2011: Ano Samora Machel

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2011: Ano Samora MachelCompulsando o que não se disse do comportamento político de Samora – 1 e 2 Tanto o homenageado como os promotores da homenagem são pessoas que viveram e vivem de falsidades. Nesta reflexão não nos propomos a inventar absolutamente nada. Propomo-nos, sim, é dizer o que outros temem em não dizer em público, porque entendemos que não basta afirmar que Samora Machel foi um ser humano como qualquer outro, e teve suas falhas, para de seguida se apontar apenas virtudes aparentemente positivas e não falha nenhuma. Os crimes de sangue que durante o seu reinado se cometeram em Moçambique não se trataram de simples falhas ou erros humanos quaisquer, como também se tenta reduzi-los. Foram crimes sérios, perpetrados, se não sob seu directo comando, no mínimo, sob sua cumplicidade.

Barnabé Lucas Ncomo/Canal de Moçambique Fevereiro de 2012 - Moçambique


2011: Ano Samora Machel Compulsando o que não se disse do comportamento político de Samora (1) Tanto o homenageado como os promotores da homenagem são pessoas que viveram e vivem de falsidades. Nesta reflexão não nos propomos a inventar absolutamente nada. Propomo-nos, sim, é dizer o que outros temem em não dizer em público, porque entendemos que não basta afirmar que Samora Machel foi um ser humano como qualquer outro, e teve suas falhas, para de seguida se apontar apenas virtudes aparentemente positivas e não falha nenhuma. Os crimes de sangue que durante o seu reinado se cometeram em Moçambique não se trataram de simples falhas ou erros humanos quaisquer, como também se tenta reduzi-los. Foram crimes sérios, perpetrados, se não sob seu directo comando, no mínimo, sob sua cumplicidade. Barnabé Lucas Ncomo Em jeito de introdução começo por referir que durante os longos dias do ano passado os moçambicanos foram chamados a ouvir e a recordar a voz do homem a quem se atribui as mais nobres virtudes de combatente em prol do “bem-estar social” dos moçambicanos! A Rádio oficial e a Televisão pública fizeram-se incansáveis trampolins da evocação da “heroicidade” desse homem em comemoração da passagem dos 25 anos do seu desaparecimento físico. Ouviram-se vozes das gentes habituais da área da cultura; politica; académica, etc. Ouviram-se vozes de escritores, amigos, aconchegados e correligionários de Samora; todos, a enaltecerem a grandeza da sua figura, com uns a afirmarem que “Samora foi um grande homem” e outros, de forma sorrateira, admitindo que embora tal seja verdade (grande homem), “durante o seu reinado cometeu algumas falhas como qualquer humano os cometeria”. Seguiram-se depois vários colóquios culturais; edificações e inaugurações por algumas cidades capitais do país das réplicas, em miniatura, da estátua gigante erguida na praça da independência em Maputo; etc., etc. Ora, sem dúvidas, nenhuma mácula se veria nisso se tal homenagem não encerrasse alguma falsidade dos que a promoveram, e o próprio homenageado tivesse sido, em vida, uma pessoa coerente consigo mesmo, isto é, um político cujos actos fossem consentâneos com o seu próprio discurso público. Tanto o homenageado como os promotores da homenagem são pessoas que viveram e vivem de falsidades. Nesta reflexão não nos propomos a inventar absolutamente nada. Propomonos, sim, é dizer o que outros temem em não dizer em público, porque entendemos que não basta afirmar que Samora Machel foi um ser humano como qualquer outro, e teve suas falhas, para de seguida se apontar apenas virtudes aparentemente positivas e não falha nenhuma. Samora: um homem diabólico e monstruoso Não duvidamos que se Liengme fosse hoje chamado para caracterizar a figura de Samora Machel fá-lo-ia com o mesmo tom mordaz com que o fez em relação a Ngungunhane. Diria Liengme que Samora foi um homem “diabólico e monstruoso”.

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Pois, igualmente como Ngungunhane, o comportamento político de Samora era, todo ele, “falso, absurdo e cheio de duplicidade, o que tornava difícil conhecer os seus verdadeiros sentimentos”. Se por um lado Samora era dotado duma enorme capacidade de retórica, por outro, é preciso afirmar que ele jamais usou tal capacidade em prol duma sociedade justa em Moçambique, onde todos pudessem se sentir livres e independentes. Usou-a para estabelecer no país uma sociedade submissa à sua própria vontade, e, quanto muito, à vontade de homens como o Marcelino dos Santos e uns pouco mais. Samora foi um homem que deturpou o conceito do próprio socialismo que dizia defender e a essência da independência nacional. Confundiu o seu egocentrismo com amor ao povo. Traiu a confiança de quem lhe pôs na direcção máxima da condução dos destinos dos moçambicanos. E quem o pôs em tão alto posto pode ser “o povo” – indo pela linha populista da própria Frelimo – ou os seus camaradas do Comité Central da FRELIMO em Maio de 1970. Desde então, por vontade própria, Samora deixou-se transformar numa espéciev moçambicana de Adolfo Hitler, Josef Estaline, Muammar Kadhafi e outros ditadores que o mundo conheceu. Samora foi uma espécie de “cão de guarda” que, uma vez ciente da nova condição social em que se encontrava, se pôs a aterrorizar o dono e a morder os filhos deste a ponto de todos acabarem por perder o seu controlo. Morreu ciente de que havia ido longe de mais. Muitos já não o queriam, pois ele é que era o obstáculo. Aliás, di-lo ele próprio semanas antes da sua morte. Na verdade, pouco tempo depois da proclamação da independência nacional, a euforia que arrastava de forma voluntária multidões para ouvirem Samora e outros dirigentes da FRELIMO em comícios deixou, praticamente, de existir. A brutalidade então oculta nos “lindos discursos” do presidente cedo se revelaria a ponto de os métodos civilizados de mobilização de massas deixarem de ser eficazes. O receio de não cair nas graças de quem mandava no país se instalou em cada esquina e na maioria das pessoas no país. Cedo, as pessoas se aperceberam de que, longe daquilo que o presidente falava em público, os seus actos e os actos dos seus representantes ao nível dos bairros, serviços e na rua, eram caracterizados por uma violência sem precedentes. Em resposta a este mal-estar instalado pela força de armas por Samora, o povo respondeu, de inicio, com a única arma que possuía: a apatia. Muitos cidadãos já não iam de forma voluntária para ouvir ou receber o Chefe do Estado nos aeroportos e estádios. A violência física; a desconfiança e a tortura psicológica por parte daqueles a quem se atribuíra a missão de chefia e administração da vida social nos bairros passaram a ser uma constante. Os Secretários dos Grupos Dinamizadores; a polícia secreta à paisana (SNASP), e até um simples indivíduo ostentando uma farda militar eram a lei e o terror de todos em nome da linha política representada superiormente por Samora Machel. Nas cidades, o simples uso de uma saia curta ou o andar aos beijos com a namorada num banco de um jardim público já constituía um crime de “lesa pátria”. As pessoas eram arrastadas para quartéis ou esquadras da polícia para aí serem punidos, cavando buracos para absolutamente nada, e voltar a tapálos, capinando ou lavando retretes sujas.

