37 minute read
Aline Romani
Professora nas redes municipal e estadual em Uberlândia/MG. Graduada e pós graduada em História na UFU. Apaixonada por HQ, fanzines e produção underground. Pesquisa o universo dos quadrinhos desde 2012 e finalizou o mestrado em 2018 com a dissertação Ruídos do mau gosto: cuspes, conflitos e perspectivas urbanas na seção de cartas da revista Chiclete com Banana (1985 - 1990). Atualmente, também é colunista no Diário de Uberlândia e escreve sobre quadrinhos.
6
Advertisement
A independência do Brasil em quadrinhos, escrita por Pedro Anísio e ilustrada por Eugênio Colonnese -Edição pré-comemorativa do sesquicentenário da independência (1822 –1972).
Em 2020, celebramos 198 anos de independência do Brasil e presenciamos a propagação de diversos símbolos nacionais. No primeiro ano da pandemia, marcado pelo isolamento social, na ausência do desfile cívico, restou apenas a lembrança dos heróis pátrios, do cheiro da pipoca feita na rua e a memória de momentos que não vivenciamos senão através da literatura. As histórias em quadrinhos nacionais muito contribuíram para a construção desse imaginário acerca da nacionalidade brasileira. Quem não guarda na memória aquele quadrinho que leu ainda na infância? A representação ilustrada dá vida a imaginação, a objetos e personagens de maneira palpável. As HQs têm grande potencial para construção de memória, sendo elas um produto reproduzido em massa, contribui para a elaboração de uma ideia coletiva. Sabemos que as HQs no início do século XX, carregavam a pecha de arte menor, e eram ainda consideradas uma leitura deletéria à juventude. A literatura brasileira ganha destaque com o movimento modernista e ganha destaque entre os leitores. Neste contexto, Adolf Aizen ativista do quadrinho nacional, fundador e dono da EBAL, investiu em quadrinizar fatos históricos nacionais e para combater a
ideia de quadrinho como arte menor e imoral. O projeto tinha caráter paradidático, moralista e o objetivo de agradar grupos conservadores, como a igreja católica, e atrair investimentos estatais. Não era exatamente inventar História, mas impor como verdade o ponto de vista de um setor da sociedade. A narrativa dos quadrinhos frequentemente é usada como instrumento político e ideológico. Na EBAL, por exemplo, ela é parte de um projeto de difusão de uma identidade nacional. No Brasil, a relação estreita de dependência das HQs e os jornais abre um espaço único de colaboração entre jornalistas e cartunistas, permitindo a apropriação da linguagem jornalística pelos cartunistas: ao mesmo tempo que se distanciam da ficção, aproximamse de fatos. Os assuntos de cunho patriótico foram o foco das produções da EBAL desde o início do século até a ditadura militar. Contemplavam uma visão linear, positivista, que não propunha um diálogo com a realidade da maioria dos brasileiros. No entanto, a narrativa heroica dessas histórias atraía o leitor. Esse tipo de narrativa, independentemente da época em que são produzidas, valem-se de uma fórmula: exalta a história dos vencedores, retrata as figuras políticas e omite os demais sujeitos, impondo uma disputa de história no país. Em 1972, foi lançada a “Independência do Brasil em quadrinhos” em comemoração ao dia 7 de setembro. Na capa, D. Pedro I está vestido com roupa militar verde e amarela. Simbólico em tempos de ditadura! Ao mesmo tempo que D. Pedro I é exaltado, Portugal aparece como um exemplo de nação a ser seguida, amenizando os conflitos gerados pela colonização e apagando sujeitos da história que tornaram a independência inevitável. Era comum nestas revistas da década de 70 eleger um protagonista histórico. Em outra publicação da EBAL, “A libertação dos escravos em quadrinhos”, a Princesa Isabel aparece como a libertadora; as personagens são retratadas de modo realista, porém pouco expressivos, afim de atribuir à narrativa um tom de seriedade. O problema da disputa de memória é que ela não afeta apenas a percepção do passado, mas atinge o que somos no presente. As HQs da EBAL contribuíram com um projeto político nacionalista, omitiram os conflitos a fim de provar sua unidade por meio de uma História forjada nos mitos fundadores. Retrataram um país no qual apenas os homens brancos, héteros, de origem europeia eram capazes de atos heroicos em função da defesa da pátria. A estratégia com essas HQs era conquistar os mais jovens, leitores assíduos dos quadrinhos e recontar o passado de acordo com os interesses de grupos abastados, dominantes politicamente, cujo principal interesse era (e é) naturalizar a manutenção de privilégios seculares.
