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Luciano Ferreira

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Aline Romani

Aline Romani

écartunista uberlandense do Triangulo Mineiro. Publicou no Jornal Correio de Uberlândia. Tem livro e teve banda. Gosta de quadrinhos tortos. De música papo reto. E de cinema que não seja de um quadro só. Atualmente é colunista do Diário de Uberlândia.

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Os voos dos balões

Ilustração do autor

Os balões de quadrinhos são um recurso gráfico ao qual se pode atribuir fala, pensamento e diversas expressões a um personagem, utilizando as possibilidades de expressão visual para representar não só a fala, mas também pensamentos, entonações, timbres e outras formas de expressão sensorial. De modo geral, os quadrinhos até o séc. XIX não utilizavam balões, pois os diálogos e narrações eram alocados em quadros ou legendas paralelamente colocadas aos desenhos, sendo que mais adiante, com o marco mais popularmente conhecido através do personagem Yellow Kid, foi onde o uso de balões começou a ganhar destaque. A dinâmica gráfica/emocional dada pelos balões é frutífera em diversas possibilidades, especialmente em termos de condução narrativa, pois a disposição dos balões/diálogos tende articular uma sequência de ideias e acontecimentos de forma a promover o interesse e as reações do leitor. O uso e estilo dos balões nos quadrinhos é bastante diverso e até mesmo relativamente contraditório, cabendo ao leitor ter alguma experiência na leitura ou capacidade intuitiva para distinguir as funcionalidades gráficas no uso de alguns tipos de balões. Um caso marcante é o uso de balões com formato retangular ou quadrado, pois em casos específicos (como nos quadrinhos belgas), esse tipo de balão é de uso comum e não representa qualquer alteração ou identificação na fala. E em outros casos, o uso de balões

retangulares tende a ser utilizado como representação de uma fala robótica, algo de origem eletrônica. Dentro do campo do Poema Processo, na obra “Arte Correio”, de Paulo Brusky, o balão surge como tela, contendo uma reprodução de imagem que ao mesmo tempo contêm um texto invertido, sugerindo um jogo de representações e funções a partir da funcionalidade dada pelos balões de quadrinhos. Ou a obra do poeta brasileiro Álvaro de Sá, intitulada 12x9, onde os balões deixam de usar palavras e onomatopeias, para usar figuras geométricas como mote narrativo. Assim, para além do uso restrito das Histórias em Quadrinhos, os balões também são um recurso gráfico de amplo uso cultural e mercadológico, onde sua funcionalidade conceitual auxilia a comunicação com pessoas de qualquer idade e classe social. Com isso, os balões ganham vida própria, uma independência dos quadrinhos que chegou ao patamar de ser usado como logo do aplicativo Whats App. Mas ainda assim, dentro dos quadrinhos, os balões podem ganhar outros contornos, outras potencialidades no modo de se relacionar com as imagens, talvez até abandonando certo caráter de complementariedade em relação às imagens e se firmando como um ente estético a ser tratado com mais especificidade.

As regras da exceção

Ilustração do autor

Em 2001 comecei publicar minhas tiras de quadrinhos em um jornal da cidade, e com isso pude usar, como referência, várias publicações e experiências gráficas que expandiram o entendimento da narrativa visual, tendo aí os superheróis, quadrinhos estrangeiros e várias publicações nacionais que circulavam sem muito alarde na mídia. No dia da minha estreia, fui entrevistado e fiz ponderações sobre meu processo criativo e sobre influências, e, embora não tenha mencionado as referências que cito aqui, pude falar sobre o método de recolher elementos cotidianos para compor as histórias. Evidentemente esses conceitos não eram o foco central da minha entrevista, no entanto ajudariam a dar um contexto do tipo de produção quadrinística que estava por vir, pois junto com minha produção, outros artistas também seguiam o mesmo caminho, onde diversos tipos de normatizações nos quadrinhos eram rompidas, sejam no modo de se fazer ou na maneira de veicular, a somar, mais adiante no tempo, o fato de que os jornais online lentamente iriam abrir mão de tiras e charges, especialmente porque essas últimas não tinham mais a sincronia editorial e cronológica em um mundo onde as notícias não podiam mais se acumular em 24 horas até serem publicadas. Levando esses fatores em conta, decidi não publicar material convencional de quadrinhos naquele jornal, criei apenas um personagem recorrente (Felisberto, um rapaz que eu concebi como um uberlandense comum), cujas tiras apareciam ocasionalmente, junto com tiras aleatórias sobre temas do momento e como personagens circunstanciais.