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Tudo sob pretexto de terem sido apanhadas a “fazerem corrupção”. Como se de crianças nas aldeias rurais em constante guerra aos passarinhos se tratasse, para além da indumentária que o identificava, em visita a familiares ou a namorada qualquer militar ou polícia saía fardado do quartel ou posto policial rigorosamente carregado de material de guerra, como se fosse a um assalto a uma base inimiga. Carregava consigo a sua inseparável AK47; um monte de cartucheiras de reserva abarrotadas de munições à volta da cintura, baionetas e granadas ofensivas. Os que nunca na vida estiveram em teatros de operações militares, a maioria dos quais crianças em idade escolar nas cidades vilas e aldeias, passaram também a saber que existe uma arma de fogo chamada bazuca, pois há quem não se separava dela mesmo em visita a tia lá no subúrbio. A inseparável bazuca tinha que estar pendurada a tiracolo, para simbolizar o poder! Na verdade, a situação no país de Samora transformou-se num constante policiamento a tudo e a todos, ao que a maioria foi respondendo com silêncios sepulcrais. Como resposta a este clima de apatia que foi-se instalando pela força da violência física e psicológica, Samora e o seu governo responderam com um método mais draconiano de “mobilização de massas” para lhes ouvirem nos comícios: a obrigação. Arregimentadas sob várias ameaças pelos Secretários dos Grupos Dinamizadores nas empresas, bairros e nas escolas, as multidões em audiência com Machel passaram a ser controladas como se de gado se tratasse. Descarregadas em autocarros e caminhões, as multidões dirigiam-se aos locais dos comícios sob olhares assustadores de elementos das Forças de Defesa e Segurança. À força, de baionetas e de fuzis, todos eram mantidos no interior do perímetro onde decorriam tais comícios sem que se lhes fosse permitido abandonar o recinto antes que o presidente ou o dirigente acabasse o seu discurso. Mesmo que um desarranjo intestinal o exigisse, o mais importante para Samora e seus correligionários era que se preservasse a ideia de que as pessoas estão a escutar o seu presidente ou dirigente, e estão muito contentes. Nas sessões de fuzilamentos em público então protagonizados por pelotões das Forças de Defesa e Segurança, sempre sob o comando dum quadro destacado a partir dos escalões mais altos da direcção máxima do Partido/Estado, as pessoas não podiam manifestar nenhuma repulsa; virar as costas ou ir-se embora. Estavam sempre as “gloriosas” FPLM com as suas AK47 empurrando a assistência para presenciar o acto. Aos olhos de um “garoto” nascido na década de 70 ou 80 o que acima se narra pode constituir um absurdo do tamanho do mundo. Jamais lhe pode passar pela cabeça que o enfeitar a Praça da Independência em Maputo com barracas como hoje se faz; o ir àquele local pular, conversar ou distrair-se com uma garrafinha de aguardente, água mineral, cerveja, chipses, ou galinha assada enquanto o Chefe do Estado ou o dirigente da Frelimo está na tribuna a discursar, constituía, noutros tempos, uma heresia susceptível de encaminhar todo mundo, inclusivamente o Presidente do Conselho Municipal de Maputo, a reeducações de que só se saia por força de graças divinas. Samora: um ser humano especial Se por um lado se pode olhar com alguma simpatia para a actual postura da Frelimo, de conduzir os destinos do país dentro de um “quadro de concórdia”

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ditado pelos novos tempos, por outro, a falta de coragem desse partido condenar o seu passado tenebroso vem reflectir o dilema com que se depara para a sua própria sobrevivência como força política a respeitar. A Frelimo corre o risco de ter o mesmo fim que a da maioria dos partidos radicais da esquerda, ou direita, que existiram no mundo. Dificilmente a Frelimo resistirá a uma democracia multipartidária em que não esteja ela própria no poder, tal como aconteceu com o NP de Pieter Botha que não sobreviveu aos novos ventos na África do Sul. Confundir Samora com qualquer ser humano comum é uma forma bruta de desconversar. Samora não pode ser tido como tendo sido um ser humano qualquer, como se imagina. Foi um ser humano especial, que tinha em suas mãos o destino de milhares, milhões de outros seres humanos. Só o facto de supor-se que era o garante da justiça numa época em que sob seu comando as autoridades governamentais neste país cometiam crimes de sangue faz dele também um réu especial, que deve ser tratado como tal, uma vez que cabiaba ele a nobre missão de fazer justiça a todos de igual modo. Não o fez. Os crimes de sangue que durante o seu reinado se cometeram em Moçambique não se trataram de simplesbfalhas ou erros humanos quaisquer, como também se tenta reduzi-los. Foram crimes sérios; perpetrados, se não sob seu directo comando, no mínimo, sob sua cumplicidade. Quando se afirma aqui que não se trataram de simples falhas ou erros humanos quaisquer, queremos que o leitor entenda o absurdo de se confundir uma falha qualquer, como, por exemplo, o da concepção política ou económica de um Estado, com crimes de sangue nesse Estado. Podem ser falhas humanas as concepções políticas ou económicas que não se concretizam por insustentabilidade da sua própria base conceptual ou por outras razões. Tais espécies de falhas são susceptíveis de serem corrigidas por outras políticas económicas mais consentâneas com a realidade humana nesse Estado. O decidir, em consciência, matar outrem por não concordar com a nossa concepção política ou económica não pode ser tido como falha simplesmente porque a morte não se corrige. Alias, a serem entendidos os crimes de sangue como simples falhas ou erros humanos nenhum tribunal no mundo os condenaria, porque bastaria para isso que as defesas e os acusados nos tribunais alegassem que “foi uma falha” para que juízes, réus e familiares dos assassinados andassem aos beijos e abraços. Tudo na santa paz! Samora e a legalidade (1) A legalidade em Samora era um conceito tão ambíguo que tornava-se difícil alcançar o seu raciocínio. Samora tinha uma capacidade invulgar de fazer-se passar por inocente, tanto no que se refere aos crimes de sangue ou atrocidades que as Forças de Defesa e Segurança sob seu comando protagonizavam, como aos erros de concepção de políticas económicas que ele defendia. Sabia atribuir as culpas dos fracassos das suas políticas aos seus subordinados, aterrorizando-os em público e ameaçando-os. Quem ousasse contrapô-lo no momento em que o diabo lhe comandava o cérebro corria sérios riscos. Era um ditador nato que só fazia com homens como Marcelino dos Santos (seu conselheiro-mor) e uns poucos mais dentro

