Síntese do ioga

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A Síntese do Ioga



Sri Aurobindo

A Síntese do Ioga Os Princípios do Ioga Integral para a Plenitude e Unidade do Ser e da Existência

Tradutora Aryamani (Auroville — Índia) Tradução das notas sobre o texto Barbara Kreuzig


Título do original: The Synthesis of Yoga. Copyright © 1948, 1999 Sri Aurobindo Ashram Trust. Copyright da edição brasileira © 2021 Editora Pensamento-Cultrix Ltda. 1a edição 2021. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revista. Editor: Adilson Silva Ramachandra Gerente editorial: Roseli de S. Ferraz Gerente de produção editorial: Indiara Faria Kayo Primeira Revisão: Neusa Vendramin e Maria do Carmo Lopes da Silva Revisão final: Jivatman (Auroville), Barbara Kreuzig e Luciane Gomide Acentuação e revisão das palavras sânscritas: Umberto Cesaroli Preparação de originais: Alessandra Miranda de Sá Editoração eletrônica: Mauricio Pareja da Silva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ghose, Aurobindo, 1872-1950. A síntese do ioga: Os princípios do ioga integral para a plenitude e unidade do ser e da existência / Sri Aurobindo ; tradutora Aryamani (Auroville – Índia); tradução das notas sobre o texto Barbara Kreuzig. – São Paulo : Pensamento, 2021. Título original: The synthesis of yoga. ISBN 978-85-315-2150-8 1. Ioga I. Kreuzig, Barbara. II. Título. 21-75225

CDD-181.4 Índices para catálogo sistemático: 1. Ioga : Filosofia indiana 181.4 Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427

Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA., que se reserva a propriedade literária desta tradução. Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo — SP — Fone: (11) 2066-9000 http://www.editorapensamento.com.br E-mail: atendimento@editorapensamento.com.br Foi feito o depósito legal.


Sumário

Nota sobre a Tradução de A Síntese do Ioga......................................................... 9 Prefácio................................................................................................................. 11 Introdução — As Condições da Síntese................................................................. 15 Capítulo I — A Vida e o Ioga................................................................................. 17 Capítulo II — As Três Etapas da Natureza.............................................................. 21 Capítulo III — A Vida Tripla................................................................................. 31 Capítulo IV — Os Sistemas de Ioga....................................................................... 41 Capítulo V — A Síntese dos Sistemas..................................................................... 50 Parte I — O Ioga das Obras Divinas..................................................................... 59 Capítulo I — As Quatro Ajudas............................................................................. 61 Capítulo II — A Autoconsagração.......................................................................... 75 Capítulo III — O Dom de Si nas Obras — O Caminho da Gītā........................... 92 Capítulo IV — O Sacrifício, a Via Tripla e o Senhor do Sacrifício.......................... 107 Capítulo V — A Ascensão do Sacrifício — 1 As Obras do Conhecimento — o Ser Psíquico......................................................................................................... 131 Capítulo VI — A Ascensão do Sacrifício — 2 As Obras de Amor — As Obras da Vida........................................................................................................................ 151 Capítulo VII — Normas de Conduta e Liberdade Espiritual.................................. 178 Capítulo VIII — A Vontade Suprema.................................................................... 195 Capítulo IX — A Igualdade e a Aniquilação do Ego............................................... 206 Capítulo X — Os Três Modos da Natureza............................................................ 216 Capítulo XI — O Mestre das Obras....................................................................... 226 Capítulo XII — A Obra Divina............................................................................. 245 Capítulo XIII — A Supramente e o Ioga das Obras................................................ 256 Parte II — O Ioga do Conhecimento Integral..................................................... 263 Capítulo I — O Objeto do Conhecimento............................................................ 265 Capítulo II — O Estado de Conhecimento............................................................ 276 Capítulo III — A Compreensão Purificada............................................................. 283


