoria saber se um gesto do público é artístico e, caso o seja, como o valorar sem recair novamente a um pensamento religioso? 10.3.1 . Da descoberta de um círculo de crânios de mamute (ou de vigas de metal enterradas numa montanha) podemos observar que o caráter da arte instintiva (não intencionante) depositando um objeto trouvée (decorado ou não) é, antes de tudo, um gesto temporal e de reflexão sobre o tempo do indivíduo e da espécie. Neste sentido, podemos tratar do nascimento dos tambores com couro de animais como sincrônico ao nascimento da ritualização, esta religiosidade primitiva de conectividade das coisas na temporalidade. 10.3.2 . As obras de arte intencionais (utilitarizadas), servem a propósitos de decoração, como cabeças de elefantes empalhadas: troféus, ornamentos. Não podemos afastar o emprego técnico, como quando as armações de grandes paquidermes eram utilizadas nas habitações musterienses. Mas, até que ponto podemos separar o gesto colecionador de um ritual de simpatia por aproximação? Onde fetiche e feitiço (psicomagia) se encontram? 10.3.3. O visitante como arqueólogo: Imaginemos um arqueólogo escavando pessoalmente a extraordinária confusão que é um belo ossário de elefantes, desculpemos a impressão primeira de arrumação consciente que se apodera do pré-historiador. Numa sondagem do tamanho de suas preocupações subconscientes, ele vai eliminando pouco a pouco os ossos mais fáceis de liberar até se encontrar finalmente junto das paredes, face a um nicho onde se encontram empilhados um crânio de elefante sem mandíbula com uma concha dentro. Eis a pintura de um visitante num museu, sentindo-se arrebatado pela sublimidade de uma pintura que não compreende, eis a arte do acaso e da necessidade, após passar pelos seguranças e vigias e lojas e bilheterias: ei-nos. 10.3.3.1 . Este movimento de separação de obra e não-obra esconde um processo ainda mais sutil que ocorre, o da cisão da presença na experiência sensível por parte de uma programação ambiental sistêmica intencional. As burocracias que guardam a obra, são interiorizadas como regras de conduta da sensibilidade em relação à fruição estética. Os museus demandam um silêncio reverente, a arte contemporânea a irreverência. Em qual dos dois acreditar, no altar ou no templo?
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10.4 . Templos Elefantes: A história da arte inicia com o absurdo de um deus ex machina: Os primeiros estalidos de percepção estética auto-conscientes são como um ser alienígena inteligente desembarcando de um outro universo e tentando compreender os terrestres, sem com eles conseguir se comunicar. Estaria na mesma posição que o autor em frente ao texto, um compositor em face da ópera e que o visitante em face do museu. 10.4 .1 . A arte da história inicia com o ab-gesto de um amor fati. Quantos precisaram morrer para que soubéssemos quais as plantas venenosas, as fumaças tóxicas, as águas flamanates. Os colorantes e a pintura se baseiam nesta vertigem do traço diante desta relação vital com a morte. Um desvio para o vermelho, é uma linha de fuga para o início da relação estética com a vida. Carmesim e ocres ferruginosos são a paleta de cor até o madalenense. Comparemos as pinturas de caçadas do paleolítico filmadas por Herzog e o elefante pintando um elefante entregando uma flor num parque indiano. 10.4 .1 .1 . A idade média e o renascimento vêem nascer dois movimentos concomitantes: O interesse pelas formas fósseis tingem-se de preocupações que no século XVIII se tornam científicas (Huxley nota bem que o colecionador de espécimes precede o zoologista como os navegantes precedem a psicologia), e os objetos pilhados mundo afora geram a aparição dos gabinetes de curiosidades e museus. Hoje, podemos ver um mapeamento global, tanto de uma rede de museografia como da dos sítios arqueológicos. 10.4 .1 .2 . Do século XX para cá, a etnologia tem vindo a rejeitar pouco a pouco o aparelho teórico que fazia do primitivo um europeu mentalmente inacabado, e a redescobrir um pensamento coerente, demasiado humano, através das manifestações parcelares que serviram de suporte às velhas teorias sobre a mentalidade. Sincronicamente, o modernismo reinventou a arte realistista e transpressionista através de uma retomada coletiva desta sensibilidade e sua propagação semântica. Já as artes efêmeras, buscaram cada vez mais se desprenderem das regras de conduta da mobilidade, libertar os movimentos dos códigos em prol de uma fluência, e retomar as ruas como espaço de dança coletiva.
10.4 .1 .2 .1 . As artes móveis e efêmeras (pintura parietal dos gestos), parecem-nos o fio mais seguro para estabelecer a sucessão cronológica dos estilos pós-modernos, pois serviu de base à evolução dos conceitos artísticos e da arte conceitual, que nos trouxe à necessidade de postulação da próera. 10.4 .2 . Aqui vemos iniciar as dívidas simbólicas e de matéria prima para com o continente africano (um verdadeiro Museu da Pangeia a céu aberto sob o olhar do comparativismo etongráfico-arqueológico). Restituir os bens africanos à África (gesto simbólico de desapego material num colonialismo às avessas) é importante como ir buscar sua mãe no asilo para que more contigo, delicado como a mãe elefante que aguarda o filhote com a pata machucada não o abandonando aos predadores. 10.4 .3. Mas vamos um pouco mais longe. Imaginemos o tal ser alienígena examinando um museu de arte contemporânea e constatando que existem várias placas semelhantes com figuras em diferentes locais, muitos mictórios numa sala pequena de canto e noutra maior somente um, objetos diversos arbitrariamente (ou ao acaso?) dispostos. Não se poria como um cego perante um elefante? Faltando-lhe a cadeia de conceitos indispensável, a imagem que assegura a inserção do artista no universo significante, que diferenciaria sua apreciação deste espaço do de um lixão (aterro sanitário)?
10.4 .3.1 . Imaginemos que seja paciente esta figura proboscídea vinda da constelação de Cepheus: examinaria vinte e dois, mil e um museus, e acabaria por se aperceber que os testemunhos materiais correspondem a um sistema coerente, que os edifícios têm uma orientação de percurso, que alguns elementos se repetem (notadamente os que não são arte, a princípio). Jamais conseguiria reconstituir o pensamento artístico conceitual, mas chegaria a afirmar, na sua xenolinguística, que existe qualquer coisa de simbolicamente elevado por detrás dos documentos incompreensíveis. Chegaria sem dúvida a uma reconstrução espantosamente falsa de um culto religioso que mantém uma certa aproximação da entropia. 10.4 .3.2 . Foi o método de degustação da arte contemporânea que seguimos até agora, renunciando a tudo o que se encontra nas obras de arte, tentando fazer um inventário de tudo o que os museus deixaram de sensações experimentáveis na superficialidade do efêmero, uma metamuseologia. Não nos preocupamos em dançar ao redor de um escultura ou ajoelhar diante de tal jardim das delícias, mas sim tentamos absorver reflexivamente a que correspondem a generalidade destas ideias na harmonia contextual da cultura, baseando-nos naquilo que podia deixar testemunhos figurados (como este projeto). Será que precisamos seguir adorando tais ídolos? E caso precisemos, será esta a maneira mais honesta de honrá-los?
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10.5. Anatomias Elefantes: Uma obra de arte é o transbordamento de uma produção de desejo social e histórica culminada através de sacrifícios de uma rede cognitiva em prol de um modo de experienciação e vivência. Neste sentido, a crítica e a curadoria, agem como anticorpos da arte, prevenindo que seus gestos poéticos tenham a ressonância social devida. Uma obra de arte nunca poderia caber em seu projeto. E um museu é uma ópera onde o coro é impedido de cantar e as personagens são obras dispostas no palco de modo a manter sua aparência de neutralidade. 10.5.1 . Os participantes de uma ópera (como os funcionários de um museu), enquanto operação sobre a interação, contribuem em conjunto, para uma única definição geral da situação. Não se trata de um acordo real sobre o que de fato existe (fora do teatro ou do museu, no mundo, ou dentro à obra), e sim um que se refere às pretensões pessoais do compositor (que neste caso é o colecionador ou investidor), temporariamente acatadas por um grupo com interesses nesta execução simbólica. Trata-se de um consenso operacional, que varia segundo cada cenário, e que deve ser levado a cabo em nome de uma real possibilidade de ainda fazermos arte dentro às instituições culturais. A projeção inicial dos indivíduos os prende àquilo que estão tentando ser, exigindo que abandonem outras pretensões (um segurança não deve agir como conhecedor das obras). 10.5.1 .1 . Modificações acontecem, mas devem seguir a proposição inicial para continuar a serem aceitas, as obras devem ser questionadoras mas não do próprio processo do museu e do teatro. A primeira impressão é de muita importância, e é aí que a metalinguagem do poder assume suas formas de controle simbólico sobre a arte. Quando o indivíduo passa a agir de maneira contrária à que havia projetado aos outros, numa intervenção, todos se vêem envolvidos em uma interação para a qual a situação havia sido definida erroneamente. Ela se torna, assim, não definida, dando à personagem operística sua humanidade, seus traços afetivos. A ópera é uma solução idiossincrática, da complexidade relacional: um elefante. 10.5.1 .2 . Ao desempenhar um papel, o indivíduo solicita que seus observadores o levem a sério (e quanto mais alto seu papel social, mais hipocrisia e violência utiliza nesta empreitada, sr. maestro), que acreditem que o personagem tem os atributos que aparenta possuir (disse a compositora da próera pós-contemporâneo), que trará as consequências que pretende à obra. De modo geral, ele pretende que as coisas sejam o que parecem ser (metateatralidade da transparência apolítica de uma metamuseologia inerente à obra). 10.5.1 .3. Ser uma espécie de pessoa não consiste meramente em possuir os atributos externos necessários, mas também manter os padrões de conduta e aparência que o grupo social do indivíduo associa a ele (metateatralidade e harmonia contextual). Daí que seja tão imprescindível concatenar montagens modernas a peças clássicas (arte contemporânea em uma museologia antiga), com delicadeza.
10.5.1 .4 . Uma condição, posição ou lugar social não são coisas materiais passíveis de posse e, em seguida, exibidas. São modelos de condutas apropriadas, adequadas e bem articuladas com relação a um ponto de representação neural do teatro tornado máquina de reflexão. A representação não é uma simples extensão expressiva do caráter esquizo de seu autor ou autora. Ela serve, frequentemente, para expressar as características não deste indivíduo, mas da tarefa que executa. Num nível social, não é próprio de um diretor de uma companhia de ópera escutar sugestões de seus subalternos atores. 10.5.1 .4 .1 . Heroínas e heróis devem agir, ou atuar, de uma forma específica porque toda uma plateia, formada pela multidão anônima de espectadores possíveis, as está observando e espera que elas ajam em conformidade com sua identidade. Assim, pode-se vislumbrar a necessidade do precariado cognitivo de manter-se em anonimato como mantenimento de sua humildade heroica. O papel que as anti-heroínas exercem as obriga a tais ações, a partir dos modelos de conduta esperados de tal categoria de humanos nos sistemas sociais impostos à sensibilidade cultural atual. 10.5.1 .5. A relação entre atores e plateia (funcionários e público-criativo), formada pela multidão (e não mais a massa de consumidores de entretenimento), exige tal comportamento, tratando-se de uma exigência moral e religiosa da ordem como organização espacial. Por atuarem nesse papel, garantem o direito de serem tratadas de forma adequada, segundo a posição social e a identidade que desejem manter. Tal padrão de comportamento demonstra uma aceitação das regras e restrições de maneiras de agir, impostas por um processo de identificação. Há aqui uma ironia latente no sorriso do elefante: a arrogância da arte contemporânea se alimenta da ignorância programada pela falta de contato real com a arte por parte daqueles que a fruem, e mesmo intermediam seu contato. 10.5.1 .6. Produção da escassez cognitiva: Esse processo de identificação também pode ser reconhecido na maneira como cada um destes lê a sociedade (uma ópera para cada intérprete). O referido padrão de comportamento seria, portanto, além de um processo de identificação, uma relação entre ator e plateia (entre artista representando os funcionários da burocracia artística e público), na qual um papel específico é esperado dos protagonistas. A glória do heroísmo necessita desse mecanismo que coloca a atuação das grandes mulheres e homens de frente a uma plateia (massa dispersa). A héroa e o heroíno deixam-nos com a doce sensação de que não precisamos nos responsabilizar pelo mundo.
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10.5.1 .6.1 . Essa plateia, uma multidão anônima (em nós), serve justamente para, em primeiro lugar, colocar o herói e a heroína em evidência e, por fim, para policiar os feitos dessas mulheres e homens, elementos que garantem as honras especiais que recebem e os diferenciam dos demais. Somente com esse ato de observação da atuação do herói e da heroína pela plateia, formada pela multidão, pode-se garantir que as glórias publicamente conquistadas sejam revertidas nas honras devidas. A internet já se ocupou de gerar o policiamento imanente de cada um dos agentes sociais, só falta-lhes o reconhecimento e o poder para realizar obras mais abrangentes e precisas. O compositor da ópera só quer ser reconhecido por ter aprendido a lição destes. Quem teme uma ampliação da meritocracia compreende a corruptibilidade humana. 10.5.2 . Consequências materiais de uma disputa identitária: Tanto o conceito de identidade, quanto a ideia de se entender as interações sociais por meio da metáfora operística de um museu, com atores em obras e plateia, se estruturam a partir de um movimento relacional. No entanto, também não se configura como uma ilusão que depende exclusivamente da subjetividade. A construção da identidade acontece no interior de contextos sociais que determinam a posição de seus agentes, orientando representações e escolhas. Tais fenômenos são dotados de eficácia social e produzem efeitos sociais reais, estando longe de serem ilusões. A diminuição do conhecimento sensível da natureza simbólica dos mitos locais é uma prática da diminuição do valor agregado ao trabalho local.
10.5.2 .1 . A construção da identidade, em outras palavras, é simbólica e social, não um dado. E as lutas para afirmar as diferentes identidades têm causas e consequências materiais. Ambos os processos, o simbólico e o social, são necessários. A marcação simbólica é o meio no qual o sentido é dado às práticas e às relações sociais, nas quais fica definido quem é excluído ou incluído, e quem é a margem. Na diferenciação social, essas classificações são “vividas” nas relações: Um grupo socialmente marginalizado, por exemplo, sofre efeitos reais, seguidos de desvantagens materiais. E isto sob discursos estéticos e lógico-científicos. Não é raro encontrar quem defenda seus detratores, devido a identidades forjadas através de mitos ilusórios. 10.5.2 .2 . A marca do pertencimento à identidade heroica, do ponto de vista material, só faz sentido se os feitos realizados estiverem à altura das honras recebidas. A relação, portanto, é de mão dupla: realizam-se grandes feitos para ter acesso às honras que materializam a glória conquistada, e se mantêm essas honras pelos feitos realizados. A identidade heroica, entretanto, não é um fluxo que depende somente da auto-identificação. Existe, de fato, espaço para entrada e saída do grupo identitário. O reconhecimento dos outros também tem força no jogo das classificações identitárias.
10.5.2 .3. O olhar escrutinador de uma plateia social exige que um ator, pertencente a determinada posição, aja de acordo com o que é esperado de seu papel. Apenas assim pode gozar das consequências materiais de sua posição, ao demonstrar publicamente, que de fato é aquilo que pretende ser. Os outros guerreiros na Ilíada, os que não são os melhores, não eram, portanto, uma massa insignificante. São uma plateia, sempre atenta, capaz de julgar os atores em cena, ou seja, capaz de julgar seus líderes. A falta de humildade de reconhecermos verdadeiras lideranças identitárias, e a falta de coragem de certas lideranças em assumirem os sacrifícios que tal posição compete, nos fadou ao abandono da arte nas mãos administrativas. 10.5.3. É indispensável criar um número cada vez maior de pessoas capazes de formar opinião racionalmente esclarecida em qualquer dos aspectos e posições em que surjam controvérsias de interesse geral. Torna-se necessário dar ensejo ao homem comum de conhecer os ângulos e os interesses dos problemas postos à prova, num intuito honesto de se encontrar uma decisão coletiva que assegure, antes de tudo, o bem-estar de todos os elementos da comunidade, seja ela local, regional ou mundial. Em outras palavras, é preciso que surjam autênticos públicos e reais opiniões públicas. Mas, volta a indagação: Que é público? Como ele se forma? Quais são suas características? Como se comporta o indivíduo no público? 10.5.3.1 . Pode-se notar que a formação do público depende da presença de pessoas ou grupos organizados de pessoas; com ou sem contiguidade espacial; da existência de controvérsia; da abundância de informações; da oportunidade de discussão; do predomínio da crítica e da reflexão; da procura de uma atitude comum; de decisão ou opinião coletiva; a possibilidade de interação e atuação. Em resumo, a presença de uma controvérsia, a oportunidade de discussão e o aparecimento de uma decisão ou opinião coletiva marcam os principais fatores que permitem a formação do agrupamento elementar chamado público. Poder-se-ia, desde já, adiantar um conceito de público: “São pessoas ou grupos organizados de pessoas, sem dependência de contatos físicos, encarando uma controvérsia com ideias divididas quanto à solução ou medidas a serem tomadas frente a ela; com oportunidade para discuti-la, acompanhando ou participando do debate através dos veículos de comunicação ou da interação pessoal.” Mas qual o público da arte quando o entretenimento nega qualquer forma de controvérsia?
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10.5.4 . Quando um museu é inaugurado, ele toma posse de três territórios (ecológicos): um simbólico dentre às obras e no mundo artístico de acordo com seu acervo, um político de acordo com as redes de poder das pessoas que o criam, e um psicogeográfico de acordo com o gesto poético local no contexto atual. Por isso, se repetem simbolicamente o ato da criação da obra na vernissage do museu (o embalamento de grandes edificações realizadas por Christo invertem este ato): A zona inculta (terra sem cultivo) é primeiro cosmificada (paisagismo e a limpeza modernista do passado artístico) e em seguida habitada (curatorialmente pelo ímpeto pós-moderno). 10.5.4 .1 . As cosmogonias incluem lutas rituais entre dois grupos de figurantes, presentes em grande parte das comemorações de ano-novo das culturas mundiais, reatualizam o momento cosmogônico do combate entre o humanismo organizador e o dragão (da serpente, que simboliza quase sempre o que está latente, pré-formal, indiferenciado). Estes cenários mítico-rituais do ano novo, com seus cortejos de máscaras carnavalescas, animais funerários, sociedades secretas, etc. - foram organizados desde o princípio da cultura com o instinto de purificar qualquer 'pecado' presente na memória pessoal da memória coletiva. Compreendemos então a enorme importância que a regeneração coletiva através da repetição do ato cosmogônico passou a ter para os povos criadores da história, em si cosmogênese de cada cultura. 10.5.4 .2 . Os rituais de construção civil pressupõem também a imitação mais ou menos explícita de um ato cosmogônico, na medida em que copia uma projeção formal (projeto arquitetônico e urbanístico) de um progresso. Para o artista tradicional, a imitação de uma técnica (Dalí 'imitando' Michelangelo, por exemplo) é uma reatualização do momento mítico em que um arquétipo de um modo de feitura da arte (e a vivência necessária num tipo de contexto) foi revelado pela primeira vez. Assim, também esses cerimoniais de construção de museus, que não são nem periódicos nem coletivos, suspendem a passagem da moda sobre a arte e projetam aquele que os celebra no mito histórico. O museu celebra antes de tudo o museu. Já o artista moderno, tem por técnica a incisão sensível do gesto, rompe com a história em prol de uma presentificação dos sentidos. Há um enorme paradoxo num museu de arte contemporânea, como na cooptação da contracultura. Mas há algo mais importante que a arte em jogo na ópera.
10.5.5. Nesta perspectiva, o que poderão significar o sofrimento e a dor? Eles nunca são encarados na arte como uma experiência desprovida de sentido, que o homem tem de aceitar na medida em que é inevitável, tal como aceita, por exemplo, os rigores do clima. Seja qual for a sua causa e natureza, o sofrimento tem um sentido lógic-est-ético: corresponde ou a um protótipo ou a uma ordem cujo valor é contestado. Refiramo-nos ao sofrimento enquanto acontecimento, fato histórico, sofrimento provocado deliberadamente pelo desejo desmedido que cria as injustiças sociais sob máscaras simbólicas como no caso da tortura de elefantes por marfim. Se esses sofrimentos puderam ser aceitos, foi precisamente por não serem considerados nem gratuitos nem arbitrários. 10.5.5.1 . A arte atuou, como elefantes de guerra, como arma de um modo de concatenação social segregatícia e hierárquica (gênios, artistas medíocres, público ignorante). E como os elefantes de guerra, não o fez por escolha, mas nós não conseguimos conceber um sofrimento sem aferir-lhe um significado (Stockhausen em 11 de Setembro de 2001). O artista luta contra o sofrimento e suas 'causas', que inclui até mesmo a arte, com todos os meios estéticos ao seu alcance - mas aceita-o moralmente porque ele não é absurdo. O momento crítico do sofrimento é constituído pelo seu aparecimento; o sofrimento só é perturbador na medida em que a sua causa é desconhecida. Logo que o fruidor (enquanto artista) da obra descobre a causa que provoca a morte das crianças ou animais, o prolongamento da fome, etc.. o sofrimento começa a tornar-se aceitável dentro de um sistema de crenças (mesmo que científicas) e condutas (mesmo que deliberadamente desajustadas). A arte corrobora para que não mais nos sintamos tocados a modificar as estruturas sociais que geram as injustiças nos cristalizando a posição de fruição estética no conforto de um museu ou de um teatro. 10.5.5.2 . Atualmente, quando a pressão histórica já não permite qualquer evasiva estética sob a égide artística ou cultural, como poderá o humano aceitar as catástrofes e os horrores da história se, em contrapartida, não se leva a vislumbrar qualquer sinal, qualquer intenção trans-histórica, se esses acontecimentos não são mais do que o jogo cego das forças econômicas, sociais ou políticas, ou, pior ainda, o resultado das liberdades que uma minoria conquista e exerce diretamente no panorama da história universal? Como trazer este sofrimento todo à tona de modo a exigir soluções desejantes criadas por uma comunidade expandida de artistas para o resto da sociedade? Como pensar uma resistência manufaturada à indústria da criatividade?
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10.5.6. E que tem sido feito com os grandes investimentos em arte e cultura? A valorização do entretenimento nos mostra que quanto mais se agrava o terror da história, tanto mais a existência se torna precária e as posições do historicismo perdem seu crédito. Numa altura em que a história da arte humilha o poder a tantas gerações, se assiste a uma tentativa desesperada de proibir os acontecimentos históricos, se descreditam as vanguardas (existentes e operantes!) e dissemina-se o descrédito de qualquer gesto poético revolucionário. Através da cooptação globalizada das sociedades humanas no horizonte (artificial, porque legislado) dos arquétipos superficializantes das programações simbólicas (programas televisivos, cinema hollywoodiano, mega eventos esportivos, mega concertos de rock, etc.) e da sua repetição sazonal; temos nos esforçado por esquecer do passado e suas lutas para justificar as carnificinas presentes e a continuação da injustiça ao infinito das possibilidades de futuros. 10.5.6.1 . O artista moderno poderia mesmo ver na adesão total do artista antigo aos arquétipos sociais e à repetição da 'função' do artista, não só o deslumbramento deles perante os seus primeiros gestos livres, espontâneos e criadores, ainda não cooptados, e a sua veneração repetida ao infinito, mas também um sentimento de culpa do humano ainda um pouco ligado ao paraíso da animalidade (reciprocidade natural da força), sentimento que o leva a reintegrar no mecanismo da repetição eterna da natureza, os gestos primordiais da mera feitura espontânea, a criação que marca o nascimento da liberdade, sem importar-se com as consequências sociais destas marcas (como o uso ideológico e político de óperas e de elefantes). Para o artista moderno, o homem só é criador na medida em que é histórico; por outras palavras, o artista antigo, prisioneiro do horizonte mítico dos arquétipos e da repetição, não percebia sua impotência criadora, sua incapacidade de aceitar os riscos que qualquer outro ato criador implicaria. De modo similar, o artista pós-moderno aferiu ao gesto revolucionário-poético uma infinidade de leituras diluidoras e irônicas, ridicularizando sua própria luta. 10.5.6.2 . O artista tradicional não deixaria de contestar a possibilidade de o artista moderno fazer a história, - isto é, indefensível perante o terror da história - tanto menos ele pode fazê-la. Porque ou essa história da arte se faz por si própria (graças às raízes deixadas por ações que aconteceram no passado, há séculos e milênios) ou tende a ser feita por um número de humanos cada vez mais restrito, que não só impedem a massa dos seus contemporâneos de intervir direta ou indiretamente na história que eles fazem (ou que ele faz), mas que ainda dispõem de métodos suficientes para obrigar cada indivíduo a aceitar as consequências dessa história, ou seja, a viver continuamente o terror da história. A liberdade de fazer história que o artista moderno se gaba é ilusória para quase toda a humanidade. Resta-lhe, quando muito, algumas alternativas: opor-se à história feita por uma minoria (e neste caso, ele pode se matar, se exilar ou realizar um gesto terrorista), ou ele pode refugiar-se numa existência sub-humana ou na evasão. A liberdade que a existência histórica implica foi possível - e ainda com certos limites - no início da época moderna, mas ela tende a tornar-se inacessível à medida que essa época se torna mais histórica ainda, isto é, mais afastada de qualquer modelo trans-histórico, arquetípico ideal e estético.
10.5.7. Que consolação poderíamos ter ao assistir uma ópera e constatarmos catarticamente que os sofrimentos de milhares de humanos permitiram a revelação de uma situação-limite da condição humana, se, para além dessa situação-limite, só existisse o nada e não o limite da resistência humana? Se a ópera não apontasse a uma multiplicação do gesto que a engendrou, de que serviria senão apenas a mais uma ilusão cooptada do entretenimento? Que ouvido imenso é este necessário para entender a eletroacústica? Quem o tem e para que serve este, afora ao aumento da paranoia em épocas de guerrilha semiótica e ruidocracia? 10.5.8. Segundo a ‘Historiae Animalium’ de Konrad Gesner, possivelmente o primeiro texto moderno de zoologia (1551), Plínio foi o primeiro ocidental a tratar dos paquidermes: “O elefante é o maior animal terrestre, e também o mais próximo aos humanos em inteligência. Ele compreende a linguagem de seu país, obedece a ordens, recorda tarefas aprendidas, gosta de afeto e honra - mais, tem virtudes raras em humanos - honestidade, sabedoria, justiça, e respeito pelas estrelas e reverência pelo sol e pela lua... e o conto de um elefante que prefigura Descartes ao escrever na areia ‘Eu, o elefante, escrevi isto.’ Diz-se por alguns autores, que, na primeira aparição da lua nova, rebanhos desses animais descem das florestas da Mauritânia a um rio, cujo nome é Amilos; e que eles purificam-se de forma solene, por aspersão, seus corpos com água, após o qual, tendo assim saudado o corpo celeste, eles retornam para a floresta, levando à sua frente os jovens que estão fatigados. Eles supostamente tem uma noção, também, das diferenças de ritos religiosos; e quando a ponto de atravessar o mar, eles não podem ser persuadidos a ir a bordo do navio, até que seu cornaca prometa sob juramento que eles voltarão para casa novamente. Eles têm sido vistos, também, quando desgastado pela doença, (até mesmo essas grandes massas são susceptíveis de doença) deitados sobre suas costas, e jogando ervas para o ar, como se clamando à terra para interceder por eles com suas orações. Como prova de sua extrema docilidade, eles prestam homenagem ao rei, caem sobre seus joelhos, e oferecem-lhe a coroa. Os de menor crescimento, o que os indianos chamam de canalhas, seis são empregados por eles na lavoura.” 10.5.8.1 . Calvino nota que Plínio no livro VIII de sua “Naturalis Historiae” não gasta nem uma palavra (exceto aquele superlativo maximum) para descrever os elefantes (aliás representado com fidelidade nos mosaicos romanos da época), mas transcreve apenas as curiosidades lendárias que encontrou nos livros: os ritos e os costumes da sociedade elefantina são apresentados como os de uma população de cultura diferente da nossa, mas digna de respeito e compreensão.
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10.6. Manadas: Os elefantes trabalham por uma paradoxal mistura de agrupamentos matriarcais e bandos de machos, ambos hierarquizados, no primeiro caso de cooperação também, e em ambos de competição intraespecífica. Como poderemos modificar os museus como formadores de opinião e julgamento meritocrático de produções estéticas para formadores de multidões cooperativas de retroalimentação sensível e aprendizado estético mútuo? 10.6.0. O tempo médio de vida de um elefante é de setenta anos, quase o mesmo tempo que o de direito autoral de uma obra. Não podemos evitar que uma ópera, como O Elefante de Marfim, seja satirizada e tenha seus conteúdos poéticos e suas técnicas de atuação utilizadas para fins diversos, desde a diversão de adolescentes até antiéticas campanhas publicitárias. De qualquer modo, esta próera permanece uma dádiva em creative commons GNU GPL, assegurando-nos de que a obra se trata dos sacrifícios empreendidos para que não hajam mais sacrifícios, e na dádiva como paradigma da economia simbólico-artística por uma melhor utilização dos recursos naturais físicos e subjetivos disponíveis. 10.6.0.1 . Na economia da dádiva, o doador tem que concentrar-se na necessidade do outro para que a transação seja centrada na alteridade. A sua satisfação reside na satisfação e bem-estar das outras pessoas, como no caso de um artista enquanto pinta. O receptor deve utilizar ativamente o que lhe é dado para que a oferenda não se perca, o caso do fruidor de uma obra. Contrariamente ao que algumas vezes se pensa, a posição do receptor é criativa, e não passiva. Mais tarde ele pode mudar de posição ainda (como queremos nesta obra), pode tornar-se também um doador, dando alguma coisa a alguém mais, sem ter necessariamente que dar de volta ao doador um equivalente daquilo que recebeu. A motivação da oferta é a satisfação da necessidade, não a retribuição. As necessidades evoluem e mudam. Após a satisfação das necessidades básicas desenvolvem-se novas e mais complexas necessidades, por isto o esforço de sintetizar o estado da arte antes de podermos iniciar a próera propriamente dita.
10.6.0.1 .1 . Os filhotes elefantes começam por viver de leite mas depois precisam de outro tipo de alimento; aprendem a andar e precisam que as matriarcas elefantes os deixem ser independentes, e as mães também satisfazem essa necessidade. Dar e receber oferendas cria laços entre o doador e o receptor que superam o de uma troca de produtor-consumidor ou de ídolo-fã. Os laços formam-se sem a expectativa da reciprocidade. Não é o surgimento de uma dívida que forma o laço, mas antes a satisfação direta da necessidade do outro. É preciso ter em mente que o doador deve se abster da criação da necessidade que visa suprir com sua doação, não tornando este ato gratuito uma troca ou dívida subliminar, apenas outra maneira de manipulação. 10.6.0.1 .2 . Esta capacidade de estabelecimento de laços que está na base da comunidade elefantina se opõe à via da troca, segundo a qual as necessidades do outro são satisfeitas apenas para procurarmos a satisfação das nossas necessidades. A troca envolve uma lógica orientada para o eu e requer o cálculo, a quantificação e a medida para determinar que aquilo que é recebido seja igual ao que é dado. A troca tem uma lógica de adversários (ou de controle (psicologia comportamental) e competição porque nela cada pessoa tenta receber o mais possível da transação. A arte nasceu como uma economia da dádiva que era o dom, um pintor queria agraciar os sentidos de todos. O mercado da arte foi a forma que a economia da troca encontrou de controle sobre tal dom. 10.6.0.2 . A economia de troca, que mercantiliza a arte, requer escassez para poder funcionar apropriadamente. Se a dádiva de oferendas fosse o modo de distribuição, a troca tornar-se-ia desnecessária. As pessoas não trocariam dinheiro para ouvir música se seus amigos lhe dessem algumas novas sinfonias como dádiva. Podemos verificar a criação da escassez, por exemplo quando produtos claramente abundantes, digamos amarulas (mas bem poderia ser conhecimento e arte), são enterrados (ou infringem leis de pedágio de reprodução) para se poder manter elevado o preço das restantes amarulas. A abundância também afeta o sentido da hierarquia. Ninguém se sentiria obrigado a obedecer, a manter e a premiar “quem está em cima” na política da arte, se pudesse satisfazer suas necessidades noutro lugar. 10.6.0.2 .1 . A escassez é criada artificialmente através de despesas inventadas que criam demanda (por exemplo, em armamento onde gastam-se 18 bilhões de dólares por semana em todo o mundo, quantia que seria suficiente para alimentar todos os esfomeados da terra durante um ano) e outros gastos desnecessários e não criativos, de forma a criar-se e manter-se um contexto no qual a troca e a hierarquia parecem ser necessárias para a sobrevivência. Existe também uma espécie de “escassez do sentido”: chegar ao topo aparece como a forma de darmos sentido às nossas vidas. Se não conseguirmos este objetivo de nos tornarmos dominantes as nossas vidas perdem o sentido.
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10.6.0.3. A perspectiva da troca é tão poderosa e penetrante que obscurece e esconde a da dádiva de oferendas. Por exemplo, os arqueólogos consideram as práticas de “partilha de alimentos” como importantes no início da pré-história, e a zoologia menciona a “educação” (no sentido de criação) como uma possível base para o desenvolvimento da linguagem em elefantes. A partilha de alimentos pode ser considerada como uma dádiva de oferendas e a criação é uma atividade que todas as matriarcas levam a cabo. Quando não se reconhece a dádiva de oferendas como uma forma de comportamento humano importante e independente, com a sua lógica, perde-se a continuidade entre a atividade maternal e os outros tipos de atividade. Podemos todos começar a encarar os problemas da sociedade como necessidades que estão à espera de ser satisfeitas. As soluções para os problemas da nossa sociedade, para os seus padrões de comportamentos destrutivos, são as maiores oferendas que alguém pode dar. 10.6.0.3.1 . Podemos todos começar a encarar os problemas da sociedade como necessidades que estão à espera de ser satisfeitas. As soluções para os problemas da nossa sociedade, para os seus padrões de comportamento cruéis e assassinos, são as maiores oferendas que alguém pode dar. Entender a ideia de uma obra de arte é mais como ter uma nova experiência do que como admitir uma proposição. No fundo, o significado da arte é mais um processo crescente e avassalador de transhumanização, seja pela interpretação dos sentimentos ou do pensar. Mas tal hiperhumanização não se dá no registro doce de uma idealização do humano ou do não-humano, mas na monstruosidade de suas aberrações. 10.6.0.4 . Se a linguagem se baseia na dádiva de oferendas, e se foi a linguagem que fez com que a humanidade evoluísse, podemos então dizer, pelo menos em parte, que foi a dádiva de oferendas que fez evoluir a humanidade. Nós somos, de fato, doadores e receptores de oferendas, tal como a natureza, mas interpretamos mal a oferenda das nossas diferenças biológicas e as correspondentes oferendas dos nossos termos de gênero, significando que temos diferentes registros básicos de vivências. Esses registros alienam os membros de grande parte da humanidade da norma da dádiva de oferendas, e colocam a outra parte numa posição de subserviência. Uma solução pacífica de longo prazo para o problema seria eliminar os termos de gênero, como acontece no Taiti. A outra consiste na restauração do arquétipo maternal, como entre elefantes.
10.6.0.4 .1 . Uma vez que todos nós fomos crianças (em sua grande maioria nascidos sob o amparo tecnológico de hospitais) que tiveram mães, ou alguém que tratou de nós e nos criou, podemos entender a natureza e a cultura social como garantindo a nossa vida, dando-nos oferendas. Podemos desenvolver uma epistemologia na qual nossa resposta à nossa experiência, o conhecimento e a sensibilidade, podem ser encaradas como uma espécie de gratidão. Temos permanecido cegos a este aspecto da natureza humana, dando às nossas oferendas ao mercado (e à tecnologia), ao paradigma da troca e a valores mercantis de troca e competitividade. 10.6.0.4 .2 . O paradigma da troca compete sem tréguas com o paradigma da oferenda. Muitas das grandes atrocidades da história, do massacre das feiticeiras ao genocídio dos povos indígenas, foram motivadas pela manutenção da necessidade do paradigma da troca (produção de escassez) de eliminar o modelo maternal da dádiva de oferendas enquanto arquétipo da vida humana na terra. Todavia, atualmente a economia de troca está a destruir o planeta e a penalizar um imenso número de humanos através da pobreza, da doença, da violência e da guerra, a alienar nossos sentidos e raciocínios, a acelerar o tempo e escravizar a maioria da população. É preciso que não nos esqueçamos dos sacrifícios passados e tenhamos suficientemente sabedoria e coragem de nos prostarmos atuantes por uma real mudança de paradigma. Se a arte tem alguma função agora, não é a de vender produtos, mas essa. 10.6.0.5. Um ativismo estético social e político consciente constitui uma forma de começarmos a dar essas oferendas. Outra é a criação de modelos alternativos. Outra ainda é a comunicação a um meta-nível sobre a sociedade doente e sobre a economia de oferendas. Ao mesmo tempo, temos que evitar os obstáculos que têm impedido até agora a mudança de paradigma. Por exemplo, a caridade, apesar de envolver a dádiva de oferendas, só é funcional a um nível individual e não questiona o sistema instalado. Temos que concentrar a nossa atenção na mudança das instituições, no caso desta obra a arte, não no salvamento de vítimas individuais. Ao mudarmos as instituições e o paradigma podemos poupar toda a gente. A mudança do sistema de valoração constitui a chave, porque é este sistema que causa os problemas na base de experimentação sensorial e raciocínio simbólico. A concentração na caridade individual leva-nos normalmente a esquecer a necessidade de uma mudança sistêmica e não põe em causa o status quo geral da produção da rede onde todos os pontos se retro-modificam, mas nem por isto deve ser esquecida ou não praticada (em uma dose adequada), porque alimenta possíveis colaboradores da rede.
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10.6.1 . Propomos uma mudança de valoração artística do seio da estética fetichista do objeto para a interface relacional. Faremos isto através da iconoclastia de um movimento sem manifesto que jamais se reconheceu como tal: o ab_ismo do final do século XX. Quando conceitualizamos e damos um nome ao movimento de enredamento estético social, qualquer que fosse, mas no caso ab_ismo, o que pretendemos? Que tipo de reificação é esta da vanguarda e suas estratégias? Relevados os perigos deste gesto, quem incluir num primeiro despontar desta, para gestar um território potencializador da vidarte e ver proliferar outras insurgências estéticas? Ao tornar uma horda de arrivistas (exceção do mercado da arte) iconoclastas de excluídos, anônimos justiceiros estéticos que atuam além do poder público e das burocracias de ONGs, em um conglomerado, não se está justamente fragilizando seus processos? Não incentivaríamos assim um fechamento da rede em outro foco de poder? Acreditamos que não e apostamos que o poder vertido a estes indivíduos será diretamente repassado a inúmeros grupos com produções estéticas de importante valia. 10.6.1 .1 . O que une estas redes de vanguarda artística a que chamamos ab_ismo? A inseparabilidade entre arte e vida, contínua ampliação das faculdades ditas artísticas, estão imbuídos de espírito pioneiro, alto conhecimento e cultura geral, reciclam lixo, grande sensibilidade estética (mesmo que propositalmente desmerecida), andam de bicicleta e evitam automóveis o quanto possível, todos olham (auto)criticamente para a condição presente das artes buscando novos papéis para artistas na sociedade, lavam as próprias louças, usam o mínimo possível de autoridade e hierarquia, estão o tempo todo em estado de atenção poética e trabalham até dormindo, se indignam com as injustiças sociais, estudam muito e em geral têm uma produção acadêmica invejável, não possuem muitos bens materiais, são referências de conduta em suas comunidades, etc. 10.6.1 .2 . O paradoxo da vanguarda: As vanguardas modernas tomaram o sucesso como signo do seu fracasso, enquanto a derrota significava-lhes uma confirmação da necessidade de sua luta estética. Sofriam quando o reconhecimento público era negado - mas ainda se sentiam mais atormentadas quando a sonhada aclamação e o aplauso surgiam finalmente. Negaram as vanguardas anteriores, como forma de legitimarem-se. A justeza de suas próprias razões, e o caráter progressista dos passos que estavam dando, mediam pela profundidade do seu isolamento e pelo poder de resistência de todos os que ela planejava converter. Quanto mais era vituperada e atacada, mais se assegurava de que a causa estava certa. Aguilhoada pelo horror da aprovação popular (e sua consequente cooptação mercantil), as vanguardas febrilmente buscavam formas artísticas de mais difícil acesso. O que não devia ser senão um meio para um fim e uma condição temporária era, desse modo, imperceptivelmente transformado no objetivo último e num estado de permanência hermética. Não encontraram outra baliza, exceto manter a distância e reafirmar a superioridade do que é culto e criativo: as pessoas passaram a consumir o status de sensibilidade e inteligência que compreender uma obra oferecia.
10.6.1 .3. Diante do ab_ismo porém, pudemos vislumbrar como alta e baixa culturas se entremearam com alegria em obras grandiosas e pequenos gestos cotidianos. A desmistificação do gênio se dá como na transição das gangues de machos competitivos do musth para as famílias em mutualismo, no caso dos elefantes. 10.6.2 . Os elefantes competitivos das gangues de machos tem o enorme fragilizador da competitividade interespecial que os atrapalha (não só os fazendo matarem-se entre si por poder, mas evitando que cuidem uns dos outros) e amplia imensamente suas mortes em relação às famílias matriarcais solidárias. Num cenário cultural, em que a sincronia toma lugar da diacronia, a co-presença, o lugar da sucessão e o presente perpétuo tomam o lugar da história, a competição já não serve de paradigma para a criação de desejos. 10.6.2 .1 . Todos os estilos e modos de produção de subjetividade, têm de provar, hoje em dia, seu direito de sobreviver aplicando as mesmas estratégias mercadológicas, uma vez que todos se submetem às mesmas leis que dirigem toda a criação cultural, calculada para o máximo impacto e obsolescência imediata. Chamam a atenção do cliente e esvaziam a prateleira para outro produto. Quando a competição domina, há pouco espaço ou tempo deixados para ações de grupo, confrarias de ideias, escolas, intervenções da arte nos meios sociais. Toda obra recua diante da possibilidade de enquadramento numa linha estética e todo artista teme ser mesclado numa vanguarda, como um filósofo teme ser cooptado por um partido. Todos estes efeitos resultam na espetáculo da sociedade sob a cultura do camp. 10.6.3. O legado da era das pós-vanguardas é a imagem das artes e dos artistas como t'erroristas anônimos ou campers. O que pretendemos não é agir como delatores, mas num ato de terrorismo ainda maior demandar que as demandas dos terroristas de todo mundo sejam ouvidas compassivamente, com imparcialidade, num mundo onde as artes se mostram cada vez mais inclinadas ao mercado e fogem do ativismo social como necessidade desejante da produção subjetiva. As artes pós-modernas alcançaram um grau de independência da realidade não-artística, com o qual seus predecessores modernistas só podiam sonhar. Mas há um preço a ser pago por essa liberdade sem precedentes: o preço foi a renúncia à ambição de indicar os futuros possíveis. Quando atrelada e entranhada à mercantilidade, a arte se tornou commoditie. Não estamos aqui falando de um retorno à “arte pela arte”, mas de um utilitarismo menor que cooptou mesmo o anonimato dos que ainda resistiam ao sistema museológico vigente. Calar ainda não bastou para que ouvissem.
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10.6.3.1 . A arte e a realidade não-artística funcionam nas mesmas condições, como criadoras de significado e portadoras de significado, num mundo notório por ser simultaneamente afortunado e flagelado pela insuficiência e pelo excesso de significados. Já não há uma posição vantajosa, se elevando acima do território inteiro de experiência de vida, cuja totalidade podia ser avistada, mapeada e copiada, de modo que alguns significados pudessem ser concedidos como reais e outros desmascarados como errôneos ou espectrais. De alguma maneira, esta ideia de um todo abstrato complexo, um elefante cósmico, se tornou a fantasmagoria do pensamento. O posicionamento social dos artistas se tornou uma postulação estética dentro das redes cognitivas, e o anonimato que antes servia de estratégia de não cooptação se vê agora como mera covardia de um enfrentamento das leis mercadológicas que controlam os sistemas simbólicos e sensíveis. 10.6.3.2 . Quando nomeamos estes indivíduos frente ao ab_ismo, estamos também apontando esta vertigem diante das inúmeras tentativas de dispersão dos artistas, de colocá-los uns contra os outros num sistema competitivo. Não só eles tiveram de se distanciar uns dos outros, como também tiveram de negar qualquer conexão entre si, qualquer pressuposto sintético, evitar cartografias de seus movimentos, dissimular suas simpatias ideológicas. Mas agora chegamos a um ponto no qual para estimular o processo de elaboração do significado e defendê-lo contra o perigo de, algum dia, este se desgastar até uma parada; e então conseguirmos alertar para a inerente polifonia polissêmica do significado e para a complexidade de toda interpretação, como uma espécie de anticongelante intelectual e emocional: já não basta agirmos sós, e a rede de controle da arte se põe contra nós. 10.6.4 . Sozinhos, tais artistas-coletivos eram vistos como só mais um grupelho de ávidos por espaço em galerias e ressentidos de sua não aceitação comercial, alpinistas como quaisquer outros. Daí a necessidade de que os jogássemos num ab_ismo qualquer e deixássemos esta ideia de coletivo se ressaltar a todos nós e a todas as nossas obras para que o que diziam fosse compreendido. Foi importante resistir ao mundo exterior, quebrar o consenso e ampliar, através da experimentação, as possibilidades que a razão de informação linguística e instrumentalizada, juntamente com a 'política cultural' feita sob sua medida, não puderam antecipar: afinal cozinhamos juntos, plantamos, moramos na rua, dançamos com os índios, esquecemos a arte. Suas esperanças de um consenso futuro substituídas pelo elogio da final e irredutível diferenciação, foi ainda um ideal progressista, um ab_ismo. É preciso que assumamos a predação, o parasitismo e o comensalismo que os quis arrebatar à força, em prol de um mutualismo que sobrepusesse o neutralismo de subsistência no qual se encontram agora os artistas.
10.6.5. Para coexistir e para cooperar, é preciso que tenhamos noções e imagens comparáveis de integração, de identidade de ideias, de co-participação, de interdependência de todas as partes envolvidas, a despeito das diferenças. Do contrário, a ideologia que estiver amparada pelo maior poderio militar estrangulará as mais fracas. A coexistência pacífica pressupõe, de todos os lados, uma alta compreensão das interconexões entre todos os pontos e planos dos problemas e das dificuldades da simples coexistência, das concessões e limitações mútuas (estilísticas e estéticas em relação às artes), da diversidade de personalidades, e especialmente da coexistência de pensamentos e sentimentos contrastantes e irreconciliáveis em cada indivíduo, da ambivalência inata. Isso exige uma compreensão dos direitos de todas as partes – indivíduos e coletividades. Usando coexistência como palavra de engodo, podemos obscurecer os problemas que ela envolve e descobrir, afinal, que usamos a palavra como uma bandeira, a recobrir uma rendição gradual ao estrategista mais forte.
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10.7. Culturas Elefantes: Da caça à captura: Os elefantes eram animais totêmicos, nas regiões onde sua captura iniciou, sendo caçados apenas excepcionalmente. Eram mortos com dardos ou flechas envenenadas, mas antes eram capturados em fossos ou armadilhas naturais. Era fácil, portanto, para caçadores se tornarem cornacas. Da mesma maneira artistas durante períodos de ditadura são perseguidos, e o poder hegemônico toma o controle da produção subjetiva, como o faz das instâncias militares, sob seu julgo. Um método mais arriscado de caçar elefantes é o do Mela Shikar, onde cornacas caçam elefantes selvagens, montados em seus elefantes, a laço. Este pode ser comparado a processo de um marchand ou galerista colocar sua reputação em risco e apresentar um artista novo ao mercado. 10.7.1 . Mahouts, ou cornacas, são pessoas capazes de capturar, educar e cuidar de elefantes. Eles são identificados em três categorias: Reghawan, aqueles que usam o amor para controlar seus elefantes. Yukthiman, aqueles que usam a ingenuidade para controlar seus elefantes. E Balwan, aqueles que controlam elefantes com crueldade. O curador (e um diretor de teatro e ópera age neste sentido) se assemelha a um mahout de arte. Quando um mahout se torna mestre no Mela Shikar, passa a ser reconhecido como Phandi, semelhante ao processo de um curador que se torna galerista. Queremos mostrar na música o pio de caça que atrai a presa à mira do algoz. Em cada orquestra, o domínio do maestro sobre a massa dos executantes. 10.7.1 .1 . Métodos de captura: Assim como mahouts dirigiam elefantes a armadilhas naturais, o poder mercantil utiliza-se da incerteza metodológica e da pouca objetividade da arte para cerceá-la com ideologias subliminares. Assim como poços são cavados para segurar elefantes, as galerias (e num estado ulterior as redes de museografia) contêm e expõe certos tipos de arte conforme suas necessidades ideológicas. Assim como mecanismos de roldanas e cordas disparavam jaulas que caem sobre os elefantes, as tecnologias se tornaram de um valor agregado da arte (reduzida a pesquisa industrial em estado inicial) seu fim. Assim como elefantes já domados eram usados para se aproximarem e conquistarem elefantes selvagens, artistas cooptados ao convocarem parcerias aos seus projetos somaram também seus nomes e currículos (sic) ao programa de galerias e instituições.
10.7.2 . Kheddas: Destes métodos, surgiram os kheddas, currais feitos para a captura e criação de elefantes. Os métodos evoluíram de pequenos grupos em kheddas temporários sem monitoramento para outros extremamente complexos e fixos, com centenas de empregados. Tal processo é similar à passagem das feiras e exposições sazonais para os museus de acervo. Os elefantes capturados (menores de dez anos) eram mantidos sem comida ou água (como o cão de Guillermo Vagas Habacuc que acabou falecendo numa obra de arte) nos poços dos kheddas para enfraquecer suas condições e, assim, sua resistência ao contato humano; semelhante trato recebiam as obras saqueadas do Egito, por exemplo, em museus europeus. A tal processo de isolamento e afastamento do resto de sua manada, que leva-o a um esquecimento e a uma profunda tristeza, soma-se uma estrita restrição de seus movimentos através das ferramentas de controle. Com os novos métodos de contato protegido, ocorreu a zoologização do cuidado elefante. 10.7.3. Na cultura da arte contemporânea vale a máxima: quanto maior a distância entre um objeto baixo e sua projeção aurática, tanto mais requintada é a metáfora que o artista pressupõe para a sua operação estética. Nesta equação, um quilograma de marfim não tem valor nenhum. O elefante ganha brilho quando ele é derivado do lixo, como no caso de Joseph Conrad, de um trompe l'oeil do Tâmisa com a Nigéria ou a coroação de funil de Bosch. O objeto banal é sucedâneo de algo mais elevado, algo inatingível, algo ao qual possivelmente teremos que renunciar para sempre, mas que volta sempre a ficar ao nosso alcance, através da força da imaginação e de uma ação simbólica. É a tentativa sistemática de arrancar do dia a dia uma faísca de poesia e de devolver o seu caráter a alguns objetos escolhidos, que devido à publicidade e ao comércio, ficaram desvalorizados. No nosso caso, a própria arte é este objeto. 10.7.3.1 . O sonho cornaca que os banqueiros nutrem de transformar o esforço instintivo de outros em dinheiro, ou de vender o que não pode ter dono (ou é de todos), sonho este que sempre fracassa às custas dos mais humildes, mostra uma vez mais que a lógica da arte de conjurar um valor agregado estético a partir de objetos os mais insignificantes precisa ser transferida para o mundo real, tomem os esforços que forem necessários. Com a informatização da produção, a heterogeneidade do trabalho concreto tende a ser reduzida, e o trabalhador é cada vez mais afastado do objeto do seu trabalho. Ao mesmo tempo que o computador se apresenta como a ferramenta universal, ou melhor, como a ferramenta central, pela qual deve passar toda e qualquer atividade, fica cada vez mais difícil embasar um modelo de meritocracia com relação à quantidade de trabalho. Não produzir é uma grande colaboração que muitas pessoas podem dar ao mundo, e deveriam ser ressarcidas por isto. Mediante a informatização da produção, portanto, o trabalho tende à posição de criação subjetiva que passa sempre pelo imaterial (mesmo que chegue à atualização objetiva) e se afasta daquilo que até então se pensava como trabalho.
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10.7.4 . Já a algum tempo, o sistema das artes no Brasil convive com esses novos valores em circuitos artísticos autônomos, os quais dialogam também com os circuitos institucionais mais tradicionais. Em diferentes momentos da história recente, esses circuitos auto dependentes constituíram-se como algumas das maiores fontes fruidoras e aglutinadoras da discussão artística em diferentes regiões – como o Torreão (Porto Alegre), Agora/Capacete (Rio de Janeiro), CEIA (Belo Horizonte), Ocupação Prestes Maia (São Paulo), Alpendre (Fortaleza), entre muitos outros. A questão da autonomia – existencial, de diálogo, e de proposição – é fato fundamental para se pensar tanto o circuito de arte, como a sociedade. Uma sociedade, por mais complexa, multicultural e populosa que seja, não pode fundar sua identidade balizada por expectativas de um Estado ou mercado. Num mesmo sentido, também os circuitos de arte não haveriam de ser simplesmente provedores das demandas das instituições e do mercado. 10.7.4 .1 . Depois da abertura econômica do país (colônia subjetiva), presenciamos uma mudança no valor simbólico da arte, valor que se deve sobretudo ao seu desmesurado sucesso econômico. Nos últimos anos, a arte caminhou rumo a um incomparável mercado global ganancioso e em ebulição. Quanto mais dinheiro fluía e, com isso, quanto mais cobiçada ela se tornava, mais recursos continuavam fluindo. Não foram poucos aqueles que se deixaram impressionar: a arte parecia o símbolo de um sucesso permanente, de um sucesso que se autogere. E era com prazer que levavam esses símbolos para suas salas de visitas, como totens de marfim. Hoje, contudo, esse culto aproxima-se de um fim: até mesmo os mais bem-sucedidos entre os artistas foram atingidos por uma crise no próprio cerne simbólico da arte (devido a este sucesso) e , com isso, a arte foi perdendo seu status como símbolo de sucesso (o lixo extraordinário de Vik Muniz, gesto superficial, é exemplo de uma tentativa de superação deste sistema dentre a ele mesmo). 10.7.4 .2 . Na arte, e acima de tudo com ela, tudo parece possível. Tal promessa de ilimitabilidade gerada pelo mercado sobre esse produto ideológico artístico possibilita uma ilusão de evolução potencialmente infinita até mesmo para mercadorias de artistas que se assemelhem a produtos industrializados (design). Ao contrário da compra de entradas para uma ópera ou a compra de um livro, o consumidor adquire, junto com a obra de arte, também a promessa de que seu valor, tanto no contexto da história da arte quanto no sentido financeiro, só irá se concretizar no futuro. E somente a possibilidade de que isso possa acontecer já atrai muita gente a comprá-las. Somemos a este sistema o grande desconhecimento da história da filosofia estética que movia os grandes artistas que assolam a cultura mercantil atual.
10.7.4 .3. O modelo de negócios “arte”, para falar de um conceito econômico, baseia-se em especulação. Principalmente nos últimos anos, ele se assemelhou muito às atividades nas ‘bolsas de valores’ internacionais. A arte marcou até mesmo presença indireta na bolsa. Foram criados fundos de investimento em arte, e qualquer um podia aplicar dinheiro neles. Em contrapartida, muitos negociantes do mundo financeiro começaram a agir como se fossem artistas conceituais, para quem o que importava não eram as obras no sentido clássico, mas as ideias por detrás delas. Começou-se a apostar que as apostas, que outros haviam feito sobre apostas de terceiros, seriam vencidas ou perdidas. Entrava-se em uma esfera alheia à realidade, na qual apenas a fantasia dava as cartas, mas acreditando piamente que mesmo o maior dos simulacros iria ter seu significado e seu valor real comprovados. Nos meios de amplificação eletrônica, o massacre do silêncio e da escuta. 10.7.4 .3.1 . Ninguém considera mais produtiva a liberdade infinita do mercado, com todas as exaltações trazidas por ele - e, de forma semelhante, a liberdade ilimitada da arte também começa a perder seu poder de sedução. Agora, como muita coisa permanece invendável (seja devido à efemeridade ou ao uso de lixo, por exemplo), essa promessa perde seu carisma e passamos a procurar outras alternativas de produção desejante para a arte. O mercado da arte e as redes de museografia perderam aí a instância de demarcação do que seria qualidade na arte, embora mantenham a autoridade social de controle nepótico dos encontros entre artistas e público. Suas tabelas e diagramas, seus quadros de mérito, seus gráficos informativos foram legados à jurisprudência do universo econômico, se objetivou uma hierarquia das máfias simbólicas. Naturalmente que o comércio de arte sempre existiu e o reino da estética nunca passou ileso às ambições da economia. No entanto, havia uma disposição de distinguir entre o valor de uma obra de arte e seu preço; hoje, os dois acabam não sendo mais diferenciados.
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10.7.4 .3.1 .1 . Isso se deu sobretudo porque o mercado conseguiu penetrar em um grande vácuo de sentido. Um vácuo criado principalmente pelos artistas. Muitos deles tinham se despedido da discussão a respeito do melhor estilo ou da estética mais pertinente e passaram a considerar a questão a respeito da qualidade supérflua e reacionária, ao mesmo tempo que se descolavam de reflexões políticas como estratégia de não-cooptação por facções políticas e interesses institucionais. 10.7.4 .3.1 .2 . Em compensação, o mercado se apoderou dessa pergunta e respondeu-a a seu modo: a partir de critérios formais e de conteúdo ideológico (posto que qualquer ideologia se tornou um tabu artístico), mas acima de tudo a partir de critérios de pura aparência. O artista se tornou um traficante de drogas estéticas. O importante era que o artista fosse representado por uma grande galeria ou tivesse obras nas mãos de um colecionador importante. Ser vendável tornou-se o critério central de qualidade da arte contemporânea. 10.7.4 .3.1 .3. E o que acontece então, quando a obra não é tão vendável quanto antes, quando o faturamento das galerias e casas de leilões cai? Aí sofre não apenas a rede de distribuição, mas falta também qualquer instância que possa se responsabilizar pela qualidade da arte. Hoje, parece que se perdeu controle sobre esse procedimento de classificação. Ou será que aquilo que era bom até agora deverá ser considerado ruim só porque os preços estão caindo? E se a artista se posiciona exatamente contra o mercado da arte, como o faz esta geração? 10.7.5. A arte perdeu seu papel formador, perdeu sua atratividade como modelo de vida. Nos interessamos por arte desde a juventude, mas sobretudo pelas pessoas que estão por trás da arte, pelos artistas. Estes não considerados apenas como outsiders estranhos. O papel do artista vem sendo tomado cada vez mais como um ser normal de forma especial e especial de uma forma normal (pense na onda de artistas grafiteiros) - prestando-se perfeitamente ao papel de personagem no qual se pode projetar suas próprias aspirações. Alguns vêem no artista contemporâneo um exímio empreendedor que cria uma existência própria com ousadia e dinamismo, descobrindo, por assim dizer, novas lacunas no mercado e preenchendo-as com produtos inéditos. Outros reconhecem nele um protagonista da 'realidade', que parece ser bem-sucedido em levar uma vida autônoma, criativa e, com isso, feliz. Assim, o artista passou a ser admirado não apenas pelo seu sucesso, mas principalmente pela sua forma de trabalho, pela sua capacidade de ter ideias e por sua 'cooperação' em redes de trabalho. No que resultava esse trabalho, no fim, parecia praticamente secundário. 10.7.5.1 . Nossa admiração pelos artistas frente ao ab_ismo, tem a ver com a maneira que seus modos de vida se contrapõem a este 'empresariado de si' num anti-heroísmo, ao mesmo tempo que seus gestos poéticos ressoam mais que em simples apreciações estéticas, mas também num restabelecimento da arte em seu papel transformador nos movem a uma reavaliação de nossos papéis sociais e das estruturas sociantes. Procuram, a partir destas obras de sutil formalismo, que a arte se liberte de suas coações e dependências, que possamos redescobrir o poder que emana de nossas obras.
10.7.5.1 .1 . Para isso, há duas estratégias presentes em toda a rede. A primeira percorre o caminho de volta ao nicho que se mantém longe do mercado (as resistências sociais, os movimentos populares, a arte cotidiana, a delicadeza da percepção do agora, etc.), no qual a arte ouve primordialmente a si mesma no mundo, entusiasmando-se na iniciação estética dos que ainda não a conhecem (oficinas e criação de pontos de cultura mundo afora). A outra estratégia procura o ataque subjetivo: apesar de toda a crítica ao hype e suas consequências, a arte compreende a nova popularidade como lucro e aprecia o fato de que, graças ao mercado, hoje um número muito maior de artistas possa viver de seu trabalho. Essa estratégia não prevê, por isso, um desligamento da arte do mercado, mas sim que ela, sustentada pela onda de popularidade, aproxime-se de maneira crítica e atuante no mundo daquilo que é seu cerne: a experiência estética. Os trabalhos que se posicionam honesta e criticamente em relação a seus patrocinadores, com todos os riscos envolvidos nisto, por exemplo. 10.7.6. A dádiva de volta em cada gesto artístico e mesmo o sacrifício de prostar-se frente às grandes instituições do sistema artístico pode soar como uma obviedade, mas, de fato, esta coragem artística gera uma série de mudanças na relação de toda a sociedade com a arte, tanto no âmbito da micropolítica bem como na rede global. O que se almeja, é que marchands e colecionadores exerçam seus papéis com dignidade e permitam aos artistas que concedam a suas obras o significado necessário, assinado embaixo por sua confiabilidade. Assim os artistas poderão recuar para detrás de suas obras, tirando de si os olhares e jogando-os sobre suas propostas (a piada de Zappa sobre Dalí). E o valor da obra possa ser definido assim, sobretudo por todas as pessoas enquanto observadores criativos destas. 10.7.6.1 . Pois quando estamos a fruir da arte, não importa nem seu preço de mercado nem os esforços do artista, mas sim o que nos acontece ao vivenciá-la e no que nos tornamos após ela. Outras questões de valores entram assim em jogo, as intensidades afetivas e suas cores, a riqueza de criações iconográficas, o valor da imaginação, o sentimento pelos outros, o entranhamento intelectual, o conhecimento e a reconexão com o mundo de nossas subjetividades. Talvez só assim seja possível chegarmos a uma estética cognitiva que sirva de força motriz e convergente para a era de hipermediatismo que desponta.