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da Frelimo. A maioria dos seus subordinados directos estava farta dele e finge hoje que morre de saudades dele. A chamada “Ofensiva Política Organizacional (OPO) ” por exemplo, que pôs meio mundo em pânico e levantou o cabelo a muitos ministros e directores em diversas instituições estatais na década de 80, é, disso, ilustrativo. Dificilmente se pode perceber o que ia na cabeça de Samora quando entendeu durante algumas semanas ir assustando os seus subordinados nas instituições estatais. Não sabemos o que pensava Samora que um director da APIE devia fazer com o mobiliário que se removia das casas abandonadas, numa situação em que as ordens para qualquer acção vinham sempre de cima, isto é, do governo central por si dirigido. Não estamos aqui a falar de mobiliário duma única casa apenas. Estamos a falar de toneladas de mobiliário vindas de milhares de casas abandonadas, cujos proprietários, em fuga precipitada pela nova conjuntura política de 1974-75, ou pela justiça por injustiça de que resultou a acção decisória da então directiva 24-20 (abandonar o país em 24 horas com apenas 20kg de carga), viam-se forçados a deixar para trás. Não é preciso muito exercício mental para perceber o dilema que os diversos directores da APIE, o Ministro de pelouro e as Direcções das Obras públicas por todo o país tinham entre as mãos. Havia apenas uma única ordem superior sobre o destino a dar a tal mobiliário: alugá-la a quem alugasse uma casa a APIE e necessitasse dela. Essa medida estava clara. O aluguer da mobília nacionalizada era, portanto, facultativo. Uma vez que à maioria das pessoas que conquistaram o privilégio de viver na cidade cimento lhes bastava apenas o prazer e o conforto das paredes de alvenaria, ou de viver uns metros acima do solo, dispensaram então o aluguer do mobiliário, levando para os prédios as suas esteiras, pilões e o pouco que tinham lá no subúrbio. Disso resultou então a tal acumulação de mobiliário nos armazéns das APIEs por todo o país, que durante os anos que se seguiram a fuga de seus proprietários foi servindo de pasto para traças e baratas. É essa mobília que Samora foi então encontrar nos armazéns da APIE na sua famosa OPO, que viria a atiçar a sua ira contra os “infiltrados” e “inimigos do povo” à sua volta. O ministro, director, ou seja lá quem fosse naquela instituição deparava-se com uma série de chatices: Uma vez que a melhor mobília havia sido encaminhada para rechear e enfeitar as casas dos responsáveis do Estado, nenhum outro responsável estava preocupado com o destino da tralha que restava nos armazéns. Se levasse alguma dessa mobília para sua casa corria o risco de ser acusado de ladrão e ser reeducado; Se a distribuísse atabalhoadamente por quem dela precisasse, tinha que encontrar um critério que ainda não havia sido estabelecido pelo centro do poder; Mesmo que por iniciativa própria procurasse distribuí-la pelos necessitados, corria o risco de ser acusado de nepotismo ou beneficiar pessoas que conhece, uma vez que todos os moçambicanos tinham direito ao conforto; A despeito de existirem algumas casas de leilões no país (a exemplo da Leilões Eusébio em Maputo), e alguns terem sugerido a venda a essas casas do mobiliário remanescente, não havia ordens para encaminhar nada a essas casas, pois havia o risco dos proprietários desses estabelecimentos comerciais se transformarem em capitalistas. E capitalistas eram o que os novos “donos” da terra não queriam; As

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soluções simples como vendê-las em hasta pública careciam também de ordens superiores que ainda “estavam por vir”, pois a matéria merecia um estudo profundo ao nível do partido para evitar que açambarcadores não se aproveitassem da “deixa” para enriquecerem. etc., etc. Se da direcção da APIE não se via nenhuma autonomia de decisão para alguns casos como o do destino a dar ao mobiliário que sacudiu a ira de Machel durante a OPO, o mesmo se pode dizer do apodrecimento de alguns produtos agrícolas nas Machambas Estatais ou Machambas do Povo nos anos 80. Numa época em que a maioria das pessoas passava fome em Maputo e arredores, amanhecendo nas bichas à procura do mínimo para a sobrevivência, nas machambas estatais, em Matutuine e Goba, toneladas de batata-reno apodreciam por falta de políticas consentâneas com a realidade. Os que saiam de Maputo de comboio a procura desse produto em quantidades mínimas para o consumo doméstico não conseguiam absolutamente nada porque a sua distribuição carecia da chancela do poder central. A batata tinha que ser somente encaminhada para as Lojas do Povo. As Lojas do Povo não tinham o produto porque não tinham como comprá-lo; transportá-lo e mantê-lo em ambientes climáticos adequados. O responsável da machamba, por sua vez, zeloso com a linha de distribuição e venda traçados superiormente pelo Centro do Poder em Maputo, para além de não ter como ensacar a batata e transporte suficiente para distribui-lo pelas diversas Lojas do Povo, só podia, quanto muito, tirar uns quilitos para consumo próprio (lá no local; não em sua casa – entenda-se). Se pretendesse levar um saquito de 20 quilos para os seus filhos na cidade tinha que rezar todas ave-marias do mundo para não cruzar pelo caminho com a “vigilância popular”, que de AK47 em riste o encaminharia as autoridades sob acusação de desvio e açambarcamento de produto. Não podia vender o produto aos singulares que a ele se dirigiam porque a ordem não era essa. E mesmo que a compaixão para com os famintos que lhe batiam à porta do gabinete o induzisse a vender alguns quilitos a partir do local de produção, corria o risco de se denunciar, uma vez que deparava-se com a dificuldade de controlo, facturação e contabilização dos pequenos valores monetários que amealharia, pois aos bancos só iam as receitas de vendas de carradas de sacos e sacos, e não de dois quilos ou cinco! A soma disto tudo tinha como resultado o óbvio: toneladas de produtos agrícolas a apodrecerem nas próprias machambas. Era então isto que Samora depois pegava para berrar nos comícios, debitando as culpas aos ministros, directores e outros responsáveis, condenando-os tanto por ter cão, como por não tê-lo. Ninguém podia contrariá-lo nos seus momentos de êxtase. Para ele, a politica estabelecida era boa. Outros é que não prestavam. Seria redundante faláramos aqui de pessoas que viram as suas vidas destruídas por serem apanhados com alguns quilitos de qualquer coisa. Como camarão por exemplo. Samora e a legalidade (2) Samora Machel instituiu no país o que chamou de reeducação e permitiu que dezenas de centenas de concidadãos seus fossem reduzidos a farrapos humanos, e muitos deles mortos. Em discursos públicos atacava o que chamava de infiltrados no Ministério do Interior, que maltratavam o povo e não respeitavam as liberdades das pessoas. No travesti julgamento de Nachingwea

