Gombrich Essencial:Textos selecionados sobre arte e cultura

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Gombrich Essencial: Textos selecionados sobre arte e cultura Ernst Hans Gombrich

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Formato: 18,3 x 25cm Páginas: 624 ISBN: 978-85-407-0159-5 Ano: 2012 Ricamente ilustrado, Gombrich Essencial reúne uma seleção de textos fundamentais de Ernst Gombrich, referência internacional em História da Arte no século XX, abordando temas como natureza da representação, arte e psicologia da percepção, tradição e inovação, a interpretação das imagens, métodos em História da Arte.


Parte I

Autobiogrรกfica


Um esboço autobiográfico Texto transcrito da gravação em fita cassete de uma palestra informal dada na Rutgers University, Nova Jersey, em março de 1987; publicado em Topics of our Time (1991), pp. 11–24

Obrigado pelo seu gentil convite para falar sobre aquele tema em particular que jamais discuti em público, ou seja, eu mesmo. Devo-lhes advertir para que não se decepcionem quando falar sobre minha vida, pois não há grandes sensações, escândalos ou intrigas. O único fato estranho e surpreendente sobre minha longa vida é que, em um período histórico tão cheio de perigos, horrores realmente deprimentes, eu tenha conseguido, em grande parte, levar aquela que é conhecida como a vida de um estudioso enclausurado. Eu não poderia ter escrito tanto se tivesse fugido, como aconteceu com tantos outros naqueles anos horríveis dos quais estamos falando. Nasci em 1909. Há pessoas que sempre são contra ensinar datas, mas as datas são os prendedores mais importantes com os quais podemos pendurar o conhecimento da história. Se você ouve que nasci em 1909, imediatamente se dá conta de que eu tinha 5 anos de idade quando a Primeira Guerra Mundial começou, e que, portanto, aquele período de Viena (a cidade onde nasci) que hoje é tão discutido, a Viena do fin de siècle, para mim era parte do passado. Não me lembro de nada. A Viena na qual cresci, a Viena do pós-guerra, era uma cidade triste e dividida por rivalidades, submetida a uma profunda miséria econômica. Consequentemente, para mim, essa ideia da Idade de Ouro de Viena, que vi representada em uma exibição no Centro Georges Pompidou, em Paris, em 1986, que também foi para Nova York, é algo do qual apenas ouvi falar. Ainda assim, ela é um pouco estereotipada e simplificada, como a história tende a se tornar quando se transforma em mito.Viena, como toda metrópole, consistia de muitas pessoas, muitos círculos distintos. Ela não era uma sociedade monolítica na qual todos discutiam a música moderna ou a psicanálise. Era intelectualmente muito ativa, mas muito diferente dos clichês, que vocês devem observar com certa cautela.

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Por outro lado, o fato de que nasci em 1909 não lhes diz que nasci em um lar no qual pude ouvir muito sobre aquele período famoso da vida vienense. Minha mãe, que era pianista, nasceu em 1873. Em outras palavras, como jovem musicista, ela pôde ouvir Brahms ao vivo. No Conservatório de Viena, foi aluna de Anton Bruckner, que lhe ensinou harmonia musical. Ela conhecia Gustav Mahler extremamente bem e também recordava de Hugo Wolf. Meu pai era um ano mais jovem, tendo nascido em 1874. Ele foi colega de Hugo von Hofmannsthal no Akademisches Gymnasium e o conhecia muito bem. Mas a memória de minha família vai ainda mais longe, pois minha mãe foi uma filha tardia. Meu avô tinha 60 anos quando ela nasceu. Ele pertencia, de fato, à mesma geração de Richard Wagner. É estranho contemplar que a história é tão recente. Todas essas coisas não são tão distantes quanto as pessoas tendem a pensar. Elas apenas parecem ter acontecido há tanto tempo devido a tudo o que ocorreu entre essas datas. Não cheguei a conhecer meu avô, que havia nascido em 1813, mas, novamente, faço alguma ideia das mudanças que ocorreram ao longo de sua vida e da dos meus pais. Minha mãe lembrava claramente a primeira exibição dos usos da eletricidade, quando pela primeira vez viu uma lâmpada acesa conectada a uma parede. Aquelas coisas que hoje consideramos banais eram então milagrosas. E, embora, como disse, eu fosse muito jovem durante a Primeira Guerra Mundial, ainda assim vi o Imperador Francisco José passar em sua carruagem, a caminho do castelo de Schönbrunn.Também lembro-me perfeitamente de seu cortejo fúnebre, ao qual assistimos de uma janela na Ringstrasse. Assim, agora vocês podem entender que realmente sou um monumento histórico. A escola que frequentei era a de muitas crianças de classe média, o Humanistisches Gymnasium, onde aprendi latim e grego. Os tempos eram difíceis, como já disse, mas ainda assim havia uma fervilhante vida intelectual e muita música, como é de se esperar de Viena, apesar da situação econômica, que não era nada fácil. Meu pai era advogado e muito respeitado, mas ele não era daqueles que sabem tirar dinheiro. Acredito que a música na casa de meus pais, no mínimo, influenciou meu desenvolvimento tanto quanto qualquer outra fonte de influência. Éramos realmente íntimos de um grande músico cujo nome talvez vocês já não saibam, Adolf Busch, o líder do Quarteto Busch, um artista dedicado à tradição clássica de Bach, Beethoven, Mozart e Schubert e um crítico 1 ferrenho do Movimento Moderno. Se as pessoas já me acusaram de ser um tanto distante desse movimento, talvez seja porque tais impressões tão tenras tenham desempenhado algum papel em minha vida. Minha mãe conheceu Schoenberg muito bem quando frequentou o Conservatório, mas não gostava de tocar com ele porque, segundo dizia, ele não acompanhava bem o compasso da música. E minha irmã, que ainda vive e é violinista, conheceu Anton von Webern e Alban Berg extremamente bem – Berg inclusive confiou a ela a primeira apresentação de uma de

