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Chico de Assis

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Luciano Ferreira

Luciano Ferreira

Como quase todo leitor tive os primeiros contatos com os quadrinhos muito menino, onde a memória já quase não alcança. Algumas vezes sinto saudades do cheiro de papel jornal barato, das cores exageradas e erros de registro na impressão das revistas dos anos 70. Ao correr do tempo as leituras e referências se ampliam, e a curiosidade mostra que o universo abarcado por essa linguagem é virtualmente infinito. Tento manter o contato com obras de diferentes técnicas narrativas, temáticas, de autores de diferentes nacionalidades. Gêneros como ficção cientifica, humor, terror, erótico, drama, faroeste e qualquer outro que se invente, inclusive o que recentemente se convencionou chamar de Jornalismo em Quadrinhos me despertam interesse, e também a relação comoutras artes como o Cinema, Pintura, Literatura, Teatro, Arquitetura, Música. Mas tenho particularmente buscado compreender as características essenciais da linguagem através de livros teóricos e da história dessa mídia, e dentro de minhas limitadas possibilidades produzir alguma reflexão escrita.

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Um breve panorama das Histórias em Quadrinhos em Uberlândia

Publicado em08/10/2019

Hoje começamos, aqui, uma coluna sobre Quadrinhos, e considero que seria interessante falar sobre os autores de nossa cidade. Tenho acompanhado a cena há bastante tempo e, embora haja lacunas por ser uma apresentação muito resumida, acredito que seja um panorama razoável e importante da história local dos Quadrinhos e do humor gráfico. Em outros momentos pretendo falar mais profundamente sobre um autor, título ou período. Em 1984 foi lançada a “Kakunda”, com quadrinhos de Fábio Piva, Maurício Ricardo, Zeca Ligeiro, Weber Abrahão e Valtenio Spindola. Para o lançamento, segundo relatos, foi tomado emprestado de uma funerária um caixão onde foram colocados todos os exemplares da revista. Bem ao espirito da época, um cortejo subiu a Afonso Pena acompanhado da Banda Municipal que tocava alternadamente a marcha fúnebre e um frevo. O material apresentado tinha boa qualidade e uma temática muito interessante, de guerra nuclear até a relação entre religião e sexualidade. A publicação, entretanto, não passou do primeiro número, a impressão e a distribuição nesse momento ainda eram questões bastante complicadas. Maurício Ricardo e Valtênio, que já publicavam em Jornal local desde o início dos anos 80, continuaram seus trabalhos publicando charges e também tirinhas, onde apareceram personagens que marcaram o público, com maior destaque talvez a dupla Uru e Bu, e a Serpente Mágica. Mais tarde, já a partir de meados dos anos noventa, em algum momento ambos foram editores e

responsáveis por abrir espaço para um número bastante expressivo de cartunistas e quadrinistas locais: Roberval Coelho, Adriana Porfirio, Moisés, Fredd, Nino Vilela, Luciano Ferreira, Fernando Duarte dentre muitos outros. Muitos ainda hoje trabalham com quadrinhos, ilustração e animação. Em 1998, capitaneada por André Guillaume, sai a Revista “Nektar”, com Rodrigo Lara, Alexandre Grecco, Rosemário H. S., José Neto, Rogério Rocha, Roberval Coelho, entre outros artistas locais e alguns convidados. Com boa qualidade artística, impressão, formato, diagramação, detalhes muito bem cuidados e uma estratégia de divulgação bem ousada para aquele momento, a Nektar chamou a atenção no meio, com boas críticas em jornais de circulação nacional, como o Estado de Minas e Folha de São Paulo. Depois de três tentativas de distribuição a Revista infelizmente encerrou suas atividades. Entre o final dos anos 90 e meados dos anos 2000 foram publicados fanzines de Quadrinhos como “O Rabo de Galo”, números 01 e 02, e as tiras de autores locais continuavam a sair na imprensa. Já no final da primeira década sai a “Camiño Di Rato” número 01, editada por Rosemário e Matheus Moura, com uma fantástica ilustração em aquarela para a capa. A revista Chegou em 2015 ao número 08, com autores locais e de outras regiões. Entre 2009 e 2015 são publicados também sete números da revista “O Q de Quadrinhos”, de Jimmy Russ, com trabalhos de diversos autores locais junto com o trabalho de seus alunos em oficinas de Histórias em Quadrinhos. Hoje temos uma produção diversa e de muita qualidade saindo em coletâneas como a “Basídio”, números 01 e 02, ou a “Meia Cura”, de João Agreli. As leis de incentivo à cultura e o financiamento coletivo deram um bom fôlego tanto para as coletâneas quanto aosálbuns solo. Por fim, destaco o “Raiz”, de Dudu Torres e “Romaria”, de Alexandre Carvalho, ambos indicados ao prêmio HQ Mix, principal prêmio do país nessa linguagem, e “Quem matou o Caixeta?”, de Rainer Petter, concorrendo ao Prêmio Jabuti na categoria: Quadrinhos.