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10.8. Legislações Elefantes: A cultura fabrica ordem: cultivamos a terra, construímos casas, produzimos objetos manufaturados, temos um caminho programado pela curadoria da exposição, criamos hierarquias. Ao mesmo tempo nossas sociedades fabricam muita entropia. Elas dissipam suas forças e se esgotam nos conflitos sociais, nas lutas políticas, nas tensões psíquicas que elas fazem nascer junto aos indivíduos. E os valores sobre os quais elas repousam na partida se usam inexoravelmente. Poderíamos quase dizer que nossas sociedades perdem progressivamente sua serpente e tendem a se pulverizar, a reduzir os indivíduos que as compõem à condição de átomos intercambiáveis e anônimos. Aquilo que chamamos de “primitivos” ou povos sem escrita fabricam pouca ordem para sua cultura; nós as qualificamos por essa razão de povos sub-desenvolvidos. Em compensação, fabricam muito pouca entropia em sua sociedade. Elefantes não fabricam. Grosseiramente, essas sociedades são igualitárias, do tipo mecânico, regidas pela regra da unanimidade (ou violência direta). Ao contrário, os civilizados, ou pretensamente civilizados, fabricam muito mais ordem em sua cultura, como o mostram o maquinismo e as inumeráveis aplicações da ciência, mas eles fabricam muita entropia em sua sociedade. 10.8.0. Reconstruindo fósseis: Por que os museus não representam isto misturando os elefantes da história natural e obras contemporâneas em expografias abertas com monitorias que incentivem a interação e a criação de novas obras? Por que se investe tanto em expografias de materiais não condizentes com as obras e não-recicláveis e tão pouco na área educativa e relacional dos museus? Imagine um elefante empalhado num museu natural. Nesse caso também, a arte nos administra uma lição de espírito crítico. Ela nos faz compreender melhor que o passado de nossa própria sociedade não têm apenas uma significação possível. Não existe interpretação absoluta do passado histórico, mas interpretações que são todas relativas.
10.8.1 . Por uma poética de transcuradoria, os museus como praça pública das discussões estéticas: Uma terceira via, aquela que conduziria a fabricar sempre mais ordem em uma cultura sem que se precisasse pagar por um crescimento da entropia na sociedade. Dito de outra maneira, e como o preconizava Saint-Simon na França, no começo do século XIX, saber passar – cito - “do governo dos homens à administração das coisas”. Formulando esse programa, Saint-Simon antecipava então a distinção antropológica entre a cultura e a sociedade, e sobre esta revolução que se opera nesse momento sobre nossos olhos com os progressos da eletrônica. Talvez ela nos faça entrever que será um dia possível passar de uma civilização que inaugurou o porvir histórico, mas reduzindo os homens à condição de máquinas, à uma civilização mas sábia que conseguiria – como começamos a fazer com os robôs – a transformar as máquinas em homens. Então, a cultura que tem integralmente recebido a tarefa de fabricar o progresso, a sociedade seria liberada de uma maldição milenar que a constrangia a servir-se de homens para que exista o progresso. Infelizmente, a história se faria sozinha, e a sociedade, localizada fora e abaixo da história, poderia usufruir de novo dessa transparência e desse equilíbrio interno (cujo as sociedades ditas primitivas, menos degradadas, atestam): “transparência e equilíbrio não são incompatíveis com a condição humana”. 10.8.2 . Elefantes empalhados: Aceitemos a arte como uma pragmática que encontra sua mais alta justificação, ao mesmo tempo que desiste de suas pretensões e artimanhas de autopropagação mercantil, uma vez que as formas de vida e de pensamento que ela estuda e nutre não têm mais apenas um interesse prático, mas praxiológico. Não somente histórico e comparativo, mas social e atuante: Ela nos faz mais presente uma chance permanente do humano, que as observações e as análises da ciência, das humanidades e da estética têm por missão proteger e cultivar. Cuidar de um elefante é uma tarefa que se toma ainda criança e da qual não se pode desistir durante toda a vida para um mahout. O que a arte lembra à economia, para o caso desta vir a esquecer, é que o homem não é pura e simplesmente incitado a produzir sempre desvantagens aos outros em prol da competitividade, assim como os elefantes não se resumem a animais empalhados em museus. Ela procura também satisfazer, no trabalho que realiza sobre o ócio, aspirações que estão enraizadas em sua natureza profunda: completar-se como indivíduo, imprimir sua marca na matéria, dar, por suas obras, uma expressão objetiva à sua subjetividade, e mais ainda: moldar-se essa subjetividade. 10.8.3. Elefantes de guerra: A inteligência, a domesticação e versatilidade dos elefantes deu-lhes vantagens consideráveis em relação a outros animais selvagens, como leões e ursos, para serem usados como executores pelos romanos. Nisto podemos perceber um motivo pelo qual muitos artistas se refugiam na loucura e na violência como disfarces à cooptação de um sistema artístico completamente contrário à arte. A produção de desejos de modos de vida criada pela propaganda capital, também alcança o mercado da arte, e cada vez temos mais artistas querendo ser o próximo grande nome, a ser declarado o baluarte artístico. Perceba aqui, por favor, a ironia deste projeto. Vislumbre o compositor desta ópera como um pretenso gênio, pronto a se tornar uma celebridade na sociedade do espetáculo com sua obra grandiosa, necessária e sublime. Ria do compositor, este é seu sacrifício, ele quer ser esquecido nos penhascos de mármore. Existe alguma possibilidade estética que não acene ao totalitarismo?
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10.8.3.1 . Os elefantes são também mais controláveis do que os cavalos (assim como as obras em relação ao seu compositor): enquanto um cavalo pode ser treinado para carregar um soldado para a batalha, não irá atropelar um soldado inimigo de boa vontade devido ao seu tamanho. Elefantes atropelam seus inimigos, daí a popularidade dos generais com elefantes de guerra, como Hannibal. Uma obra excede seu autor enormemente. Um elefante pode também atropelar diversos cavalos; os grandes coletivos e monopólios de produção imagética funcionam de maneira similar sob o controle das grandes redes de poder capital. 10.8.3.2 . Elefantes de Tortura: Os elefantes podem ser treinados para executar prisioneiros em uma variedade de maneiras, e pode ser ensinado a prolongar a agonia da vítima por infligir uma morte lenta por tortura ou rapidamente matar os condenados por pisar na cabeça. Não está o compositor assim, quando se coloca sob esta obra? Não é possível que percebamos o peso que concerne ao artista carregar em sua subjetividade para poder prosseguir com seu trabalho nas atuais condições? Isto não nos comove a enfrentar a situação com clareza? 10.8.4 . Folclores elefantinos: Pode-se visualizar que com elefantes e artes ocorreu o mesmo que com os cogumelos psicodélicos. Começam a relacionar-se conosco numa simbiose que provavelmente nos lega à linguagem, na forma gestalt dos rituais de expansão de consciência através de uma nova forma de conhecimento químico, passam a cristalizar uma religião e um tráfico deste contato cognitivo, para então ser criado um tabu para tornar o acesso caro e restrito a alguns privilegiados, então, os ritos desta religião permanecem sem a substância da mesma, as pessoas passam a repetir os gestos e ícones e nem mesmo os líderes espirituais se lembram da razão destes.
10.8.4 .1 . Grootslang: Um exemplo, os cultos a bovinos (tanto de Pasupati na Índia, que contem relação com a passagem dos cultos de Ganapati a Ganesha, como no Brasil) são dificilmente diferenciáveis da relação destes animais com princípios cosmogônicos ritualísticos e com os cogumelos (que florescem em suas fezes). Os folclores bovinos hoje, em geral, não passam de repetições de danças coloniais que representam aspectos do poder monárquico sobre insurgências de revoluções baseadas em ampliações da consciência desta necessidade cosmogônica relacional. Com os cultos elefantinos não é muito diferente. Aqui podemos afirmar a inocência perigosa da obra folclorista e nacionalista de Mário de Andrade. 10.8.4 .2 . Paradas Elefantes: As culturas elefantinas não escaparam deste fado também, e os rituais de encontro dos líderes anciãos elefantes propiciados pelos humanos em simbiose com estes, verteu-se em um show para turistas. Talvez possamos ir ainda mais longe nesta ideia se observarmos as ‘Elephant Parade’ e ‘Cow Parade’, onde animais de plástico tomam a cidade para ‘divulgar a arte’. 10.8.5. Território elefante: A regra simbólica por detrás de toda legislação é simples: em troca de uma parte de seu território ancestral (seja este um mito ou canto ou modo de artear), receberás oportunidades “melhores” e mais condizentes com o modelo hegemônico (em conformidade com a legislação central do império dos sentidos) para o bem de toda sua comunidade subjetiva. Nisto toda legislação compactua com a corrupção, pois, sendo intemporal, a terra simbólica não pode ser reduzida a mercadoria e ser comercializada sem ser justamente alterada em sua natureza mesma. Este território é também um modo de temporação que deve manter-se fora do cálculo crônico. Mas que tipo de regras, elefantes aplicariam a suas artes e soações? 10.8.6. Terreno elefante: Existe uma forma própria e multidiferenciada de vida e de experiência que é elefantina, que é desejada pelos elefantes para os elefantes (sem que estes em momento algum o tentem obrigar a nós humanos), que estes não consideram como uma variante não-desenvolvida da humana, ante a das nações ocidentais e orientais capitalistas, e que desejam preservar. Não porque ela seja uma espécie de “valor de laboratório” ou uma fonte espiritual de identidade própria. Mas porque, por milênios, essas formas de vida foram vividas e testadas e são, para estes animais, o modo mais próprio de existir, de conviver entre si e com os outros, de relacionar-se com o mundo natural e de realizar uma coisa e a outra como uma cultura própria, que não precisa sequer olhar as culturas circenses e zoológicas do parque humano no espelho da história para “corrigir-se” ou “transformar-se”. Sabem quem são e como vivem.
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10.9. Economias Elefantes: Por séculos a arte viveu numa incômoda simbiose com o gerenciamento cultural, lutando desconfortavelmente, por vezes sufocando nos braços dos gerentes (assim como elefantes com seus mahouts) - mas também correndo para eles em busca de abrigo e emergindo do encontro revigorada e reforçada. 10.9.1 . Zoologização e contato protegido: Três áreas devem ser abordadas na museificação institucionalizada da arte tornada engrenagem da cultura em sua correlação com a zoologização: modificações das facilidades de acordo com as estratégias de intencionalização das visitas, recursos humanos com mão de obra especializada e concernente com a ideologia da instituição, e avaliação crítica da programação por parte de um aparelho de relações públicas conectado à rede de produção informacional. 10.9.1 . O consequente enredamento nos mecanismos globais de curadoria dos museus, tornados pontos de cultura local e logomarcas de qualidade artística, padronizou os programas de aparelhamento sensível. Alguns aspectos visíveis deste padrão são: 10.9.1 .1 . A administração de comportamento social, através tanto da vigilância de conduta do público quanto de visitas guiadas que criam uma regra tácita de contemplação reverente (proibição da dança em museus e de aproximação dos animais em zoológicos). 10.9.1 .1 .2 . A imposição de bem-estar psicológico através de alcançar-se um relacionamento significante entre humano e obra (aqui os animais tomam o valor de um performer). O contato protegido pode colocar algumas restrições ao contato físico, mas remove a barreira de dominação sustentada ao estabelecer um sistema de treinamento semiótico à política gerencial que provém um estilo flexível de reforço positivo das obras e gestos condizentes com a intencionalidade subjetiva da curadoria. Um dos maiores benefícios de um ambiente de reforço positivo, é a liberdade que ela proporciona ao público de experimentar com uma ampla gama de respostas comportamentais, pois não há consequências negativas para a experimentação. 10.9.1 .1 .3. O desenvolvimento continuado das redes de produção da logomarca (artistas, curadores, críticos, guias, monitores, etc.), bem como das guias de produção da ideologia da instituição, são imprescindíveis para a manutenção de um contato protegido. Não basta que a equipe faça uso do reforço positivo de ações desejadas efetivamente, mas também que eles sejam solucionadores de problemas qualificados e cuidadores do público , que compreendem seus objetos e possam administrar o espectro inteiro do comportamento artístico. Como os mahout são curandeiros de elefantes e conversam com estes, as equipes de um museu devem dialogar com a arte e propiciar uma vivência artística aos seus visitantes. 10.9.2 . A cultura zoológica das biopotências não se percebe mais como uma cultura do aprendizado e do acúmulo, como no caso das culturas marfinistas registradas nos relatos de historiadores e etnógrafos, talvez porque o conhecimento já se mostra sistematizado e os limites da matéria prima se mostram claramente. Parece, em vez disso, uma cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento. Os elefantes de zoológico não devem saber da vivência dos elefantes selvagens nem das torturas empreendidas sobre seus ancestrais e irmãos, mas executar tarefas de cognição para melhorar seu entrosamento com seus cornacas. Não é assim que atua também grande parte da arte dita ‘aceitável’ ao esquecer a história da arte e seu impulso instintivo à exceção cultural da reivindicação social mesmo que esta soe religiosa?
10.9.2 .1 . Topologias Elefantes: Relacionar a topologia de um gesto poético com os sistemas dinâmicos de infralógica de sua execução é criar a possibilidade de usar uma forma para ajudar a visualizar toda a gama de comportamentos do sistema poético para além da mercantilização da arte. Um elefante pode ser desenhado com apenas um traçado do pincel, mas ainda é mais complexo que todo este nosso empenho. Os órgãos de um elefante orbitando o planeta constituído da alimentação que lhes foi necessária no tempo de uma vida. Qualquer sistema pode ter comportamentos estáveis e instáveis ao mesmo tempo, nunca conhecemos realmente os parâmetros. O sistema poético se mantém estável em sua irregularidade específica atual diante de pequenas insurgências por uma modificação nos fluxos de energia produtiva. Podemos adicionar ruído ao sistema subjetivante capital, sacudi-lo, agitá-lo, interferir em seu movimento, mas quando tudo se acalma, quando as interferências passageiras desaparecem como ecos num abismo, o sistema volta ao mesmo padrão singular de irregularidades de antes. O sistema das artes é localmente imprevisível, mas globalmente estável. 10.9.2 .2 . Ecologias Elefantes: Biólogos com inclinações matemáticas no século XX, criaram uma disciplina, a ecologia que deixou de lado o barulho e a cor da vida real e tratou as populações como sistemas dinâmicos. Félix Guattari ampliou este modo de conhecimento através da expansão caosmótica de três ecologias (estudos das ressonâncias): a física, a psíquica e a política. Como podemos pensar a complexidade das relações das populações de obras artísticas nestes três campos em que atuam? Assim como a biologia populacional aprendeu muito com a história da vida, com a interação dos predadores e suas presas, com a maneira pela qual a modificação na densidade populacional de um país afeta a difusão de uma doença; como a ecologia subjetiva pode perceber o estado atual da arte a partir do parasitismo subjetivo da propaganda, da diminuição de produção poética espontânea, pela disseminação memética?
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10.9.3. Do zoológico ao santuário: Se existe uma demanda para as visitas a museus e parques, onde o público sente que tem um contato com a natureza (humana e do mundo), é preciso proporcionar-lhes um contato verdadeiro, não apenas superficialmente estético. Os profissionais que intermediam este contato devem se preparar para ajudar as pessoas a encontrar aquilo que não estão procurando. O atual contato com a natureza e com a arte é algo novo, diferente do cotidiano da maioria, e requer a ruptura de barreiras de condicionamento sensível. Requer novos relacionamentos, o que também inclui surpresas, sustos, a superação do medo e o convívio com o desconforto. Não só o desconforto físico, do cansaço, das variações imprevistas de umidade, do peso, da chuva, dos insetos. Mas o desconforto mental e afetivo de entrar em contato com o desconhecido, que pode desestabilizar as zonas adormecidas e seguras daquilo que já se sabe. Por causa desse desconforto é que os visitantes devem ser estimulados (reforço positivo), acompanhados (planejamento cartográfico) e acolhidos por educadores-organizadores das visitas (monitores-performers-criadores). 10.9.3.1 . O que não podemos mais é ao tratar museus como zoológicos, nos esquecer as largas lutas pela modificação destes últimos em santuários animais. Onde em lugar de privilegiar a exposição de seres tornados objetos de consumo, se tenta manter a qualidade de vida destes. Tal aspecto remonta a uma revalorização daquilo que Walter Benjamin chama de aura da obra. Quando as pessoas buscam o contato com a natureza e com a arte, estão buscando maior contato consigo mesmas. Reconectar-se com o mundo em sua inteireza, e não somente um recorte de suas positividades, se mostra necessário para a compreensão de uma obra como intervenção em um ecossistema artístico (gesamtkunstwelt). 10.9.3.2 . Alguns princípios que regem o ecossistema artístico são: há interdependência entre todas os elementos, há fluxo de comunicação entre os elementos de um mesmo nível de organização (de um sistema de arte, por exemplo, criação, produção, mediação, administração) e entre os seus diversos níveis de organização, os elementos são complementares e a competição predatória é desvalorizada socialmente em prol da interação, os elementos são flexíveis dentro dos seus limites de adaptação às mudanças e tendem à diversidade. 10.9.3.2 .1 . Quanto maior a diversidade maior a complementaridade, a interdependência, a capacidade de adaptação e a complexidade dos fluxos entre os diferentes ciclos. Os atores numa heterotopia neural (interatores da arte) estão envolvidos num jogo por prêmios diversos, alguns dos quais somente o trabalho em equipe permite a vitória. A vitória de um não implica necessariamente na derrota de outros. As utilidades não precisam ser comensuradas ou transferíveis. O acervo de um museu é um trompe l’oeil temporal.
10.9.3.2 .2 . Ao invés de lidar com apenas uma competição estática com resultados possíveis bem delineados, nos vemos capazes de manusear uma recorrência contínua, um fluxo, de situações chamando seus participantes (curadores, artistas, público) a tomarem decisões sob a luz de suas preferências, capacidades e atitudes. Assim se estrutura a cultura de editais, chamamentos de trabalhos, bolsas, residências artísticas, etc. 10.9.3.3. Tal eco-cultura tem demandado, para sua existência, a projeção abstrata interativa prévia. O projeto foca não na racionalidade teórica da ação mas na assunção dos limites de suas regras levadas a cabo (imperativo artístico) na prática. Nesta visão, a realidade social é vista como construída em interações. As apostas do sistema artístico (mais-valia cultural das obras de arte) se depositam naquelas coisas que só seus participantes podem estender ou conter: confirmação de uma identidade proferida, legitimidade de um curso de ações proposto, submissão ao desejo de outros, e assim por diante. Aqui vislumbramos também a impotência do sistema da arte de resistir à cooptação desejante. 10.9.3.3.1 . Que artista terá a sorte de projetar sua obra de encontro ao que o julgador quer ler e vivenciar? Talvez aqui possamos compreender a necessidade de convivência com uma obra, o micropoder sancionando normas universais e o nepotismo nas escolha curatoriais. 10.9.3.3.2 . Termos usados para denotar este processo são interação estratégica, administração de impressões, a negociação das identidades, mídias táticas, dispositivos de controle, manobras interventivas, estratagemas de produção. As elaborações hipotéticas construídas dentro da lógica fechada do modelo da burocracia institucionalizada cerceiam a prática e da incerteza do fazer artístico, e as pressuposições racionalistas implicadas no pensamento matemático aplicado aos campos da estética relacional não geram um foco na conduta dos (assim reduzidos) pretendentes a artistas em situações nas quais a realização de suas intenções (tornadas pretensões) depende de que eles levem em conta as intenções e condutas dos outros envolvidos no sistema geral das redes de produção da subjetividade ao qual está submetida a arte culturada. 10.9.3.4 . Imaginemos as relações entre um artista e um curador através de um projeto para um edital ou o diálogo de um visitante com um obra em um museu ou ainda a conversa que um crítico empreende com outro através de um texto para a revista de um polo de museus. Em termos formais, como elas se dividem e que tipo de arte relacional (ou arte do diálogo) elas socializam? 10.9.3.4 .1 . Conversação natural espontânea. O equivalente na arte é o da arte folclórica (como nos primeiros graffitis desta explosão da arte urbana, por exemplo), na qual uma dança ou balada é composta com completa espontaneidade e uma consciência impessoal. A contrapartida social é uma contabilização da interação de um elemento que não estava sendo teoricamente conscientizado pela rede de cognição (o graffiti, neste exemplo). É claro que isto abre campo para incontáveis clamados de inconsciência quanto a mais pura inocência com relação a uma “cultura ancestral” esquecida. Aqui, os programas públicos e privados parecem ter feito um pleno mapeamento museográfico durante a década iniciada em 1990.
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10.9.3.4 .2 . Fazendo conversação, dizendo as coisas certas nos tópicos aceitáveis. O equivalente na arte é a obra conscientemente, mas não auto-conscientemente, composta dentro de uma tradição aceita (a onda de graffitis de galerias, por exemplo) por profissionais competentes. A contrapartida social é um estudo estatístico sobre a produção simbólica e a ampliação de público dos espaços de exposição e suas logomarcas pela cooptação de um modo de vida (o graffiti e o hip-hop neste exemplo), que não produz nenhuma inovação metodológica ou teórica. 10.9.3.4 .3. Estar ciente da artificialidade de fingir conversar naturalmente. Um artista frustrado pela sua consciência da artificialidade da arte enquanto projeto (Banksy, por exemplo) está em uma posição similar, assim como o projeto cauteloso de que suas análises descritivas nunca poderão capturar a natureza da obra em pesquisa enquanto experiência puramente experimentável. O caminho fora deste impasse , experienciado por diversos artistas de espírito e ainda outros medíocres em situações extremas, é o de varrer as convenções e expressar seus sentimentos diretamente. O equivalente na arte é o Sturm und Drang do gênio. A contrapartida social é a especulação de possibilidades hipotéticas radicalmente originais a despeito da falta de dados ou da hostilidade da opinião convencional cristalizada.
10.9.4 .4 .4 . Mas o artista está numa posição cativa (o elefante grafitado na exposição de arte) desde que ele está possuído pelo fervor criativo que o impede de situar-se sob o controle de sua obra pelas regras linguísticas vigentes e pela impossibilidade de retomar sua inocência analfabeta. Para recuperar sua liberdade ele precisa impor sobre sua inspiração a auto-limitação da ironia. Jogando a artificialidade dos dados sociológicos contra a artificialidade das mitologias auto-referentes da arte podemos liberar o crítico analista e permitir que ele compreenda a situação em muitos níveis ao mesmo tempo. Tal perspectiva, visível nos artistas deste movimento que chamamos ab_ismo, une ambas subjetividade e objetividade, permitindo-nos preencher as demandas de conhecimentos causais e interpretativos através de suas intervenções ao mesmo tempo éticas e estéticas, num só gesto completamente instintivos e conscientes. Passando assim a gestalt elefante-marfim da criação inconsciente à conscienciosidade criativa, da valoração à geratividade.
10.9.5. Museus da rua: No século passado, período do capitalismo liberal, o museu procurava formar um tipo de humano que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas funções sociais: era o museu liberal humanista e mandarinesco. Se a geração artística de Damien Hirst e Jeff Koons fez arte com truques mercadológicos, Banksy (de quem Hirch é um ardente colecionador) levou a atitude do truque para as ruas. Hoje, ele forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas de criatividade o despotismo do capital cognitivo; nos seus institutos de criatividade e produção criam os paradigmas da propaganda porvir pronta a deformar dados econômicos e estéticos em detrimento dos assalariados; nas suas residências artísticas e editais forma os aplicadores da legislação de exceção; nas escolas de arte-terapia, aqueles que irão converter a arte numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Banksy está entre os primeiros artistas a reconhecerem que não precisavam de um agente ou galerista (e agora tem os dois) - tudo o que precisava era de uma parede e um sítio na internet para passar sua mensagem. A maioria das mensagens da geração Saatchi têm a profundidade e o rigor de um slogan de uma camiseta; um gosto pela ironia rasa que se resume a pequenas sacadinhas humorísticas. 10.9.5.1 . Ecomuseus: Por outro lado deste mesmo momento da produção do status quo artístico, temos Mathew Barney escalando a ordem simbólica do Guggenheim meramente pelo feito atlético disto. Em suma, trata-se de “um complô de belas almas” recheadas de títulos acadêmicos e máfias nepóticas, de um novo sacerdotismo, da produção de um saber sensível a serviço do poder de controle, de todas as espécies. A ampla gama de simbologia (dita sagrada ou esotérica) na obra de Barney fecha o campo do gesto poético-ritual no ensimesmamento das redes de poder museográficas.
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10.9.5.1 .1 . Na instância da museografia e museologia, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da arte e sua educação, confeccionar reformas estruturais que na realidade são verdadeiras “restaurações”. Formando o curador como a um policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida da forma ligada ao sucesso de mercado, o conformismo ante o saber curatorial. A pretensa criação da subjetividade é substituída pelo controle sobre a parca subjetivação produzida pelos nossos artistas, o controle do meio transforma-se em fim, e o museu cada vez mais parece um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam da classe alta e média (com algumas exceções estrategicamente escolhidas), enquanto curadores ou gênios, e os espectadores da mesma extração social, como “herdeiros” potenciais do poder através de uma sensibilidade controlada, um saber minguado, atestado por diplomas de universidades de arte. 10.9.5.2 . Saída pela loja de ‘presentes’: O museu se mantém através do poder exercido pela seleção dos artistas e pelos mecanismos de nomeação de curadores. Confinada às galerias, os muros de Banksy perdem a energia frente o mais despretensioso pixo (Robbo fez questão de ressaltar isto). Uma estátua com uma lata de tinta marfim na cabeça pode ser intrigante na rua, mas no museu é só mais uma peça. No museu, curadores e artistas devem cumprir o papel de produtores e reprodutores da ideologia dominante, chefes de disciplina dos espectadores. Cabe à sua função, acima de tudo, inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade, através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra para um sistema fundado na desigualdade social, a qual ilude legitimar-se através da desigualdade de mérito estético; enfim, onde o museu “escolhe” pedagogicamente os “escolhidos” socialmente. A performance de Banksy não existir enquanto artista a ser nomeado demarca a nulidade do papel do artista mesmo na cultura da arte, o artista não precisa existir desde que a curadoria saiba como propor tais obras como relevantes para a manutenção do sistema da arte.
10.9.5.3. O museu em crise: Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise do museu é que atuamos detectando as contradições profundas do social, refletidas no modo museológico das experiências estéticas. O museu não é algo tão essencial como a arte; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia da estética neutra, científica. A neutralidade cultural e o mito de um saber sensorial “objetivo” sobre a sublimação sensível, acima das contradições sociais. 10.9.5.4 . O museu da crise: A museologia dominante reproduz-se através dos “cursos críticos”, em que o juízo curatorial aparece hegemônico ante os dominados: os pretendentes ao poder curatorial e administrativo sobre a arte (incluindo muitos artistas que procuram liberar-se do controle que suas obras sofrem). Isso se realiza através de um processo que chamarei de “contaminação” e de produção da crise (escassez de resistência). O curso catedrático e dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a crítica ideológica é feita nos chamados “cursos críticos”, que desempenham a função de um tranquilizante no meio universitário. 10.9.5.4 .1 . Essa apropriação da crítica pela curadoria, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa museológico tradicional e o controle da docilidade do artista como alvos básicos, constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinquência museológica, daqueles que trocam o poder da arte pela arte do poder. Por isso é necessário realizar a crítica da crítica-crítica, questionar a apropriação da crítica pelos museus. É possível pensar uma crítica de arte independente? Nas ciências humanas, as pesquisas em zoologia paquiderme, por exemplo, estão impregnadas de ideologia. Como repensar o “sentir institucionalizado”, do “sentir burocratizado” como único “legítimo”. 10.9.5.5. A apropriação museológica atual da arte (e da escuta pela música de entretenimento e da pesquisa aurática à legislação da história da instituição musical) é a concepção capitalista de saber e sensibilidade, onde estes se constituem em capital e tomam forma nos hábitos de visitação da arte no museu. O museu reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na arte, que coloca em relação artistas e espectadores. O artista possui um saber inacabado e o espectador uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta.
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10.9.5.5.1 . A relação de saber não institui a diferença entre artista e espectador, esta opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames, esse batismo burocrático do saber. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de exclusão que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela “exclui” o candidato. Para o artista, há o currículo visível. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia museológica reproduz as curadorias. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos artistas, já constituem um sistema ideológico. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder. 10.9.5.6. Zoofonia: Qualquer caçada com chamariz se expia com uma oferenda que nada mais é do que um conto-chamariz. Do mesmo modo que é preciso limpar com cantos e jejuns as armas infectadas dos espíritos, dos corpos que elas executaram no sangue e na morte. A palavra harmonia em grego significa a maneira de amarrar as cordas para esticá-las. O primeiro nome da música na Grécia arcaica (sophia) designava a habilidade em construir navios (argós). A música não é um canto específico da espécie Homo. O canto específico das sociedades humanas é a língua. A música é uma imitação das linguagens ensinadas pelas presas por ocasião da reprodução do canto das presas no momento de sua reprodução. Mahout que tira do xamã o animal ausente que o corpo mima e que a pele e a máscara mostram.
10.9.5.6.1 . A música é o chamariz da morte. Atrai as vozes na semelhança que as perde. As grandes cidades das eras antigas não retornaram ao estado de florestas que elas desmataram. Elas não retornarão a elas. As civilizações dão lugar, na melhor das hipóteses, às ruínas. Na pior, a desertos irreversíveis. Fazemos parte daquilo que perdemos. 10.9.5.7. Zoologia e zoofobia se retroalimentam, ainda haveremos de criar de canais de participação real da comunidade local de artistas, professores, estudantes e funcionários na museologia, que somem processos de inclusão para além da burocracia institucional. Como seria um zoológico liberal administrado por elefantes? A autogestão estética teria o mérito de devolver ao museu um sentido de existência, qual seja: a definição de uma experiência artística fundadas numa motivação participativa e não na decoração de paredes com obras dentro de um cânone imposto, repetidos sazonalmente em nome da nova moda estética.
10.9.5.8. Campos de Concentração da Escuta: Se o simbolismo é a base da produção subjetiva do nazismo, a música corroborou diretamente na organização dos campos de concentração, participando da fome, da dor, da humilhação e da morte. O nazismo é a ópera no seu limite: propaganda ideológica e música. René Coudy nos lembra que pela primeira vez há música por todas as partes do globo terrestre, mesmo nos campos da morte. Era ao som das mais belas músicas que os os corpos destruídos entravam nas câmaras de gás. A música precipitava o fim, arrastava ao fundo. 10.9.5.8.0. Como a música toma parte na tortura? A música viola o corpo. Põe de pé, fascina as vibrações corporais. A música, sendo um poder, se associa por esse fato a todo outro poder. Ela é por essência não igualitária. Audição e obediência estão ligadas. Em toda parte que existe um chefe e executante, existe música. Disciplina e música, guerra e dissonância, hierarquia social e harmonia. Cadência e compasso. A marcha é cadenciada, os golpes são cadenciados, os cumprimentos são rítmicos.
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10.10. Adestramentos Elefantes: O reluzir dos espetáculos circenses contrasta com o que fazem os circos (e museu e casa de ópera o são): tornar miserável a vida desses animais. Um histórico da vida dos ‘grandes gênios’, comprova que grande parte destes também viveu em martírio perante suas sociedades. Por natureza, elefantes não montam em skates, nem saltam através de anéis de fogo. Se o fazem, é a poder de chicotes, de agulhas que dão choques e de outras ferramentas usadas para forçá-los a executar tais proezas. A arte em nossa vida é um símbolo de nossa degenerescência, os teatros são uma vergonha para aqueles que os constroem e para aqueles que os frequentam. Uma singular perturbação do juízo, uma droga consentida, uma avidez mal disfarçada de prazer, de diversão a todo custo para os espectadores. Preconceitos pedantes, fatuidade crua e seriedade forçada, frivolidade e falta de conhecimento nos executores. Brutal avidez de lucros nos exploradores. A nulidade de uma sociedade que só pensa no outro quando este lhe é útil ou perigoso. 10.10.0. Elefantes de Circo: Em todos os tempos os homens tiveram uma intuição de que o espírito humano pode ser manipulado. Muitos estratagemas bem elaborados foram preparados para atingir-se esse propósito. Rituais de êxtases, máscaras aterradoras, ruídos fortes, cantos alucinados, tudo foi usado para compelir a multidão a aceitar as crenças de seus chefes. Mesmo que um homem comum resista, a princípio, a um xamã cruel, o ritual hipnotizador que eles usam acabam por aquebrantar a vontade. Métodos mais dolorosos também não são novos. Quando estudamos os velhos relatórios da Inquisição, ou alguns dos muitos julgamentos de feiticeiras, tanto na Europa quanto na América, muita coisa podemos encontrar de semelhante às formas de captura e controle que sofreram os elefantes nas mãos de cornacas. 10.10.0.1 . Catherine Wheel: A fim de compreender melhor a tortura mental moderna, devemos constantemente ter em vista que, desde tempos remotos, o martírio do corpo e o cavalete de tortura nunca foram usados só para infligir dor à vítima. Embora não tenham expressado seu pensamento em termos sofisticados, os juízes e carrascos medievais tinham (como os controladores de elefantes em circos), não obstante, consciência de que há uma relação espiritual peculiar e uma intercomunicação mental entre a vítima e o resto da comunidade. Pergunte-se de onde vêm os sofrimentos das pinturas de Andrei Rublev e da Música de Bach.
10.10.0.2 . Muitas torturas dolorosas e muitos enforcamentos devem ser aplicados como demonstrações públicas. Ouça o canto suspenso e a paixão de São Lucas em Hiroshima. Depois de sofrer dores intensíssimas, o elefante não apenas executa o show como também confessa a força do ‘engenho’ e da ‘arte’, assim como as bruxas confessavam as repugnantes perversões sexuais praticadas com o demo, passando mesmo a acreditar nestas culpas inventadas e desejando pela tortura. Todo ritual de inquirição (e um processo de edital é um) leva o inquirido a aceitar as fantasias de seus juízes. Os juízes e carrascos sabem, que os processos de feitiçaria não visavam apenas a torturar as feiticeiras, bem como o show dos elefantes no circo não visam fazer crer que estes decidiram-se por atuar de forma antropomórfica, mas ainda mais, visam a torturar os espectadores que, ainda que inconscientemente, se identificavam com as vítimas. Esta é, sem dúvida, uma das razões de serem os enforcamentos e execuções efetuados em praça pública, constituindo verdadeiros espetáculos. 10.10.0.2 .1 . Talvez valha ressaltar aqui, a importância de uma mudança da experiência espetacular da arte, de produto da tortura subjetiva de formatação da intuição do artista às regras burocráticas disfarçadas como verdade da fruição artística para um processo de modificação subjetiva coletiva. 10.10.1 . Menticídio: Personalidades fortes podem tolerar agonia física (como escutas fortes se prostram perante a música náusea); não raro ela serve até para estimular pertinaz resistência. Qualquer que seja a constituição da vítima, a tortura física conduz, por fim, a uma perda protetora de consciência. Mas resistir a uma tortura mental que leva a uma sub-reptícia ruína do espírito exige personalidade ainda mais forte. Dominar um elefante é uma demonstração de ambos os tipos de torturas usados em conjunção perversa, e nisto um elefante branco é de fato uma demonstração de divindade e bom augúrio ao poder régio. O menticídio é um sistema organizado de intervenção psicológica e de perversão judicial, como o mercado da arte e o treinamento de elefantes, por meio do qual pessoas com poder social podem estampar suas próprias ideias oportunistas na mente daqueles de que planeja utilizar-se e que quer destruir cooptando, incluir pela marginalização. Sua logomarca aqui.
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10.10.1 .1 . “Se eu não faço sucesso, é porque não sou um bom artista.” A estética da gambiarra, do ab_ismo, ressalta este tipo de confissão que é utilizada como propaganda para o próprio sistema da arte enquanto produto e o mercado enquanto único processo artístico. Os elefantes anões do Egito antigo foram dizimados por sua doçura e fragilidade. As vítimas (neste caso o público e os artistas), aterrorizadas com o medo da não subsistência se vêem finalmente compelidas a exprimir conformidade completa com os desejos dos tiranos.
10.10.1 .2 . Resultado importante desse procedimento é a grande confusão que ele cria na mente de cada espectador. Por fim ninguém mais sabe como distinguir a verdade da mentira. O potentado totalitário do poder aquisitivo, para alquebrar a mente humana, precisa primeiro espalhar a desordem mental e estética e a confusão da palavra pela opinião pública, porque ambas deterioram o moral dos criadores de beleza real e dos perseguidores da verdade e da bondade – além de advertir aos que ainda sonhem com tais coisas, dos perigos de fazê-lo. Daí por diante ele pode começar a construir seu sistema de conformismo. Primeiro o elefante deve se esquecer da selva, e acreditar que o circo é o único espaço, e eterno. 10.10.1 .3. Reflexo condicionado: Se você ler este texto, compreenderá melhor a obra. Se o elefante subir na bola, não apanha e talvez ganhe amendoim. Se, então a lógica está atrelada a uma forma da tortura. Tal formatação, ou ajuste à limitações presentes, forjou a espécie humana, ligando símbolos e os sinais da vida às reações do corpo. Criamos uma relação entre as ocorrências simultaneamente repetidas e o corpo reage às conexões que a mente estabelece. Quanto maior o número de respostas, mais complexas as amarras do condicionamento. 10.10.1 .3.1 . Quanto mais respostas complexas aprendidas – também chamadas padrões – maior o número de reflexos condicionados desenvolvidos. Os humanos, porque tem maior capacidade de aprender do que qualquer outro animal, tem maior capacidade de para esse complicado condicionamento. As fórmulas musicais, o acorde de Tristão e sua sexta franca, são uma demonstração sintética deste princípio na escuta disciplinar.
10.10.1 .3.2 . Neste contexto, que tipo de reflexos condicionados são gerados pela proposição estrutural do museu e da casa de ópera? Todos os reflexos condicionados são ajustamentos temporários e involuntários a pressões que criam uma suposta conexão entre estímulos que podem não ter de fato qualquer relação. A obra de arte ao lado da loja de souvenirs. O segurança na lateral do palco de ópera. Os estímulos são aos poucos esquecidos, mas aí o público já não interveio na ópera e carrega consigo uma bela estatueta de um elefante de cerâmica. As reações dos espectadores em relação a uma obra de arte são uma reação psicossomática, por simpatia, da obra em relação ao seu meio através da percepção que este teve da harmonia contextual em sua escuta institucional. 10.10.1 .3.3. Pagar para ver arte condiciona o espectador a relacionar-se com ela como dono, pagante, mestre. Assim como quem paga por ensino tende a desrespeitar o mediador de ensino. Temos que ter em mente que somos elefantes de circo, que o condicionamento se processa em toda nossa vida de maneiras as mais disfarçadas e as mais evidentes. Os modos alimentares a que fomos sujeitos desde infância, a aspereza ou a musicalidade das palavras que nos são ditas, o senso de precipitação de nosso ambiente, o ruído de nossas máquinas, a competitividade, os museus onde enquadraram nossos heróis. Todos moldam nosso comportamento. 10.10.1 .4 . Isolamento e outros fatores de condicionamento. Pavlov fez uma importante descoberta: O reflexo condicionado pode ser mais facilmente desenvolvido num laboratório silencioso, com um mínimo de estímulos perturbadores, como num museu. Todo mahout sabe disso por experiência própria, para domar elefantes selvagens são precisos o isolamento e a paciente repetição de estímulos. Pavlov formulou suas descobertas numa regra geral, segundo a qual a rapidez da aprendizagem está diretamente relacionada com a quietude e o isolamento. Os totalitários seguiram essa regra, o cubículo das empresas, a proibição do nomadismo pelas fronteiras e a separação das pessoas que trabalham cada qual em seu computador segue o mesmo princípio. O museu está entre o campo de concentração e a sala de interrogatório.
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10.10.1.5. Outra descoberta de Pavlov indica que alguns animais aprendem mais rapidamente se forem premiados (por afeição, por alimento, por afagos) cada vez que dava a resposta correta, enquanto que outros aprendem mais depressa quando o castigo por não aprender é um estímulo doloroso. Em termos elefantinos, ambos os tipos de condicionamento são realizados pelas manadas com os filhotes. Antes de desempenhar seu encargo com eficiência, o cornaca deve descobrir a que categoria de vítima seu elefante pertence. Há também, os indivíduos que não cedem nem aos desejos nem à dor, mas são raros estes com predisposição natural e que desde cedo recebem um condicionamento constante ao descondicionamento. 10.10.1.5.1 . A linguagem é um reflexo condicionado, e que a vida dos humanos está dominada pelos símbolos da linguagem. O ser humano aprende a pensar por meio de palavras e através das imagens verbais que lhes são dadas, as quais condicionam gradualmente toda sua visão da vida e do mundo. As linguagens, e a arte serve para sempre nos lembrar disto, são sempre variáveis e não-objetivas. O controle dos meios de propagação das linguagens domina a subjetivação. A propaganda trabalha subliminarmente vendendo-se através da mercantilização da arte. Opiniões pré-fabricadas de conceitos (preconceitos) podem ser distribuídas dia a dia através da imprensa até que implantes nos sentidos um padrão rígido de relacionamento com o artear (gesto artístico). 10.10.1 .6. Notas de desistência sobre este projeto. Este é mais um tutorial de como manter seu próprio museu da ópera, seu circo de elefantes mortos, suas velhas ilusões de sublimação do espírito e de seu papel na história da arte. O expediente pavloviano é este: repita mecanicamente seus temas e sugestões, diminua a oportunidade de se divulgarem dissenção e oposição. Não é assim que funciona toda obra de arte, ensimesmada em seu processo? Fórmula simples do condicionamento de si. Vivemos num tempo de auto-condicionamento e este é o arquétipo mantido na produção de criatividade contemporânea. As amantes vão te colocar no portfólio delas como uma obra relacional. Ideal das máquinas de relações públicas, propaganda de nossas próprias subjetividades. 10.10.1 .6.1 . “Que é que os outros pensam?” e assim se gera o delírio geral: os artistas são estimulados a pensar como os outros pensam na economia subjetiva e assim, a estética converte-se em preconceito de massa entre o entretenimento que recompensa com prazeres e a revolução que é punida com violência. Através do barulho diário da propaganda, sustentado por vigorosas insinuações verbico-visuais, as pessoas podem cada vez mais serem forçadas a se identificarem com o poderoso barulhento. O elefante é induzido lentamente a se sentir consorte do cornaca.
10.10.1 .6.2 . A necessidade de sucumbir. O elefante pensa consigo: “Se meu cornaca não se aperceber de mim, ele me deixará em paz.” Contudo, esse verdadeiro desejo de anonimato, essa impressão de perda da própria personalidade, de ser inútil, desprezado e desnecessário, tem também como resultado a depressão e a apatia. A necessidade que tem de ser um indivíduo nunca pode ser completamente destruída. 10.10.1 .7. A manada ausente: Não se tem dado atenção suficiente à relação da arte com a solidão, bem como às consequências do isolamento forçado de elefantes em cativeiro. Quando são removidos os estímulos sensoriais da vida cotidiana, como num museu (ou zoológico no caso elefantino), toda a personalidade pode mudar. O intercâmbio social da obra (proibido pelo silêncio do museu), o nosso contínuo contato com colegas (retirados com o cárcere privado), o trabalho, os problemas da comunidade, vozes, trânsito, aqueles a quem amamos e também os de que não gostamos – tudo isso é alimento diário para os nossos sentidos. Escolhemos o que julgamos interessante, rejeitamos o que não queremos absorver. Precisamos desses estímulos para manter-nos alerta. Hora após hora, a realidade, cooperando com nossas memórias, integra milhões de fatos nas nossas vidas, por repeti-los frequentemente. Tão logo ficamos a sós, apartados do mundo e dos informes, num museu por exemplo, sobre o que se passa no cotidiano, nossa atividade mental é substituída por processos bastante diferentes. Angústias e fantasias de há muito reprimidas vêm lá de dentro a invadir-nos a mente. Nosso mundo de fantasia começa a crescer e a assumir proporções gigantescas. Este afastamento da realidade é usado pela museografia, das mais distintas maneiras. Mas seja qual ela, acaba por ressaltar o individualismo solipsista egoico como cerne da experiência artística. A arte tornada utopia do vazio, como os elefantes no deserto de Dalí.
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10.10.1 .8. A relação entre elefantes e cornacas. O elefante encarcerado, está sujeito a profundas modificações mentais. Seu cornaca torna-se cada vez mais sua única fonte de contato com um mínimo de comunicação, de pressuposto de realidade fornecida pelas relações semânticas. Ainda que não seja a sua própria linguagem, o cornaca é alguém que lhe dirige a fala. Não se estranhe que desenvolvam os elefantes gradualmente, em relação ao cornaca, uma peculiar atitude de submissão. Sofrem os efeitos não só de estarem apartados de contato social com seus próximos, mas também em profunda privação sexual. São tomados por instintos de aceitar o cornaca como matriarca, patriarca e consorte para ser mais exato. O cornaca pode ser cruel e bestial, mas o próprio fato de que põe reparo mínimo à existência do elefante, dá ao elefante a impressão de ter recebido uma pontinha de afeição. Raríssimos os casos de elefantes que conseguiram não ceder. A relação entre plateia e obra, entre a obra e o artista, entre artistas e curadores, entre curadores e administradores se dá nestes meandros. 10.10.1 .9. A arte como exploração da culpa inconsciente. O método da exploração sistemática da culpa inconsciente, a fim de criar submissão, é vislumbrado em grande parte das obras contemporâneas de arte afetiva conceitual. Estas trabalham sob o impulso inconsciente de confissão de tensões inconscientes das vidas pessoais dos artistas e resultam numa necessidade de punição sobre o espectador. “Olhe só o que você fez!” A arte museografada como pedagogia não só da sensibilidade, mas também da afetividade social, doutrinamento da solidão. Ao mesmo tempo, a profunda necessidade de afeição faz com que muitos artistas vivam à espera de uma só coisa: uma palavra amiga de curadores sobre suas obras. 10.10.1 .9.1 . A lei da sobrevivência contra a dádiva da afeição. Ninguém pode ser cooptado, se tornar um vira casaca, sem que se justifique aos seus próprios olhos. Quando temos de escolher entre fome, filas de desempregados, ou submissão temporária às ilusões do poderoso, nossos mecanismos de autopreservação funcionam como reflexos instintivos. Ajudam-nos a encontrar milhares de justificações e desculpas para ceder à pressão psicológica. De maneira semelhante, inúmeros artistas por não conseguirem atuar como criadores em museus se vêem agindo como doutrinadores da ideologia museográfica como monitores de exposição.
10.10.1 .9.2 . Existe alguma possibilidade ética que não acene ao totalitarismo? Museus e casas de ópera se somam a governos totalitários e religiões ortodoxas na insistência de uma rígida atitude que proíbe a investigação de premissas básicas. Um misto de medo de mudanças que possibilitariam uma horizontalização das hierarquias, medo de mudanças de hábitos estéticos de fruição de seus cotidianos, medo da liberdade, o que do ponto de vista de Winnicott, pode ser relacionado com o medo da fatalidade da morte. A negação da liberdade e da igualdade humana eleva o senhor autoritário (cornaca, colecionador de arte, curador, diretor de museu, artista genial, etc.) acima de seus mortais semelhantes. Seu poder e onipotência temporários dão-lhe a ilusão de eternidade. Vista desta maneira, a história da arte é uma história do desejo de eternidade.
10.10.1 .9.3.O museu nega a morte, a existência efêmera do presente cotidiano e do futuro toma força por empréstimo (vanguarda). Tem que inventar e formular uma verdade final estética e um dogma canônico protetor para justificar sua batalha contra a mortalidade e a temporalidade do gesto poético. Daí por diante, essa nova convicção fundamental e fundante tem que ser incutida na sensibilidade de seus artistas adeptos e visitantes. O que acontece no recesso da psique humana, quando sujeita a severas circunstâncias de assédio mental e físico (ausência de local para sentar, por exemplo), como num museu ou na escrita de um projeto artístico para ser aprovado? Nas últimas fases do menticídio, a submissão através através da qual as vítimas se humilham a si mesmas exerce a função de recurso íntimo defensivo, que, aniquila na imaginação o inquisidor que as controla. Cedendo e sendo ainda mais cruéis com suas próprias subjetividades, o público torna o curador e o artista, o museu e a rede de televisão inúteis e inexistentes para si, revelando a insignificância do regime de controle mental. Em última instância, a ignorância programada o é num gesto de resistência.
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10.10.1 .10. Há um misterioso pacto masoquista entre cornacas e elefantes, bem como entre o artista e o museu, se entreprestam assistência e ambos participam, como colaboradores em um ritual de confissão e difamação de si mesmos. Cooperando, hostilizam os espectadores, os quais com eles se identificam e, consequentemente, se sentem culpados, fracos e submissos. Este projeto pode parecer complicado e confuso e talvez, ainda, em contradição consigo mesmo, mas, na realidade, nos ajuda a compreender o que acontece nos casos de menticídio realizados a partir da arte, seja com elefantes ou com humanos. 10.10.2 . Inventário dos processos implicados no menticídio da arte (tornada entretenimento). Aqui buscamos descrever alguns fatores que levam à submissão e à rendição diante da estratégia de controle dos regimes simbólicos e sensíveis: 10.10.2 .1 . Descondicionamento artificiais. O museu procura enfraquecer o ego do artista, bem como a instituição da história da música faz com a escuta. A museografia destina-se, por excelência, a assumir, na imaginação dos espectadores o caráter de ameaça (bem como o fazem as legislações musicais, seja de pesquisa ou entretenimento). Os inúmeros expedientes de que o museu faz uso incluem: sugestão intimidante de crime (segurança privada), persuasão dramática de narrativa (disposição expográfica), sugestão em massa (saída pela lojinha), humilhação das obras de acordo com o contexto comercial, intrigas, soledade e isolamento do olhar do espectador, interrogação contínua despertando mais e mais um estado de compaixão de si mesmo. Museus são Mela Shikhar. 10.10.2 .2 . Submissão por identificação positiva com a arte. A partir da intermediação do espectador com a arte, o museu se torna presente enquanto espaço sagrado de sua vivência. Na formação de público, isto significa uma espécie de pedágio semiótico que gera impossibilidades de produção artística autônoma que mantém os mitos do gênio e a hierarquia artístico-cultural. Poderíamos comparar este processo com a captura litúrgica e doutrinária das igrejas com relação às experiências de epifania e iluminação através dos ritos de conversão. É importante insistir que a submissão constitui um processo inconsciente e exclusivamente emotivo. 10.10.2 .3. Recondicionamento para uma nova ordem de coisas. O monitoramento de exposição funciona como um método hipnótico de reforço das regras de uso intermediado da arte. O espectador é ‘ajudado’ a racionalizar qualquer sentimento imediato em relação à obra de modo a justificar a presença do museu. O museu oferece-lhe um discurso pronto sobre o que ele experienciou. Esse doutrinamento sistemático daqueles que durante longo tempo se esquivaram do doutrinamento constitui o verdadeiro aspecto político do museu enquanto Estado da Arte.
10.10.2 .4 . Libertação do encantamento museológico. Logo depois que o espectador retorna à atmosfera de liberdade sensorial, o encantamento hipnótico desaparece. E aí a arte se torna um trauma inconsciente. Daí o público busca ou fugir desta estação de doutrinamento e adquire aversão (ou cinismo) em relação à arte, ou passa a almejar tornar-se artista ou colecionador para poder controlar os sentidos alheios. 10.10.3. Humanos Elefantes: No entanto, história, folclore, mitos religiosos e a literatura sempre trataram de desajustados estéticos que alteraram, de um jeito ou de outro, o curso do mundo. Em geral as culturas sempre tiveram enorme ojeriza quanto às singularidades extraordinárias, medo de que se tratassem de maldições, e executavam-nos. Nos casos de sobrevivência, estes eram maltratados por suas variantes anormais. Cultura é a norma-inquisição, arte é excessão-bruxaria. Ocasionalmente um destes desafortunados era levado à corte para entreter os nobres, ao mesmo tempo que para servir de ponto de referência às perseguições subjetivas. Descartes falava do homem sem razão como coxo do pensamento, por exemplo. Baruch de Spinoza é um exemplo de deformidade moral, punida com a perseguição. Tanto o amor à verdade quanto o amor à beleza nos fez cometer injustiças severas com os nossos, de inegável inverdade e feiura que marcam a aberração do espírito lógico-estético. 10.10.3.1 . Aberrações: A revolta com que vemos o anormal, o transformado, o mutilado (os multi lados), é resultado de um longo condicionamento social. A arte do século XX, se debateu contra este preconceito generalizado em todas suas áreas de atuação. Da mesma maneira, o modo como o antropocentrismo cultural trata elefantes e demais espécimes não-humanas é em tudo similar a este estado de exceção de violência gratuita relegada às, assim chamadas, aberrações. 10.10.3.2 . Código de ética freak: Para se protegerem, as comunidades de aberrações têm um código de ética onde “ferir um é ferir a todxs”, código este que acreditamos ser necessário nas relações entre artistas e num âmbito maior entre humanos e outras espécies. Pensemos no desemprego e desamparo que sofreram os freaks com a proibição de seus shows, hoje a questão do biopoder não aparece mais como uma referência fixa. Hoje em dia, os freaks são tratados como doentes e vivem escondidos, mas ao mesmo tempo são glorificados e vendidos.
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10.10.3.3. Teratologia e teatrologia: Este projeto trata da relação entre ópera (tragédia da tragédia) e anomalia, traçando seu histórico social desde a antiguidade e abordando questões como o estigma e a superstição que sempre a permearam. Elege como ponto de encontro entre cena e disfunção, o teatro de feira do século XVIII, onde o espetáculo das anomalias deixa o espaço público da mendicância para tornar-se atração. Traz também um estudo sobre o grotesco, via pela qual as anomalias por vezes ganham status artístico. Aborda os freak shows do século XIX, passando pela Grand Guignol, a performance e pela body art no séc XX, até chegar à intervenção urbana como operação na teatralidade camp do cotidiano. 10.10.3.3. Se a Vênus de Hotentot (ou mulher elefante) foi, por exemplo, seduzida e enganada a entrar sob este jugo, milhares de moças agora produzem grandes glúteos para poder ostentar um lugar de referência limítrofe de existência. A ética freak expandida por toda a sociedade global, junto à democratização dos meios, possibilitou que o entretenimento englobasse a arte e a cultura fosse dominada pela mentalidade camp. Na ilha indonésia de Bali, os ratos que devastam os campos de arroz são capturados em grande número e queimados da mesma forma que os cadáveres são queimados. Mas dois dos ratos capturados são autorizados a viver, e receber um pequeno bolsão de linho branco. O povo então curva-se diante deles como deuses, e deixa-os ir. A partir desta história, Frazer conclui que na religião primitiva é algumas vezes possível que o objeto de desejo possa ser alcançado através do tratamento de um ou dois indivíduos da espécie desagradável com alta distinção ao perseguir o restante com vigor implacável. O artista sustentável é exceção, o louco miserável é a norma cultural.
10.10.4 . Camp é uma estetificação que mede não em termos de beleza, mas do grau de artifício, de estilização. Kitsch e ópera. Uma atitude neutra, desengajada, apolítica, a respeito do conteúdo da obra. Quanto mais estudamos arte, menos nos importamos com a natureza. O camp responde às particularidades marcadamente atenuadas e àquelas fortemente exageradas. A androgenia epicene é uma marca desta sensibilidade que vê tudo sob aspas, não um elefante mas um “elefante”. Perceber algo ou alguém é entender-se representando. É a metáfora da vida enquanto teatro levada às últimas consequências. A caricatura da comicidade, os fantasmas da ópera, as ruínas artificiais, o maneirismo, a falsa inocência alienada que mantém a consciência limpa contrastam com as asserções desta cultura onde um homem ambiciona fazer o que tomaria toda uma geração, uma cultura inteira. Camp é a arte que propõe-se seriamente, mas não pode ser tomada num todo seriamente porque é “demais”, é uma tentativa de fazer algo extraordinário no sentido de glamouroso. Sontag nota a necessidade de tempo, para a limpeza de aspectos importantes e questionamentos contemporâneos da obra para que ela possa adquirir o status de camp. Os artistas que buscam esta frivolidade asséptica, ou são tomados sem querer por ela, almejam uma personalidade rasa onde as obras falam deles. Dentre óperas, por exemplo, La Traviata (que desenvolve um pouquinho as personagens) é menos camp que Il Trovatore (onde não há). 10.10.4 .1 . Normalmente se julga um trabalho de arte por sua seriedade e pela dignidade do que ela alcança. O valorizamos porque sucedeu - em ser o que é e em, presumivelmente, cumprir com as intenções que traz consigo. Assumimos uma relação direta entre intenção e performance, tratamos a arte como um elefante branco a ser adorado e o colocamos no panteão da alta cultura: verdade, beleza e seriedade. Mas outro modo de sensibilidade criativa sobrepõe-se hoje a esta seriedade de avaliação estética do estilo. Satie perante a angústia e à soma de cada vez mais materiais mais irresolutos e violentos à musica no princípio do século XX. Ele se viu solenemente sorrindo a esta arte que para negar os moldes impossibilitava a alegria. Esta obra não é boa porque sucede, mas por outro tipo de verdade sobre a condição humana que deixa a despontar outra forma de sensibilidade ainda informe. Na ópera, o Woyzzeck leva o sistema serial a um limite que abre caminho para os musicais pop da Broadway. O camp, na sua sensibilidade da seriedade-falha e sua teatralização da experiência, nega ambas a harmonia das seriedades tradicionais e os riscos de identificar-se com estados extremos de sensação, foge da moral da antiguidade e da tensão entre moral e da paixão estética. O camp é puramente estético. Um homem-elefante pode ser uma estrela popular de televisão se expôr sua condição com jovialidade e condescendência. A vitória do estilo sobre o conteúdo, do projeto sobre o artista, do texto teatral sobre a companhia de ópera.
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10.10.4 .2 . O ponto central do camp é destronar a seriedade com sua jocosidade. Quando a “sinceridade” não é mais o bastante. A sinceridade pode denotar fraqueza e estreiteza intelectual, dizem. Os métodos usuais de ir além da seriedade ironia, sátira - parecem inadequadas à cultura sobressaturada dos meios nos quais a sensibilidade contemporânea é educada. Desapego e subenvolvimento são as prerrogativas dos dandys da cultura de massa, cultivando contato com o massificado tanto quanto com o único. A postura aristocrática do gosto está fora de moda, pois seu fundo de tática de auto-legitimação de uma classe já foi detectada pelos caçadores de tendências, e tudo o que as instâncias de poder não querem são levantes de novas forças no que eles tratam como um “jogo”. Gays, judeus e negro já tiveram o estigma de aristocracia assimilados a seus campos de atuação social. Hoje o “bom gosto” é visto como uma aberração de sentidos hipertrofiados, de intelectos melancólicos excessivamente preocupados. A cultura camp dissolve a indignação moral subvencionando a brincadeira contínua, alienação marcada pela perseguição às vanguardas e às tradições. 10.10.4 .3. Ab_ismo enquanto transcamp: Imaginemos agora os elefantes, por sua seriedade em relação à sobrevivência, sendo considerados blasés que tentam monopolizar o refinamento do instinto. “Oh! O elefante defecou!” Restringir-se somente às lutas necessárias tira o prazer dos gestos simples, assim como o conhecimento contínuo impede o regozijo do humor, quem se leva a sério demais é retirado do mercado simbólico. A seriedade está para o camp, como o marfim está para o elefante. O sacrifício exagerado é punido com o humor, mas e o excesso de não-sentido a que facilmente grande parte das pessoas recai? A leveza sutil é boa para a digestão da enorme carga de informação com a qual lidamos, mas onde termina esta e começa a superficialidade hedonista? Mesmo o camp falhou em suas enormes expectativas.
10.10.4 .4 . Levamos o camp a sério demais, assim como a propaganda engajou as técnicas da pop-art sem perceber que isto embasaria uma pop-filosofia, e deixamos diluir toda espontaneidade do pensamento (e mesmo do humor) em chavões estéreis e insinuantes. Precisamos que nossas ideias voltem a ser perigosas para retomar o conteúdo das obras e do pensamento como alicerces para ações necessárias, para que alguém possa fazer uma boa piada depois com elefantes de merda. Só saberemos o que é a arte humana depois que todos conseguirem expressar suas vontades de maneira honesta e não através da representatividade ou das rebeliões. 10.10.5. O paradoxo da prisão do elefante: Um elefante quando pequeno é preso por uma pequena corda amarrada a um pequeno bastão fincado no solo. Quando já crescido, embora sua enorme memória, não tenta se soltar deste cárcere já ineficaz ao seu tamanho, a não ser em casos extremos. Agora me explique por favor, como pode ser que o animal mais poderoso sobre a face da terra, um elefante que pesa varias toneladas e é capaz de destruir um museu inteiro, não estoure esta pequena corda? Por que não foge?
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10.11 . Espetáculos Elefantes: A arte é um bem inútil como um elefante branco, e que dá muitos prejuízos a quem a possui. O artista, por exemplo, ao saber o que sabe e sentir o que sente, é amaldiçoado pelo dom que tem. Este lhe impede de trabalhar em algo realmente útil à sociedade e lhe prende nas abstrações últimas da maldade humana que impedem os encontros mais singelos entre as pessoas. Inúmeras teorias ricamente culturais existem para explicar o culto do elefante branco, estas criaturas foram altamente apreciadas pelos reis birmaneses e siameses, assim como o sofrimento dos românticos ainda é exaltado sem que se leve em consideração a grandeza de suas obras místicas e científicas.