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suas obras. Ainda assim, passados tantos anos, ela ainda é um pouco cética quanto à música dodecafônica que Schoenberg tentou lançar. Esse é o plano de fundo de uma pessoa que se tornou um historiador da arte, em vez de um músico. Eu aprendi a tocar violoncelo muito mal e nunca treinei o suficiente, mas as artes visuais não eram tão importantes na casa de meus genitores. Naturalmente, meu pai costumava nos levar, quando crianças, ao Kunsthistorisches Museum (Museu de História da Arte), que ficava bastante próximo de onde morávamos. Nos domingos de chuva, costumávamos ir até lá, embora, quando muito jovem, eu sempre teria preferido que ele nos levasse ao Museu de História Natural, que tinha os animais empalhados. Mas depois eu também passei a gostar das pinturas do Kunsthistorisches Museum, e a biblioteca de meus pais foi, sem dúvida, uma das influências determinantes em minha vida. Não que eles tivessem uma biblioteca particularmente grande, mas ela continha volumes dos Klassiker der Kunst (Clássicos da Arte). E a série editada por Knackfuss – composta de monografias dos grandes mestres da Renascença Italiana e 2 da Holanda do século XVII – era leitura cotidiana em nossa casa. Olhávamos essas obras e falávamos sobre elas. Assim, enquanto frequentava o Gymnasium, cada vez mais passei a me interessar por essas coisas: primeiro pela Pré-História – ou seja, machados de pedra e outras coisas que atraem os meninos pequenos – e, depois, também pelo Antigo Egito e pela arte clássica. Como acontece em famílias de classe média, no meu aniversário e no Natal, eu ganhava livros sobre temas que me interessavam. Quando tinha aproximadamente 15 ou 16 anos, passei a ler livros sobre arte grega e saiu – com um título que arte medieval. Logo que o livro de Max não era seu – Kunstgeschichte als Geistesgeschichte (História da Arte como 3 História do Espírito), o ganhei de presente e o devorei. Considerei-o um dos livros mais impressionantes que já havia lido. Sobre a arte grega, li um 4 livro que Hans Schrader escrevera sobre Fídias. Uma convenção das escolas austríacas era que, para o exame final, havia o que podemos chamar de um longo artigo a ser escrito nos últimos meses do ano acadêmico. No ano letivo de 1927 a 1928, quando tinha 18 anos de idade, selecionei como tema as mudanças na apreciação da arte desde a época de Winckelmann até os dias de então. Às vezes, penso que isso é tudo que já fiz – ou seja, continuar me interessando por esse tema particular –, e muitas vezes me pergunto por que o selecionei. Escolhi esse tema em parte porque havia lido um livro de Wilhelm Waetzoldt, Deutsche Kunsthistoriker (O Historiador da Arte Alemão), sobre o 5 desenvolvimento da história da arte – o qual achei muito interessante. Mas também o selecionei por estar intrigado. Eu estava intrigado – lembre-se de que estamos no final da década de 1920 – porque, na geração de meus pais e seus amigos, a arte era abordada de modo extremamente tradicional. Essa era uma tradição que remontava a Goethe e ao século XVIII, na qual o tema da arte era muito relevante e o clássico era considerado muito importante. As pessoas que haviam viajado para a Itália retornavam falando

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sobre as obras de arte que haviam visto e admirado. Mas, naquela época, eu já estava impressionado pela nova onda, que havia conhecido por meio dos livros. Estou falando do Expressionismo, da descoberta da arte medieval tardia, do Gótico Tardio, de Grünewald, das xilogravuras do final do século XV e de coisas similares. Fui, portanto, confrontado com uma nova abordagem de arte que não ressonava com o que havia aprendido da geração anterior. Acho que essa foi a razão pela qual selecionei esse tópico de como a apreciação da arte havia mudado da época de Winckelmann para a dos românticos, dos românticos para os positivistas e desses para os períodos podia ser incluído, de modo posteriores, aos quais, é claro, Max geral, junto com outros escritores de minha própria época. Tendo essa ideia em mente, ou seja, de que a arte era uma maravilhosa chave para o passado – uma noção que havia aprendido com –, decidi estudar história da arte na Universidade de Viena. Havia duas e cadeiras de história da arte em Viena, devido a uma briga entre outro professor. Um dos catedráticos era Josef Strzygowski. Ele era uma figura interessante, uma espécie de agitador em suas aulas, um homem que enfatizava a importância da arte global, da arte das estepes e suas 6 populações nômades. Ele era, de certa maneira, um precursor dos expressionistas antiartes, pois ele odiava aquilo que chamava de Machtkunst, “a arte das potências”, e preconizava uma reavaliação total da arte. Não era a arquitetura em pedra que importava, mas sim a arquitetura em madeira, e habilidades como a construção de tendas. Assisti a suas palestras, mas o achei muito egocêntrico, muito arrogante, e sua abordagem me repelia. O catedrático rival, Julius von Schlosser, era um estudioso discreto. Ele era o autor daquele livro clássico, Die Kunstliteratur (A Literatura Artística), que ainda é a melhor coletânea de escritos sobre a arte desde a anti7 guidade até o século XVIII. Ele se baseava muito nesses textos, mas não era um bom palestrante. Suas aulas eram praticamente monólogos. Ele refletia sobre os problemas em frente de sua audiência, que se esforçava para ficar acordada. Ainda assim, ele era um erudito espetacular. Ele fizera parte do Museu de Viena antes de assumir a cadeira na universidade, com a . Todos sabiam que sua erudição era formidável, por isso morte de o respeitavam, apesar de seu distanciamento e de sua esquisitice. Quando reflito sobre como ele lecionava, ainda me surpreendo com o modo que ele concebia sua tarefa de apresentar a história da arte aos alunos. Além de suas aulas expositivas que, como disse, não eram um grande sucesso, Schlosser dava três tipos de seminário. Um dos seminários, que era natural para ele, era sobre As Vidas dos Pintores, o livro de Vasari. Seus alunos pegavam uma das vidas e a analisavam de acordo com as fontes e todos os aspectos relacionados. Pressupunha-se que todos soubessem o idioma italiano. Era inconcebível participar dos seminários de Schlosser sem ter como ler Vasari no original. Mas também havia dois outros seminários, mais interessantes. A cada quinzena, ele tinha uma reunião no departamento do Museu de Viena em que havia sido o