Geralmente publicava séries sobre temas com séries que variavam de duração, retomando temas em outros momentos ou abandonando no caso de temáticas baseadas em noticiários. Mesmo alertado por colegas que o ideal seria trabalhar unicamente com um personagem, a fim de criar o vínculo entre ele e o autor, arrisquei na aleatoriedade, pois tinha em mente que ao escolher um personagem e um universo só, perderia a oportunidade de navegar em outros campos. Nesse ponto, os caminhos cruzados pelo uso comercial e não convencional de quadrinhos na mídia, ajudou a formular técnicas de narração, enquadramentos e até mesmo de uso do espaço dentro das páginas do jornal, experimentando recursos e testando a resposta da audiência, ajudando a ampliar minhas capacidades técnicas e me preparando para diversos tipos de produção quadrinística. E como diz meu colega Fernando Duarte, as ideias acabam, mas a obrigação de publicar não. Sendo assim, busquei produzir com bastante antecedência, para evitar repetir ou faltar material inédito, contudo o entusiasmo de poder experimentar e dialogar com o espaço editorial fez valer todo o esforço.

Mostras de quadrinhos e fanzines

Ilustração do autor

Como boa parte dos quadrinistas, comecei a publicar em fanzines, participando de mostras de quadrinhos formais e informais, e por isso quero ponderar sobre esse tipo de atuação cultural, por entender que as relações que são construídas aí, são de grande importância para o desenvolvimento artístico, notando que isso vale não só para os artistas, todavia também para editores, divulgadores e entusiastas em geral. Entre 1996 e 2000, participei de diversos fanzines e mostras de quadrinhos, onde pude receber comentários específicos sobre meus trabalhos, e a partir de comentários mais técnicos, obtive avaliações mais claras, olhares que ajudariam a encaminhar de modo mais adequado, os recursos de produção que eu dispunha naquele momento. Foi ali que elegi a tira de quadrinhos como meu formato de trabalho, já pensando na eventualidade de publicar em algum jornal. Além disso, fiz contato com alguns quadrinistas locais, que ao encaminhar as relações para laços autênticos de amizade, teve um efeito benéfico em minha autoestima, agindo no sentido de acabar com algumas inseguranças e dúvidas e solidificar minha capacidade artística. Minha participação em fanzines como “Rabo de Galo” e mostras de quadrinhos como a do Bar do Cowboy e Colégio Nacional, foram meus primeiros passos no sentido de uma produção autoral, que em poucos anos me levariam a publicar em jornais e revistas. Como diz o ditado popular “Estava juntando a fome com a vontade de comer” e queria muito registrar “na

História” causos e casualidades da nossa produção artística regional, queria que minha produção quadrinística fosse uma espécie de espelho da nossa cidade. E de fato ocorreram várias reflexões, especialmente sobre questões pragmáticas. Com tudo isso, a minha expectativa de retorno artístico vinha em escalas cada vez maiores, pois se antes minha preocupação era a de ser aceito como desenhista ou se a qualidade técnica do meu trabalho era aceitável, logo passou a ser sobre como criar roteiros, espaços de visitação pública, divulgação e questões afins. Ignoro se hoje ocorreria da mesma forma, pois ao utilizarmos a internet como veículo de divulgação de quadrinhos, todas essas questões práticas, as dificuldades e principalmente as reações presenciais, tendem a ser reduzidas quando se trata de relações via redes sociais. Também não posso dizer que são melhores, porém para além dos registros meio protocolares de curtidas de um trabalho, acredito que exposições e trabalhos vistos de forma presencial dão outra dinâmica na apreciação de quadrinhos e isso precisa ser levado em conta, pois independente da forma, acredito que esse tipo de experiência é essencial.

Os respiros da inspiração

Ilustração do autor

Quando se trata de charges políticas ou temas comportamentais, os cartunistas tem munição variada para recarregar seus trabalhos. Entretanto, e quando o recurso de fazer quadrinhos a partir do mundo real, não é suficiente ou adequado para o cartunista realizar seu trabalho? Onde buscar recursos? Muitas vezes não se trata só de falta de referências, podemos encontrar exemplos onde os retratados em charges acabam sendo vistos pelo público com tolerância em relação às suas falhas de conduta e de caráter. Esse fenômeno provavelmente está relacionado com a dificuldade que alguns artistas têm em perceber que dar espaço para essas pessoas na mídia é o resultado de autopromoção, é uma peça publicitária. O cartunista Angeli relatou à Playboy que o ex-ministro Delfim Netto emoldurou uma charge que o satirizava, e então Angeli notou que celebridades ironizadas nas charges estavam tirando proveito do prestígio que era “aparecer” nos jornais. Apelar para uma “poupança” de ideias também pode ser problemático. Um cartunista que trabalha em Uberlândia, já me relatou que em suas primeiras semanas de trabalho na profissão, esgotou o seu baú de ideias e foi necessário repensar o seu processo de criação, possivelmente menos focado em intuição e mais em pesquisa. E como ficam os artistas quando estão presos entre a falta de assunto, armadilhas de autopromoção e esgotamento de ideias?