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o mesmo Samora havia afirmado que “respeitava os direitos humanos”. Em resposta a um jornalista que quis saber sobre o destino que reservava às centenas de presos políticos que apresentava no então Centro de Preparação Politico e Militar do então movimento, Samora respondeu que “não tinha coragem de matar nem a Simango, nem a ninguém. A FRELIMO não é assassina”– afirmou. “Vamos reeducá-los para servirem de lição às gerações vindouras”. Dois anos mais tarde Simango e seus acompanhantes eram barbaramente assassinados sob euforia e danças macabras de seus assassinos. Cumpria-se assim o respeito pelos direitos humanos! A dimensão das atrocidades cometidas nos Centros de Reeducação instituídos a mando do governo de Samora dificilmente pode penetrar no cérebro dum homem que cresceu num ambiente de democracia multipartidária, como os jovens de hoje. Seria o mesmo que exigir a quem nunca comeu uma maçã que nos descreva o sabor dessa fruta (falsa fruta – entenda-se). Mesmo que a pessoa imagine que seja saborosa, o seu cérebro e paladar jamais alcançam a essência do sabor que imagina, simplesmente porque nunca a comeu. Para se ter uma ideia da violência instalada no que Samora apelidou de Campos de Reeducação importa fazer apelo à memória de alguns acontecimentos. Desconhecem-se em detalhe os factos que encerram o processo da liquidação física de Simango e outros presos políticos no Centro de Reeducação de M´telela em Junho de 1977. Todavia, o ano de 1977 é tido como o do início oficial da limpeza dos “vestígios coloniais-fascistas”, como o próprio Samora não se cansava de afirmar. Na sequência da chamada tentativa de golpe de estado de Nito Alves em Maio de 1977 em Angola, que culminou com o massacre de mais de 60.000 pessoas a maioria dos quais da “família” do próprio partido no poder, o MPLA, Samora havia enviado um seu falcão a Luanda para perceber a razão de todo aquele imbróglio sangrento. A lição que do Atlântico se trouxe foi de que aos adversários políticos e suas famílias não se poupa a vida. Em Junho daquele ano agudizaram-se os assassinatos nos Centros de Reeducação em Moçambique. A par da liquidação física de Simango e outros em M´telela, em diversos locais do país foram-se executando extrajudicialmente muitos prisioneiros. Uns, detidos durante o processo da descolonização; outros, que foram caindo nas mãos das novas autoridades policiais e militares do regime à medida que Samora ia consolidando o seu papel de líder máximo do Partido/Estado. Em Nambude, na província de Cabo-Delgado, caíam naquele ano vítimas de espancamento e maus tratos o então comandante do batalhão de Mocímboa da Praia Joaquim Mandeio Muthamangue (Francisco Ndeio) e seu adjunto Pedro Canísio. No mesmo ano, já no Centro de Reeducação de Ruarua ainda em CaboDelgado, era enterrado vivo Jorge Jovêncio, natural de Maputo; enforcado o Artur Catine, natural de Inhambane; espancados até a morte os irmãos Simwange, nomeadamente Kubangamwali e Chuka, naturais de CaboDelgado. Igualmente, morriam naquele centro vítimas de espancamentos Saidi Mitava e Domingos Raposo, naturais de Cabo-Delgado e Beira respectivamente. Pouco tempo depois, era fuzilado naquele centro Luís João, natural de Maputo.

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O maltrato e as matanças nos Centros de Reeducação continuaram por todo o país. Só viriam a amainar com o fim da vida do próprio Samora e o soprar dos novos ventos que conduziriam o país à democracia multipartidária que hoje vivemos, a despeito das condições de detenção em muitos desses Centros ter permanecido ainda desumana durante nos primeiros anos da administração de Joaquim Chissano. Seria em Rauarua onde anos mais tarde, e já em jeito de sacudir o capote, Samora afirmaria ter “sentido palha no estômago” quando os prisioneiros (reeducados) lhe contaram as histórias de massacres e torturas naquele centro prisional. Na tentativa de encontrar culpados, Samora embirra-se contra os “infiltrados” e “agentes do inimigo” no seio das Forças de Defesa e Segurança. Mas jamais levou nenhum “infiltrado à forca”. O dirigente “amado”, de todo o povo, vendia assim a ideia de um homem muito preocupado com o seu povo. As vítimas, esses, continuaram a aturar os sorrisos matreiros dos esbirros que sempre os maltrataram. O governador da província onde a maioria dos presos políticos foram massacrados foi promovido para outro cargo; os chefes da Contra Inteligência Militar e da Policia a quem cabia a responsabilidade de tratar os prisioneiros de forma humana nada lhes aconteceu. Com a excepção de um, que “se fuzilou” sozinho por remorsos depois de ter liderado o assassinato de Muthamangue e Canisio, a maioria dos chefes e guardas daqueles centros permaneceu nos seus postos, alguns dos quais promovidos a outras categorias. Afonso Henriques Monbola, então comandante do Centro de Reeducação de M´telela morreu de morte natural junto a sua família depois de ter sido promovido a um cargo de chefia na Brigada Operacional (BO) em Maputo! Esta, é apenas uma pequena ilustração do que Samora foi capaz de fazer, ou permitiu que se fizesse num país sob seu comando. Não vamos aqui falar das circunstâncias do desaparecimento de pessoas como o Fernando Baptista, Jossias Dhlakama e muitos outros que ocorreram durante a vigência do reinado dele. Meia palavra basta. (Barnabé Lucas Ncomo/Canal de Moçambique – Continua na próxima edição) – 21.02.2012

