IDEALIZANDO UM CAMINHO ENTRE A PRAÇA E A ESCOLA
pesquisa para trabalho de conclusão de curso “os espaços livres da cidade e a liberdade das crianças”
IDEALIZANDO UM CAMINHO ENTRE A PRAÇA E A ESCOLA pesquisa para trabalho de conclusão de curso “Os espaços livres da cidade e a liberdade das crianças” em parceria com a disciplina estúdio vertical
autora
Guega Rocha Carvalho
colaboradores
Juliana Flahr
Joana Andrade Felipe do Amaral orientação
Martin Corullon
co-orientação Ana Carolina Tonetti
instituição
Escola da Cidade
local São Paulo, SP data junho/2017
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A CRIANÇA NA CIDADE CONTEMPORÂNEA
“Uma cidade que negligencia a presença da criança é um lugar pobre. Seu movimento será incompleto e opressivo. A criança não pode redescobrir a cidade a não ser que a cidade redescubra a criança.” 1 (EYCK2, 1962)
(1) Tradução livre da autora de “A city which overlooks the child’s presence is a poor place. Its movement will be incomplete and oppressive. The child cannot rediscover the city unless the city rediscovers the child”. (2) Aldo Van Eyck (1918 - 1999) foi um arquiteto holandês. Depois da Segunda Guerra Mundial, ele projetou e implementou centenas de parquinhos na cidade de Amsterdan. Esses parquinhos públicos se localizavam em parques, praças e espaços abandonados, e consistiam em equipamentos de brincar com estética minimalistas, desenvolvidos para estimular a criatividade das crianças.
Nas grandes metrópoles, como São Paulo, a grande maioria das crianças vive aprisionada nos muros de suas casas, escolas e centros de lazer. O seu caminhar e permanência em espaços livres da cidade é muito limitada. Isso é maléfico para a saúde física e social das crianças e para a cidade, pois uma cidade adequada para a criança é mais saudável, amigável, divertida e democrática, ou seja, é melhor para todos. A temática da ausência da criança na cidade contemporânea, e a busca por soluções que permitissem sua mobilidade com mais autonomia e diversão no caminho entre praças e escolas, norteou um estudo com cerca de 130 crianças, de 7 a 12 anos, de diferentes classes sociais moradoras do distrito da Consolação, na cidade de São Paulo. Entre outros aprendizados, os desenhos das crianças idealizando
o caminho entre a escola e a praça revelaram que crianças que estudam em escola pública, tem uma visão e relação muito diferente com a cidade do que as crianças que estudam em escola privada. As primeiras, que geralmente andam mais a pé, usam o transporte coletivo e frequentam mais as praças, desenham um caminho muito mais relacionado com a realidade da cidade, com toda sua beleza e conflitos. Já aquelas que vivem muito mais “protegidas” e alheias à rotina da metrópole, ilustram um caminho associado à fantasia dos contos de fadas, desenhos animados e jogos de videogame. Por outro lado, fica claro que os espaços públicos são a única possibilidade de encontro dessas crianças, tanto do ponto de vista físico como da convergência de sonhos, pois é neles que todas as crianças do grupo se enxergam brincando com a tão almejada liberdade completa. 5
os espaços do cotidiano
Para entender os espaços do cotidiano, conversamos com cerca de 130 crianças, de 7 a 12 anos, de diferentes classes sociais moradoras de Higienópolis e Vila Buarque, cerca de 60 crianças de escola privada e 70 crianças de escola pública, sendo 10 delas moradoras de uma ocupação do centro. Contamos com a parceria de uma escola privada de Higienópolis de alto padrão social, com o projeto Curumim do SESC Consolação, que recebe crianças, na sua maioria de escolas públicas, e com a ocupação José Bonifácio, próxima ao Largo São Francisco, no Centro. Com a parceria dos espaços educadores, desenvolvemos três dinâmicas com as crianças, em sala de aula, em junho de 2017.
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Na primeira delas, narramos uma história sobre a transformação de uma vila em cidade, usando como ilustração o livro PopVille, que demonstra de uma maneira bastante lúdica o surgimento das infraestruturas e desaparecimento do verde e espaços públicos da cidade. Modificamos um pouco a história para inserir a questão do lugar da criança nessa nova cidade e questionamos: Onde foram parar as crianças? Onde as crianças brincam nessa nova cidade?
