Ensaios sobre a Gītā

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Ensaios sobre a Gītā

A CANÇÃO DO BEM-AVENTURADO

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Ensaios sobre a Gītā

A CANÇÃO DO BEM-AVENTURADO

Uma Visão Espiritual Mais Ampla sobre a Bhagavad Gītā, o Texto Clássico do Hinduísmo, e sua Importância para o Mundo Atual

Tradução Aryamani

Sri Aurobindo
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Título do original: Essays on the Gita.

Copyright © Sri 1997 Aurobindo Ashram Trust.

Publicado por Sri Aurobindo Ashram Publication Department.

Copyright da edição brasileira © 2024 Editora Pensamento-Cultrix Ltda.

1a edição 2024.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revista.

A Editora Pensamento não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro.

Editor: Adilson Silva Ramachandra

Gerente editorial: Roseli de S. Ferraz

Gerente de produção editorial: Indiara Faria Kayo

Preparação de originais: Alessandra Miranda de Sá

Revisão: Barbara Kreutzig, Jivatman e Neusa Volpe

Revisão final: Jivatman, Aryamani e Luciane Gomide

Revisão das palavras em sânscrito: Umberto Cesaroli Jr

Editoração eletrônica: Ponto Design Gráfico

Capa: Ricardo de Oliveira Bernardo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Aurobindo, Sri, 1872-1950

Ensaios sobre a Gita : a canção do bem-aventurado: uma visão espiritual mais ampla sobre a Bhagavad Gita, o texto clássico do hinduísmo, e sua importância para o mundo atual / Sri Aurobindo; tradução Aryamani.São Paulo : Editora Pensamento, 2024.

Título original: Essays on the Gita

ISBN 978-85-315-2360-1

1.Bhagavad Gita 2. Espiritualidade 3. Hinduísmo 4. Hinduísmo - Livros sagrados I. Título.

24-196797

Índices para catálogo sistemático:

CDD-294.5924047

1.Bhagavad Gita : Escrituras sagradas : Hinduísmo - 294.5924047

Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415

Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade pela

EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA., que se reserva a propriedade literária desta tradução.

Rua Dr. Mário Vicente, 368 – 04270-000 – São Paulo – SP – Fone: (11) 2066-9000

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E-mail: atendimento@editorapensamento.com.br

Foi feito o depósito legal.

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NOTA DA EDIÇÃO INGLESA

A primeira série dos Ensaios Sobre a Gītā foi publicada na revista mensal Arya entre o mês de agosto de 1916 e julho de 1918. Foi revisada por Sri Aurobindo e publicada em forma de livro em 1922.

A segunda série foi publicada em Arya entre agosto de 1918 e julho de 1920. Em 1928, Sri Aurobindo concluiu uma extensa revisão que foi publicada em forma de livro.

Para a presente edição o texto foi inteiramente comparado com todas as edições precedentes e com os manuscritos da revista Arya.