Banda – A história além dos Quadrinhos.

Publicado em19/11/2019

Lançada no início desse mês de novembro, o primeiro número da revista “Banda” nos traz questionamentos sobre os clássicos dos Quadrinhos Brasileiros. O que faz de uma obra, nessa linguagem, um clássico? É possível falar em clássicos entre as obras nacionais? Quais são eles? Por que obras tão importantes não estão acessíveis ao público? Nascida dos esforços de Douglas Utescher, designer e proprietário da Ugra Press, loja e editora alternativa, Carlos Neto, Gustavo Nogueira e Thiago Borges, todos os três jornalistas especializados em Quadrinhos, a revista pretende ser bimestral e focada na produção brasileira, essa primeira edição foi viabilizada via financiamento coletivo e agora pode ser adquirida na loja Ugra pelo leve preço de Vinte Reais. Com trinta e quatro páginas Banda apresenta uma reflexão de Ramon Vitral sobre a relação do tempo com as obras clássicas em várias linguagens e as possíveis especificidades no campo dos Quadrinhos. Especialistas e autores de Quadrinhos, entre eles nomes bem conhecidos, profissionais que acompanham a produção crítica e teórica do meio: Gonçalo Junior e Sonia Luyten foram chamados para apresentar uma lista de cinco clássicos e um possível futuro clássico da produção nacional. Thiago Borges escreve sobre a difícil relação dos Quadrinhos Brasileiros com o mercado, e a quase completa ausência de obras seminais em livrarias, bancas ou bibliotecas: “Como considerar algo relevante historicamente se ninguém mais consegue lê-lo? Os artistas de renome são mais reconhecidos que suas próprias obras? E as HQs

feitas por mulheres precursoras: onde estão?” Carlos Neto fez uma sublime entrevista com Lourenço Mutarelli, esse que é, sem sombra de dúvidas, um dos grandes nomes dos Quadrinhos brasileiros. Para finalizar Gustavo Nogueira fala sobre o premiado “Angola Janga”, álbum escrito e desenhado por Marcelo D’Salete, um nome de enorme relevância da produção atual. Nesse primeiro número, a Banda deu um show! Apresentação, diagramação, ilustrações, capa, temática, textos, enfim! Tudo realmente muito bom, não desafinou em nada, embora com sua pegada ligeiramente punk rock desafinar não seja propriamente um problema. Aguardemos as próximas apresentações, estarei na primeira fila. Vida longa à Banda. Vida longa aos Quadrinhos Nacionais.

Henfil

Publicado em17/12/2019

Henrique de Souza Filho, nascido em 1944 em Ribeirão das Neves - Minas Gerais. Adotou o nome Henfil com a fusão das primeiras sílabas do nome e sobrenome, à moda dos cartunistas franceses, por sugestão do escritor Roberto Drummond, seu primeiro editor, que o “obrigava” fazer ilustrações para a Revista Alterosa de Belo Horizonte, com a qual colaborou a partir de 1964. Henfil não tardou partir para o Rio de Janeiro, de onde seu trabalho alcançou dezenas de publicações em jornais e revistas da época, como o Jornal dos Esportes, Cruzeiro, Realidade. No entanto seu nome é realmente indissociável do semanário Pasquim, Jornal satírico de resistência política e cultural ao regime militar, com nomes a título de exemplo: Jaguar, Ziraldo e Millôr Fernandes. A publicação foi um sucesso estrondoso, tão inesperado quanto bem-vindo. Aqui os “Fradim”, personagens de Henfil, alcançaram reconhecimento nacional vindo a se tornar uma publicação autônoma em revistas em Quadrinhos, distribuídas pela própria editora do Pasquim. No início dos anos 1970, Henfil parte para os Estados Unidos e se instala em Nova York. Queria mergulhar nas entranhas do imperialismo, conhecer a estrutura de dominação cultural que buscava se impor ao mundo. E também pela possibilidade de tratamento da hemofilia, doença hereditária da qual era portador. A experiência na área de saúde foi dramática, contudo o cartunista conseguiu o feito quase impossível para um estrangeiro: trabalhar com um syndicate (nome dado às distribuidoras de conteúdo nos EUA). A discussão para a assinatura do contrato foi longa, porque ele não aceitava que seus

