Scott Shepherd
UM ROMANCE DE AUSTIN GRANT DA SCOTLAND YARD
Tradução Denise de C. Rocha
Título do original: TheLastCommandment.
Copyright © 2021 Scott Shepherd.
Publicado mediante acordo com Penzler Publishers, através da Yañez, parte da International Editor´s Co. S.L. Literary Agency.
Copyright da edição brasileira © 2023 Editora Pensamento-Cultrix Ltda. 1a edição 2023.
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Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, organizações e acontecimentos retratados neste romance são produtos da imaginação do autor e usados de modo fictício.
Editor: Adilson Silva Ramachandra
Gerente editorial: Roseli de S. Ferraz
Gerente de produção editorial: Indiara Faria Kayo
Editoração eletrônica: Ponto Inicial Design Gráfico Revisão: Érika Alonso Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Shepherd, Scott
O último mandamento/Scott Shepherd ; tradução – São Paulo: Denise de C. Rocha. -- São Paulo : Editora Jangada, 2023.
Título original: The last commandment. ISBN 978-65-5622-050-5
1. Ficção norte-americana I. Título.
22-138559 CDD-813
Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813 Inajara Pires de Souza - Bibliotecária - CRB PR-001652/O
Jangada é um selo editorial da Pensamento-Cultrix Ltda.
Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA., que se reserva a propriedade literária desta tradução.
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Para Holly, por causa de você nunca há um Dia de Solidão.
Em suas Marcas
EIle se apaixonava exatamente no mesmo horário todas as noites. Dez minutos antes das onze horas.
Era nessa hora que Billy Street, vocalista dos Blasphemers, começava a cantar “Não Sou Bom o Bastante para Você”, o único sucesso da banda. A plateia saía do seu torpor alcoólico e as conversas se interrompiam, enquanto ele se preparava para começar seu canto do cisne.
Ele já tinha tocado a música milhares de vezes e era quase sempre a mesma coisa: uma garota vinha para a frente do palco, ao encontro de Billy, plantava-se sob as pernas abertas revestidas de couro do roqueiro e o encarava com uma adoração cheia de luxúria, enquanto ele dedilhava furiosamente sua guitarra Fender Telecaster.
A adorável sortuda daquela noite usava uma legging justa com estampa de diamantes e uma camiseta ainda mais justa do AC/DC, que se agarrava aos seios generosos. Ela sabia a letra toda de cada música do repertório da banda, até as mais obscuras e inéditas. Ou era a fã número um da banda ou apenas uma garota triste, com tempo de sobra para memorizar o repertório de uma banda de rock que a maior parte de Londres (e, infelizmente, a indústria fonográfica) tinha esquecido há muito tempo.
Billy não dava a mínima. Naquele momento, ele estava tocando apenas para ela, a sua garota AC/DC, a sua fã ardorosa. Ele cantava seu hit, depois começava os covers com que os Blasphemers sempre terminavam o show, o tempo todo mantendo seus desgastados olhos rock and roll no objeto do seu breve desejo daquela noite.
II
– É
só isso?
A garota AC/DC estava desapontada.
Billy deixou escapar um grunhido final. O que ela esperava? Que fossem passar um fim de semana romântico em Bath ou acabar na sua quitinete suja, onde mal havia espaço para ele? Além do mais, Billy sabia que, se acordasse e visse olhos arregalados e arrulhos matinais, teria vontade de cortar os pulsos.
— Receio que sim, benzinho — Billy murmurou, enquanto a tirava de cima dele e se remexia no banco do motorista para fechar o zíper da calça de couro.
O MG conversível restaurado não era o carro ideal para uma trepada, mas o camarim do Wooten era do tamanho de um armário e seus parceiros da banda não iriam embora tão cedo. Por isso ele tinha levado a garota AC/DC para o beco e depois para dentro do seu MG. Ele lhe entregou a legging de diamantes vermelhos que ela tinha despido menos de três minutos antes.
— Pode ir para casa agora.
Humilhada, a garota AC/DC baixou a camiseta e o nome da banda se espalhou sobre os seios pendentes, que estavam monopolizando a atenção de Billy trinta segundos antes.
— Eu não consegui... sabe... terminar. Billy deu um tapinha na bunda dela.
— Mas esta noite já vai lhe render uma boa história, não vai?
— Que história? A do cara pra quem tirei a calcinha e não demorou nem vinte segundos pra acabar?
— Durou tudo isso? — Billy caçoou.