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Capítulo IV — Concentração................................................................................ 291 Capítulo V — Renúncia......................................................................................... 299 Capítulo VI — A Síntese das Disciplinas do Conhecimento................................... 307 Capítulo VII — A Liberação da Sujeição ao Corpo................................................ 314 Capítulo VIII — A Liberação da Sujeição ao Coração e à Mente............................ 320 Capítulo IX — A Liberação da Sujeição ao Ego...................................................... 325 Capítulo X — A Realização do Self Cósmico......................................................... 335 Capítulo XI — Os Modos do Self.......................................................................... 340 Capítulo XII — A Realização de Sachchidananda.................................................. 348 Capítulo XIII — As Dificuldades do Ser Mental.................................................... 355 Capítulo XIV — O Brahman Passivo e o Brahman Ativo....................................... 363 Capítulo XV — A Consciência Cósmica................................................................ 370 Capítulo XVI — Unidade...................................................................................... 378 Capítulo XVII — A Alma e a Natureza.................................................................. 384 Capítulo XVIII — A Alma e sua Liberação............................................................ 392 Capítulo XIX — Os Planos de Nossa Existência.................................................... 401 Capítulo XX — O Triplo Purusha Inferior............................................................. 411 Capítulo XXI — A Escada da Autotranscendência................................................. 418 Capítulo XXII — Vijnana ou Gnose...................................................................... 427 Capítulo XXIII — As Condições para Alcançar a Gnose........................................ 438 Capítulo XXIV — Gnose e Ananda....................................................................... 446 Capítulo XXV — O Conhecimento Superior e o Conhecimento Inferior.............. 457 Capítulo XXVI — Samádi..................................................................................... 464 Capítulo XXVII — Hatha-Ioga.............................................................................. 471 Capítulo XXVIII — Raja-Ioga............................................................................... 478 Parte III — O Ioga do Amor Divino..................................................................... 485 Capítulo I — O Amor e a Via Tripla...................................................................... 487 Capítulo II — Os Motivos da Devoção.................................................................. 493 Capítulo III — As Emoções Voltadas para o Divino............................................... 501 Capítulo IV — A Via da Devoção.......................................................................... 509 Capítulo V — A Personalidade Divina................................................................... 515 Capítulo VI — O Deleite do Divino...................................................................... 524 Capítulo VII — O Brahman de Ananda................................................................ 529 Capítulo VIII — O Mistério do Amor................................................................... 535 Parte IV — O Ioga da Perfeição de Si.................................................................... 541 Capítulo I — O Princípio do Ioga Integral............................................................. 543 Capítulo II — A Perfeição Integral......................................................................... 549 Capítulo III — A Psicologia da Autoperfeição........................................................ 556 Capítulo IV — A Perfeição do Ser Mental.............................................................. 564 Capítulo V — Os Instrumentos do Espírito........................................................... 573 Capítulo VI — Purificação — A Mentalidade Inferior........................................... 583


SUMÁRIO 7

Capítulo VII — Purificação — A Inteligência e a Vontade..................................... 590 Capítulo VIII — A Liberação do Espírito............................................................... 599 Capítulo IX — A Liberação da Natureza................................................................ 606 Capítulo X — Os Elementos da Perfeição.............................................................. 614 Capítulo XI — A Perfeição da Igualdade................................................................ 620 Capítulo XII — A Via da Igualdade....................................................................... 629 Capítulo XIII — A Ação da Igualdade................................................................... 639 Capítulo XIV — O Poder dos Instrumentos.......................................................... 646 Capítulo XV — A Força da Alma e a Personalidade Quádrupla............................. 656 Capítulo XVI — A Shakti Divina.......................................................................... 667 Capítulo XVII — A Ação da Shakti Divina............................................................ 675 Capítulo XVIII — Fé e Shakti................................................................................ 682 Capítulo XIX — A Natureza da Supramente.......................................................... 692 Capítulo XX — A Mente Intuitiva......................................................................... 705 Capítulo XXI — As Gradações da Supramente...................................................... 715 Capítulo XXII — O Pensamento e o Conhecimento Supramentais........................ 727 Capítulo XXIII — Os Instrumentos da Supramente — O Processo do Pensamento.. 740 Capítulo XXIV — Os Sentidos Supramentais........................................................ 758 Capítulo XXV — Em Direção à Visão Supramental do Tempo.............................. 778 Capítulo XXVI — A Consciência Supramental do Tempo..................................... 795 Nota sobre o Texto................................................................................................ 799