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Prefácio 9 ENSAIOS SOBRE A GĪTĀ - PRIMEIRA SÉRIE ................................................................... 13 Capítulo I - O Que a Gītā Pode nos Oferecer 15 Capítulo II - O Instrutor Divino ......................................................................................................... 23 Capítulo III - O Discípulo Humano 31 Capítulo IV - O Âmago do Ensinamento 40 Capítulo V - Kurukshetra 49 Capítulo VI - O Ser Humano e a Batalha da Vida 56 Capítulo VII - O Credo do Guerreiro Ariano ............................................................................... 64 Capítulo VIII - Sankhya e Ioga 74 Capítulo IX - Sankhya, Ioga e Vedanta 86 Capítulo X - O Ioga da Vontade Inteligente 97 Capítulo XI - Obras e Sacrifício ........................................................................................................... 107 Capítulo XII - O Significado do Sacrifício 115 Capítulo XIII - O Senhor do Sacrifício 124 Capítulo XIV - O Princípio das Obras Divinas 132 Capítulo XV - O Avatar: Possibilidade e Propósito de sua Encarnação 142 Capítulo XVI - Como o Avatar vem ao Mundo 153 Capítulo XVII - O Nascimento Divino e as Obras Divinas 162 Capítulo XVIII - O Obreiro Divino 170 Capítulo XIX - Igualdade 180 Capítulo XX - Igualdade e Conhecimento ..................................................................................... 191 Capítulo XXI - O Determinismo da Natureza 202 Capítulo XXII - Mais Além dos Modos da Natureza 213 Capítulo XXIII - O Nirvana e as Obras no Mundo 221 Capítulo XXIV - O Âmago do Carma-Ioga ................................................................................... 232 ENSAIOS SOBRE A GĪTĀ P4.indd 7 12/03/24 12:40
SUMÁRIO
ENSAIOS SOBRE A GĪTĀ - SEGUNDA SÉRIE 243 PARTE I - A SÍNTESE ENTRE AS OBRAS, O AMOR E O CONHECIMENTO....................................................................................................................... 243 Capítulo I - As Duas Naturezas 245 Capítulo II - A Síntese Entre Devoção e Conhecimento 258 Capítulo III - O Divino Supremo 268 Capítulo IV - O Segredo dos Segredos 279 Capítulo V - A Verdade e a Via Divinas 288 Capítulo VI - Obras, Devoção e Conhecimento 298 Capítulo VII - A Palavra Suprema da Gītā 312 Capítulo VIII - Deus em Poder de Devenir 328 Capítulo IX - A Teoria do Vibhuti 338 Capítulo X - A Visão do Espírito Universal – Tempo como Destruidor 348 Capítulo XI - A Visão do Espírito Universal –O Aspecto Duplo 358 Capítulo XII - O Caminho e o Bhakta 365 PARTE II - O SEGREDO SUPREMO 375 Capítulo XIII - O Campo e o Conhecedor do Campo 377 Capítulo XIV - Acima das Gunas 388 Capítulo XV - Os Três Purushas 400 Capítulo XVI - A Plenitude da Ação Espiritual 413 Capítulo XVII - Deva e Asura 425 Capítulo XVIII - As Gunas, a Fé e as Obras 437 Capítulo XIX - As Gunas, a Mente e as Obras 451 Capítulo XX - Svabhava e Svadharma 464 Capítulo XXI - Em Direção ao Segredo Supremo 481 Capítulo XXII - O Segredo Supremo 493 Capítulo XXIII - O Âmago do Significado da Gītā 513 Capítulo XXIV - A Mensagem da Gītā 523 ENSAIOS SOBRE A GĪTĀ P4.indd 8 12/03/24 12:40

PREFÁCIO

Vemos isso como um mistério, ou falamos disso ou ouvimos sobre isso como se fosse um mistério, mas, na verdade, ninguém o conhece.

(Gītā. II. 29)

Aqueles que buscam o Imutável, o Indeterminável, o Não Manifestado, o Onipresente, o Inconcebível, o Self mais alto, o Imóvel, o Permanente e que – iguais em sua mente em relação a todos – se dedicam ao bem de todos os seres, é para Mim que eles vêm.

(Gītā. XII. 3, 4.)

A Gītā não pode ser descrita exclusivamente como um evangelho do amor. O que ela apresenta é um Ioga do conhecimento, da devoção e das obras, baseado em uma consciência e realização espirituais da unidade com o Divino e da unidade de todos os seres no Divino. Bhakti, devoção e amor de Deus, trazendo consigo a unidade com todos os seres e amor por todos os seres, ocupa aí um lugar muito elevado, mas sempre em conexão com o conhecimento e com as obras.

(Sri Aurobindo – Letters on Yoga, vol. 29, Complete Works of Sri Aurobindo, p. 441)

Bhagavad Gītā – a Canção do Bem-Aventurado. O Bem-Aventurado é Krishna, o Instrutor divino que, no campo de batalha de Kurukshetra, dá ao seu discípulo e amigo, Arjuna, o sublime ensinamento que lhe permite ultrapassar a crise moral terrível em que ele se encontra.