personagens fossem usados em material publicitário ou mesmo transformados em filmes de animação. Suas tiras com os “Fradim”, que ali foram chamados de “Mad Monks”, começaram a ser publicados em jornais de forma promissora para um artista desconhecido no país, mas em menos de dois meses as redações começaram a receber cartas de leitores, em grande número, o acusando de: “ateísta”, “comunista”, anticlerical”, “escatológico” dentre outros elogios. O contrato acaba sendo rescindido em um acordo entre as partes, e, embora houvessem vários convites para trabalho em revistas alternativas e outros veículos fora do mainstream, Henfil decide que é hora de retornar ao Brasil. Essas aventuras são contadas no livro “Diário de um Cucaracha”, compilação de cartas que enviou durante dois anos para familiares e amigos. Além de Quadrinhos e Cartuns, trabalhou em programa de televisão, um filme longa-metragem, “Tanga (deu no new York times?)”, Crônicas, Livro reportagem, literatura infantil, produção de teatro, tudo isso sempre com um posicionamento político muito enérgico e certeiro. Foi figura chave no movimento pelas diretas já, e sua posição radical nesse momento lhe rendeu: muitas críticas; alguns achavam que o tipo de humor que ele fazia estava ultrapassado depois da “abertura política”. Definia-se, sobretudo, sendo um jornalista, todavia em várias ocasiões onde seu trabalho nos Quadrinhos foi criticado, demonstrou uma imensa consciência artística defendendo sua obra. Falecido muito jovem, em 1988, mesmo ano da promulgação da constituição ainda vigente, estaria agora com 75 anos. Henfil faz grande falta à alma brasileira, e seu trabalho é muito menos visto e divulgado do que deveria sobretudo nesse momento de tamanha fragilidade da democracia.

Lourenço Mutarelli está de volta.

Publicado em14/01/2020

O título acima tem duas mentiras! Mutarelli, embora tenha morrido e ressuscitado várias vezes, nunca partiu e também não está voltando produzir Quadrinhos. Desde sua primeira auto publicação no final dos anos 80 com os fanzines “Over 12” e “Solúvel”, passando pela publicação, na primeira metade dos 1990, de álbuns como Transubstanciação. A partir de 1999, já na editora Devir, com a história do detetive Diomedes nas quatro partes da “Trilogia do Acidente”, Lourenço vivenciou essa jornada, ou peregrinação, que é: produzir e publicar Quadrinhos no Brasil. Com “A Caixa de Areia”, em 2006, essa jornada se encerra, ou faz um hiato – nunca se sabe. Toda sua produção nessa linguagem recebeu muitas premiações, e apresenta sempre uma qualidade artística e narrativa inquestionáveis, momentos sublimes estão sempre presentes, nas histórias curtas “Estampa Forjada” e “Morfologia”, por exemplo, publicadas em “Mundo Pet”, a única onde seu trabalho saiu em cores, ou mesmo em trabalhos do início de carreira republicados na coletânea Sequelas. Contudo “A Caixa de Areia” talvez seja mesmo sua obra prima. Depois da leitura de “Capão Pecado”, do escritor Ferréz, que traz uma dedicatória a Mutarelli, ele resolve experimentar a literatura, e apresenta em 2002: “O Cheiro do Ralo” – devolvendo para Ferréz a dedicatória. Seu livro chama a atenção rapidamente no meio literário e acaba sendo adaptado para o cinema em um longa-metragem de Heitor Dhalia. Novas portas se abrem e

Lourenço realiza trabalhos em cinema, teatro, artes visuais além de continuar na literatura, com uma produção intensa. Como efeito colateral se afasta dos Quadrinhos. Embora tenha publicado, por insistência de editores o “Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente”, e encartado uma HQ experimental no livro “O Grifo de Abdera”, os Quadrinhos já não são uma linguagem central para o autor. De volta ao título, qual é a volta? Não é outro senão o próprio Ferréz, completando um instigante ciclo, que junto com a editora Comix Zone traz em um grande álbum a reunião dos trabalhos: “Transubstanciação”, “Desgraçados”, “Eu te Amo Lucimar” e “A Confluência da Forquilha”, compilando a fase dos Quadrinhos de Mutarelli de 1991 até 1997, sob o apropriado título de “Capa Preta”. As histórias em Quadrinhos no Brasil nunca tiveram um cenário tão rico e diverso, e quem o contempla talvez não saiba que há poucas décadas, tudo isso, era um tanto diferente. Muitos grandes artistas nacionais, hoje, rendem homenagens e fazem citações ao trabalho de Lourenço Mutarelli, e não restam dúvidas de que ele é um marco nessa trajetória. O fato desses trabalhos agora republicados terem ficado tanto tempo fora de catálogo dizem muito mais sobre a inaptidão ou desinteresse do mercado editorial do que sobre a qualidade dos trabalhos. Entretanto, talvez o futuro seja esse mesmo, tomar em nossas próprias mãos esse “mercado editorial”. Viva Mutarelli. Viva Ferréz.