Ditadura no Ar: uma HQ que rememora um dos períodos mais violentos da história do Brasil
Fragmento da HQ Ditadura no Ar, Coração Selvagem de Raphael Fernandes e Abel (2016)
Escrevo estas linhas no dia 31 de março de 2021, dia em que se completam 57 anos do Golpe de Estado promovido pelos militares no Brasil, com apoio da elite brasileira, parte da sociedade civil e da Igreja Católica. Naquele 31 de março de 1964, iniciou-se uma série de eventos que encerraram o governo do presidente eleito, João Goulart, e marcou o fim da nossa democracia. Foram mais de 20 anos de uma cruel ditadura, que perseguiu, assassinou, torturou, prendeu e censurou qualquer oposição. Foram anos de um regime duro que restringiu e retirou dos brasileiros o gozo de seus direitos como cidadãos, sua liberdade de expressão, seu direito de protestar; foi, além disso, um governo que priorizou medidas econômicas que aprofundaram a desigualdade social no Brasil. Considero que relembrar a história é parte fundamental da construção da nossa cidadania. Manter a memória viva é se manter atento às mudanças, é dar sentido ao presente, é identificar nossas vitórias e encarar nossas derrotas, é impedir que governos autoritários se consolidem novamente. Mas não é apenas o historiador que cumpre essa função. O registro artístico e a produção cultural tem papel fundamental na manutenção dessa memória. Ditadura no Ar, Coração Selvagem é uma HQ que cumpre este papel com excelência. O romance policial em quadrinhos é ambientado em 1969, após o AI-5 (Ato Institucional Número Cinco), o mais duro de todos os Atos Institucionais, emitido em 13 de dezembro de 1968, e demonstra
preocupação impecável com a verdade histórica, retratando o imaginário da época: linguagem, gírias, vestimentas, o clima de terror que pairava no ar. A história de ficção é protagonizada pelo fotógrafo Félix, que mesmo não se envolvendo diretamente com a política institucional, após o desaparecimento de sua namorada e estudante Nina, passa a procurá-la e é perseguido pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Nina foi presa em uma manifestação estudantil e pacífica e nunca mais foi vista. No enredo de Ditadura no Ar, Coração Selvagem, a história de Félix é atravessada pela história de outras personagens que tornam a narrativa ainda mais complexa e interessante. A rotina de trabalho de Félix em um jornal, por exemplo, é fundamental para entendermos a censura prévia, o autoritarismo da própria imprensa e a influência dos militares nas publicações. Todas as personagens que cruzam a jornada do protagonista à procura de Nina têm sua história contada: exílio, tortura, assassinato, perseguição, manifestações pacíficas e luta armada. A palavra comunista ganha destaque nesta trama de opressão e criminalização de ideias. Félix não queria derrubar o governo. Mas conheceu essa mulher sonhadora e se apaixonou pela estudante que desejava mudar o Brasil. Nessa narrativa, o protagonista da história, fotógrafo apaixonado, foi perseguido pelos bedéis do governo porque ousou procurar sua amada, raptada pelo Estado brasileiro. Ditadura no Ar, Coração Selvagem é uma HQ envolvente. Seja pela qualidade artística dos desenhos do cartunista Abel, seja pelo roteiro assertivo de Raphael Fernandes. Você vai se emocionar, se identificar com as personagens, e compreender um pouco melhor a dinâmica da ditadura vivida no Brasil entre 1964 e 1985.
Heróis na vida pública: ficção ou realidade?
Imagens(memes)retiradas do twitterem 15/03/2021 do perfil “Fenotipicamente cansado”. https://twitter.com/padredobalao_/status/1057949298225221634
Desde o mensalão circula pela internet a narrativa do herói da nação, seja um político, seja um juiz. Quem não se lembra do então ministro do STF, Joaquim Barbosa, que rendeu várias charges como Batman? Bolsonaro, presidente do país, além de ser chamado de mito, também é comparado a heróis de HQs, assim como o ex-ministro Sérgio Moro. No mundo dos memes, gifs e figurinhas encontramos facilmente montagens com os super-heróis da Marvel e DC usando o rosto de políticos e membros do judiciário. Os quadrinhos tem uma enorme capacidade de cativar várias gerações. Personagens famosos tornam-se tão grandes que parecem ser conhecidos de todos nós. A figura do herói, por exemplo, é um tipo de personagem que dita comportamentos desde a Grécia antiga: para Aristóteles é imperativo que o herói trágico seja nobre. Os heróis circulam nas bancas de jornais, nos cinemas e agora apropriados e ressignificados pelo mundo virtual. Eles ganham vida para além do domínio do cartunista que os criou. Quando uma personagem é apropriada pelo público, sua narrativa não funciona apenas como entretenimento, mas também como uma representação de sujeitos reais. A personagem define o sujeito na medida que o sujeito modifica o personagem, ficção e realidade se entrelaçam, embora continuem sendo rigorosamente diferentes. Como toda obra de arte, as HQs carregam traços das vivências e sentimentos do contexto de quem as criou, representam uma realidade. No entanto, a representação não é sinônimo de espelho e deve ser encarada como fragmento daquela realidade de que fazia parte, que a compôs, construiu e transformou. Essa definição pressupõe que cultura não é algo estático, e considera a existência do processo coletivo de construção, inclusive gerando e mantendo discursos de dominação. A cultura não é um elemento exterior à sociedade, que simplesmente completa qualquer ordem social, ela é elemento constitutivo dessa ordem. A cultura não é modo de vida, é processo que cria diferentes e específicos modos de vida, um campo no qual a
sociedade, e os indivíduos participam, elaborando seus símbolos e signos, suas práticas e seus valores. Quando determinada cultura, obra, ou personagem é apropriado por um grupo, essa ação esvazia significados imprimidos pelo autor e enfatiza apenas o que interessa nessa relação. As apropriações geram novas representações que fazem referência ao real, ou seja, a algo vivido e compartilhado por meio de símbolos e expectativas. No entanto, quando vestimos sujeitos reais de heróis estamos mediando nossa visão de mundo a partir de uma representação. Nesse caso, não foi o sujeito que inspirou o herói, mas o herói é referência para o sujeito. O elemento ficcional define o imaginário. Essa representação se torna, para alguns, verdade. Não as verdades do acontecido, mas sim as verdades do simbólico, expressas no imaginário de uma época. Essas verdades fazem parte de um campo de representação em que o pensamento se manifesta pelas imagens que vem à mente das pessoas, atribuindo algum significado a narrativa social, isto é, a imagem é transformada pelo imaginário da época. Ao evoca-la, esse significado reaparece mentalmente, mesmo que o referente não esteja mais no campo visual. O imaginário constrói a compreensão do leitor, é ele que o aproxima ou o afasta da personagem, provoca medo, riso, ódio, desejo e vários outros sentimentos. Há alguns problemas nessa afetação, primeiro porque permite interpretações subjetivas de fatos concretos. Segundo por ser permissiva, na medida em que atribui a essas pessoas reais, membros da administração pública, superpoderes imaginários. Em ouras palavras, a afetação é permissiva, isenta o autoritarismo disfarçado de superpoder. Quando vestimos um sujeito público de herói, atribuímos a ele todos os sentimentos despertados por esses personagens heroicos presentes num imaginário coletivo. No entanto, política e justiça não podem ser guiadas por paixões, amor ou ódio. Diferente das HQs, em uma democracia real não se pode permitir que alguém seja inquestionável.