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2011: Ano Samora Machel Compulsando o que não se disse do comportamento político de Samora (2 - Conclusão) Por: Barnabé Lucas Ncomo Assassinatos de carácter em massa No meio da fanfarra em torno dos 25 anos do desaparecimento físico de Samora Machel muita coisa ficou por se dizer. Os políticos, académicos, escritores e os demais que emprestaram suas vozes no exaltar da figura de Samora em 2011 brindaram-nos com um chorrilho de assassinatos de carácter em massa. Está claro que ao imporem que se evocasse a figura de Samora nos moldes em que o fizeram, infundindo a ideia da existência no país de uma grande nostalgia que avassala os corações de todos os moçambicanos, do Rovuma ao Maputo, os promotores da homenagem acabaram denunciando o que não queriam que se soubesse. Não o querem de volta não, porque também estavam fartos dele. E nem têm, esses senhores, saudades dos seus tempos ou actos. A maior parte dos camaradas de Samora querem-no bem morto servindo-se apenas da sua figura para projectos políticos inconfessáveis, mormente o de manutenção do poder político e, sobretudo, o da consolidação da ideia de heroicidade exclusiva de um tipo de gente em comparação com outros. Em abono da verdade, não se estaria aqui a descobrir absolutamente nada se se afirmasse que mesmo Armando Guebuza jamais gostaria de reviver na carne o regime que Samora encabeçou em Moçambique. O que pode estar a custar à Guebuza e seus companheiros nos dias que correm, é encontrar um remédio (impossível – diga-se de passagem) capaz de dissocia-los de todo o mal que Samora fez a eles mesmo, e a muitos dos seus concidadãos. Na impossibilidade de encontrar tal antídoto, opta-se por esta colagem a Samora que, na essência, é falsa. Homenageiam-no simplesmente porque sabem que a ter que ser julgado pela história, Samora não será julgado só. Tanto Guebuza como a maioria de seus camaradas, hoje em vida, suportou Samora e suas atitudes por uma questão estratégica de sobrevivência. Conheciam o destino que teriam se entrassem num confronto directo com ele, mesmo que tal fosse a nível de diálogo. Souberam esperar para enterra-lo com suas ideias políticas; ideias essas que, em tudo, eram insustentáveis, uma vez que contrariavam a essência da aspiração de todos eles. Sabiam que a despeito de Samora ter na pele a imagem de um ser humano normal, transportava no seu íntimo algo que o diferenciava de todos eles, algo esse que o transformava num diabo sempre que lhe subisse ao cérebro. Todo o cuidado com aquele homem era pouco. Golpe palaciano Guebuza e seus companheiros estão cientes de uma coisa: se bem que a proclamação da independência a 25 de Junho de 1975 tenha sido pela voz de Samora, jamais tal empreendimento pode ser tido como propriedade exclusiva dele. A proclamação da independência de Moçambique será

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historicamente tida, sempre, como um acto de um órgão colegial, o Comité Central da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) a que muitos deles pertenceram por direito de participação e destaque na luta de libertação nacional. Assim, a despeito do abandono tanto da linha orientadora de Samora como dos procedimentos que caracterizaram o seu reinado ter todo um condimento de golpe palaciano, a manutenção duma aparente concordância com o passado tenebroso daquele homem é fundamental porque empresta a ideia de inexistência de ruptura. Uma eventual “ostracização pública” da sua figura transmitiria a firme ideia de que já não o queriam no lugar em que o puseram no longínquo ano de 1970. Por outro lado, dado que existe a consciência de que aquando da vigência dos tempos do pensamento comum directa ou indirectamente ajudaram-no a cometer os crimes de que o seu regime é acusado, e dado que tais crimes levam alguns ainda a “bocejos cobardes” e “assobios de lado”, é então preciso ir ganhando tempo, fingindo com mestria que com Samora em vida os moçambicanos viviam “ejaculando de gozo”, e todos os moçambicanos morrem de saudades dele e dos seus actos! É aqui onde repousa toda a falsidade destas homenagens, pois, longe do que aos olhos se nos dá ver, a realidade oculta nos procedimentos de Guebuza e seus companheiros é mais esclarecedora. Na verdade, Samora e seus ideais foram derrubados porque não se adequavam as aspirações não só do povo em si, que clamava pela liberdade, mas também de seus camaradas que já viam os excessos do regime que ele encabeçava como obstáculos para a liberdade de todos. Para muitos deles, Mbuzine veio como que um alívio. Tal ilação, talvez explique o porquê de Samora ter morrido na companhia de subordinados de subordinados e não com os seus verdadeiros subordinados na escala da hierarquia no país. A utilidade de Samora morto e o papel da família Machel Na verdade, a figura de Samora tem como utilidade, no presente, o servir de “bombo da festa” para os novos desafios em perspectiva. O lançamento da ideia de inexistência de ruptura com seus ideais visa garantir não só uma transição suave para um capitalismo que ontem se combateu de forma sangrenta, como igualmente garantir que o futuro reserve aos capitalistas emergentes (no seio da Frelimo) o estatuto de heróis nacionais da luta de libertação nacional, fechando-se, assim, para a história, o ciclo dos heróis da luta pela independência. Infelizmente, tudo isto é feito com uma certa carga de amoralidade, que roça até para o pontapear; cuspir; e escarnecer de forma irónica a figura e a memória do indefeso Samora morto, transformando-o num brinquedo de estimação por conveniências estratégicas de sobrevivência. E tudo isto ocorre com o consentimento da própria família Machel da qual se esperava a maior fatia de respeito para com a memória do seu ente querido. Não estaríamos aqui a mentir se afirmássemos que essa família tem consciência deste “pontapear” em torno da memória do seu ente querido. Tudo indica que suporta o “circo” simplesmente porque a dimensão dos interesses em jogo é complicado. De resto, os actuais capitalistas no país suavizam o peso da cruz que Graça e seus filhos iriam carregar. Na verdade, tal família está também num dilema de escolha entre manter-se numa posição social privilegiada, ou ser “ostracizada” por aqueles a quem apraz fazer do seu morto