30 de Janeiro – dia do Quadrinho Nacional

Publicado em28/01/2020

A partir do ano de 1984 e por inciativa da AQC-ESP (Associação dos Quadrinistas e Cartunistas do Estado de São Paulo), o dia 30 de janeiro se torna a data em que se comemora o “Dia do Quadrinho Nacional”. A escolha remete a data de publicação, em 1869, daquela que consideraram a primeira História em Quadrinhos Brasileira: “As aventuras de Nhô-Quin ou impressões de uma viagem à corte”, de autoria do cartunista ítalo-brasileiro Ângelo Agostini. Há discordâncias sobre essa ser, de fato, a primeira HQ Brasileira, ou sobre a importância de buscar essa “obra original”, mas isso é outra história. Nascido em 1843 na região do Piemonte, na Itália, e tendo passado a infância e adolescência em Paris, na França, Agostini chega a São Paulo aos dezesseis anos de idade, e aos vinte e um inicia sua carreira de cartunista e artista gráfico fundando o jornal ilustrado “Diabo Coxo”. Depois de algumas outras publicações de vida mais ou menos efêmera, ele se transfere para o Rio de Janeiro, onde publica na revista Vida Fluminense – a inaugural HQ do personagem Nhô-Quin. Posteriormente funda a “Revista Ilustrada”, seu principal veículo e um marco na história editorial brasileira. Durante quatro décadas Ângelo Agostini dirigiu suas próprias publicações, escreveu ilustrou, fez caricaturas e quadrinhos, sempre com uma verve crítica extremamente ácida e corajosa, sua trajetória se confunde com a da própria imprensa brasileira nesse período de enorme efervescência, de transformações técnicas, estéticas e também políticas. Agostini foi, sobretudo, um artista e deixou sua marca indelével na história do humor gráfico no Brasil.

Para além de algumas controvérsias sobre o que é ou não História em Quadrinhos, e a respeito da paternidade e nacionalidade dessa linguagem, o essencial talvez seja de fato: conhecer e reconhecer a qualidade e inventividade desse artista ítalo-brasileiro. Sem nos furtar a reflexão sobre o presente e o futuro dos Quadrinhos Nacionais, 151 anos depois de Nhô-Quin, e 35 anos em que a data de 30 de janeiro foi escolhida para representa-los, há verdadeiramente o que comemorar? Apesar de atravessarmos tempos realmente muito inóspitos para a arte e a cultura em nosso país, eu acredito que sim!A produção brasileira vive um momento sem precedente, de enorme qualidade e diversidade técnica, estética e temática. Sementes que foram há muito tempo plantadas e durante muito tempo cultivadas por tantas e tantas pessoas: germinaram e cresceram, formam agora um ecossistema! E que seja rapidamente uma floresta que as motosserras jamais alcancem.

Alan Moore – Maxwell, o Gato Mágico

Publicado em10/03/2020. 22/09/2020

É improvável encontrar entre leitores de Quadrinhos alguém que não conheça Alan Moore. Responsável por trabalhos como “Monstro do Pântano”, “Watchmen”, “V de Vingança” e muitas outras obras de grande relevância, Alan Moore é considerado um dos maiores roteiristas da história dessa linguagem. O que muitos não sabem, entretanto, é que ele foi o autor de uma tira de humor em um jornal de sua cidade Northampton. “Maxwel, o Gato Mágico” foi publicado semanalmente nas páginas do “Northants Post” entre os anos de 1979 e 1986, sob o pseudônimo de Jill de Ray. Embora em um dado momento já tivesse reconhecimento mundial com seus trabalhos para grandes editoras americanas, recebendo valores incomparáveis com as 10 ou 12 Libras semanais pagos por sua tira, Alan não pretendia encerrar esse trabalho, e só o fez em função de o jornal haver publicado um artigo abertamente homofóbico. E essa é apenas uma amostra da admirável postura moral e política do autor. Escrita e desenhada por Moore, a tira segue um padrão fixo de 5 quadrinhos e explora bastante os limites da linguagem, às vezes “desobedecendo” os requadros, ou por exemplo, em um episódio onde nos é mostrado o lado “avesso” da tira. Crítico extremo da “Era Thatcher”, o autor usava esse espaço para expor sua visão política e ao mesmo tempo tal como um laboratório para experimentar técnicas e as possibilidades do meio, esteticamente; tudo isso, é claro, sem esquecer que se tratava de uma tira de humor. Sobre isso, Eddie Campbell, seu parceiro de trabalho em “Do Inferno” diz: “Quando a nova geração de historiadores/críticos reavaliar a história dos Quadrinhos e começar a selecionar quais tiras beberam fundo no espírito dos anos 1980,

tenho a sensação de que Maxwell será devidamente reconhecida como obra de relevância e não só aquela coisinha que o Alan Moore fazia nas horas de ócio.” Uma reunião desse trabalho foi publicada uma única vez, ainda no ano de 1986, pela editora inglesa “Acme Press” em quatro volumes com edição e tiragem bem modestas. Mas... A jovem e ousada editora brasileira “Pipoca e Nanquim” resolveu suprir essa lacuna e assim traz uma edição em volume único com 132 páginas, todas as tiras restauradas, inclusive uma que estava perdida nos arquivos do jornal e outra de 2016, desenhada devido à ocasião do encerramento das atividades do “Northants Post”, além de um prefácio de Eddie Campbell; posfácio do próprio autor; tradução e notas de Érico Assis, Érico que foi também tradutor para português de uma biografia de Alan Moore; texto de Flávio Pessanha, estudioso da obra de Moore; textos e notas dos editores e uma galeria com vários artistas como David Lloyd e Brian Bolland representando Maxwell. Uma edição com o cuidado que o “velho mago” merece, e pela primeira vez em um idioma que não o inglês, o feito é tão notável que foi notícia no “Bleending cool”, site de notícias dos EUA sobre Quadrinhos, que termina com uma chamada aos editores de língua inglesa do tipo: “Veja o que vocês NÃO estão fazendo!”. O álbum, lançado nesse mês de março, pode ser comprado no site da editora. Como ação de divulgação está acontecendo um sorteio nas redes sociais de 200 bookplates autografados por Alan Moore, o que deve ser retomado em breve. Em época de louvor ao empreendedorismo de ocasião prefiro pensar que esse é o resultado do esforço de pessoas que decidem trabalhar com aquilo que amam de verdade. Parabéns “Pipoca e Nanquim”.