Uma das saídas é escolher um tema que tenha caráter universal, como reflexões sobre a condição humana, pecados e similares, pois além de permitir releituras, também ajudam refletir sobre o próprio modo de produção, e ao trabalhar com esse tipo de tema, podemos fazer escolhas que iluminem nossos pontos fortes, seja traço, narrativa, inventividade e etc. Muitas vezes ao trabalhar no dia a dia sem refletir sobre o processo de transformar uma notícia em charge, podemos automatizar esse procedimento sem nos dar conta das armadilhas que isso pode gerar. Não são só os exemplos que estão nessa coluna, existe a possibilidade de que isso legitime uma série de problemas que deveriam ser evitados por cartunistas, como ignorar questões éticas e a pluralidade dos pontos de vista e problemas que surgem dentro de determinados contextos. É preciso notar que temos a concorrência quase desleal dos memes, cujo procedimento de reutilizar elementos previamente existentes, garante rapidez de produção e permeabilidade de público, fatores que nem sempre um cartunista tem a seu favor. Não se trata aqui de criar um manual de instruções, todavia refletir sobre o nosso momento histórico, onde o processo de criação precisa de uma imediata pesquisa para evitar cair em um plágio acidental.

Uma História sobre a ‘História’

Tira do autor No início dos anos 2000, publiquei uma tira chamada “Uma História sobre a História”, e tal como qualquer tira de jornal, seus elementos gráficos são comuns e reconhecíveis. Mas o motivo de abordar essa tira em específico vem pelo fato dessa tira ter sido recebida com um grande (e justo) espanto na época que foi lançada, pois assim como outros trabalhos, eu procurei criar um tipo de narrativa que fosse além daquela associada aos quadrinhos e tiras de jornal. O esquete é bem simples: o 1° quadro mostra um sujeito fugindo de um tornado/tempestade; o 2° o mesmo personagem assustado, regando uma planta; no 3° e no 4°, o personagem semeando o chão com um saco com “sementes de vento”. Todos esses elementos fazem alusão ao ditado popular “Quem planta vento, colhe tempestade”, embora nesse caso a ordem com a narrativa esteja de trás para frente. Mesmo que os elementos gráficos fossem convencionais, alguns leitores do jornal onde ela foi publicada ficaram inquietos, provavelmente com dúvidas sobre a qualidade da construção narrativa ou até mesmo incomodada em os seus valores conservadores em termos de Arte. Cheguei a levar um puxão de orelha, onde um artista da cidade me sugeriu emprestar algumas revistas de quadrinhos, para que eu estudasse e aprendesse como se faz quadrinhos. Considerei a sugestão como uma forma sincera de ajuda, no entanto nunca deixei de sentir um estranhamento quando artistas se posicionavam de forma conservadora a respeito de quadrinhos, especialmente no sentido de que é uma arte superficial. Vale lembrar que isso foi há quase duas décadas atrás e que hoje temos uma diversidade de estilos, narrativas e outros elementos que seriam considerados inapropriados para os quadrinhos triangulinos dos anos 2000. Contudo ainda me intrigava que quem estudou movimentos de vanguarda e suas rupturas, reagisse de forma conservadora a uma mera e efêmera tira de jornal.

Com tudo isso, eu convido o leitor para refletir sobre o caminho que as Charges, Tiras e as demais manifestações das Histórias em Quadrinhos passaram até que pudéssemos ter um cenário promissor em termos de vendagens e qualidade. Superar o estigma de que as Histórias em Quadrinhos eram uma produção artística exclusiva para crianças, levou bastante tempo e ainda precisa avançar mais, visto que alguns leitores ainda estão presos nesse conceito. De modo geral, o aproveitamento quadrinístico em outros campos, como infográficos e memes, trouxe uma mudança no entendimento de Quadrinhos, indo além da auto sustentabilidade como negócio, todavia também ampliando significativamente as experiências estéticas para os leitores de todas as idades.

Charges X Ética

Ilustração do autor A leitura de charges, tiras e cartuns em jornais impressos é (ainda) um hábito cultivado por boa parte dos leitores, que por sua vez reconhecem formal ou informalmente as charges como um gênero jornalístico, e ainda que recebam outros nomes ou formas artísticas, esse tipo de produção tem o potencial de captar a atenção do leitor, especialmente pela rapidez comunicacional das imagens: articulam toda uma relação de contextos e informações, em sínteses visuais, apontando nessas sínteses e nos textos, informações que podem servir de base para a formação de opinião, apontar contradições e etc. Comparando com o uso de memes para comunicar sobre temas como política ou costumes (geralmente anônimos ou não creditados), charges tem autor definido e é um gênero textual afinado com a linha editorial e respeitando as limitações éticas e de moralidade que um jornal precisa se comprometer. Esse comprometimento ora guiado pelo próprio Código de Ética Jornalística, ora guiado pelo senso comum dos leitores, reflete-se em grande parte dos casos na forma que os cartunistas constroem seu universo de imagens, não só evitando imagens excessivamente provocadoras (escatológicas, pornográficas entre outras), mas também evitando retratar informações que não correspondam à aferição dos fatos, ou seja, o artista pode exagerar um fato, “caricaturizar” uma celebridade, ridicularizar um gesto, mas em geral não pode expressar, graficamente, interpretações que não correspondam a um fato averiguado. Evidentemente esses procedimentos se restringem às charges de natureza política e comportamental, conceitualmente diferentes de trabalhos gráficos de natureza ficcional, que quando muito, fazem uma releitura de fatos utilizando métodos de representação simbólica e sem referência direta aos

fatos jornalísticos e frequentemente publicados em momentos que não permitem uma relação direta de nexo contextual. Mesmo quando o limite entre uma charge “ficcional” e “jornalística” fica impreciso, temos como guia a reputação do chargista e sua capacidade técnica, que junto a outros fatores, podem equilibrar os elementos de forma adequada a incentivar a reflexão e o desfrute das possibilidades artísticas. Assim, charges produzidas em contextos jornalísticos, ainda que não tenham obrigação de seguir o código de ética institucional de jornalistas, precisa se associar ao compromisso dos jornais no sentido de manter “o pé no chão” para não alienar os leitores com informações que podem levar às fake news e à consequente perturbação de noções de cidadania, ética ou qualquer procedimento que prejudique a relação dos leitores com a realidade.

Usar cor é fogo!

Ilustração do autor O uso das cores nos quadrinhos reforça a narrativa mesmo sem usar elementos perceptíveis e vai além das funções habituais de preenchimento, profundidade e iluminação: desenvolver a história a partir de aspectos subliminares, aproveitando de simbolismos e relações culturais, para criar uma narrativa paralela, complementar. Em um dos exemplos mais conhecidos, na HQ Watchmen (de Allan Moore e Dave Gibbons, 1986) cores são ocasionalmente distribuídas ao longo dos quadros de forma criar uma estrutura concêntrica, que remete às mandalas e ao mesmo tempo sugerindo uma analogia visual em relação às ramificações que norteiam a trama. Já no uso corriqueiro das HQ´s com elementos já estabelecidos, trabalha-se para sugerir cromaticamente as emoções de uma história. Descontrole, raiva e violência geralmente usam cores vibrantes como vermelho, amarelo ou laranja. Cores frias como azul e violeta são usadas quando o tom é triste e deprimente. Notem que isso tende a ser embasado em correlações fisiológicas e naturais. Quadrinhos infantis geralmente fazem uso de cores primárias de forma mais ostensiva, trabalhando com correlações de cores para propor agrupamentos, identificar times, turmas e etc. Esse recurso geralmente tem a função de ajudar as crianças-leitoras a categorizarem grupos a partir de dicas visuais, podendo propor, nesse tipo de obra, a ideia de cor enquanto noção moral ou ética, como é o caso do onipresente uso de cores escuras em contraposição a cores claras enquanto oposição de valores. Vale lembrar que no início do séc. 20, os gibis começaram a usar cores em suas impressões, e ainda que também fossem predominantemente primárias,

provocaram um aumento de demanda do público por conta do efeito psicológico na dinâmica da leitura das imagens. As cores davam um tempero a mais no arroz-e-feijão do preto & branco. Despesas altas e dificuldades técnicas levaram a indústria gráfica da época a pesquisar formas de coloração impressa, tendo em vista a necessidade de garantir produtos com baixo custo. Houve um importante passo para a expansão da indústria gráfica e por consequência, influência em outros campos. Não só na estética, mas no uso dos recursos técnicos que foram disseminados a partir dessa demanda. Cabe lembrar que a partir dessa relação, os esquemas de cores de quadrinhos foram além do seu nicho, como na publicidade ou de forma mais indireta, no Audiovisual, onde Cinema e TV, que mesmo tardiamente, imitavam o uso das cores quadrinística em filmes e séries de TV. Quem não se lembra das coloridas onomatopeias da série Batman dos anos 1960? POW!!!

Quadros dos Quadrinhos

Ilustração do autor Ao contrário do Cinema, da Pintura e de outras artes que usam suportes com dimensões específicas para exibir um conteúdo artístico, as Histórias em Quadrinhos podem se dar ao luxo de reinventar a “moldura” de cena de forma dinâmica e criativa, interferindo no modo que o leitor percebe várias relações entre as imagens, textos e a utilização do espaço. E aqui não é o caso da internet, aonde a exibição isolada de um único quadro, ou o painel de exibição de imagens, tem efeitos e procedimentos diferentes daqueles encontrados em publicações impressas, embora isso mereça ser tratado em outro artigo, com a atenção que a especificidade desse tipo de publicação merece. O encadeamento narrativo dos quadros nas HQ´s é tão vasto, que é impossível encerrar o assunto aqui, no entanto vale uma breve reflexão para que o leitor possa apreciar esse aspecto das HQ´s. E para isso eu proponho aqui um exercício simples de comparação entre a separação entre linhas de texto e os quadros de Quadrinhos, sendo que cada linha representa um espaço equivalente a de um quadro. – O Dado – Rolando sobre a vida – Jogou contra o chão Vemos aqui que os espaços entre as frases dão certo respiro entre um texto e outro, permitindo um curto período de pausa onde o leitor pode processar o significado das palavras de forma tranquila.

No exemplo a seguir, o mesmo texto é apresentado sem espaços e sem uma pontuação que incentive pausas na leitura, evidentemente com a intenção de torna-lo mais rápido e fluído: – O Dado rolando sobre a vida jogou contra o chão. Como já havia adiantado, a leitura desse texto é diferente do texto anterior e ainda que não tenha a intenção de entrar nos detalhes de pontuação e sintaxe, a sugestão é que o leitor faça uma comparação, ainda que intuitiva, com a imagem que ilustra esse artigo. Seja como for, em geral não damos muita atenção ao modo que os quadros são dispostos em uma história em quadrinhos, contudo certamente o uso desse recurso é tão ou até mesmo mais importante do que os desenhos e o texto. Veja a linearidade dos quadros das tiras de Garfield e compare com as tiras da Laerte, os grandes quadros dos gibis de super-heróis, com a regularidade formal do Maurício de Souza. Em cada um desses casos, a forma dos quadros (co) responde ao conteúdo desenhado e escrito, na medida em que a dinâmica da narrativa pede uma “moldura” que valorize o que está registrado ali, seja a exploração de um espaço geográfico de campo de batalha, o espaço social de um grupo de crianças ou um espaço fantasioso de um delírio, cada momento pede que sua “moldura” privilegie uma determinada informação, ainda que isso sacrifique ou valorize a moldura e por consequência, a obra.

Por que Histórias em quadrinhos não são nem Artes Visuais e nem Literatura?

Ilustração do autor Para começar essa conversa, pegue qualquer história em quadrinho e copie só o texto… Se o texto explicar por si só, se “contar” a história, então teremos um eventual texto literário. Mas se não ocorrer isso, se a dinâmica entre as ações das imagens complementar ou for essencial para o leitor acompanhar o que se passa em uma história, então podemos dizer que as Histórias em Quadrinhos são essencialmente, Artes Visuais? Acredito que não, pois além do fato histórico de que narrativas gráficas são tão ou mais antigas que pinturas, esculturas e outras formas de artes visuais, também há o fato de que a estruturação das imagens explicita atos, gestos e contextos e que isoladamente, não carregam por si só, todo o sentido que uma história inteira pode carregar. Quer dizer, podemos até deduzir ou recordar de uma história inteira, a partir de um único quadro, apenas se os elementos representados ali, já forem previamente conhecidos. Meu nariz não vai crescer se eu falar que se você ver a imagem de duas toras de madeira cruzadas, imediatamente vai lembrar da história de Jesus, que aliás era carpinteiro. Mas Gepeto também era carpinteiro e a sugestão trapezoidal que há entre o tronco e os membros, as partes de uma figura antropomórfica, poderia remeter a uma cruz. Esse exemplo superficial pode nos ajudar a nos lembrar do poder do condicionamento e do quanto isso pode ser importante para uma narrativa baseada em sequências de imagens e de textos, pois ao jogar com elementos simples como madeira, cruzes, marionetes e geração de vida, nós já

relacionamos indiretamente duas histórias que na superfície, não tem relação alguma. O mesmo tipo de procedimento também vale para narrações literárias, onde homonomias, sinônimos, heterônimos e uma infinidade de figuras de linguagem, podem ser utilizadas em simbiose com imagens e suas articulações. Mesmo que o texto seja condutor em uma grande parte da produção de quadrinhos e que isso deixe as imagens em segundo plano em relação à narração, isso não exclui automaticamente os casos de Histórias em Quadrinhos onde não há texto algum ou a relação entre texto e imagem é feita de forma a provocar uma fusão de sentidos e interpretações. Nesse último caso, temos como exemplo as onomatopeias, que, grosso modo, são aquelas palavras “desenhadas” e cujo desenho imita o efeito e o sentido que essa palavra tem, amplamente utilizadas em HQ´s e animações. Com as onomatopeias, temos a fusão entre o sentido abstrato de uma palavra e a percepção gráfica de uma forma visual previamente conhecida, gerando uma fusão de sentidos simultâneos, porém podem ter sentido textual ou figurativo, se realizados separadamente. Continua...

Porque Histórias em quadrinhos não são nem Artes Visuais e nem Literatura?

Ilustração do autor No último artigo comentamos sobre o potencial de conjunção simbólica das onomatopeias, tendo em vista que nesse caso, a mistura entre aspectos gráficos e literários se fundem com bastante equilíbrio em termos de significado. O uso de imagem e texto é algo que as HQ’s utilizam a partir das Artes Visuais e da Literatura, no entanto o predomínio é da articulação dos elementos, não só do texto ou da imagem. Evidentemente isso pode variar de caso para caso, especialmente em adaptações de clássicos, onde algum traço tende a ser mantido a fim de manter suas características originais.

Acredito que uma crônica que indica Por que Histórias em quadrinhos não são nem Artes Visuais e nem Literatura? Diferenciação essencial das HQ´s em relação à Literatura e às Artes Visuais está no fato de que mesmo usando articulações de linguagem em comum, os quadrinhos podem abrir mão do texto e de imagens, sem que cause perda de sentido e de intencionalidade. Sim, o vazio faz parte do DNA das HQ´s, afinal é na chamada “sarjeta” (o espaço que fica entre os quadrinhos) que a sugestão das ações ocorre. Esse “vazio” preenche o que não é dito ou mostrado. É nele que coisas importantes acontecem. A sarjeta é um elemento que se articula na capacidade de atenção e abstração do leitor, onde ele é levado a “completar” as partes vazias entre os quadros. E aqui nem sempre temos o determinismo narrativo que o Teatro e o Cinema compartilham, pois se um gesto simples pode ser mostrado em um só plano, nas HQ’s tendem ser mostrados em quadros separados pelo vão da sarjeta. E o título de “9° Arte” para as HQ’s, vem não só pelo mérito, todavia também por conta dos seus elementos constituintes, pela especificidade que os quadrinhos têm em relação com outras artes. Uma lista das artes e suas características básicas poderá nos auxiliar a compreender o motivo: 1ª Arte – Música: Organização dos sons; 2ª Arte – Dança/Coreografia: Representação física de movimentos; 3ª Arte – Pintura: Organização de formas e cores em superfícies e suportes; 4ª Arte – Escultura: Estruturação de volumes em materiais; 5ª Arte – Teatro: Encenação, representação de elementos da realidade; 6ª Arte – Literatura: A articulação das palavras de forma a obter um efeito estético sobre o leitor; 7ª Arte – Cinema: Projeção visual contendo sons, imagens e texto; 8ª Arte – Fotografia (reprodução realista obtida da captura da luz através da câmara escura); 9ª Arte – Quadrinhos (cor, palavras e imagens articuladas em um suporte a fim de criar uma narrativa); As HQ usam elementos de outras artes a fim de construir um repertório próprio, e ainda que determinadas obras e características sejam umbilicalmente ligadas à Literatura ou Artes Visuais, o modo de narrar é totalmente diverso. Se o exemplo de HQ´s que aboliram texto ou a estética própria das Artes Visuais, não é suficiente, tomemos o exemplo de quadrinhos online, onde a natureza própria dos sistemas de exibição de imagens propõe de modo quase acidental, novas formas de narrativa, onde a interação (uma especificidade das HQ) alcança outros patamares e abre espaço ao acaso (que é um elemento bem característico da Música e do Teatro), para variações de suporte (fenômeno que ocorre frequentemente com o Cinema) e com outras variações de natureza técnica.

Web Comics

Ilustração do autor Webcomics são publicações de quadrinhos feitas ou adequadas aos diferentes suportes e interações dentro do ambiente da internet. Ou seja, são quadrinhos que foram feitos ou adaptados para serem veiculados nas redes sociais, sites, blogs e afins. A princípio não diferem dos quadrinhos em suporte físicos, como papel, porém as webcomics têm diferenças radicais no manuseio de páginas, pranchas e qualquer outro formato de publicações de quadrinhos. Não se trata apenas de variar o tipo de espaço físico onde se pode ver uma ilustração ou uma sequência de ilustrações. Trata-se de ter opções potencialmente determinísticas na forma onde o leitor pode ler as imagens. Como nos quadrinhos em papel, boa parte das webcomics oferece liberdade para que o leitor pule, avance e possa ampliar as ilustrações ao mesmo tempo em que oferece uma sequência de pranchas (quadros, segmentos, páginas e etc.) que obedecem a uma cadência em crescente. Porém, o espaço para as ilustrações tende a ser bem menor do que aquele que encontramos em páginas de quadrinhos em papel e isso implica em uma diminuição de quadrinhos e de outros elementos gráficos, possibilidade esta que acaba por diminuir a dinâmica entre esses mesmos elementos gráficos. Com essas limitações em vista, boa parte das produções nesse suporte busca enfatizar o diálogo entre os elementos dinâmicos de uma forma diferente: ao invés da alternância de dinâmicas gráficas em uma sequência interligada pela

ação, usam o entrecorte de uma prancha e outra (que poderíamos chamar grosseiramente de “página da web”, ainda que não seja a nomenclatura adequada) como fio condutor da narrativa visual. Ou seja, se em papel a ação ocorria de forma linear, percorrendo a lateralidade que os quadros compartilham entre si, nas webcomics tal dinâmica fica entrecortada pela passagem entre uma imagem e outra, tal como ocorre quando passamos uma página de um livro para ler o próximo parágrafo. Por conta desse tipo de elemento de interação e de outras eventualidades, a leitura de Webcomics pede outro tipo de sensibilidade aos leitores de quadrinhos, especialmente considerar que não são linguagens que competem entre si, entretanto são, de fato, complementares, são uma oportunidade expressiva, diferenciada e que ainda tem muito para ser explorada. E para além da leitura específica de quadrinhos online, ainda aparecem questões publicitárias, técnicas e sociais, afinal de contas, o uso de dados de internet pode inviabilizar o livre acesso a conteúdos, seja por restrições financeiras, seja pelo excesso de conteúdos não relacionados com a produção artística em si. Porém para o mundo dos quadrinhos, o desafio das webcomics está aí e não dá para virar a página.

Clark Kent da vida real

Ilustração do autor A partir da historicidade das charges – que tratam graficamente questões sociais, políticas, econômicas e afins – e de quadrinhos de caráter biográfico ou autobiográfico, o gênero de “Reportagem em Quadrinhos” (ou Quadrinhos Jornalísticos) surge como resultado das transformações que o próprio Jornalismo tem sofrido nas últimas décadas, onde questões como o Infotenimento (informação com entretenimento) o ‘’New Journalism’’ (com os relatos em primeira pessoa, romances de não-ficção de expoentes como Truman Capote e Hunter S. Thompson), entre outras, que incentivam a investigação de caráter jornalístico a partir de outros meios, modos e métodos. Art Spiegelman e sua novela gráfica “Maus” é referência na produção de Quadrinhos Jornalísticos, por tratar de forma mista os aspectos autobiográficos e alegóricos da vida de sua família, sobrevivente do Holocausto. O desenhista maltês Joe Sacco, que também é jornalista, realizou reportagens investigativas sobre a situação dos palestinos em zona de conflito, privilegiando a construção de seus personagens a partir de relatos verídicos. Temos também o brasileiro Vitor Teixeira, a iraniana Marjane Satrapi (autora da HQ Persépolis, que mais tarde virou animação) e a novela gráfica portuguesa “Reportagem Especial" (2016), todas partindo de premissas jornalísticas ou a partir do trabalho investigativo de jornalistas.

Enquanto meio, os quadrinhos dão alguma liberdade para compor e organizar os fatos reportados, pois ainda que o uso de elementos gráficos não esteja adequado aos padrões de verificação característicos do jornalismo, seu deslocamento visual e estético tende a não comprometer a relação com os fatos. Enquanto modo e método, as tendências gerais de pesquisa e registro de reportagem se mantêm, respeitando as múltiplas verificações de fatos, o sigilo da fonte e os aspectos gerais do Código de Ética Jornalística. As possibilidades estéticas e na articulação de fatos a partir das possibilidades dos quadrinhos, não altera a intenção jornalística, podendo até aprimorar e explorar graficamente os pontos vagos de um relato, ou utilizar fontes documentais de forma integrada à narrativa gráfica. Com essas potencialidades e com um público fiel, as Reportagens em Quadrinhos podem compor elementos que se entrelaçam e atiçam o interesse do leitor, dando um passo adiante nas possibilidades de expressão artística e jornalística, onde pautas e temas que sejam de alguma forma, negligenciadas: possam receber não só a atenção devida, contudo também um tratamento adequado a cada necessidade, seja enfatizando as questões visuais e gráficas, seja pelo aprofundamento no tema para citar alguns exemplos.

Acertei no Quino

Disponível em: https://argentinaya.com.ar/wp-content/uploads/2020/10/fallecimiento-quino1000x600.png. Acesso em 11 de março de 2021

Fui mafaldado bem jovem, criança ainda, e de cara nutri alguma antipatia pela Mafalda, afinal de contas ela fazia coisas que os adultos me proibiam de fazer: perguntar demais, confrontar, refletir, mostrar insegurança e por aí vai. O fato dela não aparecer em produtos para crianças, em latas de extrato ou coisa do tipo, também me deixava desconfiado, parecia que ela não fazia força pra ser feliz… Sei lá, talvez ela fosse muito semelhante aos resmungões que apareciam na TV ou em reuniões de vizinhos. Demorou um tempo até que eu fizesse as pazes com a Mafalda e começasse a prestar atenção no Quino, pra daí saber que ele era argentino, que fazia charges, que frequentemente essas charges não usavam palavras, que usava e abusava do P&B. Logo percebi que seus personagens eram elegantes, sempre de terno, chapéu, bem vestidos, até mesmo os mais pobres. Percebi também que o traço de Quino, tinha um estilo antigão, parecia coisa de jornal muito velho, daqueles que eu encontrava no fundo de armários, atrás da caixa de ferramentas, pra não sujar a tábua de óleo. Aí comecei a pensar “será que esse Quino tá querendo fazer algo diferente?”, “será que não vai seguir as novas modas e mudar seu traço? Usar mais cores, ser mais moderno?”. Desconfiei que tinha algo estranho com o Quino, comecei a achar que ele era um daqueles rebeldes que apareciam em filmes

e séries, daqueles meio tan-tans de óculos redondos e livros ensebados na mão. Mais ou menos nessa época, a Argentina foi bicampeã na Copa do Mundo de 1986, disputada no México e eu comecei a ganhar a noção que os brasileiros hostilizavam demasiadamente os argentinos, eu tava feliz porque a Copa veio pra nossos hermanos, mas muitos amigos e celebridades não viam isso com otimismo. Daí começou a minha malfadada vida de trabalhador, entregando roupas, office-boy, auxiliar administrativo, enfim, o bom é que vinha o salário pra comprar revistas e gibis. Aí começo a ver que espanhóis, mexicanos, colombianos e outros manos, também tinham uma produção de quadrinhos que são bem legais e estimulantes, que não eram exceções, todavia tal qual a galera do Pasquim, Millôr e outros brazucas, eram referência em sua área. Enfim, graças ao Quino, Mafalda e meu amigo chileno Roberto Vergara, comecei a ver os quadrinhos sul-americanos com o olhar que esses trabalhos merecem, seja em relação à técnica, narrativa, articulação de elementos gráficos, graça e etc. Mas taí, 30 anos depois disso, Quino se foi. Sinto um pouco de remorso por não ter pedido bença ou ter feito mais “propaganda”, talvez a necessidade de falar mais sobre os quadrinistas brasileiros tenha atrapalhado nisso, se bem que o próprio Quino não era chegado a holofotes, ouvi dizer que ele não era chegado a entrevistas e mídia. Tanto que contornou a própria gênese de Mafalda (que foi criada para uma campanha não divulgada de eletrodomésticos) e não fez dela um produto. Só quero dizer para vocês que a capacidade de expressão gráfica que ele tem é algo invejável e parecia fazer parte de um processo que pretende contornar a dificuldade de traduzir tiras escritas em espanhol para outras línguas. Esse tipo de sensibilidade, considerando o contexto da década de 1960 em diante, certamente está relacionado com sua perspicácia em representar a Mafalda enquanto mulher, jovem e especificar sua localização geográfica (a qual ele poderia ter feito de modo genérico), pois com isso Quino acompanhou de perto as transformações que estavam ocorrendo ou por ocorrer, como as de Maio de 1968, os movimentos de autonomia político-ideológica de países sulamericanos e o movimento feminista. E por favor, aceite uma dica que vale por uma cabeça: jogue “Quino cartum” na sua página de pesquisa favorita, busque por “Imagens” e veja se não é como ganhar numa mega sena artística. Gracias por ajudar a nos enxergarmos melhor, Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino , 17 de julho de 1932 - 30 de setembro de 2020.

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