Nota Sobre a Tradução de A Síntese do Ioga Um dos maiores desafios encontrados durante a tradução de A Síntese do Ioga foi o grande número de palavras e expressões em sânscrito. Para enfrentar esse desafio, alguns critérios específicos foram adotados. Em primeiro lugar, aceitei a grafia de várias palavras já integradas em nossa língua: Ioga, Maia, darma, samádi, carma, ássana, chacras e algumas outras foram deixadas com a grafia portuguesa, segundo o dicionário Houaiss. As palavras e expressões menos conhecidas foram deixadas em itálico, e aquelas que são conhecidas mas não foram ainda integradas à língua portuguesa, foram deixadas na mesma fonte do texto. Por exemplo: Pranayama, Prana, sadhaka e algumas outras. Em sânscrito há três gêneros, o feminino, o masculino e o neutro. Em inglês há o neutro “it”, mas em português não temos essa opção. Para traduzir certas palavras buscamos então certa orientação na tradução francesa, que também possui dois gêneros. São traduções publicadas pelo Ashram de Sri Aurobindo, e baseiam-se em um conhecimento do sânscrito que nos assegura da validade de suas decisões. Em sânscrito não há maiúsculas, por isso a palavra inicial das notas de rodapé, caso seja uma palavra sânscrita, foi deixada em inicial minúscula. A língua sânscrita também não possui a letra W, e isso pode confundir algumas vezes, visto que em geral na transcrição para o inglês usa-se o W. A palavra Ishvara, por exemplo, e outras, decidimos deixar sempre com V, visto que em português o W também não é usado, ou só em casos especiais. Conhecedores de sânscrito foram consultados em alguns casos, como em A Bhagavad Gītā, antes de decidirmos deixar a expressão no feminino, como é no original. E adotei a expressão curta, apenas Gītā, como Sri Aurobindo usa e como é mais comumente usada na Índia. Os adjetivos que qualificam certas expressões sânscritas não existem em português. Para facilitar a compreensão “criei” vários, como tamásico, rajásico, sátvico,


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prânico, e mesmo um substantivo, “fisicalidade”, para definir o estado daquilo que é físico (do mesmo modo como existem as palavras mentalidade e vitalidade) e também um verbo, “intuitivizar”, para ser fiel ao pensamento que Sri Aurobindo expõe. Uma outra opção foi o uso da palavra “guiança” em lugar de orientação ou guia. Não se encontra no dicionário Houaiss, mas é reconhecida em outros dicionários. Ainda para ajudar a compreensão, tomei a liberdade de introduzir o adjetivo “ióguico”, em lugar de “iogue”: segundo os dicionários a palavra “iogue” pode ser usada seja como substantivo, seja como adjetivo, porém, na minha opinião, esse uso pode confundir o leitor, visto que em A Síntese do Ioga encontra-se essa expressão em diferentes situações, o que pode provocar dúvidas sobre o sentido geral, ou mesmo interpretações errôneas. Sobre as notas de rodapé, além das originais de Sri Aurobindo, para a presente tradução foi necessário preparar várias outras. A maioria das que foram criadas por mim têm suas fontes no Glossary of Terms in Sri Aurobindo’s Writings [Glossário de Termos nos Escritos de Sri Aurobindo] e no índice e glossário da Coleção Centenário da obra de Sri Aurobindo. Introduzi várias notas de rodapé da tradução francesa (última edição, 2017), por considerá-las relevantes para uma melhor compreensão de certas passagens de A Síntese do Ioga. É com grande alegria que apresentamos mais uma obra de Sri Aurobindo ao público de língua portuguesa. — Aryamani Auroville, maio 2021


Prefácio Por que uma síntese do Ioga? Como nos diz Sri Aurobindo, se a questão é alcançar uma unidade de consciência com o todo, escapar do círculo das encarnações, desfrutar de um paraíso interior deixando a existência material — a Natureza — como ela está, então a solução seria encontrar o caminho mais curto. Mas, se além disso, devemos nos voltar para a vida e elevá-la a um nível divino de perfeição, então uma síntese é necessária. É isso que o Ioga Integral de Sri Aurobindo propõe. Além da união da consciência individual com a consciência divina, também a unidade de consciência com toda a existência e sua elevação e aperfeiçoamento, uma transformação do indivíduo em todas as dimensões de sua natureza em termos de uma vida divina na matéria. “A vida toda é Ioga” é, possivelmente, a afirmação mais conhecida de Sri Aurobindo. Neste Ioga não há um método fixo nem uma sucessão estabelecida de práticas, mas cada aspirante deve encontrar seu próprio método e práticas, sem, no entanto, perder de vista que no Ioga Integral o que é proposto é uma realização do ser em todos os seus aspectos e dimensões. Nesta obra, Sri Aurobindo propõe a busca de um contato direto da consciência encarnada com a consciência-força do Divino, para que essa força oriente e conduza todo o trabalho de transformação da natureza humana. Ele parte das três grandes vias tradicionais do Ioga na Índia: Bhakti-Ioga, Carma-Ioga e Jnana-Ioga (devoção, obras e conhecimento), que ele analisa detalhadamente nas Partes I, II e III. Nos 25 capítulos da Parte IV, ele amplia e detalha os princípios para o aperfeiçoamento da natureza, iniciando pela purificação da Vontade Inteligente — aspecto muitas vezes negligenciado por algumas escolas de Ioga, mas fundamental para um progresso equilibrado no caminho de desenvolvimento da consciência. O objetivo final é uma vida divina sobre a terra, o desenvolvimento de seres aperfeiçoados que atuarão para a manifestação de uma coletividade espiritualizada, o que torna este um Ioga evolutivo da natureza buscando manifestar o princípio divino contido nela. Um