Daniel Azulay

Publicado em07/04/2020

História em Quadrinhos não é coisa de criança! Ou melhor: Não é coisa apenas para crianças! É uma linguagem extremamente rica e que pode ser usada para expressar qualquer tipo de conhecimento cientifico, jurídico, histórico, artístico e etc. Também em diversos gêneros como terror, erótico, humor, romance policial, ficção cientifica. Para todos os públicos. Inclusive para crianças. E aqui temos um ponto importante porque é na infância que se forma, em grande parte, o gosto pela arte em geral, e pelas HQs em particular. A imensa maioria dos leitores e mesmo dos artistas que se expressam nessa linguagem tiveram seus primeiros contatos com ela muito, muito jovens. Portanto, é preciso estar atento à qualidade e formas de difusão dos Quadrinhos para o público infantil. Daniel Azulay embora tenha trabalhado também com outras linguagens e para outro público, ficou muito marcado por sua obra voltada para crianças. Não teve o sucesso comercial e o alcance de um Maurício de Souza, e nem considero que esse fosse seu propósito, contudo quem cresceu nos anos 1980 seguramente teve contato com seu programa de televisão. Tudo era muito mágico, com um certo ar ingênuo até. Desde verdadeiras aulas de construção de brinquedos com sucatas até a apresentação de seus personagens dos quadrinhos da “Turma do Lambe Lambe”. Professor Pirajá, Xicória, Gilda, Piparote... Impossível para “Jovens anciãos” como eu não sentir saudades. Uma saudade boa, todavia também dolorida. Azulay nos deixou no último dia vinte e sete de março, e aos setenta e dois anos guardava sua inesquecível feição angelical, uma “cara de criança”, feliz e animada. Lutando contra uma

leucemia acabou por contrair o Corona Vírus. É difícil não pensar em quanto ainda perderemos de nossa arte, de nossa alegria e de pessoas queridas para essa pandemia e para a incompetência e/ou descaso de tantos gestores político/econômicos ao redor dessa terra, hoje mais plana do que plena. Embora o coração esteja triste, para nos alegrar os olhos circulam na internet centenas de ilustrações homenageando nosso querido artista, demonstrando como foi importante seu trabalho, como inspirou tantos outros a também produzir arte, a contar suas histórias e a tentar tocar as pessoas. Diante do espelho da morte o que nos resta talvez seja refletir sobre os sentidos da vida, e como só é possível construir esses sentidos: coletivamente. Daniel deixou um legado para toda uma geração. E sim! Sua vida valeu a pena, e sua alma continua... Grande. Que tudo isso que vivemos hoje passe da forma menos cruel possível, e que não nos esqueçamos nunca mais: não existe sociedade saudável sem ciência, sem cultura, sem arte e sem afeto.

O Cartunista do bairro Operário

Publicado em02/06/2020

Valtenio Spindola viveu seus últimos dias na mesma casa em que nasceu – na Rua Jataí, em Uberlândia-MG. Na verdade, depois de trabalhar como Cartunista e Jornalista em diversos jornais de Minas, em Araxá, ou Uberaba e São Sebastião do Paraíso, cidades onde fixou residência em algum período, já faziam alguns anos que pouco saía dos espaços do bairro. Houve uma época na qual nos víamos quase diariamente, e se não o encontrasse em casa, bastava ir até a antiga loja de fotos na esquina, ou ao lado onde ele estaria invariavelmente tomando um café e batendo um papo com o Seo Zé sapateiro, ou vez ou outra o encontrava na rua de baixo, no Boteco e sinuca do Seo Raimundo, um nordestino de quase 90 anos ainda muito forte e bastante sarcástico. Domingo era dia de feira, e também de uma cachaça e torresmo no bar da Janice, do lado de baixo da Avenida Monsenhor... Tudo isso em um raio de menos de 500 metros, esse era o universo, infinito e indiferente ao espaço tempo, que tive o prazer de compartilhar com ele. Depois de ter vencido o salão de humor, publicado livro de quadrinhos, tiras e charges em jornais de grande circulação, e como editor ter sido o responsável pela abertura de espaços para vários autores da cidade, e mesmo sendo profissional há tanto tempo: estava sempre disponível para participar de fanzines com autores eventuais como eu. Valt seguiu fazendo sua charge diária para um jornal local até que este encerrou suas atividades em 2017. Olhando seu trabalho desse período não posso deixar de pensar da frase de Tolstói: “Fale de sua aldeia e estará falando do mundo” – em seus desenhos representava a gente do bairro, sempre havia senhoras estendendo roupa no