Crítica para que?
Bob Cuspe e Meia Oito. Publicação no livro Sexo, Drogas e Rock'roll, de 1984.
No início dos anos de 1980, depois de Rê Bordosa, talvez Bob Cuspe tenha sido o personagem mais popular do cartunista Angeli. Foram várias revistas especiais que davam destaque a ele. Bob Cuspe foi criado para satirizar o movimento punk, mas seu autor acabou se identificando com a cena durante o processo de criação. Nas palavras do cartunista: “Não existia punk nessa época. [Antes da década de 1980, no Brasil] depois, li um livro do [escritor Antônio] Bivar. ... Antes, eu tava muito reticente com o punk. Achava que era modinha importada, não tava entendendo direito. Quando li o livrinho, vi que era minha turma.” Bob Cuspe nasceu como um porta voz de Angeli, aparentemente isentão, o personagem era mal humorado cuspindo para se expressar. O ato de cuspir, aliás, é muito simbólico: suas falas são bem reduzidas e a cusparada parecia ganhar um novo significado a cada tira. Subversivo e de poucas palavras, a personagem agradava seus leitores e assustava a direita conservadora, pois representava a escória da sociedade, os maus hábitos e o mau gosto. Certa vez, chegou a cuspir no Sarney, ainda presidente. Por outro lado, a esquerda ortodoxa se incomodava com sua postura descompromissada em relação as principais pautas daquele momento. A abordagem de Angeli era do cotidiano, não por isso menos política. Ele provocava seu leitor, dando ênfase ao comportamento de uma juventude brasileira que vivia o processo de abertura política após 20 anos de ditadura militar. Período de intensos debates e enfrentamentos. O que estava em jogo era a democracia brasileira e diversos outros projetos que a circundavam. Havia expectativas em torno do fim do regime ditatorial, da instituição de eleições diretas, da recuperação da liberdade de expressão, da liberação dos costumes (liberdade sexual, divórcio, aborto, homossexualidade). Esperava-se que a sociedade civil fosse protagonista da redemocratização. Para o cartunista, era impossível fazer “humor à favor”, pois a crítica era inerente a comicidade.
Passaram-se mais de 30 anos e o cuspe cômico do personagem cala fundo em uma sociedade que se mantém polarizada e ainda buscando construir, solidificar e protagonizar sua democracia. Sobreviver à crítica parece hoje uma missão impossível, porém quem deseja mudança deve enfrentá-la. Do contrário, sem que a sociedade brasileira assuma o protagonismo da democracia, assistirá, atônita, a força hegemônica de um Brasil conservador e que não sabe rir.
Feminismo pra que? A mulher no quadrinho brasileiro
Fragmentoda tirinha de Helô Dângelo https://www.almanaquesos.com/eu-nao-preciso-do-feminismo-quadrinho-bomba-ao-revelar-omimimi/acesso em 16/03/2021
O mercado brasileiro de quadrinhos não é nada promissor, cartunistas nacionais enfrentaram e enfrentam muitas dificuldades. Por muito tempo os quadrinhos infantis dominaram as prateleiras e as bancas de jornais, não necessariamente provocados por uma demanda, mas por uma lógica de mercado. Em 1945, surgiu a Editora Brasil-América Latina que foi grande expoente de vendas. Publicava obras estrangeiras, como o Batman, Tarzan, Superman, e uma das poucas criações nacionais, o Judoka. A EBAL comprava, principalmente dos Estados Unidos, tirinhas e histórias em quadrinhos no sistema de syndicates; criados no início do século XX, eles funcionavam como distribuidoras que tinham como objetivo escoar sua produção pela Europa e América Latina. Maurício de Souza em entrevista à Revista Vozes em julho de 1969, reclamou que “os diretores de jornais, não acreditavam que o público aceitasse as estórias brasileiras. A estória estrangeira, não só a americana, mas também a inglesa e algumas francesas, chega aqui a preço de banana. A tira de jornal está custando apenas um dólar.” Os syndicates popularizaram as histórias em quadrinhos no Brasil, e por outro lado, inviabilizaram a produção e distribuição das histórias nacionais. Não se tratava do gosto ou predileção do leitor por histórias estrangeiras, mas de um mercado desleal, que produzia e distribuía em grandes quantidades. Na EBAL os cartunistas norte americanos eram maioria.
Quando se procura por quadrinho brasileiro feito por mulheres esse número é ainda mais reduzido. Em uma breve pesquisa, digitei em um site de procura “cartunistas brasileiras” e o resultado foram dezenas de homens cartunistas, apenas Ciça, Fabiane Langona e a Laerte se destacaram como autoras. Da mesma forma que questionamos se os quadrinhos brasileiros foram sufocados pelos americanos, graças a uma lógica de mercado, podemos questionar se não há espaço para mulheres ou se é reconhecido como lugar predominantemente masculino. Com o advento da internet, diversas cartunistas passaram a ganhar destaque. Em 2013, a Folha de São Paulo estreou um espaço exclusivo para produção feminina, intitulado “Quadrinhas”. No entanto, a seção recebeu várias críticas de leitores: “Muito fraca [sic] essas quadrinhas” ou “segregar mulheres num canto especial acaba sempre por cheirar meio mal”. Ora, quando o espaço era exclusivamente ocupado por homens não havia problema? Segundo a cartunista Pryscila Vieira “A mulher sempre é objeto, um estereótipo sem voz: é a gostosa, a burra (...) Então, condicionadas a pensar que todo humor gráfico segue este padrão, muitas mulheres acabaram por sequer procurar por este tipo de arte. Sentem-se agredidas, caçoadas e não gastariam seu suado dinheiro comprando um livro em que são reduzidas ao objeto de piada”. Mesmo diante de alguma resistência, multiplica-se o número de artistas que enfrentaram os obstáculos para divulgar seu trabalho de forma independente. Dito isso, é necessário lembrar que não basta apenas produzir para conquistar espaço no mercado, é preciso investir em produção, distribuição e consumo. Todas essas etapas dependem da divulgação. E é neste ponto que o movimento feminista faz a diferença para dar visibilidade as cartunistas, sejam elas engajadas ou não. Mulheres divulgando e consumindo outras mulheres é uma forma de superar a ideia de que história em quadrinhos é coisa de homem.