A história de uma vila que virou cidade. (1) No início, havia uma igreja com sua torre, que era possível de ser vista de longe. Todo mundo chegava até a vila pela mesma estrada e encontrava ali ao redor da igreja alguns dos moradores da vila. Eram homens, mulheres e crianças, que gostavam de passear no campo e visitar outras vilas para buscar aquilo que precisavam para viver. Um dia, para que não precisassem mais viajar até as vilas vizinhas, eles decidiram aprender a construir, e fizeram com as próprias mãos o início de uma cidade. (2) Assim eles poderiam fazer menos viagens e acumular ali os itens de necessidade, o que também atraía os moradores das vilas vizinhas. As crianças assistiam àquela transformação e aos poucos viam que o amontoado de tijolos se transformava num pequeno novo conjunto de casas e armazéns. (3) Os trabalhos não paravam e o barulho da construção da cidade tomou conta da vila. O martelo batia, os tratores levantavam a poeira e as máquinas tomavam conta da comunidade dia e noite. Os espaços em volta da igreja, que antes eram cheios de árvores, agora estavam tomados por novos prédios que abrigavam as novas atividades. (4) Cada vez mais, novas pessoas chegavam e novos caminhos que eram abertos. As árvores agora só eram vistas de longe, na estrada, quando se estava chegando ou saindo da cidade, ou nas praças, onde os homens e mulheres poderiam descansar no intervalo de construção da nova cidade. (5) A cidade cresceu e foi tomando conta de todo o espaço. A estrada do trem chegou até lá, e a cidade agora tinha outra cara. De onde antes se podia ver a torre da igreja, agora só era possível ver o relógio e as chaminés. As pessoas que moravam nas vilas vizinhas também se mudaram para a cidade e aos poucos todo mundo se cruzava pelas ruas. Mas um dia perceberam que uma coisa havia acontecido... (6) Agora as ruas tomavam conta de tudo. Os ruídos da cidade estavam por todos os lados. Só que na cidade grande, construída por homens e mulheres, ninguém mais podia ver as crianças. Onde foram parar as crianças na cidade? O que uma criança tem pra fazer na cidade? 7
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Num primeiro momento, as crianças respondem com naturalidade sobre as razões de haver poucas crianças nas ruas. Parece ser normal o fato da rua não ser um lugar para as crianças e elas ficarem a maior parte do tempo fechadas dentro de espaços controlados e dedicarem grande parte do seu lazer com a tecnologia, afinal elas já nasceram dentro dessa realidade. “As crianças estão dentro de um lugar, tão na escola, na perua, no carro.” “Estão em algum lugar da cidade, brincando do mesmo jeito.” “Estão jogando videogame, brincando no celular.” (alunos de escola pública) “Na rua não tem muito o que fazer”. “As crianças ficam dentro de casa, mexendo na tecnologia.” (alunos de escola privada) Rapidamente percebemos uma diferença clara entre a relação dessas crianças com a cidade. As crianças
Crianças do projeto Curumim em visita à biblioteca Monteiro Lobato praça Rotary, fotos Juliana Flahr.
“As crianças estão dentro de um lugar, tão na escola, na perua, no carro.” “Estão em algum lugar da cidade, brincando do mesmo jeito.” “Estão jogando videogame, brincando no celular.” alunos de escola pública
“Na rua elas correm o risco de serem atropeladas.” “Elas (crianças) podem ser assassinadas.” “As crianças podem ser levadas, sequestradas.” alunos de escola privada da escola privada, contaminadas pela vivência e visão dos adultos, têm um temor absoluto das ruas e praticamente nenhuma experiência de cidade. A maioria vai de carro para escola e frequenta pouco os espaços públicos. Para elas, a rua representa uma constante ameaça à vida e à integridade física. “Na rua elas correm o risco de serem atropeladas.” ”Mesmo na calçada é perigoso, porque as pessoas ficam olhando no celular e podem bater no poste.” “Elas (crianças) podem ser assassinadas.” As crianças podem ser levadas, sequestradas.” (alunos de escola privada) Já as crianças que frequentam o projeto Curumim costumam andar mais pela cidade. Muitas vão a pé para a escola, todas elas visitam e brincam nas praças da região, atividade regular desenvolvida pelo projeto Curumim e algumas ainda brincam nas ruas,
na frente de casa. Elas conhecem e se preocupam com os perigos da cidade, mas de forma menos aterrorizadora. “Essa cidade é mais perigosa. Tem muito carro”. “Tem que ter cuidado para não ser roubado”. “Não tem criança porque não tem praça.” (alunos de escola pública) Um triste destaque é a reação das crianças alunas de escola pública e moradoras da ocupação José Bonifácio. Se por um lado as crianças da escola privada vêem com terror a possibilidade de brincar na rua, as crianças da ocupação temem a maneira como são tratadas, o preconceito que sofrem, de pessoas de diferente nível social. Além disso, para elas, a rua representa o risco de seguirem por maus caminhos. “Lá fora a gente pode ser maltratada.” “Na rua a gente corre o risco de fazer coisa errada.” (alunos de escola pública, moradores da ocupação JB).