varal, baleiros e velhos balcões de madeira de mercearias, não importa qual fosse o assunto tratado, era sempre a partir da voz de uma dessas pessoas “simples” “cotidianas”. A impressão que fica é que o trabalho era feito pensando nos conhecidos do quarteirão, e pouco importava a opinião geral. Valtênio nos deixou há exatamente um ano, no dia 02 de junho de 2019. Foi emocionante ver a enormidade de amigos que apareceram e compareceram para apoia-lo no momento em que tanto precisou. Ele era uma pessoa querida, com uma história bonita. Contraditório e confuso como todos somos, mas definitivamente um ser de sentimentos nobres. A saudade ainda aperta, e nem é assim tão fácil como parece escrever esse texto. Conversávamos sobre Monty Python; os antigos gibis do Mortadelo e Salaminho da RGE; também sobre a época em que havia no cine Bristol uma sala onde se podia fumar e tomar cerveja assistindo aos filmes; sobre o “Allegro non Troppo” e sobre outras coisas que talvez nem existam. Contudo as conversas não eram sempre sobre o passado, fazíamos planos e projetos mirabolantes para o futuro, um deles era criar, em Uberlândia, uma Gibiteca, espaço onde se pudesse, ao mesmo tempo, preservar a produção dos artistas locais e promover atividades e formação para os mais jovens, dessa maneira divulgando a linguagem dos Quadrinhos que tanto nos fascinava e fascina. A casa da Rua Jataí onde ele nasceu e se despediu é das poucas que ainda mantém a arquitetura original: telhado quatro águas, alpendre, janelas de madeira – merecia ser preservada, restaurada e transformada em “Casa dos Quadrinhos de Uberlândia” ou “Gibiteca Valtênio Spindola”.

Quadrinhos, Ciência e Corona vírus

Publicado em28/07/2020

Histórias em quadrinhos tratando de temas científicos não é propriamente uma novidade. Já nos anos 1950, a editora EBAL trouxe a coleção “Ciência em Quadrinhos”, essa publicação, junto com outras de temas históricos e adaptações literárias, fez parte de um esforço da editora em responder ao feroz discurso contra essa linguagem e que a acusava de empobrecer o raciocínio lógico, entre outros argumentos que ironicamente nada tinham de base científica. A verdade é que o tema ciência não é nem um pouco estranho ao universo dos Quadrinhos, desde aventuras onde o Tio Patinhas e seus sobrinhos “viajam” dentro de uma folha mostrando a fotossíntese e demais processos bioquímicos dos vegetais, até aventuras futuristas que estimulam a imaginação científica. Algumas vezes podem pecar por ser excessivamente didáticas e outras por tratar com descuido o discurso cientifico, o que não podemos é acusar as Hqs de ignorar o tema. A preocupação com a divulgação científica entre jornalistas, sobretudo de departamentos de comunicação em universidades, tem crescido bastante, e junto com isso o uso de Quadrinhos como ferramenta de difusão. Como exemplo temos a HQ “Ciclos” de autoria do biólogo Luciano Queiroz e do cartunista Marco Merlin, construída com base em um artigo científico sobre insetos aquáticos, ou a bem humorada série “Cientirinhas”, também de Merlin e grande sucesso na internet. “A história da ciência em Quadrinhos”, projeto da UFOP ou “Os Cientistas”, tira produzida por jornalistas e pesquisadores que buscam desmistificar o cotidiano de quem trabalha nessa área, é publicada diariamente em jornal de Campinas até 2002 e posteriormente em coletânea.

O advento da pandemia da Covid-19 nos mostra que tão urgente quanto criar uma vacina ou descobrir um tratamento eficaz para a nova doença é conseguir informar e formar a população, em geral, para uma compreensão cientificamente pautada da realidade. A despeito da inaptidão, desinteresse e descaso de parte do governo, nós vemos profissionais de saúde, das ciências e da educação e comunicação redobrarem esforços nesse sentido, e as histórias em Quadrinhos estão mais uma vez presentes. Nessa seara temos a “Combate ao Covid-19, todos pela saúde de todos” de Alexandre Montandon e “Super poderes contra o Corona vírus” do Social Comics, ambas com explicações sobre a doença e como se comportar para evitar o contágio. No entanto, lembremos que ciência não é só o que se faz no laboratório com reagentes químicos e microscópios – temos as ciências sociais, a psicologia, a antropologia e tantas outras áreas das Ciências Humanas. E algumas HQs tratando do aspecto social, econômico e político em relação a Covid-19 são realmente surpreendentes, seja pela reflexão que sugerem ou pelo fato de terem sido feitas com tamanha agilidade em relação ao aparecimento do fenômeno de que tratam. São elas: “O Momento”, do autor Sonny Liew de Singapura; e as brasileiras “Pandemia na Quebrada” e “Farol de Quebrada”, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro; e também a reportagem em Quadrinhos “O País não pode parar”, obra de Vitor Teixeira e Guilherme Weimann; todas belíssimas crônicas ilustradas retratando as esperanças e desesperos da luta que vivemos diariamente. Se as histórias em Quadrinhos foram, um dia, negligenciadas como objeto de estudo, penso que no futuro, caso haja algum, os historiadores não poderão compreender nosso tempo sem se voltar também para essa linguagem artística.