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1 Cibório, cópia carolíngia de um marfim da Antiguidade Tardia. Kunsthistorisches Museum,Viena

curador, o Departamento de Artes Aplicadas. Schlosser selecionava para seus alunos objetos que o haviam intrigado quando ainda era o encarregado – uma peça de marfim aqui, uma de bronze ali – e perguntava ao estudante: “O que você consegue deduzir? O que você acha que é isso?” Os alunos dispunham de bastante tempo para redigir seus ensaios, pois a tarefa era apresentada no início do ano letivo e, normalmente, se arrastava por muito mais tempo do que o professor havia previsto. Assim, tínhamos tempo para descobrir como solucionar o problema que o havia interessado. Por exemplo, eu tive de falar sobre uma capa de livro em marfim do período carolíngio que representava São Gregório escrevendo e tentar inseri-la em seu período histórico. No ano seguinte, Schlosser me deu outra peça de marfim, um cibório (Figura 1). Ele era bastante intrigante, tanto por sua iconografia, como por outros aspectos. Era considerado como pertencente à Antiguidade Tardia, mas eu sugeri que isso não era verdade, que se tratava de uma cópia carolíngia de um marfim da Antiguidade Tardia. Schlosser disse algo como: “Você não quer publicar isso em nosso anuário?” Naquela época, não havia uma distinção real entre graduandos e graduados. Éramos tratados como adultos. Assim que você ingressava no seminário, você se tornava um colega, digamos assim, e era levado a sério. Acho que era um grande sistema de ensino. E, de fato, publiquei algo sobre essa obra de 8 marfim em 1933. Foi minha primeira publicação. Foi nessa época que me tornei um medievalista, como me chamariam hoje em dia. Esforcei-me ao máximo para estudar todo o assunto. Fiquei chocado com a arbitrariedade e com as muitas lacunas no mapa da história da arte dos séculos VII,VIII e IX. Também me tornei um tanto cético quanto à possibilidade

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2 Um vassalo prestando o juramento de fidelidade ao seu suserano, do Der Sachsenspiegel, um manuscrito do século XIV. Biblioteca da Universidade de Heidelberg

de descobrir exatamente quando e onde esse entalhe em marfim em particular tinha sido feito. Essa foi uma das razões pelas quais, gradualmente, me afastei dos estudos medievais. O outro tipo de seminário que Schlosser dava era sobre problemas. Embora ele fosse uma pessoa muito distante e jamais pudéssemos imaginar que ele havia lido um livro contemporâneo, ele sempre sabia tudo o que estava acontecendo. Um dia ele me pediu – na verdade, ele pediu aos alunos e me ofereci como voluntário – para falar sobre Stilfragen, o primeiro grande livro de Alois Riegl (1858–1905), acerca da história da decoração 9 ornamental. Schlosser havia conhecido Riegl muito bem e costumava falar sobre ele com admiração, mas também com certa distância. Ele sempre mencionava que Riegl era bastante surdo e um estudioso muito solitário e introspectivo. O professor me pediu que expusesse para ele e para a turma minha opinião da obra após o lapso de tantos anos – e foi o que fiz. Muito tempo depois, retomei o assunto várias vezes. Já fui acusado de não respeitar Riegl adequadamente, mas, de fato, o admiro profundamente, e meu contato com sua obra remonta àqueles primeiros dias como estudante. Outro problema que Schlosser nos colocou, e que também discuti em um de seus seminários, foi o Sachsenspiegel, um manuscrito jurídico do século XIV que tratava dos vários rituais legais e dos gestos apropriados a eles: como fazer um juramento ao seu senhor feudal e outras formalidades do tipo. Esses gestos manuais eram representados nesse manuscrito. Um historiador chamado Karl von Amira havia escrito sobre o Sachsenspiegel, e 10 Schlosser queria inserir a obra em um tema geral. Foi assim que me interessei pelos gestos e rituais da prática legal medieval (Figura 2). E esse é outro 11 assunto que tem sempre me fascinado: a comunicação por meio de gestos. Portanto, os temas propostos eram, sem dúvida, para adultos. Os padrões eram elevados. O número de alunos em um seminário de Schlosser

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não era grande, e éramos uma comunidade muito unida. Discutíamos o dia inteiro os temas uns dos outros. Trocávamos dicas sobre nossos trabalhos. E assim também aprendíamos muito sobre os temas dos colegas. Era assim que estudávamos a história da arte. As aulas expositivas não eram tão importantes, mas os seminários eram. Além disso, é claro que Schlosser não era o único que dava seminários.Tínhamos alguns seminários no museu.Também tínhamos seminários ministrados por Karl Maria Swoboda, Hans R. Hahnloser e Hans Tietze. Naquela época, Tietze estava escrevendo sobre a Catedral de São Estevão, e então tivemos um seminário na frente da Catedral sobre os vários aspectos de sua história. Naqueles dias, a formação de um aluno era muito menos rigorosa. Não se esperava que cobríssemos um campo determinado. Não tenho certeza se, durante todos aqueles anos de estudos, ouvi o nome de Rembrandt mencionado com muita frequência. Mas nos mostravam como lidar com problemas, métodos e coisas assim. Nas universidades da Europa continental era perfeitamente natural que você frequentasse aulas expositivas não somente de suas disciplinas, mas que fosse a toda palestra que julgasse interessante. Se você quisesse ouvir alguma coisa sobre o latim tardio, era só assistir a uma aula de latim tardio. E se quisesse ouvir falarem de história, ia a uma aula de história e assim por diante.Você simplesmente assistia a uma aula aqui e a outra ali, sobre várias matérias, e eu fazia isso com frequência, assim como todos os meus amigos. Ou seja, o currículo escolar era muito mais livre, embora fôssemos obrigados a selecionar, no fim, um tema para nossa tese e apresentá-lo ao nosso professor – que, no meu caso, era Schlosser. Uma vez que não havia divisão entre alunos da graduação e da pós-graduação, o curso encerrava com a redação de sua tese de doutorado. Em geral, esperava-se que os alunos fizessem isso ao término de cinco anos de estudos. Essa tese era considerada muito importante, embora não levássemos mais de um ano para escrevê-la. Geograficamente,Viena é bastante próxima da Itália, que eu visitava com frequência, para ir aos museus e ver as obras de arte. Em uma dessas viagens, fui ao Palazzo del Tè, em Mântua, que me intrigou profundamente por sua arquitetura estranha e pelo conjunto de afrescos ainda mais curiosos feitos por Giulio Romano (Figuras 3 e 4). Bem, agora estamos falando da época em que o Maneirismo era a última moda intelectual. As pessoas discutiam muito a importância do Maneirismo, em particular o problema sobre se houvera um Maneirismo na arquitetura, assim como na pintura. E aqui estava um prédio, o Palazzo del Tè, que fora construído pelo mesmo indivíduo que fez as pinturas, Giulio Romano, e me pareceu que esse seria um tema muito bom para discutir a questão da existência do Maneirismo na arquitetura. Assim, sugeri a Schlosser que gostaria de escrever minha tese sobre Giulio Romano como arquiteto. Ele achou que a ideia era muito boa, então pus mãos à obra. Fui para Mântua e trabalhei um pouco com os arquivos. Tentei descobrir documentos novos, mas, antes de tudo, busquei interpretar a