“Lá fora a gente pode ser maltratada.” “Na rua a gente corre o risco de fazer coisa errada.” alunos de escola pública, moradores da ocupação JB 9
os espaços do cotidiano
As crianças e os espaços livres do cotidiano Essa diferença de realidade e vivência da cidade se acentua quando realizamos a segunda atividade com as crianças. Inspirados pelo trabalho de mapeamento coletivo desenvolvido pelo coletivo Argentino Iconoclasistas, que tomamos contato durante o Seminário Internacional de 2017 da Escola da Cidade, desenvolvemos uma cartela de ícones, com atividades, ações e sentimentos ligados à relação das crianças com os espaços livres do cotidiano. Entregamos para cada grupo, de 4 a 5 crianças, quatro cartelas, cada uma representando um espaço livre que as crianças transitam no seu dia a dia: o pátio residencial, o pátio escolar, a praça e a rua (como as que estão na folha 10
ao lado). Pedimos aos pequenos que colassem bolinhas adesivas coloridas nos ícones das atividades, ações e sentimentos, para ilustrar as atividades que elas podem fazer (bolinhas verdes), não podem fazer (bolinhas vermelhas) e que gostariam de fazer (bolinhas amarelas) em cada um dos espaços do cotidiano. Os espaços deixados em branco significam que ou a atividade não é relevante para o lugar ou para a criança. As crianças receberam muito bem o convite para a atividade e a desenvolveram como um jogo, em que elas tinham que conversar sobre as suas experiências e buscar registrar na cartela a vivência da maioria do grupo.
Iconoclasistas é um duo formado por Julia Risler y Pablo Ares, em 2006. Elaboram projetos combinando a arte gráfica, os mapeamentos criativos e a investigação coletiva. Todas suas produções se difundem na web através de licenças creative commons, potencializando a livre circulação e seu uso derivado.
CASA
ESCOLA
PRAÇA
RUA
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os espaços do cotidiano O resultado da atividade está consolidado nas cartelas ao lado e apesar de termos uma amostra bastante significativa, não temos a pretensão de ler os resultados como uma pesquisa quantitativa. Nos interessa observar as principais tendências e a comparação entre os três grupos de crianças (alunos de escola privada, alunos de escola pública e alunos de escola pública moradores da ocupação), percebendo as diferenças e semelhanças de percepção dos espaços e a comparação das experiências dos quatro ambientes (casa, pátio escolar, praça e rua) dentro de cada grupo. Além disso, queremos filtrar os principais aprendizados que poderiam ser aproveitados nas diretrizes de projeto. De modo geral, a vivência nos ambientes privados e protegidos (casa e escola) aproximam o cotidiano das crianças de escola privada e pública (com exceção das crianças moradoras da ocupação José Bonifácio, que vivem uma realidade de carência e exclusão incomparável com os outros dois grupos). Já a experiência nos espaços públicos, como já dissemos, acentuam as diferenças entre os grupos. 12
pode fazer não pode fazer gostaria de fazer
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principais aprendizados Tanto para as crianças da escola privada quanto da escola pública, a residência, é o lugar onde elas se sentem protegidas e livres para fazerem uma série de atividades de lazer: atividades físicas como correr, pular, jogar bola; atividades culturais como desenhar, pintar, ler, escrever, ouvir música, tocar um instrumento; brincar com outras crianças; divertirse com a tecnologia (tv, jogos, redes sociais) e comer suas comidas e lanches favoritos. Os dois grupos sentem falta de poderem realizar atividades ao ar livre como brincar no parquinho, andar de skate e jogar vôlei. Tocar um instrumento sem limite de barulho, como bateria, também é o desejo comum dos dois grupos. Todas crianças também concordam que não devem tratar mal ou machucar outra criança mesmo em casa. Os alunos de escola privada parecem ter um cotidiano em casa mais vigiado, pois a eles não é permitido escalar, subir nas coisas, fazer muito barulho (cantar ou manifestarse em grupo). Por outro lado, o uso da tecnologia parece ser um pouco mais livre e acessível para esse grupo. Consolação, atlas fotográfico, foto 069, Tuca Vieira
A cartela dos alunos moradores
da ocupação revela a total carência por atividades de lazer do dia a dia dessas crianças. Para manter a ordem, a administração da ocupação estabelece regras muito rígidas que devem ser seguidas para garantir a moradia no edifício. É proibida a bagunça e barulho dentro do prédio e as crianças não devem sair para a rua desacompanhadas. A própria administração da ocupação busca escola e atividades de contra turno para manter as crianças ocupadas e afastálas da ameaça do mundo do crime. O resultado é que as crianças não podem fazer quase nada além de comer, ver televisão, jogar videogame e desenhar dentro de casa. Sentem muito a falta de atividades ao ar livre, de cunho físico e cultural.