Humor é coisa de homem
ChargedeBruna Maia fonte: instagram @estarmorta
Neste prelúdio, proponho um questionamento e peço ao caro leitor e leitora para que não o responda de imediato, mas que se pergunte ao final deste texto: existe humor feminino e masculino?
O primeiro dado que chama a atenção é que mulheres são minoria na produção humorística, seja no cinema, na televisão ou nos quadrinhos. Inclusive, há quem diga que mulheres têm menos graça. Portanto, podemos constatar que achamos engraçado o que é produzido, em sua maioria, por homens.
Para entender se há relevância dessa separação por gênero temos antes que definir o que é humor. Para o cartunista Angeli fazer humor é um exercício crítico, logo, a sua função é alfinetar e levantar discussão. Segundo Carol Ito, jornalista, quadrinista e ilustradora, o papel da charge é apontar absurdos, exagerar situações justamente para que sejam compreendidas pelo público de maneira rápida e direta. Sendo assim, compreendemos que fazer humor vai além de fazer rir, é também afetar a verdade de alguém, questionar a visão de mundo das
pessoas. Não existem apenas dois lados, mas uma construção complexa de visões de mundo a partir do contexto de cada sujeito, que é atravessado pelo gênero, bem como pela condição social, sexualidade e etnia. Comecei lendo quadrinhos escritos por homens, as personagens que eu admirava, como leitora, eram mulheres desenhadas por eles. Por trás da frase “mulher não tem graça” está escondida uma perspectiva estruturada pelos homens e um modelo de como fazer humor forjado ao longo da história. Ler mulheres não foi uma decisão, eu precisava mais do que a oportunidade de conhecê-las, saber que elas existiam. Foi necessário rever o que era engraçado para mim: piadas sexistas, misóginas, que zombam dos arquétipos femininos e reforçam estereótipos, em nome de uma pretensa superioridade masculina, não fazem mais sentido para a leitora que me tornei. Hoje quero debochar de quem nos impõe uma pressão estética cruel, denunciar assédio e rir dos mínimos absurdos que nós mulheres enfrentamos ao sair na rua ou ao entrar em um aplicativo de encontro. Principalmente, porque isso impacta diretamente nossas vidas e nossos corpos. Quando uma mulher faz humor é um ato político. Ocupar espaços que já foram e são extremamente masculinos é político. Nosso corpo é político. Nos bastidores, feiras e relações mercadológicas a distinção de gênero fica evidente. Por isso a importância de mulheres se apoiarem para romper também com essa estrutura que privilegia cartunistas homens, cis, brancos e héteros como regra. Eles não exercem a hegemonia apenas na produção, mas são eles que estão por trás das editoras, dos garimpos de novos cartunistas e tem grande influência em todo o setor. O coletivo “Mina de HQ” identificou que o número de mulheres produzindo quadrinhos aumentou bastante e, embora não haja dados oficiais para medir essa informação, nos últimos anos mais mulheres se aventuraram na produção de Histórias em Quadrinhos. Acredita-se que um dos fatores que pode ter contribuído para esse aumento significativo é a constante atuação desses coletivos, formados por mulheres, em todos os setores: produção, divulgação e distribuição. Elas atuam não apenas nessas etapas de mercado, como também promovem eventos, incentivam a troca de informações, a convivência e o conhecimento sobre diversos aspectos que envolvem a produção de uma HQ a partir de uma perspectiva mais diversa. Não existe humor de mulheres feito apenas para mulheres, assim como, nós consumimos há tempos o humor feito por homens, e não deixaremos completamente de consumi-lo. No entanto, queremos romper com modelos e padrões patriarcais que se apresentam como a única forma de fazer rir. Queremos implodir as prateleiras separadas para nos embrenhar nos espaços comuns.
Impressões sobre Rê Bordosa
ANGELI FILHO, Arnaldo. Rê Bordosa: Do Começo ao Fim. Porto Alegre: L&PMPOCKET, 2006.p.108.
Não poderia começar de outra forma, senão apelando para minhas memórias afetivas. Foi na infância que tive contato pela primeira vez com histórias em quadrinhos. Minha tia, professora de português, fazia coleção de gibis. Eu, crescendo em uma cidade do interior, mergulhava em suas revistas pra fugir do tédio. Naquele tempo, meados dos anos 90, não havia uma preocupação tão rígida em censurar quadrinhos para crianças. Bons tempos! E foi assim que conheci Rê Bordosa. Eu era uma garota de 10 ou 11 anos e achava graça naquela mulher desajustada, que era diferente de todas as tias da escola ou da igreja. No fundo eu achava que ela era mais feliz do que as mulheres que conhecia. Mesmo sem referências para uma leitura mais profunda, a personagem me intrigava. Na faculdade, fui reapresentada a Rê Bordosa, uma amiga me apelidou com o nome da personagem. Aos 19 anos, vivia a busca por autoconhecimento e reafirmação sexual. Nós mulheres não somos orientadas ou ensinadas a decidir por nós. Não desejamos, somos desejadas. Às vezes parece até que não temos domínio de nossas decisões e pesam padrões conservadores que nos foram impostos. Dizem por aí que mulher tem que casar, ter filhos, cuidar do lar e se der, ser independente financeiramente. Mesmo diferente, Rê Bordosa era triste e desajustada. A cada quadro, cada tirinha, cada página, a busca por ser uma mulher livre continuava e nunca se consolidava. Rê Bordosa é uma personagem pensada por um homem. Ela é
triste porque não encontra seu caminho, ela reproduz um comportamento masculino e machista. Essa mulher não aceita mais cumprir com as expectativas dos homens, ela também quer prazer a todo custo. Toda mulher já foi uma Rê Bordosa, talvez não em público, talvez em silêncio. Porque é difícil se tornar mulher potente em um mundo de referências masculinas. Angeli matou sua personagem, por incomodo, estranhamento, inveja e obsessão. Ela se tornou maior que ele, seu autor e criador, seu dono. Mulheres sexualmente livres o assustavam, como ele mesmo já declarou em entrevista. Rê Bordosa abriu caminhos para uma geração que queria ser mulher de outra forma e não sabia como. Talvez precisou morrer para que outras mulheres contassem suas histórias.