As Lojas de Quadrinhos

Publicado em11/08/2020

O cenário de edição e distribuição de Quadrinhos tem mudado – como quase tudo de forma muito rápida. Até, pelo menos, o início do século XXI, grande parte do que circulava da produção nacional nessa linguagem era através de distribuição em bancas, e exigiam tiragens excepcionalmente grandes, o que de muitas formas inviabilizava o aparecimento de novos autores. Sempre houve, é claro, uma distribuição alternativa através dos fanzines e outras formas de publicação, com os autores/editores criando uma grande rede de interação e cooperação. O esforço pela construção e manutenção desse cenário é digno de aplausos. O principal nome entre esses alternativos é provavelmente Marcatti, autor de Frauzio, dentre inúmeros outros títulos. Marcatti, que possui uma pequena “gráfica” em sua própria casa e basicamente produz, edita, imprime, divulga e distribui seu trabalho desde finais dos anos 1970. Quase inacreditável! O momento que vivemos hoje é sem igual na história das HQs Brasileiras em termos de quantidade, qualidade e, sobretudo, diversidade segundo alguns críticos; e isso se deve muito a esse cenário anterior, todavia o surgimento da internet foi o que possibilitou a um grande público conhecer essa produção que estava de certa forma: Represada. E se a internet deu musculatura à cena, outros órgãos que ajudaram construir tal produção foram eventos tais como: o FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte), a inclusão da linguagem no PNBE (Programa nacional biblioteca da escola) com aquisição, por parte do Estado, de grandes tiragens e a consequente criação de demanda por profissionais dos Quadrinhos, os editais de incentivo à cultura,

como o ProAC de São Paulo, espaços que permitiram vir à luz trabalhos de grande vigor artístico e experimentações que raramente sairiam por uma editora tradicional, e por último, mas não menos importante: a expansão das lojas de Quadrinhos. Nos Estados Unidos nos anos 1960, as “Head Shops”, lojas que vendiam produtos ligados às drogas psicodélicas, música e Quadrinhos Underground foram extremamente importantes para a difusão de autores “malditos” como Crumb, por exemplo; Londres tem a icônica Forbidden Planet, entre outras mais “acolhedoras”; Bruxelas tem suas diversas lojas e galerias com álbuns de luxo e originais de autores consagrados. No Brasil essa cultura das lojas especializadas é mais recente, entretanto tem feito de forma brilhante uma parte na consolidação do cenário de Quadrinhos que não pode ser feita por outros meios. A internet é acessível para quase todos, no entanto o volume de informações e a dispersão gerada dificulta o encontro com aquilo que vai cativar nossa sensibilidade. Os editais e eventos são: eventuais. Presencial e permanente, a loja de Quadrinhos é nosso templo, aquele lugar onde dividimos ou colocamos à prova nossas crenças. Encontros com autores/debates com críticos e jornalistas especializados, lançamentos de materiais alternativos dentre inúmeras atividades de suma importância para a costura e consolidação, não apenas de um mercado, mas de uma identidade para o Quadrinho Nacional. Os proprietários dessas lojas não as veem apenas como negócios, muitas vezes são também apaixonados por Quadrinhos, e isso faz uma grande diferença. A Ugra, além de organizar encontros, tem seu próprio selo funcionando como uma editora alternativa, a Itiban participa da organização da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, a Monstra trouxe ao Brasil o David Lloyd - Desenhista do V de Vingança. Em Goiânia, temos a Mandrake entre tantas outras lojas e tantos outros encontros país a fora, não apenas no Rio e São Paulo, como antes era praxe. Mas, como anteriormente dissemos: “As coisas tem mudado rapidamente, infelizmente nem sempre pra melhor”. A degradação política e econômica que o país tem vivido já há algum tempo, somada com a pandemia nesse ano de 2020, deve dificultar muito a sobrevivência de alguns desses espaços. E a interne se por um lado possibilita acesso e visibilidade, por outro pode construir um monopólio extremamente nocivo para o mercado editorial como um todo e para os Quadrinhos em específico. Continuemos a apoiar nossas lojas, a divulgar seus esforços, já sobrevivemos a outras tempestades, e ao fim, o que sobra e o que salva é sempre: a Arte e a Cultura.

Deu na Veneta... Animal!