Os alunos de escola privada e da escola pública demonstram que a escola dá acesso a atividades esportivas (futebol, basquete e vôlei), culturais (artes, teatro e música), mas todas com o intuito educativo. Sentem falta de atividades mais livres e radicais de brincar, como andar de skate e patins, escalar e pular. Gostariam de tocar guitarra ou bateria, quem sabe
montar uma banda. Sabem que se transgredirem as normas da boa educação serão punidos, imagens como dançar de ponta cabeça, fazer manifestação pública ou brigar com outro do grupo, ilustram isso. A principal diferença entre os dois grupos é que as crianças da escola privada parecem gostar mais da escola do que as crianças de escola pública, que frequentam o projeto Curumim. Uma hipótese é que as crianças do projeto do SESC participam de um projeto educativo mais livre e participativo, o que torna a experiência da escola ainda mais limitadora. Apesar de crianças da ocupação possivelmente frequentarem as mesmas escolas do que as crianças do projeto Curumim, as primeiras, pertencentes a uma classe social e condição de vida inferior, não se sentem tão bem na escola, provavelmente por sentirem-se excluídas e estigmatizadas como “crianças sem teto”. Um de seus principais desejos é que elas sejam acolhidas pelo grupo.
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principais aprendizados DESTAQUES De maneira geral, parece ser consenso entre os grupos que a praça é o lugar de todos. Das crianças, das famílias, dos idosos e dos deficientes. Também para as crianças da escola privada e da escola pública a praça é o lugar que elas sentem ou imaginam, que têm mais liberdade. A praça é o ambiente que elas podem fazer as atividades mais radicais que são proibidas em casa ou na escola, como andar de patins, skate, escalar, correr e pular. Para aquelas que costumam frequentar a praça, sabem que na praça elas podem tudo, menos desrespeitar o próximo ou ficar triste. A única coisa que sentem falta é de ter mais autonomia para ir sozinhos à praça. Os alunos de escola privada concordam que a praça é lugar de ser feliz e mostram o desejo de viverem mais essa experiência. Ao contrário do que imaginávamos, as crianças da ocupação JB não podem ir sozinhas à praça e não tem acesso a praça com parquinho e outros equipamentos de esporte e lazer. Para elas, a praça é um lugar onde sentemse mais uma vez excluídas.
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Para todas as crianças, estar na rua é estar totalmente ao ar livre, exposto ao sol e à chuva, e isto traz sensações positivas. As crianças da escola privada e da escola pública parecem não ter muito certeza do que se pode fazer na rua, além de sair para comer fora, mas ao mesmo tempo, parecem desejar brincar mais na rua para poder fazer as atividades que não são permitidas em casa ou na escola, e que elas até poderiam fazer na praça, mas não cotidianamente, já que a frequência à praça é mais eventual, mesmo no caso das crianças frequentadoras do projeto Curumim, não costuma passar de uma vez por semana. Criança quer brincar todos os dias. Mais uma vez a percepção das crianças da ocupação JB é filtrada pela lente do cerceamento e exclusão. Atividades como jogar bola, dançar ou empinar pipa, que são desejadas por outras crianças são vistas como proibidas para elas.
A ligação entre praça e escola pode ser muito interessante para a instituição escolar e seus alunos. A escola amplia seu território educador, incluindo a vivência da cidade no seu curriculum escolar e permitindo às crianças mais liberdade para brincar cotidianamente. A rua e os espaços livres do pedestre podem se transformar em lugares de encontro e brincadeira dessas crianças de diferentes níveis socioeconômico. Há um desejo recorrente das crianças por atividades ao ar livre mais radicais, como andar de patins, skate, escalar, correr e pular. Além de futebol, as crianças gostariam de jogar voleibol nas ruas. Música fascina todas as crianças, especialmente os instrumentos guitarra e bateria. Tomar sol e chuva só é permitido quando se anda nas ruas e pode ser bem divertido.
