Quinta-Feira, 10 de Maio de 2012
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua As melhores imagens da sua História
O
Emoções tecidas neste lugar
meu amigo José Alfre- suor que lhe escorria do rosto e do Almeida pediu-me regressava, alguns minutos depois, que escrevesse sobre os Bombeiros com a notícia, “o fogo é em Lou-
Voluntários da Régua, de imediato aceitei o seu convite. Reconheço agora que a minha atitude foi impulsiva e motivada por razões afetivas, pela minha paixão pela terra que me viu crescer e por esta imperiosa necessidade de invocar as raízes numa altura da vida em que já espalhamos ramos e perdemos folhas em tantos locais diferentes. Se tivesse sido mais ponderada teria, diplomaticamente, agradecido a distinção e declinado o convite. Perdi a oportunidade, nada mais me resta do que invocar as minhas memórias esparsas e cheias de fadas e duendes míticos para testemunhar o que os bombeiros foram para mim. Em casa dos meus avós ouvíamos a sirene dos bombeiros, era um grito desesperado de socorro, atormentava o meu coração de criança e conduzia a minha imaginação para cenários terríveis de fogo e calor. Lá em casa todos se agitavam, “onde é o fogo? onde é o fogo?” A Maria descia a correr as escadas que nos ligavam à Régua, ia embrulhando o avental numa rodilha com que secava o
reiro”. Nessa altura já a minha avó tinha telefonado para a irmã que vivia em Loureiro, assegurava-se de que estava tudo bem, que a família e os bens estavam a salvo do fatídico fogo. No entremeio das considerações da vida, lá vinha a invocação a São Marçal, que o seu cajado ajudasse os bombeiros a combater o fogo, mas também de Sta. Barbara que tinha influência sobre trovoadas e raios. Naquele tempo havia santos e auxílio divino para tudo, pelo menos em casa dos meus avós. O quartel dos bombeiros era perto da minha escola, um pouco mais acima, logo a seguir à Alameda. Nas tardes de verão, quando paravam as chuvas e os dias começavam a crescer, ir à biblioteca dos bombeiros era uma boa desculpa para sair de casa. Recordo bem a entrada pela porta da enorme garagem onde se alinhavam os maravilhosos carros vermelhos e logo à direita uma porta menor para uma escada de madeira escura que conduzia à biblioteca. A escada era o corredor mágico para um mundo muito mais inte-
ressante do que aquele em que rência da vida pública, o comaneu vivia, o mundo fantástico dos dante dos bombeiros uma figura livros. Uma das melhores recorda- prestigiada e respeitada. Com o dealbar da democracia o debate político local passava pelos bombeiros, pelos jogos de poder em torno das escolhas para a direção e dos equilíbrios que era necessário gerar entre o poder político, essencialmente autárquico e a sociedade, basicamente resumida à associação dos bombeiros e à misericórdia. Eu estava a entrar na adolescência e a minha consciência social estava em formação, queria um mundo melhor e mais justo, com mais oportunidades para todos, com mais oportunidades para mim, nascida mulher numa família de classe média, numa pequena cidade do interior e com uma curiosidade imensa e mal compreendida. Foi por esses anos que mais uma catástrofe se abateu sobre a nossa cidade, as cheias foram ções da minha infância é o cheiro devastadoras e muitas famílias da biblioteca, daquele soalho de ficaram desalojadas. Numa noite madeira corrida, das paredes co- fria e chuvosa eu estava na rua a bertas de estantes fechadas por ajudar quem precisava, guardo portas de janela que protegiam comigo os olhos desesperados os livros, da mesa escura onde de uma mulher com uma criança repousava uma caixa metálica ao colo que via ir com o rio todos cheia de pequenas fichas manus- os seus bens. Os bombeiros estacritas com letra miúda. Daqueles vam lá, garantiam o sucesso das objetos desprendia-se um odor operações de salvamento, eram de cera, de limpeza, de madeira jovens de rostos fechados, galoe de tempo. Tenho procurado chas de borracha e uma força esse mesmo odor em outros locais onde descansam os livros, nunca mais voltei a encontra-lo. Devo ter lido todos os livros juvenis da biblioteca, depois passei para os clássicos da literatura portuguesa. Comecei por Júlio Diniz, mas muito rapidamente cheguei a Eça. Não foi na biblioteca dos bombeiros que formei o meu gosto literário, a coleção era conservadora e não contemplava autores que são hoje a minha principal referência cultural, mas foi lá que encontrei a inspiração para muitos sonhos, foi ali que começaram muitas viagens que só muito mais tarde eu viria a fazer. Os bombeiros eram uma refe-
SEMANÁRIO INDEPENDENTE DEFENSOR DO ALTO DOURO
Cristina Paula Baptista
sobre-humana que se impunha à água e ao desespero dos homens. Quando perdi um amigo e pela primeira vez o luto cobriu o meu coração foi atrás do carro dos bombeiros que, a caminhar, homenageei a sua curta vida e acalmei a minha dor. Com o calor também a festa chegou à cidade. Estalou o fogo-deartifício sobre o rio, fez-se a feira franca e as ruas apinharam-se de gente para ver a Senhora passar. Engalanaram-se as janelas e as varandas e, a abrir a procissão, vinha a fanfarra dos bombeiros. O meu olhar ficava preso nas botas brancas das raparigas e o meu coração batia ao ritmo do som das caixas dos rapazes. A fanfarra dos bombeiros fazia despertar em mim o mistério do divino que, andor a andor, a procissão ia revelando até ao momento crucial em que perante Nossa Senhora do Socorro me ajoelhava e orava. Há 30 anos que não vivo na Régua, tenho sobre a cidade e as suas gentes o olhar de quem “está fora”, raramente partilho os seus dramas e alegrias, mas o que levo comigo onde quer que eu vá são as emoções tecidas neste lugar, onde guardo as minhas raízes.
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