10.11 .0. A maioria dos escritos sociológicos assumem uma omnisciência autoral enquanto uma instância básica. A raridade extraordinária de um elefante branco deu valor para a ideia de que este é uma encarnação “pelo menos, de algum ser em um estágio avançado da viagem ao Nirvana.” Mas então, depois de ter controle completo da narrativa, o autor pode invocar uma variedade de outras técnicas representativas. A arte denota a superação de um afeto triste por parte do seu fruidor, uma visão menos controversa é que um elefante branco é “um sinal exterior, sacralizado pelo costume antigo, da grandeza do poder”, daí o desejo de possuir uma obra. 10.11 .1 . Pode-se fazer um uso seletivo de um número individual de pontos de vista, emprestando um ângulo de visão a um personagem específico de acordo com seus propósitos. Por esta razão, a descoberta de um elefante branco, particularmente no início de um reinado, traziam bons augúrios. As vanguardas sempre foram recebidas com festivais e alegria, quando surgiram, mas isto não quis dizer a compreensão do que diziam. Pode-se usar o teatro de ‘mostrar sem dizer’, para o momento apresentando uma visão bem objetiva das coisas. Mensageiros dessas “novas gloriosas” eram devidamente recompensados. Pode-se analisar sobre a história pelo uso de comentários críticos e generalizações. De acordo com um conto estrangeiro, do reinado do Rei Mongkut Rama IV (1851-1868), o portador de um elefante branco “era submetido à operação dolorosamente agradável de ter sua boca, ouvidos e narinas recheadas com ouro.” Pode-se tomar uma visão panorâmica dos eventos, dando conta dos acontecimentos simultâneos ou cenas dissociadas que o narrador-agente pôde ter encoberto pelo uso dos mais improváveis dispositivos.
10.11 .2 . Nem todo mundo privilegiado o suficiente para encontrar um elefante branco fica impressionado, porém. Em 1895, um nobre inglês comentou em seu diário (para circulação privada): “As descrições românticas não têm contrapartida na realidade, e o elefante branco se prova ser mais ou menos uma ‘fraude’. Pode-se descobrir múltiplos tratos e facetas dos personagens e culturas sob o estudo, sem no entanto dar proeminência a nenhum deles. Em geral a arte é experimentada como um embuste. “Ele não é nada branco, mas empoeirado”. O especialista tenta convencer(-nos) que a cor é um pouco cinzenta clara, e chama a atenção para os olhos cor-de-rosa e ao branco das unhas das patas. Mas tudo em vão! 10.11 .2 .1 . Vislumbramos no elefante branco três usos principais da metáfora: enquanto dispositivo didático e ilustrativo da valoração social de um objeto ou sujeito, sua participação na elaboração de um modelo de conduta econômica das subjetividades neste tipo de relação de forças, e no enraizamento deste paradigma estético-social do zoopoder valorado do qual muitos outros modelos podem ser encontrados. 10.11 .2 .2 . Manny Farber distinguiu duas formas de arte a partir de sua experiência com o cinema: a arte termita que foca nos detalhes da sensibilidade e nas sutilezas das sensações (como em Tarkovsky e nos coletivos de ação que homenageamos aqui) e a arte elefante branco das obras sérias e complexas (como em Federico Fellini e Christoff Schlingensief ). 10.11 .2 .2 .1 . Ele aponta três características principais da arte elefante branco: elas constroem a ação sobre plano indefinido, colocam cada personagem, feito e situação em um friso de continuidades, e tratam cada centímetro do meio como uma área em potencial de criatividade digna de prêmio. 10.11 .2 .2 .2 . Aqui a megalomania deste projeto elefante branco encontra seu equivalente na humildade delicada dos gestos quase anônimos do artistas do ab_ismo, deixando o ridículo de nossa enorme falha aberta a um público camp. 10.11 .3. A comunicação humana pode ser um relato de fatos reais ou uma tentativa de sugerir coisas e situações que não existem como tais. Ganapati, gênio das florestas de signos. A distorção e a perversão de fatos ferem a essência da comunicação humana. A batalha sensorial contra o conceito de verdade e a sensação de beleza como ilusões parece ser incessante. A penetração contínua em nossos espíritos de ruídos de propaganda e de argumentos incessantemente martelados pode provocar duas espécies de reações. Pode levar à apatia e à indiferença, a reação do “não me importo”, ou a um desejo mais intenso de estudar e compreender. A primeira reação é a mais popular.
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10.11 .3.1 . Narrativas elefantes: As palavras nos permitiram elevar-nos acima dos animais, mas também é pelas palavras que não raro descemos ao nível de seres demoníacos. As narrativas buscam uma maneira de tecer as distintas partes de um todo complexo, dando-lhe fluência melódica (mesmo quando a maioria de seus elementos seja ruidística). Rompida a quarta parede do palco (ou ainda avançada esta até a porta do teatro e dentro das telecapturas midiáticas), o público se vê abandonado aos desejos da compositora da ópera. Temos aí o estado de desequilíbrio inicial de nossa narrativa que advém do desejo, como uma cobra caída ao nosso ombro. Com a percepção do encantamento teatral sobre si, os personagens rompem novamente o ritual da representação, quebrando o encantamento da narrativa sobre a plateia que é obrigada (agora em potência exponencialmente maior) a se posicionar como atuante e interventor da realidade. 10.11 .3.2 . Hipersurrealismo: Os acontecimentos sobrenaturais (assim como os mitos sobre os elefantes) intervêm rompendo o desequilíbrio mediano da normalidade aparentemente natural da realidade, provocando uma série de tensionamentos que provocam por fim este desequilíbrio reverso onde o surrealismo aparece como mais real que o realismo fantástico. O sobrenatural aparece na série de episódios que descrevem a passagem de um estado prosaico e cotidiano a outro, um vão da razão em seu mais puro anti-humanismo (Vampyroteuthis Infernalis). Retira o véu de realidade crua do que se passa com os próprios sentidos perante a obra, espelho neural através de um olho caleidoscópico. O transtorno da assombração (o fantasma-ópera) traz a narrativa do libreto como algo não só fora da situação usual da ópera e do cotidiano do espectador, mas fora do próprio mundo natural que gera as obras de arte e os estupros. O fantástico na narrativa coloca a questão ética num outro lugar que o da moral: no da lógica sensível (Lewis Carroll). 10.11 .3.2 . Transrealismo: A próera (narrativa elefante), é o abismo entre real e irreal: transreal. De maneira mais geral, ela contesta toda a dicotomia simplificadora e sintética do pensamento operístico num clara abertura da representação à intervenção simbólica dentro da sensibilidade espectadora. É a própria natureza da artificialidade recortando o dizível em pedaços descontínuos, explicitando o belo canto como vômito e o piano como cadáver de elefantes. O nome, pelo fato de escolher uma ou várias propriedades do conceito que ele constitui, exclui todas as outras propriedades do conceito que ele possui. Eis a irrealidade da palavra na voz. O timbre e a intonação vocal, o melonema, constituem uma camada subliminar da palavra teatral, são a comunicação infralógica da mesma como a comunicação sísmicas dos elefantes através de seus estômagos soantes e seus pés que ouvem.
10.11 .3.2 .1 . Tal como a literatura com a linguagem, a poesia com a narrativa, como o ruído com a música, a próera disrompe a ópera a partir do cerne intencional de sua empresa subjetivante. A obra além da obra demanda um espectador além do humano e um teatro que se reconheça enquanto tal. A situação é sempre mais complexa: pela hesitação de qual dimensão de leitura está a atuar em nós, a próera questiona sua necessidade e estratégica de atuação mesmas. Leva assim a ópera à sua conclusão óbvia (além do musical de revista e do happening neural): A próera nos leva a rever a representatividade da obra de arte total num mundo totalmente artificial. Libera a escuta pelo excesso de amarras. 10.11 .3.2 .2 . O desvario é o resíduo mimético da arte, o preço de sua impermeabilidade. Este momento, enquanto resíduo de algo de irredutível estranho à forma, de bárbaro, transforma-se ao mesmo tempo na arte em mediocridade, enquanto esta o refletir em si sem o perscrutar. O puro desvario cai facilmente no kitsch da forma e no camp do gesto. A arte, implica o kitsch com o aspecto social, de tal modo que, caso contenha-se para agradar a uma gama maior de espectadores, para sublimar esse momento, pressupõe o privilégio cultural e a relação de classes incorrendo então na pena de se tornar entretenimento. Contudo, os momentos de desatino das obras de arte estão muito perto dos seus estratos não-intencionais, constituindo o segredo das grandes obras, ao mesmo tempo misteriosas e estranhamento risonhas. Temas insensatos como os da Flauta Mágica e do Freischütz, graças à música tomam um sereno tom jocoso, enquanto O Anel dos Nibelungos arrisca toda a música por tentar abraçar toda a escuta com uma consciência séria. Há um certo humor nietzscheano na ópera wagneriana: o que é uma comédia perto de uma casa de ópera? O valor de sua entrada é a entrada na instância da valoração capital.
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10.11 .4 . Descobridores de talentos e pesquisadores de tendências artísticas bem o sabem, agem como cornacas procurando pelos desvios padrões repetíveis dentro da economia cognitiva e mantêm-nas sob controle por, na maioria das vezes, mais estipêndios que seus contratados. Os artistas excepcionais, são assim tratados como animais de circo, homens elefantes. Musicais de revista lotados, óperas vazias, experimentalismos tidos como freak-shows. De qualquer maneira, o artista pode ser censurado socialmente, com a melhor das obras e das intenções. O sistema da arte é forjado para manter este espetáculo de sacrifício poético, de modo semelhante a como, eras atrás, os sistemas védicos tomaram os mitos animistas dravídicos ou como os atlantes (do oceano Atlântico) dominaram os povos de Mu (Polinésios) 10.11 .4 .1 . Elefantes palhaços: No elemento burlesco, próprio das óperas, a arte relembra com satisfação a pré-história no mundo animal das origens. Os elefantes antropomorfos dos contos infantis executam em comum o que se assemelha a atos de palhaços. A conivência das crianças com os palhaços , é a mesma que os adultos recusam à arte e mesmo aos animais. O gênero humano não conseguiu um tão pleno recalcamento da sua semelhança com os animais que não a possa reconhecer subitamente e ser então inundado de felicidade e fúria; a linguagem das criancinhas e dos animais parece identificar-se, são cruéis e adoram o palhaço, como os adultos esperam o sacrifício da casta diva. Flüsser trata de apenas duas modelizadas de animais: os humanos imperfeitos como um elefante que poderia andar sobre duas patas em cima de um patinete; e as aberrações humanas, como o Vampyroteuthis Infernalis. Num certo sentido, o elefante de marfim é uma mistura dos dois: uma aberração das imperfeições animais em nós humanos dentro deste mesmo pensamento ético e moral (vigente). Na semelhança dos palhaços com os animais, ilumina-se a semelhança humana aos elefantes; a constelação animal/louco/palhaço é um dos estratos fundamentais da arte.
10.11 .4 .2 . Fezes de elefante: a música é alimento do espírito, a ópera seus restos simbólicos. Soar é antes de tudo uma necessidade fisiológica, mas sobre estes aspectos da vida muito pouco é dito, por tabu. Como pensar uma educação para a defecagem, de modo a melhorarmos o sistema gástrico subjetivo. Há uma metáfora fantástica aqui. O caráter enigmático das obras de arte permanece intimamente ligado à história, como as fezes fossilizadas e os estudos da nutrição antiga. Por isto também foi tão importante a cultura de massa do século XX: embora às custas do menticídio e sensibilicídio de milhões, agora sabemos o valor da arte enquanto enigma do espírito perante a animalidade instintiva. A arte seria o cogumelo psicoativador nascendo das fezes. Mesmo num futuro lendariamente melhor, a arte não poderá renegar a lembrança dos terrores acumulados; de outro modo, vã será sua forma.
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10.12 . Símbolos Elefantes: Elefante é um símbolo da complexidade, da cifra que entranhada torna o todo maior que as partes. Neste sentido é um metasímbolo, - Ganesha, representação da indizível divindade - da linguagem das artes como semiótica da abstração. Gajanana, primeira entidade a ser reverenciado em todos os rituais Hindus, à semelhança dos exus no candomblé e umbanda. Nas portas dos templos e casas protegendo as suas entradas e saídas. Vakratunda, remove todos os obstáculos, protetor de todos os seres. Imagem-conhecimento. Lambakarna, o sábio, o pensamento animal nos gestos humanos em plenitude, os meios de realização. Sua figura revela um significado sempre maior e mais profundo que demanda que o pensamento se torne mais amplo e flexível como a flor de lótus em suas mãos. 10.12 .0. Erepato Pirijete: O sentimento de que a única maneira de nós verdadeiramente apreendermos as coisas seja através da arte e da linguagem é uma opinião contemporânea que aponta nossa dependência em símbolos e representações. Primeiro contam as histórias, que Ganesha tem um corpo físico criado por Shakti (Parvati), a matéria perecível, ou seja que é humano. Não conhece o pai - Shiva, a Realidade Suprema. O fato de que, originalmente toda arte era sagrada, isto é, pertencente a uma esfera separada da vivência cotidiana, testemunha ao seu status e função originais. Da mesma maneira o tabu concernente ao assassínio de elefantes e seu posicionamento entre os animais sagrados entre os asiáticos. Na China, a inocência (qi xi'ang) é uma criança sobre o elefante (xi’ang). 10.12 .0.0. O espectador (e os artistas também o são com a teatralização da vida cotidiana), não distingue mais o âmago real de sua vivência subjetiva. Não se sente mais sob seu próprio controle, mas como objeto de um fogo cruzado de coerções mentais. Não tendo personalidade própria, experimenta a arte e a leitura com pressa, come sem mastigar, aprende de cor milhares de fatos inculcados e, cada vez que toma fôlego, aspira dogmas e slogans. Os símbolos o soterram até que transforme-se num apático emudecido ou num dócil pedante recheado de informação, mas sem real noção sobre como utilizá-la para sua liberdade com sabedoria. 10.12 .0.1 . A arte religiosa, sublevou-se da sensação primária de incômodo, sem dúvida também sutilmente, mas com distúrbios poderosos advindos de sua novidade e sua invasão progressiva nos rituais materiais de sobrevivência. Shiva coloca uma nova cabeça de elefante no filho que renasce pelas mãos da mãe, nasce do supremo. O avanço em sabedoria e liberdade supõe esquecimento seletivo e mudanças de condutas constante (revolução imanente permanente). Parvati, ficando contente com as promessas de Shiva de que seu filho seria reverenciado no início de todos os rituais e cerimônias e, antes de qualquer empreendimento, abençoou a humildade materna e a perda da individualidade como ganho do absoluto, da plenitude da dádiva. O ajustamento vigilante exige mudança de padrões, disposição para o descondicionamento (perder a cabeça antiga), mesmo que estes pareçam monstruosos à primeira vista. É preciso assumir um analfabetismo novo para que aprendamos outra língua.
10.12 .0.2 . Senhor dos obstáculos, Dhumravana decepa os apegos aos objetos, fonte de felicidade. Corta a falsa identificação com o corpo, elimina os obstáculos para que possamos ter uma mente tranquila, e possibilita o conhecimento. Se tínhamos esta visão da busca artística motivada pelas de-satisfações cotidianas de falta de uma expressão mais completa e profunda de um sentido para as experiências com as “soluções culturais” da tecnologia e do entretenimento, a arte se tornava uma experiência supérflua e propositalmente desagradável, posto que nos levava a reconhecer o estado de ausência de nossos próprios gestos, um avesso perverso do ideal de Adorno onde “um mundo sem alienação não necessitaria de arte”, o camp generalizado ridicularizou nossas experiências mais íntimas e delicadas, relegando nossas sensibilidades à esquizofrenia. Ganesha Sravanam, escuta o ensinamento e Mananam, reflete sobre ele. 10.12 .1 . Airavata, a arte é tida como uma linguagem e como tal, evidentemente, é ritual (a gramática de si entrevista por Kristeva). O intelecto desvinculado do mundo está sempre preso entre os pares de opostos (as presas). A vida da fantasia inconsciente, ou consciente, passa a superar o contato atento com a realidade. Elefante, lembra-nos a não sermos mais afetados por essa dialógica (frio-calor, prazer-dor, alegria-tristeza,etc) tendo atingido um estado de equanimidade complementar da complexão, representado por uma das presas quebrada (ou a surdez de um ouvido). Alternam-se inércia e fanatismo. Essencial para a transcendência do cultural nos assuntos humanos, o ritual não é apenas o meio de alinhar ou prescrever estados estéticos sensíveis através de uma rítmica sintática; é também uma formalização que está intimamente conectada com hierarquias e regras formais sobre indivíduos num dado contexto cultural. 10.12 .1 .0. Assim como elefantes, todos as sociedades tribais e civilizações embrionárias tinham uma estrutura ritualística e um sistema conceitual compatível a este; revoluções culturais em geral deram nascimento a expansões ritualísticas e ampliaram os leques de religiosidades (o jainismo surgindo no seio bramanista, por exemplo). O artista e pensador sério, frente à cultura camp, esconde-se cada vez mais por trás de sua cortina de ferro, no imaginário país do sonho e refúgio que idealizou para si (a vingança literária de Dante). Gauriputra, elo que aparece entre as religiões asiáticas, reúna ritual e experimentos em prol do conhecimento. O artista, então, regride a uma forma de comportamento infantil, vegetativo e rejeita tudo o quanto a sociedade lhe ensinou.
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10.12 .1 .1 . Há exemplos de elo entre rituais e desigualdade, ocorrendo até anteriormente à agricultura. São visíveis nos estudos históricos (Gans e Conkey). A realidade, por exigir, como exige, contínuos e renovados ajustamentos e verificações, passa a ser importuna à concepção da obra, pois põe em perigo sua ilusória força divina. A tromba Viveka, capacidade de discriminação entre Nitya o eterno e ilimitado, e Anitya, o efêmero. Os ritos servem como uma válvula catártica de descarregar as tensões geradas pelas emergente divisões sociais e trabalham por criar e manter a coesão social enquanto a obra serve para coadunar estes fragmentos numa mesma potência dentro do artista. 10.12 .1 .1 .1 . Ganesha, perfeito equilíbrio entre força e bondade, poder e beleza, muladhara, chakra primeiro, do instinto de conservação e sobrevivência. Anteriormente não havia necessidade de dispositivos de unificar o que, num contexto de não divisão do trabalho, ainda é totalitário e não-estratificado. A arte era portanto inútil. Agora vemos um momento em que nossa relação com a unificação simbólica imanente sofre grande risco, nos deixando aos pedaços. Ganesha, distingue a ilusão da verdade e abençoa com pureza a verdade imaculada, a prosperidade e o destemor. O símbolo atua na abertura de estruturas do real que são inacessíveis ao observador empírico, mas também distingue, mistifica e santifica certas tarefas e papéis e assim os torna desejáveis. Quem há de querer tornar-se um faxineiro da casa de ópera ao invés de compositor de ópera depois de ler este texto, este será o herói. O compositor deve ajudar na limpeza de sua obra. 10.12 .1 .2 . Ostensivamente oposto ao estranhamento do mundo detrás das coxias e o lixo carnavalesco que produz, a ópera, enquanto ritual delusório, facilita o estabelecimento da ordem cultural (mesmo que criticando-a), leito de pedra de uma teoria e prática alienada. Ganesha, filho da disciplina, aniquilador da ignorância. Embora hajam óperas que quebrem a quarta parede e tratem do espetáculo da sociedade, as estruturas de autoridade ritual (compositor, maestro, produtor, diretor, coreógrafo...) têm um importante papel na organização da produção (a divisão do trabalho) e avança ativamente a vinda da domesticação. Com a intromissão da política na arte, desmorona a ilusão esquizo de controle sobre o universo criado , o artista cria uma ilusão secundária que mantém a primeira intacta (neste caso, em geral, sobre si). Ganesha, satisfação da plenitude que se alcança com um caminho de disciplina e auto conhecimento. Como compor então uma próera enquanto um ritual de liberação destas regras hierárquicas, tal que cada participante seja criador de sua própria interpretação do que sucede? (“Como tornar os intérpretes livres, sem torná-los estúpidos?”)
10.12 .2 . Benappu: As categorias simbólicas são armadas para controlar os selvagens e alienígenas (como GG Allin e Jonathan Meese); parte fundamental desta mudança se dá com o advento da agropecuária territorialista na subjetividade, e o acréscimo do cerimonialismo nas relações corporais da coreografia, por exemplo, que cria os modos de conduta para corpos encarcerados a dogmas de movimentação cotidianos. Trishula (arma de Shiva, similar a um Tridente) na testa, o tempo (passado, presente e futuro) e a superioridade de Ganesha sobre Ganesha. A catatonia segue-se ao estado de auto-negação na esquizofrenia, quando o assalto da violência exterior é internalizada. Iniquidade social parece vir acompanhada de sub-julgamento em uma esfera não-humana, contra toda a lógica interna dos mitos religiosos. A natureza só pode ser destruída após a corrupção do clérigo que passa a desaprovar a fisicalidade. Catatonia espiritual. 10.12 .2 .0. Através das ações rituais vemos o surgimento dos xamãs, não apenas os primeiros especialistas por seus papéis nesta área, mas também os primeiros praticantes culturais em geral. O terreiro mítico, ancestral do teatro de ópera e do museu. Teu ventre, Ganesha, contém infinitos universos, benevolência da natureza e equanimidade, a habilidade de sugar os sofrimentos do Universo e proteger o mundo. A arte mais antiga era acompanhada por xamãs, enquanto eles assumiam a liderança ideológica e designavam o conteúdo dos rituais. Os padres segregavam-se para poder realizar somente suas abluções. Os esquizofrênicos introvertidos preferem a vida automatizada, rotineira, do hospício, desde que lhes seja permitido entregar-se às suas secretas fantasias. O computador centralizou as funções espirituais e cognitivas numa mesma postura de digitação. Ganesa, a posição de suas pernas (uma descansando no chão e a outra em pé), a importância da vivência e participação no mundo material assim como no mundo espiritual, a habilidade de viver no mundo sem ser do mundo. 10.12 .2 .1 . Curandeiros: Estes primeiros especialistas se tornaram os reguladores das emoções coletivas, e enquanto as potências dos xamãs crescia, havia um decréscimo correspondente na vitalidade psíquica do resto do grupo (ver Lommel). A casa de ópera alimenta a fuga das realidades amedrontadoras da vida para dentro do ventre materno virtual do estado. A autoridade centralizada, cresceu da posição elevada do xamã em sua parceria com a administração política e bélica dos chefes tribais. Ganesha, seus braços são os quatro atributos do corpo sutil, que são: mente (Manas), intelecto (Buddhi), ego (Ahamkara), e consciência condicionada (Chitta); faz-nos agir com sapiência sem submissão. Não nos deixe crer que o pensamento é supérfluo ou exclusividade de ninguém. Sri Ganesha, pura consciência - Atman - que permite que estes quatro atributos funcionem em nós, se nos fazem regressar a um estado intra-uterino, dai-nos a sabedoria fetal (muladhara) do que nasce agora.
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10.12 .2 .1 .1 . Animais de Poder: Os xamãs são inspirados pelos animais, os sacerdotes pelos humanos imolados, os aedos pelas musas. São sempre as vítimas que comovem a escuta musical. A história da música é a literatura dos derrotados, dos troianos, das loucas, dos lazarentos. As panicadas são carne crua de Orfeu. As obras (ópera) não são o feito de pessoas livres. Tudo o que opera está ocupado. É a preocupação do desgosto. Imitar os gritos que ouvimos sair da goela dos pássaros-serpentes de asas de ouro e presas de javali. Fazer soar a tíbia, a flauta vertebrada, voz da górgona. Interroguemos os laços que a música entretém com o sofrimento sonoro. 10.12 .2 .1 .2 . Terror e música: Sexo e o pano que o reveste. Objetos cobrindo nossas escutas, crostas musicais sobre a ferida que sangra cera. Dissimulando a nudez do ruído que envergonha. Grito primevo da respiração animal. O conservatório, o consolatório. Me defendo compondo, tocamos o que queremos calar. O vestígio anuncia o tempo que fará. É possível que ouvir música consista menos em desviar o espírito do sofrimento sonoro do que esforçar-se por refundir o alerta animal. A característica da harmonia é ressuscitar a curiosidade sonora defunta assim que a linguagem articulada e semântica se estende em nós. 10.12 .2 .2 . O espectro de complexidade social é, porém, encarnado nos operadores sociais (xamãs mahouts), convergindo o poder simbólico em outro totem. Os colonizadores souberam bem disto: mortos os xamãs e pajés, a tribo se entregava com facilidade à corrupção, já que não se sentiam mais criadores subjetivos da realidade simbólica. Não estamos vivendo isto ainda entre nós? O regime capital assume todo o peso das culpas pela violência dos indivíduos e fornece-nos uma lista já preparada de milhares de justificações e desculpas pela liberação de nossos instintos sádicos. Ganesha, as grandes orelhas abertas da sabedoria, habilidade de escuta compassiva das pessoas que procuram ajudar e a reflexão sobre as verdades espirituais. Quantos pequenos crimes não cometemos sem querer, só por nos ausentarmos de pensar sobre a distribuição de renda e cultura, por exemplo? A importância de escutar para poder assimilar todas as faces da complexidade. Ganesha, senhor cuja forma é Ohm. 10.12 .3.Radha: No poema erótico “Canção do Rebanho”, o deus incarnado como Krishna tem por deusa-esposa a insaciável consorte Radha, a elefanta. A arte age como produção desejante na divinificação do símbolo material, metasigno da linguística num nível ulterior (que chamamos de linguância ou harmonia contextual). Sob a pressão da propaganda contra a seriedade, nos identificamos com a quadrilha simbólica dominante e temos de demonstrá-lo consumindo besterias, ou ao menos aprovando a submissão de todos os impulsos humanos ao consumo. O Kama Sutra designa “homens elefantes” e “mulheres elefantas” àquelas pessoas com os maiores genitais e mais voracidade e apetites sexuais. Cada novo produto e nova piadinha estabelece novos laços de fidelidade e de inescrupulosa obediência sobre nossos desejos mais íntimos. Embora Radha fosse inteiramente humana, descrita como mera mulher, ela é também tida como “o objeto de devoção ao qual até Deus, seu Criador mesmo, se curvou.” O círculo vicioso do controle desejante, no qual os meios são tomados como fins em si mesmos, se transforma em cínica conspiração, recoberta por cínica bandeira de decência e idealismo. O desejo erótico abstraído das questões corporais é a própria arte ética, a poética da estética é a cópula do afeto e da razão.
10.12 .3.1 . Musth: Essas perversões também se incorporam em grandes mitos artísticos (Lichtenstein) e o desejo artístico de fazer algo heroico se torna cada vez mais o desejo de fazer algo violento. O museu é uma câmara de gás subjetiva, que mata a subjetividade dos espectadores de modo a manter as ilusões de grandeza de artistas e curadores. O elefante em musth, como um humano desiludido e duro tomado por delírios de grandeza, precisa estuprar, matar, exterminar, fazer guerra. Nenhum remorso atalha, nem nenhum sentimento moral (que mesmo os elefantes têm). A violência tida como base da conduta animal, aproximada do desejo erótico, é um grande meio de controle do poder institucionalizado e desculpa para a institucionalização da violência do Estado. Não nos esqueçamos que o erotismo também se aproxima do cuidado e das relações de compaixão surgidos por nossa extrema fragilidade por longo período, enquanto espécie. Não somos fortes e violentos como elefantes, e ainda estamos aqui. No rito Ganapati da tradição saptarsi, os noivos tem nozes amarradas às suas vestes. 10.12 .3.2 . Seleção sexual: Interessante notarmos que o musth está diretamente relacionado à competitividade entre machos em relação à abstinência sexual perante fêmeas fecundáveis, tal como a relação da competitividade entre artistas em relação a museus e galerias disponíveis. Estudos como o de Joyce Hathaway Poole sugerem que a razão pela qual os grupos matriarcais se reúnam nas estações molhadas em grupos maiores, seja uma forma de incitar a competitividade entre machos, tal como os grandes festivais de música e as redes de intercuratorialidade. Quando Darwin nos lembra que “Nenhum animal no mundo é tão perigoso quanto um elefante em musth.” nos diz algo sobre as propensões populares dos estilos e técnicas musicais voltados a temáticas eróticas bem como da sedução meramente estética em voga. 10.12 .4 . Kuvalayapida: A religião erótica da arte, contribuiu a uma gramática simbólica comum necessária para a ordem cultural vigente com suas fissuras e ansiedades. Krishna mata o elefante Kuvalayapida, enviado por Kansa para matá-lo nos portões de Mathura, arremessando-o do alto de uma pedra como se fosse uma serpente insignificante. A formulação de vastas mentiras de propaganda e as palavras de engodo fraudulentas têm propósitos muito bem definidos. A palavra latina religare remete a religar, reunir, reconectar, dos diversos pontos de vista do que é o elefante e a integração social dos modos de vida é evidentemente o ímpeto religioso. As palavras adquiriram, a serviço do poder, uma função especial, que podemos chamar de verbocracia. É a resposta às inseguranças e tensões selvagens, promessa de resolução e transcendência para a vivência cultural e civilizada da domesticação e do encarceramento do corpo por meios simbólicos. A tarefa dos propagandistas é compor imagens apropriadas ao desejo da população, de forma a que, por fim, ela não enxergue e não ouça com seus olhos e ouvidos, mas apenas sinta tudo através de um nevoeiro de palavras de engodo. O elefante vence o humano que vence o elefante, Ganesha.
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10.12 .4 .1 . Crítica e propaganda: Para artistas, as religiões constituem um vasto território de representações que, sob forma de mitos e de ritos, agenciam-se em combinações diversificadas. Salvo aos olhos dos crentes (e artistas os são, ao menos de seus gestos), as combinações parecem, em uma primeira abordagem, irracionais e arbitrárias. O uso multiforme dos símbolos com múltiplos sentidos funciona como um ataque à nossa lógica afetiva em prol da competitividade que mantêm a escravidão, por exemplo. Krishna conversa com Ganesha enquanto vence Kuvalayapida, o mau elefante. A religião da arte que aceita a fé em tudo, até na falta de fé, atua no campo da arbitrariedade da criação como pressuposto do livre arbítrio do bem. A questão que se coloca é então a de saber se é preciso ir até às coisas e simplesmente descrever o que não podemos explicar, ou se, por detrás da desordem aparente das crenças, práticas e costumes da arte, é possível descobrir uma coerência afetiva que trata de soluções abstratas para problemas próximos, que servem de modelo para resoluções mais amplas. 10.12 .4 .2 . Pareidolia: Agora que o pensamento filosófico e científico racionou os excessos artísticos da re-ligião, mal utilizada por uns formulando e encantando conceitos sem verdade epírica, o pensamento mítico funciona com ajuda de imagens emprestadas do mundo sensível. Das religiões sobrou sua arte, dos grandes mestres seus personagens, dos mitos fica sua sabedoria. Ao invés de estabelecer relações entre ideias, a arte opõe o céu e a terra, a terra e a água, a luz e a obscuridade, o homem e a mulher, o cru e o cozido, o fresco e o passado. O logocídio (assassinato da palavra) realizado pela demagogia que poluiu o campo de atuação da linguagem a grandes amontoados de tipos sem uma sintaxe relacional. Nascido dos restos do ovo da ave-guerreira Garuda (Orfeo), tua maldição é vencer a serpente de mil e uma cabeças Naga. A arte elabora uma lógica das qualidades sensíveis: cores, texturas, sabores, odores, barulhos e sons. A verbocracia transmuda espectadores em agnósticos simbólicos, pessoas só capazes de imitação, incapazes de senso indagador de objetividade e de perspectiva, que leva a interrogar, a compreender e a formar ideias individuais. Arte, elabora sobre estas elaborações, ainda, em afetos e conexões cognitivas. E quando um espectador se decide a falar, é enviado ao final da longa fila de artistas desempregados. Arte, escolhe, combina ou opõe essas qualidades para retransmitir uma mensagem de alguma maneira codificada.
10.12 .4 .3. Mas quando a arte se interroga sobre a nossa ordem social, nós mesmos apelamos para a história para explicá-la, justificá-la ou acusá-la. Essa maneira de interpretar o passado varia em função do meio ao qual pertencemos, de nossas convicções, de nossas atitudes morais. Para um cidadão da Costa do Marfim, a revolução de 1789 na França explica a configuração da sua sociedade atual. E se julgamos essa configuração boa ou ruim, não concebemos a revolução de 1789 da mesma maneira, e aspiramos a diferentes futuros. Em outros termos, a imagem que fazemos de nosso passado próximo ou distante é muito largamente da natureza do mito. 10.12 .4 .4 . Nalagiri: O que os mitos fazem para as sociedades sem escritura: legitimar uma ordem social e uma concepção de mundo, explicar o que as coisas são por meio do que elas foram, encontrar a justificação de seu estado presente em um estado passado e conceber o futuro em função, então, desse presente e desse passado, esse é também o papel que nossas civilizações emprestam à história. Buda, com uma flor, faz o elefante Nalagiri se render. Os museus são patuás de mitologias que podem e devem ser questionadas. Profanar o sagrado é alvo óbvio das artes em sua irreverência corriqueira, mas como profanar o profano sem incorrer no controle religioso das possibilidades míticas ou na violência, ópera? 10.12 .4 .4 .1 . Os mitos (inclusive os da arte) parecem cada um contar uma história diferente, e descobrimos que é com frequência a mesma história, cujos episódios estão dispostos de outra maneira. A vitória violenta de Krishna sobre Kuvalayapida é a rendição de Nalagiri por Buda. Inversamente, acreditamos voluntariamente que não há senão uma História da Arte, quando na verdade, cada curador, cada rede museográfica, cada artista e fruidor às vezes conta uma história diferente e a utiliza, contrariamente ao mito, para se darem razões para esperar, não que o presente reproduza o passado e que o futuro perpetue o presente, mas que o futuro diferencia-se do presente da mesma maneira que o presente, ele-mesmo, diferenciou-se do passado.
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10.12 .5. Elefantes souvenir: Toda civilização diminuiu a saúde ambiental ao seu redor e consequentemente a sua própria. A diminuição da complexidade do símbolo elefantino no ocidente (bem como do papel animal do erotismo), relegado a presente vingativo e imagem do peso e lentidão. Nas palavras de Horkheimer: “A destruição da vida interior é a penalidade que pagamos por não pagar respeito a nenhuma forma de vida que não a nossa.” A violência dirigida afora é a mesma que nos aflige internamente (o ascetismo da arte e a castração desejante), ao limite da impossibilidade de percepção da beleza e a ausência de experiências estéticas. Annone, o elefante dado como mau presente ao papa morre em poucos anos no Vaticano (como a arte de lá, talvez?) e este lhe encomenda uma escultura. Se as ferramentas são para o fazendeiro ou o cornaca um instrumento de controle, para os primeiros humanos ela era uma revelação. Mas sempre queremos mais, queremos o delírio dos elefantes rosas e dos elefantes voadores com seus treinadores ratos. 10.12 .5.1 . Os elefantes foram uma extravagante novidade simbólica no velho mundo, assim como o desenho outrora foi, ocasionalmente, um alegre passeio pelo luminoso bosque de signos de um dadivoso pintor a um bem aventurado fruidor, agora, como no caso de Borges, uma única linha pode levar diretamente ao caos do labirinto. Mas ela também pode crescer e formar uma escultura de força bíblica ou védica, quando por exemplo, a colombiana Doris Salcedo rompe o maciço chão de concreto da Tate Modern em Londres com uma irresistível fenda. 10.12 .5. Souvenir elefantes: Estamos tomados em uma lógica cultural de objetificação e uma lógica objetificante da cultura, tal que aqueles que perpetuam “rituais sagrados” (como o da ópera clássica) e outras formas representacionais (teatro tradicional e artes plásticas) enquanto rotas a uma existência re-encantada não conseguem encontrar o sentido de seus próprios gestos tornando a um consumismo estético das experiências. Eu vi o elefante no circo, mas não é grande coisa. Mais do que tem falhado (como o primitivismo da arte moderna) por tanto tempo dificilmente poderá ser a resposta. A arte não deve se preocupar em repetir a forma artística, mas buscar um tipo de sabedoria praticado espontaneamente e a rejeição daquilo, que na sociedade atual, é a loucura real do racismo psíquico que sobrepujou a discriminação aberta enquanto um dos aspectos mais negativos de nossa sociedade. A participação imaginativa que ocupamos na criação da identidade coletiva em outras culturas, aquelas com as quais vivemos.
10.12 .6. Um elefante no servidor de dados: Uma obra de arte pode usar a linguagem tanto quanto quiser, e até mesmo expandir e aperfeiçoar essa linguagem enquanto a usa. Mas o que nos toca numa obra é aquilo que não se coloca em palavras. O que é significativo e valioso nela pode ser justamente o que não é articulável. Toda obra de arte precisa resolver uma dualidade entre sua execução e seu propósito. E o par execução/propósito é similar ao par sinal/significado que é o mecanismo fundamental da linguagem. Assim, o vocabulário da teoria da linguagem (sinal, código, referência, redundância…) facilita falar sobre arte e, imagina-se, estudar linguagem ajuda a entender arte. E parece que de fato é assim. O risco é que por desenvolver demais a comparação acabemos forçando a arte a se tornar linguagem mesmo naquilo em que não é (distinção entre Ganesha e Nalagiri). Não se faz uma ópera sem linguagem (e no caso das artes plásticas, sem um repertório sensível ou cânone visual), mas o que diferencia uma boa música de uma ruim é algo bem diferente de linguagem. A ópera que mais seguir as regras musicais corre o risco de não ter muito a dizer. Mais do que palavras e sons, existe vida em La Via Intoleranza. Existe uma partícula de humanidade indescritível, inexplicável. E brilhantemente Schlingensief usa as linguagens dos seus excluídos como um elemento da construção dessa vida. 10.12 .6.1 . Uma diferença entre execução/propósito e sinal/significado é que o aperfeiçoamento da execução, na arte, não leva ao desaparecimento do meio, à transparência, mas ao risco do virtuosismo. Numa acepção simplista do camp, o virtuosismo é exatamente o desenvolvimento extremo da capacidade comunicativa da arte, e esse desenvolvimento do meio de expressão esvazia a arte. Para nos apegar ao paradigma linguístico, teríamos de dizer que a obra tenta comunicar algo que não é exatamente a informação que de fato transmite, mas aí ficamos perdidos ao tentar descobrir exatamente que coisa é essa. É fácil descartar o virtuosismo na vivência da arte, mas exatamente porque ele parece difícil de explicar? 10.12 .6.2 . Virtude artística e rotulomania: É curioso que o virtuosismo na música esteja quase sempre relacionado à instrumentação e na dança quase sempre à coreografia. É raro acusar um compositor de virtuosista, mas comum falar de um coreógrafo virtuosista. Já em artes plásticas seria difícil separar o virtuosismo em um ou outro dos dois contextos, digamos uma composição virtuosista que não fosse pintada de forma virtuosa. Quando as palavras e os símbolos perdem sua função própria, de comunicar, adquirem progressivamente uma outra, de amedrontar, de regular, de condicionar. As palavras e símbolos oficiais (com poder monetário) devem ser obedecidas. A dissenção e o desacordo se tornam um luxo ao mesmo tempo físico e emotivo, que é despejado naqueles abaixo nas hierarquias de micropoder como descarga de tensão. A injúria, com todo o poder que ela encobre, é a única lógica permitida. Suprimem-se e deturpam-se os fatos contrários à ideologia mercadológica. Nozes para Atri, Vasistha Kasyapa, Visvamitra, Gotama, Jamadagni e Bharadvaja.
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10.12 .6.2 . Elefantes Símbolos: A arte começa com uma exceção de execução, e assim pensar arte é inevitavelmente pensar um tipo de ação anti-natural. Os trabalhadores levando sacas de milho podem ter criado o culto Ganapati de Ganesha. A intencionalidade faz parte de todas as ações humanas, quer clara quer obscuramente. A ceifa (presa única) dizimando os ratos destes cultivos. A intenção de um ato de comunicação é transmitir informações. Mas a intenção de uma ação artística é algo mais complexo. Ganapati, culto da colheita. A diferença entre significado e propósito nos leva para a dimensão em que a arte pode ter um valor e, talvez, portanto, ao ponto do qual tira seu poder. A comida de Ganesha depende da colheita, mas em geral, é uma espécie de canjica de arroz doce e coco ralado. Seja ou não seja linguagem, a arte usa a linguagem em suas formas mais avançadas. 10.12 .6.2 .0. Uma versão ingênua da arte enquanto linguagem seria imaginar um plano dos significados artísticos e cada uma das várias formas de arte como uma tradução dele para planos de expressão mais mundanos, num projeto por exemplo. O problema (dessa e de outras versões mais complicadas) é que a arte parece não se limitar a nenhum tipo de conteúdo, e até mesmo se esforça por quebrar quaisquer limites que venham a ser percebidos no conjunto de “o que a arte pode dizer”. Parece se sentir aprisionada quando esses “significados” ficam destilados e claros. Parece evitar tipos de interpretação semelhantes e previsíveis. A arte desafia fronteiras, como o elefante desafia o “símbolo”. A suástica é um símbolo do pré-ariano Ganapati, sol montado sobre o rato da noite. A curadoria se tornou uma performance, e os projetos devem seguir o mesmo rumo tornando-se uma das belas-artes. 10.12 .6.2 .1 . A experiência da arte é mais poderosa que a interpretação da arte, a próera O Elefante de Marfim supera o projeto e qualquer de suas justificativas. Padrões auspiciosos são desenhados com cânfora no chão. A ideia é que a obra é fundamentalmente não-legível pela extensão enorme de reflexões internas e prévias do artista. Ou que se o objetivo da coreografia fosse “expressar um elefante”, um papel escrito “marfim” seria tão bom quanto dançar com o braço imitando uma tromba. Toda obra tem ideias como componentes, mas para que essa obra tenha algum valor é preciso que a experiência da obra seja mais do que a tentativa de adivinhar qual era essa ideia. Ari e Holigattu. Uma obra de arte não é um enigma, nem uma exemplificação, e nem se encontra num meio termo entre os dois. A obra de arte deve transcender as ideias que levaram à sua construção, sob pena de deixar de ser arte e passar a ser doutrina.
10.12 .6.2 .2 . A sentimentalização cria exatamente o mesmo reducionismo. Uma obra provocar alguma emoção (“Senti tanta paixão com Church of Fear!”) muitas vezes serve a propósitos artísticos (como identificação com o personagem ou sensibilização para alguma perspectiva) mas raramente parece suficiente para constituir uma obra. Abusar dessa resposta emocional pode facilmente impedir um trabalho de atingir todo o seu potencial. A música chegou a este ponto no final do século XIX. Ainda que seja difícil evitar dizer que “tal obra me faz sentir algo”, essa sensação não é a mesma coisa provocada por um acontecimento não artístico. Perder um filho e rever suas atitudes não é o mesmo que assistir Romeu e Julieta. A experiência da arte vai além das experiências cotidianas de formas que não tem nada a ver com a intensidade das emoções sentidas. A legibilidade da arte conduz (rapidamente) a um problema que tem a mesma estrutura do virtuosismo: Reificação, coisificar a obra. Pegar um processo complicado, cheio de ambiguidades e idiossincrasias e transformá-lo em algo simples, claro e definido. É tratar a arte como uma história com lição de moral no final. A crítica deve ser, enfim, entendida como uma forma de poética. 10.12 .6.3. Uma linguagem é uma ação, mas uma ação que se oferece exclusivamente à interpretação. Uma fala faz parte do jogo da vida apenas enquanto promete ou resgata outras ações, e a arte quando fala, o faz para provocar experiências muito maiores que palavras. Colocar a arte enquanto linguagem enfatiza esse falar, mas desenfatiza a provocação. Enevoa o poder. Tratar a arte como linguagem tende a retirá-la da política e da cultura, das vidas e das formas de viver. Tende a dizer que isso são elementos acessórios, opcionais, processos que afetam a arte, mas não participam dela. E pode até ser possível fazer essa separação, mas ela não é nem espontânea nem desejável.
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10.12 .6.3.1 . A arte está constantemente se chocando com questões como a complexidade, a vivência, os valores, a incomensurabilidade e a transcendência. Ganapati é um demônio elefante que deve ser apaziguado, que deu origem ao Ganesha védico. Não adianta fazer uma cirurgia plástica e fazer sua cabeça semelhante a um elefante para compreender-se Ganesha. Essas são questões difíceis, que não basta enunciar ou descrever, que não se acabam numa declaração de posicionamento, mas que adquirem sua forma enquanto lidamos com elas. No léxico sânscrito, a palavra gana é dada como sinônimo de samuha, que significa “um agrupamento” ou “um coletivo”. Ao tratarmos a arte como linguagem inconscientemente perdemos todo esse dramático conflito que é muito presente no nosso momento: Como artear uma vida? Como viver uma arte? 10.12 .6.3.2 . Behemoth & Leviatan: O risco de dizer é que estamos determinando uma essência para a arte, tentando baixar uma lei sobre sua natureza, como nomear um elefante. Que embora seja forte e complicado, ainda é devorado pelas forças do tempo, ainda maiores. É claro, ao colocarmos esse argumento estamos caindo na exata mesma armadilha. A serpente é uma série de elefantes conectados. Um elefante é uma serpente no tempo, pontos que se somam numa lenta caminhada, medindo a cada passo uma mudança do contrato social, suave transvaloração. E como não podemos prever o futuro e ter ao certo se um dizer artístico-religioso é apenas uma busca por efeito de sedução, encaramos os preconceitos da valoração do simbólico sob o administrativo. 10.12 .6.4 . Valores Elefantes: Manipulamos os campos de significado que estão ao redor da arte e na arte para evitar uma essencialização do processo estético. Mas esse é um passo de elefante, um estratagema grande, porém lento, entre outros. Não o único, não o primeiro e não o melhor.Outro passo, outra estratégia, é combinar: Bater os pontos de vista uns contra os outros, encaixá-los até de formas erradas, misturar e criar sentidos através da mistura. Não só aceitar as diferenças, mas apropriar-se delas. A moeda romana forjada por Caesar com um elefante que esmaga uma cobra numa face e os instrumentos sacerdotias do outro. Imagina-se, através desses (e outros) procedimentos, a arte expandindo-se, não só numa acumulação de ideias diferentes, mas no abandono de suas suposições e preconceitos e barreiras. Descobre-se que os pressupostos, mesmo quando acertados, diminuem a visão. Esse processo não é o aprendizado de uma gramática ou vocabulário, mas a sua subversão. Não se trata do abandono de todas as estruturas, mas de descobrir (ou criar) estruturas cujo sentido é vivido profundamente, ao invés de simplesmente veiculado. A arte não é um auto-falante ou mural, receptáculo de sentidos, mas um ritual onde o sentido é a própria estrutura. A arte não reproduz (descreve) uma realidade, ela cria realidade(s).
10.12 .6.5. Logotipos elefantes: A maioria das empresas consultadas já disse que o projeto é belíssimo: “Você, sempre inventando, heim? Parece o Boal! Porém não combina com os nossos produtos.” Os comerciantes querem vender: nada mais lógico. Loucura nossa pensar que uma heroína-prostituta, que morre tuberculosa no quarto ato, fosse capaz de vender molho de espaguete ou pertences de feijoada, por exemplo. Deveríamos, talvez, ter procurado um fabricante de armas de matar elefante: erro nosso! O suicídio do artista porém seria também assimilado e tornado numa força a mais para controlarem a arte. Diriam: “Viram como a arte, sua sensibilidade e conhecimento, em sua radicalidade, levam à loucura e à morte! Precisamos controlar este monstro com entretenimento e cinismo!” Fariam elefantes de pelúcia odiadores da arte e fariam um dia do elefante de marfim, quando haveria uma festa do elefante. 10.12 .7. Elefante cósmico: Mesmo no que concerne à ordem do mundo, a ciência passa hoje de uma perspectiva histórica. O cosmos não nos aparece mais, como no tempo de Newton, regido por leis eternas como a gravidade. E=mc2, eis o símbolo religioso de nossos tempos. Um deus zoomórfico marca o princípio do pensamento hibridista, pluriforme e polissêmico. Para a astrofísica moderna, o cosmos tem uma história, as teorias unificadoras não encontram o cerne dos bóssom de Higgs mas também historicizam os campos de atuação particular subatômicos. Ele começou há quinze ou vinte milhões de anos devido a um único evento (dito em inglês big bang ou barulhão), se dilatou, persegue sua expansão, e, de acordo com as hipóteses, continuará indefinidamente no mesmo sentido ou se alternará em ciclos de expansão e contração assim como os átomos entre energia e materialização.
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10.12 .7.0. Equações Elefantes: Como Lorenz pomos de lado o tempo e procuramos modos simples de produzir um comportamento complexo. Encontramos um num sistema de apenas três equações (modos de concatenação simbólicas). Impomos aos termos destas equações, expressões de relações que não são rigorosamente proporcionais (lambda). As relações lineares da física clássica que modelaram as linhas de montagem podem ser estabelecidas com uma linha reta num gráfico (behaviorismo simbólico). 10.12 .7.0.0. As relações lineares são de compreensão fácil: quanto mais, melhor. Sua natureza modular os torna aptos a serem desmontados e novamente montados (como as grandes teorias e os franchising de estilos artísticos). Dão-nos a enganosa sensação de que sabemos, são adequadas para os manuais técnicos de controle mental (se você produzir mais, vai ter mais prazeres). A utilização de sua terminologia nas ciências humanas causou danos às relações e ao psiquismo da espécie humana no simples fato de reduzir todo a complexidade da subjetividade a um desejismo (Freud o nota com enorme ironia). Os sistemas não-lineares não podem, em geral, ser solucionados e não podem ser somados uns aos outros. 10.12 .7.0.1 . A Origem das Clades: O diferencial da rede em relação à captura é que suas pesquisas são orientadas à busca, ao consumidor (ao ouvinte, ao espectador) e não aos interesses dos anunciantes (aos compositores, aos vendedores, aos ideólogos). Mas ainda assim, a serendipidade se perde na pregação ao coro, já que só se inscrevem os interessados. Ao contrário de mapear a produção hierárquica de morfologia genética, a cladística atua na hipertextualidade da influência: não na legislação de autoridade do direito de autoria e citação, mas nas ressonâncias autopoiéticas das diferentes escalas.
10.12 .7.0.2 . Modelos Elefantes: Pensamos em termos de algum modelo generalizado ou abstrato que evidencie o comportamento do próprio modelo em relação ao mundo exterior do qual ele próprio trata. Decerto, todo o empenho é para nos colocarmos fora do âmbito usual daquilo que chamamos estatística. Ao terem visões breves e incertas do funcionamento da natureza, os cientistas sentem a enorme vulnerabilidade sob a máscara da angústia sobre a confusão da incongruidade. Mas é justamente esta incongruidade que modifica a maneira como o cientista sente que torna possíveis os avanços mais importantes. Na visão de Kuhn, a ciência normal (que se nega o papel criador) consiste, em grande parte, em operações de limpeza e não de sobreposições como gostaria. Os experimentos se repetem de maneiras minimamente distintas, as teorias acrescentam novos desdobramentos simbólicos que modificam a visão dos experimentos, como filtros novos. Todo cientista que se voltou para a complexidade e para o caos tem uma história de desestímulo, ou de hostilidade clara. Os primeiros trabalhos de uma nova disciplina retomam uma linguagem simples, porque precisam retomar às origens em busca de uma base estável para uma nova intuição. 10.12 .7.0.3. Caosismo Complexista: Com a estruturação de uma nova linguagem, porém, os trabalhos de uma nova disciplina começam a soar evangélicos. Pode-se notar isto na performance atual ou na cibernética e teoria do caos da década de 1970. Declaram novos credos e com frequência terminam com pedidos de ação. Os resultados experimentados e comprovados um número mínimo de vezes, parecem a quem os experimenta ao mesmo tempo entusiasmantes e altamente provocativos de reais mudanças sociais. Uma imagem teórica da transição para um novo entranhamento complexo quer-se um início e não um fim. O coração do caos é matematicamente acessível, o coração da matemática é caoticamente acessível. Para aceitar o futuro não precisamos renunciar todo o passado. 10.12 .7.0.4 . A Computabilidade da Vertigem: Novas esperanças, novos estilos e, o que mais nos comove, novas maneiras de sentir. As revoluções não ocorrem aos poucos. Uma explicação da natureza substitui outra. Velhos problemas são percebidos sob novos prismas. O sabor da comida muda com novas formas de talheres. Esta não-familiaridade com as velhas obras das mais distintas artes, revigoram sua aura com o infinito. O camundongo de laboratório já não é o pêndulo, mas a explosão onírica de significações. Não seu corpo, mas o transbordamento de eurecas. A questão da harmonia contextual está diretamente ligada à estruturação das dinâmicas escalares. Um ser humano com o tamanho ou peso de um elefante teria seus ossos destroçados, uma obra de arte é um sintoma de um encadeamento simbólico escalar. Há algo de grotesco na hipervalorização do trabalho de Leonilson. Mas há também, num campo mais distante da zoomorfia, uma geometria fractal que transcende as escalas. A nuvem é o furacão, como um passo na terra vibra tal e qual um terremoto. A obra de Mehretu em miniatura segue impressionante. As obras de arte afetiva tentam recuperar os laços de sangue e saliva com a escala e o tamanho próprio de cada gesto, destruídos pela zoofobia subjetiva; já as obras de arte científicas (e nisto mais extremas, próximas do ruído e do musical) libertam o espectro da dimensão.
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10.12 .7.1 . Nébula do Elefante: Contudo, ao mesmo tempo em que a ciência progride, ela nos convence que nos tornamos cada vez menos capazes de matriciar complexidade pelo pensamento de fenômenos que, dadas suas ordens de grandeza espacial e temporal, escapam às nossas capacidades mentais e mesmo espirituais. Nesse sentido, a história do cosmos se torna, para o comum dos mortais, um tipo de grande mito: ela consiste no desenvolvimento de eventos únicos e que, porque só são produzidos uma única vez, não poderemos jamais provar a realidade. A história do cosmos é uma ópera picaresca sobre um elefante cósmico. 10.12 .7.2 . ética: Todos acreditam de maneiras diferentes (mesmo que acreditem não acreditar em nada através da estética e ou da ciência), mas suas crenças não têm realidade. A realidade é o que somos todxs juntxs, o que fazemos e pensamos e suas relações. A crença na divindade (da e ou através da arte) é apenas um meio de fugir de uma vida monótona, estúpida e cruel. Além disso, a crença - de qualquer tipo - divide as pessoas: há artistas ciganos, advogados judeus, administradores cristãos, críticos hindus, a lista não tem fim. A crença e a ideia dividem, nunca reúnem as pessoas. Podemos juntar algumas pessoas em um grupo, mas este grupo se opõe a outro grupo. Crenças e ideias nunca são unificadoras. 10.12 .7.2 .1 . A crença na beleza está espalhando feiura pelo mundo (pensemos em como Saartjie Baartman foi tratada pela sociedade europeia). Embora possa trazer consolo momentâneo, na verdade tem trazido mais desgraça e destruição do que bem-estar, em forma de guerras subliminares que se embasam em pressupostos estéticos, perda de sentido estético, divisão de classes pelo controle relacional, alienação com os recursos de hipnose fornecidos pela arte e divisão entre os indivíduos pela segregação.
10.12 .7.2 .2 . O que é a beleza num campo de pura estética como a arte? O que seria uma cosmo-ética enquanto modo de ser da organização? Não sabemos nada, juntamos nossas próprias memórias de (raras) experiências extáticas e palavras de outras pessoas a respeito delas, pensamos o processo do tempo, juntamos em símbolos das metamorfoses que se reconfiguram entre si. Se gana significa coletivo, Ganapati, aquele que vê o agrupamento,era o indivíduo de um clã, que tinha o elefante para seu totem e vislumbrava seu clã em relação a outro clã, que tinha o rato (ou leão, ou touro, ou serpente) como seu totem. De todas as complexas misturas destes elementos, captamos ondas que advém com a necessidade pragmática e sacrificamos o resto em prol de um gesto poético numa simbologia. 10.12 .8. Simbologia elefante: Qualquer sistema simbólico que não desperte a transcendência dos símbolos em prol dos campos energéticos que estes carregam, se vê desprovido de sua função primordial. A arte de uma sociedade livre, que queira evitar tanto o ruído puro como o sufocamento pelas fantasmagorias, consiste em conservar um código simbólico e, em seguida, manter o destemor de revê-lo e ampliá-lo, para assegurar que o código sirva àqueles que se propõem a tal tarefa sensível. Através da reverência, uma re-visão efetua-se naturalmente na veneração mais profunda, o símbolo torna-se uma presença visionária e é revisto, quando necessário, pela luminosidade silente em que ele se expõe. 10.12 .8.1 . Método elefante: Em relação ao método-baleia, que deixa lentamente os plânctons acumularem-se em sua boca até que lhe alimente, como podemos pensar um método elefante, no qual o todo do processo seja mais valioso que o produto final? A criação de regras demanda mais criatividade que a destruição das regras vigentes. Tais regras criadas, não limitam a liberdade do gesto poético, mas entranham de maneira mais complexa tal gesto nas regras já existentes. A compreensão da harmonia contextual nos permite um gesto simples e singelo na modulação das entrescutas. As diversas alterações nos sistemas simbólicos locais geram os distintos totens simbólicos.
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10.13. Totens Elefantes: A simbolização é a própria cópula entre o raciocínio lógico e a intuição criativa que gera e gere a decantação icônica dos processos coletivos em cânones referenciais. Antepassado comum ao clã, signo guardião e auxiliar, o totem embora seja perigoso aos que não respeitam suas regras internas, reconhece e poupa aqueles que vigoram seus tabus. Ganapati é o justo e vitorioso Indra, mas também seus adoradores corruptos, na geração seguinte. Assim como a totemização contemporânea se desenha por um conjunto de práticas simbólicas condensadas durante a adolescência em humanos, entre os elefantes é nesta fase também que vemos as hordas se estruturarem. Quais as consequência do abandono das gerações adolescentes sem modelos ancestrais arraigados sob a tutela de propagandistas de produtos? Primeiro os colonizadores matam o centro de pensamento e ritualização simbólica da tribo, os outros se matam sozinhos. A cultura antiga dos mahouts não se mostrou em nada menos extrativista e violenta que os métodos de cárcere moderno zoológicos. A criação de uma cultura massificante, principalmente na adolescência, tem como intuito separar possíveis insurgências contra o poder centralizador através da criação de tabus sobre os processos de intelectualização e sensibilidade relacional. Os preconceitos e o bullying se encaixam neste projeto de desagregação social programada. A arte é o tabu do entretenimento totemizado. A arte é o totem do tabu desejante. 10.13.0. Totem Elefante: Aqueles que se põem frente ao signo totêmico da arte tendem a cultuar o reestabelecimento de ideais familiares e sociais, isto sempre embasado no erotismo fálico (do gesto poético) que incutem tanto à sabedoria quanto aos relacionamentos. Como são seduzidos pela complexidade, procuram seduzir pela virtude em cada gesto com paciência e precisão. Observam o cuidado mútuo para com os mais jovens e respeito pelos mais velhos, frágeis e doentes. Absorvendo força em si mesmos, buscam servir de fundação para as grandes pessoas e sociedades. A mitologia védica claramente indica que a posição dos deuses muda de acordo com as vicissitudes da vida cultural de seus adoradores. Neste alinhamento entre o sígnico e a psique, o admirador do elefante tem a oportunidade de rever seus laços, sentir-se parte da comunidade e do todo, e clamar por sua mais primordial e gentil realeza. 10.13.0.1 . Totem de Ganesha: No sistema ganapati védico, Ganesha mesmo se torna um totem através do tempo ampliando a noção mais simples e popular de seu mito (aproximada a vida de Krishna). Cada encarnação de Ganesha no Mugdala Purana tomou lugar em diferentes eras cósmicas, expressando cada uma delas complexos conceitos filosóficos, com seus demônios e batalhas específicas, associados com a progressiva criação do mundo. Cada encarnação representa um estágio do absoluto enquanto este floresce em criar-se. Vakratunda (“tromba torcida”), primeiro da série, representa a agregação de todos os corpos, uma encarnação da forma molecular da energia universal (Bhraman). O propósito desta encarnação é a de superar o demônio Matsaryasura (inveja, ciúme). Sua montaria (vahana) é o leão.
10.13.0.2 . Defensor dos excluídos: Manu, maior comentador clássico dos Vedas, descreve Ganapati como a divindade das classes oprimidas, os Shudras (em geral nômades ou estrangeiros). Em contraste pleno a Sambhu (“prosperidade acima de tudo”), divindade dos Bhrâmanes. A Índia é uma civilização antiga, o Brasil uma cultura antiga. Impossível não notar uma classe de artistas que defendem os direitos e as subjetividades dos excluídos juntarem-se. Os Ganapatis foram por muito tempo rotulados como violentos, por questionarem os desmandos ímpios dos poderosos. Apareciam mesmo como trono de Manjusree, chamado de vighmantaka, o “criador de catástrofes”. A transição hierárquica de Ganapati, passa pelo mesmo processo que as vanguardas, de uma condecoração de ornamentos e sofisticação. Essa mudança se dá de maneira abrupta e repentina nos Puranas finalizando mesmo no Narada dizendo: “Aquele que entregar este texto em oito cópias, a oito brâmanes, está certo de conseguir sucesso no aprendizado e isto graças a Ganesa.” Tal mudança se dá porque Ganesha, passando pela perda da cabeça, passa de criador de confusões a arquétipo de má condução, compreendida e modificada. Ekadanta (“presa única”), representa a agregação de todas as almas individuais, uma encarnação da natureza essencial da energia universal (Bhraman). O propósito desta encarnação é superar o demônio Madasura (arrogância, vaidade). Sua montaria é o rato. 10.13.1 . Devorar o próprio totem: Se uma elefanta é a esposa de Krishna (e do pai de Cristo, Javé), Ganesha tem por consorte o rato Gajamukha que, com seu jeito inquieto, simboliza a mente humana, sempre correndo de lá para cá, perdendo-se em experiências, pensamentos ou fantasias. A mente, assim como o rato, está sempre nervosa, faminta e com medo, e fica continuamente procurando novas experiências para alimentar seus infinitos desejos. E, assim como o rato tem hábitos noturnos, a mente parece estar sempre escondendo-se e fugindo da luz do espírito, preferindo caçar furtivamente nas sombras do desejo. Gajamukha deriva da palavra sânscrita “muushhaka” que advém de “muushha” (ouro). O princípio da valoração. O Nome Ganesha deriva da combinação de duas palavras: gana (mais comumente grafada guna) e isha. Os “ganas” ou “gunas” são os ingredientes que determinam a forma do universo dentro deste sistema simbólico, ou melhor, as formas em que a natureza se auto-organiza na razão sensível: inércia, ação e equilíbrio (tamas, rajas e sattva). “Isha” significa inteligência, controle, controlador. Ganesha, o vermelho, a inteligência que dirige e organiza as forças da natureza. É por isso que Ganapatya é, entre outros atibutos, senhor do karma, aquele que controla e dirige a lei de causa e efeito. Mahodara (“grande ventre”) é a síntese de Vakratunda e Ekadanta. É o absoluto enquanto este adentra o processo criativo. É uma encarnação da sabedoria da energia universal (Bhraman). O propósito desta encarnação é superar o demônio Mohasura (ilusão, confusão). Sua montaria é um rato.