De vilãs a heroínas: mulheres nos quadrinhos de heróis
Mulheres de histórias em quadrinhos de heróis são extremamente exuberantes. Independentemente de seu poder, se são vilãs ou heroínas, elas conquistam com sua beleza personagens e leitores. As vilãs são ainda mais ousadas e usam da sedução como arma.
Mulher Gato e Elektra
fonte: https://br.pinterest.com/pin/847802698575057127/ehttps://br.pinterest.com/pin/537054324293408218/
Em 1940, a Mulher Gato surgiu, nos quadrinhos, como antagonista do Batman e garante, até hoje, sua posição como uma das principais vilãs desse universo. Elektra Nachos, assassina altamente treinada e uma das mais personagens mais temidas das histórias da Marvel, conquista o coração do super-herói Demolidor, e o deixa arrasado. Houve até quem mudasse de lado, no universo da Marvel: a Viúva Negra começou como uma vilã do Homem de Ferro, no clima da Guerra Fria, mas logo se tornou espiã e assassina de elite ao lado dos heróis. Todas as personagens citadas têm em comum um padrão de beleza: corpos curvilíneos, bundas enormes, seios fartos e suas roupas extremamente sensuais. Nota-se que há um propósito em representar essas mulheres como sedutoras: atribuir a essas personagens femininas a ideia hipersexualizada de mulher. Essa representação é muito comum e se relaciona, por exemplo, às narrativas de caça às bruxas que se iniciaram na Idade Média e perduraram, de alguma forma, até hoje. Mulheres provocam uma atração considerada incontrolável, principalmente na Viúva Negra Fonte: ótica das igrejas cristãs. Para o tribunal da Inquisição a https://br.pinterest.com/pi n/322148179575764463/
sexualidade feminina era descrita como algo diabólico, era a quintessência da magia que definia uma bruxa. Apesar da caça às bruxas ter uma explicação multicausal, que vai além da sexualidade feminina, da magia e até mesmo da inquisição, é fato que o poder feminino é temido em toda sociedade patriarcal, e a violência contra as mulheres está diretamente ligada ao comportamento que é esperado delas. Qualquer desvio é considerado perigoso. Existe um empenho em construir um imaginário em que a mulher subversiva, que não se submete à esta lógica, perverte os objetivos sociais e divinos. A bruxa, assim como a vilã, é uma mulher de má reputação, libertina e promíscua, que contradiz o modelo patriarcal de feminilidade: a mulher de boa reputação é a mulher casta e obediente. A insubordinação social está presente nestas personagens que, muitas vezes movidas por vingança, desafiam as autoridades. Nem mesmo as heroínas escapam dessa lógica: quando em situações adversas mostram um comportamento não desejável. Quando Jean Grey, integrante da escola do Professor Xavier em X-Man, é possuída pela entidade Fênix e se torna a Fênix Negra, seu traje se torna ainda mais sexy e seus poderes ainda maiores. E justamente por possuir esses poderes ilimitados, que não podem ser controlados, torna-se uma ameaça ao domínio do Estado e à sociedade. Neste sentido, o conhecimento também é ameaçador. Hera Venenosa, a vilã do Batman, além de sedutora, controla plantas e venenos naturais. Esse conhecimento das plantas e da natureza em geral remete a um poder popular que foi cada vez mais restrito aos homens da ciência. No Renascimento, as mulheres curandeiras eram referência nas revoltas contra o cercamento de terras, pois os seus perseguidores as acusavam de querer virar o mundo de cabeça para baixo. Esse padrão de beleza é um produto vendável, porque foi construído e moldado de acordo com os interesses capitalistas. Há uma motivação ideológica e uma manutenção do poder patriarcal que reforçam a ideia de quanto mais agradável aos olhos, mais mortal para a alma. A repressão do desejo feminino foi colocada a serviço de objetivos utilitários, reduzindo esse desejo às necessidades sexuais dos homens. Ressignificar essa liberdade como vilania é exorcizar todo o seu potencial subversivo e transformador das mulheres.
Hera Venenosa
Fonte: https://aminoapps.com/c/batmanbrasil/ page/blog/bryce-dallas-howard-falasobre-a-heravenenosa/r8ZN_r3Teu0EgDWd4lPVPEb 4X3QdmBmxdo
O fascínio por pandemias
Personagem Rick Grimes da HQ The Walking Dead, publicado pela Image Comics de 8 de outubro de 2003 à 3 de julho de 2019.
