Torga no xadrez do seminário: xeque do peão ao Rei?
por Altino Moreira Cardoso
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“Que insondável mistério é um ser humano! (...) Por mim falo. Converso, escrevo páginas maciças de confissão, actuo, pareço transparente. E quem um dia quiser saber o que fui, terá de me adivinhar…” DIÁRIO XI - Coimbra, 20/2/69 __________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Aos dez anos, o Adolfo era um miúdo habituado a receber da inocência a poderosa graça da liberdade de existir, no aconchego rural da terra, «Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição» PORTUGAL
...que criava “….Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Castiços nos usos e costumes, cobrem-se com varinos, croças, capuchas e mais roupas de serrobeco ou de colmo, e nas grandes ocasiões ostentam uma capa de honras, que nenhum rei! PORTUGAL
Feito o exame da quarta classe, o Professor primário chama o pai: ... visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila. Meu pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada...(...) Já se lembrara do seminário. Aí é que talvez pudesse ser. Se arranjasse a meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca... O mestre reagiu. Padre! (...) Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil. – É o que terá mais certo... concluiu meu Pai, resignado. – A cavar é que não fica. Bem bastou eu. A CRIAÇÃO DO MUNDO
Aí está, abrupto e cru, o Fado do menino pobre. Marcado no seu Destino com o corte da infância e do lar e o assombro do Futuro, um mundo de responsabilidades inimagináveis... O pai impõe-lhe o seminário: ...ensinavam-lhe tudo aí! resolviam-lhe tudo! a vida e a morte! a ele e à família! Bastava aceitar um destino de controlo e solidão, como Peão do pesado tabuleiro eclesiástico, poderosamente hierarquizado, em que o próprio atrevimento da desistência era fortemente penalizado, quer em fundos cortes na equivalência dos estudos, quer na degradação da imagem social em que o farisaísmo da beatice é pródigo. Compreende-se assim que muitos padres se deixaram ordenar por inércia ou tosca cobardia; e, logo que um ventinho de permissividade agitou as batinas, por ex. na denominada revolução dos cravos (de que Torga amiúde fala com vera e crua lucidez), despiram o negro sério da vocação para se lambuzarem de vermelho laical. No tabuleiro seminarístico, as crianças, como cebolo, são colocadas em linha, sob o cajado do Bispo, o caseiro do alfobre. A proximidade é exercida pelo Cavalo – o reitor e demais padres, agentes do poder docente e da direcção disciplinar e espiritual – tudo matematicamente previsto, regulado, legislado, em nome do Rei, o próprio Deus. A pedra de toque da religião (de qualquer religião) é a humildade, a aceitação das regras da vida, a purificação e entrega de si ao próximo em nome de um Bem maior e infinito. Mas este seminarista, lapantim criado nas torgas, tinha-se habituado à liberdade das águias e dos lobos, na comunhão do sol e da lua, projectados para além das fragas de S. Martinho. Como Ícaro ou Prometeu, todos os dias amaldiçoava a amarfanhada pele de Peão desse Xadrez omnisciente e omnipotente. Sente-se esganado de protecção e angustiado de espanto, à deriva nessa poça minada de regras, listas de virtudes a cumprir e de pecados a evitar: ...a nau Nesta deriva em que vou (...)
O OUTRO LIVRO DE JOB - livro de Horas
Cada hora está sujeita a um controlo regulamentado (Livro de Horas: prima, sexta, nona, vésperas...) tal e qual como o criadito do Porto, que dava porrada às snobes “criadas de dentro” e tinha o atrevimento de ler os preciosos livros dos “meninos”... Passa a rejeitar, ao céu e à terra, o controlo da sua vida e da sagrada intimidade da sua fé: Aqui, diante de mim, Eu, pecador, me confesso De ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau Que vão em leme da nau Nesta deriva em que vou. Me confesso Possesso Das virtudes teologais, Que são três,
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