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3 Detalhe da porta da fachada oeste do jardim interno do Palazzo del Tè, Mântua, cerca de 1526 4 Giulio Romano e assistentes, Polifemo com Ácis e Galateia no plano de fundo, cerca de 1528. Afresco. Sala di Psiche, Palazzo del Tè, Mântua

curiosa mudança na arquitetura que havia acontecido na geração seguinte à de Rafael. Afinal de contas, Giulio Romano foi o discípulo favorito de Rafael. Discuti essas questões em minha tese. Contudo, durante todo esse período, fui gradualmente me tornando um pouco cético quanto à interpretação então corrente do Maneirismo como expressão de uma grande crise espiritual na Renascença. Se você se sentar em um arquivo e ler as várias cartas dos membros da família Gonzaga, das crianças, dos puxa-sacos e de outras pessoas, cada vez mais se dará conta de que eles eram seres humanos, e não “épocas” ou “períodos” ou coisa que o valha. Questionei-me se essas pessoas estavam passando por uma tremenda crise espiritual. Federigo Gonzaga, o mecenas de Giulio Romano, na verdade era um príncipe muito sensual, particularmente interessado em seus cavalos, suas amantes e seus falcões. Ele sem dúvida não era um grande líder espiritual. Ainda assim, o Maneirismo foi o estilo no qual ele construiu seu castelo fora da cidade, o Palazzo del Tè (veja a seguir e nas páginas 401–410). Portanto, comecei a me perguntar se essa ideia

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de que a arte é uma expressão da época não seria um clichê que devia ser revisado, e se não haveria outras forças operando dentro da sociedade. Nesse caso, me parecia bastante claro que o esperado de artistas da corte, como Giulio Romano, era algo bizarro, surpreendente, divertido, e tudo isso pude confirmar, de certo modo, ao investigar o artista. Assim, meu desenvolvimento intelectual se afastou do método que . Esse afastamento, sem dúvida, foi enhavia aprendido com Max corajado por Schlosser, embora ele jamais fosse capaz de dizer uma palavra sequer contra seu ex-colega. Ainda assim, seu ceticismo e seu distanciamento ficavam muito evidentes na maneira pela qual ele falava sobre tais assuntos. Ele conhecia profundamente o passado e não gostava de estereótipos do tipo, embora não os criticasse abertamente. Entreguei minha tese em 1933,12 e então completei meu curso em história da arte. Naquela época, a situação econômica de Viena era muito séria. Eu não tinha a mínima chance de conseguir um emprego. Meu pai já havia me advertido sobre isso há muito tempo, mas ele jamais protestou contra minha decisão de estudar história da arte. Então, agora graduado, eu estava desempregado. Mas eu tinha amigos e continuei trabalhando. Um dos amigos que posteriormente teria grande influência sobre mim era Ernst Kris, chefe daquele departamento que fora de Schlosser: o Departamento de Artes Aplicadas do Kunsthistorisches Museum. Naquela época, Kris já estava muito interessado em psicanálise. Ele pertencia ao círculo de Sigmund Freud. Após escrever alguns textos muito importantes sobre o que poderíamos chamar de a história da arte ortodo13 xa da ourivesaria e da incrustação de pedras preciosas, ele queria ver o quanto dessa nova abordagem poderia ser empregada na história da arte. Freud havia escrito um livro sobre a perspicácia, sobre a piada, e Kris teve a ideia de que seria muito interessante escrever sobre a caricatura como forma de aplicação da espirituosidade às artes visuais. Ele me convidou para ser seu assistente e com ele escrever sobre a caricatura. Escrevemos juntos um longo manuscrito, que nunca foi publicado, mas também fize14 mos pequenos ensaios que foram publicados. Aprendi muito após minha graduação ao trabalhar praticamente todos os dias com Kris nesse projeto. Ele era um homem incrivelmente prolífico. Era, ao mesmo tempo, chefe do departamento e psicanalista praticante; às noites, eu o visitava após o jantar e ele me explicava temas de psicologia. Considero-o um de meus tutores, apesar de o projeto ter sido abortado em função dos eventos políticos. Ainda hoje tenho em casa o grande manuscrito não publicado que fizemos juntos. O projeto foi abandonado porque esse foi o período em que o Nacional Socialismo (Nazismo) avançou na Alemanha e passou a ameaçar a independência e o bem-estar da Áustria. Kris era um dos poucos cientes do que estava acontecendo na Europa: ele sempre lia o Völkischer Beobachter, o diário nazista, e sabia o que aqueles indivíduos pretendiam, o que nos aguardava e o que viria se a frente internacional, que muito