— Você é mesmo um filho da puta! — gritou a garota AC/DC. Felizmente, ela rastejou para fora do carro e vestiu a legging outra vez sob a camiseta.
— Já fui chamado de coisa pior.
Essa era a mais pura verdade.
Não nos velhos tempos, quando os Blasphemers conseguiram seu primeiro e único contrato de gravação decente. Aquele álbum de estreia incluía “Não Sou Bom o Bastante para Você”, um top hit. Isso significava que os dois álbuns seguintes venderiam bem, mesmo que os números fossem raízes quadradas desse esforço inaugural. Seguiu-se a submediocridade; eles levaram um chute no traseiro da gravadora e não havia um único selo no planeta para recolher os pedaços.
Agora, duas décadas depois, a banda estava fadada a tocar em espeluncas como o Wooten, que dava para o beco do Piccadilly Circus, onde Billy tivera a sorte de conseguir uma fã para uma trepada rápida de fim de noite.
Prova disso era a desgrenhada e desiludida garota AC/DC, que tinha reprimido o choro, xingado Billy de filho da puta e depois atravessado o beco com os saltos das sandálias golpeando ritmamente os paralelepípedos, enquanto desaparecia na noite enevoada de Londres.
Billy abriu o porta-luvas e procurou a garrafa de Bushmills pela metade, destampou-a e deu um longo gole no conteúdo cor de âmbar.
BAM!
Algo acabara de atingir a traseira do MG.
— Caralho! — O uísque derramou na camisa de seda multicolorida. A primeira reação dele foi pensar na garota.
— Já encerramos aqui! Cai fora!
O carro sacudiu novamente.
Alguém tinha aberto o porta-malas.
Imagens da garota desprezada tomada pela fúria passaram pela cabeça dele: ferros de passar sobre partes do corpo, começando pelas
mais íntimas. Pior ainda: esmagando sua amada Fender guardada no fundo do porta-malas. Esse pensamento o fez sair às pressas do MG.
— Suma daqui, vadia! Está difícil de entender?!
Billy não obteve resposta. Mas percebeu que não tinha ouvido o barulho dos saltos dela no caminho de volta pelos paralelepípedos.
Uma figura saiu quase flutuando da névoa, com um objeto que ele conhecia muito bem balançando na mão.
A Fender Telecaster.
Arrancada do estojo e de repente usada contra o próprio dono, um roqueiro decadente que logo estava sangrando nos paralelepípedos de um beco, no coração de Londres.
O agressor veio para cima dele e montou sobre o seu corpo, assim como Billy fazia com suas amantes das 10h50, empunhando a Fender como um cetro sedutor. Por um instante, pareceu que ele ia começar um solo escaldante, mas, em vez disso, o atacante arrancou uma das cordas de metal da guitarra com um puxão violento.
Em segundos, a corda estava enrolada no pescoço de Billy.
Enquanto sentia a vida se esvaindo do seu corpo, Billy ouviu o assassino começar a assobiar baixinho “Não Sou Bom o Bastante pra Você”.
Billy realmente odiava aquela música.
III
Oparque Heath.
Austin Grant ainda passeava por lá todos os domingos depois da igreja, embora estivesse fazendo esse passeio sozinho havia mais de um ano. Hampstead Heath era seu local favorito na Terra, um parque gigantesco no alto de uma colina com vista para Londres, onde ele pedira Allison em casamento havia mais de três décadas.
Eles tinham se casado numa tarde espetacular de primavera, quando os lilases roxos, as hortênsias cor-de-rosa e as rosas vermelhas estavam em plena floração. Ele ficou surpreso quando ela concordou em se casar com ele depois de apenas um mês de namoro. Grant tinha certeza de que o pai dela, já falecido, não entregaria sua única filha a um homem sem perspectivas. Por milagre, Allison via o suficiente em Grant para aceitar seu pedido e a partir daí passou a incentivá-lo durante toda a sua carreira.
Uma carreira que estava quase no final.
Caminhando pela trilha bem cuidada, naquele dia tempestuoso de dezembro, Grant se censurou por não ter seguido a sugestão de Allison, cinco anos antes, de se mudarem de Londres.
Quando ele tinha finalmente deixado que ela lhe mostrasse o folheto? Um mês antes de adoecer? A pequena casa em Todi, uma cidadezinha a uma hora de Roma, onde as vinhas floresciam e a vida desacelerava até quase rastejar num ritmo abençoado.
— Podemos alugar uma casa e só passar o verão — dissera Allison. — E você vê se aguenta. Vai poder ler um livro, tirar uma soneca à tarde... Quem sabe até tomar um drinque antes do jantar!