De proibidos e perigosos a sucesso de vendas, os quadrinhos de terror levantam polêmicas na sociedade desde o início do século XX. Dividem até os leitores mais apaixonados por quadrinhos. Muitas vezes considerado uma literatura de baixa qualidade e mau gosto, conhecidos pelas cenas de muito sangue e violência, os quadrinhos de terror também são esteticamente impactantes e fascinantes. Uma história bem desenhada não precisa de uma só palavra para causar arrepios ao leitor. HQs de terror têm uma ligação estreita com o quadrinho alternativo e com bandas heavy metal, seu intuito é causar impacto, desnudar os horrores de uma sociedade hipócrita, fazer sangrar o cidadão de bem. No entanto, essa é só uma vertente dentre muitas outras. A origem das histórias de zumbi, tão aclamadas atualmente e também consagradas no cinema e crossovers, é calcada, principalmente, no preconceito e no medo do outro. Alguns estudiosos dão conta que os mortos vivos representariam na Europa a “invasão” estrangeira. As hordas destruidoras são uma metáfora para afirmar que em um mundo civilizado os imigrantes destroem tudo que veem pela frente, transformando-o em caos. Ainda existe outro significado, que originou a palavra zumbi: na Martinica e no Haiti, poderia ser um termo geral para descrever um espírito ou um fantasma, qualquer presença perturbadora que assumiria milhares de formas à noite. “White Zombie”, filme de terror independente lançado em 1932 nos EUA, surge bem no fim da ocupação americana no Haiti. Durante este período, os
Estados Unidos assumem uma postura de um país modernizador e com uma missão civilizatória, alertando para a má influência das demais culturas. O terror provocado pelo filme girava em torno da história de um casal, Madeleine e Neil, que em uma viagem ao Haiti encontram um feiticeito maligno. O feiticeiro se apaixona por Madelaide e a transforma em zumbi, a fim de dominá-la. Neil, volta para casa com a presença perturbadora de Madelaine. Enfim, o feiticeiro significa uma influência maligna de outra cultura, capaz de transformar as pessoas em algo temível. A superstição passa a ser culpada pelo fim trágico do mundo civilizado. O zumbi remete ao fim da sociedade americana e a barbárie. É interessante como a figura de um líder ganha importância nas histórias de pandemia e caos, mesmo que seu comportamento seja questionável, ético e moralmente. Sem ele o grupo se perde e não consegue colaborar ou se comprometer com o coletivo. É preciso alguém, de pulso firme, para manter a ordem e lembrar a todo tempo que ainda podemos ser civilizados. Por outro lado, os vilões dessas histórias, para além dos zumbis, são líderes e defensores de comunidades ditas primitivas, que colocaram seu instinto de sobrevivência a frente de sua pretensa humanidade. É comum aparecerem discussões filosóficas e religiosas sobre o suicídio, canibalismo, incesto e promiscuidade. Todo esse imaginário nos leva a refletir sobre o outro, aquele que não se parece comigo. Hierarquizamos culturas como modos de vida superiores ou inferiores. Nada é por acaso. Em pleno surto de COVID-19, há quem afirme, sem fundamento científico algum, que o vírus é fruto de hábito alimentar estranho dos chineses, de praga divina, ou de conspiração de grandes empresas internacionais. Debates televisivos calorosos (e irresponsáveis) são promovidos para decidir qual atitude seria mais ética no caso de impossibilidade de atendimento da população contaminada: quem deve ser salvo primeiro, os presidiários ou os cidadãos de bem? O debate é apenas uma reprodução da dicotomia bem e mal tão difundida pelo quadrinho e cinema estadunidense. O fascínio por HQs de terror causado por uma pandemia pode estar relacionado a bons diálogos, reflexões e cenas de suspense. No entanto, eles nos provocam sentimentos mais profundos, nos arrancam da rotina e nos permitem perceber a concretude da vida. A destruição é o mais fascinante dos desafios humanos, ela nos obriga a renascer, mas não sem antes nos colocar diante de nossos medos, e principalmente, diante das vontades mais reprimidas. A autorização para ser egoísta e para revelar o pior de si é um sintoma da iminência do fim. Afinal, o inferno são os outros.
Memórias de pesquisa: trajetória e metodologia de análise da Revista Chiclete com Banana a partir da seção de cartas dos leitores1
“Look what's happening out in the streets Got a revolution, got to revolution Hey I'm dancing down the streets Got a revolution, got to revolution” Autor (J.A.)
Relembrando minha trajetória acadêmica, começo escrevendo estas memórias de pesquisa ao som de Volunteers, uma de minhas músicas prediletas da banda Jefferson Airplane, buscando o mesmo sentimento que me levava a escutar música na rua, compartilhar fitas k7, ler quadrinhos, estar com os amigos e buscar um mundo melhor para viver. Penso que, mesmo em momentos de reflexão, revolta ou indignação, há um certo prazer em trilhar o caminho da liberdade. Espero dar sentido ao gozo que experimentei em todas as etapas da minha pesquisa, afinal, há diversão em aprender, descobrir, examinar e refletir, sem que para isso o método seja abandonado ou banalizado. Assim, adianto que todas as minhas escolhas foram fiéis aos meus questionamentos como pessoa e historiadora sem evitar o incômodo, que quando ressaltou aos olhos me colocou sempre outra e mais outra pergunta. Nesta trajetória, da graduação em 2012 até meados de 2021, percorri alguns caminhos pesquisando a revista “Chiclete com Banana”2 e neste período algumas abordagens foram fundamentais para chegar a conclusões assertivas, enfrentei um longo processo solitário de tomada de decisões, seja adotando certos posicionamentos metodológicos e ideológicos, seja criticando e superando outros. No primeiro momento, foi importante perceber a revista como um produto mercadológico, ao mesmo tempo em que é também espaço de expressão cultural, artístico, admitindo as relações sociais e de troca como algo significativo para parte da juventude brasileira daquele período da década de 80. Antes de iniciar a pesquisa, a existência da revista “Chiclete com Banana” parecia um caso isolado nesta "década perdida", em um país que vivia uma estagnação econômica: uma forte retração da produção industrial, um menor crescimento da economia, e principalmente, a perda do poder aquisitivo da população. No entanto, ao mergulhar nesse universo dos
1 Trechos adaptados da Introdução da dissertação de minha autoria, “Ruídos do mau gosto: cuspes, conflitos e perspectivas urbanas na seção de cartas da revista chiclete com banana (1985-1990)”, finalizada e aprovada em 2018, pelo Programa de Pós Graduação da História (coloca o nome oficial do programa), da Universidade Federal de Uberlândia. 2 Pesquisei a revista Chiclete com Banana durante a graduação, que foi objeto de pesquisa da minha monografia: ROMANI, Aline. A Revista Chiclete com Banana e o sentimento de liberdade: resistência, conflitos e alienação na década de 1980. Monografia (graduação em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.2013. A revista “Chiclete com Banana” foi objeto de minha pesquisa durante o curso de graduação em História, pela UFU, e também objeto de minha Monografia intitulada Chiclete com Banana e o sentimento de liberdade: resistência, conflitos e alienação na década de 1980, defendida em 2013. Disponível em: <site>. Acesso em 01 abr 2021.