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timidamente tentava manter a independência austríaca, fosse derrotada. Ele insistiu que eu encontrasse um emprego, mas não na Áustria – o que teria sido impossível, de qualquer maneira –, e sim no exterior. Ele me recomendou a Fritz Saxl, o diretor do Warburg Institute. Naquela época, o Warburg Institute já havia emigrado da Alemanha nazista para Londres. Saxl me contratou para vir para a Inglaterra em 1936, pois ele havia se comprometido a publicar os escritos restantes do fundador do instituto, Aby Warburg. Evidentemente, as notas e os manuscritos de Warburg apenas poderiam ser manejados por alguém cuja língua materna fosse o alemão. Ele precisava de um assistente, digamos assim, que o ajudasse a organizar essas notas e a escrever sobre elas, pois sua secretária, Gertrud Bing, estava ocupada demais com outras coisas e realmente não dispunha de tempo. Aceitei sua oferta. Na primeira semana de 1936, me mudei da Áustria para a Inglaterra – antes da Anschluss (Anexação). Foi uma sorte incrível não ter de testemunhar a Anschluss. Escapei antes que ela de fato ocorresse porque Kris insistiu muito para que eu emigrasse e porque ele encontrou um emprego para mim. Não é que fosse um cargo muito bem pago. Eu recebia uma bolsa e, assim, minha companheira e eu decidimos nos casar. Era uma soma ínfima quando nos estabelecemos em Londres e me tornei parte dos funcionários do Warburg Institute. Aby Warburg, que havia fundado o instituto como sua biblioteca pessoal em Hamburgo, na verdade era um historiador da arte profundamente 15 interessado na história da cultura e na tradição de Jakob Burkhardt. Ele chamou seu instituto – ou sua biblioteca – de Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg, a biblioteca da história da cultura. Seu interesse era o que ele chamava de “psicologia cultural”. A coisa mais importante a lembrar sobre o Warburg Institute não é o que ele é, mas sim o que não é. Ele não é um instituto de história da arte e nunca foi. A história da arte como disciplina acadêmica era bastante incipiente na Inglaterra de então. O Warburg Institute na Inglaterra era sustentado por doações privadas. Muitos estudiosos refugiados trabalhavam lá em vários campos distintos relacionados àquilo que interessava a Warburg: a “sobrevivência”, como ele chamava, da antiguidade clássica. Assim, me encontrei em um meio social completamente novo,16 rodeado de estudiosos eminentes, incluindo meu antigo amigo e colega universitário, Otto Kurtz, que também fora para o Warburg Institute por intermédio de Kris. Estamos falando dos anos “opressivos” logo antes do início da guerra, quando todos acreditavam que as coisas não poderiam durar muito, pois Hitler estava se tornando cada vez mais poderoso e anexando um país após o outro. Sentíamos que, mais cedo ou mais tarde, viria a guerra. Quando ela finalmente chegou, o Instituto foi evacuado. Devido ao perigo dos bombardeios, a biblioteca foi transferida para uma mansão rural. Mas eu não permaneci por muito tempo como funcionário do Instituto. Passei os seis anos da guerra ouvindo as radiotransmissões, especialmente as

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alemãs. De 1939 a 1945, eu era o que chamavam de radioescuta.17 Não era um trabalho fácil – era duro, as horas eram muitas, havia muita pressão. Ainda assim, de certo modo, tive muita sorte. Imagine ser obrigado a traduzir do alemão para o inglês pelo menos 8 horas por dia. Eu aprendi o idioma razoavelmente bem, é claro. E também aprendi outras coisas. Passei a me interessar pela percepção, pelo problema da audição e por outros temas que eram então importantes. Por isso, não posso dizer que esses seis anos que não estávamos em Londres – a cidade estava sendo bombardeada – foram desperdiçados. Foram anos perdidos somente no sentido de que só após o término da guerra é que pude retomar minha vida de estudioso. Meu primeiro ensaio seguia bastante a tradição do interesse do Warburg Institute na época: o simbolismo neoplatônico. Escrevi sobre as mitologias de Botticelli 18 e sobre os emblemas. Também retomei meu trabalho com os textos de Warburg e passei a lecionar no Instituto, mas não história da arte. O instituto de história da arte de Londres era, e ainda é, o Cortauld Institute of Art. Enquanto isso, o Warburg Institute havia sido incorporado à Universidade de Londres, embora ele fosse uma instituição bastante curiosa e ninguém soubesse exatamente o que estávamos fazendo e por que o fazíamos. Havia o boato de que éramos um instituto de iconografia, uma ideia totalmente equivocada, mas que ainda persiste em muitos círculos. É verdade que um de nossos interesses era a iconografia, mas de modo algum ela era nosso único tema. Eu não dei aulas para historiadores da arte, mas para historiadores que estavam estudando a civilização renascentista.Tornei-me professor universitário, lecionei sobre o mecenato dos Medici, a sobrevivência do Neoplatonismo,Vasari, astrologia – todos esses temas da cultura que não estão diretamente relacionados à história da arte vista como a história de seus estilos. Consequentemente, o que geralmente é identificado como a principal tarefa de um historiador da arte – a de ser um especialista, a de fazer a atribuição de obras de arte – está bastante distante de minha formação. Nunca me preocupei muito com isso, o que não significa exatamente uma falta de interesse, mas que meu trabalho me levou para rumos muito distintos. Talvez seja interessante mencionar que, enquanto ainda morava em Viena e estava praticamente desempregado, em 1934–1935, uma editora havia me dado a oportunidade de escrever uma história do mundo para crianças. Esse livro, que escrevi muito rapidamente em algumas semanas, foi um contrato que praticamente só exigiu o auxílio de uma enciclopédia. Por exemplo, consultei quando Carlos Magno nasceu e coloquei no livro, e então fiz citações ou paráfrases de fontes contemporâneas que descreviam sua personalidade e seus hábitos. Tentei encontrar ao menos uma fonte para cada capítulo, para que a narrativa ficasse realmente cativante. A obra se tornou um sucesso inesperado. Ela foi traduzida para várias lín18a guas e até mesmo resgatada na Alemanha 50 anos depois. Antes que a Anschluss terminasse com tudo, os editores vienenses me perguntaram se eu gostaria de escrever uma história da arte para crianças