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salto evolucionário configurado pela transformação da consciência humana em algo inteiramente novo — a consciência supramental. Como um alerta para a dificuldade de se tentar descrever a natureza supramental, Sri Aurobindo diz que Para descrever com a mente a natureza supramental seria necessário recorrer a frases que são demasiado abstratas ou a imagens mentais que poderiam fazer dela uma coisa completamente diferente daquilo que é na realidade. Portanto, pareceria não ser possível para a mente antecipar ou indicar o que será um ser supramental ou como agirá; as ideias e formulações mentais nada podem decidir nesse caso, nem podem chegar a alguma definição ou determinação precisas, porque não são bastante próximas da lei e visão próprias da Natureza supramental.1 E Sri Aurobindo nos diz ainda que, Ao mesmo tempo, certas deduções podem ser feitas, pelo próprio fato dessa diferença de natureza, que poderiam ser válidas ao menos para uma descrição geral da passagem da Sobremente à Supramente, para nos dar uma vaga ideia do primeiro estágio evolutivo da existência supramental.2 Assim, a uma característica dessa mudança é uma reversão completa, uma reviravolta, poder-se-ia quase dizer, de todas as atividades da mente. A natureza-base dessa supramente é que todo o seu conhecimento é, na origem, um conhecimento por identidade e unidade, e mesmo quando, em aparência, ela cria em si mesma inumeráveis divisões e modificações diferenciadoras, todo o conhecimento que rege suas operações, mesmo nessas divisões, é baseado nesse conhecimento perfeito por identidade e unidade e sustentado, aclarado e guiado por ele. O Espírito é um em todo lugar e sabe que todas as coisas estão nele e são ele mesmo; ele as vê sempre dessa maneira e, portanto, as conhece de maneira íntima e completa, em sua realidade e em sua aparência, em sua verdade, em sua lei — conhece inteiramente o espírito, o sentido e a forma da natureza delas e de suas operações. Mesmo quando vê algo enquanto objeto de conhecimento, o vê como ele mesmo e nele mesmo, e não como “outra” coisa que não é ele ou que está separada dele, da qual ignoraria antes de tudo a natureza, a constituição e o modo de funcionar e que deveria aprender a conhecer, assim como a mente no 1.  A Vida Divina, Segunda Parte, Capítulo XXVII — O Ser Gnóstico, p. 859. 2.  Idem.


PREFÁCIO 13

início ignora seu objeto e deve aprender a conhecê-lo, pois está separada dele e o vê, sente, encontra como algo distinto dela mesma e externo a seu ser.3 E então, A criação de um ser supramental, de uma natureza e vida supramentais na terra, não será o único resultado dessa evolução; ela trará consigo também a realização das etapas que conduziram até ela: essa evolução confirmará a sobremente, a intuição e os outros graus de força espiritual de nossa natureza em posse do nascimento terrestre e estabelecerá uma espécie de seres gnósticos, uma hierarquia, uma escada brilhante com seus degraus ascendentes e as formações sucessivas que constituem a luz e o poder gnósticos na natureza terrestre.4 — Henrique Gabarra Casa Sri Aurobindo

3.  A Síntese do Ioga, Parte IV, Capítulo XIX — A Natureza da Supramente. 4.  A Vida Divina, Segunda Parte, Capítulo XXVII — O Ser Gnóstico, p. 861.