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10.13.3. Tabus Elefantes: Os padrões de acasalamento dos elefantes nos oferecem informações importantes sobre as estruturas familiares e ciclos comportamentais de suas vidas. Os editais e prêmios artísticos são processos de julgamento, tabus que geram totens. Seus padrões de acasalamento são únicos, desde que os elefantes não se limitam a acasalar em um momento específico do ano. A situação que se desenvolve põe os machos a perseguir as fêmeas até que ela esteja pronta para montagem. Como porém pode-se pensar numa justiça da beleza que não acene à perseguição da feiura? Quando o elefante deseja atividade sexual, ele se aproxima do rebanho matriarcal. Uma vez que o macho termina, ele se junta ao rebanho bachelar (de machos) ou segue por conta própria. O jurado é um demagogo na posição de acusador e o artista é um réu hipnófilo de hipnose. É esse o comportamento masculino padrão, que destaca a família das elefantes matriarca. O demagogo, sabe como fascinar o povo, como criar uma espécie de sugestão em massa. Em alguns casos os machos seguem os matriarcados a distância, cuidando deles. Se o projeto demonstra que o artista se tornou, por algum tempo, física e mentalmente automatizado, submisso, então o projeto pode ser aceito. Gajavaktra ou Gajanana (“face de elefante”) é a contrapartida de Mahodara. O propósito desta encarnação é superar o demônio Lobhasura (ganância). Sua montaria é o rato. 10.13.3.1 . Tabu familiar-nepótico: Uma família de elefantes é liderada por uma matriarca, a matriarca é a mais velha e mais experiente da manada. O julgamento serve como um instrumento de intimidação contra o que realmente quer dizer o artista, ao mesmo tempo que encobre as máfias de simpatias afetivas dos julgadores. A sociedade matriarcal consiste de sua prole fêmea e seus filhotes. Em alguns casos pode incluir uma das irmãs da matriarca e sua prole também. É esse contato e relacionamento que permite que o resto dos elefantes adquiram o conhecimento necessário para a sobrevivência. Como artistas sem máfia, ou com máfias que não servem aos seus propósitos, lidam? Os locais onde os grupos bachelares mais violentam os matriarcados (centroeste africano e china) são também onde mais sofreram extermínio, talvez devido ao esquecimento destes conhecimentos. Os artistas atuam justificando suas obras, desculpando-se em testemunhos subjetivos. Agem como testemunhas de realidades inteiras como estratégia de aceitação, fazem-se notar como importantes servidores públicos e passam mais tempo tentando parecê-lo que de fato sendo-o. Os elefantes machos se excitam pela competitividade com outros machos e não pelas fêmeas. Alguns elefantes africanos machos formam casais e trios homossexuais. Vivem juntos em cópulas (homossexualismo e orgia) ao mesmo tempo que nos matriarcados são vistos casos de homoerotismo. Lambodara (“ventre pendente”) é a primeira das quatro encarnações que correspondem ao estágio onde os deuses purádicos são criados. Lambodara corresponde a Shakti, o puro poder das energias universais (Bhraman). O propósito desta encarnação é a superação do demônio Karodhasura (ira). Sua montaria é o rato.
10.13.3.2 . Tabu mortal-histórico: Algumas elefantas se recusam a abandonar o filhote em caso de morte. Há o direito de silenciar e conseguir outro trabalho que não a própria arte. Mas é vital pensarmos sobre a viabilização de uma arte sustentável e que sirva de molde de sustento social. Pagar pelo ócio e não pela produção, pagar espectadores, assim como os elefantes pagam tributos aos ancestrais mortos. A morte para o sistema, ou a reclusão e fuga nos tira quantos sábios líderes solucionadores de tensões, em prol da vontade excessiva de alguns violadores? Kafka, por exemplo, quanto precisou sofrer para testemunhar sobre este silêncio mortuário que é a censura econômica? Ocorre uma extorsão mental do artista, que pode ter suas ideias roubadas pela máquina burocrática e seus julgadores, e mesmo ser punido por suas intenções que nem mesmo venha a conseguir realizar. Vikata (“forma inusual”, “malformado”) correspode a Surya. É uma encarnação da natureza iluminante da energia universal (Bhraman). O propósito desta encarnação é superar o demônio Kamasura (luxúria). Sua montaria é o pavão. 10.13.4 . Clãs Elefantes: Os matriarcados e bachelares (bull bands), mesmo depois de separados mantêm uma associação entre si, isto inclui viajarem em proximidades (embora os machos necessitem ir mais longe). Que acontece com as pessoas que são chamadas a separar a verdade da mentira, o belo do feio, a fim de pronunciar vereditos justos e imparciais sobre quais as obras mais necessárias para a atual situação? Tais grupos de ligação, são chamados clãs elefantes. Este é um campo de estudo complicado e ainda com pouca documentação, devido em parte à pouca compreensão que temos da comunicação elefantina, ficando toda à observação dos cerimoniais de cumprimentos que demandam mais estudos por parte dos biólogos. Os jurados enfrentam a difícil tarefa de julgar e indagar com base apenas nos fatos, mas como no caso de um processo artístico que nem foi realizado ainda? Mas maior dificultador desta pesquisa (bem como da transmissão de conhecimento social entre os próprios elefantes), é a morte prematura de elefantes por marfim. Os jurados são influenciados pela atmosfera de emoção coletiva, suas necessidades e gostos, que envolvem questões controvertidas de subjetivação. Se são artistas também, por exemplo, hão de se preocupar com a competitividade e talvez hajam em prol de uma reserva de mercado. Vighnaraja (“rei dos obstáculos”) corresponde a Vishnu. É a encarnação da natureza preservativa da energia universal (Bhraman). O propósito desta encarnação é superar o demônio Mamasura (possessividade). Sua montarial é a serpente celestial Shesha.
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10.13.5. Aves elefantes, mamutes e o tótem da extinção. Os propagandistas da hegemonia capital são muito engenhosos em despertar em nós latentes sentimentos de culpa, repetindo sem cessar quão criminoso foi o mundo contra povos inocentes e pacíficos e como corrompeu ideais honestos. Ridicularizam os pensadores e artistas sérios, humilham os líderes revolucionários que falharam (camp), lançando mão de atitude crítica latente em cada um de nós, em relação a qualquer artista e chefe de campanha. Já há programas televisivos que buscam os “novos gênios da arte”! Algumas vezes, eles usam a tática do tédio para embalar-nos a adormecer sob o sonho da coexistência pacífica sob a cultura do entretenimento cínico. Buscam que rompamos com todos os laços de lealdade que nos ligam ao passado, e uns aos outros, separando pais e parentes, amigos e convivas. Toda estratégia que visa despertar medo e suspeita tende a isolar o indivíduo inseguro até que ele ceda a forças mais poderosas que seus amigos anteriores. Temos que aprender a medir e não medir nossas palavras, e a combater o exaustivo bombardeio de palavras totalitárias (e há muitas delas, como um exercício mental, neste projeto). É preciso, cada vez mais, que a função de jurado esteja imbuída de amor e sabedoria. Precisamos estabelecer símbolos de concentração de energia simbólica que não cedam à pressão da massificação campal. Dhumravarna (“cinzento”) corresponde a Shiva. É a encarnação da natureza destrutiva da energia universal (Bhraman). Seu propósito é a superação do demônio Abhimanasura (orgulho, apego). Sua montaria é o cavalo. 10.13.5.1 . Mapeamentos, distorcidos em recorte de gênero (25 homens e 4 mulheres)ou precisão das informações referentes aos trabalhos independentes acabam por permitir que se apaguem as lutas e políticas existentes no interior destas apropriações. Um dos delírios mais coercivos das ferramentas de julgamento meritocrático artístico é o delírio de explicação. No entanto, o que insistimos em esquecer (ou como em matrix, o que apagam de nossa memória) é que todos os sistemas são afinal programados pelos grupos dominantes. Cabe somente a nós escrevermos e refletirmos sobre nossa história, livres do pensamento mágico da onisciência que demanda a burocracia. Compartilhemos os códigos, químicos como Mckenna ou arquitetônicos como Fuller, enfim. Este projeto é uma tentativa de abrir os códigos da cultura, através da artística. 10.13.5.2 . Cerimonial: A (des-)apropriação tecnológica, em referência ao design cognitivo, aplica-se às novas gerações de instrumentos sócio-técnicos “coloca-se como uma questão de necessidade, de linguagem e de consciência; o problema da quantidade se sobrepõe ao da qualidade (…) [em] que países como o Brasil não podem e não querem pretender atingir a qualidade dos países desenvolvidos pois suas necessidades repelem o alto custo de aperfeiçoamentos tecnológicos contínuos que acabam por beneficiar apenas uma pequena parcela do povo.” O pensamento mágico da produção técnica e criativa, suscita respeitabilidade e submissão daqueles que se sentem premidos pela necessidade de explicar racionalmente os fenômenos que não compreendem. É neste sentido que achamos bem longe das iniciativas financiadas e governamentais a imaginação radical da apropriação tecnológica brasileira. Que nome dar a esta encarnação atual de Ganesha, que uniria todos os seus aspectos?
10.13.5.2 .1 . É necessário mais que nunca (Paulo Freire) em nossos trabalhos, ensinar tecnologia como se estivéssemos nas trincheiras, (nunca saímos delas). É necessário que estabeleçamos novos parâmetros de colaboração em que a arte, a política, a autonomia e o anticapitalismo sejam princípios e não palavras soltas ao vento. Urge a volta da micro-política em rede, das pessoas sinceras e suas nervosas inquietações, espaços de convívio e trabalhos onde a liberdade não seja um conceito único mas uma proposta político-pedagógica-cultural a ser construída em nossas práticas, por nossas colaborações, nossas próprias mãos, nossos livres saberes, nossos manifestos, que sempre estarão à frente do sistema, que por sua vez, sempre virá atrás – seja para nos reprimir, copiar ou cooptar.
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10.13.6. O sistema totêmico se organiza visando questões puramente práticas, destinadas a atender à mais natural das necessidades humanas. A burocracia é um processo intelectual projetivo, um projeto em si mesmo. Joga-se com as regras e com as ideias, intuições e conceitos, sem realmente participar dos empreendimentos culturais de suas épocas, pois passar um projeto polêmico envolve grandes riscos. A burocracia é o sistema totêmico atual que atua como exemplo, um modelo em grande escala de “magia cooperativa”. Se apropria dos processos de poder sobre o saber, controlando os fluxos de pessoas que abrem os mais diversos códigos físicos e psíquicos, pouquíssimas vezes se questionando sobre seus próprios códigos. A burocracia também é feita de subjetividades e não somente de máquinas. O sistema totêmico da burocracia cria uma reunião mágica e intermediata entre produtores e consumidores de produtos abstratos. Vamos dar a eles novos mitos, nossas selvas de leis, nossas belxs metasubcibertrans anti-heroínas. 10.13.7. A burocracia de julgamento refugia-se no isolamento intelectual e numa filosofia de torre de marfim, provocando muita hostilidade e suspeita por parte dos que recebem as pedras da lei em vez do pão do reconhecimento. Cada clã totêmico encarrega-se da parte de garantir um abastecimento copioso de determinada nutrição e manterem apaziguadas certas forças. Os intelectuais e artistas desempenham, no mundo democrático, um papel relevante de mestres das ideias e sensações; todo ensino, porém, envolve uma relação emotiva. Já que no sistema totêmico cada clã não pode comer os alimentos de seu próprio totem, as realizações de cada clã devem nutrir a todos os outros clãs. Devem sobrar editais de produção de arte, e de maneira nenhum haver competição àqueles que se empenham nas sagradas funções de produzir nossos sonhos. Eis uma simples saída à pobreza inventada pelos egoístas, um mundo de artistas, uma reserva natural da criatividade humana. 10.13.8. Na civilização ocidental, o desenvolvimento dos meios de comunicação coletiva intensificou a influência da pressão das massas, tanto sobre nossos preconceitos quanto sobre a imparcialidade do nosso pensamento. Na filosofia burocrática, a espontaneidade nunca é compreendida, nem o são o poder criador e a coincidência históricas e sincronicidades. Vivemos num mundo de ruídos constantes, que nos aprisionam, mesmo quando não o percebemos. Já temos o problema da voz solitária, que prega no deserto. Estou convencido de que há, entre nós, muitas pessoas sábias cujos ensinamentos nos auxiliariam a corrigir, em nossos pensamentos, o que é produto do delírio; e que estas vozes estão sendo sistematicamente, e também pelo excesso de ruído, abafadas. A tecnologia baseada na filosofia burocrática é fria e sem padrões conectivos, crente na ausência de fé, contrafeita ao próprio mundo em prol de regulamentos impraticáveis.
10.13.8.1 . Um totem de logomarcas e produtos: Em nossa sociedade totêmica do consumo, não podemos mais comunicar simplesmente a sabedoria e seus conhecimentos, para sermos ouvidos demandam que anunciemos e fortaleçamos nossas palavras com a discursividade vigente, com o poder dos megaciclos e dos rótulos oficiais. Mas justamente estes abafam junto à contínua produção de palavras vazias de entretenimento e humor camp e hipercomplexificação científica isolada da realidade social. Além de que para sermos ouvidos pelo sistema, precisamos ter por trás uma organização, para garantir que falaremos na hora exata em que haja ouvintes para receber a mensagem patrocinada. E se não tivermos um titulo reconhecido e um diploma, nossas palavras serão perdidas. 10.13.8.2 . Enfrentar os tabus das massas é uma das tarefas mais difíceis do participante numa democracia. A pressuposição da liberdade exige que cada cidadão tenha o direito de experimentar todas as formas de emoção e pensamento coletivas. Esta prova só é possível quando estimula constantemente a autocrítica, pessoal e coletiva. A democracia precisa enfrentar a tarefa de preservar a mobilidade do pensamento e da criação, a fim de se libertar das amarras de temores cegos e da magia do conforto. O combate e o entrechoque deve ocorrer com leveza e amor, para não ser defendido como violência e terrorismo. Neste exato momento, o mundo todo dança ao redor de um totem, a ideia mágica de que os poderes, materiais e militares, colocados por trás de um argumento aproximam-nos da verdade, que o poder pueril do humor e da fé possam nos afastar da seriedade do sublime nos confortando na mera beleza. 10.13.9. Agora, evoquemos o espetáculo, uma refeição totêmica ampliada por alguns prováveis aspectos que ainda não pudemos considerar (os ocasos da singularidade da montagem). O clã se acha celebrando a ocasião cerimonial pela matança cruel de um elefante e está devorando-o cru, o coração ainda pulsa – sangue, carne, marfim. Os membros do clã lá se encontram vestidos à semelhança do totem e imitam-no em sons e movimentos, como se procurassem acentuar sua identidade com ele. Devoram também a si mesmos neste espetáculo. Cada um ali na casa de ópera se acha consciente de que está executando um ato proibido ao indivíduo e justificável apenas pela participação de todos, não podendo ninguém ausentar-se da matança nem da refeição. Quando termina, o animal morto é lamentado e pranteado.
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10.13.9.1 . O luto é obrigatório, imposto pelo temor de uma desforra ameaçada que renega a responsabilidade da matança. O luto é depois seguido por demonstrações de regozijo festivo, instintos liberados, permissão para as gratificações complacentes. Encontramos aqui um fácil acesso à compreensão da natureza dos festivais em geral (Fausto perante à Valburga). Um festival é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição. Não é que os humanos se sintam felizes em conseqüência de alguma injunção que receberam. O caso é que o excesso faz parte da essência do festival, o sentimento festivo é produzido pela liberdade de fazer o que, via de regra, é proibido. Mas e quando os festivais dos incontáveis clãs (nichos culturais) se somam, e esta liberação violenta e irresponsável dos desejos impunes se torna a regra, ao mesmo tempo que os sacrifícios seguem continuamente debaixo de nossos olhos? 10.13.9.2 . Quantos mais precisarão ser sacrificados para que percebamos o real valor de nossa cultura artística de entretenimento e seus cultos hedonistas de luxúria à estética até que compreendamos que somos um mesmo clã sob o totem de uma figura humana (Burning Man) que compactua com o extermínio e a escravidão? A arte grega fala de refeições totêmicas no período de sua protofilosofia. Tenho em mente a mais antiga ópera, a tragédia. Um conjunto de indivíduos, com nomes e vestimentas iguais, cercava uma figura isolada, todos eles dependendo de suas palavras e cantos e atos: Coro e Herói-Heroína. O único ator. Orfeo devorado pela mênades. A Heroína-Herói deve sofrer, por sua rebelião contra alguma autoridade humana ou divina. O Coro segue-lhe com comiseração, tenta reter-lhe ao perigo, advertir-lhe e moderar-lhe o ímpeto, pranteando seus atos quando encontra o que sente ser a punição merecida por seu ousado empreendimento.
10.13.9.3. Mas por que deve o heroísmo sofrer? A cena em um palco é sempre um totem criado a partir de uma cena histórica tabu através de um processo de deformação sistemática (desde sua concepção no seio dos interesses individuais do artista, passando por todos os processos de ‘produção’) de um produto de refinada hipocrisia, pode se dizer. O Coro, os espectadores do espetáculo, são os causadores do sofrimento de Herói-Heroína. Primeiro como tragédia, lamentam matar a arte em prol do entretenimento e da necessidade de controle burocrático; em seguida como farsa a ópera se torna musical e arte museificada, em ambos os movimentos o crime de alienação é imputado aos artistas. A culpa jogada nos ombros da Heroína-Herói, a presunção e a rebeldia contra uma grande autoridade, era precisamente o crime pelo qual os membros do Coro, o conjunto de irmãos, eram responsáveis; e que o Herói-Heroína queria mostrar-lhes. Assim, a Heroína-Herói veste os erros do Coro para mostrar-lhe um espelho fidedigno de seus atos, redimindo-os em seu testemunho. 10.13.10. Ressonância corporal do totem: Vishnu inventou os chacras como forma de controle dos humanos. A serpente enrolada nos chacras é o símbolo da kundalini. A kundalini apoia-se num elefante, cujas sete trombas representam os sete minerais indispensáveis para o sustento do corpo físico e dos próprios sete chacras que alimentam o corpo psíquico. Segundo os Ganaptya Purana, a existência humana compõe-se de muitos corpos, cada um contendo diversos centros nervosos, hemoglobina, oxigênio, carbono, etc.; o corpo astral - o corpo psíquico, o grande inconsciente compõe-se de muitos aspectos ou dimensões; uma delas é um agregado de símbolos geométricos; outra compreende vibrações sonoras - o mundo dos mantras. Kundalini está adormecida, feito uma cobra enrolada no chakra muladhara. 10.13.10.1 . Dentro do muladhara existe uma formação semelhante a um nó, conhecida como o Brahma Granthi. Quando este nó e desfeito, shakti, o poder da kundalini, começa a subir pelo nadi sushumna, no interior da espinha dorsal. Parece-se com a irrupção de um vulcão, onde a lava escondida em seu interior é expelida para fora. Tal descarga pode conter o carma de muitas encarnações passadas, extraído subitamente do depósito inconsciente do muladhara. Se lembre, porém, o chakra cardíaco ajna deve ser ativado antes de qualquer outro, assim essas poderosas forças inconscientes podem ser controladas com segurança.
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10.14 . Sensações Elefantes: Clamando o totem corporal: Os elefantes têm uma forte proeminência corporal sobre seus aspectos metafísicos, o que já levou à tolice de acreditar-se que não tivessem emoções ou mesmo inteligência. Assim, indicaram melhorias e tornaram-se um símbolo para o primeiro chakra, na cultura corporal mais antiga do mundo. Este chakra terreno, abertura de todo o complexo sistema de pensamento corporal da ioga, na base da espinha serve de fundação ao corpo todo. Localiza-se no períneo (a região entre o anus e os órgãos genitais, plexo coccígeo) e tem referência às funções erógenas pré genéricas, o sexo anal em Freud. Este é o chacra mais utilizado por uma plateia sentada, observando uma ópera. Ligado diretamente aos testículos, está associado aos nervos sensoriais que os alimentam. No corpo feminino, localiza-se no colo do útero. As antigas escrituras iogues associam-no ao olfato e ao nariz, à cor vermelha. O primeiro chakra é o mais específico e limitado nível de energia no sistema. Um limite é uma fronteira separando algo de seu entorno de modo a defini-lo, separando-o de modo a termos algo inteiro e específico, uma singularidade. 10.14 .0. A desconexão do corpo, a automatização interna e o retraimento mental da esquizofrenia são epidemias culturais. Seja pela falta de cultivo que gera medo, ansiedade, tensionamento, perda de foco, desorganização, falta de limites; ou por seu excesso que se traduz numa fixação material, em ganância, apatia, preguiça cansaço, medo de mudança, vício em segurança, limitações rígidas. As tecnologias (científicas e psíquicas) estimulam sem cessar novas insatisfações e a produção de extravagâncias desnecessárias, sem mesmo sabermos por quê. De todas as perdas nos rompendo hoje, esta alienação pode ser a mais alarmante porque separa-nos de nossa própria existência. Com trabalhos degradantes em postura que nos tolhem, rotinas automáticas em ambientes que aniquilam os sentidos, perdemos o prazer que se desenvolve de uma conexão dinâmica com o estar presente. 10.14 .0.0. A dissociação produz ações perigosamente desconexas. Assassinatos sem sentido e atos terroristas que tratam o outro como objeto sem vida e encontram a fascinação mórbida de espectadores anônimos. Mulheres aniquilam ou inflam suas curvas para se encaixar em modelos plásticos. Homens engrandecem seus músculos sob submissão para construir um sentido de poder, usualmente anestesiando suas sensações e sentimentos. As tecnologias como um fim e não como um meio oferecem-nos a ficção da simples igualdade, em lugar da incessante procura por liberação, diversificação e singularidade das dignidades humanas. Milhares de adictos aos mais diversos vícios, se alienando com alimentos, drogas, ou atividades compulsivas. Crianças são espancadas, molestadas, e doutrinadas à obediência deste desregramento corporal. Sem um corpo como figura unificadora, nos fragmentamos reprimindo a vitalidade e nos tornando facilmente manipuláveis.
10.14 .0.1 . Somos ensinados a controlar o corpo através da mente, que consideramos muito superior. Mas o corpo tem uma inteligência cujos mistérios a mente pouco compreende. Lemos em livros como comer, vemos nos filmes como fazer amor, ouvimos as obras de arte dizer-nos como ouvir, quanto devemos dormir, e impomos estas práticas ao invés de voltar a escuta adentro. As tecnologias se esquecem que a perspectiva científica do mundo não passa de uma gradação do mito. A desvalorização do corpo é perpetuada pelo ódio da cultura e das religiões com relação a ele, tido como “raiz de todos os males”, mera “ilusão” ou apenas “insignificante”. Poucos artistas dão papel à corporeidade de seus gestos poéticos e à postura do espectador em relação à obra. As universidades de música e artes plásticas não incluem em seus programas anatomia, nutrição, movimento, ioga, alinhamento neuromuscular, bioenergética, ou mesmo massagem. As óperas deveriam ser assistidas dançando. O artista não é incentivado a tocar. Num certo sentido, quase toda a arte contemporânea é conceitual! 10.14 .0.2 . Suhdras: E nos espanta ainda que igualmente ignoremos os arredores físicos de nossos corpos (abandonados e encarcerados, estuprados por nossas incontáveis ideias), prejudicando o corpo planetário de modo a perpetuar nossa sobrevivência dissociada. O crescimento da mendicância é uma metáfora para nossa própria desabrigância cultural, sem pílula para tomar, nem cura mágica. As tecnologias, produtos da fantasia e visão corajosas, ameaçam matar essas mesmas visão e coragem, sem as quais nenhuma mudança é possível. A arte não pode oferecer ainda um anestésico quando o entorpecimento passar e o espectador se vir no meio de um teatro de ópera sob as restrições e abusos que tinha previamente aceito. Assim como a mente está para o corpo, a cultura está para o planeta. Conectar-se com sua própria identidade corporal é o primeiro passo para reconectar a cultura ao mundo real.
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10.14 .1 . Sobrevivência: O primeiro chakra está ligado ao primeiro período de vida, desde a concepção fetal intra-uterina aos doze meses de vida. O elemento que subjaz à consciência da fundação da própria obra é o instinto de sobrevivência. Este instinto é arcaico, fundamental, inevitável e baseia a manutenção de nossa existência física. Quando satisfeito, este instinto se recolhe a um ruído de fundo, permitindo-nos engajar nossas consciências em outras atividades. O espírito concebido como um computador mecânico é o resultado de uma racionalização e generalização compulsiva do mundo. Quais as consequências físicas da música empreendida hoje em salas de concerto? Há tempos não vejo pessoas de fato bailando nas festas. Assim tem sido desde o tempo dos primeiros pensadores. Esse conceito implica em negar a vida emotiva ou em lhe atribuir reduzida importância (da mesma maneira que a redução do corpo a uma mera ilusão ou mal) e em fazer da mesma uma zona marginal da consciência. Quando continuamente ameaçado, muladhara domina todas as funções conscientes. 10.14 .1 .1 . Medo: Quando a sobrevivência é ameaçada, sentimos medo. O medo aumenta nosso alerta e transborda o corpo com químicas naturais (como a adrenalina) que o energizam para a ação. O medo chama nossa atenção ao aqui e agora para responder à ameaça, mas foca a atenção para fora e nos chacras superiores da percepção e atividade mental. O medo é o ruído afetivo. Nos tornamos hiper vigilantes, inquietos, ansiosos. Podemos dizer que a arte pós-moderna é uma arte do medo, não conseguimos assentar, relaxar ou deixá-la vir e ir. Quando continuamente ameaçado, muladhara domina todas as funções conscientes, dificultando o foco e a calma, impossibilitando-nos de relaxar. Pessoas em situação de rua, sem-tetos, e a população pobre em geral, têm este tipo de sintoma. A paranoia coletiva da cultura atual, aponta um desarranjo das potências de sobrevivência que são em grande parte causadoras da violência social. O menticídio começa pelo abandono mental do corpo. 10.14 .1 .2 . Quando vivemos em um ambiente de perigo e privação contínuo, como no caso dos elefantes, o medo se torna um programa primordial de sobrevivência. A sensação de medo traz um sentimento paradoxal de segurança, por nos sentirmos hiper vigilantes e nos sentimos desconfortáveis com a fragilidade de relaxar. Pessoas em situação de rua, sem-tetos, e a população pobre em geral, têm este tipo de sintoma. Não teria a cultura humana não tornou elefantes mais violentos do que eram? O desenvolvimento da indústria na cultura ocidental afastou-nos dos ritmos naturais nos quais conseguimos sentir e pensar; da mesma maneira, a cultura da indústria afastou a beleza das situações cotidianas. A paranoia coletiva da cultura atual aponta um desarranjo das potências de sobrevivência que são, em grande parte, causadoras da violência social. O menticídio começa pelo abandono mental do corpo e o abandono corporal daquilo que a mente julga certo ser executado.
10.14 .1 .3. Os padrões mentais do medo tratam de um desarranjo harmônico entre a subjetividade e as forças externas do mundo que atuam sobre esta. O medo é um adversário sagrado, que nos ensina muito, quando ouvido, compreendido, e enfrentado no mundo e em nós. Para enfrentar o medo é necessário juntar dados sobre o assunto que nos preocupa, reunir recursos para efetivamente nos depararmos com situações similares no futuro. Isto inclui a criação de uma auto-estima (vida enquanto obra de arte), ajudar pessoas com problemas próximos ao que sentimos experienciar, melhorar nossas capacidades de tratar de nossos temores. O medo é o tipo de problema que só pode ser vencido quando o percebemos como uma solução. 10.14 .1 .3.1 . Esperança e medo são dois sentimentos com qualidades similares. O medo é a crença de que algo ruim acontecerá, a esperança a crença de que algo bom acontecerá. Ambas sensações se baseiam numa projeção de futuros possíveis, que como no caso de um projeto de arte (como este, por exemplo), pode modificar as estruturas das crenças pessimistas e arrazoáveis da produção de medo, tortura e menticídio por um otimismo mínimo, razoável e natural. 10.14 .2 . Enraizamento e nutrição, manifestação e prosperidade: Até as maiores árvores foram sementes que demandaram seu terreno. A nutrição é a mais básica das artes, que suporta o corpo todo e toda a subjetividade. Um elefante é uma semente de quê? Sem nutrição, colapsamos. É vital o acesso irrestrito de todxs à arte e ao conhecimento. Mantenha os dois pés no chão. A sustentabilidade de uma obra e a subsistência de um artista na sua comunidade tem muito a ver com a nutrição, que modos de vida e que tipos de arte se consome. Há muitos artistas que se têm na conta de gênios, sem nunca porem à prova seus ideais metafísicos no mundo, sem nunca ouvirem outras possibilidades de fazer. Há outros também com obras delicadas que se sentem tolhidos pelo excesso de produção e nunca se exibem tampouco. Para manifestarmo-nos é preciso aceitar limitações, focar no que queremos, perceber a que escutas falamos. Temos de nos unir à especificidade escolhida por tempo o bastante para que a manifestação da obra ocorra, e normalmente este tempo é maior do que prevíamos mentalmente. Eu precisei sentar-me por meses para finalizar este projeto, sem querer apaguei tudo quando já havia atirado os manuscritos ao fogo, mais meses me tomam tentando eu mesma entender estes escritos e vislumbrar aonde me apontam, mas este é só o final de um processo de onze anos de escrita sobre a escuta.
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10.14 .2 .1 . Há muitas pessoas muito inteligentes e talentosas, especialmente no ab_ismo e nos círculos da contracultura (pós-digital), que não conseguem manifestar prosperidade. Temem se fragilizar ou tornarem-se alienados na alegria sem violência. Nota-se que este grupo tem um apego irrealista à liberdade, uma indisposição a aceitar limitações o bastante para manifestarem suas necessidades. A desvalorização da mente humana individual, substituído pelas redes neurais mecânicas, lembra-nos do delírio totalitarista (clã majoritário). Há uma forma de orgulho vaidoso na arte, que nos afasta da humildade do corpo. Este apego à genialidade e à liberdade gera um aprisionamento às formas da sobrevivência, do medo e da sobrevivência que só compactuam com o menticídio generalizado propagando a luta de todos contra todos num estado de eterna competição contra a cultura da dádiva. 10.14 .2 .1 . Eu mesma, sempre temi ter prosperidade e manifestar minha escuta. Passei anos sem conseguir emprego, lutando contra a cultura de patrocínios e editais, cheguei a morar por um tempo nas ruas de Buenos Aires e São Paulo sem que ninguém soubesse por onde andava. Desapareci. Eu era livre das restrições dos sistemas de produção, das hierarquias, mas também era pobre demais para fazer qualquer coisa com minha liberdade. Não foi até que aceitei meus limites com graça que consegui manifestar alguma prosperidade para mim mesma. Quando cooperamos com nossas próprias limitações, nossas energias erigem e naturalmente resolvem de maneira suave e sutil, problemas que só aumentávamos com nossas revoltas. É preciso aceitar as limitações para ultrapassá-las, é preciso aceitar o nosso foco de escuta do audível para poder ressoar nossa aura. 10.14 .3. Afetos de fetos: A arte é a produção de uma cultura ainda por nascer. Sua pré-história se deu no século XX, no útero maquínico do estado capital. O elefante (esta complexidade de potencialidades infinitas) é um feto (que numa tremida devasta os Tarkus ainda sobreviventes) que abre os olhos e vê imagens borradas de pinturas abstratas e ouve ruídos insuportáveis e mais altos do que nunca antes. Está com medo e com fome. Algo atira seus lábios em direção à terra de onde suga leite de lava. Relaxa temporariamente sentindo-se seguro. Nascer é a mais difícil tarefa, seja para uma obra, uma pessoa e mesmo ao poderoso elefante. Nos primeiros tempos de vida, não se consegue fazer nada por si mesmo. Não se compreende a linguagem dos seus próximos ou dos objetos, não se consegue fazer-se compreender tampouco, só as próprias sensações ressoam sua existência, e ainda assim a sobrevivência depende de que suas necessidades sejam supridas. Embora grandes empenhos sejam necessários para a execução das tarefas mais simples, as necessidades não são mais resolvidas automaticamente. Aumentam as demandas e diminuem as recompensas.
10.14 .3.1 . Presenciamos as primeiras vagas sensações de individualidade da arte em relação à experiência humana, é um período de intensa reflexão sobre o papel humano no mundo. A arte contemporânea reflete instintos primários de gozo e dor, respostas nervosas instintivas à autocompreensão do sistema planetário. Assim como a criança é muito sensível ao seu ambiente, a cultura também o é. O regime inumano se torna alvo a atingir, um produto da tecnocracia e da desumanização sensibilicida e que pode ter como consequência a brutalidade organizada e o esmagamento de toda espiritualidade e intuição do bem. E da mesma forma que presenciamos uma passagem do animismo à estruturação sistemática da religiosidade na ancestralidade, agora a arte (animismo dos objetos de consumo) começa a ser sistematizada numa rede formal de arquétipos. Se a mãe bebe petróleo, a criança crescerá adicta. Ainda, a criança não tem conhecimento de sua individualidade por algum tempo, onde é doutrinada ou educada para a liberdade pelos pais (the slime on the web). 10.14 .3.2 . Confiança e desconfiança: A experiência do corpo materno se torna a primeira experiência de si. Afastados do chão envenenado por eras, sem poder plantarmos nosso próprio alimento, encarcerados sob a frieza da ausência de contato, qual seria uma arte realmente planetária? Ou esta que ironiza e ridiculariza os afetos, que colabora com a falsidade e com o menticídio e sensibilicídio, ou outra que enfrenta a descrença com alegria e propõe formas de novas de harmonização relacional. As obras violentas (como a de Jonathan Meese) são sintomáticas neste sentido: um choro de criança pedindo por comida, carinho, e conforto; os espectadores se identificam com isto e embasam seus discursos da ditadura do artifício camp para não ter que tocar em suas próprias infantilidades sensíveis e intelectuais. As obras de arte violentas compactuam com a desconfiança imposta à arte que desmerece os artistas que propõem soluções factíveis e viáveis com a visão de que a arte como um todo não merece ser ouvida.
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10.14 .3.2 .1 . Tal desconfiança com relação ao instinto de produção subjetiva, em pleno período senso-motor do corpo social, é criada como uma estratégia de sensibilicídio que mantém a escravidão da maior parte da população humana e animal em prol de desejos prima de uma minoria. Assim como uma criança herda os traumas de seus pais, a cultura traz consigo a predominância intelectual sobre os aspectos físicos da sobrevivência de todxs, reflexo programado para justificar a hierarquia das classes controladoras dominantes sobre obreiros criativos. Há grandes semelhanças entre as relações das crianças e dos elefantes. Não demonstram sinais da arrogância ou inibição de suas necessidades corporais, que faz com que os civilizados tracem uma linha rígida entre sua própria natureza e a dos animais. A perda deste estado de conexão e naturalidade corporal, gera enormes desconfianças. Não propomos um retorno de qualquer forma prévia, tida como animal, mas de uma liberação para a reinvenção do humano, ainda por fazer-se 10.14 .4 . O direito de estar aqui: Como você se sente lendo este projeto? E assistindo esta ópera? Mal? Então pare! Esta obra não é pra você. Propomos que você sempre leia como quem canta, que assista como quem dança, que saia desta experiência massageando seus queridos, que leia escrevendo uma continuação ainda mais bonita pra isto tudo. Do seu jeito! Relaxe e faça com prazer do melhor jeito possível. Imagine só como é o sexo dos elefantes. A compositora está escrevendo tudo isto num embate, sim! Mas quanto prazer não sente nas entrelinhas destes. Sinta seu corpo enquanto assistir a qualquer obra de arte. Eu gozo sem me masturbar. Preste-se atenção especial sob as distintas influências estéticas. Que isto muda no teu gosto? Agora recoste-se e sinta como te arrancamos as presas.
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10.15. Marfim: A história da ópera trata de compositores revolucionários, que em geral utilizaram-se das linguagens mais acessíveis e subutilizadas (transmutando o apelativo em intenso), assim como uma presa de marfim nada mais é que dente polido. Em geral, como músicos, aspiram ao absoluto, mas não o encontram nas religiões em vigor: é a arte que lhes aparece como sua melhor encarnação. O marfim de presas de elefante é tradicionalmente esculpido em produtos como jóias, estatuetas e ornamentos. A partir daí, uma dupla relação se estabelece entre a atividade artística e a vida social. De um lado, para que a arte se desenvolva, a sociedade deve lhe oferecer as condições mais favoráveis possíveis; por outro a música deve questionar com base nos conhecimentos absolutos da harmonia as condutas sociais através, por exemplo, da ópera enquanto performance trágica.
10.15.0. Safári: Importações de marfim, incluindo muitas antiguidades, de ambos elefantes asiáticos e africano agora são geralmente proibidos. A compra de marfim pode constituir um incentivo para caçadores furtivos e comerciantes ilegais e ameaçam a sobrevivência dos elefantes. Porém, como o mundo no qual vivem, está longe de reunir tais condições - e como eles bem notam (basta ver os escritos de Wagner e Verdi e seus duplos Wallenstein e Garibaldi), até mesmo conspira contra, - é preciso transformá-lo, apoiando portanto, as revoluções contínuas. Encarar a vida como safári é atuar na selva como se nossos próprios corpos fossem apenas barracas, ao invés de habitarmo-nos, apenas um camp. O mais curioso é que o marfim tenha, ainda assim conseguido culturalmente ser o símbolo totêmico de um poder luxuoso e ao mesmo tempo puro. Os compositores de ópera não se interessam pela política senão na medida em que esta contribui (ou atrapalha) para o desenvolvimento pleno da arte. A revolução social não é, para eles, um fim em si mesmo, mas um meio de facilitar a revolução artística e estética da fruição cotidiana, o alicerce que permitirá construir novas formas de experiência. 10.15.0.0. Armas de Elefantes: Da pureza criada culturalmente e luxúria fetichista do marfim também está imbuída toda a composição para pianos, seus dedos se lembram do que tocam às teclas ou sua composição se aliena do processo. A máquina, que se transformou num instrumento da organização humana e tornou possível a conquista da natureza, assumiu posição ditatorial. Arrastou as pessoas a respostas automáticas (repetição temática), a padrões rígidos de comportamento (partituras) e a hábitos destrutivos (ruidofilia). A história da ópera acompanha a história do marfim (Rimbaud, traficante de diamantes e T.E. Lawrence), o piano é um elefante e uma árvore amalgamados num fóssil em forma de asas de anjo que canta quando martelado. Seus dedos às teclas, compositor, são armas de elefantes: mire-as ao inimigo certo.
10.15.0.0.1 . Terror Elefante: O arco é a morte à distância, morte inexplicável. Lançamos cantos para o deus (flechas para o animal). Quando o canto toca, trespassa, mata. O instrumento musical é arma. O som do disparo precede a morte. O hino X do Rigveda define os humanos como sendo aqueles que, sem o saber, têm como terra a audição. Habitamos a língua, sonhos são paladares. Não são grutas ou naves que nos acolhem, mas palavras trocadas, sons de conforto e confronto. O belo som está ligado à bela morte, o ruído ao massacre. 10.15.0.1 . Calibres: O cânone musical erudito baseou o temperamento das escutas em um instrumento que é, basicamente, o ícone (ouvir Radalescu) do sacrifício animal, vegetal e mineral. Isto em prol de uma autoridade na autoria da afinação das escutas sociais em 12/7. Contra esta hegemonia pode-se auscultar a obra de Huygens Fokker e mais tarde Giacinto Scelci e Walter Smeták. O êxtase da influência e iteração de tendências atua também no cenário das artes onde os acervos e exposições se assemelham ao repertório musical de um jóquei de discos (poderíamos chamar o curador de AJ, ou art jockey). O que serviu de legitimação ao discurso tonal foi a sua facilidade de sistematizar esta tomada de poder da autoria de um enorme conjunto de práticas musicais sob a autoridade de uma afinação. O calibre das obras musicais de um período compactua com a afinação do escopo de escuta deste mesmo período, quando Saint-Saën retrata o elefante em seu Carnaval dos Animais, jamais lhe passa pelos dedos o peso das teclas (como ainda hoje poucos levam em conta o processo produtivo em conta na produção de suas artes). 10.15.0.1 .1 . Podemos purificar a beleza do terror? Impedimos o terror do canto pela sua antropomorfização. Que mundo supomos quando fingimos surpresa vendo o terror misturado ao poder predador? Hipnotizar, impôr silêncio, manter em respeito sem ceder justamente ao que evitávamos? Tudo está coberto do sangue ligado ao som. O sorriso que mostra os dentes nos tigres, nas hienas e nos humanos é um resto de pânico. Uma cantilena renascendo na memória surge como uma armadura, nos informando o estado do espírito. A obsessão sonora não consegue separar do que ela ouve o que ela não cessa de querer ouvir e o que ela não pode ter ouvido.
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10.15.1 . Tráfico: O tráfico de substâncias psicoativadoras (denegridas sob a alcunha de drogas) opera como metacrítica da publicação e abertura dos processos de alteração corpóreas na nutrição coletiva (pensemos no flúor subliminar da água dita potável) bem como resistência civil do uso de poder estatal sobre o indivíduo. De maneira similar as redes curatoriais de comissões julgadoras ministram, escolhendo a arte que melhor se encaixa, à expansão de uma subjetivação latente numa certa comunidade. Tratar o tráfico de marfim como obra curatorial e o tráfico de drogas como ministério xamânico é o começo de um processo de transparência que chega também aos próprios processos artísticos e à economia de obras, acervos e trânsitos simbólicos geridos por colecionadores enquanto performers sociais. Numa instância mais ampla ainda, tal transparência assume a política como tráfico de influências míticas e religiosas no nó global das objetivações de obras técnicas e estruturais, a partir de conhecimentos científicos em nome de uma força desejante local. A Cosmococa de Oiticica trata sobre isto como presente em cada instância de nosso ócio.
10.15.1 .0. Dosagem curatorial e psicoativadores: Uma problemática da dosagem curatorial reside na capacidade de se abranger logicamente, a partir da significação simbólica da arte onde surgem as manipulações dos meios desejantes, para alcançarmos um resultado sensorial, sugerem um lucro capital à condição emocional de ansiedade produzida. O que se realiza na condição atual da curadoria e do tratamento das substâncias psicoativadoras somente em sua má administração (drogadicção e capitalismo) é a manipulação farmacológica de substâncias anestesiantes, procrastinadoras, que nos deixam sobreviver em condições via tubos de nutrição emocional goticulados. A arte, nossa amiga de adolescência e infância, das mais fortes e pesadas destas substâncias psicoativadoras, nos nega a ação ao invés de nos deixar acentuar particularidades expansivas, penetrantes e alteradoras que consistem num preenchimento absoluto do “si mesmo” enquanto produção subjetivante. Os produtores nos preferem como repetidores de padrões relacionais. E assim se alimenta qualquer convicção corajosa para que se desperte no outro um estado de “ser experimental” (continuidade fértil-criativa para uma vida mais específica).
10.15.1 .1 . Tráfico de Elefantes: Por que atribuir a honra do acesso ao absoluto a artistas? Para que só curadores tenham acesso aos seus conhecimentos em residências artísticas e oficinas, enquanto colecionadores aristocratas que “os compreendem” à posse fetichista de suas obras? Como ainda permitimos que o acesso político seja restrito por processos eleitorais? É aqui que intervém o tráfico subjetivo entre arte e sociedade: a finalidade suprema do humano é a finalidade estética, e a inutilidade da arte é a atividade mais elevada do engenho, aquela que coroa nossa insignificância em um universo de indiferença, é o gesto poético mais próximo da religiosidade. A liberdade almejada pelas ideologias liberais só é alcançada na verdadeira arte desapegada, na dádiva sensível, assim como os únicos políticos honestam não poderiam ter bens nenhum por toda a vida. As boas obras que docilizaram o público, também foram extremamente perigosas. 10.15.1 .2 . Os trabalhos tidos como penosos e as labutas extenuantes, podem ser convertidas em criação artística ao permitirmos uma área de liberdade aos seus executantes. O trabalho se torna arte e grande prazer quando se o faz com prazer de servir. O proletário se torna artista na medida em que se aliena artisticamente. O escravo da indústria se transforma em produtor da beleza que o oprime. Elefante que carrega marfins com a tromba. Não podemos estar mais a serviço da arte, já que ela deve se tornar nosso cotidiano. Sem artistas a serem celebrados, porque todas as obras sociais devem ser medidas pelos pressupostos de uma estética (micro e macro) relacional. 10.15.1 .3. Se antigamente os reinos legaram à memória um grande artista e elefante mártir (testemunha) de uma causa est-ética; modernamente as escolas de heróis artistas e os sistemas de cuidados paquidermes já se mediam pela base deixada por estes pioneiros da memória documental (da arte e da zoologia carcerária). Atualmente porém vislumbramos uma rede de celebridades da arte (artistas sendo aqueles tratados como artistas) que mais que um valor pessoal, apenas somam a uma valoração geral de ‘artista’ enquanto modo de atuação econômica no capitalismo subjetivo. Quanto aos elefantes de hoje, são mantidos como moedas (matéria-prima potencial), commodities da eco-economia. 10.15.1 .3.1 . Cuidar de alguns pode ser ir contra todos, cuidar da maioria pode ser ir contra alguns. E o elefante populacional cresce exponencialmente, e quanto mais elementos um sistema tem, mais difícil é de apreendermos-no. Depois que a vida se tornou cada vez mais complexa, surgiu entre nós um grupo de mediadores subjetivos. Não se trata mais do sacerdote de outrora, o mediador entre a humanidade e seus deuses, entre nós e as forças naturais que nos sobrepujam, mas de um grupo de administradores que inventa a opressão para mediá-la sob a alcunha de uma interlocução com “o governo”. Uma das principais técnicas de administrar as massas encontrado, foi o controle dos desejos inconscientes das pessoas, substituindo as ânsias que tinham por suas necessidades por desejos inventados. A esta técnica chamaram engenharia do consentimento.
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10.15.2 . Caçando Elefantes: Todos os laços burocráticos rígidos e administrativos têm sua função não em ajudar a realização dos eventos artísticos, mas em interceptar os que possam ser perigosos a esta cultura anti-artística do entretenimento que nega olhar os problemas causados pela arte e pelo aculturamento; da mesma maneira que um escritório de safáris funciona a partir de lobbies políticos para manter os animais como caça de divertimento duma parcela sedenta por demonstração de poder num espetáculo de violência gratuita vigiada e num ambiente controlado e seguro. Esta próera é um roubo político. Demandamos a aura das obras de arte contemporâneas de volta. Enquanto somarem nossas heroínas e heróis a este coro dos contentes, haveremos de ser anti-heróis e anti-heroínas! 10.15.3. Mercado negro e capital cognitivo: Se a arte quisesse, de fato, não ser associada a um tráfico de sensações, teríamos de retirar o valor das obras em prol dos processos, incentivando colecionadores que dialogassem com artistas vivos e participassem de suas criações ativamente. O mercado de arte roubada movimenta a impressionante quantia de US$ 4 bilhões todos os anos, mas isto não chega perto nem do que uma só casa de leilões de arte movimenta. Algumas vezes importantes telas são relançadas no mercado formal após longo processo de "lavagem” ou de “branqueamento”, isto é, de revendas sucessivas até chegar a algum “insuspeito” proprietário. Estes dois modos de mercantilização seguem as mesmas regras e atuam sobre as mesmas valorações do artístico (objetiva-mercantil sobre subjetivade-de-poder). O que é um roubo a uma obra de arte, perto de vender-se uma obra de arte? 10.15.3.1 . O capital fixo mais importante na arte, porém, aquele que determina os diferenciais de produtividade, encontra-se na inteligência e sensibilidade das gentes que lhe trabalham: é a máquina-instrumento que cada um de entre nós transporta em si próprio e que só funciona na relação com o mundo e outras máquinas destas. É isto a novidade absolutamente essencial da vida produtiva de hoje, somos o valor que nos negam. Uma vanguarda artística é tratada pelo mercado como uma obra roubada e devolvida, como piratas e piratarias. Daí para o mercado formal, os “piratas” contam com o esquecimento ao longo do tempo de suas lutas e com a inexperiência ou ignorância de incautos ou do ardil de perversos compradores que adquirem obras engajadas extraindo delas seus sentidos.
10.15.3.2 . Sabe-se que nenhum museu costuma assegurar seu acervo porque o custo é exorbitante: um acervo de US$ 1 bilhão, por exemplo, pagaria cerca de 10 milhões por ano. De maneira similar, um museu não poria em risco seus investimentos capitais em matéria tão inconstante quanto a cognição relacional dos artistas. Daí, a preferência por investimentos em vigilância humana (ronda dentro e fora do prédio, por exemplo) e em tecnologia avançada para detectar e documentar a movimentação interna e externa de museus. Ao mesmo tempo que se eleva a qualificação de certos trabalhadores, o capitalismo reproduz com efeito as formas mais elementares e mais clássicas de exploração. As obras mais importantes dos museus famosos contam com proteção especial, algumas delas de artistas que morreram na pobreza. 10.15.3.2 .1 . As políticas de minimização de riscos são as causadoras da diminuição vertiginosa da produção e da interação do público com a arte. Não defendemos a depredação das instituições de cuidado, mas a abertura de diálogo para intervenções, tidas como negativas pelas curadorias, como as pixações. Aliás, os seguros são mais baratos quando os técnicos examinam a proteção e a consideram eficiente. Quando o FBI diz que roubar arte é como roubar a história, entendemos melhor o papel dos museus e o tipo de ardil pseudo-revolucionário que há na criação de novas moedas para um mercado alternativo de arte.
10.15.3.2 .2 . O mais dramático é que as deficiências apresentadas pelo sistema de segurança pública e de justiça em prevenir, apurar e punir os crimes acabam se tornando, objetivamente, num poderoso incentivo à criminalidade. É um círculo vicioso que começa na falta de ações preventivas, continua na baixa apuração dos crimes cometidos, alimenta-se da ausência de condenação e, por fim, quando esta acontece, em prisões de onde é fácil fugir ou delinquir. O mais importante é que terminar com a sinalização clara de que o crime compensa. No caso da própria arte, o crime é um indivíduo não criar o que sua consciência mais verdadeira lhe pede, mas sim produzir o que o mercado demanda. Quantos artistas não são ladrões de suas próprias obras?
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10.15.3.3. O mercado subterrâneo de obras de arte continua crescendo - é o terceiro mais rentável do mundo, depois do contrabando de armas e do narcotráfico. Podemos visualizar estas obras como elefantes de circo que são comprados por particulares. O furto e o roubo podem envolver muitos “atores” simultaneamente - marchands clandestinos, colecionadores inescrupulosos, receptadores, escroques, guerrilheiros, terroristas, policiais e funcionários alfandegários corruptos, entre outros. Quadros famosos e antiguidades são moeda para financiar outros crimes, são assim tornados meio para obras de intervenção subjetiva, seja de resistência ou de realimentação ao sistema mercantis das artes. Haja vista a máfia marselhesa, que nos anos 1960 e 70 deu ao roubo de arte os seus contornos atuais, ao atacar coleções públicas e particulares na Riviera Francesa e retirar de uma vez, num assalto espetacular, 180 obras do Palácio Papal de Avignon (incluindo uma escultura de elefante). 10.15.3.3.1 . Paguem pelo consumo! Foi ali que começou a se formar um mercado negro internacional. Atualmente, a pilhagem de museus está, muitas vezes, relacionada ao tráfico de armas e de drogas, e até mesmo ao terrorismo. Obras-primas podem ficar mergulhadas por anos no mercado negro e ser negociadas por valores não superiores a 5% ou 10% do que alcançariam num leilão legítimo. Raramente elas são vendidas por si sós. Costumam entrar em barganhas na aquisição clandestina de armamentos, por exemplo. 10.15.4 . Crimes artístico: O que propomos com a próera “O Elefante de Marfim” é estabelecer um anti-mercado transparente em seus gestos e que publicamente defenda a subjetivação das obras de arte em prol de vivências artísticas. São muitos os exemplos (Banksy, Cildo Meireles) de artistas que utilizam subterfúgios para conseguir atuar dentro do sistema lógico da arte. O que queremos aqui é distinto, pois queremos agir dentro da lei e do formalismo dos editais, queremos atuar como uma resistência civil em prol de práticas, processos e métodos artísticos servindo de modelo a um papel da arte na cibernética cultural. Buscamos ser uma alternativa à criminalização dos processos de pesquisa necessários para a melhoria da comunidade global. 10.15.4 .1 . As pessoas respondem por incentivos, ou seja, tomam decisões comparando custos e benefícios, assim seu comportamento pode mudar quando esta relação se altera. Mankiw lembra que “os formuladores de políticas públicas nunca deveriam esquecer os incentivos, visto que muitas políticas mudam os custos ou benefícios com que as pessoas se deparam e, portanto, alteram comportamentos”. Este pensamento pode ser utilizado para qualquer ação humana, inclusive para ações criminosas, visto tratar-se de atividades humanas. 10.15.4 .1 .1 . Basicamente, a decisão de cometer ou não o crime resultaria de um processo de maximização de utilidade esperada, em que o indivíduo confrontaria, de um lado, os potenciais ganhos resultantes da ação criminosa, o valor da punição e as probabilidades de detenção e aprisionamento associadas e, de outro, o custo de oportunidade de cometer crime, traduzido pelo salário alternativo no mercado de trabalho. Isso significa reconhecer que os indivíduos não decidem apenas motivados por circunstâncias econômicas ou sociais, mas também influenciados por valores culturais e morais aprendidos na convivência social; as pressões oriundas do ambiente externo sofrem a mediação da consciência e dos seus valores morais.
10.15.4 .1 .2 . A teoria econômica do crime procura integrar todos esses elementos num modelo explicativo das decisões dos indivíduos pelo crime e pelo não-crime. Os benefícios consistem nos ganhos monetários e psicológicos proporcionados pelo crime. Por sua vez, os custos englobam a probabilidade de o indivíduo que comete o crime ser preso, as perdas de renda futura decorrentes do tempo em que estiver detido, os custos diretos do ato criminoso (tempo de planejamento, instrumentos, etc.) e os custos associados à reprovação moral do grupo e da comunidade em que vive. O que é um crime frente a uma teoria econômica do crime? 10.15.4 .2 . Jingles e samples: Existem os mais diversos tipos de demandantes de obras roubadas: os colecionadores privados que desejam manter obras valiosas em suas residências, exibindo-as como troféu ou como símbolo de poder, como cabeças de elefantes. Mas num geral, o próprio processo de compra é uma demonstração de falta de compreensão dos valores da arte. Em suma, do ponto de vista da teoria da economia do crime, a solução para o problema é reduzir o retorno esperado da atividade criminosa, ou seja, reduzir os incentivos inviabilizando-a economicamente. Em outras palavras, alterar as variáveis da equação, atuando no sentido de elevar os custos da ação criminosa, de aumentar a probabilidade do criminoso ser pego, e de majorar a punição. Isto se faz com mais segurança nos locais que hospedam obras de arte, leis mais rígidas e punições mais severas e fiscalização atuante. 10.15.5. Defesa dos Elefantes: Mais exatamente, é a comunidade em seu conjunto, decidindo livremente sobre sua existência (enfrentando os especuladores), que deve adotar a atitude criadora. É porque somente um esforço comum pode realizar esse projeto contrário ao egoísmo, este enredamento comum (cibercomunismo). Somente por uma aceitação dos problemas do mundo como parte de nossas psiques e uma atuação interventiva de modificação destas, com alegria, é que podemos criar.
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10.15.5.0. Especialização dos zoólogos: Ocorreu uma “natural” segmentação nepótica das artes onde os artistas de proveniência abastada criaram redes de sustentação de seus poderes facilmente e os pobres não puderam nem mais dizer que eram artistas, pois suas produções subjetivas iam de encontro a este padrão e suas redes careciam de auto-sustentabilidade. As noções de investimento ligadas à arte enquanto produto (e não obra), que levam as pessoas a quererem apoiar propostas de valor reconhecido no mesmo âmbito em que o reconhecimento é negado a grande parte dos produtores de subjetivação que encaram este mesmo sistema. Uma abertura dos códigos de conduta profissional e das práticas de experimentação da produção artística recai sobre o conceito de ópera (obra). A ópera da obra, segundo Lafevbre em “O Direito à Cidade” é a reapropriação simbólica, a ocupação sígnica dos produtos por meio de um contato direto com estas, e a revitalização da produção através da aura. Walter Benjamin atribui a qualidade “aurática” aos objetos que têm a capacidade de devolver o nosso olhar ao aqui e agora. Isto significa que são as marcas de temporalidade e vivência do próprio objeto ou processo artístico, que forçam o olhar a demorar-se nele (que já nos é), a confrontar-se com uma profundidade, um valor que ultrapassa o valor comercial ou de exposição. A aura é um veículo de entranhamento psíquico entre a obra, seu espectador e contexto, que parece diluir-se ou ser incompatível com a experiência de “choque” e com os sonhos de consumo imediato do capitalismo. A aura preenche o ab_ismo. 10.15.6. Valor dos Elefantes: Assim como quem compra marfim mata um elefante, quem compra arte tem uma responsabilidade simbólica que vem de carregar consigo aquele objeto imbuído de história e sacrifício. O marfim é considerado possuidor da mais perfeita forma inorgânica em toda matéria orgânica. É um elo entre a vida e o cristal. O paraíso ecológico de Inhotim, por exemplo, é patrocinado por uma mineradora das mais poluentes. É preciso pensar a arte como produção de ideologia das classes que a permitem ocorrer. A associação “Amigos de Inhotim” deduz de suas contribuições ao imposto de renda àqueles que apoiam o museu, por que não ocorre o mesmo com o tempo gasto assistindo às obras? Olhando para o marfim, essas formações maravilhosamente ordenadas, brilhantemente radiantes, contemplando sua fascinante regularidade, admirando sua austera beleza, pode-se chegar a crer que neles a matéria orgânica como que adquiriu a eternidade do mineral, espiritualizou-se. Um motivo a mais para dizermos que o espectador deve receber para assistir a este tipo de campanha ideológica, assim como cada estudante deve receber por aula.
10.15.6.1 . Ornamentos elefantes: Os ornamentos estão para a arte assim como o marfim está para o elefante. Constituem uma forma de arte na qual somente os vetores – intervalos da mesma espécie – são empregados. O ornamento nega a proveniência dolorosa de seu material, aliena-se, assim como o entretenimento. O conteúdo das obras muda constantemente, às vezes imperceptivelmente, às vezes em ação violenta. O conteúdo, porém, quase sempre está em conflito com a forma, pois fá-la explodir, e cria novas formas nas quais o conteúdo transformado encontra, por sua vez, nova e temporária expressão estável. A forma é a manifestação de um estado de equilíbrio alcançado em um determinado momento. Essa tendência para subestimar o conteúdo e encarar a forma como se ela fosse essencial, a única realmente digna de atenção, é uma tendência que exerce influência sobre amplos setores da inquieta intelectualidade da cultura campista. Se for fazer uma montagem de “O Elefantes de Marfim”, escreva sobre tudo isto, modifique e transforme tudo isto, senão sua obra será um mero ornamento. 10.15.7. A arte é então, ao mesmo tempo, uma parte e o modelo da sociedade, elefante e marfim . A sociedade, por sua vez, deve, ao mesmo tempo, servir e absorver a arte para se transformar desde seu interior, é isto que permite aos artistas não renunciar a nenhuma das formas do absoluto terrestre. O absoluto do indivíduo e do coletivo são complementares (como a reconciliação entre paganismo e cristianismo feita por Wagner). Até que a obra de arte seja produzida pelo povo inteiro, a ação coletiva e a ação individual, a transformação social e a criação do gênio artístico são ambas necessárias ao aperfeiçoamento da humanidade. 10.15.8 . A Presa da Música é o corpo humano. A música é intrusão e captura o corpo. Mergulha na obediência aquele que ela tiraniza agarrando-o na armadilha do seu canto. Orfeu amolece as pedras e domestica as feras que atrela às charruas. A música capta, cativa no lugar em que ressoa e onde a humanidade sapateia em direção ao seu ritmo, hipnotiza e faz desertar o humano do exprimível. Na escuta o humano é detido. Hamlin e Josefina, a rainha dos ratos. 10.15.8.1 . Escuta Ferina: Surpreendo-me que os humanos se surpreendam que aqueles entre eles que amam a música mais requintada e a mais complexa, que são capazes de chorar ao ouvi-la, sejam capazes ao mesmo tempo de ferocidade. A arte não é o contrário da barbárie. A razão não é a contradição da violência. Não se pode opor a arbitrariedade ao Estado, a paz à guerra, o sangue derramado ao aguçamento do pensamento, porque a arbitrariedade, a morte, a violência, o sangue, a sensação e o pensamento não estão livres de uma lógica que permanece lógica mesmo que ultrapasse a razão. As sociedades não estão livres da entropia caótica que fez sua fonte e produz seus destinos.
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10.16. Tráfico de Marfim: Entre o museu e a mina: Quase todos nós queremos ver uma transformação radical na estrutura social. Essa é a batalha que está acontecendo em todo o mundo para provocar uma revolução linguistica e estética que finalize a corrupção pelos meios políticos, ecológicos, artísticos, intelectuais através de uma qualquer pós-linguistica vibrística sob qualquer outro nome. O mundo todo padece de dores de cabeça delusórias, a demagogia política. Pois bem, se há uma revolução social, essa é uma ação referente à estrutura externa do humano e, por mais radical que seja essa revolução, sua natureza continuará estática (estética) se não houver uma revolução interna da individualidade e da singularização, uma transformação psíquica que leve em conta o todo do mundo em nós. As formas particulares que a demagogia assume são apenas fases transitórias e, quando os costumeiros dragões e elefantes internos que nos atormentam entram em repouso, o eterno demagogo pode surgir de novo. Desse modo, para que se crie uma sociedade que não seja repetitiva (perceba quantas vezes se repete isto neste texto em grande parte copiado de análises acadêmicas), que não se desintegre (nem cristalize) no controle e na representação, que esteja continuamente em mudança fluida sem separar ópera, operações, operadores. 10.16.0. Objetivos Elefantes: A função do objetivo em estética é a de estabelecer uma conexão entre o ato poético e o ato crítico, mesmo quando tais atos tenham dois sujeitos diversos: o objetivo resulta de uma intersubjetividade entre elefante e caçador de marfim (erepato pirijete). Acusamos demagogicamente os outros de conspiração, a fim de afirmar nossa própria importância. Tanto o ato poético quanto o ato crítico podem ser considerados, criativos e individuais, mas existem duas vias diferentes para considerá-los sintetizáveis teoricamente em um único ato artístico criativo: fazê-los coincidir de tal forma que todas as complexas interações sinestésicas e abstratas tendam a constituir a unidade de uma e outra parte, de um sujeito artístico e de outro crítico nos espectadores. 10.16.0.1 . Para ser efetivada esta unificação, é preciso que a complexidade múltipla da heterotopia entre criação e crítica deve ser diferenciada para a demonstração do paradoxo da união seja concreto, e que o gesto poético seja prático no campo da subjetivação atual. Assim como o poético é a modificação do concreto, o crítico é o reconhecimento do concreto no poético. O demagogo tnta intimidar os que não têm, como ele, mãos de ferro, nem são tão exaltados e, por algum tempo, conseguem enredar alguns na trama de seus delírios. A natureza intersubjetiva e, portanto, social da arte, funda-se no reconhecimento do sujeito “outro” e do “antes” não é nem a mensagem estrutural nem a regra (o código institucionalidade), mas a obra enquanto ato prático; e a compreensão desse ato com o ato crítico de toda a cadeia de produção da obra tornam a abstrato da obra em uma função da estética concreta, a produção de um espaço subjetivo a partir das necessidades do tempo.