Grant tinha lá suas dúvidas... Ele nunca deixava de tirar seus quinze dias de férias anuais, mas deixava Allison maluca, ligando para o escritório todos os dias, enquanto deviam estar aproveitando as férias. Mais de uma vez, tinham desistido de viajar porque ele não conseguira se desvencilhar do trabalho, e ele sempre prometia compensar os dias perdidos depois.
Os dias “a serem compensados” agora estavam perdidos para sempre, pois ela ficou doente e nunca mais se recuperou.
O cemitério de Highgate foi a escolha óbvia para o local de descanso final de Allison. O coração dele se partiu quando ela disse que seria um lugar que ela sabia que Grant não se importaria em visitá-la até chegar a hora de ele descansar ao lado dela. Na verdade, aquele era o único lugar em que ele conseguia encontrar paz: sentado no banco de ferro fundido que, apenas um ano depois de Grant tê-lo doado na ocasião do falecimento de Allison, já exibia uma camada de ferrugem por causa da umidade generalizada de Londres.
Como sempre fazia aos domingos, ele colocou no vaso de mármore um buquê de rosas cor-de-rosa, a cor favorita dela. Embora não fosse nada fácil encontrá-las no inverno, Grant estava determinado a deixar o túmulo sempre enfeitado com as mesmas flores que tinham perfumado o dia do casamento deles. Ele fizera um acordo com uma floricultura na High Street: se o proprietário levasse buquês ao cemitério durante todo o ano, Grant poderia providenciar para que o homem não precisasse de uma licença de estacionamento em frente à sua loja. Essa era uma das poucas vantagens que o trabalho de Grant ainda lhe oferecia.
ALLISON REBECCA GRANT.
Amada Filha, Esposa e Mãe.
A inscrição simples da lápide sempre levava Grant a pensar na filha, Rachel. Ele se perguntava o que ela estaria fazendo e por que o relacionamento entre eles tinha desandado daquela maneira. Ele não via a
filha desde o funeral. Logo depois de Allison ter recebido o diagnóstico de câncer nos pulmões, Rachel voou de Nova York para casa e se enfurnou no quarto com a mãe. Ela tinha saído da casa deles mal dirigindo uma palavra a Grant. A única vez que ele tinha tentado persuadir a filha a falar com ele, Rachel tinha sido taxativa:
— Mamãe está morrendo. Não há mais nada que dizer.
A razão que tinha levado a filha a se recusar a tocar no assunto era um mistério para Grant. Ela tinha parado de responder aos e-mails dele já fazia um tempo e chegara até a trocar o número do celular. Se ele não se deparasse de vez em quando com um artigo ocasional da autoria dela no New Yorker ou na New York Times Magazine, poderia pensar que Rachel tinha desaparecido da face da Terra.
Grant passou os dedos sobre a inscrição, lembrando-se daqueles dias finais. Ele sempre era assombrado por aquela última memória: Allison sendo levada de ambulância para o hospital, sem que ele pudesse tocá-la e sem se dar conta de que nunca mais a veria nem teria chance de dizer adeus.
Grant suspirou, consultou o relógio, o mesmo da marca Tag que ele tinha usado nos últimos trinta anos, e olhou o pequeno visor que mostrava a data.
Dia 8.
Faltavam 23 dias para o final do ano. Três semanas e dois dias até que ele não tivesse mais que se levantar e ir para o trabalho. Ele certamente não iria alugar uma casa em Todi. Não sozinho.
Sabia que iria acabar exatamente ali, naquele maldito banco de jardim. Pelo menos se livraria dos seus problemas atuais e não teria que enfrentar situações como o Caos Fleming, no início do ano.
— Senhor?
Por um segundo, Grant pensou que havia caído no sono. Não havia outra explicação razoável para ele estar ouvindo a voz de Hawley.
Ele se virou e viu o sargento parado numa trilha entre os túmulos. Hawley parecia nervoso e um pouco agitado, ainda carregando o peso extra que Grant o incentivara a perder para facilitar seu trabalho e melhorar sua saúde.
— O que está fazendo aqui, Hawley?
— O senhor não atendeu ao celular.
— Isso é porque é domingo e estou com o celular desligado.
— Bem, eu sabia que o senhor vinha aqui todos os domingos.
— E como sabia disso?
Hawley hesitou antes de responder. Grant sentiu pena do homem; ele sabia que ainda intimidava o policial, embora fosse seu chefe havia mais de uma década.