Introdução

As Condições da Síntese



Capítulo I

A Vida e o Ioga As operações da Natureza obedecem a duas necessidades que parecem sempre intervir nas formas superiores da atividade humana, quer elas pertençam a nosso campo de ação habitual, quer toquem as esferas e realizações excepcionais que nos parecem elevadas e divinas. Cada forma de atividade tende a uma complexidade e a uma totalidade harmoniosas, e isso mais uma vez se separa para formar correntes diversas de tendências e esforços específicos, mas para reunir-se de novo em uma síntese mais ampla e poderosa. Ademais, toda manifestação verdadeira tem uma necessidade imperativa de formas para desenvolver-se; contudo, todas as verdades e práticas formuladas de modo demasiado estrito envelhecem e perdem a maior parte de sua virtude, se não toda; elas devem ser constantemente renovadas nas águas frescas do espírito, que vivifica o veículo morto ou moribundo e muda-o, se ele tiver que adquirir uma vida nova. Renascer perpetuamente, essa é a condição da imortalidade material. Estamos em uma época cheia das dores do parto, em que todas as formas de pensamento e atividade que possuam algum forte poder de utilidade ou alguma virtude secreta de persistência enfrentam uma prova suprema, e têm a oportunidade de renascer. O mundo de hoje se apresenta como um enorme caldeirão de Medeia, no qual todas as coisas são lançadas, despedaçadas, experimentadas, combinadas e recombinadas, seja para perecer e servir de material esparso para formas novas, seja para emergir rejuvenescidas e mudadas, prontas para um novo termo de existência. O Ioga indiano, que em sua essência é a operação e formulação particulares de certos grandes poderes da Natureza, ele mesmo especializado, subdividido e formulado de maneira variada, é potencialmente um dos elementos dinâmicos da vida futura da humanidade. Fruto de idades imemoriais, preservado até nossos dias por sua vitalidade e verdade, ele emerge agora das escolas secretas e abrigos ascéticos onde se re-


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fugiou e busca seu lugar nos futuros poderes e atividades dos seres humanos. Porém, primeiro ele precisa redescobrir-se, trazer à superfície sua razão de ser mais profunda em relação à verdade geral e ao objetivo constante da Natureza que ele representa e, em virtude desse novo autoconhecimento ou dessa autoavaliação, reencontrar sua própria síntese mais ampla. Ao reorganizar-se, ele poderá participar de modo mais fácil e poderoso na vida reorganizada da espécie que ele pretende poder conduzir, por seus métodos, até os santuários mais secretos dentro e, no alto, até as altitudes mais elevadas da existência e personalidade humanas. Se examinarmos corretamente a vida e o Ioga, perceberemos que toda vida, de modo consciente ou subconsciente, é um Ioga. Pois o que entendemos com esse termo é um esforço metódico para alcançar a autoperfeição mediante o desenvolvimento dos potenciais secretos e latentes de nosso ser e — a mais alta condição de vitória nesse esforço — a união do indivíduo humano com a Existência universal e transcendente que vemos se expressar de modo parcial no ser humano e no Cosmos. Se olharmos por trás das aparências, a vida inteira é um imenso Ioga da Natureza; é a Natureza que busca realizar sua perfeição pelo desenvolvimento cada vez maior de seus potenciais ainda não realizados e unir-se à sua própria realidade divina. No ser humano, seu pensador, ela inventou, pela primeira vez na Terra, meios conscientes e combinações de atividades voluntárias para poder realizar, de modo mais rápido e poderoso, esse grande propósito. O Ioga, como diz Swami Vivekananda, pode ser considerado um meio de comprimir nossa evolução em uma única vida, ou em alguns anos, ou mesmo em alguns meses de vida corporal. Um dado sistema de Ioga, então, não faz mais que selecionar ou comprimir em formas de intensidade mais estreitas, mas mais energéticas, os métodos gerais que a grande Mãe já utiliza em seu imenso labor de ascensão, mas em grande escala, sem ordem, em um movimento sem pressa, que desperdiça em profusão, ao menos em aparência, os materiais e as energias, mas com uma variedade de combinações mais completa. Apenas essa concepção do Ioga pode fornecer a base de uma síntese racional e segura dos métodos ióguicos. Pois então o Ioga deixa de parecer uma coisa mística e anormal, sem relação alguma com os processos normais da Energia cósmica e sem ligação com o propósito que ela tem em vista em seus dois grandes movimentos, subjetivo e objetivo, de autorrealização, e revela-se, ao contrário, como uma utilização intensa e excepcional dos poderes que a Energia cósmica já manifestou, ou que organiza de maneira progressiva em suas operações menos elevadas, mas mais gerais. A relação entre os métodos ióguicos e o modo de funcionar psicológico habitual do ser humano é, mais ou menos, a mesma que há entre a manipulação científica das forças naturais, como a eletricidade ou o vapor, e suas operações normais na Na-