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o palhaço duma festa em que não se fez convidar. Contudo, não se esquece, tal família de uma vez por outra vir a público com algumas verdades que lhe vão na alma. Uma das filhas de Samora é citada como tendo afirmado que se o pai ressuscitasse ficaria profundamente decepcionado (RM/LUSA, 02/10/11). A pergunta que qualquer alma atenta faria em torno dessa afirmação é: afinal, Samora ficaria profundamente decepcionado porquê; o que é que está errado? A resposta a tal pergunta poderia até ser sincera, mas o argumento que justifique a anuência da família, em bloco, consentir que se brinque com a memória do seu finado numa altura em que todos têm consciência e percebem que ninguém lhe segue os passos, seria, toda ela, atabalhoada e contraditória, porque iria desvendar a verdade. Embora a família Machel tenha consciência de que os ideais de Samora foram traídos pelos seus próprios camaradas, para ela, é mais confortável aceitar esta encenação de Guebuza e seus companheiros do que exigir que aqueles então camaradas de Samora sejam sinceros consigo próprios. Porque no dia em que quisessem sê-lo não deixariam, tal como nós o fazemos, de dizer, a plenos pulmões, que “Samora foi um ditador que nem sequer merece estátua alguma, seja de que tamanho for”. Não deixariam de dizer que “à Samora demos o poder e as armas, mas longe de fazer justiça com esses instrumentos acabou transformando-se num ditador da pior espécie, espezinhando-nos e assustando-nos a nós, que o pusemos no poder, e ao povo que queríamos libertar. Não somos obrigados a segui-lo!” A tomada de consciência de tal eventualidade conduz a família Machel a uma atitude de aparente cumplicidade com toda esta falsidade visando o alcance de um tratamento social menos penoso, pois, moralmente, é insuportável pertencer àquele a quem se acusa dos mais cruéis actos contra outros seres humanos. Enquanto não aparecer oficialmente um regime ou homens com coragem de repor a verdade do vivido, vai, essa família, dando graças à Deus por o mundo continuar “bocejando de lado” e com memória curta, porque existe nela a consciência de que outros homens no mundo, que se comportaram politicamente como o seu ente querido, não tiveram a mesma sorte. Ser apontado o dedo como sendo filho, irmão, viúva, etc., de quem tinha o hábito e prazer de mandar tirar a vida a outros seres humanos, fosse por que por razões fosse, faz dar voltas a cabeça a qualquer ser humano equilibrado. Existe em Maputo uma filha de um antigo carrasco da PIDE, (então simples executor bem conhecido na então praça pública lourenço-marquina da era colonial) que por tanta “ostracização” na rua e em ambientes sociais, se transformou num barril de álcool ambulante! A pobre senhora vive de alucinação em alucinação monologando e tresandando a álcool dia e noite. Morto que havia sido o pai em Lourenço Marques por uma turba brutalizada pelos novos ventos que se instalaram após o 25 de Abril de 1974; e a despeito de se ter identificado com a causa da independência logo depois do 25 de Junho de 1975 militando nas Células e Comités do partido no seu bairro, a pobre senhora fora desde então vítima de uma cerrada “ostracização” popular. Nos Comités do Bairro e na empresa onde tentou iniciar uma vida nova os “puros” não se cansavam de recordá-la de ser filha de quem era. Na procura de um amor sincero e carinho, a senhora entendeu por bem cair nos braços de Baco. Semelhanças: a coerência da família Botha e dos apartheidistas

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A imprensa moçambicana e sul-africana noticiou, a 2 de Novembro de 2006, que a família Botha dispensava honras de estado no funeral do seu ente querido Pieter Botha, então esboçado pelo governo sul-africano. A ilação que se pode tirar desta decisão só pode repousar num único extremo do raciocínio humano: ou os familiares de Botha amavam-no tal e qual como ele quis que o amassem, ou estavam avisados que qualquer acto à título póstumo em torno da sua figura que manifestasse alguma reconciliação com o que não acreditara em vida seria, eternamente, por ele tido como um escárnio a sua memória e uma traição a causa que sempre defendeu. Alias, sepultar Botha com honras do estado na África de Sul de hoje seria como que pegar num cardeal da Igreja Católica e fazer-lhe um funeral com ritos islâmicos. É que as regras são sacras para quem as professa em vida. Jamais se deve impor aos mortos outras regras no caminho do seu descanso eterno somente porque estes já não podem mais reclamar. Fazê-lo, nem que seja para a manutenção duma espécie política por outras vias, é um insulto a memória deles, e só pessoas que não prestam têm a coragem de golpes baixos como esses. Botha nunca exigiu paninhos quentes para lavar a sua imagem. Mandou até passear o Bispo Desmound Tuto e a sua Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul. O homem, havia, pessoalmente, lido a sua sentença. Se o mundo inteiro era doido, então, ao menos “deus” havia feito um só homem justo na face da terra: ele. Que a maioria no mundo continuasse a tratar-lhe como lhe entendeu isso pouco lhe interessava, desde que a justeza dos seus actos repousasse somente em si próprio. Nos dias que antecederam a sua morte o “mundo” espalhou via e-mails um discurso que se diz proferido por ele a membros do seu governo em 1985. A fazer fé nesse discurso (que também recebemos), Botha era mesmo um homem com convicções devidamente elaboradas, convicções que até se podem chamar de porcarias, mas eram suas convicções. Botha era intransigente, estúpido, bruto, porco e tudo mais. No tal de seu discurso afirma que “Pretória foi erguido pela mente branca para o homem branco”. Como que estando a atirar farpas a todo o mundo do planeta que está lhe chateando, prossegue afirmando que “nós, os brancos da África do Sul, não somos obrigados a provar a qualquer um, e nem mesmo aos pretos que somos um povo superior” – lê-se. Botha era igual a si mesmo e aos que acreditavam na política de discriminação por si seguida. Contudo, para o bem ou para o mal, convicto dos seus actos, era assim que queria que o mundo o visse: maquiavélico, racista convicto, superior e defensor acérrimo da diferença entre os seres humanos. Qualquer acto em torno dos seus restos mortais que manifestasse a igualdade entre os seres humanos na África do sul de hoje seria desnecessário e susceptível até de pôr a sua alma em constante vigília no além, aguardando pela vinda daqueles que tentam hoje fazer dele um “palhaço” para ganhos políticos num Estado que jamais defendeu. E teria, Botha, razões mais do que suficientes para ajustar contas com todos: Primeiro, com seus camaradas (e alguns brancos) por terem traído a causa da “raça pura”, associando-se a um projecto de