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– respondi que a história da arte não era para as crianças e que, portanto, não poderia escrevê-la para as crianças. Então, eles me ofereceram um pouco mais de dinheiro. As primeiras ofertas eram muito modestas, mas eu precisava de dinheiro e pensei o que poderia fazer. Essa, evidentemente, é a verdadeira origem de A História da Arte, que comecei a escrever seguindo a sugestão de um editor inglês – que, no fim, não a quis. Assim, ela 19 foi escrita para a Phaidon Press. Logo que minha escravidão no serviço de radioescuta terminou, decidi que deveria escrever esse livro rapidamente, pois desejava retornar à vida de pesquisador. Contratei uma pessoa para datilografar, para quem ditava três vezes por semana. Foi assim que rapidamente terminei o livro. O editor o publicou e, mais uma vez, tive sorte: foi um grande sucesso. Muitas edições foram publicadas. Acredito que já tenha sido traduzido para pelo menos 18 idiomas. Assim, talvez possamos dizer que, na época, eu tinha duas vidas. Para o mundo, eu era o autor de A História da Arte. No Warburg Institute, ninguém se interessava por aquele livro e acho que ninguém tenha sequer o lido. De fato, Saxl, o diretor do Instituto, até me disse que ele não queria que eu escrevesse um livro tão popular, mas que eu retornasse às pesquisas e fizesse um trabalho sério. Contudo, eu havia prometido escrevê-lo – e o fiz. Mas o livro foi escrito discretamente, digamos assim, e é graças a ele que sou conhecido por muitas pessoas. Acho que consegui escrevê-lo por ter usado minha memória como uma espécie de filtro. Escrevi esse livro quase sem fazer consultas a outras obras – apenas registrei o que me lembrava sobre a história da arte após alguns anos e o fiz como quem conta uma história. Foi assim que o livro assumiu sua forma narrativa, e é por isso que ele se chama A História da Arte. Usei ilustrações que tinha em casa. Graças à minha esposa, tínhamos o Propyläen Kunstgeschichte em nossa biblioteca. Selecionei as ilustrações que me pareciam adequadas, e assim fui improvisando os vários capítulos. Se o livro tem certo frescor, é porque eu nunca o imaginei como um livro-texto ou algo parecido. Eu simplesmente tinha de escrevê-lo, e foi isso que fiz. É claro que me interessava ver a ideia geral do projeto sob determinado ponto de vista, mas o livro não foi escrito para ser qualquer tipo de ferramenta de ensino. Ainda assim, A História da Arte desempenha um papel em minha biografia. Eu já havia retornado a Londres, com o término da guerra, quando o livro foi publicado. Uma crítica muito favorável apareceu no Times Literary Supplement, a qual, hoje sei, foi escrita por Tom Boase, o diretor do Courtauld Institute. Quando chegou a hora de eleger um Slade Professor para Belas Artes, em Oxford, que era um cargo de professor convidado por três anos, ele me indicou, e fui aceito. Não que isso significasse abandonar o Warburg Institute, pois o cargo apenas implicava dar cerca de uma dúzia de aulas expositivas ao longo do ano acadêmico. Contudo, o prestígio do posto outrora ocupado por Ruskin foi suficiente para me elevar a outro patamar profissional. Assim, por três anos, fui professor

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em Oxford e dei palestras sobre muitos assuntos. Posteriormente, fui nomeado Slade também em Cambridge e em Harvard. E uma coisa levou a outra. Portanto, graças a uma concatenação de circunstâncias, me tornei suficientemente conhecido, de modo que, do ponto de vista de minha carreira, já não precisava me preocupar com qual seria meu emprego. O cargo no Warburg Institute não era tão simples, pois, como disse a vocês, ele não é um instituto de história da arte, assim eu não trabalhava lá como historiador da arte, mas como pesquisador sobre o Renascimento. Graças à interferência de Kenneth Clark, que havia gostado de alguns de meus escritos, fui convidado a proferir as Conferências Mellon, em Washington, para as quais escolhi o tema da arte e ilusão, devido ao meu 20 interesse na percepção e psicologia. Esse é o primeiro livro no qual deixei claro que estava interessado não apenas na história da arte como ela é 21 lecionada, mas em algo diferente. Essa diferença é interessante nas explicações. Explicações são questões científicas: como você explica um evento? Eu acreditava que certos aspectos do desenvolvimento da representação na história da arte, que já havia discutido em A História da Arte por meio dos termos tradicionais de “ver e saber”, mereciam ser investigados em termos da psicologia contemporânea. Passei um bom tempo em bibliotecas de psicologia. Estudei o tema buscando uma explanação – ou seja, uma explicação para o fenômeno do estilo –, pois o fenômeno do estilo como era visto tradicionalmente não me satisfazia. O estilo se tornou uma de minhas preocupações, um de meus problemas, pois a ideia de que o estilo é simplesmente a expressão da época não apenas me parecia muito superficial, mas também bastante vazia em todos os sentidos. Eu queria saber o que realmente se passa quando alguém desenha uma árvore de maneira particular, seguindo uma tradição e um estilo particulares.Vendo os livros de psicologia, aprendi a importância das fórmulas. Quando surgiu outra oportunidade, após a publicação de Arte e Ilusão, e fui convidado para dar as Conferências Wrightsman, em Nova York, escolhi, digamos assim, o outro lado. Eu pensei: “Bem, já tentei explicar algo sobre a representação, então agora acho que vou explicar algo sobre a forma ou a decoração”. Então, dei uma série de palestras que resultaram 22 no livro O Sentido de Ordem. Em outras palavras, minha ambição – e era uma ambição bastante ousada – era ser uma espécie de comentarista da história da arte. Eu queria escrever um comentário sobre o que, de fato, acontecia no desenvolvimento da história da arte. Às vezes, vejo isso como a representação no centro, o simbolismo de um lado e a decoração de outro. É possível refletir sobre todas essas coisas e dizer algo em termos mais genéricos. E essa era exatamente minha ambição. Isso significa, é claro, que jamais me tornei um historiador da arte propriamente dito. Nunca me tornei um verdadeiro especialista. Eu não dizia, quando as pessoas me perguntavam, que não tinha uma opinião sobre essa pintura ser ou não de Rafael, mas atuar como especialista não é meu principal interesse. Meu principal interesse sempre foi em tipos de