quadrinhos verifiquei uma intensa produção, de diversos cartunistas, criações e personagens consistentes e com visibilidade na grande mídia. A cena envolvia artistas com forte influência underground, que tratavam de temas polêmicos de forma debochada e até mesmo escatológica. Faziam humor com o cotidiano das pessoas e seus comportamentos, satirizavam o status quo e, ainda assim, ganharam espaço no mercado convencional brasileiro dos quadrinhos. Se antes percebia esse posicionamento como ambíguo, durante a pesquisa procurei entender as contradições como parte fundamental da história, pois são nelas que residem as transformações. No segundo momento, ainda na monografia, tornou-se um desafio pensar a recente democracia brasileira, considerando outros aspectos, que não o institucional, o burocrático ou o legal. O objetivo foi tratar os conflitos que envolviam o processo de democratização do Estado, por meio dos quadrinhos e da comunicação, e principalmente, questionar o modelo de história factual que insistia em traçar marcos em períodos de transformações drásticas. Além disso, questionar um modelo de história marxista e superestrutural que defende a narrativa de uma condução à democracia brasileira por uma classe dominante. A partir do desenvolvimento da pesquisa, entendi a democracia como um processo, ainda hoje Antes de decidir pesquisar a revista “Chiclete com Banana”, era uma grande fã do cartunista Angeli. Comecei lendo suas tirinhas na Folha de São Paulo na década de 1990, fui uma adolescente apaixonada. E nos sebos, já cursando a graduação em História, conheci a revista e me encantei. No decorrer da pesquisa, superei esse sentimento e enfrentei as contradições. Abandonei o lugar confortável de fã e colecionadora, e busquei a postura de uma pesquisadora, que se incomoda, questiona, duvida, compreende e explica. Por fim, meu amadurecimento, minha trajetória e experiência enquanto mulher suscitaram questões específicas desse sujeito feminino. Vieram à tona alguns incômodos que me levaram a questionar a participação da mulher na revista como: leitora, personagem, seu lugar de destaque; e ainda, a contribuição do periódico e dos leitores para uma visão limitada e ambígua da rebeldia feminina. Segundo Thompson: “Não vivemos em um mundo isolado da historiografia”, “compartilhamos terminologias com nossas fontes, em momentos e significados diferentes e isso deve ficar claro.”3 O historiador formula suas perguntas do presente, partindo de suas angústias, mas voltando-se para o passado. Tendo em vista o trabalho reflexivo do historiador, eu não posso deixar de considerar novos questionamentos que surgiram após o recente golpe à democracia brasileira – que por decisão do Congresso e apoiado por um público restrito em manifestações televisionadas – retirou da presidência do país a então eleita Dilma Rousseff. Depois de 2018, Bolsonaro foi eleito
3THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos Ingleses. In:________. As peculiaridades dos ingleses.Campinas: Ed. UNICAMP, 2001. p.98.
presidente e com ele, a promoção do fascismo no Brasil e de um projeto genocida que alcança dados de mortalidade alarmantes em 2021, no auge da pandemia de COVID-19. Diante dessa conjuntura, propus uma investigação que pressupôs a importância do papel dos sujeitos e principalmente dos meios de comunicação, na formação e circulação de grupos rebeldes, revolucionários, mas também, reacionários e conservadores. Despertou em mim o interesse pelos grupos urbanos e juvenis que tinham uma relação estreita com a revista “Chiclete com Banana”, os conflitos entre eles, seus desejos, a noção de liberdade, rebeldia, democracia. A seção de cartas apresenta uma perspectiva interessante das redes de relações, dos conflitos morais e das contradições vividas por grupos urbanos e juvenis. Escolhi, então, trabalhar a partir das cartas enviadas pelos leitores à revista, buscando nessas fontes vestígios dessa rede de comunicação, propondo uma análise da relação dialógica entre artista e leitor, e aprofundando nas disputas e conflitos sociais. Ou seja, entendendo que toda comunicação envolve pelo menos dois sujeitos, aquele que fala e o que escuta e compreende, “a relação com o sentido é sempre dialógica. O ato de compreensão já é dialógico”.4 Ao me aproximar dos leitores, por meio da seção de cartas, notei uma grande relevância desses sujeitos na construção da revista, para além do papel de mero receptor. Destaco com igual importância os grupos ou coletivos, sejam eles ligados a estilos de música, de vida, ou gangues urbanas e grupos com interesses em comum, como fanzineiros, cartunistas e fã-clubes. Muitos desses grupos se auto intitulavam subsociedades, se percebiam como grupos ou pequenas comunidades que construiriam seu modo de vida próprio, mas não isolado, muitos em negação ou oposição ao sistema capitalista. Motivada pelo materialismo cultural, desenvolvi uma metodologia que privilegia o olhar sobre os sujeitos e evita modelos já formatados. O método da pesquisa foi construído à medida que consultava as fontes e levantava questões. Outras evidências, além da revista “Chiclete com Banana” e sua seção de cartas, foram necessárias e importantes para entender e explicar as tramas em torno daquelas publicações. Dentre elas, foram analisadas entrevistas do cartunista Angeli e do editor Toninho Mendes, o Código de Ética para publicações de quadrinhos, além de leis que regulamentavam essas publicações recomendando a proibição do material para menores de 18 anos. Resgatar o processo de produção e consumo da revista não significa reproduzir um evento do passado, ou remontar cronologicamente a história da revista, tampouco alcançar uma verdade absoluta sobre fatos. Procurei recuperar ideias de um grupo contra hegemônico, reavendo áreas rejeitadas, e reformular as interpretações seletivas e redutivas relacionadas a juventude ao longo desses anos.5 Busquei por vestígios na confrontação dessas fontes, e na análise crítica desses materiais investigados, explicações para a
4 BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.p. 350. 5 WILLIAMS, Raymond. Tradições, Instituições e formações. In:______. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro : Zahar, 1979.p.119.