10.16.1 . Desenhando um elefante: com Hegel “Diríamos em suma que a arte, limitando-se a imitar a natureza, nunca poderá competir com ela, tomando o aspecto de um verme que se esforça por rastejar atrás de um elefante.” A sociedade (ou a imagem que tem dela o compositor narrado pelo que escreve) está sempre se tornando estática, cristalizada e, assim, sempre se desintegrando em fluências imagéticas, a onda de fotografias que criam um filme que cartografa os afetos. O demagogo se faz de mártir, herói das artes, para provocar lágrimas nas escutas compassivas. Te pergunta: você assistiu tal filme? Viste tal exposição? Cada obra de protesto fortaleceu os mecanismos de controle e cooptação, e prazeirosamente nos levou ao cinema, onde aprendemos coisas que muitas vezes nos escapam que foram filmes. À custa de sentimentalismo e suspeita, despedaça a confiança que as pessoas têm umas nas outras. Por mais sabiamente que a legislação possa ser modificada, a sociedade está sempre em decadência, e a arte reflete este aspecto, porque a corrupção da língua toma a aparência da força e a bondade é relegada a mais um dos personagens numa literatura das sutilezas. Os delírios de grandeza de todxs envolvidos na produção de uma obra e de como ela é exposta contaminam os irresolutos, que esperam receber uns borrifos do fascínio ditatorial da obra. 10.16.1 .1 . Museus de marfim: É importante compreender o engano e sofrimento que há neste modo de pensamento e representação da reprodutividade. Os pensamentos são muitas vezes cortinas, destinados a encobrir paixões e reações pessoais. Foi só uma cobra caindo da árvore no teu ombro. A ação estética externa, quando realizada, está acabada. Uma frase te veio. Ímpeto e intuição. Quando entramos em contato com os movimentos de paixão coletiva e de delírio em massa como na arte, quer os consideremos sob o aspecto filosófico, quer sob o aspecto político, é impossível manter-se afastado de uma leitura psicológica que demanda uma profunda auto-análise. Se o relacionamento (e a estética relacional é o legado da arte pós-moderna brasileira) entre os indivíduos não é o resultado de revoluções contínuas internas, a estrutura social, por ser estática (estética), absorve o indivíduo e o torna igualmente estético (extático), repetidor. As conversas com elefantes são físicas, danças. Serão esses inquietantes fenômenos da macroestrutura política, arquetípica e psicológica que se verificam na vida dos grupos e redes de atuação (como o ab_ismo), que dão origem a tanto desentendimento mútuo, provocados pelo fato de estarmos ainda numa fase peculiar, imatura e animista (artística), de nosso real desenvolvimento enquanto atores de uma ópera social? O elefante está entre a zebra e a árvore, uma ave negra sobre um elefante branco. Quando se entende a extraordinária relevância desse fato, não pode haver diálogo, seja para concordar ou discordar. Este texto é todo um grande mito.
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10.16.1 .2 . Definições elefantes e marfins maquiados com arte: Imaginemos o edifício da ONU. Pela conveniente iluminação das salas pode-se desenhar a palavra “ONU” na fachada. Para reproduzir um elefante seria necessário contudo um retículo mais fino do que para letras, uma definição mais alta e ao mesmo tempo menor. O mito dos cegos frente ao elefante trata de uma baixíssima definição (cinco pixels). Há algo de trágico nesse laborioso processo de tomar consciência da separação entre a realidade íntima e a realidade externa. O empresário Bernardo Paz, criador do Instituto Inhotim, é o único brasileiro na lista das cem pessoas mais poderosas do mundo das artes, segundo a prestigiosa revista Art Review. Até que ponto a ONU e a UNICEF não servem de elefante de fachada para atrocidades, como as hordas marfinistas no seio das aristocracias europeias? 10.16.1 .2 .0. Bernardo Paz disse que sua intenção com Inhotim era criar um local “para a eternidade” e “onde as pessoas podem vir e trabalhar sem pressa, cercadas de pássaros”. Com a maturidade, despertamos de um suave sonho primitivo, em que fazíamos parte de um todo individual, parte dum mundo nirvânico de equanimidade. O grupo Itaminas, controlado pelo empresário Bernardo Melo Paz, fechou a venda de seu ativo de minério de ferro ao consórcio chinês ECE - Birô de Exploração e Desenvolvimento Mineral do Leste da China. A negociação envolve a venda da Itaminas Comércio de Minérios S/A, detentora de uma mina em Sarzedo (MG) com reservas estimadas em 1,3 bilhão de toneladas de minério de ferro na região do Quadrilátero Ferrífero. Perdura, porém, o sentimento da perdida unidade com o universo, e, nos momentos de tensão das massas ou em tempos de crise, somos impelidos a reviver a experiência ancestral do encantamento artístico. O acordo prevê que o consórcio chinês adquira 100% da Itaminas por cerca de US$1,2 bilhão. Que é um elefante em formol, uma caveira de diamantes, sementes de prata ou um elefante de marfim perto deste fato?
10.16.1 .2 .1 . A mistificação da arte oferece meios de escamotear as decisões sociais, mantendo uma consciência razoavelmente clara. As condições sociais, bem como os fenômenos e conflitos do nosso tempo, são transpostos para uma realidade não-temporal, que não muda, uma realidade míica que aparece como “estado original do ser”. Não existe tal coisa como “O Elefante”. O perigo de tal método é que exteriormente opõe uma inexistente “essência humana” não-histórica ao homem em desenvolvimento no interior da sociedade, opõe o “eterno” ao temporalmente condicionado. A arte pode levar à passividade ou autodestruição. Enquanto julgarmos que o mal na terra se origina dos erros específicos e deficiências individuais das pessoas e instituições, permanecerá no estágio intelectual da infância animista. O momento da maturidade vem quando se torna consciente da deficiência intrínseca do mundo, uma deficiência que pode ser amenizada, mas jamais inteiramente removida. 10.16.2 . Elefantíase: O fato é que a sociedade está sempre se cristalizando devido aos prazeres e confortos que seduzem aqueles a quem toca absorvendo-lhes, e que uma revolução criativa constante, só pode ocorrer nos indivíduos e em suas relações, não nas obras de arte mas nas escutas e nas entre-escutas. É preciso encarar os museus como paraísos artificiais, delírios próximos à drogadicção para alteração psíquica (principalmente de seus patronos e donos), desejo suicida e sono eterno da consciência apaziguados numa instância dentro da lei capital. A literatura e a arte se tornam ferramentas do cinismo compactuado, não mais necessárias para que percebamos a natureza artificial da linguagem. O mito é a ingenuidade da linguagem primeva, dos elefantes podemos dizer, mas é a linguagem compreendida pelas crianças que somos em sonho. Um inchasso no corpo sem órgãos causado pela contaminação da larva do olho. É o irracional, a visão direta do mundo, imagem súbita de que jamais nos esquecemos. É o mundo todo tornando-se uma imagem indivisível. Desvinculada a arte da tecnologia, a linguagem demanda uma dose de analfabetismo para se recriar, o pensamento quer ser independente do aparelhamento burocrático através do medo e das padronizações comportamentais.
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10.16.2 .1 . Elefante Mineral: O minério de ferro, seguramente um dos que apresenta maior rendimento, tem o metal em menos da metade da sua massa. O minério é o marfim da terra. O conteúdo anti-humanista e o brutal sensacionalismo dos conteúdos pseudo artísticos do entretenimento industrializado oferecido às massas sob o capitalismo foi, de uma ou outra maneira, diluído de modelos de artistas de verdade. Embora 40% tenham sido aproveitados como matéria-prima, 2 bilhões e 113 milhões de toneladas foram descartados apenas no ano de 2000. Ao mesmo tempo, a arte que ignore as massas e se sinta glorificada de ser entendida apenas por uns poucos apreciadores alimenta a entretenimentização da arte através da crítica camp. Andando pelas ruas sente-se a solidão e a falta de contato que as redes de virtualização do contato. Exatamente porque as coisas estão assim, elas assim não continuarão. À proporção que os artistas se afastam mais da sociedade, mais porcaria é impingida ao público.Outros metais, como alumínio, chumbo ou prata, oferecem igualmente pequenos percentuais de aproveitamento no minério. Só em 1999, cerca de 9,6 bilhões de toneladas de minerais foram retirados da terra, quase o dobro do total explorado em 1970. O ser se opõe ao fazer, como a gesto de mineração se contrapõe à existência do minério e o assassinato do elefante e do marfim. 10.16.2 .2 . Classe operística: Não precisamos de grandes historiadores, sociólogos, filósofos ou cientistas para nos lembrar disto (talvez só para não esquecê-lo). Se a humanidade quer manter o atual (elevado e desnecessário) nível de conforto material, é inevitável a atividade mineradora. No entanto, essa é possivelmente a atividade econômica com menos cuidados com os problemas ambientais. Serão necessários novos artistas, novos construtores, para a criação de uma nova sociedade. Quem faz ópera é operário, mas isso não significa que estejamos na obrigação de aprovar as decisões tomadas por qualquer partido ou organismo que diga representar a classe operária.
10.16.2 .2 .1 . A distância dos centros urbanos e de pessoas conscientes favorece o desleixo das mineração (assim como a poluição cotidiana se embasa em princípio similar), embora algumas mineradoras, como seria de se esperar, tenham progredido bastante nesse item. Entretanto, como um todo, o setor ainda deixa muito a desejar. “O Ouro do Rheno” e em geral toda a tetralogia de Richard Wagner é uma obra social e prática, aideológica (como os tradicionalistas insistem em não ver) e um mito simplificador e propositadamente mal compreendido. Vemos na classe operária a força necessária, determinante, para a construção de uma sociedade onde os enredamentos de poder foquem na limitação do desenvolvimento material em prol de uma libertação da personalidade humana, que vem sendo desperdiçada.
10.16.2 .3. O mineral não é uma coisa acabada, definitiva, não é a corporificação de uma rígida ideia de forma, e sim o resultado transitório de contínuas modificações nas condições materiais. A fim de salvar um conteúdo social superado, as classes dominantes adotam uma atitude de proteção às velhas novas formas como disfarce à violência de sua produção subjetiva. As ligas metálicas dos minérios, tão importantes para a indústria, e suas simetrias espetaculares poderiam justificar a visão destes como “corporificação da matemática”. Ao mesmo tempo, as classes dominantes levantam suspeitas, ao comprar tais acervos de resistência simbólica, sobre a verdadeira intensão e força destas obras. Quem quer que considere essas características dos minérios misteriosas ou tome tais fatos como pretexto para crer numa finalidade, em propósitos ou intenções artísticas por parte da natureza, deverá tentar imaginar um mundo sem leis regulares. Toda existência é específica e singular, um sistema de específicas interações. 10.16.3. Elefantíase dos gregos: Os fatos e valores deturpados ou inéditos de nosso tempo demandam uma nova base afetiva, sensível e intelectual para as novas estruturas sociais complexas. Esses artistas existem, somos todos nós, livres das funções torpes que deram à arte e às barreiras que separam a criação da fruição. Revolução e revelação nas exegeses místicas dos sikh, Buda e Nalagiri num só, eis Ganesha contagioso como uma lepra da lógica helena pelos trópicos dos afetos. Nós, como os elefantes não nos esquecemos, mas como bem notou Agatha Christie, tampouco sabemos porque nos lembramos das coisas e precisamos dar um sentido a estas lembranças que se movem dentro de nós, criando uma história mítica que potencialize gestos que modifiquem a concretude poética. A literatura e as artes do derradeiro mundo burguês tendem para a mistificação: o desejo de simplificar essa realidade irredutivelmente complexa, reduzindo-a ao essencial, e o desejo de apresentar os seres humanos ligados por relações humanas elementares mais do que por relações materiais levaram-nos ao mito da arte. 10.16.4 . Rastros de elefantes. A mineração consome volumes extraordinários de água: na pesquisa mineral (sondas rotativas e amostragens), na lavra (desmonte hidráulico, bombeamento de água de minas subterrâneas etc), no beneficiamento (britagem, moagem, flotação, lixiviação etc), no transporte por mineroduto e na infra-estrutura (pessoal, laboratórios etc). Ouçamos a ópera como uma mineração subjetiva. Há casos em que é necessário o rebaixamento do lençol freático para desenvolvimento da lavra, prejudicando outros possíveis consumidores. Confira exemplo publicado em O Eco. Frente a tudo isso, uma série de impactos pode ocorrer: aumento da turbidez e consequente variação na qualidade da água e na penetração da luz solar no interior do corpo hídrico; alteração do pH da água, tornando-a geralmente mais ácida; derrame de óleos, graxas e metais pesados (altamente tóxicos, com sérios danos aos seres vivos do meio receptor); redução do oxigênio dissolvido dos ecossistemas aquáticos; assoreamento de rios; poluição do ar, principalmente por material particulado; perdas de grandes áreas de ecossistemas nativos ou de uso humano etc.
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10.16.5. Mineração de marfim: No Brasil, a participação da mineração na poluição total é possivelmente maior, em função da posição relativa dessa atividade na produção econômica nacional e de uma fiscalização mais frouxa Quem desejar mesmo ver o intenso grau de degradação ambiental causado por minas de ferro, basta ir a cidades como Itabirito, em Minas Gerais. O tamanho dos sítios degradados pela mineração representa também um dos itens graves do passivo ambiental dessa atividade. Historicamente, a atividade de mineração é a que tem mostrado o nível mais baixo de compromisso social e ambiental em comparação mesmo, por exemplo, com a exploração de petróleo e marfim. É um dos negócios onde os interesses de lucros imediatos mais flagrantemente passam por cima dos interesses públicos, como demonstram exemplos no mundo inteiro. É um dos setores mais conservadores e mais resistentes a ajustes ambientais. Fatores econômicos tornam os custos de recuperação ambiental menos suportáveis para essa indústria do que para a de petróleo (e até a de carvão mineral). São eles: margens de lucro mais baixas; resultados econômicos mais imprevisíveis; custos mais altos para restaurar o ambiente natural; poluição mais impactante e mais duradoura; menos capital para enfrentar essas despesas; e até mesmo qualidade inferior de mão-de-obra. 10.16.6. Marfim, minério animal: O mineral é definido como uma massa formada geralmente por processos inorgânicos e de composição química predominantemente definida, encontrada de forma natural na superfície da Terra e quase sempre sólida. Alguns autores consideram a água mineral e o mercúrio minerais que se encontram em estado líquido à temperatura ambiente. Minério é considerado o mineral ou associação de minerais que são ou podem ser aproveitados economicamente. Para se reduzir os grandes impactos da mineração, será necessário aumentar as exigências ambientais e a fiscalização, obrigando a mudanças no comportamento das mineradoras. Os preços dos minerais devem igualmente refletir o enorme custo sócio-ambiental da sua exploração, embora isso vá implicar no aumento do preço final dos produtos. Isso seria uma vantagem, ao contrário do que supõem os economistas, pois aumentaria a eficiência e diminuiria o desperdício no uso dessas matérias-primas. Mas, assim, voltamos a um assunto recorrente: o atual nível de consumo da sociedade global é insustentável (incluindo a poluição informática da contrainformação que inclui noticiários e entretenimentos). Se desejarmos diminuir as profundas consequências da mineração, a par das medidas citadas e de muitas outras, precisamos controlar nossa síndrome consumista.
10.16.7. Jazida, mina, lavra: O depósito mineral é conhecido como jazida (dom) e quando ele é explorado é chamado de mina (talento). A exploração da mina é chamada de lavra. A lavra pode ocorrer na forma de garimpagem (caça talentos), quando se utilizam métodos rudimentares e em jazidas, em que não foram realizados estudos prévios (curadoria). No período colonial, o termo garimpagem se relacionava à exploração do diamante e o termo “faiscagem”, à exploração do ouro. Em 2005, o Brasil produziu cerca de 281,86 milhões de toneladas de minério de ferro. O maior produtor mundial foi a China e o Brasil, o segundo. A abertura de mina a céu aberto (folclore) ocasiona a retirada da vegetação nativa e os materiais desagregados do processo de extração acabam sendo levados aos rios e lagos (mídias). Isso provoca o assoreamento, que obstrui, com areia ou outros sedimentos, rios e canais, em conseqüência da redução da correnteza (sígnica). O pó suspenso no ar causa, nas pessoas que têm contato permanente com ele, doenças respiratórias gravíssimas. Por tudo isso, é um dos setores onde mais frequentemente os custos ambientais costumam ser repassados para a sociedade. Os contribuintes norte-americanos estão enfrentando, nos últimos anos, uma despesa extra de US$ 12 bilhões para limpeza e restauração ambiental de suas minas, segundo Diamond. 10.16.7.1 . A mineração como a museificação da arte, costuma dinamizar economicamente uma região ou cidade, que passa a crescer e a depender cada vez mais da atividade mineradora ou museológica. Quando, porém, a atividade se esgota (e ela sempre se esgotará, mesmo que demore muitos anos), a cidade e sua população podem ficar sem alternativas, sem sua produção espontânea de novas mitologias sociais. É por isso que os recursos econômicos originados da extração mineral subjetiva devem ser destinados, também, para a diversificação das atividades econômicas e para o desenvolvimento regional mais amplo. A atividade de extração mineral e criativa tende a se ampliar, pois o crescimento econômico mundial, principalmente da China e da Índia, vem provocando um aumento da demanda e dos preços internacionais das commodities (produtos primários, em estado bruto, de grande importância no mercado internacional, como minério de ferro, algodão, petróleo, tinta, chips), aumentando os investimentos e a produção no setor.
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10.16.7.2 . A inveja e a hostilidade dos que se sentem sobrepujados (artistas, espectadores, curadores, funcionários, críticos) atormenta o administrador de arte. Sediado em Nanjing, capital da província de Jiangsu, o ECE foi fundado em 1955 e congrega empresas de mineração, de pesquisa e de perfuração, além de centros de pesquisa e equipes de exploração geológica, com atuação em países como Indonésia, Camboja, México, Austrália, Irã e Namíbia. O administrador sabe que tens os olhares contra si, sente contra si as críticas e os ataques políticos. O consórcio possui um total de 4,5 mil empregados. Cria uma fachada defensiva, para cortejar o público, molda a própria imagem subjetiva a seu bel prazer. Atualmente 170 funcionários trabalham na mina de Sarzedo e a expectativa é que todos sejam incorporados com a concretização do negócio. E como consequência, pode acontecer que o democrata moderado de outrora, que acreditava no governo pelo povo e na criação coletiva popular, assuma a estatura de uma personalidade autoritária sob o mérito da genialidade (pensemos no Wagner de Bayruth), deixa-se guiar por fantasias de mando infantis em seus animismos frustarados. Segundo Brumer, com a venda da mineradora o grupo Itaminas, além de equacionar toda a dívida acumulada nos últimos anos, pretende manter a participação nas atividades de ferro-gusa e reflorestamento.
10.16.7.3. Energia Elefante: Reportagem produzida pelo Núcleo Amigos da Terra Brasil mostra casos de destruição social e ambiental que empresas transacionais provocam nos Estados do Pará e Maranhão, onde está concentrada mais de 80% da bauxita explorada no Brasil. O alumínio é uma das principais commodities brasileiras e o país é o 6º produtor mundial do metal, atrás da China, Rússia, Canadá, Austrália e EUA. O Brasil possui a terceira maior jazida de bauxita do mundo e é o quarto maior produtor mundial de alumina. Violação aos direitos humanos e degradação da natureza andam juntos quando o tema é territórios ocupados pelas corporações de mineração e produção de alumínio. Gosto de pensar a produção de música como a energia para o extrativismo da escassez subjetiva, aquela canção ou pesquisa sonora que faz o trabalhador ter um sentido em se manter no seu posto de poder no comércio onde colocou uma radinho ou no seu escritório onde baixa o mp3 daquela do Boulez. 10.16.7.3.1 . Planeta elefante, matéria-prima marfim: Tão útil e adaptado aos modos de vida moderno, por ser leve, macio e resistente, o alumínio esconde um processo industrial penoso e degradante. A reportagem cinematográfica publicada aqui, produzida pelo Núcleo Amigos da Terra Brasil e realizada por André de Oliveira (Coletivo Catarse), revela casos de destruição social e ambiental que empresas transacionais provocam nos Estados do Pará e Maranhão, onde está concentrada mais de 80% da bauxita explorada no Brasil.
10.16.7.4 . Belo Monte é só uma formiga: A cadeia produtiva do alumínio é eletrointensiva, ou seja, necessita de grande quantidade de energia elétrica e de água para se viabilizar. A cadeia produtiva da música demanda muito da escuta. Para a expansão da produção do alumínio, o governo federal vem promovendo a construção de novas barragens na Amazônia, entre elas Belo Monte, que cederá parte de sua energia para as indústrias eletrointensivas. Além disso, bancos públicos, como o BNDES, assumiram papel fundamental para o fortalecimento da cadeia produtiva. O financiamento público, aliado ao reaquecimento do mercado internacional, impulsionou a expansão das fábricas da Alunorte/Albrás, Alumar e CBA, incluindo o financiamento de novos projetos de refinaria em Barcarena, maior polo do setor, a 50 km de Belém. E as fábricas (como os museus e teatros) não se expandem sozinhas, junto com elas vem a abertura de novas lavras, a construção de novas usinas hidrelétricas e termelétricas, duplicação de ferrovias, minerodutos e etc. Ou seja, a degradação dos ambientes acústicos e em última instância à aurasfera. 10.16.7.5. Mercado da música brasileira e a produção de escutas experimentais: A exportação do setor metalúrgico, pelos dados mais atualizados, de 2009, correspondeu a 2,1% da balança comercial. Por sua vez, as exportações influenciam em 2% do PIB nacional. O alumínio é uma das principais commodities brasileiras e o país é o 6º produtor mundial do metal, atrás da China, Rússia, Canadá, Austrália e Estados Unidos. O Brasil possui a terceira maior jazida de bauxita do mundo e é o quarto maior produtor mundial de alumina. Contando toda a cadeia, foram produzidas 26074,4 mil toneladas de bauxita, 8625,1 mil toneladas de alumina e 1690 mil toneladas de alumínio. Em termos de negócio, a produção brasileira perde muito em valor agregado, pois só produz produtos primários, concentrando somente os processos mais agressivos ao meio ambiente. Exportamos, no máximo, lingotes de alumínio. Quando chegam nos outros países, para as etapas seguintes de transformação do metal, o alumínio para a valer quatro vezes mais. 10.16.8. Fábricas de elefantes: O que aprendemos no duro museu de nossa moderna vida (política) é o fato de que a cultura humana não é uma coisa tão firmemente estabelecida como julgávamos. Os grandes pensadores, os cientistas, os poetas e os artistas que lançaram os alicerces da nossa civilização estavam convencidos de que tinham construído a eternidade em seu ápice de complexitude (cultura elefante). Vê-se como a história da indústria, e a existência mesma da indústria, tornaram-se o livro aberto das forças da consciência humana. Vê-se como com a arte ocorre o mesmo (desde o ouro do Rheno à comunidade de Eu e Tu), uma industrialização da subjetividade. Parece que temos de considerar com mais humildade as grandes obras da cultura humana. Não são eternas nem invulneráveis.
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10.16.8.1 . A nossa ciência, a nossa poesia, a nossa religião, são apenas camadas superficiais de um estrato muito mais velho que atinge uma grande profundidade. Devemos estar sempre preparados para convulsões violentas que podem abalar o nosso mundo cultural e a nossa ordem social nas suas fundações. Quantos produtos abandonados para que pudéssemos vivenciar esta gama de conforto? Quantos projetos artísticos e quantos artistas precisaram sofrer para que uma peça qualquer para pianos pudesse ser ouvida? Quantos deuses com faces kitschmórficas? 10.16.8.2 . Linguística da comunidade elefante: Onde aqui se ler eu, trata-se da valoração do interesse, a autovalorização do artista. Como emerge a comunidade? Qual o seu fundamento? Não há espelhos, mas coordenação de ações. A relação como ação dual, recíproca no entre, é seu único antecedente. Há na relação uma metafísica do inaugural (ascendente). A gramática paquiderme estipula todos os campos de atuação de um problema, escuta todas as insurgências contra o mesmo e veicula respostas singulares a cada um dos casos específicos. Wagner e Buber. A comunidade é seu próprio fim e meio. Uma ópera comunitária toma o inevitável aspecto de rito prosaico da própria vivência cotidiana. Quando pessoas se inter-relacionam no dialógico e todos estão integrados num centro ativo, só aí pode haver uma comunidade. A linguística aqui demanda para além de um herói-heroína se debatendo contra a escuta de antípodas, a polifonia como próprio cerne da criação comunicacional. Urge à poesia despertar as linguagens para a escuta de outras gramáticas sinestésicas das complexidades sígnicas. Para que isto ocorra é necessário que as multidões se despojem de muitas vantagens e privilégios particulares para o bem da comunidade. O compositor da ópera deve abrir mão do sentido desta, por exemplo. É necessário a inaudita pluriescuta, a saber, que as multidões queiram a comunidade com toda força de suas escutas.
10.16.8.2 . A ação recíproca que se instaura no diálogo exige para a total efetivação da comunidade que cada pessoa, que cada membro desta comunidade, que cada pessoa, confirme o outro. É preciso a dádiva da compreensão do papel de todos na ópera. A confirmação do outro naquilo que ele é, une a comunidade na pluralidade. A confirmação possibilita a identidade pessoal e a distinção a partir da honestidade dos fatos. Esta confirmação não deve ser buscada no próprio indivíduo (heróico), numa atitude de pura autonomia, ou através de sua inserção hierárquica no coletivo. Estes dois tipos de confirmação (individualismo e coletivismo) identitária são ilusórios e perigosos, mas uma comunidade de fato orgânica, não premeditada, na qual a confirmação ocorre num processo eminentemente recíproco de interação a partir de interesses sensíveis na experiência vital. A comunidade não pode tornar-se, portanto, um princípio nem responder a um conceito quando surge, mas a uma situação. A realização da comunidade (como da linguística em oposição às legislações gramaticais cânones), não se dá de uma vez por todas e de modo universalmente válido, mas sempre apenas como resposta de momento para uma questão de momento. 10.16.9. O artista elefante: Podemos ver que a atual estrutura social na Ásia, na África, na Europa, na América e em todas as partes do mundo está rapidamente se desintegrando, enquanto as emergências de poderes (éticos, etológicos ou estéticos) cristalizam, e experimentamos ambos em nossas próprias vidas: cristalizados e desintegrando. Quem ainda se interessa pela poesia do ser para dizer “Se o estanho, golpeado, soa como trombeta, não é mérito dele”? A céu aberto ou subterrânea, a mineração modifica intensamente a paisagem, tanto na extração como na deposição de seus estéreis e rejeitos. Tanto Kafka como Brecht e Drummond fixaram a realidade em suas parábolas. Procuraram uma representação “alienada” dessa realidade. Como não se afastar da feitura do mundo na alienação mítica, nem incorrer na destruição maciça da fantasia que demanda cada mínima produção? “O Elefante de Marfim” é um experimento onde o artista vivencia esta alienação e tenta explicar-se os motivos de sua arte para si, e vislumbrando esta vertigem da obra, sente sua inevitabilidade. Aliás, estéreis – no sentido de inócuos – é o que esses resíduos (da arte e dos minerais) não são para o meio ambiente físico e subjetivo. 10.16.9.1 . Os brain trusters da administração, não obstante os seus problemas íntimos com a figura artística (que Nietzsche toma como ponto de vista no caso Wagner), têm um papel significativo no desenvolvimento da nossa história da arte. Nosso espírito é profundamente afetado pelo seu. Paralelamente, nós, o público, exercemos influência sobre eles e tanto os podemos levar, por nossos impulsos mais civilizados, a encontrar o caminho certo, como os impelir, por força de influências e impulsos primitivos, a precipitar-nos a todos numa catástrofe generalizada que parta da cultura à sociedade em geral. Podemos vislumbrar como isto se dá no caso de Wagner, tanto no interior quanto nas repercussões da obra.
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10.16.9.1 .1 . O caso Gesamtkunstwerk: Queremos compreender a arrogância megalomaníaca da escuta de Wagner perante a melodia infinita, sua interpelação pelo drama (aqui no sentido de fazer) como saída ao camp que iniciava sua constituição. Precisamos com Schlingensief perdoar os arroubos artísticos de Wagner e vislumbrar as potências de expansão da vida e da sensibilidade que podemos extrair de seus gestos. Wagner percebe a prisão administrativa da arte, suas óperas já se encontram no museu enquanto ele as escreve. A intrusão da mentalidade administrativa fica ainda mais sujeita às contingências individuais quando os padrões de procedimento das autoridades constituídas não são fiscalizáveis pelas comunidades que controlam. Nessas condições, é fácil estabelecer-se o predomínio da arbitrariedade e do preconceito, como se pode ver num museu de arte contemporânea que não se abre para diálogo com a comunidade produtora em sua contemporaneidade. 10.16.9.2 . Máscara elefante: Como o embaralhamento das feições possíveis dos “scramble suits” antevistos por Philip K. Dick, podemos pensar as complexidades dos problemas como máscaras para uma postura de real posicionamento. O discurso complexista, como por exemplo em Marx, podem dar vazão a que tudo seja discutido e nada de fato ocorra como nas intermináveis querelas sobre o marxismo. O artista individual, tem servido de máscara à arte ou ao poder capital? Podemos assim, chamar alguém de artista? A sociedade enseja um esgotamento da espontaneidade da pessoa, da ação dialogal na sua emergência, tornando-nos supérfluos ou egóticos, peças de um mecanismo. Daí resulta a negação da vontade, da apatia quanto às decisões, da responsabilidade do agir em comum, recíproco, do diálogo, enfim, da liberdade e da unicidade das pessoas. 10.16.9. Contra o esfacelamento da pessoa pelo mecanismo da sociedade de interesses (coletivismo), alienante da real situação do aqui-agora em que ela se encontra, não se deve procurar por soluções em um igualmente fictício ensimesmamento no privado da composição (em outro mergulho no eu), mas através da saída da aparência deste eu no espaço público (feito palco) do entre-nós, abrir as fronteiras entre palco e os cadeirantes espectadores. Próera enquanto ópera-performance, com oficinas, gente cozinhando e conversando. Próera organismo. É a ação é dialógica o início de um espaço comunitário realmente político. A redescoberta do comum passa pela revolução no pensamento do comunitário que, mais do que através de uma previsão organicista, emerge pela prudência do juízo posto em prática no contato direto entre as pessoas.
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10.16.9.1 . Na pluralidade complexante as pessoas vêem assegurada a singularidade de sua condição humana. Na comunidade a pessoa não é reduzida à mera função de uma massa, a um papel numa classe. Se o anonimato prevalecer, a comunidade degenera em dispersão tirânica (onde é questionada e negada toda personalização), ou então em concentração totalitária que esmaga os indivíduos com mentícidio e sensibilicídio, até que se tornem uma massa amorfa onde toda responsabilidade desaparece. A massa, negativo de povo, consiste numa totalidade de indiferença onde nenhum elo comum, seja social ou político, une os elementos deste agregado para fazer dele uma comunidade. A ópera massificada se tornou as novelas televisivas com suas trilhas sonoras recheadas de “sucessos”. Ao contrário, o que está no princípio da massa é a atomização extremada de indivíduos não como formação social mas como socialidades amorfas. 10.16.9.2 . Privados do intervalo, do “entre” fundador do vínculo dialógico, os indivíduos que compõe a massa não são agregados senão por seu isolamento mútuo. Experimentam assim a desolação como experiência absoluta de não-pertencimento. Esta ausência de intervalo gera a impressão de liberdade e de entranhamento das potências vitais com o que ocorre no instante, mas privado de poder real de atuação é uma perigosa arma de alienação. Isto pode ser experienciado nas festas-produto e nas performances falsamente interativas, nas quais ninguém se diverte para se sentir igual a todos. 10.16.10. O paradoxo da ópera natural: Associa-se a isto aquela superação da aparência pela indeterminação dos casos e modelos gradramáticos. A voz monárquica (polifonia de arcadas de mônadas) é usada pela propaganda pelo simples fato de que funciona, mas há ainda uma outra voz inaudita dos elefantes, num tom cada vez mais impaciente e vingativo demandando uma escuta compassiva. Podemos ouvi-los da beira do mar a muito tempo e apenas nunca de fato ter se perguntado sobre um enorme campo da escuta, abaixo dos bassos e violoncellos, mesmo de Caruso, talvez nos ventos. Vencer uma conversa é perdê-la: Uma Linguística dos Pássaros remonta àquela conversa brilhante, triunfal mas ainda uma tentativa de pôr em prática regras do espírito. O mocho e o grou sobre o elefante ao entardecer. Um colóquio é contrário à conversação, divide-na no tempo. Que personagem dirá isto solenemente?
10.16.11 . Festas Elefante: Dos planejadores de insurreições psíquico-políticas aos organizadores de distração toda a história da arte (e a ciência criadora inclusa) se desenrolou até a síntese analítica da impotência do gesto poético. Assim vai a fábula democrática: Quando os pobres enriquecem e formam a classe média, não dedicam seu tempo livre à política nem à cultura, e sim primeiramente à diversão. A república platônica expulsa os seus poetas com o nobre objetivo de libertar o povo das algemas da necessidade e elevá-lo à dignidade de indivíduo político pelo civismo e pela educação. Fábula cômica, irônica em sua metalinguagem performática. A saída da miséria e da incultura deveria se mesclar com a apropriação de cada um de sua humanidade plena, mas ao contrário o que vimos foi a divisa do conhecimento ser estabelecida sem resistências já que para uma maioria o embrutecimento delicioso dos prazeres tem primazia sobre os múltiplos modos de engajamento e desenvolvimento pessoal com suas complexidades relacionais. 10.16.11 .1 . Elefante no Meio da Festa: A surdez é prazeirosa no ponto em que alimenta a vaidade de se acreditar no topo da pirâmide social dos prazeres. O cultura passa, neste divertimento contínuo, a cumprir a função de tornar a banalidade não só suportável como preferível. Ao mesmo tempo que aniquila a curiosidade, tira o desânimo cotidiano: ela é a continuação da apatia por outros meios e se integra, como elemento fundamental, na imensa panóplia de futilidades descartáveis. Colocar as responsabilidades de organização simbólico-aural e das políticas do audível (totalidade das escutas) na música infantilizada (e infantilizadora) que é o pop não é nocivo apenas ao diálogo cultural sobre as funções da escuta e as relações harmônicas entre as possibilidades de soação, é ainda sobrecarregá-la com uma gigantesca carga ideológica com a qual ela não sabe como agir, que tira-lhe o gozo e leva a uma apatia quanto à sua mais proeminente qualidade ( profundamente debilitada): a de fazer dançar e divertir.
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10.16.11 .2 . Tornar a diversão hegemônica lhe dá um papel que é de todo não-divertido. Dançar se tornou um ato de alienação consentida, de submissão a um fascínio consumista. Se paga (caro) para dançar. E isto não quer dizer que djs (censores) e músicos da vida noturna estejam sendo melhor remunerados, pelo contrário. O infantilismo da música erudita está todo em Mozart, e nisto não há nada de pejorativo, como os chocolates que levam seu nome são uma excelente companhia para uma visita ao Museu da Música em Viena. 10.16.12 . Elefantolândia: A pedagogia às avessas do divertimento tem seu espaço privilegiado, que é como um resumo de todas as mitologias da época no parque de diversões. Não à toa os santuários de elefantes e os ecomuseus se mirem no seu exemplo de terra prometida da pieguice. Interessante que quando Bernanardo Paz trata de seu interesse de criar Inhotim, ele soe como Disney que dizia querer criar “um parque encantado onde adultos e crianças poderiam se distrair juntos”. O país das maravilhas é uma ilha para onde vogamos a fim de nos lavar dos aborrecimentos. Esse falanstério é um parêntese no interior desse mundo, e entramos nele com os mesmos rigores que passamos pela alfândega de uma fronteira nacional, mas com a pompa de um umbral religioso. 10.16.12 .0. A metafísica do divertimento está no simbolismo mesmo deste afastamento da fantasia realista: tudo é calculado para nos arrancar da sua ideologia. Um aspecto inquietante desse feliz pot-pourri é sua formação se dar segundo as leis da assepsia. Uma cosmococa sem cocaína, um museu de arte contemporânea do passado recente já limpas de sua carga artística e insurgente, sem relações contemporâneas se dando em tempo real. O parque de diversões só oferece o perfume falso das épocas passadas, não sua realidade.
10.16.12 .1 . Montanha Russa dos Afetos: Disney sugeriu o protótipo da museografia e expografia que o sucedeu, sugerindo o mal para melhor neutralizá-lo, reduzindo o universo simbólico à dimensão de um fabuloso brinquedo, despoja-o de qualquer característica de inquietação, de perigo. Raças, espécies, civilizações, crenças, povos podem se frequentar sem risco, já que foram antecipadamente esvaziados, limpos de suas asperezas, reduzidos ao seu aspecto folclórico. Essas diferenças, fontes de disputas, não têm mais importância e não impedem a ampla corrente de simpatia e de bondade ardente que circula ali. Esta bondade aparente (também visível na disneyficação da música jovem)suprime a discussão que a obra de Oiticica traz ou a torna ainda mais venenosa? Dominados pelo parque de temas, o mundo exterior é apenas uma impureza anódina, um lixo, já que dele existe uma duplicata em que o proibido, a pobreza e a maldade já foram anuladas pela mesma violência que as cria. Este projeto é um mapa proibido de museu. 10.16.13. Vernissage elefante: O exemplo das festas noturnas de vernissage me parece relevante aqui: A idéia de desalienação se tornou tão importante entre nós, que quando você está num destes eventos, o encontro e a sensação de comunhão se dão justamente no âmbito onde as pessoas se entreolham com a máscara do conhecimento e da sensibilidade extremada (blasé) e dizem virando os olhos: “Nós compreendemos a alienação desta situação e não dançaremos porque superamos esta.” A desalienação aliena como nada. A liberdade é a mais plangente arma de controle. São os prazeres que fundamentam os massacres.
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10.17. Massacre Elefante: Vivemos num zoológico de escravidão programada da maioria da população, onde quem questiona este ponto é usado como bode expiatório para a própria acusação por parte de uma parcela cooptada das pessoas. Um exemplo: Se um artista reclama das condições de trabalho artístico, artistas bem pagos fazem questão de desmerecer tal questionamento e as companias de fomento apontam tal gesto como um dos motivos para a diminuição dos auxílios. Somos coagidos a não sermos o que somos, como crianças que nunca chegam a poder se responsabilizarem pela autonomia. De modo semelhante operam os cáculos de superpopulação elefante dos organizadores de safari quando usam um ataque elefante a uma colheita, por exemplo. Mas quem não deixou territórios onde os elefantes pudessem sobreviver? Se a arte sofre uma censura positiva antes mesmo de sua criação, como ela colabora com a cultura hegemônica do massacre e da planificação das singularidades complexas numa massa homogênea? 10.17.0. Limpeza Estética: É inegável que ocorra uma purificação formal da sensibilidades que leva a uma dizimação da diversidade estética e técnica, o sensibilicídio. No caso da escuta especificamente, o auricídio foi particulamente cruel, utilizando-se de um discurso das minorias políticas (o estilo de música periférica mundial, chamado de ghetto tech, por exemplo) criou um abandono quase que total da experiência de escuta fora do consumo de modo de postura social e da produção de divertimento. Está ocorrendo um massacre estético de minorias semióticas em prol de um homogeneização das formas de contato com o sonoro, bem como de soação. O maximalismo gosta de se ver como a mais pura linhagem natural da música erudita, assim como os estilos populares mais ouvidos sempre disfarçam-se sob os nomes antigos como samba, rock, brega, cumbia e sertanejo. Em ambos os casos podemos perceber um formalismo abstracionista da música, porém. Onde a exigência de pureza política e abstenção de consciência contextual, na realidade, pode pesar para qualquer dos lados.
10.17.0.1 . Pureza Política: A escuta da pureza identitária tende a se concentrar em um estilo inimigo: o erudito nega o popular visto como pouco rigoroso enquanto a pureza política estética faz uma varredura do corpo comunicacional em busca de suas dissonâncias que se prestam a mudanças estruturais da escuta para os colocar em ostracismo. Então, embora haja uma relação de dissonância entre estilos, há ainda uma perseguição geral aos modos de produção de sonoridades que alterem a escuta do consumo hedonista de produtos musicais oficiais que gera a criminalização da música espontânea e tira o foco das questões de políticas de produção de ruídos. Uma vitimização gerada a partir do medo da dissonância simbólica uma cristalização infantilista das escutas, seja com relação à música erudita (sempre antiga) ou popular (sempre nova). Desengajada de si mesmo, a música pode ainda adentrar o engajamento macro-político ideológico, nos lembremos da ironia de um compositor aristocrata se posicionar como marxista e uma banda de rock engajado trabalhar para uma grande gravadora e da perseguição por músicos da mpb ao brega por uma patrulha ideológica que o tinha na conta de alienados a favor da ditadura. O único engajamento possível à arte é não se render a nenhuma ideologia que não a própria arte. 10.17.1 . Massacre estético: Massacre é a forma de ação, o mais frequentemente coletiva, de destruição de não combatentes. As sensibilidades não-competitivas estão sendo perseguidas coletivamente por métodos de controle social da produção artística e subjetiva. Casos extremos de tentativa de resistência a este modelo de entretenimentização da subjetividade coletiva apontam para as performances enquanto suplícios auto-infligidos. Essa encenação extremamente ritualizada do sofrimento corporal, visa restaurar, de maneira espetacular (como demandam as leis de incentivo e permissão) a integridade simbólica da sociedade. Tal papel da performance é, portanto, um sintoma e um paliativo. O que tentamos com O Elefante de Marfim é mostrar que os poderes, amaldiçoam os que os buscam por não satisfazerem seus desejos de controle social, levando-os a não hesitarem em destruir em grande número os corpos e as almas, maciçamente, e com esse intuito se apoiam em retóricas que se remetem ao imaginário e ao sagrado. Utilizam o simbólico de modo a destruir as relações simbólicas entre as pessoas. A pureza estética se refere à figura do traidor sempre que deparada com o multiforme, ainda não identificável.
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10.17.2 . Escatologias Grotescas: Os esforços de uma pesquisa, para compreender, podem ser paralisados pelo caráter assustador do objeto. Isto se havia esperado. Mas quem realmente está preparado para o choque do relato da crueza em sua terrificante nudez? Ainda mais porque o estudo do comportamento do carrasco incita-nos a perguntar o que faríamos com os poderes em nossas mãos. É preciso que tenhamos uma escuta compassiva, mesmo dos massificadores culturais. A emoção pode nos contaminar com nojo, e confesso que por algum tempo me enojei de ser compositora. A arte (e neste caso, mais ainda a música) nos leva à fronteiras do humano e do desumano, profissão de risco para os afetos e para os pensamentos (àquelas que lhe dão a profundidade devida da vertigem). Trata-se, precisamente, de uma exploração nos extremos que põe à flor da pele a sua sensibilidade, provocando igualmente extremas sensações de rejeição e paixão. O neo-barroco poético bem poderia ser um elogio da (fenomenológica) paixão serial eletroacústica, onde a morfologia das formas faz sucumbir os desejos melômanos. 10.17.2 .1 . A inversão das sirenes: Pássaros atraem humanos com um canto sobrenatural no lugar coberto de ossos onde eles se abrigam: humanos atraem pássaros com um canto artificial no lugar coberto de ossos onde eles se aninham. As sereias são a vingança das aves. A próera é a vingança de Orfeu contra Aristeu. Os caçadores paleolíticos enganavam de maneira mimética os animais que eles caçavam e dos quais eles não se distinguiam. A origem da música é o segredo da caça, tal como a função exponencial é o segredo do fazedor de machados. Iniciação ao canto, aprendizado dos chamamentos assassinos. Se os animais vão sendo deificados pelo estatuto celeste, aos quais os caçadores deixavam uma parte das presas que eles abatiam no instante ritual do sacrifício (dos despojos da pele, do talhe dos membros e da divisão dos órgãos e das carnes) os chamarizes foram também teologizados como instrumentos sacros.
10.17.2 .2 . Sacrifício Divino: A música passa a ser o canto que atrai os deuses para perto dos humanos, após ter atraído as presas para perto dos caçadores. Trata-se de uma segunda etapa, mas a função é a mesma. As músicas sacras atraíram os deuses para serem devorados pelos ritos laicos. A música não consiste em fazer entrar numa roda humana o divino, mas em zoologizá-los. Os deuses são só mais uma espécie semiótica. Após a destruição ela assegura a domesticação. Um chamariz já é um domesticador. Um apelante já um domesticado.
10.17.2 .2 .1 . A casa de ópera é o domicílio do simbolismo domesticado. O apelo do canto não salvou ninguém da morte. Qualquer ópera, mesmo antes de se entregar ao enredo particular que encerra, é por si mesmo uma história de engodo (uma ficção, uma armadilha) para acalmar a alma dos animais atacados. 10.17.3. O Império Sobre Os Sentidos: O auricídio e o massacre das sensibilidades constitui a prática mais espetacular de que um poder dispõe para afirmar sua transcendência, marcando, martirizando, destruindo os sentidos dos indivíduos e as relações estéticas que estes mantinham entre si. A canção vencedora do prêmio de melhor do ano ser um besteirol é um exemplo deste tipo de gesto (para não termos de pensar no assassinato do artivista amigo pela polícia secreta), tira a disputa da escuta do campo da meritocracia, esconde os fatores referenciais da disputa sob a arbitrariedade hedonista, e refaz o fluxos de movimentação capital de disciplina musical e controle sobre as escutas. O sucesso de Jeff Koons e o primado da escuta nacional brasileira ser o sertanejo não são portanto, uma inocente escolha natural pelo afeto e pela simplicidade jocosa. São antes de tudo uma maneira de alimentar o sonho de ser como estes, que mantém o ciclo da decadência das artes e da música. 10.17.4 . Ruído e esteticídio: O ruído como o genocídio é impensável. Poder diferencial do buraco negro, que atrai sempre pela identidade, que nos clama sempre dispostos a recomeçar o trabalho. Para tornar-se atraente numa competição imagética pela novidade, é preciso uma diferença. Para encontrar esta diferença de soação sem sair das regras auto-impostas pelo hedonismo musical, é preciso uma mudança mínima. Mas o aumento da diferença mínima é inflacionário e seu crescimento é exponencial. Quero dizer, que num certo contexto é possível imaginar em breve, grupos lutando por uma variação estética mínima tal como já se faz por literaturas ditas sacras. O ruído é uma operação de alteridade do espírito: uma maneira de se ver o outro. A música ruído (noise music ou rúsica) opera no mesmo sentido que a performance de acontecimento corporal-ambiental (happening), como sintoma e abafador, levando a escuta a seus extremos, fazendo com que ela compreenda seus limites e lide com suas alteridades. Trazem à tona uma pergunta simples, mas que não deve ser colocada somente sobre suas figuras ( já que o ruído por si, não permite autoria, porque sempre outro): Como isso é possível? 10.17.4 .1 . As lógicas da violência: A música ruído nos pergunta como seres humanos podem se transformar em carrascos de seus semelhantes. Schoenberg é o arlequim solar deste conhecimento da serialização das escutas, desta desumanização das relações (mesmo musicais). As dinâmicas sociais que podem levar a uma limpeza estética ou étnica já se encontram em estado latente nos pátios das escolas ou nos bairros. Regras silenciosas de escárnio compartido. As crianças adoram pegar, de vez em quando, um bode expiatório como saco de pancadas. As lógicas da violência se apoiam em tudo isso: na designação de bodes expiatórios, na radicalização de antagonismos amigos/inimigos e, mais ainda, no extermínio como ato purificador. Já disse que não quero participar do seu grupo de compositores. Isto reverte na estilização e no fechamento de um grupo identitário de diferenciação. A música de pesquisa da escuta (dita erudita) está, ao contrário do que é dito, muito mais próxima do ruído que a música popular, porque se identifica justamente com a escuta do sistema geral de produção de auralidades.
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10.17.5. Excesso informacional: Quando um número exagerado de coelhos fica confinado em um mesmo cercado, eles começam a se matar, para a garantia do espaço vital. Sabendo que o subdesenvolvimento favorece a natalidade, como lidamos com a produção subjetiva em tempos de democratização da produção? Podemos pensar na destruição dos papéis críticos e filtros meritocráticos como lados positivos desta abertura da escuta, por outro lado, porém, este processo apenas mascara um processo de censura capital tardia que leva a um irremediável popularismo criativo. Assim como a guerra é o infanticídio tardio, a guerrilha semiótica da música noise, e o poder que esta demonstra através do ruído, são o sensibilicídio numa sociedade que não se permite mais censurada em nenhum de seus desígnios por nenhuma instância que não seja o poder e seu símbolo, o dinheiro. O ruidista é antes de tudo o humano que crê que o ruído ainda exista. 10.17.5.1 . A destrutibilidade dos imaginários sociais se baseia numa série de ilusões identitárias, a começar pela separação destas esferas, bem como pelo axioma hedonista de prazer da escuta como único vértice de “qualidade sonora”. A qualidade, sendo justamente o que não é quantificável, não permite uma comparação hierarquizante de melhor ou pior, mas apenas uma postulação de diferenças de natureza. Mitos culturais violentos estão associados à história dos povos. Mas isso não significa que esses povos necessariamente caiam na selvajeria. Pelo contrário, tais mitos catárticos podem ser explorados por outros povos a pretexto de um impulso vingativo contra um inimigo. A perseguição ao eruditismo mascarada sob a vingança da perseguição às culturas de massa sofrida durante o apogeu da meritocracia. O apoio do folclore ao poder escravagista sendo protelado pelos novos punks. Num limite primordialista, diolíneos e aposíacos riem das outras tantas escutas do Tártaro ao Terreiro. É claro que o ecletismo pode bem ser também uma mera fachada para uma perseguição a uma escuta singela e pura do aqui e agora, mantendo sempre tudo no âmbito da citação e na construção de nichos de mercado.
10.17.5.2 . A Culpabilidade: Quando o maestro Julio Medaglia diz que “Tudo na rádio é um lixo.” aponta a causa de nossos sofrimentos, gerando um culpado, sem o qual ao seu ver tudo seria ótimo. Só se esqueceu de dizer que “Tudo na música e na arte é um lixo.” A pobreza real de condições de vida, mas principalmente a subjetiva de experiências abstratas de sensibilidade são grandes disparadores de massacres. Massacre e pilhagem andam juntos, e o problema das máfias é sua expansão contínua. A rádio é um objeto fascista por excelência. O consenso é cultura, toda cultura é modo de ignorar certos aspectos do mundo ou como estes nos afetam. À primeira audição, a repressão parece capaz de tudo sufocar, tudo esmagar. Livremo-nos, então da ideia simplista de poderes fantasmagóricos tiranizando povos inocentes (a teleacusmática). A servidão voluntária impregna tais poderes despóticos da voz popular (através de pesquisas de mercado), o déspota procede dos anseios cotidianos da sociedade do qual são produtos culturais. O político corrupto se elege pela negativa da população em tocar nas suas próprias corrupções. Cada um tem os ídolos que merece, mas sendo ídolos eles já abarcam um sistema de meritocracia baseado na ideologia vigente (no nosso caso a da luxúria consumista). E que vençam o melhor com os piores! 10.17.6. Trauma Cultural: Em uma situação em que as referências antigas parecem naufragar, em que as ameaças se tornam cada vez mais aflitivas, como podemos reagir? Com uma reforma econômica? Com novas medidas de especulação imobiliária para novos centros de compra? Todos esses dispositivos técnicos e demais planos de salvação não parecem à altura do que está em jogo. Pois é o simbólico que, em tais circunstâncias, parece afetada, desnorteada, paralisada. Como quando da morte da matriarca elefante. As referências fundamentais destas coletividades tramáticas fazem com que seus membros digam: “nós a vanguarda”, “nós os músicos eruditos”. O “nós” se torna queixa, dor moral, sofrimento. O que se passa num país onde a linhagem artística sofreu um rompimento radical por motivos militares e posteriormente monetários? O teatro do oprimido persiste oprimido. 10.17.7. Cooptação: São os artistas agentes sociais e políticos que, com seus discursos e ações vão se encarregar das emoções coletivas, associadas ao traumatismo em massa. Um Gabriel D'Annunzio do Brasil atual, poderia bem se utilizar do trauma do subdesenvolvimento para uma destruição colossal dos recursos naturais, por exemplo. Mas fora o artista que decide por defender estes impulsos infantis, há ainda a cooptação ideológica das ideias. As obras relacionais têm uma grande facilidade neste quesito: uma obra autobiográfica familiar facilmente embasa um discurso de capital simbólico e consegue patrocínio, já que a postura junto à opinião pública é prioritariamente afetiva. O folclorismo e o populismo artístico são naïf neste ponto: pois, ao saber falar ao povo como um deles, usando metáforas e símbolos que têm forte ligação cultural com a sua história, estão na verdade embasando um sistema que vai de encontro às lições mesmas destes folclores, a saber, de cuidado da situação local contra a usurpação. É claro que há outros folcloristas e artistas populares que denunciam esta estupeficadora demagogia, mas os agentes que sabem bem utilizar essa ferramenta do imaginário têm, em todo caso, uma arma poderosa que lhes permite pensar em conquista do poder sobre o mito oficial.
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10.17.7.1 . Perseguição à própria sensibilidade: O primeiro ponto desta retórica imaginária consiste em transformar a angústia coletiva em um sentimento de medo intenso em relação ao que lhe é diferente. Isto pode ser notado em qualquer forma de seita, mas num âmbito maior é vislumbrado na perseguição social à sensibilidade através da cooptação de artistas como terroristas semióticos e na utilização de suas técnicas para o menticídio através da propaganda. Ou seja, as culpas da propaganda são colocadas sobre os terroristas estéticos: os artistas. Calar o eruditismo não trouxe a simplicidade de volta à música popular, apenas a deixou fechada a mudanças. A ideologia (a lógica de uma ideia) pretende se impor a todos pelo terror e , em contrapartida, o terror justifica seus crimes em nome da ideologia. As piadas de perseguição social são um primeiro passo. Os próprios artistas geram portanto seu ódio a si mesmos, se tornam produtores e agentes de propaganda contra seus interesses de classe em prol de interesses próprios de curto prazo. Os artistas cooptados permanecem no registro do imaginário, mas é um imaginário suicida para o próprio simbólico. Quanta vergonha se sente ao se intitular artista hoje em dia? 10.17.8. A Mitologia Cultural: Essa narrativa de identificação sectária de um modo de sensibilidade (que perversamente diz coisas como “Você gosta de arte, eu prefiro merda.”), permite nas situações modernas de perturbações da auto-imagem social mudanças rápidas, tanto materiais (perseguição técnica por “alta fidelidade”) quanto morais (competitividade artística), devolvendo graças às referências familiares (históricas, culturais, territoriais, culturais, e religiosas) sentido ao que parecia não tê-lo mais. Haveriam de entrevistar-me e mostrar de onde vim e como sofri, dariam todos os dados sobre mim para nisto postularem a obra, já psicosociabilizada, como um “outro”. 10.17.8.1 . A zoofobia e o antropocentrismo tem assim, um papel fundante nas estruturas misantrópicas do poder. O sacrifício animal ridicularizado na alimentação carnívora culturalmente aceita, por exemplo, remete diretamente à surdez programada das músicas religiosas, já devidamente laicizadas. A ideia de talismãs de marfim está intrinsecamente ligadas à de músicas como talismãs sonoros para a aquisição de poderes eróticos e mortíferos. O conceito de espécie tende a se tornar ultrapassado como o de raça conforme ampliamos nossos conhecimentos. Nós somos elefantes. Assim como o nacionalismo cria a ideia de nação, o estilismo cria o estilo e seus antípodas bem como o culturismo diz o que é cultura e o que é ócio e preguiça.
10.17.9. Caças Elefantes: A perseguição a qualquer forma de complexidade estética pauta a ideologia do sistema artístico atual e as regulamentações de “direito autoral” escondem a mais grave ainda criação de um dever ideológico autoral para com a assim chamada indústria criativa. Seria humano, afinal, esse outro a mais que não quer produzir consumo e entretenimento e nos obriga a questões terríveis de dissonância? A bestialização da alteridade é um indício bastante importante para um eventual início de violência contra ele. Todos podemos utilizar nomes de animais para provar a afeição que temos por alguém. Inversamente, porém, os nomes de animais também servem para marcar a hostilidade que sentimos com relação a determinada pessoa ou grupo. Os massacres genocidas sempre vieram após uma prévia desumanização das vítimas, o bullying infantil também age através deste princípio. A zoofobia serve de fundo ideológico à perseguição étnica e de classes. Esta animalização do Outro, colocando-o fora do campo das relações humanas, tem muito a nos mostrar da importância de uma reavaliação dos pressupostos éticos que temos como centrais em nossa cultura do massacre animal. 10.17.9.0. Superpopulação e extinção: Agricultores do Sri Lanka em suas noites insones com rojões em mãos e os caçadores europeus concordam que, como nunca antes, ocorre uma superpopulação de elefantes que deve ser reduzida. Ecologistas e biólogos mostram gráficos com a diminuição exponencial dos mesmos em contraposição ao vertiginoso crescimento populacional humano (e, consequentemente, da demanda alimentar e por bens de luxo como marfim). A quantidade de alimento diário necessária a um elefante (em média 150 quilos de comida) poderia alimentar quantas pessoas? Quantos bois em engorda, dadas as dificuldades da carnação? Quanta comida é desperdiçada para manter os lucros de alguns? Afinal, os artistas estão superpopulando o mundo com produções subjetivas desnecessárias, poluindo o campo dos sonhos cotidianos com infindas imagens ou nos vemos cada vez com menos artistas, já que a maioria acaba por ceder à propaganda de produtos, ao entretenimento, ou à pesquisa acadêmica? O medo da extinção leva à superpopulação.
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10.17.9.1 . Massacre, massa sacra de expiação do poder totemizado e transcendental, desde a idade média significa “matança de animais”, como por exemplo, na caça a cavalos com cães seguindo a presa. A cabeça de elefante, símbolo marfim por excelência, troféu exposto no salão do castelo traz este nome. E o maldito diretor da casa de ópera me olha e pergunta se eu conheço a música x de y. “Um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam muito mais.” Por exemplo, nunca se vê o Outro a mais dignificado como o leão. Pelo contrário, a carga imaginária é bem mais hostil e perversa, são traças de livros, baratas, ratos ou piolhos. Com sorte preguiças. É, isso se diz muito da artânsia. A pureza nos pede que exterminemos tais insetos e a segurança nos impele a caçar elefantes, sempre há um motivo de extermínio animal no pensamento humanista. 10.17.9.2 . A massificação das escutas que demanda a diminuição da propagação sonora a níveis menores nos conforma mais com os insetos que com nossa metáfora favorita da poesia, as aves. O crescimento populacional e a desumanização das relações ainda somam a este fator de nossa insetificação que numa nuvem de zumbidos forma a figura de um elefante, cuja escuta está pronta a ser massacrada para que só vejamos sua presa. As presas igualam o elefante e a formiga. Isto é barulho, não é música, não é produto, não precisa entrar nas discussões referentes à produção cultural. 10.17.9.3. Bestiário: Animais são sonhos. O bestiário remonta à universalidade e à banalidade da biomímica. Qualquer verificação empírica há de contradizer os costumes reais dos animais como bestas à sua face de nuvem, a cinza da rosa é a terra da rosa invisível. A imaginação não pode ser desmentida pela realidade, mas sua terra de erros traz algo de verdade à realização das coisas. O que desencadeia o lirismo não são as descobertas inéditas, mas as confirmações aproximativas das lendas animais. O elefante irá voar por suas orelhas. O animal é o abstrato espontâneo, objeto de uma assimilação simbólica, como mostra a universalidade e a pluralidade da sua presença tanto numa consciência civilizada como numa mentalidade primitiva. A etnologia evidenciou com clareza o arcaísmo e a universalidade dos símbolos que se manifestam no totemismo. Quanto a supervalorização de certas leituras da história das artes e dos folclores não foi prejudicial à experiência vital da arte no cotidiano, e mesmo afastou populações inteiras de seus conhecimentos? 10.17.10. Símbolo Marfim: Podemos designar o simbolismo como ponto de conexão entre todas as formas estruturadas ou não de religiosidade, qualquer religião tem símbolos próprio. Podemos apontar algumas responsabilidades sociais simbólicas subjacentes a qualquer modo de religar semiótico: cada qual responde pelos símbolos que gera e carrega consigo, mas somente no sentido de que está a produzir conteúdo subjetivo e estético e não estando obrigado a responder em nome de alguma história oficial deste símbolo. 10.17.10.1 . Quanto ao conteúdo destes, os símbolos são abertos a incontáveis e paradoxais leituras, deixando que o porta o papel de criar seu sentido. Papiro memória, papel impresso e imprensa midiatizante & as redes sociáveis. O signo é este transmissor do símbolo de acordo com o contexto, e não a forma abstraída de seu gesto. A mensagem é o meio sim, mas o meio como experienciado pelo receptor do símbolo a partir da sua relação com o signo de quem é o transmissor neste contexto.