— Porque o senhor me disse que era para cá que vinha... — Hawley finalmente explicou. — No caso de eu realmente precisar do senhor... se algo importante acontecesse.
— Então presumo que tenha algo muito importante a me dizer.
O corpanzil de Hawley oscilou para a frente e para trás. Depois ficou ali parado, como se aguardasse permissão para falar, o que Grant misericordiosamente lhe deu.
— Desembucha, sargento.
— Aconteceu outra vez.
Um calafrio percorreu toda a extensão da coluna de Grant.
— Pela terceira vez?
— Num beco, atrás de uma casa noturna em Piccadilly. A mesma marca que os outros...
— Exceto que havia três linhas na testa em vez de uma ou duas.
— Exatamente, comandante.
— Muita gentileza da parte do sujeito numerar os cadáveres para nós... — disse Grant, com uma carranca.
Ele se virou para dar uma última olhada no túmulo de Allison, fazendo uma promessa silenciosa de que voltaria no domingo seguinte para vê-la. Depois disse a Hawley para ir na frente. Enquanto saíam do cemitério de Highgate, um pensamento que, nos últimos tempos, se tornara o mantra de Grant passou pela sua cabeça.
Mal posso esperar até o Ano-Novo, quando vou poder dar adeus a Scotland Yard.
IV
Grant nem sabia que o Wooten existia. Costumava haver casas noturnas fora do circuito principal em praticamente todos os quarteirões do centro de Londres e Grant não frequentava nenhuma delas. Ele definitivamente nunca tinha ouvido falar de Billy Street nem da sua banda, os Blasphemers.
A equipe de homicídios já estava trabalhando na cena do crime havia mais de uma hora quando Grant chegou com o sargento Hawley. O beco adjacente ao clube noturno era tão estreito que apenas um carro pequeno como o MG da vítima conseguia passar ali sem raspar a lataria. Só havia espaço para jogar lixo, esgueirar-se pela porta dos fundos para fumar um cigarro ou para dar cabo de um roqueiro cinquentão. Por ser domingo, o corpo de Billy só foi descoberto quando um vizinho levou o cachorro para fazer suas necessidades no beco. Billy Street foi identificado pela carteira de motorista em seu bolso, que possibilitou a busca do seu nome no sistema e a descoberta de que sua banda tinha tocado no Wooten na noite anterior. Quando Grant se aproximou do MG, Hawley já estava no celular, falando com o dono do bar e com os outros integrantes dos Blasphemers, na tentativa de montar uma cronologia dos fatos.
Jeffries, o médico legista, estava tirando medidas e fazendo anotações. Com 40 e tantos anos, mas parecendo duas décadas mais velho (Conviver com os mortos dá nisso, pensou Grant), o perito usava uma parca volumosa por cima do jeans e do moletom. Obviamente seu fim de semana tinha sido interrompido, assim como o de Grant.
— Lamento que o tenham arrastado para fora de casa numa manhã de domingo, comandante.
— Não lamenta tanto quanto eu — respondeu Grant. — Visto que agora parece que temos nas mãos um problema ainda maior.
— Receio que sim — concordou o legista.
Grant olhou por cima do ombro de Jeffries, na direção do roqueiro morto. Com a rigidez cadavérica, Billy Street parecia mais pálido do que um dos fantasmas de Scrooge, e ainda mais angustiado. A corda da guitarra de metal enrolada no pescoço flácido não ajudava a melhorar sua aparência. Mas era a testa da vítima que mais chamava a atenção de Grant. Cortes verticais eram visíveis um pouco acima das sobrancelhas tingidas da vítima.
— As marcas parecem com as outras? — perguntou Grant.
— Só no necrotério vou poder comparar, mas eu diria que se trata do mesmo assassino — respondeu Jeffries. — As marcas são idênticas em largura e comprimento; uma faca parecida foi usada. A única diferença é...
— ... o número de marcas — concluiu Grant. — O cretino deve pensar que não sabemos contar.
— Alguma chance de isso vazar?
— Conseguimos manter o caso fora dos jornais e ele também não foi para a televisão. — O comandante indicou as três marcas. — Tomamos cuidado para manter essa informação só entre nós, especialmente depois do segundo assassinato.
— Por quanto tempo acha que vai conseguir manter isso em segredo?
— Ainda não sei. Em quanto tempo você pode me passar um laudo completo?
— No final do dia? Ainda bem que é domingo, está tranquilo.
— Tranquilo, mas não por muito tempo — disse Grant, num tom cansado. Ele desejou não ter tanta certeza, mas podia sentir a tempestade se intensificando.