popularidade da revista, para o posicionamento político dos sujeitos envolvidos e seus conflitos. Segundo Aróstegui, a complexidade e heterogeneidade das relações humanas são os problemas essenciais do objeto historiográfico. O autor explica o estado da mudança, não apenas se preocupa em descrevê-la.6 Thompson traça o que ele entende como lógica histórica:
Um método lógico de investigação adequado a materiais históricos, destinado, na medida do possível, a atestar hipóteses quanto à estrutura, causação, etc., e a eliminar procedimentos auto confirmadores (instâncias, ilustrações). O discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica do outro. O interrogador é a lógica histórica, o conteúdo da interrogação é uma hipótese (por exemplo, quanto à maneira pela qual os diferentes fenômenos agiram uns sobre os outros). O interrogado é a evidência. Com suas propriedades determinadas.7
Iniciei a pesquisa organizando minhas fontes: foram digitalizadas as 24 revistas “Chiclete com Banana” publicadas entre 1985 e 1990, todas pertencentes ao meu acervo pessoal. As páginas digitalizadas em arquivos de imagem facilitaram manuseio e possibilitaram a demonstração das figuras selecionadas para compor o texto final. Depois de digitalizadas, foram catalogadas todas as 1672 cartas publicadas pela revista desde sua criação, até a última publicação inédita em 1990. Nesta planilha levantei dados quantitativos como: cidade, estado e gênero dos leitores, dados utilizados sem que houvesse generalização, já que esta elimina contradições e impede a verificação da diversidade. Além disso, foi feita uma análise prévia e qualitativa das cartas que tiveram seu conteúdo publicado. Dos 1672 leitores, 852 tiveram apenas seus nomes, cidade e estado registrados. Ou seja, as 820 cartas restantes foram divididas por tema e receberam observações quanto ao seu conteúdo. Essa seleção inicial de fontes foi fundamental para construir uma linha de raciocínio dentro da pesquisa e principalmente organizar a escrita. Começar pelas cartas evitou que eu construísse um modelo a priori: o perigo nestes casos, é pinçar as evidencias sem considerar sua totalidade e até mesmo eliminar o incômodo, ou seja, aquelas informações que não corroboram com a hipótese pré-formulada. Sendo assim, evitei a criação de instâncias e o uso de materiais como ilustrações, visto que as relações humanas sofrem mudanças em tempo e espaço, não podendo ser aplicada às várias sociedades uma mesma
6 ARÓSTEGUI, Julio. A explicação e a representação da história. In: A pesquisa histórica: Teoria e método. Bauru, SP: EDUSC, 2006 7 THOMPSON, Edward Palme. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.1981.p.49
definição ou contexto. A evidência não pode ser ilustração da intenção prévia do historiador, a fonte não revela por si mesma a história, ela deve ser interrogada. Pretendi responder a questões de como e porquê das transformações socioculturais, considerando que o homem é sujeito dessas transformações durante o decorrer do tempo. Sendo assim, me interessei pela rede de relações estabelecidas por esses sujeitos, não apenas a prosopografia do cartunista, mas também como aqueles leitores ajudavam na construção da revista, desde o processo de produção, até a divulgação. E ainda, o que essa trama significou diante daquele contexto histórico, o que era discutido naquele espaço, como isso dialogava com a conjuntura. O historiador deve se esforçar para explicar não apenas o estado social abordado, em uma determinada comunidade, mas também buscar as relações com o passado e as mudanças. Não pretendi, com minha pesquisa, trazer fatos políticos sucessivos, mas identificar o estado de certa comunidade a partir de vivências, buscando várias dimensões da vida dos sujeitos, incluindo valores, sentimentos, emoções, hábitos e costumes. Entendo que os quadrinhos são uma linguagem que compõe uma rede de comunicação. No caso da “Chiclete com Banana”, a revista busca reagir e resistir à lógica da grande mídia, como forma de estabelecer diálogo com a realidade vivida, em um contexto de redemocratização – enquanto um processo de reorganização da sociedade civil e das transformações da cultura política.
A comunicação não pode ser entendida como dimensão paralela ou reflexa da realidade social, mas que antes, e com mais peso nas sociedades contemporâneas, deve ser analisada como dimensão central na configuração e nos rumos dos processos sociais, propondo que entendamos os processos urbanos como processos de comunicação.8
O leitor é a figura central dessa análise e não cabe a mim, como historiadora, tratá-lo de forma inferior ao cartunista no que tange a esse processo de comunicação, mesmo considerando que Angeli tinha um poder maior para se expressar, sendo ele o autor e protagonista da revista. O leitor não aparece, segundo minha abordagem, como mero receptor. Ele faz parte da construção das personagens e dos temas abordados. O propósito sempre foi pensar a revista “Chiclete com Banana” como um território, um lugar de construção do urbano e dos seus símbolos, comportamentos e definições, considerando o momento de profundas transformações vivenciado no Brasil pós Ditadura Militar.
8 MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2008.