Chico (6) e Iza (4) brincam, no domingo, na Av Paulista, foto Eduardo A Carvalho.
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O PERCURSO ENTRE A PRAÇA E A ESCOLA
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Depois que descemos do ônibus na rua da Consolação, cruzamos a rua na direção do Cemitério e chegamos à rua Coronel José Eusébio, Otto olha para mim e diz “aqui é a rampa!”. Eu olho e vejo uma quadra tomada pelo muro do cemitério, repleta de carros estacionados, um monte de lixo e dejetos na calçada e não entendo sua exclamação. Vendo seu sorriso no rosto, olho de novo e enxergo uma calçada contínua, sem nenhuma entrada de garagem, com um declive gradual, totalmente sombreada, um lugar ideal para uma criança correr e brincar. Perfeito para uma de nossas intervenções. Eu jamais teria percebido isso sozinha.
A terceira e última atividade realizada com as crianças foi uma espécie de contra-cartografia do caminho da escola até a praça. Essa dinâmica foi realizada apenas com os alunos da escola privada e do projeto Curumim. O grupo das crianças da ocupação José Bonifácio era muito pequeno e dispersou antes de fazermos essa atividade. Primeiro, organizamos as crianças em grupos de quatro a cinco integrantes. Demos a cada grupo uma folha de papel A2 e lápis/caneta para colorir. Pedimos que fizessem um desenho livre do caminho ideal (mais seguro e mais
divertido) para as crianças caminharem do espaço educador até a praça com mais autonomia. Depois de cerca de trinta minutos de iniciada a atividade, entregamos para as crianças uma cartela de ícones que elas poderiam adicionar ao desenho, com o objetivo de verificar imagens recorrentes nos caminhos. Além dos desenhos, acompanhamos e observamos as crianças andando nas ruas em seu percurso de casa e no trajeto escolapraça. Percurso casa-escola: Acompanhamos duas crianças no seu trajeto casa-escola: 1) Otto, um garoto
de 6 anos, que mora no edifício Copan e vai de ônibus até a escola Ofélia Fonseca, acompanhado pelos pais ou por outro adulto responsável; 2) e Violeta, uma garota de 11 anos que estuda no colégio Equipe e vai a pé sozinha ou com os amigos até seu apartamento nas imediações do parque Buenos Aires. Percurso espaço educador-praça: Acompanhamos duas turmas do projeto Curumim do SESC Consolação no seu passeio semanal às praças da região. Com a turma da manhã visitamos a praça Rotary e com a turma da tarde fomos ao parque Buenos Aires. 19
idealizando o caminho Ao analisarmos os desenhos, mais uma vez, percebemos a diferença da relação com a cidade entre os alunos da escola privada e da escola pública. As crianças do projeto Curumim (sua maioria estudante de escola pública) criam um caminho bastante enraizado na realidade. Já os alunos da escola privada idealizam um caminho muito mais ligado à fantasia, o que aponta seu descolamento da vida urbana. Na cidade dos alunos do projeto Curumim aparece a experiência cotidiana dessas crianças, que andam mais a pé, usam transporte público e frequentam as praças da região, semanalmente, guiadas pelo próprio SESC. Parece ser uma cidade mais caótica, mais desordenada, o que espelha melhor a complexidade e os conflitos do dia a dia na cidade. No caminho das crianças do espaço educador à praça aparecem uma diversidade de estabelecimentos que as crianças se identificam na cidade, como livrarias, loja de eletrônicos, cinema, teatro, escolas de música, de artes, de esportes, pet shop, lanchonete, pizzaria, padaria, sorveteria. Também encontramos equipamentos coletivos como hospital, biblioteca e faculdade, e elementos de infraestrutura de 20
mobilidade, como minhocão, terminal de ônibus, estacionamentos e ciclovia, Essas crianças também tendem a mostrar um pouco mais diversidade de pessoas trafegando nesse caminho, que é compartilhado por crianças, adultos, idosos e cadeirantes. Já, no exercício dos alunos da escola privada, a maioria das ilustrações parece revelar a falta de conhecimento e identificação dessas crianças com a urbanidade. Muitos desenhos remetem a desenhos animados, jogos de videogame e contos fadas. Neles encontramos ruas de balas de menta, frangos voadores, máquinas que cospem dinheiro, chuvas de sorvetes e heróis de videogame, que matam e prendem vilões, por exemplo. Outros desenhos, dessas crianças, mostram uma cidade organizada e idílica, onde tudo parece funcionar bem e nada está fora do lugar. Arco íris, estrada de terra, lago, casa com piscina e quadra privativa, fazem parte dessas ilustrações que parecem revelar um cotidiano fechado nos condomínios e nos centros de compras e lazer. Quando os desenhos se aproximam mais da realidade, a diversidade e
