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Cartas para B
POR PAULA CHIEFFI
MATERIAIS papeis de carta, papeis de qualquer tipo, lápis, caneta esferográfica, caneta hidrográfica colorida, envelopes, cartas de outros tempos.
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Um dia, vivi a ilusão de que o presente bastaria – até a chegada de B., uma criança nascida em 2019, ou o ano que não acabou, que não acabará. B. me fez experimentar o futuro de um modo rasteiro, corporal, epidérmico; não uma espécie de trem desgovernado que nos atropela, mas como trilhas abertas na noite escura com facas de luz.
Logo percebi: B. inventou uma máquina do tempo, me fez viajar ao passado e ao futuro na velocidade da escrita para me manter mais e mais presente, atenta e forte. A perspectiva do nascimento de B. me fez desejar criar memórias do presente que ainda não se pode explicar, como a do traumaBrasil 2019, pois o tempo do traumático é sempre presente, embora sua elaboração esteja no futuro. Fezme, ainda, desejar contar a história do nosso futuro, este que já está aqui nos espreitando feito uma quadra de Drummond: o futuro que flerta com o presente que fita o passado do qual não escapa ninguém. Convido você que me lê, que me tem em mãos como quem recebe uma carta, para viajar pelo tempo e imaginar o futuro. Podemos escrever cartas para B., uma criança qualquer, a criança que vem, e dizêla como cremos no mundo. Podemos contarlhe como foi que da farsa de 2019 chegamos às barricadas de 2021, às zonas autônomas de 2022 – lembrase? –, do navio pirata que atravessou o território nacional e durante treze anos acolheu mais de dois milhões de pessoas entoando o coro “o futuro não demora”. Dizerlhe sobre o dia da conclusão da limpeza do rio Tietê em 2032 e da escrita da Constituição Pluralista dos Brasis, em meados de 2046. O que você contaria do mundo que vem para a criança que chega?
Escolha um papel e uma caneta qualquer. Use lápis, se preferir. Encontre cartas de outros tempos, dos tempos em que se escreviam cartas, cartas de amor, bilhetes, cartas do cárcere para se inspirar. O que elas dizem a você? Invente uma carta para uma criança que acabou de nascer ou que ainda nascerá. Conte para ela da memória do presente e crie futuros possíveis. Ou apenas apure o ouvido para escutar o futuro que já está aqui.
seu próprio vocabulário. A expressão íntima do político pode ser encontrada nas produções da artista Lúcia Prancha, inspirada na visceralidade da literatura de Hilda Hilst ou no projeto Ocultação/ Desocultação (Ana Vieira, 1978–79)2 que mapeia de forma políticoafetiva o espaço doméstico.
RELAÇÃO ENTRE AS OBRAS DESTE NÚCLEO
GC Neste terceiro núcleo tomamos as obras Amanhã não há arte, de Carla Filipe (2019), e Sem essa, Aranha e Copacabana Mon Amour (1970). Quais relações podemos estabelecer entre elas?
MM O título deste núcleo — “Palavras mil” — faz relação com a expressão portuguesa “abril, águas mil” (o equivalente no Brasil seria “águas de março”), que evoca o abril da revolução, mas também a possibilidade de falar mil coisas, de alterar os papéis sociais, de mudar o mundo. Essa dimensão de mudança está presente nas imagens do cinema onde Helena Ignez aparece e atua. Não é mais uma mulher objetificada, mas uma mulher que é protagonista da própria cena. Vêse que a figura de Ignez orienta a cena, e as imagens
2 Esta obra pode também pertencer ao núcleo 2, uma vez que se encontra em um espaço transitório entre os núcleos. que o corpo dela presentifica são imagens de grande fúria e liberdade, um deboche do status quo. Ela aparece como imagem dessa ruptura sexual, social e intelectual, onde o protagonismo feminino foi muito importante. Escolhemos Helena Ignez para figurar neste terceiro núcleo, como um grito, uma fúria, uma histeria.
Já o trabalho de Carla Filipe, todo ele sobre a visualidade dos movimentos sociais, traz também a memória dessa alegria de mudança que foi vivida com o fim da colonização (de Portugal em África) e com o início da democracia. Produzida por bandeiras, a instalação de Filipe tem um ar festivo e furioso, assim como os filmes com Ignez. O colorido das bandeiras provém de uma pesquisa de Filipe sobre a iconografia das revoluções dos anos 1970, em Angola, Moçambique, Portugal. Na maioria das bandeiras a composição é abstrata, mas há a evocação a um sol, a um galo que canta de madrugada, a uma catana, uma espada… São símbolos heráldicos, das bandeiras destes países, relacionados a identidades. O conjunto da instalação dános a sensação de estarmos em um ambiente imersivo, de festa e de renovação.
GC Como uma sensação de levante mesmo, de que algo está acontecendo.
MM Precisamente, há essa sensação de levante. Há também algumas almofadas com textos que evocam os direitos dos artistas, linhas sobre os direitos fundamentais do trabalho artístico. Carla Filipe concebe o artista como parte atuante desse levante.
Helena ensinanos a falar com mais demolição. “Saiba que meu nome é América”, diz em algum momento de Sem essa, Aranha. Mais adiante: “A véspera do fim do mundo foi o único dia que prestou”. O que limita com a poesia não é a luz, não é o silêncio — é o vômito. Helena engulha até nós de um mundo já acabado, nomeado como tal. Grande confusão corrente — se o mundo já acabou ou não. A instalação Amanhã não há arte, de Carla Filipe, é um living para se estar em greve. Leva amanhã no nome, é alguma futuridade. Deitaria Helena, deitaria América, bem aqui, em meio a estas almofadas, sua trouxa de escatologias? Escatologia & escatologia: uma é o estudo das coisas últimas, das implicações teológicas do fim do mundo; a outra referese ao gosto pelo obsceno, pelo excrementício. A mesma palavra, emanando de dois vocábulos gregos distintos, amalgama ao coração do Brasil. América arregaça a minissaia, rosna: “Faz tempo que não falamos a sério, de símbolo pra símbolo, continente pra continente”.
Ismar Tirelli Neto, jovem poeta brasileiro, escreve aqui a partir da relação entre a obra de Helena Ignez e Carla Filipe.