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igualdade concebido por uma raça que ele sempre tinha como “inferior”; Segundo, com o mundo inteiro, que não logrou compreender os desígnios de superioridade rácica concebidos pelos seus antecessores (desde 1948), e que ele seguiu à risca, permitindo que nos dias de hoje os “seres inferiores” se sobrepusessem aos seres que “deus” concebeu como superiores. Os seus familiares sabiam então que pai, tio, avó ou irmão tinham. Doa a quem doesse, procuraram ser coerentes com os seus ideais, sob o risco de a sua alma não os perdoar, aqui e no além. O exemplo contrário dos que acreditaram em Samora Tal como Pieter Botha, Samora Machel morreu seguro dos caminhos que trilhava. Jamais pediu favores para que acreditassem, ou não, nele. Impôsse pura e simplesmente porque acreditava que era possível alcançar os ideais do comunismo em Moçambique, mandando matar aqueles que com ele não concordavam. Como Botha e seus inimigos – as tais raças humanas inferiores na África do Sul – em Moçambique, Machel conhecia também os seus inimigos, que, na essência do seu raciocínio, era também “raças inferiores”, isto é, seres humanos destituídos de mentes capazes de raciocinarem progressivamente. Tal como o seu homólogo sul-africano, Samora Machel procurou também arrastar todos os da sua “raça” – a raça política e mentalmente superior em Moçambique – para combater e reduzir os seus inimigos à sua “inferioridade natural”, criando um apartheid simulado que impedia o usufruto destes de liberdades que somente à ele (Machel) e sua raça política “deus” conferiu. Mais do que Botha, Machel terá mais contas a ajustar com seus camaradas que hoje usam a sua figura para ganhos políticos e sociais fazendo dele o bombo duma festa que sempre combateu, isto é, a burguesia, o multipartidarismo, o associativismo, a igualdade de direitos, etc., pois mais do que os seguidores de Botha, os seguidores de Machel usam-no para justificar aquilo em que se tornaram e jamais conseguiram com ele em vida. Enquanto os seguidores de Botha dirão no além, perante o seu chefemor, que perdemos a guerra e, consequentemente, o poder de decidir os destinos do país, os seguidores de Samora terão que ter capacidade de encher cestos de desculpas, para justificarem a razão do abandono de um ideal que juntos talharam, ideal esse então tido como o mais nobre e justo dos ideais da humanidade, e pela qual os “melhores filhos” deste país deram suas vidas. Dizemos isto por uma simples razão: É que Samora Machel tinha convicções. À coberto do poder que possuía, era indemovível nos seus pontos de vista. Era um político de tendência radical como o próprio Botha. Dificilmente se deixava dobrar. Na prática, era a outra face da mesma moeda do apartheid. E se quisermos prosseguir olhando de forma comparativa para esta questão, facilmente se conclui que as “raças humanas inferiores” da concepção do apartheid de Botha na África do Sul transformaram-se no Moçambique de Samora em bandidos e venda-pátrias, isto é, em seres incapazes de perceber a pureza dos desígnios

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dos moçambicanos mais puros; os eleitos e inspirados por “deus” para conduzir os destinos do país e de todos seres nele habitantes. Tal como as “raças inferiores” de Botha procuravam, do ponto de vista do prócere do apartheid desestabilizar o que a “mente superior branca” construiu na África do Sul, em Moçambique os desestabilizadores do progresso idealizado por “cérebros superiores” da raça de Machel estavam também devidamente identificados. Eram aqueles que não concordavam com os procedimentos do governo de Machel. Assim, tal como Frederick de Klerk na África do Sul, em Moçambique, Joaquim Chissano e seu elenco governamental de então viriam a trair a grande causa do seu antecessor. E aqui repetimos: pior do que os seguidores de Pieter Botha que perderam o poder por terem ousado permitir que as reivindicações dos seres inferiores fossem consagrados na Constituição da República, os seguidores de Machel usam-no para se perpetuarem de forma contrária ao que o seu mestre os ensinou, porque não perderam o poder. Vai daí que na saga de sobrevivência, como que cuspindo na memória daquele seu líder, atribuem-no coisas que não faziam o seu feitio. E são tantas, as farpas ditas em torno da figura de Machel que basta citar apenas algumas que antecederam todo aquele assassinato de carácter em massa: Já por ocasião das comemorações dos vinte anos do desaparecimento físico de Samora, assistimos a discursos que lembram o diabo. Um destacado crente da “superioridade rácica” a moçambicana “atirou-nos” com uma prosa (num matutino local) que empresta uma imagem de um Samora Machel socialdemocrata. Machel é nós apresentado como um homem muito moderado e muito humano, que vivia mergulhado na gestão de conflitos então existentes entre os radicais e moderados no interior da Frelimo, tanto à nível do governo como na da imprensa então estatizada. O articulista de tal prosa não se esqueceu também de emprestar a si próprio a imagem de mais puro jornalista moderado da época, razão pela qual granjeara então a confiança do “incontestado” líder do país, acabando até por ter o privilégio de com ele privar e ir, algumas vezes, a Portugal em serviço dos interesses estratégicos daquele. Apenas se esqueceu, o nosso ilustre jornalista, de informar aos seus leitores que numa dessas viagens fez o favor de criar as condições para o rapto na Tanzania de um cidadão português e parte da sua família para serem torturados pelos esbirros do SNASP na Machava e Xefina. Na mesma senda, prosseguindo a manipulação de dados – que até havia começado, em tempos, na maior academia moçambicana – um outro articulista aponta Machel como tendo sido o homem que iniciou a viragem para a abertura política e económica que se vive hoje em Moçambique! Curiosamente, alguns estadistas na então Linha da Frente na África Austral são tidos como os mais belicistas na região, com um Machel a recusar, peremptoriamente, um ataque directo contra o Malawi em 1986! Etc., etc. Tudo serve para justificar as conquistas de hoje, nem que para isso se cuspa na memória de Machel, atribuindo-se-lho o que não fez. No fundo, estamos perante enxertos forçados, isto é, tentativas de legitimar o despotismo de ontem para justificar os tempos modernos. E a paz duramente conquistada por outros, é retirado aos seus “legítimos proprietários” e atribuído aos déspotas de ontem. E apresentam-se fotografias de um Botha em cavaqueira com um Nelson Mandela, ou um Machel a abraçar efusivamente um Ronald

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Reagan (ou a receber a filha deste no palácio da Ponta Vermelha) como “incontestáveis provas” de abertura destes “grandes líderes” para a concórdia nos respectivos países! O afirmar que “se meu pai ressuscitasse ficaria muito decepcionado”, é, em si, uma prova bastante para concluir que tanto os filhos de Samora, como a viúva, têm consciência do pai e marido que tiveram. Não precisam então de um documento escrito pelo seu defunto para perceberem que seja onde estiver, Samora está chateado com tudo o que se passa em torno da sua figura hoje. Porquê não saem então a rua aos gritos a dizer “pare-se com isso. Só homenageia o meu pai ou marido quem lhe segue as pegadas!” Samora: o ícone da luta contra a burguesia traído Samora jamais ressuscitará para qualquer tira teimas do que estamos aqui a afirmar. Mas como humanos, feitos de carne e alma, somos livres de imaginar o que se segue. No silêncio da morte, Samora pode ainda estar em guerra permanente contra uma classe social que sempre combateu – a burguesia e os “exploradores do povo”. Os seus discursos ilustram-no. Embora os promotores da sua evocação hoje tenham consciência dessa eventualidade, preferem castiga-lo por quitação. Queira ou não Samora, hoje, os seus camaradas que se transformaram naquilo que ele combateu com tanta tenacidade são livres de fazerem da sua figura o que bem entenderem. Jamais os poderá voltar a incomodar com seus assobios, torturas psicológicas e ironias. De resto – acreditando-se no exoterismo à moda da tradição africana – a existir alguma alma muito incomodada com tudo isto, tal alma só pode pertencer a uma das vítimas dos excessos da suprema governação de Machel a que eles faziam parte. E é legitimo que tal alma incomodada indague a Guebuza e outros: “afinal, mataram-me porquê? ”. E se tal alma assusta, não só assusta a Guebuza e a outros da então súcia de Samora. Igualmente, assusta ao próprio Samora na tumba que tem a pesada missão de justificar perante os juízes divinos o porquê de terem morto aquela alma, porque os vivos de Samora teimam hoje que são unos e indivisíveis com o seu morto. Talvez importe explicar o que se entende aqui por castigo por quitação: Se em seu tempo Samora apartou-se de todos os aspirantes a burguesia à sua volta que, corajosamente, no interior da FRELIMO, ousaram contraria-lo abertamente, à esta nova burguesia que o adulava e temiam por medo das suas represálias na época, Samora terá que aceitá-la na nova condição social de capitalistas em que se tornou, a despeito do desvio da sua linha orientadora e de toda a cobardia manifesta nos tempos em que vigorava o pensamento único. E esta exigência de Guebuza à Samora é feita de forma mais bruta possível. De resto, mesmo na sua então cobardia, jamais Guebuza e os aspirantes a burguesia emergentes deixaram de ser úteis a Samora na sua luta contra os aspirantes a burguesia de ontem. Ou morremos todos, ou somos glorificados juntos Na prática, com as homenagens a Samora, Armando Guebuza e seus camaradas de hoje apelam a todos os moçambicanos do Rovuma ao Maputo