complexidade é menor do que a descrita pelos alunos de escola pública, e os estabelecimentos recorrentes, que aparecem no caminho, são o shooping center, lojas de brinquedos, padaria, lanchonete e sorveteria. Outra diferença marcante entre os dois grupos é a maneira como ilustram a praça. As crianças do projeto Curumim refletem em seus desenhos o seu conhecimento e convívio cotidiano com esse espaço público. A maioria dos desenhos detalha bastante a praça, mostrando os elementos existentes, como árvores, bancos, parquinho, quadra e biblioteca. Alguns desenhos ainda incluem pista de skate, parede de escalada, e cama elástica como objeto de desejo. Os desenhos dos alunos de escola privada parecem reforçar a falta de afinidade dessas crianças com a praça, pois a maioria deles mostra um olhar mais de fora do que de dentro da praça. Outros simplesmente suprimem a ilustração da praça. Em comum entre os dois grupos, aparece o desejo de fazer refeições fora de casa, como ir a lanchonete, padaria, pizzaria, sorveteria, etc. Outra semelhança é que mesmo sendo um caminho idealizado pelas crianças
para ser mais divertido e mais seguro, as crianças quase nunca aparecem nas ruas e calçadas representadas. Elas geralmente estão na escola, na praça ou em lugares fechados, como outros espaços educadores (escolas de dança, música, esportes, etc), espaços culturais (cinema, teatro, biblioteca), lojas, lanchonetes, sorveterias, pizzarias, padarias, etc. Quando a criança aparece, o carro é claramente excluído ou proibido, o que retrata a percepção da falta de prioridade sofrida pelo pedestre. Num dos desenhos as crianças desenham um helicóptero atravessando a faixa de pedestre, destacando que este seria o único meio seguro de atravessar a rua. Agora, se para elas, a presença do carro é incompatível com um caminho ideal para crianças, a bicicleta é a grande aliada. Ela aparece em praticamente todos os desenhos e em muitos deles acompanhada por uma ciclovia. Por fim, um valor comum à essas crianças é a natureza. Todas elas desenham ou colam árvores e flores em seus desenhos e gostariam que o caminho e a praça fosse mais bem cuidado e limpo.
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o uso dos ícones Durante a atividade de desenho, no qual as crianças deveriam ilustrar o caminho ideal do espaço educador até a praça, os grupos receberam a cartela dos ícones ao lado, depois de cerca de trinta minutos de iniciada a atividade. As crianças podiam optar por usar ou não as figuras. Observamos que as crianças do projeto Curumim (sua maioria de escola pública) tenderam a usar mais os ícones do que as de escola pública, o que pode reforçar o vínculo das primeiras com a realidade urbana. Na página ao lado, mostramos uma tabulação geral da incidência desses ícones nos desenhos. Mas atenção, estamos falando em quantos desenhos o ícone aparece e não quantas unidades do ícone foram colados, pois em muitos desenhos o mesmo ícone po de se repetir várias vezes. Outra observação é que só colocamos na tabulação geral de ícones aqueles que se repetiram em pelo menos dois desenhos. Novamente, não temos o intuito de fazer uma leitura quantitativa da tabela, mas observar algumas possíveis tendências. A incidência dos ícones nos desenhos 22
dos dois grupos parece mostrar sobre: pessoas: percepção de maior diversidade de pessoas no caminho por parte dos alunos de escola pública (maior repetição dos ícones pessoa com cachorro idoso, cadeirante e manifestante, no caminho). esportes, recreação ao ar livre e mobiliário urbano: maior conhecimento e uso da praça por parte dos alunos de escola pública (maior repetição de todos os ícones de esporte e de recreação outdoor, exceto tomar sol, e de mobiliário urbano, na praça). cultura: maior diversidade de programas culturais no caminho da cidade retratada pelas crianças do projeto Curumim (exemplo: maior repetição de todos os ícones de cultura, no caminho). comida, tecnologia e natureza: nesses três ítens as diferenças se reduzem ou se equilibram, o que aponta serem temas valorizados pelas crianças de forma mais horizontal. mobilidade: alta identificação dos dois grupos com a bicicleta e um pouco maior de afinidade dos alunos da escola pública com o transporte coletivo, no caminho,
Tabela de ícones acima usada pelas crianças em seus desenhos. Tabulação geral, ao lado, da incidência dos ícones nos desenhos das crianças.
PESSOAS
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RECREAÇÃO OUTDOOR
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CULTURA
COMIDA
TECNOLOGIA
MOBILIÁRIO URBANO
NATUREZA
ícone 4
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7
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MOBILIDADE
5
0
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6
4
4
3
3
4
2
# desenhos com o ícone
escola escola pública privada na praça
2
na praça
3
no caminho
3
no caminho
4
0
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Os dois desenhos ilustram bem a complexidade da cidade percebida pelos alunos da escola pĂşblica. 24
desenho 1 crianças, projeto Curumim
AlÊm dos diversos estabelecimentos, percebemos a ciclovia no desenho 1 (em vermelho) e a calçada no desenho 2 (em marrom).
desenho 2 crianças, projeto Curumim
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Vemos bem a volorização e conhecimento dos equipamentos e atividades da praça por essas crianças. 26
desenho 3 crianças, projeto Curumim
Além do Parque Buenos Aires, que era o destino pedido na dinâmica, as crianças incluiram espontaneamente a Praça Rotary.
desenho 4 crianças, projeto Curumim
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Chama a atenção a importância dada à faixa de pedestre e à criança, que aparece em toda parte e é maior do que o carro. 28
desenho 5 crianças, projeto Curumim
O helicóptero é apontado pelas crianças como a única maneira segura de atravessar a faixa de pedestre.
desenho 6 crianças, projeto Curumim
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Nesse desenho o carro é proibido, o único veículo permitido são os Animacars, carrinhos pilotados por crianças. 30
desenho 7 crianças, projeto Curumim
Percebemos a familiaridade das crianças com os equipamentos da cidade, pela inclusão da Santa Casa e do Minhocão.
desenho 8 crianças, projeto Curumim
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Na fantasia dessas crianças de escola privada, a cidade é um parque de diversões, cheio de guloseimas, e a rua é coberta por menta. 32
desenho 9 crianças, escola privada
ESCOLA Nesse caminho, chove sorvete e dinheiro. Em ambos os desenhos não há carros e a ilustração da praça é bastante simplificada.
desenho 10 crianças, escola privada
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ESCOLA
A cidade, o caminho e a praça são convertidos num jogo de videogame, com herói e vilão. O único contato com a realidade é a padaria. 34
desenho 11 crianças, escola privada
LA
SC O
E
A cidade é transformada num parque bucólico, com estrada de terra, toda arborizada, com lago, onde carro não pode entrar.
desenho 12 crianças, escola privada
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A cidade entre a escola e a praça limita-se à casa das alunas e ao shopping center, numa atmosfera de um paraíso perfeito. 36
desenho 13 crianças, escola privada
ESCO LA Novamente a ilustração da cidade é bastante simplificada, restringindo-se ao shopping, loja de brinquedos, games e lanchonetes.
desenho 14 crianças, escola privada
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ESCOLA
Nesses dois últimos desenhos a cidade já aparece mais elaborada, mas a afinidade com a praça ainda parece pequena. 38
desenho 15 crianças, escola privada
ESCOLA
Eles também destacam a importância da continuidade do caminho e a valorização da bicicleta e ciclovia.
desenho 16 crianças, escola privada
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principais aprendizados
1. Continuidade. O melhor caminho para as crianças é o mais contínuo, com menos travessias e menos interrupções de entradas de garagem. A maioria dos desenhos das crianças revela essa busca pela continuidade, já que poucos indicam o cruzamento de ruas. Quando ele aparece, tem um cuidado em reforçar a prioridade para o pedestre. Essa importância da continuidade é indicada nos manuais de caminhos escolares. Implicação: buscar calçadas mais contínuas eapropriação de muros, pois o aspecto positivo dos grandes muros é justamente a continuidade.
Crianças de escola privada desenhando durante a dinâmica, foto Joana Andrade.