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ENSAIOS SOBRE A GĪTĀ

[…] Em seus Ensaios Sobre a Gītā, publicados em inglês entre os anos 1916 e 1920, Sri Aurobindo renovou completamente o estudo crítico da Gītā, ressaltando ao longo da obra seu significado espiritual mais vasto.1

(Philippe B. Saint Hilaire – Pavitra)

[…] “Sri Aurobindo viu que suas próprias realizações espirituais eram testemunhas da verdade do ensinamento da Gītā. E é à luz de sua própria sabedoria que ele explica e expõe esse ensinamento para o benefício daqueles que estão prontos a ultrapassar as palavras do texto sagrado para descobrir seu espírito. [...]”2

(T.V. Kapali Sastry, Sri Aurobindo: Lights on the Teachings)

A Bhagavad Gītā, A Canção do Bem-Aventurado, embora tenha sido um evento em um momento histórico específico e em uma situação de todo incomum, continua a nos surpreender com a atemporalidade de seu ensinamento e a nos conduzir a descobertas novas, ao abrir os olhos da nossa alma para uma nova visão e um novo conhecimento – com Sri Aurobindo esse conhecimento se torna próximo, claro, desvelado. Sua imensidade nos transcende e, ao mesmo tempo, traz para dentro de nós a presença de Krishna, que se torna viva e luminosa à medida que avançamos na leitura.

Perceberemos no último capítulo, “A Mensagem da Gita”, como Sri Aurobindo introduz uma mudança sutil na linguagem da obra. Até então, nas passagens em que o diálogo entre Krishna e Arjuna aparecem, encontramos os pronomes do inglês arcaico “thou” and “thy”. O último capítulo nos traz a voz de Sri Aurobindo-Krishna. O pronome usado é “you”, que traduzi como “você”. Este capítulo, que conclui os “Ensaios Sobre a Gītā”, nos traz a grande revelação.

[…] Uma Presença suprema dentro de você se encarregará de seu Ioga e o conduzirá prontamente, segundo as linhas de seu svabhāva, à sua consumação perfeita. E, mais tarde, qualquer que seja seu gênero de vida e seu modo de ação, você viverá e agirá

1. Citação extraída do prefácio da obra Le Yoga de la Gita, de Philippe B. Saint-Hilaire (conhecido como Pavitra), um dos primeiros membros do Ashram de Sri Aurobindo, onde viveu de 1926 até 1969, quando deixou o corpo. (N. da T.)

2. Idem.

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conscientemente, agindo e se movendo n’Ele, e o Poder Divino agirá por meio de você em todos os seus movimentos interiores e exteriores. Esse é o supremo caminho, porque é o mais alto segredo e o mais alto mistério e, ainda assim, é um movimento interior que todos podem realizar de maneira progressiva. Esta é a verdade mais profunda e mais íntima de sua existência real, de sua existência espiritual.

Essas são as palavras finais dos Ensaios Sobre a Gītā, com as quais Sri Aurobindo conclui o livro.

Mais uma vez, no trabalho de tradução, palavras e expressões sânscritas foram um grande desafio, assim como encontrar palavras em português que possam corresponder ao significado dado por Sri Aurobindo. Repito, então, o que já foi dito na nota de A Síntese do Ioga:

“Sátvico”, “rajásico” e “tamásico” são exemplos de adjetivos que tivemos de introduzir para definir a qualidade das três gunas, sattva, rajas e tamas.

No dicionário Houaiss encontramos a palavra “iogue” com a função dupla de adjetivo e substantivo. Para não confundir o leitor, introduzi a palavra “ióguico” como adjetivo e deixei “iogue” como substantivo.

Há palavras que, embora façam parte do dicionário Houaiss, são pouco conhecidas. Por exemplo, “brâmane” e “brâmine”, ambas adjetivo e substantivo de dois gêneros. Decidi usar a primeira como substantivo e a segunda como adjetivo.

A palavra “Sankhya”, por ser muito usada no texto, deixei em maiúscula quando aparece como filosofia, e em minúscula quando se refere aos seguidores dessa filosofia, os “sankhyas”, como em inglês.

Muitas palavras e expressões sânscritas são explicadas por Sri Aurobindo no próprio texto. Para algumas criei notas. Quais deixar em itálico foi uma decisão difícil, visto que várias estão já integradas na língua portuguesa. Em caso de dúvida, preferi deixar em itálico. No caso da palavra “svabhava”, deixei sempre em itálico ao longo do texto, com exceção do índice, em que indica o título do Capítulo XX da Segunda Série, e no título do próprio capítulo.

Há diferenças nas regras quanto a deixar palavras com maiúsculas ou minúsculas em inglês e português, tentei seguir na maioria das vezes as regras do português.

PREFÂCIO 11
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Ao seguir o texto página por página vemos sua alma, aos poucos, revelar-se. Como sempre, Sri Aurobindo nos guia. Desde o início, nos cinco primeiros capítulos, ele já nos põe diante dos elementos principais deste grande evento: a atualidade da Gītā, o Instrutor Divino, o Discípulo Humano, o Âmago do Ensinamento e as Circunstâncias: o Campo de Kurukshetra. Portanto, ao prosseguir com a leitura, o leitor já estará em contato com esses elementos essenciais, o que ajudará na compreensão do texto e sua mensagem.

– Aryamani, Auroville, setembro de 2023

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ENSAIOS SOBRE A GĪTĀ

PRIMEIRA SÉRIE

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O QUE A GĪTĀ PODE NOS OFERECER

Há, no mundo, uma abundância de escrituras sagradas e profanas de revelações e semirrevelações, de religiões, filosofias, seitas, escolas e sistemas aos quais se apegam, com exclusividade e paixão, as numerosas mentes cujo conhecimento é incompleto ou nenhum. Elas pretendem que só este ou aquele livro é a Palavra eterna de Deus e que todos os outros são imposturas ou, no melhor dos casos, são inspirados de maneira imperfeita, que esta ou aquela filosofia é a última palavra do intelecto racional e todos os outros sistemas são erros, ou válidos somente porque contêm certas verdades parciais que as ligam ao único culto filosófico verdadeiro. Mesmo as descobertas das ciências físicas foram elevadas à categoria de culto e em nome delas a religião e a espiritualidade foram banidas como ignorância e superstição e a filosofia como quinquilharia e devaneio. Mesmo os sábios muitas vezes se prestaram a essas exclusões sectárias e altercações vãs, extraviados por algum espírito da obscuridade, que se misturou à sua luz ou a cobriu com uma nuvem de egoísmo intelectual ou orgulho espiritual. No entanto, a humanidade agora parece inclinada a um pouco mais de modéstia e de sabedoria; não matamos mais nossos semelhantes em nome da verdade de Deus ou porque a mente deles foi treinada de modo diferente ou constituída de outra maneira que a nossa; somos menos dispostos a amaldiçoar ou a insultar nosso vizinho porque ele é pecaminoso ou presunçoso o bastante para discordar da nossa opinião; estamos prontos mesmo a admitir que a Verdade está em toda parte e não pode ser nosso monopólio exclusivo; começamos a ver outras religiões e outras filosofias pela verdade e ajuda que contêm e não mais apenas para condená-las como falsas ou para criticar o que consideramos ser seus erros. Mas somos sempre inclinados a declarar que nossa verdade nos dá aquele supremo conhecimento que outras religiões ou filosofias não souberam captar ou que apreenderam só imperfeitamente, de modo que lidam apenas com aspectos

CAPÍTULO I
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subsidiários e inferiores da verdade das coisas, ou podem apenas preparar mentes menos evoluídas para as alturas às quais chegamos. E ainda somos inclinados a forçar, sobre nós mesmos ou sobre outros, toda a massa sagrada do livro ou do evangelho que admiramos e a insistir que tudo nele deve ser aceito como uma verdade eternamente válida e que a nenhuma letra, a nenhum acento ou a nenhuma diérese seja negada sua parte da inspiração plena. Pode, portanto, ser útil, quando abordamos Escrituras antigas, tais como os Vedas, os Upanishads ou a Gītā, indicar com precisão o espírito com o qual nos acercamos delas e o que, exatamente, pensamos poder extrair delas que tenha valor para a humanidade e seu futuro. Antes de mais nada, existe sem dúvida uma Verdade única e eterna que buscamos e da qual todas as outras verdades derivam, à luz da qual toda outra verdade se situa, se explica e se relaciona no plano geral do conhecimento. Porém, precisamente por essa razão, essa Verdade não pode ser encerrada em uma única fórmula incisiva e não é provável que seja encontrada, em sua totalidade ou em tudo o que traz consigo, em uma única filosofia ou escritura, nem que seja expressa de modo completo e para sempre por um mestre, um pensador, profeta ou Avatar quaisquer. Tampouco apreendemos de maneira completa essa Verdade, se a visão que tivermos dela necessitar a exclusão intolerante da verdade que é subjacente em outros sistemas; pois quando rejeitamos de modo apaixonado é que simplesmente não podemos apreciar e explicar. Em segundo lugar, essa Verdade, embora seja uma e eterna, expressa-se no Tempo e através da mente do indivíduo; portanto, cada escritura deve necessariamente conter dois elementos: um temporário, perecível, pertencente às ideias do período e do país no qual foi originado e o outro, eterno e imperecível, e aplicável a todas as épocas e a todos os países. Ademais, na exposição da Verdade, a real forma que lhe é dada, o sistema e o arranjo, o molde metafísico e intelectual, a expressão precisa que é usada devem estar largamente sujeitos às mutações do Tempo e deixam de ter a mesma força, porque o intelecto humano se modifica sempre; por uma divisão e combinação contínuas ele é obrigado a alterar suas divisões continuamente e a rearranjar suas sínteses; ele abandona sempre antigas expressões e antigos símbolos por novos ou, se usa o antigo, muda sua conotação ou, ao menos, seu conteúdo exato e as associações, de maneira que jamais poderemos estar de todo seguros de compreender um antigo livro desse gênero de maneira precisa, no sentido e espírito que ele tinha para seus contemporâneos. O que é de um valor permanente é aquilo que, além de ser universal, foi experienciado, vivido e sentido por uma visão mais alta que a do intelecto.

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Por isso, considero de menor importância extrair da Gītā sua conotação metafísica exata como foi compreendida pelos homens de seu tempo – mesmo se isso fosse acuradamente possível. Que isso não é possível é mostrado pela divergência dos comentários originais, que foram escritos e ainda são escritos, sobre ela, pois todos estão de acordo que cada um esteja em desacordo com os outros; cada um encontra na Gītā seu próprio sistema metafísico e a tendência de seu pensamento religioso. Nem mesmo a erudição mais meticulosa e mais desinteressada e as mais iluminadas teorias do desenvolvimento histórico da filosofia indiana nos salvam desse erro inevitável. Mas o que podemos fazer com proveito é buscar na Gītā o que ela contém de verdades realmente vivas, à parte de sua forma metafísica; extrair desse livro aquilo que pode nos ajudar – a nós mesmos ou ao mundo em geral – a traduzi-lo na forma e expressão as mais naturais e vivas que pudermos encontrar que sejam adaptadas à mentalidade da humanidade atual e apropriadas às suas necessidades espirituais. Sem dúvida, nessa tentativa podemos misturar um grande número de erros, nascidos de nossa própria individualidade e das ideias nas quais vivemos, como o fizeram antes homens maiores do que nós, mas, se mergulharmos no espírito dessa grande Escritura e, acima de tudo, se tentarmos viver nesse espírito, poderemos estar seguros de encontrar nela o tanto de verdade real quanto formos capazes de receber, assim como a influência espiritual e a ajuda concreta que, pessoalmente, somos destinados a obter dela. E essa, afinal, é a razão pela qual as Escrituras foram escritas; o resto é disputa acadêmica ou dogma teológico. Só continuam a ser de importância vital para a humanidade aquelas escrituras, religiões, filosofias, que possam ser assim constantemente renovadas, revividas, sua substância de permanente verdade constantemente reformada e desenvolvida no pensamento mais profundo e na experiência espiritual de uma humanidade que se desenvolve. O resto permanece como monumentos do passado, mas não tem força ou impulso vital para o futuro.

Na Gītā há muito pouco que seja apenas local ou temporal; seu espírito é tão largo, profundo e universal que mesmo esse pouco pode ser facilmente universalizado sem que o sentido do ensinamento sofra qualquer diminuição ou violação; antes, ao dar-lhe escopo mais amplo do que se ele se limitasse ao país e à época, o ensinamento ganha em profundidade, verdade e poder. De fato, com frequência a própria Gītā sugere o escopo mais vasto que se pode dar, dessa maneira, a uma ideia que, em si, é local ou limitada. Assim, ela trata da antiga ideia e do antigo sistema indiano do sacrifício como um intercâmbio entre deuses

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e seres humanos – um sistema e uma ideia que desde muito tempo se tornaram praticamente obsoletos mesmo na Índia e não são mais reais para a mente humana em geral; mas encontramos aqui um sentido tão sutil, tão figurativo e simbólico dado à palavra “sacrifício”, e o conceito de deuses é tão pouco local e mitológico, tão inteiramente cósmico e filosófico, que poderemos com facilidade aceitar ambos como expressões de um fato prático de psicologia e como uma lei geral da Natureza e, assim, aplicá-los às concepções modernas de intercâmbio entre vida e vida, de sacrifício ético e de dom de si, de maneira a alargar e aprofundar esses termos e dar a eles um aspecto mais espiritual e a luz de uma Verdade mais profunda e de maior alcance. Do mesmo modo, a ideia da ação em acordo com o Shastra, a ordem social quádrupla, a alusão à posição seletiva das quatro ordens ou às incapacidades espirituais relativas dos sudras e das mulheres parecem ser, à primeira vista, locais e temporais, se são tomadas realmente em seu sentido literal, estreitas ao ponto de privar o ensinamento da Gītā de sua universalidade e profundidade espiritual e de restringir seu valor para a humanidade em geral. Mas se, ao olharmos além do nome local e da instituição temporal, buscarmos apreender o espírito e o sentido, veremos que aí também o sentido é profundo e verdadeiro e o espírito é filosófico, espiritual e universal. Por Shastra nós percebemos que a Gītā se refere à lei que a humanidade impôs a si mesma como substituto da ação puramente egoística do ser humano natural não regenerado e um controle de sua tendência a buscar na satisfação de seus desejos a norma e o objetivo de sua vida. Vemos também que a ordem quádrupla da sociedade é apenas a forma concreta de uma verdade espiritual que em si mesma é independente da forma; ela repousa no conceito do trabalho justo como uma expressão corretamente ordenada da natureza do ser individual por meio do qual o trabalho é feito; essa natureza lhe designa sua linha e seu escopo na vida conforme suas qualidades inatas e sua função autoexpressiva. Visto que esse é o espírito no qual a Gītā apresenta seus exemplos mais particulares e mais locais, somos justificados ao aplicar sempre o mesmo princípio e ao buscar sempre a verdade geral mais profunda, que seguramente é subjacente a tudo o que, à primeira vista, parece ser apenas local e pertencente a uma época. Porque descobriremos sempre que uma verdade e um princípio mais profundos são implícitos na textura do pensamento, mesmo quando não são enunciados de modo expresso em sua linguagem.

Não trataremos, então, com um espírito diferente os elementos do dogma filosófico ou o credo religioso que penetraram na Gītā ou se agarraram a ela devido ao uso dos termos filosóficos e dos símbolos religiosos correntes no seu tempo.

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