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que assobiem de lado, minimizando o “acidente de percurso” que os conduziu a serem parte da máquina que Samora usou na destruição aos seus inimigos. O facto da característica principal dos governantes de hoje ser o bem-estar social de estilo burguês, não deve constituir então motivo bastante para serem apartados de um direito sagrado – serem também tidos como heróis nacionais para que o ciclo se feche. Tanto o pastor (Samora) como o rebanho (povo) têm que aceitá-los tal e qual eles são hoje. No caso particular de Samora, terá ainda no futuro que ter a dura missão de com eles compartilhar o espaço do panteão dos “heróis nacionais” que juntos (herói e cobardes de ontem) construíram nos tempos do pensamento único. E mesmo que no silêncio da morte Samora saiba que quando eles (Guebuza e outros) afirmavam estar de acordo com ele, nas suas consciências apunhalavam-no pelas costas sonhando com mansões, propriedades e empresas que a classe burguesa de origem europeia que combatiam ostentava, Samora não tem onde se queixar ou como impedir que lhe ergam estátuas de todos os tamanhos em toda a extensão do território moçambicano, seja com dinheiro tirado dos bolsos dos pobres moçambicanos cujos filhos estudam em escolas sem tecto ou sentados no chão, ou dos cofres do partido de vanguarda que Samora idealizou. Samora terá simplesmente que pagar a factura que lhe estão passando, tal e qual, no silêncio cobarde de ontem, Guebuza e todos outros pagaram a factura da sua própria intransigência e teimosia; intransigência e teimosia essa que os impediu de, em tempo útil de suas juventudes, voarem livremente para o alcance dos seus sonhos: serem proprietários de bens em substituição dos colonos que haviam desalojado. Eis então a razão de toda esta colagem forçada entre alguns vivos e um homem morto, cujo regime produziu órfãos, viúvas e destruiu famílias pelo simples facto de uns terem discordado dos procedimentos. Procura-se com as homenagens a Samora transmitir a ideia de uma eterna unidade de pensamento entre aquele que combateu uma classe social num determinado tempo, e a classe social então combatida já nos novos tempos. E este fenómeno de colagem forçada arrasta-se a outras dimensões facilmente compreensíveis: Se a honra repousa em estátuas ou sepulturas nos mausoléus, os novos burgueses projectam suas estátuas e repouso ao lado daquele que os fez atrasar na história da prosperidade individual. E se a verdade histórica no futuro ditar que seus restos mortais sejam removidos do mausoléu dos heróis nacionais, e suas estátuas demolidas das praças públicas por uma eventual turba popular pelo simples facto de se terem transformado em “exploradores do povo” – como dizia Samora – sê-lo-á na companhia dos símbolos daquele. Está-se perante uma colagem tal que Samora jamais se desenvencilhará, a menos que um milagre – parafraseando a filha – o ressuscite e, decepcionado com a associação que se faz da sua figura com os “ladrões do povo”, mande todos para os campos de reeducação, aonde, a alguns, não pestanejará em mandar fuzilar como “lição” para as gerações vindouras. Samora derrubado

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A despeito da conjuntura internacional dos anos 80 e a queda do muro de Berlim nos inícios da década de 90 terem jogado um papel preponderante no desenvencilhar da linha política que caracterizou Moçambique imediatamente após a proclamação da independência nacional, manda o bom senso concluir que do “debate interno” para o desprender definitivo daquela linha política na Frelimo saíram vencidos Samora Machel (então morto) e os que até hoje teimam em julgar que a melhor opção para Moçambique é o socialismo radical que caracterizou a era samoriana. Se tirarmos desta análise a família nuclear de Samora, que apesar do espectáculo que nos oferece sente falta do seu ente querido, pode-se concluir que os que morrem de saudades de Samora e seus ideais nos dias de hoje na Frelimo contam-se a dedos. Pontificam apenas homens como o Marcelino dos Santos (que deve estar a lamentar-se por já não ter ninguém para manipular ideologicamente de modo a manter-se na parte privilegiada da sombra social) e, quanto muito, mais uns barraqueiros que não o conheceram de facto e um senhor barbudo que faz de palhaço em cerimónias de evocação do “saudoso líder”. Este último não se cansa de imitalo, ora de dedo em riste, ora com as mãos na cintura, berrando para a sua assistência! Conclusão Tal como na Alemanha de hoje, onde bandos de skinheads desvairados sob efeitos de alucinantes vivem hoje embalados em discursos de Adolfo Hitler na esperança da reedição no mundo de sociedades humanas em que o ariano ocupa a vértice cimeira da pirâmide na escala de superioridade rácica, em Moçambique, bandos de jovens sob efeitos de bebedeiras diluvianas (como o diria o bom de Fernando Manuel), deleitam-se com os discursos de Samora na esperança de reaverem uma “sociedade justa” que nem sequer conheceram. Estamos cientes do que resultará desta análise na cabeça de quem não olha para meios na procura de glória, mesmo que tal glória se circunscreva no mero capricho de sentir-se parte da “tribo dominante” ou próximo dela por inerências de sobrevivência. Consola-nos a certeza de que na contraargumentação desses “moçambicanos mais puros” nada de novo virá senão o arremesso da arma habitual que nos habituaram: rotularem-nos de frustrados, uma adjectivação simplista a que recorrem sempre que a argumentação não justifica o que vivemos. Canal de Moçambique - 29.02.2012

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