10.17.10.1 .1 . Modo de vida, sistema semiótico, canções de ninar. Possível regra de ouro da estética religiosa biológica: jamais cobrarás por um símbolo ou signo, dado sua religiosidade sígnica com a semiose afetiva; e jamais proibirás a utilização simbólica de qualquer produção do espírito humano, sob a pena de afastar alguém de uma abertura espiritual da experiência. 10.17.10.1 .1 .1 . A canção-chamariz permite atirar e matar. Essa função persiste na música mais sábia. Por ocasião do extermínio de milhões, hinos foram escritos e ancestrais foram louvados. Mas talvez não seja à nacionalidade ou região musical que esteja atrelada a violência, senão à própria origem da música. O maestro faz todo o espetáculo daquilo ao que o espectador obedece. Os ouvintes se associam para ver um humano de pé, sozinho, elevado, que faz falar e calar segundo sua vontade um rebanho que obedece. O dono do corpo social é o mestre-capelão da natureza. Todo maestro é domador, é Führer. 10.17.10.1 .2 . As mais severas censuras, em nada diminuíram ou amenizaram o campo de experimentação simbólica de uma saturação e da má utilização da mesma, mas no sentido inverso, cerceou enormemente as produções que questionam justamente os mecanismos de usura simbólica e de monopólio sobre a utilização de mitos, chamado perversamente de direito autoral. Proponho que através de uma economia da dádiva simbólica, recuperamos a relação que perdemos com nossos símbolos mais profundos e religiosos. 10.17.10.2 . Safári Simbólico: Quando exercida até o fim, a violência torna o humano uma coisa, pois torna-o um cadáver. A cultura da violência mata os símbolos na mesma proporção, no sentido que lhes violenta com ideologias não condizentes com suas formas e infralógicas. Através da competitividade de todos os símbolos pela atenção, a destruição dos símbolos dos outros marca bem claramente o desejo mágico-religioso fetichista de uma onipotência de um “nós” que triunfa à morte e de nossa falsa autoproclamada liberação de qualquer vivência (mesmo que simbólica). 10.17.10.2 .1 . Uma história do pop como do kitsch, com seus reis e rainhas, torna inútil uma história da música ocidental. O repertório, em via de regra, da propaganda ridiculariza a história da arte. Este núcleo psíquico de infantilização da sensibilidade e de surdez programada para a complexidade arquetípica, exatamente por se embasar em experiências simbólicas elementares. Mesmo que também nos parece universal, denominador da espécie que transcende suas diferenças culturais. O legado meritocrático se mostra, na massificação, mero nepotismo. A hegemonia se dá pelo desejo de fazer parte de uma cultura global. No entanto, a manipulação de poda do núcleo imaginário, em um contexto de crise, deixa de ser apenas arbitrária e se torna perigosamente ideológica.
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10.17.10.2 .1 .1 . A legislação de direito autoral é uma maneira de obrigar certos deveres formais a criadores, que em geral estes não percebem, para que: compactuem com a ideologia vigente (no nosso caso o capitalismo cognitivo). 10.17.10.2 .2 . Gritos de Ordem: A música patriótica é uma impressão infantil; ela acarreta um sobressalto perturbador, um frisson arrepiante à espinha, enchendo de emoção, de uma surpreendente adesão. Onde se quer ter escravos é preciso ter o máximo de música. A ordem é a origem mais antiga da linguagem. 10.17.10.2 .2 .1 . Domesticar e ordenar são a mesma coisa. As crianças humanas são primeiro atormentadas de ordens, isto é, atormentadas de gritos de morte ornados de linguagens. A zoofobia levou a uma completa escravização animal. O escravo nunca é um objeto, mas sempre um animal. O elefante domesticado já não é mais completamente um animal porque é obediente: ele ouve, ele responde à voz-chamariz, ele parece compreender o sentido quando ele só faz submeter-se à melodia. A manada de humanos ou elefantes é sempre selvagem. 10.17.10.3. Profecias Autorrealizadoras: Se definimos coisas como reais, elas se tornam reais em suas consequências através da projeção, previsibilidade e autoindulgência. A vida imita a arte para se dar mais-valia simbólica sobre o ocaso, a arte imita a vida para ampliar seu poder de realização. O maximalismo, como o marxismo sonoro, é pop, o fado noiseaxé está no ar. O espectador de uma ópera é sempre um profeta e fica tentando prever o que vai acontecer, quando identifica diz-se “Eu não disse?” e aí a obra se lhe parece mais simpática e ao mesmo tempo mais tediosa. O historiador Jacques Sémelin demonstrou o papel essencial de letrados e de clérigos na justificação e no funcionamento das formas de perseguição a partir do Século XI da era Católica (da evisceração de Catão).
10.17.10.3.1 . Das dificuldades dogmáticas no método da obra: Eles definiam elucidativamente quem era o inimigo: principalmente heréticos, judeus, leprosos e mais tarde feiticeiros. Por meio de diversos períodos de exclusão, de banimento, de torturas e mortes, o saber e a fé foram utilizados para o assentamento de diversas formas de poder político e religioso sobre o conjunto das populações. À influência crescente dos letrados associou-se o desenvolvimento de sistemas punitivos e persecutórios. Quais as legislações simbólicas com o advento de filmes de julgamento, legiões de insones e de manuais de museografia? Por que já vivemos no museu e não podemos atuar? 10.17.10.3.2 . O Intelectualismo por detrás do discurso contra o pensamento crítico nos aconselharia particular prudência com relação à função emancipadora da cultura, como modo de “elevação” do espírito do humano (ou elefante) pela instrução. Com toda evidência, a educação do ser humano é o meio de libertá-lo da miséria, de ampliar seu conhecimento do mundo e de lhe fornecer os instrumentos para agir mais eficazmente, conhecendo as leis. No entanto, a cultura não possui, em si mesma, a faculdade de conduzir o humano a se libertar da violência (nem mesmo da simbólica).
10.17.10.3.3. Pelo contrário, pode lhe dar meios para ser mais engenhoso no exercício da violência ou até mesmo da crueldade. A música erudita pode ser uma emancipação da escuta mas também só uma demonstração de exclusivismo aristocrático. Instrução não torna o homem melhor, o torna mais eficaz. Essa é uma das desculpas preferidas pelos políticos para o fechamento dos canais de difusão do conhecimento, mas bem sabemos que apenas monopoliza o poder de atuação sobre a vida coletiva, problema que gera aflições ainda maiores e o terror da sensação de impotência generalizada. A música é uma arte do coração à escuta.
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10.17.11 . A Fabricação de Mitos Próprios insere sua criação no sistema oficial de mitologia ideológica (que pode incluir os massacres de favelados em prol da especulação imobiliária, por exemplo), mas criação de tudxs: é anônimo. Cada qual, à sua maneira, com os instrumentos próprios das suas artes e utilizando a linguagem das suas disciplinas, pode contribuir para tornar a ideologia mais atraente para um público que ultrapasse aquele restrito dos círculos previamente convencidos; já os dissidentes da ideologia só podem pregar para o coro. O mito fabrica seus criadores. Mas o que estou dizendo? A identificação de uma música típica brasileira responde a este ímpeto, transferindo o ressentimento colonial para o campo da produção de ícones da música, mas sem de fato atentar às diferenças nos modos de produção de música dos povos locais. 10.17.12 . O Estado Simbólico, este mito da ideologia oficial é claro no nacionalismo até mesmo ufanista, ainda bastante vigente. No caso da ditadura da propaganda a que nos vemos submersos, onde o símbolo fabricado e fabricador é ocultado e a cidade se torna um mercado. A moeda é o símbolo do mercado enquanto Estado Global. De Bach aos padres ídolos de música pop carismática percebe-se um movimento cabal de utilizações do discurso do poder sobre a produção de escuta religiosa-estética. 10.17.13. Igrejas Elefantes: Mais precisamente convém observar as declarações e posturas das igrejas, ao se cometerem atos de violência contra os inimigos designados pelo Estado em paralelo ao tipo de incentivo na produção artística sacra. As reações - ou ausência de reações - diante dos atos de violência constituem, então, um indicador fundamental da capacidade de uma igreja enquanto centro de conexão simbólica coletiva de confirmar sua legitimidade para com os seus símbolos e regras de conduta interna. Kant, Bach, Offenbach, Sade. As catedrais de Klossowski. 10.17.14 . Se mostra cada vez mais necessário uma estética da libertação religiosa, para os crentes nos mais diversos sistemas simbólicos (incluindo os científicos e laicos). Não se pode servir ao símbolo da mistura, a moeda, ao mesmo tempo que se procura manter uma pureza de símbolos específicos de uma religiosidade. Ria! Com o político, que deveria conter a especulação e o predatorismo, fazendo apelo à violência competitiva pública das eleições e o religioso não se atrevendo a se apoiar em sua própria tradição para condenar tais usuras e desmesuras. Quem pode conter esta ideologia mercantil aplicada a todos os campos da experiência humana? A lei é tudo, a morte é tudo, o sexo é tudo, tudo é relativo e explode no tempo.
10.17.15. O Caso Música: A solução atual das escutas que nos é proposta pela mercantilização da arte sonora não oferece, com efeito, perspectiva alguma de compromisso. Suas análises, fundadas em uma afirmação de identidade radical, consistem exatamente em essencializar as diferenças: música / ruído, entretenedor/ terrorista. Elas legitimam um enfrentamento existencial entre “eles” que não sabem ser felizes e “nós” que gozamos dos prazeres. É a identidade artística que se coloca ao espectador como sendo de natureza ameaçadora. Não há, por isso, negociação possível, pois a diferença se impõe como intangível. Com a interferência do Estado, muda-se de escala e passa-se à projeção de uma escuta oficial com incentivos que funcionam como censura positiva através de remuneração de pensamento condizente com a ideologia (capital) vigente, levando a produção a uma natural homogenia. 10.17.15.1 . Tortura de Elefantes: Deve-se reconhecer: a força da literatura sadista permeia o tema deste projeto (como à arte). Ao longo das páginas, e mais particularmente nesta justificativa extensa e lenta, estivemos à procura do que sentem, do que pensam os carrascos no próprio momento da tortura de um elefante. Pois bem, Sade dedicou longas passagens, aliás repetitivas e demoradas, a expor seus argumentos, a descrever suas emoções no momento fatídico. À sua maneira, é claro: cada cena (e toda cena o é, numa instância psicológica) de tortura, de estupro, de morte é precedida ou acompanhada por longas explicações dadas pelo carrasco à vitima, antes de lhe infligir sevícias. Detalhe também extraordinário nos retratos de personagens (avesso de Francis Bacon) é que nenhum deles parece ser louco, são no máximo frios, mas sempre polidos. Monstros, mas não anormais. Movidos sobretudo pelo egoísmo e pela cupidez. Vê-se que a arte já assume o papel que lhe cabe de invasão sensível a partir do simbólico. Todos os vícios do teatro estão presentes já em estado latente (literário): O sentimento de impunidade, a embriaguez da violência sobre o afeto alheio, a marcação dos corpos com símbolos, a vontade de romper todas as proibições, de fazer saltarem todas as barreiras sexuais e geracionais numa orgia dos sentidos. A arte impõe aos sentidos a transgressão total das situações de extrema violência que fundam a alma humana, para que se reconheçam seus feitores na vida real e que aqueles que assim desejem, possam lhes conhecer para evitar. Mengele não usa seus filhos como cobaias, Sade se usa como testemunho da importância de conhecermos as fantasias dos carrascos, suas faculdades de imaginação recalcadas e seus caprichos, com as quais sustentam-se os delírios de poder.
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10.17.16. Mídia Elefante: Alimentar o medo e o ressentimento são o papel da mídia. A manipulação das emoções ocupa um lugar central na ideologia cultural da idolatria competitiva. A arte opera como propaganda deste novo universo de sentidos hegemônico para todxs. Imprensa, rádio, televisão e, agora com atos como o SOPA também a internet são convidados ou literalmente obrigados a se tornarem os vetores permanentes dessa visão de mundo. A propaganda passa a ser, desse modo, um sistema de envolvimento geral da população. Nas músicas, leitmotivs e standards fazem soar as tarabands de jingles da moosak sem fim, e ei-nos na pureza da escuta dócil. O princípio básico é sempre o mesmo: fabricar a emoção, documentar o vivido, servir de modelo. Canções e filmes que tratam sobre todos os assuntos, mas de um único modo, nos dizem: Não tem escolha. 10.17.16.1 . Os grandes feudos e capitanias midiáticas da sensibilidade e seu controle do espectro de comunicação social através da sensação de que o que une os humanos é a sensação infantil de simplicidade e pureza, a complexidade é colocada como inimigo a ser combatido em prol da identidade da ignorância disfarçada de igualdade. A propaganda procura impor a todxs uma interpretação do mundo, apresentada como vital, a partir do grupo a que ela pertence. E então brada: conosco ou contra nós? Seria preciso lembrar que se estabelece assim um sistema totalitário sobre a imaginação e produção subjetiva e simbólica sobre as mais diversas populações a homogeneizando? 10.17.17. Desenvolvimentismo Elefante: Os traumas de um subdesenvolvimento da infância da espécie (e dos povos) levam à sacralização do progresso. A zoofobia nos leva a crer que somos a espécie eleita que supõe a edificação de um altar global de sacrifício simbólico para queimar tudo e todxs designados pelos micropoders compactuantes com a ideologia mercantil como Outro, estranho ou perigoso. A exclusão artificial é necessariamente constitutiva do movimento de veneração de si, do “nós”. A cultura é narcisismo e os processos de violência são expurgos da dissonância subjetiva que demanda a observação de nossas parcelas de culpa neste processo. O desenvolvimento cultural dessa dinâmica social sacrificial não dissolve a presença do religioso nas suas movimentações simbólicas (seus mitos, como estudados por Barthes). Mas esta dinâmica do progresso infinito, do crescimento exponencial em busca do paraíso perdido, entra em concorrência com a lógica própria do sagrado que para cada passo que dá, precisa atravessar novamente todo o universo referencial pelo qual já passou. 10.17.17.1 . O Valor do Marfim: Fatores históricos e culturais presidem a designação vitimária de genocídios e massacres. A crise dos papéis de gênero e a crise da consciência, por exemplo, estão intimamente ligados à perseguição homofóbica e à proibição das substâncias psicoativadoras (denominadas pejorativamente de drogas). No campo das artes, esta perseguição se dá pelo ostracismo, pelo esquecimento e pela recusa de reconhecimento das artes relacionais. O símbolo cumpre um papel de nos relembrar de um sacrifício, o marfim é não só a prova de poder sobre o elefante, mas também a demonstração de sua entrega a nós, sua devoção. Em um mundo incerto, a violência cristaliza a identidade: cria uma certeza, ali onde reinava a incerteza, edificando barreiras intransponíveis. É uma maneira de reforçar o viver junto do nós com o sacrifício do elxs. A violência sacrificial se pretende prática sagrada de purificação.
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10.17.17.2 . A necropolítica se utiliza deste poder sagrado de seus gestos de violência inexplicável. Apoia-se para tal nos enquadramentos culturais da crença religiosa ou mágica, específicas a cada localidade. Como viver juntos em crise contínua? - te perguntam com olhos lacrimosos - Compreender as dissonâncias é próprio da escuta compassiva, compreender somente as consonâncias é complacência aural. Sabe-se de uma cultura auditiva pelo que ela deixa de ouvir. Os atores tem um texto que sua voz lê e outro que é sua intenção.
10.17.3. Instrumentos de Tortura: Todos os utensílios de produção artística são fetiches, substâncias dotadas de forças que não sabemos dominar. O caminho natural das técnicas artísticas é se tornarem telejogos infantis mesmo. Essas múltiplas obras técnicas do fetichismo são superiores à arte que produzem, na própria medida em que dispensam a crítica que demanda a arte. O fazer artístico incita ao poder enquanto a contemplação da arte nos depara com o abismo. A linguística do consumo está criptografada em símbolos mágicos e procede por sincretismo selvagem, acolhe em seu panteão os resíduos dos mitos, lendas, religiões e ideologias, que transmuta segundo sua conveniência. Todo o nosso universo tecnológico está obcecado pelo oculto, pelas causalidades loucas e fabulosas. A publicidade é também uma forma sorridente de feitiçaria. Ela sempre age de maneira que as coisas conspirem a nosso favor e elevem cada um de nós ao plano de um monarca, que merece serviço perfeito. Com este instrumento você se tornará um artista. A técnica é também um ato de fé.
10.17.4 . Censura Espontânea: Uma escuta compassiva das infralógicas coletivas de produção de censura espontânea de subjetividade pode nos ajudar a perceber as motivações da aceitação da ideologia hegemonista, alguns pontos a serem pesquisados em cada caso cultural são: o impulso central da empreitada simbólica; os agentes mercadológicos e estatais envolvidos no desenvolvimento da movimentação simbólica; a opinião pública e a participação popular no mesmo; a morfologia da cooptação. Um exemplo de pesquisa possível seria o impulso medieval de proibição diabolos in musica, sua motivação religiosa não esconde infralógicas que remetem à subliminaridade da dissonância social? De que maneira a igreja católica executou tal proibição? Qual foi a real aceitação pública destas medidas? Como elas foram então por fim, tornadas obrigatórias e onde encontramos resistências? 10.17.4 .1 . Resistência ao Gnoseocídio: Afirmamos que o populismo artístico da entretenimentização foi também organizado e sustentado por uma elite global, que teme perder seus privilégios míticos e que, para conservar o poder simbólico da ancestralidade e da nobreza de sangue, baseado na produção de si, enfocam a cultura popular no rancor ao conhecimento e ressentimento à sensibilidade, perseguindo às sabedorias ancestrais e às conexões que subjazem ligando todas as religiões num grande repositório aberto de saberes. Esta massificação programada, porém, se tornando o padrão de conduta geral, saiu do controle gerando a contínua perda de aura de todos os gestos e relações humanos, levando mesmo esta classe dominante a sofrer da ignorância que eles mesmos programaram. Linhagens esparsas, de maioria anônimas, que incluem sociedades secretas se infiltraram na cultura de modo a manter a chama do conhecimento aceso, a esta linhagem hoje corresponde a arte.
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10.17.5. Poluição musical: O que era raridade tornou-se muito mais do que uma frequência. O que era o mais extraordinário tornou-se um cerco que assalta sem descanso tanto a cidade como o campo. Os humanos se tornaram assaltados pela música, os sitiados pela música. A música tonal e orquestral tornou-se o tonos social, mais do que as línguas vernaculares. Desse modo, depois da guerra total do terceiro reich alemão e em consequência da tecnologia de reprodução dos melos, amar ou odiar a música faz voltar pela primeira vez à violência própria, original, que funda o domínio sonoro. 10.17.5.1 . O fascismo está ligado ao alto-falante. Seu fascínio musical sobre a escuta multiplicou-se com a ajudada radio-fonia. Mais tarde somado à tele-visão. No decorrer do século XX, uma lógica historial, fascista, industrial, elétrica, apoderou-se dos sons ameaçadores. A música pela multiplicação não de sua utilização (que se tornou mais rara), mas de sua reprodução bem como de sua audiência ubíqua, agora ultrapassou a fronteira que a opunha ao ruído. A música desde a segunda guerra mundial tornou-se um som não desejado, uma náusea (a melhor tradução para noise em brasileiro).
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10.18. Ruído Elefante: Ruído marfim. Se escrevo tanto a respeito de minhas próprias indagações com respeito a compor uma escuta, é para ridicularizar quem escreva “sobre” um compositor que não si próprio. Se o espectador ideal seria aquele que preferiria encontrar na música a expressão de emoções e ideias inteligíveis ao primeiro contato, cujo conteúdo seria óbvio, gera-se uma soação ao modo do acompanhamento de uma escuta ensimesmada. O ouvintecompositor, ao contrário, capacitado a acompanhar a relação dos sons musicais e das distintas gamas de instrumentos (físicos e abstratos) de produção de escuta, degusta o resultado artístico de modulação harmoniosa do ambiente aural (levando em consideração aqui também as dissonâncias do contexto) e a interação das distintas escutas presentes, em seus próprios méritos. O que neste projeto pode nos atrapalhar a perceber seu cerne, quais seus ruídos internos? 10.18.1 . Há uma enorme carga de comunicação ocorrendo em cada gesto que as pessoas simplesmente não ouvem. Elefantes nos lembram desta subliminaridade e desta outra forma de experimentação do tempo e das relações. Dada sua habilidade em detectar sutis diferenças frequenciais em variações sísmicas, elefantes podem também distinguir eventos infrassônicos tais como veículos, aeroplanos, tempestades ou terremotos, tempestades solares; tornando-os aptos à sofisticada habilidade de explorar a modalidade sísmica para comunicação intraespecimal. Om. Tomemos como exemplo a infinidade do continuum eletromagnético e a criação subjetiva de foco das separações de campo de atuação sensível. Dividimos os sons das cores, e damos nomes sobre os quais apontamos seus focos de derivação, mas que variam numa dança veloz. A próera coloca a ópera como mera personagem de uma obra maior, a era, que é observada por um futuro espectador interator. Que tipos de pesquisas se abrem com a utilização do espectro eletromagnético de maneiras não comerciais, que tipo de sinais podemos mandar para o espaço, muito mais amplos que os atuais? 10.18.2 . Aprendizado vocal e sabedoria oral: Muito poucos mamíferos são capazes de produzir ou modificar sons em resposta a experiências auditórias, como notou McCowen e Reiss. Os que conseguem incluem humanos, alguns mamíferos marinhos (como as baleias, golfinhos, focas...) e morcegos. Há aí uma significância óbvia da imitação para a aquisição linguística humana (os mitos, nesta visão, aparecem como metalinguística da vocalização), mas há ainda evidências para o ensino de produção vocal em outros primatas (que produzem poéticas como a criptoflorestania e crystalpunk). Recentemente, Poole nos deu dois exemplos de imitação vocal entre elefantes africanos: Uma jovem elefante que imitava o som de caminhões e um sob cárcere zoológico que imitava os seus companheiros de cela asiáticos. Há ainda descrições de elefantes que assoviam. Tal característica permite um sistema comunicacional aberto e flexível, envolvendo tanto a inovação comportamental quanto o aprendizado socializante.
10.18.2 .1 . Mito voz: Já que podemos imaginar o sistema erudito, o sacro e o popular de músicas como três capacidades diversas de vocalização musical, os ruídos em suas danças criando ambientes abstratos como outra, que mito poderia ensinar esta voz coletiva além-maquínica? Como seria uma tal “escuta elefante” aberta e flexível a esta complexidade além do complicado? E num campo ainda mais amplo, quantas possibilidades não há de ampliação da escuta nas mais diversas áreas do fazer humano quando amparadas por músicos? Muitas práticas já têm sido implementadas neste sentido e só lhes falta uma estruturação harmônica de seus contextos simbólicos. 10.18.3. Linguística social: O aprendizado vocal ocorre em outras espécies com laços sociais em fissão-fusão de longo prazo com redes de relacionamentos que envolvem pertencimentos fluidos em grupos, onde a comunicação tem função de mantenimento de contato, reconhecimento de grupo e individual; e em mediação de interações sociais (como nos nichos artísticos, tal como a música). Uma das hipóteses é a de que a origem da linguagem humana seja a necessidade de codificar a crescente complexificação informacional sobre os relacionamentos sociais. Neste contexto, a música precede a musicologia na distância exata da estética da socialização. Isto revela uma penosa divisão entre a obrigação social de pensar e o desejo individual de devanear, paralelo a um canto suspenso por normas de fala monocórdica e uma escultura social que nega a dança em espaços públicos e de separação entre o artear (feito linguagem privada) e a linguagem cotidiana. 10.18.3.1 . Cifra elefante: a rede simbólica é ainda a resistência de uma anarquia perante a sinarquia plutocrática social, como à época de seu surgimento. Ao descrever tal hipótese, Pinker sugeriu que a socialidade, a aquisição de conhecimento e a linguagem, coevoluiram nos humanos de maneira que a linguagem reforçou as relações sociais e criou um mecanismo para a distribuição de conhecimento a associados. Estas três características das sociedades humanas parecem ser evidentes, em menor extensão, em elefantes.
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10.18.3.2 . Com o crescimento populacional e da densidade de conhecimentos, que tipo de linguagem (e aqui lembramos que o dinheiro é a linguagem mais universal entre a espécie) e linguística (e aqui lembramos que a cultura é a linguística geral das relações simbólicas) precisamos criar para modos mais entranhados de enredamento? Como não se voltar às coisas pela obrigação de compreendê-las e torná-las explicadas (se possível por escrito, mesmo que ninguém leia), mas sim, de deixar fluir em si um fluxo de identificação imaginosa e afetiva que surpreenda, entre o espírito e o coração, a própria intimidade do mundo e suas coisas vivas em si mesmas. 10.18.4 . Formigueiro elefante: A comunicação enquanto uma medida de flexibilidade social e cognitiva das espécias que fazem uso tanto do aprendizado contextual (contexto comportamental da escuta e posicionamento harmônico sequencial) e o aprendizado da produção (modificação baseada na experiência) são teoricamente capazes de desenvolver um sistema de comunicação acústica mais complexo que as espécies que só se utilizam somente do primeiro. Cada forma de nova aprendizagem vocal incrementa a complexidade do sistema de comunicação, e aqui é preciso que agradeçamos de novo a todxs xs pesquisadores de cantox além-humanos. Ainda compreendemos pouco sobre as mutações que estes aprendizados causam em nós em outros âmbitos, mas nos parece certo que hajam mudanças perceptíveis no âmbito relacional e sensível. 10.18.4 .1 . O maximalismo musical da escuta serve a este propósito, pois quanto mais formas presentes, maior o potencial do sistema vocal para a abertura e a plasticidade mórfica. Os elefantes usam ambos os aprendizados (contextual e de produção) e, como predito, seu sistema de comunicação acústica inclui um extenso repertório vocal com um alto grau de variabilidade tanto nos indivíduos quanto nas relações sonoras entre estes. É preciso sim, mais sambas dodecafônicos e pesquisas de ressonância estocástica sobre harmonias tradicionais. Os elefantes também têm uma ampla gama de gestos visuais e táteis e apresentam uma intrincada comunicação química e eletromagnética. Junto, este complexo sistema comunicacional sinestésico media a intrincada rede de cooperações demonstradas por membros de uma manada. A tomada de decisões cotidiana envolve ampla participação vocal e usualmente inclui a construção de consenso através de discussões que tomam horas. 10.18.5. Política elefante: Os elefantes, portanto, através da fala e de sua intercomunicabilidade são possuidores de uma predisposição política como por muito se quis negar, assim como toda e qualquer forma de soação principalmente a música. A formação de relacionamentos de longa duração é a própria essência das sociedades elefantes da rede de aliados vitalícios, que são usualmente não relacionados geneticamente, e que define as manadas familiares elefantes e seus laços de grupo. Estas relações de suporte mútuo e educação através da crítica podem ser vistos em prática nas conhecidas cerimônias de saudações elefantes, trazem à mente relações de escolas artísticas e suas antipatias animalescas por outras possibilidades de feitura artística. Similarmente, conflitos entre dois indivíduos em uma manada são tipicamente resolvidas na reconciliação vocal que - ainda mais sociável - costumam envolver a intervenção de um terceiro indivíduo da manada.
10.18.5.1 . Os observadores externos têm um papel importante em decidir os resultados de conflitos intraespecíficos na comunidade elefantina, assim como a platéia tem uma vital funcionalidade na produção de um gesto artístico. Os laços de amizades destes animais são mantidos por um recíproco altruísmo, como observou Payne, posto que questionam até mesmo os períodos de musth. Os elefantes são capazes de reconhecer e responder apropriadamente a vozes de outros e as classificar por grupos de pertencimento a longas distâncias, além de uma enorme compassividade com relação às necessidades do outro. Não são poucas as piadas de cornacas sobre elefantes se unires e imitarem sons para enganá-los pra conseguir mais comida, também. 10.18.6. Projeto elefante: Planejamento antecipatório, intuição e insight são aspectos elefantinos ainda não levados em conta. A combinação de longevidade, memória a longo prazo, aprendizado social e inovação comportamental podem nos levar a esperar que elefantes demonstrem outras habilidades, tal como uma intuição e uma teoria mental. Quando falamos em intuição, nos referimos a comportamentos que mostram a compreensão de relações entre estímulos e eventos. Enquanto a teoria mental é definida enquanto uma habilidade de compreender a existência de outras subjetividades que vêem, sentem e sabem. Elefantes sonham e reconhecem-se ao espelho, mas uma demonstração anedótica das capacidades de mentalização de elefantes é a maneira como com troncos estes destroem cercas eletrificadas. Como grandes, altamente sociáveis, animais inteligentes que são, elefantes requerem amplo espaço ambientalmente complexo e um número suficiente de coespecíficos para contato e aprendizado social. Nos movemos a uma situação na qual somente instituições com tal perfil, que possibilita o exercício pleno da liberdade animal, tenham permissão de manterm elefantes em suas dependências. 10.18.7. A Opinião Pública é aquela que se pode exprimir em público, sem risco de sanção, e sobre a qual pode se apoiar a ação empreendida publicamente. Canção é delação e o debate sobre poluição sonora deve vir junto de um sobre a poluição musical. Estando de acordo com o ponto de vista dominante, o artista reforça a confiança em si e se permite exprimir sem reticências, sem correr o risco de ficar isolado diante dos que o fazem. Um músico com uma obra fofinha e alegre obviamente terá mais espaço de mídia que outro complexista (a vida de Zappa é uma grande performance, neste sentido). Quanto mais percebe que suas convicções estão perdendo terreno, mais se sente inseguro e menos inclinado a demonstrar suas opiniões. A tendência a se expressar num caso e a silenciar em outro, engendra uma espiral de homogeneização dos modos de produção cultural. As minorias acústicas são facilmente detectadas, elas soam mal. As minorias artísticas são aquelas que não estão nas redes de mercantilização simbólica. 10.18.8. A transfiguração dos animais do bosque em elefante. Se Goethe tem razão ao dizer que “só um gênio está apto a entender um gênio”, como podemos esperar uma opinião pública da arte sem despertarmos a arte massiva? O papel ativo de iniciado de um processo de formação de opinião pública no sentido crítico se reserva a quem quer que consiga resistir à ameaça de isolamento. Compreendamos que as vanguardas não cessaram, foram escondidas e proibidas como tabu cultural, e seus artistas beiram suas obras ao ab_ismo da solidão. O elefante joga água na cabeça do narrador. Mas este realiza uma operação... e os animais do bosque foram transformados em formigas.
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10.18.9. Operação: A arte é a metáfora da paixão construída, produzida, ao mesmo tempo, por uma ação voluntária dos seus partidários extremosos e por circunstâncias favorecendo a propagação de alguns de seus elementos. O mito segundo a paixão, nos tira da angústia multiforme e evanescente, mas nos defronta com a finalidade de seu processo socioafetivo: a distinção daqueles que vivenciaram e dos que não vivenciaram a obra, a mais-valia subjetiva da experiência da arte e seu fruidor, sua aura. Toda obra é uma operação incisiva na intersubjetivação, que constrói um imaginário de onipotência e glória, de superação triunfante dos problemas que aponta, aqui a ideologia capital. Este seu aspecto de solução, gera a infecciosidade dos signos contidos nela, bem como a assunção de que o produto ou marca relacionado à obra também tenha o mesmo poder. O mercado e a arte, como artista e espectador, se convergem numa alienação mútua retroalimentada. A vertigem cerebral do excesso de produtos é complementar ao verme de ouvido (earworm), aquela melodiazinha que você não consegue esquecer, taraburst. 10.18.10. A Politização da Cultura: O Estado exprime a vontade dos grupos dominantes de mobilizar e controlar todos os recursos de um país, não somente militarmente, mas também simbolicamente, economicamente através da ideologia. A partir do século XX a guerra implica toda a população. Essa confusão nas relações entre o militar e o civil, entre o combatente e o não combatente se encontra no centro da quase totalidade dos conflitos contemporâneos, e na arte isto não seria diferente. A militarização das relações veio junta aos aparelhos bélicos de telerádio móvel bem como ao entrincheiramento simbólico e à guerra de todos os símbolos contra todos os símbolos, o aparelhamento ideológico. 10.18.11 . Os museus são campos de batalha onde todo signo quer vender algo. Precisamos libertar os símbolos, como aos elefantes! A hinificação moderna e as bandeiras e estandartes regionais marcam esta mudança em direção à concentração simbólica. Já na cultura atual cada estilo tem sua bandeira própria e cada banda seu logotipo. Mercantiliou-se a escuta individual. Sons de guerra, músicas de captura. A mobilização política nacionalista agora se volta contra os Outros internos, seus estrangeiros a sua ideologia desenvolvimentista. Freud e Schuman, Schubert, Mahler, Brahms, Debussy, Ravel. 10.18.12 . Guerra Semiótica Global: Assim como as bruxas que clamavam o desejo através dos símbolos do fogo foram ateadas à fogueira, os ruidistas que defendiam a dissonância fora atirados à antipatia sofrendo com a marginalização simbólica. A perseguição à diferença soante é parte vital da hiperconsonância massificante da escuta global de pop. É precisamente a criação de um estado de guerrilha semiótica generalizada contra a dissonância cultural, a hegemonização, que permite tanto a perseguição às diferenças identitárias e a massificação entretenimentalizante da arte. Mas o discurso mantém este inimigo sempre abafado e oculto, de modo a que a hegemonia ideológica não crie uma briga que não pode vencer, a partir do momento em que declarada. A arte, portanto, só se torna notícia quando vira crime e confirma o terror da produção crítica, validando o discurso oficial: “O mundo já é barulhento demais pra eu querer ouvir este lixo.” Não é de se estranhar que haja uma rede comum de produções modernas de produtos que clamem para si linhagens folcloristas como o country, o sertanejo, o schlagerl, etc.
10.18.13. A que se pretende esta exaltação do reprovado? Levar a insurgência anticonformista contra o controle subjetivo e a necessidade de rebeldia ante o menticídio a uma autoimagem ridícula, tornar o êxtase uma culpa e diminuir as relações à peste da influência onde o olhar do outro é sempre inquisidor e sua voz se torna inexistente pela autoridade da citação. O deslocamento individualista do centro de gravidade da sociedade para o particular do competitivismo mercadológico também se alimenta deste dogmatismo do sucesso. 10.18.13.1 . Ejetados da concha protetora dos mitos cotidianos do mendigo artista, nos vemos vulneráveis e alimentados no nosso desejo de “subir na vida”. Acuados pelo perfeccionismo de produção, podemos decair, vegetar, mergulhar na mediocridade do conteúdo a ser produzido já que a obra só terá significações dada pelo sistema cultural do espectador. O mesmo se dá na defesa da genialidade generalizada, discurso politicamente correto, mas que leva a uma autoindulgência quanto às possibilidades da arte. “Se não entendo, não é bom.” complementa a auto-crítica autoinfligida da escuta nunca satisfeita dos pesquisadores acusmáticos eletroacústicos. 10.18.14 . Escuta Institucional: É preciso conter a lógica comercial, enquadrá-la no museu, proteger os espaços ainda preservados da subjetividade, reconquistar símbolos que ela tenta monopolizar. Uma auraterapia se dá neste campo entre a credibilidade e a crença, problema particularmente complexo dos modos de recepção da informação aurática (vide aura em Walter Benjamin). Um ouvinte que quisesse explicitar as deficiências de escuta de um certo sistema fechado (uma instituição social, por exemplo) teria de atravessar todo o encaminhamento tortuoso de integração de um modo sensível que escapa seu campo de consciência. Como as ideologias institucionais geram discursividades de modo a gerar uma surdez seletiva cooptando as escutas? Quais as estratégias locais de consoação estocástica das soações individuais e como se dão as harmonizações de ruídos? 10.18.15. Ruidificação Institucional: Um processo de escuta institucional atua como ruído dentro de uma harmonia estável, precisando levar em conta a resistência à informação de seu estudo. Nesta fase refratária, os modos de recepção do passado, como o foco dado à história da cultura humana, representam um papel importante. Um exemplo: Ao atestarmos após estes longos estudos que “museus e universidades se assemelham a campos de concentração sensível”, é de grande probabilidade que músicos acadêmicos jurem não cair neste tipo de falácia e se disporão a buscar argumentações contra tal afirmação, mas mais fortemente ainda, a resistência se funda na indiferença. Se a resistência se mostra ineficaz dada a verdade subjacente do assunto, uma relação de forças tem lugar, onde a consideração de uma informação realmente nova modifica as estratificações micropolíticas.
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10.18.15.1 . A vanguarda tem papel crucial nesta modulação das infraressonâncias internas do sistema social, incubando novos modos de relação na rede de significações local. O processo finaliza com a tomada de consciência da harmonia interna e contextual da obra e da instituição, dos indivíduos e suas funções tendo como objeto uma ópera (um relatório afetivo), um depoimento que apenas confirma o que já se sabia, mas que serve, no entanto, como revelador, como se essa tomada de consciência, para vir à tona, precisasse de um momento catártico para, enfim, se afirmar. 10.18.16. Guerra Ao Ruído: A guerra ao ruído (como a guerra às substâncias psicoativadoras) tem um papel ideológico de evitar uma escuta dos ruídos institucionais e por isto também, os funcionários medianos empoderam os governos repressores para manterem seus cargos vitalícios e sem comprometimento. A academia da música não altera a escuta social e a sociedade não muda a escuta limítrofe: e para manter-se as coisas assim, coloca-se as questões entre acusmática eletroacústica e popularismo hedonista no campo do gosto. E as tensões da opinião e do ecletismo de estilos, ao invés de uma abertura séria dos diálogos sociais a respeito da escuta, um circo mórbido movido por uma facção central. 10.18.16.1 . O ruído é arbitrário e muda de lado de acordo com as políticas públicas. Se um massacre é notificado na televisão, o campo de concentração abstrato se modifica numa realidade tangível. As imagens, tornando visível a tragédia em curso, são necessárias para criar a emoção indispensável e gerar alguma ação, eis a necessidade da ópera ainda hoje e sempre. Depois, aprendemos a relativizar a crença na onipotência atribuída às imagens do sofrimento e da morte do outro: se espetacularizam, estão longe de gerar a tomada de consciência em favor das vítimas. Se todos sofrem, quem proteger primeiro? 10.18.17. Artivismo: A produção cultural da miséria é de uma ironia perversa, protestos e gestos de solidariedade acompanham as fomes e os massacres. Os grandes concertos juntam dinheiro com mega-shows que não se sabe a destinação, produzindo uma devastação simbólica e ambiental que só soma ao problema anterior. Quando não é cúmplice, a arte se vê impotente na maioria dos casos no qual atua como ativista. A próera é um ativismo metartístico, ironia distópica que coloca em questão a plateia. 10.18.17.1 . A passividade dos agentes sociais muitas vezes se explicou pelo fato de as opiniões públicas serem refratárias à ideia de intervenção ruidística em sistemas que se conclamam como ideal de harmonia. Mas num mundo globalizado, como não levantar a questão de que a harmonia social dos países ricos está diretamente ligada ao saque e aos massacres em outras localidades? No mesmo sentido, porque se trata a música extrema como se esta estivesse num outro mundo, sem nenhuma relação de complementaridade com o pop? É raro que uma intervenção possa ser considerada desinteressada com a única finalidade de salvar-se vidas, o artista valoriza-se e serve de modelo a ações futuras da coletividade. A plateia é o símbolo da política cultural ocidental, desde os gregos.
10.18.17.2 . Vossa Excelência, O Espectador: A cultura de ideologia consumista prega pela indiferença como papel do espectador egocênctrico, só disposto a intervir em prol de seus próprios interesses, território subjetivo, riquezas, economia, etc. Por isto ouvimos o cidadão comum falar da arte só quando se sentiu ultrajado, para logo em seguida voltar aos seus assuntos corriqueiros. A arte é um dever social e não um bem de comodidade. 10.18.17.3. Os mercados agem como Estados dada sua hegemonia global, bem como os estados são mercados onde se compra políticos. A farsa é óbvia, mas em prol de defender o conforto semiótico, o Zé Ninguém clama a legitimidade de sua passividade e proclama a representatividade como expurgo do protagonismo. O político é o bode expiatório dos governantes. O que o espectador vê no artista de intervenção performista, é apenas sua mais-valia simbólica onde se regozija catarticamente de poder ser passivo. Não se identifica no Outro e impõe ao ruído o papel de sintoma da fraqueza de quem não quer prosperar.
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10.18.18. Canção de Protesto: Foi a televisão que representou o papel principal de terceiro, testemunha tanto dos massacres do século XX quanto da cooptação total da música. As ONG's e a mídia adquiriam uma forte capacidade de repercussão para os testemunhos subjetivos na “cena mundial”. O vídeo não matou as estrelas da rádio, as apontou. O arrivismo através da estética da miséria (alheia) partiu de um oportunismo para se tornar mesmo um mascaramento (mais-valia ideológica). 10.18.18.1 . As imagens de ativismo se tornaram produtos e não provocaram qualquer resposta, em comum, das grandes mídias em favor da criatividade social. O discurso dominante dos especialistas e dos jornalistas da arte insistia na falta de legibilidade dos conflitos semióticos entre a escuta erudita e a popular, deixando à mercê do mercado a responsabilidade de agenciamento subjetivo às massas de espectadores. A internet com sua influência à distância permitiu a proliferação simbólica de produtos culturais, mas (como é obrigada a imitar a imprensa e a televisão), não resolveu a impossibilidade de intervenção destes símbolos globais nas problemáticas da escuta local. 10.18 .18 .1 .0. Como efeito colateral, as mídias conservadoras aprenderam com a cibernética da atenção psíquica a importância da codificação de propaganda e das declarações oficiais, a partir de então, sempre com uma pitada de “atitude”. A cooptação das artes de rua e interventivas ocorre como um colonialismo centralizador sem que se leve em conta os reais conteúdos das obras. É após este processo, que as bandas de música e coletivos de artistas passam a se imiscuir em conluios e sindicatos disfarçados de movimentos sociais.
10.18.19. Escuta da Cooptação: Não é mais possível haver dúvida, uma verdadeira política de conformação organizada da diversidade se abate sobre a produção cultural. Não estamos defendendo aqui o fim de nenhuma possibilidade de produção, nem do pop ou da eletroacústica de escuta extrema, mas justamente notando o fortalecimento mútuo destes dois modos de competitividade aural: de massificação mercantil de um lado e de pesquisa científica sobre as escutas dos outros. 10.18.19.1 . A escuta compassiva não é sobre resolver diretamente o conflito. É sobre ajudar os envolvidos num conflito a verem uns aos outros como humanos, o que cria um novo espaço mental e emocional no qual as resoluções podem emergir. A esse respeito, a escuta compassiva representa o próximo passo além da “barganha baseada em interesses”, é o princípio da dádiva simbólica. As resoluções de conflitos baseadas somente em interesses, mesmo em interesses de todas as partes do conflito, são vulneráveis de falhar tão logo mude alguma circunstância material de alguém. É preciso que os envolvidos no conflito sejam capazes de se identificar com as escutas do outro e compreender sua complementaridade. O modo de propagação do pop, advindo do desejo de agradar e popularizar-se, para além de seu estilo nos aparece como uma impostura de poluição simbólica, mas é perfeitamente complementar à cooptação das escutas extremas às pesquisas de tecnologia e de sonologia aplicada, levando as escutas mais sensíveis a se tornarem funcionários e de conformarem suas escutas e soações ao utilitarismo de uma servidão pseudo-voluntária. 10.18.20. Escuta clandestina: O tratado começa com um fragmento de cosmogonia, que leva a uma revisionista “história verdadeira” da história da criação no gênesis, refletindo a desconfiança dos gnósticos pelo mundo material e o demiurgo que o criou. Na narrativa existe uma “revelação angelical” em forma de diálogo onde um anjo repete e elabora o fragmento de cosmogonia para um escopo muito mais amplo, concluindo com uma profecia histórica sobre a vinda de uma dolorosa compreensão coletiva e o fim deste modo de uso do tempo. 10.18.21 . Cidades Ruído: Onde está a música? A música é como a palavra adeus na boca de um ancião. Eles têm os ouvidos calejados. A vida humana é barulhenta. Chamamos barulho, ou cidades, a esses grandes ajuntamentos de cubos onde os humanos se amontoam, estes zoológicos verticais. O ruído é seu aroma específico. São Paulo é esta terrível música de nossos tempos: cidade forjada sobre um vale de aves raras, dizimadas pelos perdizes. 10.18 .21 .1 . A cidade é a ópera dos corpos zoologizados. A presa perseguida pelos intérpretes, é o silêncio do público pela instauração da lei partitural. Os intérpretes buscam a intensidade desse silêncio, mergulhando os que os ouvem num estado extremo de audição vazia, prévia ao fazer-ouvir. O artista é o anestesista social.
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10.19. Música Marfim: Música elefante. Esta idealidade de conteúdo e modo de expressão, no sentido de despojamento de qualquer objeto exterior, define o aspecto puramente musical da forma. O conteúdo da música não é tão claramente delimitado como o da literatura ou o das artes visuais, por isso ela tem sido abusivamente invocada para fins de danificar o gume da consciência. A faixa comunicacional dos elefantes varia entre 8 Hz e 110 Hz, com foco de definição a 19Hz. De sua parte, é verdade, o compositor é capaz de associar a sua obra a um significado definido, a um conteúdo de ideias e emoções específicas, articuladamente expressas em um movimento que exclui tudo o mais, mas ele é igualmente capaz de, ao contrário, em completa indiferença a semelhante esquema, dedicar-se apenas à estrutura musical. Quais as consequências desta separação entre a música e seus conteúdos ideológicos? 10.19.0. Representações Elefantes: A passacaglia do gesto sonoro é a passagem do desejo compositor ao ato intérprete, lá submersa a pulsão do espectador. Aqui se pode anteouvir a unicidade da responsabilidade espetacular: todo espetáculo deve fazer-se ressoar no vocabulário interpretativo da plateia, mesmo que pela ausência. Se em certos teatros, os atores se assemelham a marionetes, isto se dá por uma mímese que o diretor faz de seu público. Comparar é diferenciar, e nisto quanto mais marcadas e caricaturais as representações, menos os espectadores precisam esforçar sua emotividade em diferenciar-se do que assistem. Sentir mais do que se tem capacidade de interpretar é uma condição pouco salutar, mas é o modelo sistemático da representação que preza pela facilidade de leitura. A pouca capacidade de interpretar as sensações e intuições misteriosas que atualmente jorram nas artes se deve exclusivamente a uma só causa: a indolência programada. 10.19.0.1 . Pedagogia elefante: A dialética dos ritmos eróticos (estações, os trabalhos e o dia) e as progressões mortuárias (uma vida, várias vidas, uma espécie) reduz-se assim ao duplo movimento, mais ou menos agravado pelos incidentes ocorrenciais, da passagem teórica de um regime de imagens a outro e da mudança prática, medida pela duração média da vida humana (projetada sobre os símbolos), de uma geração adulta a outra: uma pedagogia põe fora a outra numa transmutação linguística, poder-se-ia dizer, e a duração de uma pedagogia apenas é limitada pela duração temporal da vida do pedagogo. Nisto o nome dado à matriarca elefante midiática é de uma singela sincronicidade com seu papel: Echo. Toda cultura inculcada pela educação é um conjunto de estruturas fantásticas. O mito é o conservatório de valores fundamentais. Nos fabricamos sempre contra nós mesmos, a criança que fomos, e nesse caso qualquer educação, mesmo que seja a mais tolerante é uma provação que nos infligimos para nos arrancar ao imediatismo e à ignorância. A dissonância moderna é uma espécie de adolescência da escuta que compreende as destruições causadas pelas mudanças de tonalidade oficial por parte de conquistadores arcaicos.
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10.19.0.2 . Estudos Afetivos: Por enquanto, a combinação advertida pelo filósofo Alexander Pope, de que mesmo um pouco estudo seria algo perigoso, é a nota dominante de nossa civilização. A essa condição você agrega a liberdade de expressão e os meios eletrônicos de publicar, digo vomitar qualquer pensamento que ocorrer e terá como resultado o que acontece, muita informação, mas pouco, pouquíssimo conteúdo. Há, certamente, um Plano Maior em andamento, e por isso não vá logo pensando que Eu seja uma conservadora recalcitrante que quer que tudo volte a como era antes. Nada disso! Que os brutos opinem e publiquem e entulhem o mundo em divertimentos e músicas, pois com o tempo perceberão que precisam mesmo estudar um pouco mais, já que é para opinar e publicar. Isso levará ainda, na melhor das hipóteses, uns 40 anos, duas gerações. 10.19.0.2 .1 . Dicionário elefante: Enquanto isso, em momentos como o atual em que cachoeiras esplendidas de informações sensitivas e intuitivas são derramadas em nosso planeta, só saberá interpretá-las, e ainda com bastante dificuldade, aquela alma que tiver se empenhado em estudar e pesquisar toda sua complexidade entranhada. Apesar de a brutalidade e ignorância serem democraticamente maioria, isso não significa que se deva ter pudor a respeito do estudo. Sem estudo não há evolução, e neste momento se vê claramente a vantagem de bastante estudo, para interpretar devidamente o que está em marcha no mundo e como isto nos afeta. 10.19.0.3. Ídolos do Crepúsculo: Indicamos em diversas passagens de que maneira o colonialismo se assemelha à caça de elefantes enquanto último produto do otimismo pedagógico, baseando sua ideologia sobre a metáfora zoofóbica religiosa do mestre divino e do aluno animalesco (Gilgamesh e Enlil). Era dever das “raças superiores” como das “espécies divinizadas” educar as “raças inferiores” e as “bestas-feras”. 10.19.0.3.1 . O “anticolonialismo” e seu prolongamento no terceiro-mundismo se contentariam em inverter essa metáfora sem mudá-la, confiariam às “jovens nações” o cuidado de resgatar as metrópoles, fariam dos ex-colonizados o único povo espiritual dos antigos colonizadores. Obtendo a independência, ofereciam aos colonizadores a chance de reencontrar suas almas, agora com mais matéria prima e inspiração para suas obras de subjetivação. É de interesse dos Impérios se fazer prisioneiros de seus próprios bárbaros já tornados mercados educados ao seu modo de consumo e produtos, ao mesmo tempo que regenera seus ídolos simbólicos através das próprias culturas que oprimiam. A obra de Carlos Gomes e O Retrato do Jovem Wilhelm (Dorian Gray).
10.19.1 . Desenho elefante: Em contraste com a linguagem, onde cada palavra que se soma expande exponencialmente a significação de uma textura, a música não contém uma semântica funcional. Em relação a isto por muito se quis e quer legislar uma obrigatoriedade canônica harmônica dita “funcional” (mesmo que pós-serial). Geralmente a mensagem musical não contém informação sobre o mundo extra-musical e, portanto, uma correspondência entre elementos musicais e objetos não musicais ou conceitos (por exemplo, um dicionário da música) é irrelevante às suas funções cognitivas. A não ser que uma música seja acompanhada por um texto (como no caso da música programática) ou por ação teatral (como no caso da ópera), seu conteúdo semântico é usualmente limitado a episódios onomatopeicos de “pinturas musicais” ou a um delineamento bruto de climas, frequentemente determinados apenas pelos ritmos e tonalidades (este é o legado da ópera aos musicais de revista). 10.19.1 .0. Turismo Elefante: O subdesenvolvido tratado como ruído prematuro, é ainda a base simbólica com a qual civilizações cansadas se fabricam oásis de juventude retrospectiva, tal como o minimalismo e o modalismo naïf em voga a vinte anos no Brasil profundo. A infantilização e a irresponsabilidade da diversão dos carnavais (e seus animais) está para o delírio perante as peles bronzeadas dos selvagens, assim como o rock e o axé estão para a selvageria de estar das crianças adultas com seus brinquedos. 10.19.0.1 .0 A pedagogia virou uma teologia assim como as exposições de museu se tornaram parques de diversão. Estes passeios à infância do conhecimento não despertam apenas a nostalgia de um paraíso abolido, mas convida-nos a redescobrir esse esplendor desaparecido, através da certeza e facilidade de acesso ao conhecimento não precisamos nos manter alertas sobre o mesmo. Somos turistas em nossas sensibilidades, visitamos nossas crenças e ideais como a hotéis que vagamos e deixamos que alguém lhe cuide. A música ruído é uma proto infância de uma música porvir. Assim como envelhecer é decair, almeja-se a eterna juventude da falsa inocência. Não se queria notar, mas a deterioração dos locais turísticos é o turismo. A deterioração da música é um reflexo do da escuta, assim também a deterioração da arte é uma representação sobre a das condições de produção artística e a deterioração da cultura é um divertimento sobre a insustentabilidade simbólica e subjetiva coletiva.
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10.19.1 .1 . Turismo Religioso (uso recreativo): A África pega os símbolos da Bíblia e os mistura numa bruma ainda mais sutil e densa, a desenha além dos símbolos egípcios, os cobre com as imagens da virgem negra, do cristo de lábios grossos, da crucificação dos elefantes por marfim espiritual. O que é descarga? Os batalhões de turistas que chegam lá todos os dias para tornar o país em terra exótica, e depois em curiosidade e depois os Africanos em garcons, hoteleiros, guias turísticos e nativos exibicionistas que passam a ser contrapartida do preço da excursão. Mas a descarga vaza – na África as tecnologias emperram, as instituições desandam, as certezas murcham – e vaza por todos os lados. Aparecem na Jamaica uns devotos do último rei da Eiópia, um homem que se chamava Ras Tafari. Eles espalham a erva de Salomão, os dreadlocks no cabelo negro, os livros sagrados dos Africanos escuros e temperam isso com música reggae. 10.19.1 .1 .1 . Com o altar, carrega-se consigo as tábuas da lei, a arca sagrada, que até hoje é motivo de orgulho e culto da igreja, e um dos segredos da aura sagrada de todo o país. Junto com a arca veio mais 1000 pessoas, que instauraram seus princípios judaicos por onde chegavam. Essa pode ter sido a principal ligação da África com o monoteísmo. Mas não só isso. Não se sabe ao certo o que aconteceu com todos os templos pagãos, alguns sobreviveram, com seus locais de sacrifício, deuses e o sol e a lua desenhados por toda parte. Sendo filho de Salomão não se esperaria esperaria que tolhesse qualquer misticismo. Gostava das brumas. Ele viu em Jerusalém como se fabrica sagrados. Sacrogênese salomônica. Começou a fazer de Axum sua Jerusalém: obeliscos, arca sagrada, um caminho de pedras pela montanha até o palácio da matriarca. Menelik fez da África um celeiro de religiões – trouxe isso com o pó de Jerusalém. Não se sentem Africanos, sentem-se outra coisa, fronteira não foi ideia deles, apesar de saberem que atravessar a fronteira pode lhes causar danos.
10.19.1 .1 .2 . Os Nativos Elefantinos: Com suas Kalashnikovs, seus ares tribais, suas ocas de barro e bambu. Assim que vivem. Pintam rosto e corpo para os turistas pagarem para as fotos. Não pagam impostos e não sabem do que se trata quando lhes perguntam sobre a África.Suportam a quantidade de turistas que lhes vão ver todos os dias, mas não por muito tempo. Logo fecham a cara e produzem alguma cena agressiva, que afasta as visitas. Prevêem que o barulho dos motores não representa somente uma fase, mas uma permanência e que o barulho veio para ficar. Se ouriçam. Como concatenar uma forma de vida gregária na savana quando sabes que és tu o objeto visado? Tu a girafa, o elefante, a fera? Tu, o sobrevivente que por tanto tempo conseguiu fugir das armadilhas brancas, do tráfico de escravos, das durezas da seca, das ameaças da floresta, das enchentes do rio, das tribos inimigas, das seduções da cidade, de repente tornado fera enjaulada? Tua aldeia cercada, tua casa entretenimento? Que vingança se perpetraria ai? Qual reação possível quando o objeto da tua hostilidade já se tornou teu vício, tua sobrevivência e teu cotidiano? Cobrar pelas fotos? Ser hostil? Acatar a transformação impassivelmente? Não há nada de passível naquelas tribos. Apesar da simpatia e da espontaneidade, vê-se tambem homens e mulheres acuados, que sabem mais que todos aventureiros, que chegaram num limite. 10.19.1 .1 .3. Continente Elefante: Escuta, puxaram a descarga – para onde vazar? Como resistir à fúria branca que transforma tribos com céu, terra e tudo em museu, em parque temático, em jardim de curiosidades? A terra empoeirada de brumas da arte é destino turístico, Inhotim. O mundo por fim descobre a história da África. Esse reconhecimento é muito importante, é o desbloqueio de um conhecimento humano a séculos ignorado pelos historiadores, pelos brancos, pelos oficiais. Mas esse reconhecimento tem um alto preço cobrado em símbolos. O que sobra pra África? Os chineses agora colonizam-na com suas tecnologias e estradas, diferente dos brancos que só dividiram as vastidões com cercas invisíveis. A África tem recursos: água, petróleo, urânio, diamante, ouro. Só não cabe direito na história oficial. Seus recursos naturais são alvo de disputas dos velhos e dos novos impérios. Poderia a União Africana se fortalecer por si mesma, ou só vai ficar ensaiando? O que seria uma arte realmente africana? Como será uma ópera africana? Como seria a ópera do jovem Peri sobre Carlos Gomes? Que casa de ópera faria o selvagem para o jovem demônio Fitzcarraldo, Manaus?
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10.19.1 .1 . Arte pura ou serviço social? O artista tem um dever apenas em relação a si mesmo, o de se expressar, ou um dever em relação aos outros, o de comunicar? Autonomia ou heteronomia da arte? E a própria autonomia, podendo-se alcançá-la, será realmente autonomia ou antes uma servidão ainda pior, visto que, para os grupos de poder, é conveniente que o artista, livre para fantasiar a vontade, não interfira em coisas que preferem decidir sozinhos? 10.19.2 . Pinturas elefante: Assinalar conteúdo extra-musical, mesmo que sonoro-ruidísticos, a mensagens musicais é basicamente uma matéria idiossincrática de resultados abstratos e arbitrários não universais que postulam uma linguística simbólica. Talvez nisto esteja o esvaziamento do pensamento operístico em tempos eletroacústicos, a ópera do século XX é o procedimento operatório e a interface programável. Mas este desvio das questões de significação social do musical apenas deixaram que este campo fosse cada vez mais significado pelas verves de capitalização das harmonias e escutas. É preciso tanto retomar o sentido melódico e tímbrico, para que possamos anteouvir a klangfarbenohr; quanto um espectro livre para pesquisas de radiação seja executado no campo da radiodifusão. 10.19.2 .0. Arquétipo Animado: O animal é para a imaginação o arquétipo do animado. Para a criança, como para o próprio animal, a inquietação é provocada pelo movimento rápido e indisciplinado. Todo animal é mais sensível ao movimento que à presença formal ou material. O animal é o resíduo morto de um movimento vital, como uma obra musical é o cadáver de uma escuta. Dizer que a mancha tem o desenho de um elefante é simplificar seu tremular espectral, perceber ambos se entremeando é retomar esta pulsão arcaica. 10.19.2 .0.0. Desenho animado, formigamento, imagem fugidia mas primeira. Desfoque dos sentidos infantis, agitação, fervilhar das larvas que dá aura pejorativa à multiplicidade que se agita, nojo das massas que gostam de se crer sozinhas na multidão. O ruído dos vermes, a estocástica dos insetos, a melodia das aves, os urros das feras, os terremotos elefantes. Em Bosch, a agitação vai de par com a metamorfose animal. A mudança e a adaptação ou a assimilação são a primeira experiência de tempo. O caos (que somos) deve ser devorado pelo desejo de viver.
10.19.2 .0.1 . Fábula Elefante: Os contos de fada são a passagem da angústia sentida à angústia superada, por meio de uma narração que conta os complexos infantis às próprias crianças, seus impulsos inconfessáveis. A fada dos contos é um censora que gera tabus ao mesmo tempo que explica a lógica social, a ideologia vigente. A família, neste caso, é de fato o mistério simbólico da civilização como apontava Freud. A fábula é um guia sutil que orienta fantasmas e ambivalências para um desenlace coerente. 10.19.2 .0.1 .1 . Nesse caso ela tem realmente uma função educativa (e nisto Esopo supera Fedro ao ocultar tal função em aberta singeleza), disciplina o caos das miríades interiores nos símbolos aceitos, apesar da sua violência que assusta a muitos. Quando tudo é liso, impecável, qualquer ligação narrativa é esquecida, a história é desarticulada e se torna apenas uma sucessão de atrações prontas para se converterem em cenas de ação que se decompõem em pequenos quadros, episódios semeados ao acaso: mas aí a ficção só pode ser consumida e contemplada, não mais contada. A tolice é uma forma do infinito porque o mau gosto se torna uma mística quando associado ao adocicado, ao gentilzinho. Mas isto está longe de atrelar a sabedoria e o conhecimento à violência ou à rudeza. 10.19.2 .1 . Contexto harmônico: Enquanto a extensão da noção de conteúdos semânticos das linguísticas sejam aplicadas à música enquanto alegoria metafórica, o contexto - cujo papel na linguagem é próximo ao da semântica - se mantêm como uma significante propriedade comum à linguística e às mensagens musicais. Em ambos os domínio, o contexto denota uma propriedade emergindo da interação dos elementos perceptuais que compõem a mensagem, tornando a mensagem inteligível como um todo. A natureza do elemento da informação carregada pela música difere substancialmente daquel da linguagem. A combinação dos elementos musicais se dá em uma sequência organizada hierarquicamente, diferentemente da linguagem que se dá em redes de conecitividade por repetição e diferenciação de atributos, sendo mais próxima da sonologia ou do design de informação auditória. 10.19.2 .1 .1 . O aprendizado dos limites nos leva a renunciar às nossas loucas esperanças e trabalhar para sermos autônomos, capazes tanto de nos inventar quando de nos abstrairmos de nós. A escuta é a compositora, neste caso, da entrescuta que nos tira de ouvir somente à nossa singularidade. A entrescuta, o outro, a diferença identitária é o ruído tido como ressonância estocástica, ecos dos amontoados de alteridades que se interpõem entre os desejos soantes e as escutas.
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10.19.2 .1 .2 . Infantilismo e vitimização compactuam na ideia de recusa da dívida, na negação do dever, na mesma certeza de dispor de crédito infinito com seus contemporâneos. O ouvinte merece o compositor que tem, os elos de fanatismo se dão por idolatria de um certo modo de escuta das coisas. São duas maneiras, uma risível e outra amarga de se colocar à margem do mundo, recusando qualquer responsabilidade, duas maneiras de se retirar do combate da vida, sendo a vitimização apenas uma forma dramatizada do infantilismo. O punk é uma amostra musical boa deste infantilismo vitimista. 10.19.2 .1 .1 . A Marcha das Marchas: Os mercados da música se servem da força emocional da identificação das pessoas com uma obra para sucitar a adesão e assim conquistar o poder ideológico sobre as escutas e os modos de soação. A batalha pelo poder não se trava tanto contra o “eles” da resistência ruidística ou silenciosa, mas contra as partes de “nós”, refratários à visão de identidade, os não cooptados, no que se refere ao futuro da subjetividade. Assim como os extremistas de Milosevic designavam os não partidários a suas iniciativas de ibihindugemb, “seres sem pé e sem cabeça”, o crítico do samba “ou é ruim da cabeça ou é doente do pé”. A perseguição se dá contra o princípio de dissonância em geral, seja no contexto da harmonia social, ou na forma musical mesma; mas que fique claro: isto não nos aproximou em nada da beleza e da sublimação estética. O que está em jogo é o poder sobre as demais escutas do grupo e a identificação deste dentro de uma identidade maior. Assim se fundamenta a identidade sem crítica em voga, é vedado ao membro de um grupo que esteja em desacordo com este princípio geral de ideologização ao mesmo tempo que os que são tidos como de fora são imediatamente descreditados em suas palavras.
10.19.2 .2 . Harmonia contextual: Por outro lado, a noção de contexto harmônico é essencial a ambas linguagem e música. Nos dois casos, o contexto pode ser definido como uma propriedade global de uma mensagem estruturada que sustenta sua coerência ou, em outras palavras, sua inteligibilidade. Esta noção funciona como o chão tremulante sob as patas dos elefantes sentindo o planeta vibrando, sendo processos cognitivos que compartilhamos com os paquidermes, associados com a comunicação escrita e falada e a criação e percepção musical. O que difere-nos, é somente o tamanho de nossas intrincadas relações sociais que demandam uma linguística em linguagens muito mais complexas. Uma longa cadeia de palavras (mesmo que formem uma sentença gramatical correta) ou a sucessão de eventos musicais (mesmo que seja uma progressão harmônica tecnicamente aceita) resultam incompreensíveis se não sucedem a um quadro contextual. É este contexto, criado pela mensagem mesma, no qual seus elementos perceptuais se integram como estrutura significante coerente. Como compor uma ópera para que elefantes assistam e compreendam a musicalidade humana? Como inverter o processo de fazer elefantes tocarem música humana, tocarmos música para estes?
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10.19.2 .2 .1 . Grãos elefantes: Na linguagem, as palavras - ou combinações destas - são tidos como unidades de conteúdo semântico, com correspondência quase inequívoca com os objetos e conceitos, como se pode observar no método geométrico de aferição vocabular ou na compreensão simbólica do espaçamento entre as palavras e a pontuação no código latino. A música, por outro lado, não possui nenhuma unidade convencional de sentido (embora queira-se utilizar cada vez mais o conceito de grão para tanto). A noção de palavra pode ser concebida em música por comparação (como no caso da gramática do improviso jazz), como “unidade de contexto”, ou seja, enquanto elementos perceptuais que denotem coerência e compreensibilidade à uma mensagem dentre a uma “função coletiva”. 10.19.2 .2 .2 . Funções elefantes: Na música, o papel de unidades de contextos é feito por blocos de padrões (fórmulas e leitmotivs) que, em distintas escalas temporais, identificam uma mensagem musical. Uma klangfarbenmelodie é, portanto, uma mensagem musical complexa inteligível (talvez até nos limites da inteligibilidade) com identidade em todas as dimensões temporais (unificadas, como definia Stockhausen). Mas ainda, a identificação sensível de tais unidade em uma obra específica constitui uma tarefa controversa (quais os casos acidentais do acorde de Tristão na música não-temperada, por exemplo?), que criam a demanda da neurose da escuta analítica e mantém um enorme grau da meritocracia da música erudita de hoje. 10.19.2 .2 .2 .0. A Função Fantástica: A alvorada de toda criação humana, teórica ou prática, é governada por uma função fantástica. A prática é, de início, ensinada de maneira teorética extrema: sob a forma de apólogos, fábulas, exemplos, lugares seletos no museu, na arqueologia ou na zoomorfia. As brincadeiras infantis são ensaios de mitos, e todo ato do mais prosaico ao mais complexo são carregados de afetividade fantástica. A ópera é o mito da brincadeira social. As crianças fazem óperas corriqueiramente, com amigos invisíveis e sonoplastias para objetos inexistentes. É por isto também que as cabanas, as casas e os palácios não são formigueiros. O útil e o imaginativo estão inextrincavelmente misturados, de modo que o menor dos utensílios, mesmo que abandonado, está impregnado de vida simbólica, tal que o olhar não consegue se ausentar da cultura em nenhum.
10.19.2 .2 .3. Ontologia Elefante: Ontologias podem ser vistas como evolução de formalismos como taxonomias, thesaurus, redes semânticas, frames e também como resposta à necessidade dos sistemas baseados em conhecimento. Seu maior propósito é o compartilhamento e o reuso do conhecimento descrito nesses sistemas. O conhecimento não pode ser compartilhado ou reutilizado se descrito sem um modelo comum, em linguagens diferentes, sem interfaces capazes de acoplá-las e portanto, sem interoperabilidade. A necessidade do reuso do conhecimento advém da própria característica de áreas como a Arte Cultural e a Ecologia Biológica, repletas de numerosos conceitos inter-relacionados. Em Inteligência Artificial o termo ontologia refere-se a um índex de tipos de entidades que podem existir num dado domínio elaborado sob a perspectiva de um indivíduo que faz uso de uma dada linguagem conforme a definição de, ou, pela definição proposta por onde uma ontologia é a especificação formal, explícita e compartilhada de uma conceitualização. 10.19.2 .2 .3.1 . Dessa definição verifica-se que uma ontologia fornece um entendimento sobre uma conceitualização compartilhada acerca dos dados e metadados de um domínio, um vocabulário comum isento de ambiguidades. Como poderíamos pensar um padrão internacional de responsabilidade estética e simbólica? Poderíamos? A religiosidade, legislação de todas as reconexões ancestralidades, tratam disto. 10.19.2 .2 .4 . Nébula da Tromba: Se por um lado a emergência das constelações simbólicas e dos regimes místicos é promovida pelo mecanismo psicológico das proibições sociais e do desfolhamento destas complexidades devidos ao conflito das gerações e castas, um outro mecanismo, complementar e contraditório ao primeiro, a sobredeterminação mística do criptosimbolismo que se ergue perante o imperialismo do regime arquetípico numa dada época em todos os domínios. O processo conflitual duplica-se nestes gestos, vislumbrado na alquimia por exemplo, num entranhamento tabu de regimes científicos, artísticos, das preocupações utilitárias e técnicas em torno de um tema mítico único característico da época. Dizem que um pintor antigo queria pintar o borrifo da tromba de um elefante e não encontrava uma maneira adequada, de modo que, irritado, atirou a esponja contra a tela e sentindo os respingos da borrifada no seu rosto percebe o desenho exato.
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10.19.2 .2 .5. Universo Elefante: Que tipo de teoria unitária foi demandada para facilitar a circulação de uma noção totalitária e confusa como a de Universo? A filologia, a decifração de códigos, favorece o sincretismo místico e converge com o interesse pelo iluminismo científico, opondo-se assim deliberadamente à filosofia oficial das luzes de obediência dualista. O sincretismo é um panteísmo de argumento dramático e histórico, uma metaciência além do epistemológico. 10.19.2 .2 .6. .Em todas as épocas e lugares, os movimentos de controle diurno das pulsões fantásticas em prol de mitologias submersas e o conhecimento noturno deste miticismo, impõem-se: um opressivo, no sentido sociológico do termo - que contamina todos os setores da atividade mental e que sobredetermina ao máximo as imagens e os símbolos veiculados pela moda -, o outro pelo contrário, esboçando uma revolta, uma oposição dialética que, no seio do totalitarismo de um regime imaginário dado, suscita símbolos. Qualquer classicismo técnico está prenhe de romantismo recalcado. Um humanismo planetário não se sustenta sobre a exclusiva conquista da ciência pois demanda um consentimento e a comunhão arquetípica das escutas. 10.19.2 .3. Diferenciação Mínima: Os processos sociais entre elefantes solitários e manadas, bem como a movimentação em cardume, nos mostram que as inimizades não se recrutam na diferença mas sim na semelhança e na proximidade. A questão territorial é muito mais sutil e perigosa nos campos da subjetividade. Cada artista é, portanto, ao menos a tentativa de um estilo. Embora este seja um impulso natural, tal surdez narcísica só permite à escuta que se volte ao outro para distinguir-se dele e reforçar o contentamento consigo próprio. Todo nacionalismo musical, como uma forma de narcisismo local em tempos de globalização, acessa este mesmo processo. Villa Lobos soube bem utilizar deste ímpeto que é ironizado no Hymnen de Stockhausen. Villa, além de dar nome a um centro de compras, é também a base do ufanismo sertanejo contra o rock n' roll. Embora muitos indivíduos não deem ouvidos à identificação, esta não impede que estes sejam catalogados. Um elefante, um músico.
10.19.2 .3.1 . Ruidocracia Musical. Desse modo, queremos tudo e seu contrário: Que essa sociedade nos proteja dos ruídos sem nada nos proibir soar, que ela nos mime com belezas sem nos obrigar ao estudo das formas, nos assista a fazer obras sem nos importunar, nos deixe tranquilos para o ócio mas também no segure por mil laços culturais de maneira afetuosa e terna, em suma, que ela esteja aqui para nós, sem que estejamos aqui para ela. 10.19.2 .3.2 . Queremos ser ouvidos sem escutar. A sociedade musical está repleta de ensimesmamento individual e de “estilos”. O princípio do prazer enfraquece-nos e degenera em hedonismo medíocre e fatalismo simbólico. A soberania do capricho, quando exercida sem limite, não pulveriza apenas o princípio de alteridade da soação: ela enfraquece as bases da individuação da escuta. Ou, em outras palavras, certo musicismo desenfreado se contradiz em seu próprio princípio de fuga ao ruído e ergue o cenário musical de sua própria derrota: a ruidocracia.
10.19.3. Televisão Elefante: É que a tela é promessa permanente de divertimento que supera a ritualização da responsabilidade sensível. E se a música deve tudo à partitura, a sonorização é cinemática, cinematográfica. O divertimento televisivo não proíbe nem comanda, não critica mas torna inútil e tedioso tudo o que não seja ela. Da mesma maneira que a privação sensível a que se submetem os elefantes em treinamento dócil. Ela não controla o pensamento nem a leitura, torna-os supérfluos. Mas nós não vemos como elefantes. 10.19.3.1 . O encanto do divertimento, e por consequência, da cultura ideológica da propaganda, é autorizar uma escuta flutuante por um zapping informacional que nunca nos permite sintetizar ou analisar a completude de sua narrativa subliminar. A televisão está ali e funciona e uma vez agarrados, nos faz aptos a olhar e ouvir praticamente qualquer coisa com uma indulgência sem limites (de programas religiosos com cenas de sexo como demonstração do que deve ser combatido a novelas com narrativas claramente ideológicas).
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10.19.3.2 . A arte televisiva (e sua influência em todos os campos da subjetivação), nos distrai de tudo, inclusive dela mesma. Longe de implantar a ditadura audiovisual, ela empobrece (no sentido agostiniano) nossa percepção, faz-nos desaprender a olhar e ouvir e sentir o mundo. Porque ela se quer acessível a todos imediatamente, sua produção homogênea na faixa média da sensibilidade consagra o esgotamento daquele que a percebe. Sua forma devora seus conteúdos, liquida os contrastes, coloca o sinal de igual entre as obras e as publicidades, entre a poesia e a ideologia. 10.19.3.3. Jinglescape: É esse mesmo papel de dama de companhia que desempenha a narcomania musical onipresente e que impede sempre e em toda a parte a menor possibilidade de silêncio nos meios urbanos. Música de espera no telefone e nas secretárias eletrônicas, músicas ambientes nos pátios e elevadores, no metrô, no teleférico, emissão radiofônica de festas nos bairros ou ruas, musak de supermercados, vídeos tagarelas somam-se ao burburinho dos restaurantes, realejos melódicos, sempre e em toda parte há um carpete sonoro e a musicalidade é sempre a mesma a amortecer a dureza da realidade sonora, a mascarar com perfumes fedidos o odor do mundo, a poupar as latências das transições, a suavizar e impossibilitar os contatos. 10.19.3.3.0. Mas, se saturamos o espaço de ruídos (ruidocracia), de imagens, de cores, é também para nos certificar que não estamos abandonados, de que pensam em nós: esse xarope sonoro é uma marca de interesse e quase de afeição. Assim como essas cerimônia em que gritam para espantar os demônios, esse sussurro contínuo quer afastar a melancolia, dissipar a escuridão, quebrar o isolamento nesta guerra semiótica e trazer a loja para o campo de batalha. 10.19.4 . Irrefutável: Estamos numa feira de arte. logo compreenderemos que estamos no Jardim das Delícias, no Paraíso Terrestre, no Santuário dos Elefantes. Todos os Sonhos da Idade de Ouro, todos as Wonder Chambers acalentados pelos sonhos humanos estão aqui agrupados. A imensidão dos locais, a extraordinária variedade de produtos simbólicos expostos, a luz que jorra, os quilômetros de corredores, a engenhosidade da expografia utilizada para as vitrines são de uma utopia viva. Permitam-nos um pouco de cinismo. Esses templos do mercado subjetivo cantam a vitória da sociedade capitalista sobre a carência e sobre a liberdade do onírico em relação à realidade ideológica capital. No amontoado de riquezas há um excesso de tudo, e esse excesso é esmagador. Antes de escolher esse ou aquele objeto, de se deixar inebriar pela sinfonia de cores e de sentidos contraditórios - pois tudo nessa exibição é classificado, organizado, arrumado segundo uma estratégia da visibilidade absoluta, nos inebriamos pelos bens que não poderemos adquirir e que apenas acariciamos com nossa cobiça evitando as verdades de tais obras, que num espaço como este de uma feira, nunca poderemos penetrar. Mindlin tem algo a ensinar a Bernardo Paz, e ambos ouvindo Facção Central.
10.19.5. História Elefante: A história não explica o conteúdo arquetípico, pertencendo esta ao domínio do imaginário. Em cada um dos focos possíveis de seu fluxo (suas fases), a imaginação encontra-se inteira, numa dupla e antagonista motivação: pedagogia da imitação, do imperialismo das imagens e da arquétipos tolerados pela ambiência social, mas também fantasias adversas da revolta devidas ao recalque deste ou daquele regime de imagem pelo meio e o momento histórico. A pedagogia da imagem não segue assim um sentido histórico determinado, o mito é uma função em si, independente da realidade objetiva, do contexto, e principalmente da imposição desejante de seu proferidor. 10.19.6. Conservatórios de Imaginário Elefante: A função fantástica participa na construção teórica e não se resume a um refúgio afetivo das restrições sociais. Outrora os grandes sistemas religiosos desempenhavam o papel de grandes conservatórios dos regimes simbólicos e das correntes míticas. Hoje, para uma elite cultivada, as belas-artes, e para as massas, a imprensa e o entretenimento midiático, veiculam o inalienável repertório de toda a fantástica permitida. Por isso, é necessário a uma arte que se deseje pedagógica, que venha esclarecer, senão ajudar, esta irreprimível sede de imagens e sonhos. Seu mais imperioso dever seria trabalhar para uma pedagogia da preguiça, da libertação e do lazer. Demasiadas pessoas vivem neste século de esclarecimento usurpadas da necessidade básica (convertida em luxo) da fantasia noturna (da escuta sutil). “Cantaste para mim... Tanto faz!” disse a formiga à cigarra, no cúmulo da idolatria ao trabalho e sua mistificação. A melodia da cigarra. 10.19.4 .1 . Ouvidoria do Consumidor: Não censuramos tanto o consumismo simbólico por ser débil mental e destruir nossos sentidos, e sim por não cumprir suas promessas de aniquilamento subjetivo. A quinquilharia midiático-cultural da ideologia comercial competitiva só esboça uma miragem do sagrado: ela se mostra incapaz de dar conta da subjetividade em sua completude, incapaz de implantar o que permanece o apanágio das religiões: uma topologia da transcendência.
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10.19.4 .2 . Apesar do seu esforço em nos resgatar a todos da tarefa árdua do pensamento e da sensibilidade, coletiva e pessoalmente, ela não é suficiente (assim como os televangelistas não conseguem manter uma coerência metodológica mesmo superficial). Uma vez obtido todos os objetos que desejamos, desejamos o que nenhum objeto cultural pode nos dar: a salvação laica, a transfiguração, e oscilamos entre o abatimento de ter demais e o medo de não ter o essencial. A escuta transfigurada em noite decai sobre os ruídos da rede elétrica. A ideia de que a felicidade pode ser comprada nos atrai como o caminho mais fácil, mas levou-nos ao beco sem saída que é o ouvido(olvido). 10.19.5. Consumo Elefante: Ninguém domina essa selva de tesouros que sugere despesas monstruosas, uma gigantesca máquina de produção e de organização, um infinito de possibilidades culturais. Nessas catedrais do supérfluo, nosso erro não está em desejar demais, e sim, em desejar de menos. Se a pobreza é não ter o supérfluo enquanto a miséria é a falta do necessário, todos somos pobres gerando a miséria das maiorias: tudo nos falta, já que tudo está em excesso produzindo a necessidade da falta (pela projeção da falta de necessidades). A escuta (e a sensibilidade) contemporânea é miserável, porque lhe falta a necessária abertura para o seu próprio contexto. Miséria mascarada de pobreza que tem como único prazer desejar o que não é necessário. As belezas acumuladas nas lojas não respondem a nenhuma lógica da utilidade, mas têm relação com o milagre, com uma fecundidade sem fim do mercado cultural. Os catálogos de arte, os selos musicais, tem papel semelhante ao do bufê em grandes restaurantes de colônias de férias (que são os centros culturais) baseados no princípio do desperdício, de conjurar a penúria com os sinais de prodigalidade.
10.19.5.1 . Estupros Fantásticos: Uma pesquisa atual indica que entre 31% e 57% das mulheres entrevistadas têm fantasias em que são forçadas a ter relações sexuais contra sua vontade, e para 9% a 17% das mulheres são uma frequente ou experiência de fantasia favorita. Fantasias eróticas de estupro são paradoxais: elas não parecem fazer sentido. Por que uma pessoa tem uma fantasia erótica e agradável sobre um evento que, na vida real, seria abominável e traumático? Neste artigo, as principais teorias das fantasias de estupro são avaliados tanto de forma racional e empiricamente. Estas teorias explicam os estupros fantásticos em termos de masoquismo, evasão da culpa sexual, a abertura à sexualidade, desejabilidade sexual, cultura do estupro masculina, a predisposição biológica para se render, ativação simpática fisiológica e transformação no(e do) adversário. Este artigo que eu lia avaliava a teoria e a pesquisa, fazendo acordos provisórios sobre quais as teorias mais viáveis, e passava à tarefa de integração teórica para chegar a uma explicação mais completa e internamente consistente do porque muitas mulheres se envolvem em fantasias eróticas de estupro. Minha intuição, aonde mais há de me levar esta operação?
10.19.6. Os Sobreviventes da Abundância: Uma elefante que foi solitária e viveu num circo a vida toda é motivo de chacota por outros elefantes na reserva distante do clima natural à espécie. Como produzir “nossa escuta” para “Nossa Música” ou me ponho de novo a consumir mais outras na minha? Sofremos porque nunca seremos completamente redimidos por nossas compras (nem de obras de arte contemporânea) e espetáculos, mas sempre voltaremos a estes produtos e processos catárticos que nos consolam e reanimam. Miseráveis milagres charlatanescos a serem descartados, nos despojem de nós mesmos nas desilusões do progresso, nos embruteça na sua maquiagem que odeia a beleza, nos fascine pelo feérico espetáculo comercial. Reclamar da obra (e do professor e do pensador) que nos critica é um de nossos direitos de consumidor, e seguimos nosso dever de consumir.
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10.19.7. Usuários de Museus, Cidadãos Artísticos: O consumismo só nos educa para ele mesmo. Ser usuário (termo utilizado também para viciados em substâncias ilegais) é ocupar-se da defesa exclusiva dos seus interesses, permanecer arraigado à sua particularidade, mesmo que seja a de um lobby (ou máfia), enquanto ser cidadão é tentar superar seu caso particular, abstrair-se de suas condições para associar-se a outros para a gestão da vida pública, tornar-se co-partícipe do mundo. Existe arte quando o artista e o espectador aceitam suspender seus pontos de vista particulares para levar em consideração o bem comum, para entrar no espaço público do simbólico, onde nos falamos do ponto de vista de subjetividades. A muito tempo o consumismo deixou o cerco do supermercado para se tornar uma lógica midiático-cultural que se apresenta como solução universal para todos os problemas. 10.19.8. Gula Elefante: Tudo o que era difícil ontem se tornará acessível para nós em um piscar de olhos, o divertimento da cultura sem ideologia pode substituir o estudo, em suma, podemos desenvolver o paladar infantilizado pelas satisfações imediatas e fáceis. A ideologia consumista camp do sensibilicídio tem um talento para investir em setores em crise (a arte, a educação, a representação política), e extenuá-los até, por fim fantasiá-los, esvaziá-los de substância. Triunfo da sociedade camaleão que pode adotar todos os discursos, inclusive o da crítica, substituir-se a todas as ideologias, pois não acredita em nenhuma, reencenar em farsas as grandes paixões políticas e religiosas. Tudo o que não seja ela, a história, a ética, os ritos, as crenças, gulosamente ela os devora. É um estômago capaz de digerir qualquer coisa, um código insubmersível que recupera sua própria contestação para melhor ressuscitar. É revoltando-se contra seus conteúdos que melhor lhe obedecemos. Suprema ironia do consumismo: deixar-nos pensar que ele desapareceu quando não existe uma área que ele não tenha contaminado. Como sobrevive um elefante alimentado com marfim? Ideografia Dinâmica: Nós não pensamos fazendo deduções lógicas ou seguindo regras formais, pensamos através da manipulação de modelos mentais que, na maioria das vezes, tomam a forma de imagens. Isso não significa que as imagens se assemelham à realidade visível, são mais uma dinâmica de mapeamento. A próera, enquanto uma ideografia dinâmica, constitui uma imaginação assistida por pensamento. Isso nos ajuda a construir modelos corporais sinestésicos muito mais complexos do que podemos fazer somente com as estruturas da nossa mente e nos permite compartilhar esses modelos mentais com os outros ainda de uma maneira comunicável. Cibernética, arte das maquetes e modelagens.
10.19.9. Cenografias Elefantes: O que fazemos com essas ferramentas? Dê às pessoas modelos de tipos de ambientes com um certo número de atores-objetos-ideogramas capaz de um grau de interação entre si e com o usuário. O que a pessoa faz? Cenários possíveis com base nesses modelos: considera o cenário padrão fornecido, altera o comportamento dos atores, inventa outros cenários, etc, e então talvez envia o novo cenário de volta ao remetente do cenário padrão ou compartilha-o com os outros. É evidente que tais micro-mundos poderiam ter consequências econômicas, industriais, ecológicas ou políticas, tornando interativas representações imaginadas do fenômeno coletivo que nos interessam. A semibiótica como a est.ética (estética da responsabilidade) têm muito a contribuir para todxs, de paisagistas a criadores de telejogos. 10.19.10. Música Muladhara: Algo de menos sonoro que o sonoro, música. Algo que liga os ruídos separando as escutas. Pedaço sonoro semântico desprovido de sentido. A infância é irreparável, terror das lembranças. Depósito semântico sem significações. Podemos fazer as memórias gritar, abrimos a escuta como abrimos uma ferida para extrair seus pontos podres e infeccionados. A cicatriz da infância, como a do que a precedeu e que se espalha no noturno do som. O silêncio é rítmico. Larva. 10.19.10.1 . Sons servindo para suprimir: No seio da natureza as línguas humanas são os únicos sons que são pretensiosos. São os únicos sons, na natureza que pretendem dar um sentido a esse mundo. São os únicos sons que têm arrogância de pretender buscar um sentido em troca dos que eles produzem. O fluxo das palavras, a massa de uma multidão empurrando o humano que cai no vácuo vertical que separa seu canto do mar. Música, sons de morte.
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10.19.11 . Corpo Música: Acolher o visitante e evitar-lhe a angústia do silêncio, bem como, o que é mais paradoxal, arrancá-lo à eventualidade da oração. A oração é um animal selvagem imóvel cercado por cães. Além do que é semântico está o corpo da linguagem: música. Quando a música era rara, sua convocação era perturbadora, assim com sua sedução vertiginosa. Quando a convocação é incessante, a música se torna repugnante e é o silêncio e o ruído que vem chamar e se torna solene. O silêncio tornou-se a vertigem moderna, constituindo um luxo à escuta. Webern o sentiu. A música que se sacrifica a si mesma atrai agora o silêncio como o chamariz atrai o pássaro elefante. 10.19.12 . Desencanto: Subtrair o poder do canto. Fazer mal ao mal, fixá-lo em outra coisa. Cessamos de sermos submetidos a uma obediência física aos sons da natureza, para sermos repentinamente submetidos à obediência social a melodias europeias nostálgicas das inquisições e torturas medievais. Desenfeitiçar nossas sociedades de sua obediência. O gosto pela ordem musical e pela sujeição em nossas sociedades virou uma histeria histórica (histeoria). As guerras mais cruéis estão diante de nós. Elas serão as contrapartidas cada vez mais pavorosas, o pagamento sacrificial da proteção social, médica, jurídica, moral e policial dos tempos de paz. Os tubarões de Bretch.
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10.20. Som Elefante: Som marfim. Maior profundidade é conseguida onde o compositor dá a devida atenção a ambos os campos da escuta (abstrata e concreta) ao mesmo tempo, observando as estruturas sociais permeando os alicerces transimétricos da música bem como deixando ambos os modos de soação livres, para que se potencializem em solidão, soltando a poesia destas vigas do pensamento. Este modo esquizopatológico de atuação sonora sofre o perigo de levar a um desleixo do soador em relação à estrutura, pois este acha que sua ideofonia basta; ou no caso inverso leva a uma alienação do virtuose. Em ambos os casos a peça ausente é a mitologia como intermediadora entre a linguagem lógica e a linguística afetiva. 10.20.1 . Entre O Imaginário e O Real: Os artistas cooptados, para se disfarçarem e desculparem buscam na matriz do imaginário infantil do fazer artístico as maneiras de se posicionarem sem pender a nenhum dos lados. As relações entre imaginário e real são contraditórias apenas em aparência. É mesmo nas representações imaginárias do carrasco que, primeiro, se constrói a figura da vítima, da “sua” vítima. O pop inventa a imagem do pesquisador erudito como alguém sem tesão, erudito mas sem compreensão das delícias de dançar. A ópera criou o poder artístico administrativo, de modo a posicionar a arte na política das produções estéticas sociais. Nos momentos de alta tensão social, todo terceiro mediador acaba desaparecendo, e a relação conflituosa se reduz ao confronto radical. A criação de uma arte da escuta surge desta necessidade, bem como de uma ampliação da compreensão do consumo como produção de desejo. 10.20.2 . O Papel da ideologia sobre o sonoro (ideofonia): Obviamente pode-se ver no maximalismo enquanto escola limítrofe da eletroacústica acusmática uma perseguição à escuta musical dos cancionistas ou das pistas de dança. Mas que se saiba que a consequência de sua perseguição apenas apontam suas fraquezas, seu medo e instinto de sobrevivência, o enorme desejo de poder de alguns de seus baluartes antes disto tudo acontecer. Compreendamos estes também, que estas pesquisas são justamente como a fábula ou o sonho de alguém que não tem mais aonde ir e tampouco quer perpetuar outras batalhas pelo musical. Há obviamente um papel de fantasmagoria na acusmática, no ouvir sem ver, na ausência de imagem social de um modo de soação. Meu anonimato se chama Escuta. A coexistência entre a lírica, a imagem e a música está no campo da construção de coerência e de bloqueio da angústia dos indivíduos. A ideologia funde o imaginário e o real, num discurso fundado em argumentos, ao mesmo tempo racionais e irracionais, que se constrói contra o “outro” maligno. Mas a escuta não conhece amigos, bem como a música não tem inimigos. A próera é uma ópera pós-ideia, acusmáquina.
10.20.2 .1 Complexismo ab_surdo: É necessário que percebamos os processos de soação do ab_ismo como um complexismo ab_surdo, um pós-maximalismo que não pode mais se pautar apenas pelo máximo do máximo sem notar sua irremediável falta de perspectiva, nem tampouco conseguiríamos nos esconder atrás do ocaso quando todos os "dados" estão viciados. O complexismo ab_surdo tem formulações plurais em modos diversos de poetização da escuta, sedimenta as representações imaginárias em todas as dimensionalidades da escuta, da acusmática à ópera, mesclando seus extremos na complexificação acusmática-operística da próera. 10.20.2 .2 . As retóricas fundamentais da música, suas ideologias sobre as escutas e o vocabulário manipulado nunca são inocentes. No nosso caso, buscamos pôr fim às três ferramentas de controle sobre a soação operando através da musicalidade: identidade sonora, pureza formal e segurança aurática. Remetendo-nos à vida, à morte e ao sagrado, não deixamos lugar à indiferença: falamos de todxs e a todo mundo, misturando imaginário e realidade somos o sintoma de um mundo sem intimidade onde não há motivos para nos religarmos que não o consumo dos outros por nossos desejos, a arte se tornando assim uma janela de vazio no ruído. A brutalização das relações sociais numa sociedade oral tem a ouvir com a surdez para a escuta (bruit em Mcluhan), preconceitualização estética para o mantenimento das microperverções na violência íntima. 10.20.3. Ámoda: Das discursividades totalitárias (“Se hoje sofremos, não é nossa culta: fomos vítimas da História.”), e do mantenimento de uma lista de proibições de escutas tabus, o ciclo da moda totemiza-se tal que gera a ausência de um movimento real da escuta. Esta expiação de certos modos de soar são claros e englobam todas as formas de eruditismo e dissonância, produções sem autoria, rituais simbólicos, etc. como meros sons, sem afeto, proibindo assim tanto a complexidade na música quanto proibindo as pesquisas das relações entre afetos e ciência. A moda artística é o ressentimento coagulado de modo que não se torne angústia, ressignificação contínua da repetição. O loop é o símbolo mór da escuta contemporânea, que combate o “terror” da diferenciação continuada tida como ruído. Cada compositor verticaliza um tipo de gesto sonoro, somando-se a uma ecologia dos modos de escuta. “Não levo a música tão a sério assim, e a nuvem é a obra de artes plásticas mais maravilhosa que vi.” bradam triunfantes seus sussurros. Há tantas rodas de modas distintas já, porém.
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10.20.3.1 . Ethnos e Demos: Entre uma comunidade imaginada e uma cidadania comum redefinida há uma tribalização dos nichos comerciais em prol de uma ecologia econômica (economologia) dos ruídos intertribais. A escuta da maioria popular (demos) se torna portanto o mercado de significação subjetiva do modelo de mercantilização dos músicos enquanto produtos vazio de conteúdo propriamente musical (basta ver estes programas de talentos) e os nichos se tornam espaço de uma "escuta de qualidade" onde o requinte de ouvir o desconhecido se sobrepõe ao produto musical. As obras de redes de artivismo em geral são transformadas em mais um nicho de coleção, a serem tratadas dentro de um sistema de conteúdo artístico propositadamente vazio. Esta mitologia cultural constitui uma causa longíqua e fundamental para o esteticídio generalizado. 10.20.4 . Saúde Auricular: O ideal de pureza formal anódina da música se conjuga ao da saúde e da assepsia na “produção profissional”. A musicoterapia também se rendeu aos tratamentos meramente consoantes indo dos ritmos pulsionais às harmonias binaurais, mas quais as modificações que as frequências complexas e os ruídos inesperados geram nos organismos ouvintes? A que ponto, esta ideologia da saúde correlacionada à consonância não embasa a perseguição às dissonâncias e a diminuição da variabilidade da produção subjetiva soante? Indo um passo além, quanto o ideal de pureza e simplicidade musical não colabora com a superficialidade nas discussões sociais acerca de temas de complexidade inevitável, propiciando preconceitos e tomadas de partido passionais que privilegiam a hegemonia de uma minoria? 10.20.4 .1 . Quantos massacres não se baseiam nesta perseguição à dissonância de modo de vida? Perseguição aos pobres, aos eruditos, aos silenciosos, aos autistas, aos que não desejam sexo, aos religiosos, aos que não desejam mais competir, etc. Aquele que questionar-se estes pressupostos é tratado como inimigo do capital e assim, como inimigo da classe artística “que precisa se alimentar”. Mas o questionamento de uma escuta institucional da música demanda-nos a compreensão do entranhamento entre a saúde da escuta individual nas consequências desta para aharmonia de escutas. São, portanto, duas purezas: uma identitária onde se nega a ouvir qualquer coisa de fora do seu estilo de escuta, outra política onde se nega a ouvir qualquer coisa que contenha dissonâncias ideológicas e(ou) formais com a produção de consumo subjetivo musical. 10.20.4 .2 . Ópera Sopa de Norminhas: A quem falam as óperas? Quem ainda está disposto a conhecer as óperas contemporâneas numa época de perseguição à dissonância ideológica? Os indivíduos, de fato, mantêm uma certa capacidade crítica de decodificação da propaganda e de reinterpretação das mensagens, em função de sua experiência própria e das pessoas à sua volta. Se determinada propaganda se mostrou eficaz, não foi, certamente, apenas graças a seu conteúdo. Foi graças - talvez principalmente - à receptividade de quem a ela se expôs com suficiente boa vontade para acreditar nela e se negar a ver por detrás desta os processos de controle psíquico, como as pesquisas de opinião, por exemplo. Enquanto uma sessão de ópera ainda exige deslocamento, espera, obrigação de horários fixos e de silêncio, vizinhança desconhecida numa sala, em suma todo o ritual, ligamos a televisão para ver a novela (que é toda programação) quando queremos, sem sair de casa, posso assistir a ela deitados, agachados, de pé, comendo, trabalhando, conversando, cochilando.
10.20.4 .2 .1 . Infantilismo Cultural: A regressão à irresponsabilidade é a contrapartida cultural ao dever de consumir. Além da necessidade de proteção, legítima em si, o infantilismo é a transferência para o centro da maturidade dos atributos e privilégios da ignorância infantil, sua idolatrada inocência. Dois aliados objetivos o alimentam e o excretam continuamente: o consumismo e o divertimento, ambos baseados no princípio da surpresa permanente e na satisfação ilimitada que geram. No caso da cultura, é visível na preocupação com a independência sincrônica à demanda de cuidados e assistência, na combinação do não-conformismo com a exigência insaciável. A cooptação cultural das periferias por parte de uma população de alto poder aquisitivo e pelo discurso do poder busca vantagens imerecidas, colocando os outros em posição de devedores subjetivos a si próprios. A onda da periferização da escuta, o ghetto tech mundial, nos mostra esta onda como uma vitimização da escuta consumista burguesa. 10.20.4 .2 .1 . 0. A vitimização é aparente nas obras de protesto, bem como nos estilos de entretenimento violento que mostram com horror os limites da infantilização. O heavy-metal e os filmes de terror são uma amostra limítrofe do “vamos vomitar o lixo de volta em vocês”, a tratar dos males “contemporâneos”, mas o que tornaria os humanos mais infelizes hoje do que antes? A emancipação coletiva e a pessoal eram uma só. Porém, assim que desapareceram os grandes pretextos ideológicos que nos permitiam atribuir nossas misérias a um capitalista ideal no topo da pirâmide, e tivemos que lidar com os satãs em nossos próprios desejos, o adversário à consonância começa a surgir dentro das famílias médias. 10.20.4 .2 .1 .1 . A partir desta estética da violência e da estetização da miséria é formado um verdadeiro mercado do sofrimento. E este tipo de empreitada é visto com bons olhos pela população global, como atenuante desta violência simbólica sob os regimentos do comércio e como propulsor de produtividade. Em toda parte a indústria dos direitos simbólicos prolifera e cada um se torna porta-voz da sua particularidade, inclusive o indivíduo, a menor minoria que existe, e reivindica a permissão de perseguir os outros, que lhe fazem sombra. Se você pode estabelecer um direito e provar que lhe privam dele, então obtém o status de vítima. 10.20.4 .2 .1 .2 . Por que seria escandaloso simular o infortúnio quando nada nos aflige? É que usurpamos assum o lugar dos verdadeiros deserdados. A música das minorias é a majoritária, a verdadeira minoria musical é a de escutas extremas e ritualísticas. Ora, os verdadeiros sofredores do sistema competitivo hierárquico não pedem derrogações nem prerrogativas, apenas o direito de serem humanos como os outros. (E não elefantes)? Aí está toda a diferença. Os pseudodesesperados do graffiti classe média querem se distinguir, exigem privilégios para não sere confundidos com o comum dos mortais pixadores, os poetas pós-concretos exigem justiça com a linguística apenas. Quais as reais minorias artísticas e subjetivas? Quais as minorias que mais sofrem? Quais as relações reais entre elas?
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10.20.4 .3. O ritual é parte do ruído da arte. É o contexto de recepção da propaganda que a torna mais eficiente, por isto é possível considerarmos toda a programação midiática e a maior parte dos programas culturais como produção de propaganda ideológica do consumo e do desenvolvimentismo. A partir disso, mesmo que a informação não seja verossímil, pode-se acreditar nela. O medo de crise e desemprego são temperados pelos jingles das propagandas onde um carro anda sozinho nas ruas da cidade sem tráfego e se defronta com um elefante, você pode chegar lá no deserto. Em contraposição à novela televisiva (soup opera) que fala à massa da mediocridade máxima, onde só há consonância com os preconceitos sociais, a ópera fala somente àqueles que se dispuserem a ouvir tudo. O sensacionalismo da violência midiática vende produtos de segurança e empodera as forças de controle. Fora falarmos então em formação de público e crise de protagonismo, deveríamos pensar a formação de espetáculos por parte de um modo de publicidade. Nellie, the Ellie Phant. 10.20.5. Silêncio Elefante. A Espiral do Silêncio: Um outro fenômeno subjetivo subjaz como avesso à espiral do ruído e sua surdez, através da mercantilização da arte e sua subsequente cultura da consonância ideológica: é o da espiral de silêncio que, ironicamente, gera o ruído social. O artista sente medo não só de não sobreviver sem os apoios dados ao embasamento da doutrina oficial, mas também de se ver isolado de seu próprio grupo de filiação. O ideal de profissionalismo na arte leva a não mais se ver como artista aquele que não “vive do que faz”, e o melhor artista é o que tem melhores possibilidades materiais e sociais de expressão. Para não se sentir isolado, ou até ser banido, o indivíduo eventualmente renuncia a expressar sua própria opinião. Essa tendência à conformação, de fato, é uma das condições de sua integração social. O silêncio acusmático dos primeiros tempos no aprendizado pitagórico da escuta aqui dão lugar ao silêncio da música com relação ao seu papel como paliativo de massacres cotidianos, como por exemplo, o apartheid econômico do conhecimento nas universidades e dos espaços de produção simbólica nos museus ditos públicos. 10.20.6. Técnicas Elefantes: Para um profano, e a maioria de nós é, o mistério que existe num televisor ou num transistor é o mesmo que existe na fórmula de um mago que inventa sabões em pó (aliás eletrônica e informática são palavras cabalísticas encarregadas de designar o inexplicável). A complexidade das operações mentais necessárias à fabricação de um simples chip de computador torna esses instrumentos impenetráveis aos usuários. Isto explica as relações de raiva, de adoração e de jogo que mantemos com eles. As relações com a arte a partir de sua técnica se dão por um viés similar, exigem uma dedicação sem falhas e em cada uma das suas dissonâncias com nosso desejo vemos uma ação contra nós. O espectador, no entanto, para se vingar dispõe de um recurso eficaz: a substituição. A técnica (e a arte pode ser vista como somente uma) nos fascina tanto quanto se banaliza. 10.20.6.1 . Cópias Elefantes: A música multiplicada ao infinito, como a pintura reproduzida em livros, revistas, cartões-postais, filmes, sítios virtuais, arrancaram-se de sua unicidade. Assim, perderam sua realidade. A multiplicação lhes tirou de sua aparição. O direito autoral alimenta este dever de cópia, ao não permitir os desdobramentos fractais da criatividade sobre a fonte “original”. Cópias, e não instrumentos mágicos, fetiches, templos, grutas, ilhas. A ocasião da música durante milênios, foi tão singular, intransponível, excepcional, solene, ritualizada, quanto podiam ser uma assembleia de máscaras, uma gruta subterrânea, um santuário, um palácio principesco ou real, um funeral, um casamento.
10.20.6.2 . Audição Elefante: A alta-fidelidade se tornou o fim da música erudita escrita. Ouvimos a fidelidade material da reprodução, e não mais a campainha espantosa do mundo da morte. Uma simulação excessiva do real suplantou o som que se desenvolve e submerge no ar. As condições do concerto e do ao vivo chocam cada vez mais o ouvinte cuja erudição tornou-se também tão tecnológica quanto maníaca. 10.20.6.3. A audição acústica: É a escuta do que dominamos, do que podemos aumentar ou diminuir o volume, que podemos interromper, ou que podemos com um dedo e com um olhar, desencadear o poderio. O escuta ruidosa é mais inapta que incompleta. Não somos mais humanos, mas refrões. A voz do muezim força os judeus como o carrilhão da grande missa o faz com os muçulmanos. Somente os ateus preconizam o silêncio que não podem impor. Certamente eu não teria apreciado o olifante de Rolando, mas detesto a campainha telefônica. A humanidade está mais próxima dos sofrimentos da audição do que da visão angélica. Pela primeira vez, desde o início da era histórica, isto é, da narrativa, os humanos fugimos da música. Eu fujo da música intangível, por isto esta próera. 10.20.7. Rítmica Simbólica: O musth modifica as hierarquias sociais a partir de um incidente puramente fisiológico apontando a dominante sexual que aparece em todos os níveis com caracteres rítmicos sobredeterminados. Os jogos das crianças apresentam um caráter ecolálico, estereotipado, prefiguração coreográfica, de algum modo, do exercício da sexualidade. A rítmica sexual ligada à sucção, digestão erótica do mar uterino, estar no outro sem sermos alimento, nascemos devorados. A genética dos fenômenos sensório-motores elementares é também o princípio da metáfora, a simbologia nasce do diálogo do corpo consigo. O corpo inteiro colabora na constituição da imagem. O mito é uma repetição rítmica, com ligeiras variantes, de uma criação. Mais do que contar, como faz a história, o papel do mito parece ser o de repetir, como faz a música. Essas repetições das sequências míticas têm um conteúdo semântico que, no seio do sincronismo, a qualidade dos símbolos importa tanto quanto a relação repetida entre as personagens do drama. A ópera prop de Greenaway com seus cem objetos antepostos diante do Bach satelital demanda Tulse Luper. É que o sincronismo das variações do mito não são apenas um refrão, são música. E música é encantamento.
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10.20.7.1 . Jogo Elefante: Xiàngqi ( jogo elefante) é a modalidade de xadrez chinês. Quem se preocupa em comprar as peças de marfim está disperdiçando tempo que deveria usar estudando as regras e(ou) jogando. Os ideogramas para ministro e elefante são diferentes porém homófonos, e ambos significam aparência ou imagem. Como é agradável deixar-se levar, ser joguete de estratégias comerciais diversas, que repouso nesse abandono, que ventura nessa passividade que é ser espectador do jogo de cena! Sem seus nichos de felicidade, não haveria nada para nos recuperarmos da violência, das ações, do esforço extenuante. O consumo é consolo. A pessoa saciada quer sempre mais que o que lhe foi dado, pois o que ela deseja ninguém lhe pode dar, ser uma esponja embebida de um eterno presente da informação através da memética em melodias taraband: Um ouvido insaciável pobre de mundo. Escolher não jogar o jogo, muda o jogo.
10.20.8. Semibiótica: Postulo que a próera é a prática dos conhecimentos de uma nova área do conhecimento, ainda delicada, a dos estudos da vida mediada por sistemas simbólicos e das buscas dos símbolos vitalizantes e das pesquisas das comunicações vitais, a semibiótica. A comunicação não-violenta e a escuta compassiva constituem aspectos destas práticas cotidianas. Neste sentido ela é o contrário da biossemiótica que é um campo crescente que estuda a produção de ação e interpretação dos sinais do reino biológico. Se o cinema (movimentação sinestésica) é o signo do caos, a próera (intervenção semibiótica) é um índice da complexidade contígua numa operação. Uma taxonomia de nossas compreensões aponta para uma arrogância e ingenuidade terrível caso apoiemos o fato de nossos modos de apreciação estético estarem prontos: Uma linguagem verdadeiramente humana deveria ser compreendida por elefantes e demais espécimes, para tanto. Se há uma lição a ser aprendida com os cornacas mahout é esta: ainda não sabemos apreciar uma obra de arte tão singela quanto um elefante e nos comunicarmos com ela.
10.20.9. Canto: Ar acumulado e rejeitado. Todo o auditório interno e mesmo o futuro teatro respiratório refletem com ênfase as emoções que o corpo sente. A linguagem se organiza com um corpo zoológico que inspira e expira sem descanso. O som que já ressoa é o resultado de uma verdadeira competição sonora. Cada espécie de animal adaptada ao ar e dotada de uma cantilna que lhe permite se diferenciar das outras espécies, participando a um sistema sonoro onde ela só desempenha a parte que se espera dela para se associar à sua manada sonora, em superposição e em negação das outras partes que ela é capaz de ouvir. Nós nos imitamos a nós mesmos imitando. Não é somente a infância. Uma espécie de manutenção sonora, de ressonância e de comparecimento incessante fundam, trabalham e precisam sem descanso cada língua no sistema das vozes do mesmo modo que ela funda e alerta cada som na floresta sonora. 10.20.9.1 . Curiosamente, a música protege os sons. As primeiras obras de música dita barroca eram cheias do desejo de se extirpar do latido do sonoro a partir da modulação própria da linguagem humana e da organização de seus afetos. A invenção da ópera resultou desse desejo de renascimento afetivo, de muda ou de triagem sonora, de sacrifício sonoro em prol de uma hiperrepresentação. A voz infantil que puxa para si a linguagem materna é pele de serpente. A música e a voz maravilhosa, a voz domesticada e a castração estão ligadas. 10.20.10. Audição e vergonha. Ruído de seus passos fora da harmonia social. A música nos imobiliza e comove. A música é a impessoalidade não privada da fusão ideológica das escutas. A satisfação sádica de ouvir uma harmonia bela enquanto tantos vivem uma vida desarmônica e ruidosa, atonal. A música nos campos de concentração é um ritual de humilhação. Primo Levi colocou a nu a mais antiga função da música: a hipnose do ritmo contínuo que aniquila o pensamento e adormece a dor. A função secreta da música é convocativa à obediência. Como ouvir de fora da música? A música é uma convocação à tortura e quando difundida em massa, ao massacre.
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10.21 . Escuta Marfim: Escuta elefante. O que ocorre com você quando escuta uma música que toca? Através de que magia (dionilínea e aposíaca) esta mensagem tem o poder de induzir em você uma metamorfose? Num primeiro momento, você sente, enquanto ouvinte, que está escutando a música. Mas na medida em que é ‘tocado’, como se diz, você descobrirá que de fato não é você que escuta, mas que é a música que o escuta, que escuta uma presença de cuja existência você se esqueceu e que, pelo fato de ser escutada, passa a reviver e a lhe ser dada. Mesmo os erros, os atos falhos dos intérpretes, os cacoetes dos maestros, os espirros da platéia, sempre me pareceram de uma infinita precisão. 10.21 .1 . Escuta infantil: O Imaginário Feroz do recém nascido e seus fantasmas arcaicos de devoração e de onipotência, rompem com o mito da inocência infantil. A mãe oferece e nega o seio, amor e ódio à mãe. A orelha dentata. Segundo Klein, essas primeiríssimas sensações estariam, então, na base de nossa percepção primária do bom e do mau, do bem e do mal, do amigo e do inimigo. Há uma tanatologia erótica da escuta, uma depressão natural da entrega de ouvir quanto uma paranóia na forçação de uma análise auditiva. O que perdemos com uma cultura tipicamente musical-depressiva, que se abstém do ruído e suas paranóias, mas também da análise e da crítica? A musicalização e legislação aural à ordem e à harmonia consonante pode ser eficaz para inibir a violência individual, mas esse organizador psicológico não impede a guerra semiótica e a explosão dos volumes e os massacres de sensibilidades. 10.21 .2 . Racionalidade Delirante: A lógica paranóica da música (análise projetada na soação), sua matemática dos afetos, é desvirtuada pela paixão, que a leva a uma interpretação delirante da realidade. Suas ideias se orientam por uma crença a priori. A dúvida e a autocrítica são tão estranhas ao paranóico quanto ao músico. Seu raciocínio, aparentemente racional, na verdade tem uma natureza hiperafetiva e, no final das contas, representa apenas a justificativa das suas tendências emocionais. Ao não perceber o aspecto ruidístico que é o próprio gesto compositor sobre os sons, o músico raciocina exato, mas partindo de premissas falsas: a música é o afeto dos cálculos. A característica principal da racionalidade delirante das artes é a de se pretender instrumental: visa garantir, para si, os meios concretos de alcançar seus objetivos. Trata-se de pôr em ação um projeto (aonde queremos chegar com este projeto: eis a obra), uma estratégia para fazer o que se diz. Não há, neste sentido, uma arte disto ou daquilo, e os estilos e escolas são demonstrações abertas de preconceito aceitos. E aqui podemos observar a pureza estética da eletroacústica, onde a justificativa contextual é sempre deixada de lado em prol de uma metapoética do processo de geração sonora, de modo que a harmonia contextual.
10.21 .3. Ideologia Irracionalista: Partindo desta irracionalidade afetiva da música mantém-se uma ideologia irracionalista que sufoca as análises da escuta de modo a evitar o confrontamento com as dissonâncias internas e contextuais. A música extrema do século XX, disfarçou os afetos nesta discursividade fria dos matemas. Esta ideofonia ruidocrática, que é o sistema musical, estrutura a industrialização da surdez seletiva. Que fique claro, as pessoas não estão surdas para tudo, mas somente para o que não querem ouvir e nisto podemos negar Cage: O ouvido pode sim adquirir pálpebras. Pode-se viver uma vida inteira na miséria só se ouvindo consonâncias. A negação da angústia acarretada pelo ruído de fundo do universo está na base da ideologização sobre o musical. Colocar uma letra ou um programa (mesmo que fantástico) sobre uma música é uma das consequências desta necessidade de não ouvir o abismo. O ressentimento com a erudição tem de ver com os sacrifícios desejantes necessários à pesquisa científica (a negação necessária dos afetos presentes aos sons para a sonologia, por exemplo). Isto não é aparente somente nas culturas popularescas mas mesmo quando se fala de arte e tecnologia ao invés de arteciência, se quer o celular moderno mas não pensar nas guerras necessárias para conseguir o diamante que vai no chip. Os meios justificam os meios. Fins. 10.21 .4 . Escuta reacionária: A vontade de controle sobre todos os membros de um estilo tende a ser total. É um processo bastante lógico: se a mobilização de identidade teve como origem a sensação de ameaça coletiva de um modo de soação próprio minimamente diferente de outro (que conseguia vantagens) tende naturalmente a ceder ao estilo majoritário, dito mainstream, posto que este é a forma esvaziada desta técnica de controle. O controle do mercado sobre todos os estilos tende a ser total também, o que leva a uma perseguição às próprias variantes que identificam os estilos. Ou seja, o intuito de hegemonização homogeniza as escutas e as obras artísticas à caricatura cultural vigente. 10.21 .4 .1 . Um verdadeiro tradicionismo artístico se contraporia às lógicas de mercantilização de suas diferenças, mas como o poderia fazer sem ser tido como um traidor da identidade comum de consumo cultural? Para isto se tem o estilo musical do experimentalismo. O totalitarismo hegemônico da harmonia consonante em pulsos rítmicos e desenhos melódicos hipnóticos captura a “imagem do audível”, não dando a entrever a ruidocracia que a sustém. O imaginário da unidade global esconde sob os signatários protetores deste conhecimento, os compositores laureados e sonólogos das grandes instituições musicais, o ruído social e físico necessários para a produção desta cultura. A arte é o lixo da cultura.
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10.21.5. Lixos Elefante: Há em todos nós um pouco a sensação de que chegamos ao topo da escuta, escalamos todas as dificuldades da música erudita ocidental por pura necessidade, mas agora nada disto é mais necessário: encontramos a pureza maravilhosa da consonância infinita de delirantes afetos simples e, principalmente, de pureza formal. Todos sabemos o que é lixo, a sujeira musical é bem aparente, ela mantém as coisas artísticas fora dos meios de entretenimento. Com as outras artes ocorre o mesmo, a pintura tem como fim a decoração e assim por diante. 10.21.5.0. A ecologia sonora está contra a economia musical de remédios, pois tem um aspecto de controle de ruído que são importantes com o advento de cada vez mais barulhos por conta da industrialização crescente, mas é também tomada por uma luta ideológica sobre o que a move. A pureza comporta um apelo ao sagrado: a necessidade de purificação é uma mola propulsora do religioso, constituindo um verdadeiro trampolim para que se desencadeiem as perseguições purgadoras. A laicização dos rituais litúrgicos, dos templos e de suas músicas, são um sintoma de que o entretenimento é a religião subjacente à ideologia capital. Os ruidistas da rúsica com certeza se sentem numa santa cruzada pela expansão da escuta e defender a pureza da civilização contra a corrupção da modernidade é o leitmotiv de tradicionistas ao folclore livre. 10.21.5.1 . Desperdício do Ecletismo: Não vamos a lojas com o intuito apenas de comprar, mas para constatar que tudo está ali, ao alcance, graças ao deus da riqueza vivo e presentificado em toda sua complexidade. Para a ideologia eclética do desperdício não existe além-abundância, ela é irrefutável. Quem preferiria ruído a uma boa música? Quem preferiria uma obra de arte de difícil cognição e assimilação afetiva em relação a uma peça de entretenimento suave? Os saques simbólicos (dos mashups e das colagens em geral) do morno inferno infectado de bem-estar, são uma homenagem involuntária à nossa sociedade de obsolescência programada, já que as mercadorias estão destinadas a serem suprimidas e substituídas.
10.21.5.1 .1 . Os vândalos artistas (ruidistas plunderphonics, por exemplo) são consumidores subjetivos apressados, que queimam etapas e vão diretamente ao final do ciclo de consumo: a devastação e produção de lixo. A festa do progresso desenvolvimentista (des-envolvimento) não para de seduzir os incautos nunca, tranquilizando o duplo impasse da angústia (não deixando entrever a ausência do necessário aos Outros) e da saturação (pois o desejo é eternamente solicitado para ser dispensado em seguida). O consumismo, em suas consequências abstratas e subjetivas (portanto, simbólicas [logo, filosóficas, religiosas e políticas]), só traz respostas e não faz nenhuma pergunta, estende para nós mãos sempre cheias para que não vejamos o sangue necessário para conseguir-se o marfim. 10.21.5.2 . Modas Elefantes: A moda parodia a cultura tal qual a história dos estilos musicais está intrinsecamente ligada às inovações das aparelhagens técnicas. A ruptura deve ser sempre doce e a inovação minúscula: quase sempre a mesma coisa, espanto sem surpresa. A novidade age essencialmente no plano dos acessórios, das pequenas modificações. No fim, essa agitação equivale à quase imobilidade subjetiva, uma arte insensível, insossa. E quanto mais os estilos artísticos, mais instrumentos e gadgets desfilam vertiginosamente, sem que no entanto nada modifique nos modos de experienciação.
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10.21.5.2 .1 . Constrói-se através da cultura uma imitação de perenidade sobre o perecível: e a função desse tumulto superficial é tecer uma continuidade sem falhas, de encobrir os buracos da surdez programada às demandas dos necessitados, de remendar os pedaços disparatados dos preconceitos dos poderosos, de nos distrair para que não nos desorientemos da ideologia hegemônica: Saborear a felicidade individualista, acalmar a inquietação diante do sofrimento do outro. Eis “O Segredo Simbólico”: O sofrimento é desejo que vem por magnetismo com o conhecimento, a ignorância é benção e quem não obedecer a este mandamento subliminar será perseguido. 10.21 .6. A homogeneização das escutas se baseia na identidade compartilhada para produzir a mínima diferença ao mesmo tempo que compactuando sempre com a hegemonia consoante da hipocrisia (menor das crises). Mas a crise é sistemática, global e requer respostas complexas que visões parciais só vão atrapalhar. Nossos prazeres não são apenas usados para nos controlar, pelos poderes semióticos instituídos, eles geram estes poderes. Esta guerra pelo progresso reifica as pessoas: são reduzidas às suas funções de micropoder. Aceitem ou não aderir à competitividade, o mercado os incorpora em um papel, uma função, mesmo que de traidor, terrorista ou herói nacional. Ainda dispomos de alguma margem de ação para rejeitá-la? Vários exemplos atestam que sim. Esse desejo de se desvincular das responsabilidades é exatamente o que aproxima a plateia toda, é neste distanciamento que se afirma sua conformidade e sua aceitação do narcisismo da diferença mínima. O esforço de se fazer notar, ainda que pelos meios mais extravagantes, eis a experiência da massificação e o espelho pelo qual o artista é vislumbrado. 10.21 .6.1 . Planeta Elefante: De maneira mais geral, como se pode notar com as tabulas rasas culturais, o estado de competitividade não abala só a relação com os outros, mas também as noções de espaço e de tempo. O espaço se torna sinônimo de insegurança (locais a não frequentar ou a se competir para conseguir dominá-los) ou de refúgio (loja casa). De qualquer um dos dois modos, não nos é mais permitido nos relacionar com os lugares com o cuidado simbólico necessário. O tempo, por sua vez, se torna -o da incerteza programada: não se sabe mais como será o dia de amanhã, mas ainda assim não podemos deixar a rotina massacrante de buscar segurança. Populações inteiras são tomadas por estados depressivos gerados por modelos de conduta e ingestão cultural ao mesmo tempo que apresentam manifestações de hipervigilância paranoica (a música-ruído, as performances, etc.). O tempo parece suspenso e a vida passa a ser experienciada num limbo à deriva, pantomina de títeres da falência.
10.21 .7. Estética Estatística Estocástica: Nada mais sintomático a esse respeito do que a depressão engendrada pela sociologia. Essa disciplina é professora de humildade por lançar sobre cada um a luz do grande número e transforma nossos mais íntimos gestos em estatísticas. Com a sociologia torno-me previsível, meus atos estão escritos antecipadamente, qualquer espontaneidade é a mentira de uma ordem molecular que se escreve atrás de mim. Ela traz um flagrante desmentido ao sonho de uma liberdade que desabrocharia apenas no ritmo dos meus impulsos: para que me inventar se uma ciência me diz o que sou e o que serei não importa o que eu faça (no que a sociologia é tanto descritiva quanto prescritiva)? Com ela sou expulsa de minha pretensão ao ineditismo, à novidade (própria à arte). Por exemplo, penso que sou uma amante requintada cujo coração só vibra pelas mulheres excepcionais; por uma pesquisa sou informada de que compartilho os mesmos gostos com 75% das mulheres homossexuais de meu meio profissional. Pensava transcender qualquer definição particular, qualquer determinismo preciso: minhas escolhas amorosas só fazem sublinhar minha vinculação genérica e de classe. Com a sociologia, minha única liberdade é agir como os outros, ser ao mesmo tempo conforme e equivalente mesmo que neste impulso pelo impensado. A cultura de massa não engendra arte pelo simples motivo de que a arte é o ponto de singularidade de um gesto.
10.21 .7.1 . A Divisa do Conhecimento: A partir de uma poética sociológica, o que pode fazer a arte concretamente no âmbito da macropolítica? Pode aconselhar decisões políticas, redigir anotações e recomendações a partir de sua pesquisa pessoal, que serão ou não levadas em consideração. Pode também se engajar na ação militante, transformar-se em artivista, para defender causas desse ou daquele povo martirizado. Pode não exercer a responsabilidade de proteger ou cultivar, mas pelo menos assumir a responsabilidade de saber e de fazer que se saiba. Pode se tornar pedagogia dividindo suas experiências. Mas de modo geral, isto tudo é um algo a mais que sua própria obra que deve ser tida como dádiva à coletividade.
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10.21 .8. Comportamentos Elefantes: Não me edifico sem me apoiar em exemplos, modelos próximos ou longínquos me ajudam como compositora, mas também me levam a uma despossessão. Todas nos pretendemos fazer sozinhas, sem a ajuda de ninguém, mas todos se pilham e se furtam atrevidamente: estilos de vida, maneira de vestir, de falar, hábitos amorosos, preferências culturais, nunca nos inventamos sem nos filiarmos a padrões dos quais nos arrancamos com muito esforço. Criar a si própria é primeiro copiar, Sr. Pound, todo mestre é diluidor. Sou feita destes outros que tenho de construir em mim: vocês. A vertigem da repetição da mínima diferença na cultura atual se dá pelo narcisismo da auto-produção da própria escuta, esta arrogância nega o plágio sempre presente e nos acorrenta a um nível de encadeamento simbólico que se proíbe à memética. A vaidade, naquele que lida com o simbólico, gera tanto a falta de criatividade quanto a proibição da cópia, mantendo a cultura subjetiva num estado contínuo de medo da mudança. 10.21 .8.1 . Infecção Aural: Algumas estratégias de dissimulação ostentatórias marcam a música séria (preocupada com a interescuta humana e sua harmonia contextual atual), principalmente no seu calar social para fazer um barulho ensurdecedor do populismo (sua imposição pela ausência): O desprezo aparente do outro provocado pela paranóia da análise proibida e a busca frenética de reconhecimento e aprovação, a rejeição da norma social de conduta por sua clara desonestidade e a angústia de ser diferente, a aspiração a se distinguir ligada à felicidade de ser multidão, a afirmação de que não precisamos de ninguém e a amarga constatação de que ninguém precisa de nós, a misantropia acompanhada da mendicância envergonhada da adesão dos outros, a demência do tonittus etc. É como se suas aharmonias dilaceradas entre a necessidade de crer nos sistemas ideológicos de sua época e a necessidade de justificar tais crenças os tornassem também apóstatas, nômades das contínuas renúncias e das multitudes de métodos, devaneadores das miríades e modos de escutas e soações, com adesões tão efêmeras quanto intransigentes.
10.21 .9. A Competitividade Semiótica por atenção mascara o massacre cultural da sensibilidade ao criar condições de isolamento tanto para os beneficiários quanto para os problemas. Coloca-se à distância qualquer terceiro (crítico enquanto formulador de conexões intelectivas entre obras e contextos), mas até que ponto a falta de crítica não também uma ausência de vontade em se tocar nestas feridas sem medo da máscara de moralista? Boa música é a que o povo gosta, é a que o crítico gosta? Há uma crítica para cada gosto. As tentativas de cerceamento das trocas simbólicas (como o SOPA e o ACTA) funcionam no sentido reacionário de impedir uma abertura das escutas. 10.21 .9.1 . Mas o que poderia fazer um músico que testemunhasse estes fatos sobre sua sensibilidade? Ajudar no expurgo das escutas, ampliar a complexidade, não buscar atender ao desejo de consumo e hedonismo, alertar os outros para o perigo do conforto da escuta, para a liberdade da soação. Perder de propósito é uma tática importante a ser considerada nas escaladas competitivas, concatenar a crítica aos patrocinadores também aparece como necessidade metodológica, mas principalmente manter-se autocrítico da própria criação, seu entranhamento contextual para uma transparência ou opacidade justa (quando da necessidade de anonimato).
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10.21 .10. Ouvir é obedecer. Passividade e alheamento involuntário que nunca emancipa os sons totalmente de um movimento do corpo que o causa e o amplifica. Nunca a música se dissocia integralmente da dança que ela anima ritmicamente. A escuta molecular dos modos de movimentação corporal no clarifica a harmonia contextual. Não existe espelho sonoro no qual o emissor se contempla. O animal, o ancestral, Deus, o invisível sonoro, a voz do útero materno logo falam. Grutas, depois cidades dos mortos megalíticos, depois templos: todos se desenvolvem a partir do fenômeno do eco. Ali onde a fonte sonora é inatribuível. Ali onde o visível e o audível se acham em desacordo. Como entre o relâmpago e o trovão. Os primeiros profissionais do desacordo entre o ouvido e a visão formam o casal xamânico. A audição é a única experiência sensível da ubiquidade. 10.21 .10.1 . O xamanismo é a caça às almas que saltam de animal em animal na dupla imensidade dos mundos visíveis e noturno, isto é, real e onírico. Essa caça é uma viagem da qual é preciso retornar. É a culpabilidade paleolítica: ser capaz de trazer a presa que se fez o predador do seu predador. Um bom xamã é um ventríloquo. O animal penetra naquele que o chama com seu grito. O deus entra no sacerdote. É o animal que cavalga, é o espírito que põe em transe aquele que possui. O xamã luta contra este. Ele se torna a presa do xamã. O xamã se torna caixa-de-deuses. Ele não imita o elefante: é o elefante que grunhe nele; que vibra o chão das escutas. O bom feiticeiro é esse ventre que comeu e no qual o animal, que ele é culpado de ter matado e comido fala. A baleia está dentro de Jonas, é sua memória pré-diluviana. 10.21 .10.2 . Ventriloquia bestial, mímicas dançadas precedem a domesticação: o dono dos animais é pré-domesticador. A primeira especialização do caçador foi o xamã: esse caçados cuja especialidade é a caça às respirações, às vozes, às visões, aos espíritos. De que a música é o instrumento? No grego antigo, o círculo mágico é chamado orchestra. O sonoro não delimitando nada individualizou menos os ouvidos do que os destinou ao agrupamento. Isto é: puxar pela orelha. Hinos nacionais, fanfarras municipais, cânticos religiosos, cantos familiares, identificam os grupos, associam os nativos, subjugam os súditos. Os obedientes.
10.21 .10.2 .1 . A poesia volta-se para a perversidade sem nunca tornar-se perversa. 10.21 .10.3. Indelimitável e invisível, a música parece ser a voz de todxs. Toda música é agrupante e gregária porque imobiliza imediatamente a respiração, o sangue e os ritmos mais sutis e complexos das moléculas. As músicas simples e melódicas tecem as relações mais antropomórficas do social, enquanto as mais complexas e ruidosas cuidam da homeostasia infralógica dos indivíduos e grupos. Mas as metas da música se resumem a uma só: atrair o outro. As salas de concerto são grutas inveteradas cujo deus é o tempo, o ouvido é a porta do que ainda e já não é desse mundo. A linguagem simplifica, sacrifício próprio à cognição que impele a escuta ao amadurecimento da memória. 10.21 .11 . Ouvidos Elefantes: Calar-se para ouvir é primeiro deslocar-se à surdez. Acreditamos que só existam duas verdadeiras audições: a leitura de romances e a escuta compassiva. A escuta demanda a entrega amorosa. O momento de maior diminuição sonora não é noturno, mas crepuscular. É o mínimo auditivo. Pan é o estranho estrondo do silêncio meridiano. O deus dos cálamos se cala no centro do dia, isto é, no máximo ótico. A humanidade não cessa de obedecer. O silêncio não define em nada a carência sonora: ele define o estado em que o ouvido é cada vez mais alerta. 10.21 .11 .1 . Não-Elefantes: Poderíamos chamar a estética da responsabilidade de biostesia. Os sistemas musicais (e musicológicos) são aqueles que os manuais mostram. Eles se comportam bem. Frente a um sistema sonoro não-musical, os estudiosos tendem a substituí-lo por aproximações musicais, ou encontrar alguma outra incerta porta traseira para uma abordagem. Os manuais mostram aos estudantes apenas os raros sistemas sonoros não-musicais que cedem ante esta técnica. Não apresentam dependência sensível das condições iniciais de éter, mistério e absurdo da escuta.
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10.21 .11 .2 . Os sistemas a-musicais com um caos real raramente são ensinados e raramente são aprendidos. Quando são encontrados, todo treinamento recebido leva a rejeitá-los como aberrações, seja pela escola hedonista como pela estocástica. Poucxs são capazes de se lembrar que os sistemas musicais, lineares, solúveis é que constituem as aberrações. Ou seja, compreendem como a natureza da escuta é além-musical. Chamar os estudos da escuta (auria) de ciência não-musical é como chamar a zoologia de estudo dos animais não-elefantes. 10.21 .12 . Vício Elefante: O som nos agrupa, nos rege, nos organiza. Mas nós abrimos o som em nós. Se ficarmos atentos a sons idênticos e que se repetem (loops) a intervalos regulares, não os ouviremos em unidade. Nós os organizamos em grupos de dois ou quatro sons. As vezes três: raramente cinco: quase nunca além disto. Nem o agrupamento rítmico nem a segregação temporal são dados físicos, mas pulsações da atenção, focos da escuta. Fraseamos sucessões sonoras, melodizamos. Somos os contemporâneos de pouco mais que o instante. Assim é que a linguagem se interpõe entre nós e nos tornamos servos da música. Pulamos sobre um pé só, memória curta que se desfaz e refaz. Temos enormes dificuldades em alcançar a arritmia seja na produção ou na escuta. 10.21 .13. Entrescuta: O silêncio entre dois agrupamentos rítmicos sucessivos não existe, mas toda a humanidade ouve-o. Talvez seja a fantasia sonora mais comum a todxs nós. A música faz mal, foi feita para encantar e enfeitiçar, seu charlatanismo se relaciona com sua origem iniciática, zoomorfa, ritual, cavernosa, xamanista, ébri, delirante, omofágica, entusiasta. A escuta é um desejo das coisas inexistentes. A escuta musical é o reino do intervalo morto entre agrupamentos rítmicos, o entre. 10.21 .13.1 . Opera Now: O vício em dopamina tem relações diretas com a curva de crescimento da cultura do entretenimento estar baseada no consumo de energia. A pureza é tão perigosa quanto o açúcar. Marsias, Orfeu, Dioniso e Osíris devorados pelos dentes da música concreta. É na goela dos animais que se concentram todos fantasmas da animaldade: agitação, mastigação agressiva, grunhidos e rugidos sinistros. O grito inumano ligado à boca das cavernas, à boca de sombra da terra, às vozes cavernosas incapazes de pronunciar vogais doces, os sons são vermes agarrando-se às cordas. Da imaginação da culpa ao ato de expiação, ocorre a invenção do massacre. As pinturas são maneiras de os sábios mostrarem como poderia ser, sem que no entanto modifiquem suas pequenas escravidões à representação. Douglas Gordon: Play Dead; Real Time. Tocar tem 7 letras? Escrever tem mais que 33 notas. Maat, nota fundante.
10.21 .13.2 . Elefantes Privados: Sempre acreditando na criação de sua própria mitologia, Mandelbrot fez questão de dizer publicamente que “A ciência seria arruinada (como o esporte) colocasse a competição acima de tudo, e se esclarecesse as regras da competição retirando-se totalmente para especialidades definidas com rigor. Os raros eruditos que são nômades por opção são essenciais ao bem-estar intelectual das disciplinas estáticas.” Eis uma questão legítima: Se um artista anuncia que alguma coisa é provavelmente verdade, e outro a demonstra com rigor, qual deles contribuiu mais para o avanço? Eis o tipo de tolice que toma o tempo e os nervos dos nossos melhores artistas e pensadores. “A política afetou o estilo num sentido que mais tarde viria a lamentar. Eu dizia: ‘É natural... É interessante observar que...’ Mas na verdade aquilo nada tinha de natural, aquela elefantíase do espírito, e a observação interessante era na verdade resultado de longas investigações, de busca de provas, e de muita autocrítica.” 10.21 .14 . Universais Marfim: Temos de procurar ainda outras e outras maneiras de artear diferentes, procurar estruturas em escala: como os detalhes grandes se relacionam com os pequenos. Observar as exceções e como as estruturas complexas persistem, seja do tamanho de um som ou de um elefante. As únicas coisas que não podem ser universais, em certo sentido, são as coisas em escala. De certo modo, a arte é uma teoria sobre a aparência que o mundo tem para os seres humanos. É muito óbvio que não conhecemos em detalhe o mundo à nossa volta. O que os artistas fazem é compreender que há apenas um pequeno volume de matéria que é importante, e em seguida vêem seus entranhamentos complexos. 10.21 .14 .1 . Onda Elefante, Partícula Marfim: A turbulência entre as dimensões estáveis mensuráveis e suas infralógicas caóticas são uma dos pontos de apoio do olho na pintura dita abstrata. O caos é a criação de informação. Quando Olhamos os primeiros quadros de Van Gogh, há milhões de detalhes colocados neles, há sempre uma imensa quantidade de informações. Evidentemente, ocorreu-lhe qual é o volume irredutível dessa matéria que temos de usar para preencher uma tela: uma vida. Ou podemos estudar os horizontes nos desenhos holandeses de cerca de 1600, com pequenas árvores e vacas que parecem reais. Se olharmos mais de perto, as árvores têm uma espécie de contornos de folhas, mas não é tudo - há também, agarrados nelas, pequenos fragmentos de coisas semelhantes a galhos. Há uma interação definida entre as texturas mais suaves e as coisas com linhas definidas. De algum modo, a combinação resulta na percepção correta. Com Ruysdael e Turner, se examinarmos a maneira pela qual pintaram águas revoltas, veremos que estas são pintadas claramente de uma maneira repetitiva. Há uma camada de tinta, e depois algo é pintado em cima disso, e depois são feitas correções a essa segunda camada. Os fluidos turbulentos para esses pintores são sempre alguma coisa com uma ideia de escala. Mondrian aponta o absurdo da lógica pedagógica imposta à arquitetura social. Mehretu capta tudo isto de maneira delicada, para que até eu compreenda.
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10.21 .14 .2 . Descrição Elefante: Eu realmente quero saber como descrever um elefante. Mas dizer que há um elefante aqui com tal densidade, e ao lado um outro com tal densidade - acumular essas informações assim detalhadas, parece-me pouco relevante. Não é assim, certamente, que os seres humanos vêem essas coisas, e não é assim que um artista deve vislumbrar a arte tampouco. De alguma forma, escrever equações diferenciais parciais é não ter estudado o problema. Procurando superar a prioridade, a arte combate a natureza no terreno próprio da natureza, e tem de perder. 10.21 .14 .2 .1 . Uma teoria da poesia que se apresenta como um severo poema, baseado em aforismos, apotegma e um padrão mítico bastante pessoal (embora inteiramente tradicional), ainda assim pode ser julgada, como tese. Tudo que compõe este projeto – parábolas, definições, o exame das proporções revisionárias como mecanismos de defesas – pretende ser parte de uma meditação unificada sobre a complexidade da operação subjetiva que preenche cada gesto poético em estado performático. 10.21 .14 .2 .1 .1 . Pode-se criar as obras mais espantosas; o enxame de neutros históricos estará sempre a postos, prontos para considerar o autor através de seus longos telescópios. Ouve-se logo o eco, mas sempre em forma de “crítica”, embora o crítico jamais haja sonhado com a possibilidade da obra um momento antes. Ela jamais vem a ter uma influência, mas apenas uma crítica; e a própria crítica não tem influência, mas apenas gera outras críticas, como um sinal de fracasso. Na verdade, tudo continua na antiga condição, mesmo em presença dessa influência: os humanos falam por algum tempo de uma coisa nova, e depois de outra coisa nova, e nesse interregno fazem o sempre fizeram. A formação histórica de nossos críticos os impede de ter influência no verdadeiro sentido – influência sobre a vida e a ação.
10.21 .14 .3. A problematização formal é um sintoma geral da harmonia contextual do gesto poético. De algum modo, a maravilhosa promessa dos sentidos é a existência de coisas belas que podem expandir nossa experiência cotidiana de, digamos, lavar as louças como algo que nos eleva. Há coisas maravilhosas e atraentes em ser um lixeiro, e em virtude de nossos ofícios científicos e artísticos, queremos nos colocar em situações que nos movimentem a formação de sentidos sensíveis. Queria mesmo ver Vik Muniz produzir as obras da comunidade do lixão, ao invés de impor sua subjetividade valorante a estes, para então ver aonde isto levaria sua obra.
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10.22 . Aura Elefante:
Om. Resta-nos ainda resumir de uma forma esclarecedora as características da conversação genuína entre humanos e elefantes. Na sua forma mais elegante e concisa, a soma total da sabedoria de Ganesha não é encontrada diretamente no trovão silencioso dos cantos elefantinos, nem nos poemas de Kabir, porém numa única sílaba ressonante tal como um instrumento da mente (mantra), Om. O elefante se sente minúsculo perto do universo, ouvindo-o tremer em seus pés... sem chão firme ele canta-se como um humano agarrado a uma baleia. Om é o universo inteiro, tão absurdo como E=mc2. O discurso é a essência da mente humana, a obra é a essência do discurso, o projeto é a essência da obra, a sigla Om é a essência do projeto. 10.22 .0. Na conversação genuína, o voltar-se para o parceiro dá-se numa verdade total, ou seja, é um voltar-se de si. Todo aquele que fala tem aqui em mente o parceiro ou os parceiros para quem se volta enquanto existência própria de pessoa, aqueles que realmente nos escutam. Entre os elefantes é ainda mais assim, pois que eles não usam subterfúgios para gerar desculpas e sua comunicação se dá no campo do contato direto. Os sentidos que fazem a experiência e o fantasismo real que completa os resultados por eles encontrados em conjunto, para que o outro se torne presente como pessoa total e única, como precisamente a pessoa que é. Aquele que fala, entretanto, não somente percebe a pessoa que lhe está assim presente, ele a aceita como seu parceiro na criação de uma entrescuta. Esta criação é difícil e dolorosa quando com pessoas que não estão na mesma condição de abertura aural, mas esta confirmação da identidade da escuta do outro não é uma aceitação da mesma. 10.22 .0.1 . Para a criação de uma conversa genuína, é preciso trazer-se a si mesmo o máximo de tempo para dentro de cada palavra do que é dito. Um exercício de sinceridade e humildade quanto aos próprios limites, aos limites do outro em relação ao objeto da conversação. E isto significa que em cada ocasião ele faça a contribuição sem redução, sobrecarga ou desvio. Mesmo pessoas de grande honestidade julgam que não são obrigadas a dizer numa conversação tudo o que elas têm a dizer. Mas na grande fidelidade, que é o único espaço possível para a conversação genuína (a dádiva comunicacional da arte), a palavra trabalha em prol do objeto a ser pensado coletivamente pelo sujeito que é a própria conversação. A franqueza é o oposto de um tatear a esmo, pois depende da legitimidade do que pode e deve ser dito. O dizer ao mesmo tempo natural e artístico, processo e produto.
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10.22 .1 . O delírio da explicação: Comunicações antropoelefantinas. O trovão silencioso. Eu não encontraria jamais sentença tão primordial. O elefante de sabedorias, uma rede de gnoseotecas. Tremular diante das infintensas harmonias entre automóveis em altíssima ressonância pela arquitetura neoclássica de gesso e vidros blindados. Os próprios prédios tremem com o vento, como sequóias. Os onibus coletivos, cavalos de Tróia e navios negreiros, pessoas sendo maltratadas e jogadas em países estrangeiros contra um exército inimigo, criado de forma semelhante, transportadas em caixotes. Nada é mais desonroso para um guerreiro que este tipo de batalha. Batalha não, extermínio. Marx, contista. Num livro todo rabiscado: Cada momento pode ser tocado sozinho na próera ou sobreposto a outro e outros, levando a um caso máximo desse libreto. Personagens sonoros que variam de acordo com a interpretação de cada instrumentista. Podemos tocar nossos afetos pessoais com relação ao tema, apenas. Há quem vá preferir seguir linearmente a ação dos fatos que constam na história. Haverão discussões sobre conceitos específicos para que possam compreender bem mais do que esperaríamos. Há manadas estéticas, sabemos. 7 Bilhões de escutas soando a Birkhoff porém, demandam no mínimo 7 bilhões de complexidades. As sete vezes sete encarnações de Bhraman em 777 pinturas neobarrocas. 10.22 .2 . Necessidade de Testemunho: O artista não é um simples espectador, pode querer falar ou até mesmo agir (como no caso do cineasta se declarando contra o massacre na favela). Em decorrência de sua profissão de fé, ele está próximo do teatro de operações. Assiste ao deslocamento dos condenados pela política monetária, vê os cadáveres de perto. Esse espetáculo é tão insuportável que sua arte e sua vida precisam falar, mesmo que se coloquem em risco. A discrição artística demanda o grito justo para o silêncio dos inocentes. Para além de sua função, em certos casos, inclusive, por causa desta o essencial se torna testemunhar, como se pode observar nas obras documentais. 10.22 .2 .0. Não conseguirei saber em que momento a música se afastou de mim. Toda coisa sonora, um belo dia, deixou-me o coração sem gosto. A muito custo aproximei-me por rotina dos instrumentos. O que era para mim o fim do mundo, a revelação sacra, tornou-se uma distração insuportável perante o sofrimento do mundo e sua verdade. Minha apatia perante as injustiças tornaram até mesmo meu silêncio podre. Tenho agora os dedos vazios e a boca cheia de vozes. Olho a luz e seus cantos, chamo o caos pelo nome. É por seus gritos que gosto do fogo. Em toda parte encontramos esse zumbido próprio à luz elétrica no mundo, sem nunca imaginarmos esta real energia viva na prisão que lhe encarceramos.
10.22 .2 .1 . Testemunhar o mais rápido possível, para que “façam alguma coisa”. As obras de arte se revoltam assim, tanto um testemunho quanto uma atitude positiva na mudança da concepção espetacular concernente a este certo foco social. O minimalismo pode ser visto como um testemunho das técnicas de hipnose subliminares no cerne da música consonante. Mas acredita-se nestas obras ou elas desviam a atenção da causa para si mesmas servindo de cooptação simbólica para o próprio sistema da arte já englobado sob a égide da cultura? 10.22 .2 .2 . Entreaudível: Admitamos que os depoimentos concernindo a todos os massacres em curso não representem o papel esperado de pedidos de socorro para que se evite o pior. Tais testemunhos não podem ter a pretensão de agir no presente: eles ficam para esta outra história porvir, para a memória, infecção cultural atestando nossa tragédia, decorrida no tumulto do mundo e negada pela surdez contemporânea embebida neste gregarismo da ignoração feliz e voluntária. Existe uma verdadeira volúpia do conformismo, de fazer número, de fazer massa com os outros. O consumismo não tem vocação civilizadora: sua única virtude, por certo imensa, é a de nos fazer relaxar, é ser um remédio para as tensões e para a solidão. Mas também nos atira aos remédios e à solidão. 10.22.3. Modelo de Cooptação: Observamos uma gradação do processo de hegemonia homogeneizante, em suas dinâmicas específicas de competitividade, indo até o extermínio da variável cultural: A sedução ou chantagem social, a ameaça de subsistência e o controle dos meios de vida, a coação violenta ou assimilação forçada, o filtro de comunicação e de troca, o ostracismo e a omissão, a difamação, a expulsão das redes de produção, a depuração dos conteúdos permitidos por tabu e por fim o incentivo totemizante.
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10.22 .3.1 . A arte não almeja jamais cooptar, mas ironiza este processo de diversas maneiras. Sua ação é indireta, pois não visa alcançar seus objetivos eliminando esta ou aquela categoria de símbolos, mas influindo sobre a subjetividade do controle menticida. Como a força política das artes advém de sua proliferação simbólica, ela tem sido calada para não exercer o papel de formadora da subjetividade coletiva. É impossível se pensar numa arte (mesmo no terrorismo) sem espectadores. A presença de espectadores profissionais, multidões de críticos de arte, é o que mais precisa a arte atualmente. Reiteramos a necessidade de se pagar às plateias de arte, de se formarem escolas de apreciação artísticas (diletantismo), de se mudar o foco da produção de mais produtos culturais musicais para uma composição da escuta. 10.22 .4 . Modelo de Intervenção: Observamos um processo ruidístico de intervenção artística, em suas ironias ao sistema competitivo das artes, indo até a proliferação da iniciativa: Como definir quem e em nome de que age? Ação com a finalidade de conquista de território simbólico, de domínio político-estético ou de purificação? Quais os interesses e sua conjectura, há fins lucrativos ou é desinteressado? Qual escolha do alvo local e simbólico para o gesto, avaliação dos atingidos de fora do alvo? Como é construída a figura do espectador que resiste ao que é dito? Qual seu universo ideológico? Quais as modalidades de ação? Pode-se com clareza decompor a ação em fases ou é sincrônica? O que nos ensina a natureza das mídias escolhidas? Que tipo de postura tem com relação ao tipo de resistência espectadora? Qual a contextualização temporal do ato? Houveram sinais precursores? Se desenvolveram respostas? Quais os efeitos políticos e midiáticos? Qual o entranhamento do gesto na cultura? 10.22.5. Performance Elefante: O artivismo e a performance (a música ruído inclusa) são a prática de uma cooptação avessa, em clara estratégia de contrapoder simbólico, de resistência a uma política mercadológica que atua sobre as sensibilidades. O que se chama de arte-terrorismo é na verdade uma estratégia de insurreição de outros modos de experiência vital para além da produtividade desenvolvimentista que cria a cultura da competitividade. De um lado, trata-se de uma insurgência contra um sistema odioso, de outro trata-se de se auto-insurgir, no sentido em que se espera que a prática desta apresentação de um suplício (massacre de si e de “nós”), possa disparar uma dinâmica emancipadora das massas.
10.22.5.1 . A cooptação contra a cooptação é uma ação com efeito impulsor, não exclusivamente, por clarificar os bloqueios simbólicos, mas também de possibilitar um desbloqueio de simpatizantes e novos militantes, que se mantinham presos à lógica de alienação do entretenimento por falta de opção, favorecendo uma multiplicação dos processos subjetivos de autonomia e responsabilidade criativa. A performance e a arte interventiva se aproximam do terrorismo no ponto em que ambos são uma forma extrema e decomposta de movimento social em que os agentes se afastam da experiência vivida daqueles em nome dos quais eles agem. O performer é um despacho. 10.22 .6. A Prevenção do Menticídio: Voltemo-nos, então, para o lado da esperança, quer dizer, daqueles que orientam os seus esforços para as medidas de prevenção e de educação para a liberdade. Observa-se, com relação a isso, uma evolução até animadora. De fato, dos dramas todos que o planeta vive, alguns produzem, às vezes, algo como um eletrochoque que cristaliza a formação de uma emergente consciência universal. Apesar da apatia geral e de um “sofrimento à distância” mais ou menos contemplativo, alguns artistas se transformam em verdadeiros agentes sociais, tornando-se empreendedores coletivos de uma obra comum visando limitar, jugular, atenuar as causas e os efeitos da competitividade subjetiva. A questão da prevenção educativa se tornou um importante tema de discussão na museologia internacional, mas seu discurso se apresenta como claramente positivista e em raríssimos casos é de fato levado a cabo sem interesses capitais subliminares, um exemplo nos parece ser a Afrika Operhaus. 10.22 .6.1 . Em Defesa dos Elefantes: Concretamente, as medidas de redução de danos previstas devem consistir, por exemplo, na sustentação de intelectuais antídoto que tenham coragem de assumir a posição contrária daqueles que alimentam a mercantilização subjetiva, em favorecer o desenvolvimento de uma mídia orientada para a cooperação, mais do que para o confronto competitivo e que se esforce em informar a população comum de que todo trabalho é arte e do destino que os aguarda, caso permaneçam passivos.
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10.22 .6.2 . De maneira mais geral, pode-se qualificar de preventiva qualquer ação política, social ou cultural que vise estabelecer ou reforçar os laços com indivíduos e grupos marginalizados (ou que corram o risco de o ser), escutar as instituições que os cercam e seus pontos de vista. Outra ação redutora de danos à cultura subjetiva atual consiste em alertar o mundo, pressionando quem tem poder de decisão na comunidade internacional à intervenção sistêmica. Com efeito, a arte já tem cumprido este papel de alerta, mas o que quase sempre falta é a vontade política e mercadológica de intervir nos modelos de produção. 10.22 .7. Agora ou Agora: Para suscitar essa vontade política, os partidários da intervenção redutora do sensibilicídio (o massacre da sensibilidade coletiva) devem utilizar-se pelo menos das seguintes ferramentas: Uma reação urgente é primeiramente legitimada em nome do próprio Direito Internacional. Em segundo lugar, o pragmatismo sustenta ser mais prudente intervir imediatamente sobre a crise simbólica e subjetiva global de modo a incentivar as iniciativas educativas e culturais autônomas em resposta à competitividade que gera violência íntima e social do que arcar com os custos gerados por estas consuquências que desembocam a médio prazo em conglomerações de ódio como os neonazistas, etc. Em terceiro lugar, a redução de gastos é clara e óbvia com o fim do assistencialismo em prol da autonomia dos povos. Este último ponto esbarra na ganância por mão de obra semi-escrava e aqui entra a necessidade de revisão dos sistemas mercantis e das redes de projeção das fantasias de poder impostas pela grande mídia. 10.22 .8. Ruidoterapia: Mas os resultados esperados têm se apresentado? Intervenções desse tipo também são vistas, por outro, como manifestações do pós-colonialismo (sobretudo na África), resolvendo apenas de maneira muito superficial os problemas, ou até contribuindo para piorá-los. Observam que tais intervenções raramente procedem de preocupações apenas humanitárias, vindas antes do cálculo e dos interesse que intervêm. E talvez aqui, e só aqui, a arte deva assumir seu único interesse social, seu egoísmo, seu desejo profundo pela beleza enquanto equilíbrio entre a justiça e a bondade.
10.22 .8.1 . Não se trata desta ou daquela beleza, mas de todas juntas, o que inclui feiúras incontáveis. As artes não correspondem aos modelos de validação das ciências médicas. Identificar as causas de uma harmonia contextual e histórica é sempre problemático e sujeito a vivas controvérsias, que devem ser cuidadas com respeito e escuta. O acontecimento artístico esclarece o seu próprio passado, mas dele não se poderia deduzir. A característica não-reprodutível dos acontecimentos pedagógicos e terapêuticos da arte, torna duvidosa qualquer tentativa de se aplicarem remédios conhecidos, já que o diagnóstico não pode ser idêntico. Se não levarmos isso em consideração, estaremos cedendo à ilusão experimentalista em sociologia. 10.22 .8.2 . Fomentemos as artes e o diálogo de artistas mundo afora e lhes demos força de criação de espaços de cultivo simbólico, mas não acalentemos ilusões quanto aos resultados. O artista empoderado pode facilmente se tornar um administrador que não divide o poder com aqueles que o empoderaram também. É duvidoso que as iniciativas preconizadas, sejam elas modestas ou ambiciosas, tenham realmente os efeitos esperados. A arte trabalha com dimensões de harmonia subjetiva que ultrapassam as necessidades pragmáticas, um artista poderia por tudo a perder de um projeto grande que ajudaria a cidade toda porque um político lhe olhou com desdém por um segundo, sem que ninguém tenha percebido. A hipersensibilidade dos artistas deve ser levada em consideração como seu dom e maldição, por isto devem ser ouvidos. 10.22 .8.2 .1 . Os artistas que procuram ter uma função de antídoto para os discursos de competitividade seguramente agem de boa-fé. Mas é possível também que, sem querer ou por inabilidade, seus argumentos acabem jogando mais lenha na fogueira, ponde mais pessoas contra a sensibilidade e o conhecimento. Da mesma maneira, a eficiência das sanções econômicas contra estes por motivos políticos podem ter efeitos nefastos na subjetividade local e global.
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10.22 .9. Uma Estética da Responsabilidade: Trazer à baila tais críticas deveria, então, levar à desistência de qualquer iniciativa, imobilizando-se todos os agentes, por imaginarem os efeitos negativos potenciais, contrários aos objetivos principais do processo estético? É claro, cada situação de competitividade subjetiva tem, em geral, uma complexidade que frequentemente paralisa e é essencial demonstrar prudência e clarividência. Para o espectador, muitas vezes, é fácil criticar aqueles que tentam “fazer algo”, em nome da própria complexidade que cabe a seu papel decifrar. 10.22 .9.1 . O espectador que critica, porém, já está “fazendo algo”. Diante de todos os riscos ao espírito humano, não agir, no seu caso, é insustentável, pois preconizaria o imobilismo contemplativo das desgraças do mundo. O conforto da inação do espectador é uma opção suicida para os sentidos a curto prazo e para toda a espécie a longo. A arte ocorre quando o desejo por beleza se choca com o dever de agir. O poder se alimenta do desejo porque enseja o desejo de poder na irresponsabilidade e do abandono das relações com os outros. 10.22 .10. Patrimônio da Humanidade: Os processos globais de criação da assim chamada “indústria criativa” vem balizar o pensamento competitivo de produção industrializante do capitalismo cognitivo, em consonância com a administração da subjetividade através dos “direitos autorais” e da censura “da maioria” dos meios de comunicação em massa. Um processo de redução de danos cognitivos e sensíveis deve passar pelo mantenimento de uma rede crítica de espaços de cultivo simbólico-relacional abertos, livres de pressões mercadológicas e de regras culturais pré-definidas. A arte e todos os artistas devem retomar seu papel, com as enormes responsabilidades envolvidas na produção simbólica e subjetiva, de patrimônio universal da espécie humana. 10.22 .10.1 . Qualquer um que queira ser artista não deve se preocupar com a sobrevivência, estando livre para a produção subjetiva livre. Sabemos que numa cultura da obrigação é difícil compreender que alguém sobreviva sem trabalhar, mas a resposta é simples: o artista limpa a sujeira subjetiva dos espíritos causada pela indústria da propaganda ao mesmo tempo que busca soluções práticas aos problemas gerados pela industrialização. O artista deve ser pago para não fazer propaganda, mas me parece óbvio que alguns espertalhões fariam ambos. E aqui encontramos o impasse atual da política cultural em relação à ciência política da arte.
10.22 .11 . Arquétipo, A Espécie das Origens: As descobertas de Carl Gustav Jung a respeito do inconsciente coletivo são reveladoras quando atravessadas das de Charles Darwin. A evolução simbólica dos ancestrais arquétipos ocorre por clades através dos taxons da semiótica. Se Kierkegaard junta o tremor de Orfeu ao temor de Abraão na epifania da brandura, Jobim religa-o a Masias e Príapo, enquanto Cocteau o faz uma espécie de Magritte futurista. 10.22 .11 .1 . Uma rede de táxons comparáveis possível: Os domínios estéticos são arbitrários conforme a abordagem tomada sobre os objetos e objetivos da observação. Os reinos matêmicos se referem à lógica mineral, à gramática vegetal e à retórica animal. Os filos linguísticos são conjuntos de leituras sobre símbolos vitais que partilham certas características evolutivas comuns, tais como: antropológicas, cognitivas, aplicações, computabilidades, históricas, neurológicas, psicossomáticas, sociopolíticas, transcendente-ritualísticas. 10.22 .11 .2 . As classes de línguas e os modos linguístico (semiose e semiótica) são importantes pontos de observação para diversas áreas da semibiótica, como na botânica gramática de variações locais (gírias e dialetos), na comparação de crescimento fúngico ideológico, na observação de lógicas não-locais como nas libras. As ordens semiológicas variam de acordo com a cladística estética proposta e em geral tratam dos sinais de diferenciação no interior de uma classe, tais como: sintagmas e paradigmas. As famílias semânticas estudam os modos de relacionamento icônico-social das estruturações de utilizações linguísticas e simbólicas, tal como os teores poéticos e passionais de uma linguagem de programação.
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10.22 .11 .2 .1 . Os gêneros sintáticos apontam os usos simbólicos dentro de um contexto específico e as reverberações deste gesto significante na sentença do índice. As espécies morfológicas de signos, sua tipologia hermenêutica agupam um conjunto identitário de fruição e produção que partilham um conjunto muito alargado de características estéticas correlacionadas, um semisímbolo com elevadíssimo grau de comunalidade e uma proximidade filogenética muito grande, refletida pela existência de ancestrais arquetípicos comuns muito próximos. O cultivar de meios híbridos designa um cruzamento genestético entre duas espécies sígnicas, que geralmente estão poibidas de se encontrarem devido a suas ideologias incompatíveis. 10.22 .11 .2 .2 . Realismo Histeórico: Na medida em que a informação é apenas uma palavra imaginosa para a imprevisibilidade significante de um sistema simbólico complexo, essa concepção simplesmente corresponde à criação de “mais-complexidade” (mais-valia significante). Intuitivamente, parece haver um sentido claro no qual os sistemas, em última análise complicados, estão gerando informação. Há bilhões de anos havia apenas bolhas de forma; agora estamos aqui humanos e elefantes. No desenvolvimento da mente de uma pessoa, desde a infância, as informações não são evidentemente, apenas acumuladas, mas também geradas - criadas a partir deligações que não estavam ali antes. Que tipo de processo contextual demanda a criação de um novo modo de artear, de um novo modo de escuta imprevista? O revisionismo amnésico da história, compactuando com a falsa inocência do indivíduo que o mantém no infantilismo irresponsável, tem ainda o efeito colateral de diminuir as possibilidades de experiência sensível coletiva.
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10.22 .11 .2 .3. Cibernética Elefante: A opção é sempre a mesma: Podemos tornar nosso modelo mais complexo e mais fiel à realidade (náusea rusical), ou podemos torná-lo mais simples e de uso mais fácil (pósp de Zappa). Os cartógrafos ressaltam os aspectos que seus interlocutores desejam. Qualquer que seja seu objetivo, mapas e modelos devem simplificar tanto quanto reproduzem o mundo. O modelo ideal de um sistema dinâmico complexo, e portanto a pedra de toque de qualquer abordagem da complexidade é o corpo humano, o ‘órgão sem corpos’. Nenhum objeto de estudo ao alcance dos físicos oferece tal cacofonia de movimentos contra-rítmicos em escalas que vão da macroscópica à microscópica: movimento dos músculos sinestésicos da obra, dos fluidos de informação, de correntes históricas, de fibras estilísticas, de células simbólicas. Nenhum sistema físico prestou-se a um ramo tão obsessivo do reducionismo: cada órgão artístico tem sua microestrutura política própria e sua química poética peculiar, e os alunos de fisiologia aurática passam anos estudando apenas os nomes das partes. Bachianas. 10.22 .11 .2 .3.1 . As Elefantinas não são As Paquidermes: Não obstante, como pode ser difícil chegar a estas partes harmônicas! Em sua formação mais concreta (acordes ou paletas de timbre, por exemplo), uma parte do corpo pode ser um órgão aparentemente bem definido, como o fígado trítono de fole, ou pode ser uma rede semântica, espacialmente desafiadora, de sólido e líquido como o sistema vascular (ph do concreto), ou ainda ser um conjunto invisível, realmente tão abstrato quanto “tráfego” ou a “democracia” (tráfico ruidocrático), como o sistema imunológico (contra as impregnações meméticas), com seus linfócitos e mensageiros T4, uma máquina de criptografia miniaturizada para decodificar dados sobre organismos invasores.
10.22 .11 .2 .3.2 . Estudar esses sistemas sem o conhecimento detalhado da anatomia geral (da poética pessoal em sua harmonia contextual) e sua química (harmônico-hormonal) é inútil, razão pela qual os especialistas do coração estudam as pulsões cerebrais e hormonais, e os artistas não podem se dar ao luxo de separar arte-ciência-política. O corpo-ser-órgão surge cada vez mais como um local de movimento e oscilação e buscamos entender suas batidas a-rítmicas. 10.22 .11 .2 .3.3. Estecnética: A Central de Escrutínio, desmonta o sistema de aquisição de orgias no seio do rock. O humor deste gesto torna difícil a formalistas que percebam onde a cacofonia remonta ao princípio de iniciativas posteriores de responsabilidade social, tal como o ISO 26000. A negação de sentido político na obra de Jonathan Meese segue o mesmo princípio, mas já de maneira tardia e decadente. Mandell apontou um ponto cabal quanto à experiência da matemática não-linear conjunta à biologia e à neurociência: “Quando chegamos a um equilíbrio em biologia, estamos mortos. É possível que a patologia matemática, isto é, o caos, seja a saúde? E que a saúde matemática, que é a previsibilidade e a diferenciabilidade da estrutura contextual, seja a doença?” Músicas são cristais de fumaça. 10.22 .12 . Redução de Danos Semióticos: Se, como elucidou Bergon, cada segundo está prenhe de infinito com suas possibilidades potenciais, a evolução criativa nos depara com a responsabilidade de cada instante. A teoria darwinista e os consequentes usos ideológicos da mesma (em grande parte por autoproclamados criacionistas) serve de exemplo ao fato de que no começo dos processos há espontaneidade e então a natureza se auto-organiza e se sedimenta em leis que são resultado do tempo e da evolução. A arte é o início de processos culturais em legislações estilístico-ideológicas mantidas por guardiões de portões e agendas de programação subliminar.
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10.22 .12 .0. Uma comunicação não violenta sente um cheiro de continuidade entre as esferas pessoal, inter-pessoal e social, e proporciona formas práticas de intervir nelas a partir do estabelecimento de relações de parceria e cooperação em que predomina comunicação eficaz e com empatia enfatizando a importância de determinar ações a base de valores comuns. Uma escuta compassiva demanda uma comunicação não-violenta. É preciso para tanto que se façam algumas distinções: entre observações e juízos de valor, entre sentimentos e opiniões, entre necessidades (ou ideologias) e estratégias, entre pedidos e exigências/ameaças. Assim podemos iniciar um processo de redução de danos da inteligência coletiva. 10.22 .12 .0.1 . Pranarquia Semibiótica: Um artista que pense nas (obras de) artes como regiões de limites imprecisos, separadas e ao mesmo tempo sobrepostas, atraindo como ímãs e apesar disso deixando escapar, naturalmente se voltaria para a imagem de um espaço de fase com “bacias de atração”. Esses modelos parecem ter as características certas: pontos de estabilidade misturados com instabilidade, e regiões com limites mutáveis. Sua estrutura fractal oferece o tipo de característica infinitamente auto-referencial que parece crucial à capacidade que tem a mente e os sentidos de florescer com ideias, decisões, emoções e todos os outros artefatos da consciência. 10.22 .12 .0.1 .0. Com ou sem elefantes, já não podemos fazer desta estruturação artística um modelo estático. Reconhecemos uma hierarquia das escalas intercambiável, a cladística semibiótica. O padrão nascido em meio à ausência de formas: essa a beleza básica da biologia, e seu mistério. 10.22 .12 .0.1 .0.1 . A vida suga a ordem de um mar de desordem, tal como a linguística suga a poética de um mar de símbolos. 10.22 .12 .1 . A inteligência coletiva é um processo que iniciou com os mamíferos em geral (tal como os elefantes), mas nos humanos consegue transmutar em paradigma molecular de um modo linguístico em si mesmo, este é então posto a combater consigo mesmo por motivos de desejo de conforto e poder, para então ser compreendido como um ponto de intersecção significante geral. O que é interligar coleções de transsi?
10.22 .12 .1 .1 . Inteligência distribuída em código aberto por toda a parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em mobilização efetiva das competências. Acrescentemos à nossa definição este complemento indispensável: a base e o objetivo da inteligência coletiva são o reconhecimento e o enriquecimento mútuo das pessoas, e não o culto de comunidades fetichizadas ou hipostasiadas. Uma inteligência distribuída por toda parte: qual um axioma evoluindo-se em vetor de movimento. Ninguém sabe tudo, todxs sabem alguma coisa, todo o saber está no mundo e nós ainda mal falamos com nossa própria espécie para nos arrogarmos da honra de compreender as manufaturas simbólicas animais, vegetais, minérios ou fluxos energéticos. Isto mostra o quanto este projeto é demagógico, tal qual havia se proposto desde o princípio. 10.22 .13. Genestética: A metalinguagem econômica da informação se propõe a programar os intuitos programadores chegando ao limite cladístico (poliparafilático) da cognovertigem complexista. Atualmente, os cientistas estão tentando recriar o mamute, animal pré-histórico, através de inseminação artificial de sêmen destes animais (que foram encontrados congelados em algumas partes do planeta) em fêmeas de elefante, que são seus parentes modernos. Esta retroalimentação de um sistema (biológico neste caso, mas bem poderia ser simbólico) pela sua própria influência genestética ancestral, em que resulta? Em nenhuma das duas espécies, mas numa terceira. O Elefante de Marfim (híbrido sintético) nos convida a ter uma atitude responsável frente ao imenso fluxo de informação numa interoperabilidade semântica de reflexão coletiva. Ganeshética, a única fartura verdadeira é compartilhada entre todxs. 10.22 .13.1 . Arte enquanto processo autopoético: Surgimento intempestivo de uma cladística entre a etologia ética e a biosemiótica culturante, uma etonomia (autonomia do modo de ação). Preciso aclarar que a justificativa conceitual veio após o libreto e a partitura, mas que por motivos da separação das três redes de interato da próera me vi obrigada a colocar junto ao projeto. Marcos sobre o Umwelt são tudo que interessa a um animal, tal como a lógica e a gramática só interessam ao retórico na medida de transmissores de ideologia. O generativo da arte é aquilo que nela não é estético (regimentável), porque é justamente sua capacidade de superar as explicações simbólicas em prol de outra, operacional, sem no entanto perder sua abertura para o simbolismo. Seu artifício geral é o de uma abertura tanto para a análise contínua das experiências sem perda da intensidade pática quanto à síntese superficializante, da simetria e da assimetria em dinâmicas infralógicas, bem como de um ponto de vista comportamental e(ou) de pontos de vista cognitivos recursivos sempre em complementaridade. Seu modo de gênese gera uma categorização das características sistemáticas e representações de sincronia e diacronia entre sistemas distintos com critérios precisos de distinção entre observadores e comunidades observadoras (espectador e plateia), além.
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10.22 .14 . Tulpa: A cultura ancestral tibetana já nos prevenia que todo símbolo é uma criação subjetiva. Uma leitura óbvia do atual ponto de inflexão da complexidade dinâmica faz crer que tudo perde energia para manter sua singularidade, a segunda lei da termodinâmica. A aura é este calor próprio que um gesto poético desperdiça, eis a inutilidade da arte. A eficiência perfeita do aparato simbólico-técnico, o utilitarismo perfeito e o divertimento pleno dos sentidos é impossível. 10.22 .14 .1 . Os sistemas de pensamento físico tem que reflexos sociais quando tudo tende para a desordem da eterna complexificação biológica? A complexificação populacional no caso específico da vida não é sinônimo de desintegração (social), decadência (experiencial) ou das tantas outras modulações sobre o tema da decadência própria a estes indivíduos. As obras subjetivas são antes projeções individuais sobre um campo coletivo. Quem de menos de cem anos quer falar sobre os milhares de anos da espécie, se perde nas dinâmicas dimensionais das escalas, Igitur. 10.22 .14 .2 . A física linear projetou a indústria linear que tornou a complexificação destrutiva com sua representação social do funcionamento cerebral. Um Tulpa depois de criado (que pode ter o formato que você desejou) não está totalmente preso a sua vontade. Assim como uma criança obedece a seus pais na infância e depois passa a ter vida própria ao se desenvolver, o Tulpa em pouco tempo passa a demonstrar certos traços de rebeldia. Como lhes faltam conceitos básicos de humanidade, podem se tornar agressivos machucando ou até matando seus criadores. A biologia exponencial projetou a ecologia que tornou a linearidade obsoleta, mas ainda não nos deu uma representação subjetiva palpável do funcionamento afetivo. Tulpa. 10.22 .15. A entropia termodinâmica falha lamentavelmente como medida do variável grau de forma e ausência de forma na criação dos aminoácidos, de microorganismo, de plantas e animais que se auto-reproduzem, de sistemas de informação complexos como o cérebro de um elefante. Todos estes processos estão sob a égide da entropia, sim; mas as suas leis criativas estão em outros lugares. Nessa fase o Tulpa pode até ser enviado numa missão e não retornar, seguindo “vida própria”. Na maioria dos casos o Tulpa desaparece frente a morte de seu criador, porém existem relatos de criaturas cujo poder de criação foi tão forte que sobreviveram a isso. 10.22 .15.1 . Uma filosofia da composição (não da psicogênese) é necessariamente uma genealogia da imaginação, um estudo da única culpa que conta para um poeta (Oefro), não poder voltar atrás. Não é particularmente agradável encarar a poesia, em sua expressão mais forte, como a bem-sucedida sublimação de nossa agressividade simbólica, mais ou menos como se uma ode fosse da mesma família que os cantos de triunfo dos gansos descrito por Lorenz. Mas eis, a sublimação poética.
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10.22 .16. A natureza forma padrões. Alguns são ordenados no espaço, mas desordenados no tempo; outros, ordenados no tempo, mas desordenados no espaço. Alguns padrões são fractais, evidenciando estruturas auto-semelhantes em escala. Outros dão origem a regimes estacionários ou oscilantes. A formação de padrões tornou-se um ramo da física e da ciência dos materiais, permitindo aos cientistas formular modelos de agregação de partículas em aglomerados, da difusão fractal das descargas elétricas, e do crescimento dos cristais no gelo e nas ligas metálicas. A existência dos Tulpas poderia explicar diversos Casos Sobrenaturais. O tal Bicho Papão pode ser nada mais nada menos que uma criação mental inconsciente do medo de uma criança frente à escuridão, uma explicação microcósmica dos ácaros. Percebeu que você passa a se sentir vigiado ao ver ou ler alguma história de terror que realmente te assuste? E se nesse estado você esteja criando um Tulpa de forma inconsciente e esteja a um passo de materializar seus medos? E se a ciência molecular mesmo seja uma forma de Tulpa projetado sobre campos de forças mutáveis, que se modificam conforme o observador? Os flocos de neve nunca repetem seu desenho. 10.22 .17. Metasimbolismo: Argumentamos que enquanto os signos são inventados e esquecidos, os símbolos vivem e morrem. Signo de status, marfim. Há, portanto, símbolos vivos e mortos. Um símbolo vivo pode revelar níveis escondidos de significado e de realidades que trancendem o indivíduo. O símbolo sempre aponta afora de si a algo que é inquantificável e misterioso, é um meta-qualia (enquanto o número é um meta-quanta). O elefante é um símbolo. Esta é a dimensão de profundidade de um símbolo. Os símbolos são a própria complexidade do pensamento e seus significados podem evoluir enquanto os indivíduos e as cultura evoluem. 10.22 .17.1 . Quando um símbolo perde seu significado e poder para um indivíduo ou cultura, ele se torna um símbolo morto. A arte é um símbolo morto. Vivemos num sistema simbólico morto e de extermínio das realidades simbólicas. Quando o símbolo se confunde com o contexto cultural ao qual se refere, se torna idólatra enqunto é “tomado como realidade”. Aqui, o símbolo é substituído pelas profundezas que ele se convém a ocultar. A única natureza simbólica é aquela que dá acesso a camadas mais profundas da realidade, de outras formas inacessíveis. 10.22 .18. Ecumenismo e Apostasia: Num certo sentido, todo símbolo sagrado é contra a separação em seitas. O símbolo é contra-igreja porque é a favor da religião (reconexão) de todas as formas de saber e amar, de todos os símbolos, de todas as igrejas. O símbolo é portanto, ecumênico e apostasia. O Ano do Elefante é esta abertura simbólica, os sufis sabem que o Islam é também uma ídolo. Uma pintura representa ou interpreta, o símbolo os dois.
10.22 .19. Interfé: De tempos para cá, se tornou costumeira a expressão “gestor de redes” e “redes em rede“. Por gestão de redes se entende a atividade de ligar os pontos e trançar os fios do que passa a ser uma cadeia produtiva. O gestor opera como um agregador dos múltiplos nós produtivos da economia da cultura. Pastor gestor, redes rebanhos. Por um lado, gere o fluxo de equipamento e trabalhadores (gestão de cultos eventos, carreiras, plataformas, etc.); por outro, o fluxo do dinheiro (editais, patrocínios, investimentos, lucros, paraísos artificiais). 10.22 .19.1 . Na música, por exemplo, significa articular bandas e orquestras, o palco da igreja, casas de concerto, plataformas, equipes técnicas, promotores, produtores, publicitários, textos estéticos que embasem o viés carismático... Essas conexões compõem uma rede que o gestor simbólico administra, promovendo o empreendedorismo dos participantes e sob o guarda-chuva de uma marca ideológica: a igreja. 10.22 .20. A Marca da Igreja, por sua vez, é construída como um modo de engajamento de seus trabalhadores (tal qual no museu com de arte contemporânea), um jeito característico de trabalhar, vestir-se, negociar, em suma, uma ética e uma estética, uma forma de vida: um coletivo. O objetivo deste concerto passa a ser implementar a marca até se obter um conglomerado de redes, integradas ou “parceiras”. Funciona como um brand management, pelo qual se aplicam e aperfeiçoam processos e técnicas de marketing, determinados pelas oportunidades (e ameaças), com vistas a expandir, controlar e conservar os mercados. O processo vai produzindo sinergia e se constituindo como mercado (cultural) flexível, eficiente, sinergético, em suma, livre como na expressão livre mercado. Tudo isso se ensina tranquilamente nas faculdades de economia ou administração. A cultura é uma religião e a religião é um mercado: lojas maçônicas.
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10.22 .20.1 . O Charlatanismo de Mãe Duschampa: O comum, na esteira do marxismo operista, da filosofia da diferença e da antropologia canibal, é uma organização política das relações produtivas, materiais e imateriais. Não só como modalidade de convivência, cooperação e produção, mas também como base material para a auto-formação e auto-valorização do trabalho do espírito, das redes colaborativas, da criação de formas de vida a partir de formas de vida, da constituição antropofágica de perspectivas de mundos além do capitalismo. O comum está além do público-estatal e do privado, como esfera transversal onde cultura, economia e política se amalgamam gerando potências de vida: biopolítica e auto-valorização religiosa. Trata-se da ocupação intensiva do espaço e do tempo, sob outra gramática organizacional. Uma organização heterogênea que se constitui não para nivelar as diferenças, mas para produzir a partir delas, gerando novos entes e processos. 10.22 .21 . Banco de Cultura e Economia Kármica: Sob a perspectiva do comum, se podem abordar e elaborar estratégias para muitos campos políticos: a gestão de recursos naturais e da própria relação entre natureza e cultura; a produção e reprodução da vida social (saúde, educação, políticas a mulher, ações afirmativas); a geração, circulação, distribuição e alocação de energia, renda, conhecimento e direitos. Por outro lado, é preciso admitir que a constituição do comum não ocorre com a produção de um espaço homogêneo e consensual, como se superasse a luta de classe numa convergência definitiva. 10.22 .21 .1 . O comum é substância híbrida que não é eclética, mas atravessada por atritos e conflitos, caótica, e que troca energia a todo momento entre as divisões sociais e as pautas políticas, entre a materialidade da pobreza e a reapropriação da riqueza social. Ademais, o comum que interessa é necessariamente antagonista. Mas não é antagonista porque se opõe a alguma grande entidade chamada Capital ou Igreja Católica, ao qual devêssemos convergir para efetuar uma luta contra-hegemônica.
10.22 .21 .2 . Fora do Exú: O discurso olímpico da contra-hegemonia não questiona os símbolos de poder, mas se limita meramente a disputá-lo, numa prisão dialética. O comum antagoniza ao capital enquanto relação social, dentro da qual estamos todos, da mesma maneira que as relações de poder. Por isso, não tem cabimento dissociar fins e meios, o que geralmente está implicado no par estratégia/tática. A relação social do capital não pode ser combatida senão na afirmação de relações outras, além de seus rendimentos como métrica, exploração e subordinação produtivas. O comum, portanto, é menos o fim do caminho que o ponto de partida, é menos a saída da luta do que o próprio terreno onde a luta entre comunismo e capitalismo passa a acontecer. 10.22 .21 .3. Teleoevangelismo: Mas como se controla o trabalho em dinâmicas de comuns criativos e colaborativas? Qual é a tal diferença entre o capitalismo “analógico” e “capitalismo digital” (para usar um dos chavões binários dos intelectuais apologéticos do “pós-pós”)? Com efeito, o que muda é a exploração: o capitalismo 1.0 organizava a cooperação entre as forças produtivas para poder explora-las. O “comum” era assim “produzido” (e imediatamente subsumido) na divisão capitalista do trabalho (na relação salarial) e explorado indiretamente, por meio dessa divisão técnica. O capitalismo 2.0, ao contrário, explora diretamente o comum (a colaboração) que já existe, como condição prévia: o trabalho colaborativo entre as singularidades (os pontos). No capitalismo 1.0, a exploração determina a colaboração. Um paradoxo que emerge na ambiguidade dos temas do “emprego”. No capitalismo 2.0, a colaboração é condição da exploração e por isso pode acontecer por fora da relação de emprego, na precarização da relação salarial, no terreno da empregabilidade (workfare). 10.22 .21 .4 . Seguro-Inferno e a Irresponsabilidade Infantil: Tomando como exemplo os seguros, quando você paga o prêmio à seguradora, aparentemente faz um bom negócio porque transfere o risco de uma perda para a instituição. Porém, você perceberá que mesmo sendo um bom pagador e nunca precisando transferir perda alguma à instituição, o valor de seu prêmio continuará aumentando. Por quê? Porque a instituição repassará a você o valor das perdas que sofreu através dos maus pagadores e dos sinistros que teve de cobrir. Na prática isso significará que sua honestidade será punida enquanto o valor da desonestidade e do crime será repassada a você. A aposta de Pascal elevada à sua linguagem de programação de nível básico dá mais-valia à solidão da fé em relação à comunhão pela culpa.
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10.22 .21.5. A igreja enquanto modelo primário de empresa capitalista (o Sacro Império Romano como primeiro monopólio simbólico), neste cenário, não pode mais controlar diretamente a produção subjetiva. Porque, na economia cognitiva-sensível do conhecimento, a dinâmica do valor relacional (religio) está concentrada no capital variável do gesto poético-social. Noutras palavras, não está mais atrelada ao domínio dos meios de produção pragmática e das máquinas burocráticas de santificação, nas condições objetivas da produção de milagres, mas na própria subjetividade, na capacidade dos sujeitos cooperarem, criarem em conjunto e se reinventarem. 10.22 .21.5.1 . Estamos na era da chamada crítica cultural, que desvaloriza toda literatura, que degrada e rebaixa toda imaginação. A politização suprimiu a sagração da literatura com o espírito, de maneira próxima à laicização dos ritos. Assustados pela ordem social irracional, os operadores subjetivos, ou se tornam burocráticos ou subversivos, ou uma mistura das duas coisas, colhidos na ironia de que mesmo suas subversões textuais ajudam a promover o poder do Estado, um poder um tanto surpreendentemente tido como dependente da teatralidade da produção operística. 10.22 .21.5.2 . Reafirmemos o valor das operações subjetivas enquanto feitos estéticos, e não propaganda ideológica de nada, mesmo que as obras possam, e certamente serão utilizadas para servir ao interesse de Estados, classes sociais, religiosidades, de homens contra mulheres, brancos contra pretos, ocidentais contra orientais. Sempre haverão estes que simplesmente não compreenderão que a arte é feita de amor. 10.22 .21 .6. A vida como um todo é investida, à medida que a subjetividade atravessa não só o tempo de trabalho propriamente dito, mas as ações mais cotidianas, o dia-a-dia, a linguagem, a ética e a estética dos sujeitos. É por isso que, no capitalismo cognitivo, a produção social da religiosidade ocupa todas as esferas da existência: o lazer mata pobres, a educação aprisiona a dogmas, os eventos esportivos poluem, as relações amorosas reiteram vícios, a família é o centro dos preconceitos, o Estado Capital é deus, etc.
10.22 .21 .6.1 . Não nos admiremos das atividades da publicidade, isto é, a cognição sistemática dos valores de uso: conseguir enxergar valor a ser expropriado por (em) toda fé. Desta forma, buscam estes micropoderes baseados na ideologia hegemônica, subsumir as potências de vida em produtos vendáveis, em um imaginário ou em estilos de vida que determinada marca religiosa representa. A atividade do capitalismo cognitivo, por excelência, é o brand management (como as castas mahouts marcando rebanhos de escravos do turismo), que opera nas condições subjetivas da produção social do simbólico destituído da ciência semibiótica. 10.22 .21 .7. O orfismo é a religião poética, da memória, do conhecimento, da sabedoria. Religião aberta a todas as formas de experiências e de fés. Ascese erótica. Culto ao tempo como origem de tudo o que é. Tempo complexo, estilhaçado, corpo devorado por forças titânicas que geram o fogo perverso das obras apegadas ao autor, semente das metempsicoses que vão ter no ruído além do espelho. Desejar até a morte, carregar água na peneira. Semear o amor, mesmo com ruídos, insistir na beleza da bondade e da justeza. Cultuar a vida até a morte que jaz nas palavras. No final era o verso. Quem tiver ouvidos que cante-os: 10.22 .22 . Se nada disto te parecer relevante, ou te comova a cuidar dos outros no teu cotidiano e encarar a arte como uma profissão de fé, force tua imaginação e imagine uma enorme quantidade de cadáveres empilhados para formar uma escultura . Veja, escute, sinta o cheiro e toque, ao menos uma vez, em sonho (mesmo que desperto) um elefante de marfim.
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11. Carta da Autora axs Amigxs: Encontrei junto ao projeto uma carta manuscrita de Sofia Harmonia endereçada a um grupo de amigos a quem ela dedica seus empates e melhore inimigos. Sua caligrafia é harmônica e precisa. Achei por bem transcrevê-la para sentir a impressão de que por fim supero a necessidade de me tornar autor desta obra. Kalki Outis Rarxs, Antes de mais nada gostaria sinceramente de agradecer a inspiração que me foi concedida para realizar esta próera pelas pessoas que amo, suas singelezas e poesias cotidianas. Esta obra em nenhum ponto se trata da realização de um desejo, mas adveio da necessidade de agradecer a tudo que me ocorreu até agora e em perdoar-me pelos longos silêncios e intempestivos ruídos. Meu prazer está em cuidar das plantas que resgato no lixo, em olhar o mar e tocar as peles que me habitam os sonhos. Desde pequena um sonho me acomete: Eu sou um garoto autista com elefantíase na alma (como explicar a sensação deste mastigamento amorfo?) sonhando que desperta no colégio como uma mulher madura de trinta anos, nua. Pulo o muro e caminho pela cidade e, por conta de um ser luminoso caótico (que em infância chamava de “Pli-plis”), percebo uma horda de pessoas engravatadas com cabeças de animais me perseguindo pelo mesmo parque cinza. O chão parece que cede, às vezes vou ter nos subterrâneos. Talvez eu tenha sido um minerador em outra metempsicose, temo as galerias. Os carros se atiram sobre mim e me desvio porque dança. Fogos fátuos. Vou ter num prédio noveau (que tive a impressão de conhecer em Praga) e aquela multidão se aglomera pelas escadarias lideradas pelo homem elefante e vêm ter comigo no topo do edifício. Até este momento todas as criaturas agem com violência e furor. A partir deste ponto, o sonho se desdobra a cada vez que surge em minha vida (sempre em momentos precisos de mudanças). Às vezes o elefante me abraça, ou todos tomamos chá, ou me empurram ou como na noite de ontem para hoje, quando finalizei o libreto: levito. Este processo me foi de profunda angústia e revelação mas também de gozo e devaneio. Noites insones, solidões tépidas, a traição de amigxs, o resgate advindo de estranhos; mas também de iluminações e ampliações profundas e sinceras em minha sensibilidade e força vital. Abandonei-me e perdi o que me conectava ao mundo, senti uma enorme tristeza ao me deparar com as forças que me impediam de agir. Me sinto imensamente maior e mais conectada comigo mesma agora, mas isto não me tirou a tristeza profunda que sinto perante as formas que encontramos de convívio, nos nossos tratos cotidianos competitivos ou em âmbitos mais complexos. Tamanhos pesares e a imensa tristeza trazida neste projeto junto aos arroubos de inspiração e delícias, fizeram com que as iluminações e abismos tomassem o que em mim havia de contribuição aos meus irmãos e irmãs de todas as espécies. Que seja de serventia a vossas caminhadas e nossos encontros. Deixo este singelo gesto como despedida, abandono minha escravidão e meus ímpetos enquanto compositora. Desisto da música. Lhes peço com todo o amor que há em mim, que divulguem estes dados, levem isto às ruas de suas maneiras, não desistam da escuta nem pelo prazer nem pela dor. Pois por outro lado, e alguns de vocês acompanharam isto com pesar, venho sendo ameaçada de maneiras já não tão sutis como de costume. Começo a temer por minha própria vida, o que abala até mesmo meu desapego. Peço-vos que me esqueçam e permitam que a obra exista anonimamente. Amem-na como a todas as outras. Sigo, e quem sabe eu ainda veja com meus próprios olhos um elefante nesta vida.
Sofia Harmonia