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tureza. Os métodos ióguicos, à semelhança dos procedimentos científicos, também se baseiam em um conhecimento verificado e confirmado por experiências exatas, análises práticas e resultados constantes. Todo o Raja-Ioga, por exemplo, repousa na percepção e experiência de que é possível separar ou dissolver nossos elementos interiores e nossas combinações, nossas funções, nossas forças internas; que é possível recombiná-los por certos processos internos determinados para aplicá-los a operações novas, impossíveis antes, ou transformá-los e dissolvê-los em uma nova síntese geral. O Hatha-Ioga, de maneira similar, repousa na percepção e experiência de que as forças e funções vitais, às quais nossa vida é em geral sujeita e cujas operações habituais parecem estabelecidas e indispensáveis, podem ser controladas e suas operações mudadas ou suspensas, com resultados que seriam impossíveis de outro modo e pareceriam miraculosos àqueles que não percebessem a base lógica de seu processo. E, se o caráter racional do Ioga é menos aparente em certas outras formas de disciplina, por estas serem mais intuitivas e menos mecânicas, mais próximas de um êxtase superno, como o Ioga da Devoção, ou de uma suprema infinitude de ser e de consciência, como o Ioga do Conhecimento, todavia elas também partem da utilização de alguma faculdade principal em nós, por vias e para fins que não estão previstos em seu modo de funcionar quotidiano espontâneo. Todos os métodos agrupados sob o nome comum “Ioga” são processos psicológicos especiais, fundamentados em uma verdade estabelecida da Natureza e que fazem aparecer, a partir de funções normais, poderes e resultados que estavam sempre aí, latentes, mas que os movimentos comuns da Natureza não manifestam facilmente ou com frequência. Porém, do mesmo modo que em física a multiplicação dos processos científicos tem suas desvantagens, porque tende, por exemplo, a desenvolver uma artificialidade triunfante que esmaga nossa vida humana natural sob o peso da maquinaria, e a comprar certas formas de liberdade e de controle ao preço de uma servidão maior, o esforço absorvente exigido pelos processos ióguicos e seus resultados excepcionais podem também ter suas desvantagens e perdas. O iogue tem tendência a retirar-se da existência em comum e a perder seu contato com ela. Ele tende a pagar as riquezas do espírito com o empobrecimento de suas atividades humanas, a liberdade interior com uma morte exterior. Se ele ganha Deus, perde a vida, ou se dirige seus esforços para o exterior, para conquistar a vida, ele corre o perigo de perder Deus. Por conseguinte, vemos na Índia uma incompatibilidade aguda entre a vida no mundo e o crescimento e a perfeição espirituais, e, embora exista ainda a tradição e o ideal de uma harmonia vitoriosa entre a atração interior e as exigências exteriores, os exemplos disso são raros ou imperfeitos. De fato, quando o indivíduo dirige seu


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olhar e energia para o interior e entra no caminho do Ioga, em geral acredita-se que esteja perdido inevitavelmente para a grande corrente de nossa existência coletiva e para a humanidade e as obras do mundo. Essa ideia prevaleceu de modo tão forte, foi tão enfatizada pelas filosofias e religiões reinantes, que o escape da vida é em geral considerado, ainda hoje, não apenas a condição necessária do Ioga, mas seu objetivo geral. Nenhuma síntese do Ioga será satisfatória se seu objetivo não reunir Deus e Natureza em uma vida humana liberada e perfeita, ou se seus métodos não só permitirem, mas favorecerem uma harmonia entre nossas atividades e experiências interiores e exteriores, na plenitude divina de ambas. Pois o ser humano é, precisamente, a expressão e o símbolo de uma existência superior que desceu no mundo material, onde o inferior tem a possibilidade de transfigurar-se ao assumir a natureza do superior, e o superior de revelar-se nas formas do inferior. Evitar a vida que nos é dada para realizar essa possibilidade transfiguradora, não pode, em nenhum caso, ser a condição indispensável ou o objetivo completo e último de nosso esforço supremo, nem o meio mais poderoso para nossa autorrealização. Isso pode ser apenas uma necessidade temporária sob certas condições, ou um esforço extremo, especializado, imposto a certos indivíduos, a fim de preparar a espécie para uma probabilidade coletiva maior. A utilidade verdadeira do Ioga, seu objetivo completo, só poderão ser alcançados quando o Ioga consciente no ser humano, assim como o Ioga subconsciente na Natureza, coincidirem exteriormente com a vida, e que, uma vez mais, olhando ao mesmo tempo o caminho e a realização, possamos dizer de maneira mais perfeita e mais luminosa: “A vida toda é Ioga”.


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