7 minute read

Entrevista: a curadoria como invenção

Next Article
Cartas para B

Cartas para B

A CURADORIA COMO INVENÇÃO

GRUPO CONTRAFILÉ, MARTA MESTRE E POLLYANA QUINTELLA

Advertisement

Pensando no que foi dito anteriormente sobre o pensamento curatorial e sobre os destinatários deste material, para iniciar os estudos da mostra FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil–Portugal, propomos como primeiro passo uma conversa com as curadoras a fim de compreender o trabalho, as ideias e as ações que as orientaram durante o processo.

GRUPO CONTRAFILÉ Marta Mestre e Pollyana Quintella, para vocês, o que define a curadoria? E como ela se deu em Farsa?

MARTA MESTRE O trabalho de curadoria é inventivo, estabelece conexões, propõe novos entendimentos para a arte. Da mesma forma que diretores de cinema escolhem para onde apontar a câmera e criam enredos para os seus filmes, a curadoria também busca produzir narrativas renovadas sobre o que conhecemos.

Quando Marta nos diz que o trabalho de curadoria é inventivo, percebemos que o gesto e o desenho curatorial de uma mostra são também obra. Assim como o planejamento de um percurso de visita à exposição, criado por um educador ou educadora ou as próprias obras artísticas o são. Uma exposição carrega, portanto, diversas camadas criadoras que se conectam.

Para nós, uma das questões foi aproximar estes dois países [Brasil e Portugal] a partir de uma chave que não fosse a do pertencimento ou da irmandade, mas da fricção. Pessoalmente, enquanto portuguesa e curadora que trabalha nesses dois contextos, penso que é importante revisitar o passado, especialmente em suas leituras apaziguadoras sobre a hegemonia lusotropical, isto é, de um certo tipo de colonização mais dócil, menos violento. Esse tipo de formulação serviu ao poder e serve às políticas (da ditadura portuguesa até à ideia de “lusofonia”, que ainda hoje vigora). A curadoria de Farsa surge, então, de uma inquietação que tem a ver com malentendidos, com lugares comuns, com farsas que informam o modo como enquadramos a nossa realidade.

13 — 12

Marta explicita aqui as inquietações que moveram seu trabalho. Para nós, educadoras e educadores, mapear esse questionamento é um modo de adentrar nos campos de pensamento que a exposição nos apresenta e, a partir daí, poder habitálos e ampliálos.

A nossa história comum é impregnada demalentendidos e de violência. Não são coisas que ficaram no passado, são coisas que estão no presente. Finda a colonização, Portugal e Brasil perfizeram caminhos distintos, mas ainda há um fundo comum em que a linguagem se institui na violência latente. Vejamos: a nossa história é feita de trocas surreais e de “escambo linguístico”,em que perpassa uma integração forçada entre sistemas de mundo distintos: o europeu, o indígena e o africano que cria situações em que a linguagem não é precisa, ela muitas vezes é dúbia, a língua portuguesa é cheia de sutilezas, de equívocos.

Existe aqui um desejo de pensar a língua portuguesa não da perspectiva da unidade linguística, de algo que aproxima exmetrópole e excolônia, mas da perspectiva da diferença. A língua com seus equívocos tradutórios, suas singularidades, uma matéria que escapa à herança colonial para se reinventar. Tomando a língua como matéria viva e insubmissa, podemos olhar para nossos/as alunos/as, para seus modos de língua e linguagem, seus usos singulares e rebeldes da palavra, para criar, com eles/as, enlaces com esta Farsa.

Importa abordar essa inscrição histórica do ponto de vista do presente. A curadoria é sempre um trabalho a partir do presente, mesmo que trate de propostas artísticas antigas. Achamos que a ideia de “máquina” poderia ajudarnos a entender as engrenagens e ligações desse legado histórico, e, a partir daí, começamos a puxar alguns fios condutores. Por exemplo, todo o Núcleo 1, “Glu, Glu, Glu”, versa sobre a máquina: de deglutir, de mastigar, de misturar, de expelir, de subjugar. Uma outra ideia foi a de “desconstrução”, partindo das estratégias que os artistas utilizaram para desconstruir a língua e a linguagem, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. É um momento de ruptura de gênero, ruptura social, o fim das ideologias autoritárias, movimentos de reivindicação e descolonização, é um momento importante de reorganização do contrato social. Essa energia latente no passado está presente em muitos trabalhos de artistas atuantes hoje, as décadas “quentes” do século XX relacionamse a processos que ainda perduram no presente. Fizemos uma pesquisa

Estratégia: A mesalousa Foto: Julio Kohl

intensa em arquivos, junto aos artistas, relacionando política, arte e movimentos sociais e de gênero, buscando a riqueza de trabalhos que nunca foram vistos no Brasil, tanto de artistas portugueses, como de brasileiros.