Três assassinatos no período de uma semana.
Um mais horripilante do que o outro.
OVprimeiro corpo tinha sido descoberto no dia 2 de dezembro. Uma data fácil para Grant se lembrar. Era o aniversário de Allison. Ele já tinha acordado sem ânimo.
Um professor visitante de Mitologia Grega não havia retornado à universidade de Oxford, depois de dar uma palestra na Biblioteca Britânica na noite anterior. Quando a Yard foi acionada, policiais foram enviados à biblioteca e, depois de uma busca, localizaram o homem morto num banheiro, ao lado da escada dos fundos do terceiro andar.
Depois da palestra, o professor Lionel Frey tinha entrado num cubículo do banheiro, de onde nunca saíra. O assassino tinha apagado as luzes e colocado a placa “Em Manutenção” na maçaneta da porta, depois de entalhar uma linha vertical na testa de Frey, combinando com o talho fatal que rasgara a garganta do professor.
A audácia do assassinato tinha atraído Grant para o caso.
O irmão de Grant, Everett, professor de Filosofia em Oxford, tinha comentado que alguém prestara um grande favor ao enviar Frey para a “grande universidade no céu”. O professor de Mitologia era um “bundão cheio de pose”, que desprezava qualquer pessoa que não se interessasse pelos deuses gregos, com os quais ele construíra sua carreira.
Nenhum dos professores de Oxford foi tão aberto quanto Everett ao expressar sua antipatia, mas Grant podia dizer que Lionel Frey não faria falta entre os colegas de profissão. Nenhum deles, contudo, parecia ter um motivo ou interesse verdadeiro para viajar a Londres só para assistir a uma palestra de duas horas e, em seguida, matar seu orador no cubículo estreito de um banheiro.
O raciocínio de Grant partia do óbvio: uma amante descartada ou algum outro londrino afrontado, mas a agenda de Frey, os cartões de crédito e o depoimento da esposa mostravam que ele não punha os pés na cidade havia mais de seis meses. Qualquer outra suposição foi descartada quando ocorreu o segundo assassinato. Melanie Keaton.
Escultora de certo renome no East End, Melanie foi encontrada em seu estúdio por Thomas Simmons, um potencial comprador, que tinha chegado para uma exibição programada para aquela manhã. Enquanto perambulava pelo Estúdio Whitechapel, cinco dias antes, Simmons tinha descoberto Keaton no chão, com a garganta cortada. Ao redor do corpo dela estavam as seis estatuetas que ela planejava mostrar a ele, com as cabeças de madeira decepadas.
Grant foi convocado para ir a East End pelo chefe de polícia, que tinha ligado as marcas cuidadosamente entalhadas (no plural, sim, porque agora eram duas marcas) na testa de Melanie Keaton, como aquela descoberta no professor de Oxford, que encontrara a morte sentado num vaso sanitário da Biblioteca Britânica.
Quando Grant entrou em cena, sua atenção foi imediatamente atraída para as estatuetas decapitadas, com asas de penas pretas brotando das costas e rostos num tom mais escuro de ébano. Um dos funcionários de Keaton disse ao comandante que as obras faziam parte de uma série de arcanjos nos quais a escultora estivera trabalhando. O estúdio estava repleto de esculturas do mesmo estilo, o que o fizera se perguntar se tinha topado com algum culto de magia negra. Grant anotou mentalmente que deveria verificar se o professor de Oxford assassinado tinha gostos semelhantes, depois começou uma rodada de interrogatórios que não tiveram mais sucesso do que as investigações na Biblioteca Britânica, dias antes.
Ninguém tinha visto Melanie Keaton desde que ela se trancara no estúdio na noite anterior. Grant perguntou a Simmons se ele conhecia a biblioteca, mas daquele mato não sairia nenhum coelho; o homem tinha acabado de voltar de uma viagem de negócios na Polônia, onde passara o último mês, o que descartava a ideia de que poderia estar no terceiro andar da Biblioteca Britânica na noite do dia 1o de dezembro.
Grant deixou o estúdio sem conseguir nada que ligasse o professor de Mitologia Grega de Oxford à escultora de arcanjos de Whitechapel. Exceto pelos talhos na testa. Melanie Keaton tinha o dobro de marcas de Lionel Frey. Grant não se sentiu melhor quando o legista concluiu que elas tinham sido feitas post-mortem. Isso significava que o assassino estava tentando dizer alguma coisa — como se estivesse provocando Grant e a Yard de propósito.
Me peguem se forem capazes.