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explicações mais gerais, o que, de certo modo, me aproxima da ciência. A ciência tenta explicar. Na história, registramos, mas, na ciência, tentamos explicar os eventos individuais, relacionando-os a uma regularidade geral. Aqui, gostaria de mencionar outro amigo que me influenciou profundamente, o filósofo da ciência, Sir Karl Popper, que sempre se interessou pelo problema da pesquisa e da explicação científica. Com ele aprendi muito sobre essas questões, tanto sobre psicologia da percepção como sobre problemas mais gerais da ciência. Assim, você pode ver que, de certa maneira, saí do círculo encantado da história da arte. Com o termo “círculo encantado”, me refiro àquelas pessoas que dizem coisas do tipo: “Você sabe aquele quadro que vai para a Christie’s daqui a três semanas? Você realmente acha que é de Luca Giordano? E se for, quanto acha que vai alcançar no leilão?” Nunca pude fazer parte desse tipo de conversa, e ainda não posso. Por outro lado, não quero que vocês pensem que desprezo as pessoas que conseguem fazê-lo. Alguns de meus melhores amigos são especialistas. Quando eles são verdadeiros especialistas, respeito-os profundamente. Mas essa é outra questão, é uma abordagem totalmente diversa daquela que tenta explicar. Gostaria de dizer rapidamente que, ao lidar com as explicações, me tornei muito interessado nas funções variáveis da imagem visual.Também podemos fazer perguntas do tipo:“Como as tradições mudam? Qual influência elas têm?” Todos vocês conhecem a máxima da arquitetura de que “a forma segue a função”. Parte disso é verdade para o criador de imagens. Um cartaz recebe um tipo de tratamento diverso do de uma pintura de altar. Nesse caso, a história da criação de imagens, como gosto de chamá-la, às vezes afeta o desenvolvimento social, o papel da imagem em uma sociedade em particular. Tudo isso deve interessar alguém que olha para o desenvolvimento como um todo e faz aquelas perguntas perturbadoras: “Mas por quê? Por quê? O que realmente estava acontecendo naquela época?” Não estou afirmando que seja possível encontrar respostas definitivas para essas questões, mas sempre podemos especular – e isso nem sempre é uma tarefa inútil. Meu trabalho atual trata de outra abordagem para uma questão importante em Arte e Ilusão. Minha discussão sobre o desenvolvimento da representação levou à interpretação de que sou um dos defensores do naturalismo e de que vejo a história da arte como um progresso ininterrupto em direção a imagens fotográficas, naturalistas, o que, evidentemente, é uma bobagem. Atualmente, estou interessado na reação contra certos movimentos na representação, em função da mudança dos gostos. Um de meus projetos – no qual venho trabalhando há muito tempo – é sobre aquilo que chamo de a preferência que os amantes da arte têm pelo primitivo, ou seja, a rejeição das coisas que são consideradas decadentes, corruptas, excessivamente doces ou insinuantes, a reação contra o ideal de beleza. Todas essas reações vêm me interessando há muito tempo. Encontramos paralelos na antiguidade clássica, mas o movimento realmente

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começou no século XVIII. Esse livro, que ainda espero escrever, será chamado The Preference for the Primitive, no qual as explicações da psicologia inevitavelmente figurarão, bem como outras coisas. Assim, mais uma vez, estou tentando abordar um tema bastante amplo. Já o discuti em palestras diversas vezes, o que tem suas vantagens e desvantagens. Uma vez que um tema esteja solidificado, não é fácil fervê-lo novamente e transformá-lo 23 em outro tipo de capítulo. Mas estou fazendo o melhor que posso. Notas do editor Gombrich publicou recentemente mais materiais autobiográficos em A Lifelong Interest: Conversations on Art and Science with Didier Eribon (Londres, 1993), que também estão disponíveis em uma edição norte-americana intitulada Looking for Answers. Conversations on Art and Science (Nova York, 1993). Uma boa introdução histórica a Viena, influenciada por memórias pessoais, é a obra de Ilsa Barea, Vienna: Legend and Reality (Londres, 1993). Um panorama mais pessoal é oferecido pela autobiografia de George Clare, Last Waltz in Vienna (Londres, 1982). Um livro com ilustrações magníficas, para o qual o próprio Gombrich contribuiu, é Vienne 1880–1938: L’Apocalypse joyeuse, sob a direção de Jean Clair (Paris, 1986). Um extenso volume sobre o plano de fundo intelectual da cultura vienense é a obra de William M. Johnson, The Austrian Mind: An Intellectual and Social History 1848–1938 (Berkeley e Los Angeles, 1972). Dos livros mencionados na autobiografia, talvez os leitores tenham interesse em algumas das traduções. Kunstgeschichte als Geistesgeschichte, de Max , atualmente está disponível, em partes, como The History of Art as the History of Ideas, tradução de John Hardy (Londres, 1984) e Idealism and Naturalism in Gothic Art, tradução de Randolph J. Klawiter (Notre-Dame, 1967). A edição francessa da obra Die Kunstliteratur, de Schlosser, é Julius von Schlosser, La Littérature Artistique, com prefácio de André Chastel (Paris, 1984). Stilfragen, de Alois Riegl, foi traduzida por Evelyn Kain sob o título de: Alois Riegl, Problems of Style: Foundations for a History of Ornament (Princeton, 1992). Die spätrömische Kunstindustrie, outra obra de Alois Riegl, também já foi traduzida: Alois Riegl, Late Roman Art Industry, traduzida da edição vienense original, com prefácio e notas de Rolf Winckes (Roma, 1985).

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Velhos mestres e outros deuses familiares Publicado no jornal The Independent, edição de 6 de janeiro de 1990, no quadragésimo aniversário da primeira edição do livro A História da Arte

Quando fui convidado a expor meus second thoughts (“segundos pensamentos”, o termo inglês para reflexões) sobre A História da Arte, respondi que eles teriam de ser chamados de meus fifteenth thoughts, já que o livro a recém havia chegado à sua 15 edição. No entanto, se ao usar esse termo queremos nos referir ao distanciamento, sinceramente posso dizer que, após 40 anos, já me sinto tão afastado do livro quanto seria possível para um autor em relação à sua criação pessoal. Talvez hoje eu possa inseri-lo em seu contexto com muito mais facilidade do que teria sido possível no passado: embora o livro tenha sido escrito na Inglaterra e em língua inglesa, seu contexto ainda é o de Viena de minha juventude. Assim como qualquer bela cidade antiga,Viena, com sua catedral gótica e seus suntuosos palácios e igrejas barrocos, provavelmente estimularia o interesse pela história da arte em qualquer criança alerta, mas, pelo que me recordo, meu interesse pessoal também foi incitado pelos edifícios monumentais do século XIX ao longo da Ringstrasse, a grande avenida que circunda a cidade antiga. O Parlamento é no estilo grego, a imponente Prefeitura, em uma versão do Gótico, os museus e a universidade foram construídos na linguagem renascentista e o banco dos correios era um pioneiro do estilo moderno. Eu não tinha mais de 12 anos – provavelmente menos – quando essa variedade me motivou a planejar meu primeiro livro de história da arte, um manual de estilos baseado nos prédios de Viena. Mas se a história da arquitetura assim se tornou meu interesse natural, o mesmo aconteceu com a história da pintura. Já não sei dizer o que veio em primeiro lugar: a biblioteca de meus pais, que continha muitos livros sobre os velhos mestres, ou o Kunsthistorisches Museum, com suas gloriosas coleções reunidas pelos Habsburgos. O bom gosto ainda não havia condenado a exibição de reproduções fotográficas nas paredes de