Em termos de roteiro desta exposição, do início ao fim, várias são as “emoções” que os trabalhos convocam: riso, tensão, informação, protesto, ficção, introspecção, multidão etc. Por exemplo, após o móbile gigante que abre a mostra (Farsa, Renata Lucas, 2019), entramos num ritmo divertido com A Comilona (Victor Gehrard, 1979). Mais à frente, começam a aparecer bocas, fragmentos de corpos, aberturas (Eat Me, Lygia Pape, 1975). Só depois passamos para algo mais conceitual, do registro, da letra… Enfim, existe uma dança de intensidades distintas. E só conseguimos criar uma primeira intensidade, calcada em uma ideia de festa, se existirem outros espaços de alguma saturação ou até de algum esvaziamento. É uma exposição baseada em contrastes, conexões, respiros, pausas, propriedades sonoras, táteis, estritamente visuais ou discursivas; a curadoria é uma modulação do tempo, sempre.

É possível, junto com os/as alunos/as, mapear essa dança sugerida por Marta Mestre a partir dos afetos produzidos em nossos corpos visitantes em cada espaço da exposição, em cada conjunto de obras ou mesmo ao ver cada obra em sua singularidade?

POLLYANA QUINTELLA Há várias curadorias, muitos modos de curar, modos quase científicos, debruçados sobre um recorte específico, modos mais históricos… E há modos mais contaminados com a própria prática artística. No caso de Farsa, a curadoria está muito empenhada em pensar uma promoção de encontros; então, não é uma exposição coletiva que tem uma hipótese histórica, como: “temos dois países, duas décadas e disso tiramos uma conclusão analítica”; mas uma curadoria que se realiza em conjunto com os trabalhos.

Esse exercício curatorial de “pensar com as obras”, de adentrar os campos éticos e poéticos que elas abrem e revirálos, ter novas ideias a partir delas, pode se estender a nós, educadoras e educadores. Como um/a educador/a pensa com as obras? Como convida seus/suas alunos/as a pensar com as obras? Como elas ampliam conversas e experiências já desenvolvidas, tanto na escola, como fora dela?

Falando sobre o percurso de pesquisa, ele foi se construindo de modo criativo. No início, por exemplo, a obra da Anna Maria Maiolino, Glu Glu Glu (escultura, 1967), nos

17 — 16

apontou para questões de língua e linguagem, máquinas digestivas, que eram questões que nos interessavam. E por vários meses esse trabalho foi quase protagonista da exposição. Mas as coisas mudam. Essa obra específica, por exemplo, não pôde ser emprestada pelo MAM Rio para ser exposta no Sesc Pompeia, então ela foi uma primeira provocação que acabou gerando outras costuras e reflexões. A pesquisa se desenvolveu de maneira a querer produzir esses encontros sem uma preocupação com um encadeamento lógico, os trabalhos poderiam inclusive ser rearrumados de dois, três ou quatro modos distintos na exposição.

Quais outros arranjos entre trabalhos podemos fazer? Quais outros núcleos seriam possíveis?

Os núcleos que criamos não são estanques. São, claro, estratégias para organizarmos o percurso, mas poderíamos têlos feito de muitas maneiras. Então [curar] é menos criar um olhar único e mais delirar junto com as obras. E parece que esse é um processo interminável, é uma ginástica que poderia acontecer para sempre. Discutimos muito ao longo deste trabalho que se esta é uma exposição sobre linguagem, teríamos que testar linguagens no próprio processo da mostra. Por exemplo, a ideia de trazer poetas para falar das obras; esta e outras estratégias que criamos não são muito usuais no campo da curadoria, mas acompanham nosso desejo conceitual de tentar fazer algo mais delirante, levar o brincar para além da infância, experimentar a linguagem que é, afinal, uma experimentação da própria vida.

GC Ao entrar em contato com os materiais desta exposição, mapeamos uma série de noções e vetores que a atravessam: língua e linguagem; colonialidade e anticolonialidade; palavra; corpo; identidade; gênero; raça; ficção; novas galáxias; excreção; dobra e farsa. A partir disso, nos pareceu importante perguntar: por que acionar tais noções nos dias de hoje?

PQ Antes de tudo, pensamos a língua como um instrumento de poder por excelência, como principal ferramenta de colonização. Basta olhar as excolônias que em geral falam todas as línguas de suas exmatrizes. Isso nos leva a entender que existe um dilema na experimentação da linguagem. Aquilo que é ferramenta de poder também é o que nos permite nos expressar subjetivamente, inventar um outro mundo para além deste que está posto por uma língua oficial. A língua é elástica e, embora possa ter uma gramática opressora e um vocabulário restrito, que

This article is from: