Título do original: Bi – The Hidden Culture, History, and Science of Bisexuality.
Copyright © 2022 Julia Shaw.
Copyright da edição brasileira © 2023 Editora Pensamento-Cultrix Ltda.
1ª edição 2023.
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Editor: Adilson Silva Ramachandra
Gerente editorial: Roseli de S. Ferraz
Preparação de originais: Karina Gercke
Gerente de produção editorial: Indiara Faria Kayo
Editoração eletrônica: S2 Books
Revisão: Luciana Soares da Silva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Shaw, Julia InvisiBilidade : cultura, ciência e a história secreta da bissexualidade / Julia Shaw ; tradução Vic Vieira Ramires. -- 1. ed. -- São Paulo : Editora Cultrix, 2023.
Título original: The Hidden Culture, History and Science of Bisexuality ISBN 978-65-5736-237-2
1. Antropologia 2.
23-145708
CDD-305.3
Índices para catálogo sistemático:
1. LGBTI+ : Diversidade sexual : Sociologia 305.3
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA., que se reserva a propriedade literária desta tradução.
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Bissexualidade 3. Ciências sociais 4. Diversidade sexual I. Título.A liberdade sexual é magnífica e frágil
Introdução: Eu Quero Mais
Eu sou bissexual e há muito tempo sinto que quero mais. Tenho desejado me ancorar a uma base sólida de história e pesquisa, encontrar a representação bi na política e na cultura pop e, em geral, responder à pergunta: Onde estão todas as pessoas bissexuais?
Quando iniciei minha pesquisa, encontrei um vácuo desconcertante e me perguntei se minha jornada por mais era uma perda de tempo. Então comecei a me familiarizar com a linguagem da academia queer, e lentamente o mundo da pesquisa bissexual se revelou para mim. Cheguei à compreensão de que trabalhos incríveis haviam sido feitos, mas tragicamente quase todos eles permanecem escondidos do público. Com este livro, quero mudar isso e trazer o mundo colorido da academia bissexual para fora das sombras.
Também quero que as pessoas parem de tratar as identidades e as vidas bi como uma perversão. Para fazer isso não precisamos apenas entender melhor a bissexualidade, também precisamos pôr a heterossexualidade em cheque. A bissexualidade não é misteriosa, ameaçadora ou performativa... ou até mesmo descolada, antenada ou transcendental. É uma parte normal da sexualidade humana. Mesmo no século XXI, a maioria de nós presume que as pessoas são hétero até que provem o contrário. Centralizamos a heterossexualidade como o sol do nosso sistema solar sexual, cegando nossa exploração de outras sexualidades. Eu não acho que todo mundo é bi, como costuma ser dito meio de brincadeira,
em vez disso acredito que é hora de questionar nossa visão de mundo, desestabilizando nossas suposições sobre o sexo e a sexualidade. Existem aqueles que dirão que isso já aconteceu, que nós já despertamos de nosso sono sexual. Como uma editora me disse ao dar o motivo de terem rejeitado a proposta para este livro, “Nós já tivemos essa conversa”. Queriam dizer o nós como o país inteiro. O fogo que isso acendeu em mim é difícil de explicar. Não era só o fato de essa editora nunca ter publicado um livro sobre bissexualidade que me deixou tão chateada, foi o entendimento de que provavelmente existem muitas pessoas que concordam com essa declaração. Pessoas que acham que ver mais publicações positivas sobre a bissexualidade em redes sociais, ou conhecer alguém que saiu do armário como bi, ou conquistou alguns direitos e proteções legais, significa que a conversa chegou ao fim. Como é que conversas sobre identidade, amor e sexo podem, um dia, chegar ao fim?
Humanos ficam obcecados com esses constructos.
Também precisamos parar de colocar drama na bissexualidade quando ele não existe. Comumente mal interpretada e, às vezes, mal formulada, é a ideia de que pessoas bissexuais reforçam um binário de gênero rigoroso. Isso não é verdadeiro historicamente, nem nos dias de hoje. A maioria dos ativistas e pesquisadores bissexuais definem a bissexualidade como a atração por pessoas de múltiplos gêneros. Notavelmente essa definição é inclusiva de pessoas trans e não binárias.
Eu utilizo o termo bissexual ao longo deste livro não por achar que é o termo que todos devem usar, mas porque é o termo com a aplicação mais ampla, a história mais longa e é o mais reconhecido. Neste livro, espero unir a família sexual, não importa qual seja o termo com o qual as pessoas se sintam mais confortáveis, seja bissexual, plurissexual, pansexual, onissexual, polissexual, fluido, sem rótulos ou qualquer termo relacionado.
A maioria dos tópicos discutidos neste livro transcende a bissexualidade e nos ensina sobre os principais constructos do sexo, do amor e dos relacionamentos humanos. Não importa quem você seja, espero que este livro enriqueça e desafie seus pensamentos acerca desses tópicos. Como parte da minha jornada para entender melhor a bissexualidade, entrei em contato com a comunidade acadêmica bissexual de várias maneiras. Comecei um grupo de pesquisa bissexual com reuniões regulares, encabecei uma conferência internacional de pesquisa da bissexualidade que teve 485 participantes e 70 pesquisadores apresentando seus trabalhos e completei um mestrado em história queer. Eu já tinha um doutorado em psicologia, mas, para chegar aonde queria estar, precisava que pesquisadores e palestrantes segurassem minha mão e me guiassem com uma enorme paciência e cuidado quanto às informações contidas neste livro. Agora eu sei que existe muito mais pesquisa, história e escrita acadêmica sobre bissexualidade do que qualquer livro poderia conter.
Apesar de necessariamente incompleto, espero que este livro faça justiça a alguns dos incríveis acadêmicos e ativistas que dedicaram suas vidas ao entendimento e à proteção das pessoas bissexuais.
Neste livro, exploro como as pessoas definiram e mensuraram a bissexualidade, revelo sua importante e surpreendentemente longa história e falo sobre alguns ativistas e acadêmicos bi famosos que todo mundo deveria conhecer. Faço, figurativamente, um safári para observar animais que se comportam de modo bissexual e tento entender se existe um gene bi. Examino o porquê de em muitos lugares ainda parecer inapropriado falar sobre bissexualidade, incluindo o local de trabalho, e as consequências psicológicas e físicas de permanecer no grande armário bi. Também me dou conta da realidade devastadora da criminalização e dos abusos dos direitos humanos que tantas pessoas bissexuais enfrentam ao redor do mundo e de como podemos usar a nossa indignação para abastecer
uma revolução bissexual. Em seguida, tento descobrir qual é a aparência de uma pessoa bissexual (e se é que isso existe), tento encontrar visibilidade bi nas telas e exploro o mundo colorido das comunidades bissexuais. No último capítulo, pulo para o que talvez seja o tópico mais sexy do livro, o sexo a três, e analiso a pesquisa sobre o divertido e controverso tópico da não monogamia consensual.
Seja qual for a sua razão para escolher um livro que é assumidamente bi, espero que, como eu, você tenha chegado aqui porque quer saber mais sobre a história, a cultura e a ciência da bissexualidade.
Capítulo 1
A Opção Bi
Há quase cinquenta anos existem suspeitas de que a bissexualidade é provavelmente apenas uma moda. Até mesmo a revista americana
Newsweek fez essa ousada declaração duas vezes. Em 1974, a revista publicou uma matéria intitulada “Bisexual Chic: Anyone Goes”1 [“Bissexual Chic: Vale Tudo”]. Duas décadas mais tarde, em 1995, foi publicada uma matéria de capa com a manchete “Bisexuality. Not gay. Not straight. A new sexual identity emerges”2 [“Bissexualidade. Nem gay. Nem hétero. Uma nova identidade sexual emerge”]. Nova de novo?
Estes dois artigos foram amplamente ridicularizados em fóruns bissexuais. Isso é especialmente verdadeiro acerca da capa de 1995, que inclui reluzentes letras brancas sobre a foto de uma mulher de cabelo curto vestindo um terno preto grande demais para ela e com os braços cruzados. Ela exibe uma expressão reservada no rosto e está posicionada na frente de dois homens vestindo camisetas cinzas casuais que encaram a câmera com expressões sem emoção. A foto é tão esquisita e tão emblemática dos anos 1990 que parece quase satírica.
A própria matéria proclama coisas como “a bissexualidade é a carta coringa oculta da nossa cultura erótica”, sugere que há um “movimento bissexual independente” e permite que um adolescente de 15 anos desa-
credite o mito do bissexual hipersexual enquanto também o reforça com a bizarra citação “Um bissexual... não faz mais sexo do que o capitão do time de futebol”. Dado que um benefício-chave de ser o capitão do time de futebol americano é fazer muito sexo, acho que esse rapaz está tentando deixar claro que ele é promíscuo, mas não sexualmente excessivo A matéria também confunde de várias maneiras o poliamor, a promiscuidade e a fluidez de gênero com a bissexualidade. E toca na ideia de que a bissexualidade está em alta com a frase “Muitos estudantes universitários, especialmente mulheres, falam sobre uma nova ‘fluidez’ sexual no campus” e cita uma pessoa bissexual dizendo “Não é mais um nós contra eles. Há cada vez mais de nós”.
O que eu acho espantoso é que essa matéria poderia ter sido escrita nos dias de hoje, com os mesmos equívocos, a sensação desconfortável de mudança e os ecos de otimismo. Em especial, essa ideia de que há cada vez mais pessoas bissexuais ainda é popular atualmente. Mas ela é verdadeira? Antes que eu tente responder, preciso definir o que é a bissexualidade. Para isso, voltaremos no tempo para ver a origem do termo, e os três homens com nomes que soam similares e foram fundamentais para estabelecer a bissexualidade como um conceito acadêmico e popular: Krafft-Ebing, Kinsey e Klein.
Inventando a bissexualidade
Pode causar surpresa o fato de que o uso do termo bissexual para se referir à sexualidade humana é quase tão antigo quanto o termo heterossexual. No livro The Invention of Heterosexuality (A Invenção da Heterossexualidade), o pioneiro da história gay e ativista Jonathan Ned Katz argumenta que “a ideia da heterossexualidade é uma invenção moderna, datando do final do século XIX”.3 O primeiro registro de uso do
termo foi em um panfleto anônimo de 1869, sobre o qual foi estabelecido mais tarde que Karl-Maria Kertbeny era o autor.4
Kertbeny viveu uma vida agitada. Ele passou algum tempo em muitas cidades europeias, onde se encontrava com celebridades como George Sand e os irmãos Grimm, se escondeu das autoridades ao morar em um jardim botânico em Leipzig, foi informante do governo por um curto período de tempo e vivia entrando e saindo de prisões de devedores por causa de uma série de tentativas fracassadas de ser jornalista.5 Em suas cartas, seus panfletos e livros, ele escreveu extensivamente sobre a visão de que as leis da sodomia violavam os direitos humanos e que tais atos sexuais consensuais praticados de modo privado não deveriam ser submetidos à lei criminal. Enquanto escrevia, Kertbeny, que provavelmente era gay, sentiu a necessidade de rotular e definir a norma sexual para que ele pudesse explicar como os comportamentos sexuais e desejos pelo mesmo sexo contrastavam com ela. Foi por isso que ele inventou os termos “heterossexual” e “homossexual”. Um ativista dos direitos gays cunhou a palavra heterossexual como um subproduto da criação da palavra homossexual.
Na etimologia de Kertbeny para “heterossexual”, “hétero” vem do grego heteros, que significa outro, enquanto homos significa mesmo, e ambos são fundidos com a palavra em latim sexus. Pouco depois disso, bi, ou dois, começou a ser usado para se referir a pessoas que tinham desejos homossexuais e heterossexuais. Um modo pelo qual pesquisadores bissexuais costumam falar disso é que o bi em bissexual significa dois, mas o dois não é de homens e mulheres, e sim de mesmo e outro
Antes de ser adotado para descrever a sexualidade humana, o termo bissexual era tipicamente usado para se referir a criaturas e plantas hermafroditas, portanto, que tinham partes reprodutivas masculinas e femininas. Ainda hoje, nos mundos da botânica, da entomologia e da
zoologia, o termo bissexual costuma ser usado dessa maneira. Rosas são um exemplo popular de planta bissexual.
O primeiro uso da palavra bissexual em inglês, no sentido de ser sexualmente atraído por pessoas de múltiplos gêneros, ocorreu provavelmente em 1892 quando o neurologista norte-americano Charles Gilbert Chaddock traduziu Psychopathia Sexualis, um influente livro do psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing, no qual ele descreve o que considerou ser transtornos sexuais em prisioneiros homens.6 O livro foi escrito para ser usado em ambientes clínicos e forenses, e Krafft-Ebing o escreveu em uma linguagem intencionalmente difícil e com partes em latim para que leigos não pudessem lê-lo. O livro exerceu um papel controverso e importante na discussão entre psiquiatras da época que estavam tentando entender por que as pessoas tinham desejos homossexuais.
Por que esses termos não existiam antes? Como a historiadora da sexualidade Hanne Blank argumentou, antes disso as pessoas em países anglófonos não pensavam na sexualidade como uma identidade.7 Elas não consideravam que deveriam ser “diferenciadas umas das outras pelos tipos de amor ou desejo sexual que experimentavam”. Existiam palavras para descrever os tipos de comportamento sexual nos quais as pessoas se envolviam, mas o sexo era uma coisa que as pessoas faziam, não uma parte de quem elas eram.
Assim que a sexualidade se tornou um elemento político acalorado da identidade, as pessoas passaram a ter necessidade de modos de definir esses novos rótulos sexuais. O problema surgiu rapidamente quando o que uma pessoa queria dizer ao usar um rótulo como bissexual era muito diferente do que outra pessoa queria dizer, questão que continua a apresentar um grande obstáculo para os pesquisadores nos dias de hoje.
Para superar esse tipo de problema, pesquisadores em áreas como psicologia costumam criar definições “operacionais”. Por exemplo, se
você é um pesquisador que pensa que o rótulo bissexual é pouco utilizado, você pode criar um questionário sobre os interesses sexuais das pessoas. Os participantes que chegam acima de uma determinada pontuação de corte seriam rotulados como bissexuais para os propósitos do seu estudo, mesmo que eles não se identifiquem dessa maneira. O principal é que você deixe transparente o modo pelo qual está definindo objetivamente a bissexualidade, para que outros pesquisadores possam ver se concordam com quem foi denominado bi e para que possam repetir seu estudo com outras amostras. É importante apontar que nem todas as definições operacionais são criadas do mesmo jeito, e muitos que estudam pessoas queer reagem com resistência ao próprio conceito de que a sexualidade possa ser mensurada objetivamente.
Para mim, o motivo para isso ficou muito claro em 2020 quando um artigo sobre homens bi foi publicado em um respeitado periódico científico.8 Os pesquisadores definiram operacionalmente a bissexualidade como a excitação peniana ao assistir pornografia “gay” e “hétero”. Para fazer essa medição, eles monitoraram o quanto o pênis dos homens endurecia ao usar algo chamado de pletismógrafo peniano, uma manga mecânica que é inserida ao redor do pênis. Os pesquisadores monitoraram a excitação enquanto os homens assistiam a material pornográfico escolhido pelos pesquisadores. Pode-se imaginar o quanto estar em um laboratório de pesquisa no qual é exibido um tipo de pornografia que não se pôde escolher enquanto esse objeto está preso nos genitais pode ser uma situação, digamos, deveras não natural. Mas os pesquisadores estavam satisfeitos, porque descobriram que os homens que disseram que eram bissexuais, de fato, tiveram ereções com ambas as pornografias “ gay” e “hétero”. Isso, escreveram os pesquisadores, finalmente provava que homens bi existiam. Esse artigo deixou muitas pessoas enfurecidas. Inclusive a mim.