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nosso apartamento, e se pressupunha que um indivíduo conhecesse e respeitasse as obras dos mestres que pertenciam ao “cânone da excelência” da arte, de modo bastante similar ao que Bach, Mozart e Beethoven haviam feito pela música. Rafael e Michelangelo, Dürer e Rembrandt, mas também Fra Angelico e Memling eram deuses familiares, as divindades daquela religião da classe média que era conhecida como Bildung. O termo literalmente significa “formação”, mas talvez uma tradução mais adequada seja “bagagem mental”. Assim, era natural que os adolescentes ganhassem livros de história da arte como presente de Natal ou aniversário, e, na ausência da televisão e dos filmes em vídeo, eles eram inclusive lidos. Lembro-me especialmente de um estudo nada pretensioso feito por Julius Leisching, chamado Die Wege der Kunst (Os Caminhos da Arte, Leipzig, 1911) que li com gratidão e proveito em função das orientações básicas que ele oferecia. É possível que A História da Arte seja um pouco mais sofisticado, mas talvez eu jamais tivesse tido a coragem de assumir tal projeto sem a memória daquele fino volume que ainda hoje guardo. Essa sofisticação adicional talvez remonte à revolução do gosto artístico que todos nós testemunhamos no período imediatamente após a guerra. Os estreitos confins do cânone foram desafiados pela onda do Expressionismo, com sua exaltação da arte medieval e da arte tribal – até então negligenciadas –, e tais mudanças de preferência me interessaram o suficiente para que eu me oferecesse como voluntário e escrevesse um longo ensaio sobre as vicissitudes da apreciação da arte desde o século XVIII (um tópico que ainda hoje me interessa). Tendo decidido seguir os cursos de História da Arte e Arqueologia Clássica da Universidade de Viena, recebi novas influências: a chamada “Escola de Viena” se orgulhava de ter superado as noções obsoletas de “declínio” ou “decadência”. A arte romana tardia não era em nada inferior à arte da Grécia Clássica, e os estilos Maneirismo e Barroco mereciam a mesma atenção que os estilos da Alta Renascença. A nova chave para o conhecimento da história da arte era a noção da continuidade, a duração de tradições por trás das fachadas dos estilos dos períodos, as quais estavam sempre mudando. Acredito que esse também seja um tema fundamental em A História da Arte, que realmente tenta fazer justiça a todos os períodos, em seus próprios termos. Como um graduado em história da arte, tive de fazer escolhas em minhas pesquisas especializadas, mas a ciência da continuidade se manteve um conhecimento fundamental ao qual pude recorrer em minhas viagens e nos museus. Outro fato biográfico talvez deva ser mencionado: como graduado desempregado, fui contratado para contribuir com um volume sobre a história mundial para uma série de livros infantis e, uma vez que tive de cumprir um prazo de entrega praticamente impossível, não tive escolha senão utilizar os conhecimentos anteriores de história que ainda restavam do meu período escolar. Para minha surpresa, o livro foi lido por muitas pessoas e também reimpresso na Alemanha após 50 anos, mas, como

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havia sido escrito sob a perspectiva da capital da Áustria, não seria fácil adaptá-lo para as crianças inglesas. Evidentemente, o mesmo não se aplica para A História da Arte; não somente, talvez, porque esta obra foi escrita na Inglaterra, mas também porque a história da arte tem relevância mais universal do que as guerras e as políticas da Europa central, que precisavam figurar no livro anterior. Não quero prender o leitor com as inúmeras circunstâncias que levaram ao meu envolvimento em uma segunda tarefa desse tipo. Após uma tentativa abortada, o livro foi contratado pelo falecido Dr. Horovitz, da Phaidon Press, depois de sua filha ter aprovado um capítulo de exemplo. Isso aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando eu era membro do Serviço de Radioescuta da BBC, e talvez o fato de estar tão afastado das pesquisas ativas tenha me ajudado mais uma vez a ver toda a enormidade da história da arte como uma ideia geral ininterrupta. Essa foi a visão que tentei transmitir, quando, com o término da guerra, fitei o texto, simplesmente olhando para exemplos de ilustrações de livros que minha esposa e eu por acaso tínhamos. Embora tenha sido completado em 1949, seu texto ainda hoje reflete o ponto de vista que eu havia adquirido nos meus anos de Europa continental. É verdade que nos anos subsequentes acrescentei um grande número de páginas para manter a história “atualizada”, e não lamento ter feito isso. Mas talvez o valor do livro seja outro. Ele cristaliza a postura de uma época que se foi, na qual a arte não era um tema de conhecimentos especializados e muito menos de leilões com valores astronômicos, mas sim uma parte da bagagem de mulheres e homens civilizados. Os jornalistas às vezes descrevem uma velha casa de campo que teve seu conteúdo preservado ao longo de várias gerações como uma “cápsula do tempo”. Se A História da Arte pode ser considerada como uma dessas cápsulas do tempo, sua popularidade inesperada parece provar que ainda hoje os leitores querem manter contato com o passado – deles próprios e da arte. Notas do editor Para a obra World History for Children, de Gombrich, veja a página 32 desta obra. A edição revisada foi publicada por Dumont (Colônia), sob o título Eine kurze Weltgeschichte für junge Leser. A Bildung é discutida com mais detalhes em “Nature and Art as Needs of the Mind” e “Goethe: The Mediator of Classical Values”, pp. 564–590. Para uma noção fascinante de como a arte poderia se tornar parte da bagagem mental de uma criança em crescimento, veja a autobiografia de Elias Canetti, os volumes The Tongue Set Free (Londres, 1989) e The Touch in my Ear (Londres, 1990), especialmente “Samson’s Blinding” pp. 112–118.

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Gombrich Essencial: Textos selecionados sobre arte e cultura Ernst Hans Gombrich

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