2. Tem que cruzar! No último cruzamento de via, antes de chegarmos ao parque Buenos Aires, percebemos que dois meninos (do grupo dos menores, com aproximadamente 7 anos), darem-se as mãos antes de atravessarem a rua. Ao chegar ao outro lado eles soltam e continuam a jornada, ansiosos por chegarem ao parque. Perguntamos aos dois porque atravessaram de mãos dadas e eles responderam com doçura, “porque assim a gente fica com menos medo.” Atravessar a rua é inevitável, não existe
nenhum caminho totalmente contínuo. Nos desenhos e conversas com as crianças, percebemos que esse é o momento de maior temor dos pequenos e eles já pedem que a prioridade do pedestre seja respeitada. Na conversa com os (as) professores do projeto Curumim e Carolina Padilha, uma das fundadoras do projeto Carona a pé, a escolha do caminho para a praça ou escola leva em conta a existência de faixa de pedestre e o tempo dos semáforos. A escolha sempre prioriza o cruzamento mais seguro (de tempo mais longo e com botoeira) em vez do caminho mais curto. Implicação: consultar manuais de departamento de trânsito, para entender formas de tornar cruzamentos mais seguros. 3. Tempo & Distância. O tempo e a distância são muito diferentes para as crianças, especialmente para as menores. Geralmente elas se cansam e se entediam mais rápido. Não foi difícil perceber o tédio na cara do Otto, enquanto pegávamos o ônibus para chegar à escola. Ele acha a escola muito longe de casa e preferia poder ir apenas caminhando. Já a Violeta, toda
orgulhosa, nos apresentou um atalho para vencer a diferença de cota da rua Doutor Veiga Filho para a Avenida Higienópolis, usando o elevador de serviço do shopping Higienópolis. Implicação: atalhos e pontos de encontro / paradas são bem vindos. 4. Menos carros, mais brincadeira. Em muitos desenhos das crianças a presença do carro é suprimida para dar lugar à criança. O medo de atropelamento é muito presente em suas vidas, já que o tempo todo elas são alertados pelos adultos sobre esse risco. Para elas está muito claro que a presença da criança na cidade está inversamente relacionada à do carro. Menos carros para elas significa mais liberdade para caminhar, brincar, correr, andar de bicicleta, patinete, patins, etc. A implantação das ruas do brincar (ruas que fecham para os carros nos domingo) é uma grande prova disso. Por outro lado precisamos pensar numa cidade onde adultos e crianças, carros e patinetes convivam e se respeitem. Implicação: evitar vias com tráfego intenso e alta velocidade.
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principais aprendizados 5. Beleza & Obstáculo. Estávamos no parquinho do Parque Buenos Aires quando uma criança pediu para ir ao banheiro. O professor indicou o caminho “É só sair por aquele portão, e virar à direita”. O primeiro garoto se dirigiu ao banheiro, seguindo a instrução do professor. Em seguida um gritou “eu também vou”, saiu correndo e em vez de sair pelo portão, escalou o bebedouro e pulou a grade, os amigos olharam maravilhados e numa
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sequencia de 4 ou 5 repetiram o novo caminho descoberto pelo amigo. Como disse Irene Quintáns1 em entrevista à Folha de SP (2017) “ elas (crianças) vêem beleza e obstáculo em todo lugar”. O olhar da criança para a cidade é muito diferente do olhar do adulto. Eles transformam uma guia, uma rampa, uma escada, um banco, uma grade, um muro, e seja lá o que for em brinquedo e desafio para testar seus
limites. Isso vale também para a beleza, as crianças enxergam beleza em tudo. Um pequeno arbusto, um jardim com flores, uma árvore frutífera, um muro desenhado, ou uma foto intrigante, pondem transformar o caminho de uma criança. Por outro lado a cidade ideal da criança é um parque de diversão, é preciso um filtro para transformar o seu desejo em arquitetura: sim ao lúdico, não ao exclusivamente infantil.
Implicação para projeto: tirar proveito do conceito da ambivalência, pensar em intervenções que sirvam para a criança brincar, mas que também sejam úteis para os adultos, para a cidade.
(1) Arquiteta urbanista especialista em Estudos Territoriais, Políticas Sociais, Mobilidade, Habitação e Gestão Urbana. Vicepresidente da IPA Brasil (Associação Brasileira pelo Direito de Brincar).
6. Comer e comer! Tanto nos desenhos quanto nas observação das crianças andando na ruas, percebemos que os principais pontos que as localizam na cidade estão relacionados com a comida: padaria, restaurante, lanchonete, sorveteria e doceria. Faz todo o sentido, já que muitas vezes que elas saem às ruas com os adultos, elas fazem refeições fora de casa. Além disso são lugares que trazem experiências prazerosas.
Implicação para projeto: na criação de uma rede amiga da criança (ferramenta importante usada nos caminhos escolares) os estabelecimentos de serviços de refeição são fundamentais, especialmente os de fachada permeável, pois são facilmente reconhecidos e acessíveis pelas crianças. Crianças do projeto Curumim no parque Buenos Aires, fotos Joana Andrade.
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guega rocha carvalho . grocha.carvalho@gmail.com