É muito curioso, ou mesmo estranho, perceber como uma parcela de leitores de Quadrinhos ainda considera essa linguagem algo exclusivo do “Universo Nerd”. Não saberia precisar o tamanho dessa parcela, mas ela é, de qualquer forma, uma ilha. E em uma terra tridimensional e esférica existe uma enormidade de outros continentes a serem considerados. Histórias em Quadrinhos vão muito além de sua face “industrial”, mais visível para desavisados, e por suas repetidas monotemáticas e maniqueístas questões. Nos anos 80 estiveram nas bancas revistas com humor político bastante ácido e muito “sexo, drogas e rock’n roll”, que possivelmente desagradaria hoje a um certo público mais moralista que sobrevoa redes sociais. Entre as de maior sucesso estão as publicações da “Circo Editorial”: “Chiclete com banana”, “Geraldão” e “Piratas do Tietê”; e a “Animal” da VHD Diffusion. Essa última chegou às bancas em 1988, trazendo nomes como: Charles Burns, Massimo Mattioli, Martin Veyron, Jano, Stefano Tamburini, Philippe Vuillemin, Pazienza, entre tantos outros que apareciam pela primeira vez para um grande público no Brasil. Além do icônico encarte “MAU” espaço de experimentação gráfica e literária. Termos como: vanguardista, radical e inusitada são frequentemente usados para definir a publicação. Revistas como a espanhola “El Víbora”, a italiana “Frigidaire” e a norte americana “Heavy Metal”, são consideradas suas referências. Durando vinte e dois números e mais oito edições especiais a publicação infelizmente se encerra no final de 1991. Aos curiosos ou

saudosistas a editora Veneta traz uma nova edição do encarte “MAU” que acompanha gratuitamente a compra de qualquer item de seu catálogo. Rogério de Campos, ex vocalista da banda “Crime” e ativista político, foi idealizador e coeditor da “Animal” até aproximadamente o número onze. Posteriormente escreveu sobre Quadrinhos e outros temas em publicações como “Folha de São Paulo”, “Bizz” e “SET”. Em 1993 funda, junto com André Forastieri, Cristiane Monti e Renato Yada, a editora inicialmente chamada de “Acme”; em 1998 já como “Editora Conrad” publicam o livro “Comic Book, o novo quadrinho americano” com trabalhos de autores representados pela norte americana “Fantagrafics” como: Daniel Clowes, Peter Bagge, Gilbert Hernandez e Joe Sacco, mais uma vez nutrindo o mercado editorial brasileiro com uma alimentação saudável e muito mais saborosa do que os habituais enlatados. A “Conrad” foi também uma das principais responsáveis pela difusão dos “Mangás” no país iniciando com a publicação do clássico “Gen, pés descalços”. A partir de 2012, Rogério de Campos responde como Diretor Editorial pela “Veneta”, que conta em seu catálogo com Robert Crumb, Alan Moore, Milo Manara, Marcello Quintanilha, Cynthia B, Marcelo D’Salete, Juscelino Neco, Ana Luiza Koehler, Wagner Willian e mais uma longa e bela lista de autores, alguns dos quais a editora tem ajudado a levar para além das fronteiras como João Pinheiro e Sirlene Barbosa, premiados em 2019 em Angoulême, pelo álbum “Carolina”, sobre a autora de “Quarto de Despejo”. Trouxe de volta a “Coleção Baderna”, de livros sobre, e de ativismo político, e publicou o livro “Imageria”, onde o próprio Rogério busca exumar o cadáver de alguns assentimentos sobre a história das Histórias em Quadrinhos. A “Veneta” se apresenta com a seguinte frase: “Essa editora tem como responsabilidade social desafiar convenções. Os consensos manufaturados, as autoridades em geral e, se necessário, seus leitores.” E o editor confessa: “Não entendo de Histórias em Quadrinhos”.

Longe de disseminar conflitos geracionais, nada é mais ridículo do que uma conversa que se inicia com: “ah, no meu tempo era...”, mas, se há hoje alguma querela, prefiro dividir um trago com velhos anarquistas do que com jovens nerds.

Bio HQ.

A Linguagem das Histórias em Quadrinhos tem cada dia mais sido usada para tratar de temas científicos. Muitas vezes a questão aparece de forma muito simplificada, apenas como mote para criar uma aventura, o que é já muito muito bom. Muitos quadrinhos tentam aproximar o leitor de questões cientificas, mas via de regra o entretenimento é mais importante que a reflexão e exposição de dados de pesquisas. Mas algumas vezes a ciência é o fato central. Embora não seja uma novidade é ainda raro, se consideramos o volume total da produção, as HQs “cientificas”, ou a exposição de hipóteses de pesquisa em forma de quadrinhos. A mais antiga de que tenho notícia no Brasil é a tese de doutoramento de Momtchilo Russo na Universidade de São Paulo, sobre endotoxinas apelidadas de “Diabos Azuis”, transformada em quadrinhos com a colaboração dos artistas Marilene Pini e Gofredo da Silva Telles, publicada em 1982. Segundo o autor a História em Quadrinhos era ideal para apresentar o trabalho, pois a capacidade de síntese dessa linguagem seria a melhor forma de expressar sua complexidade. No mundo há certamente um oceano de possibilidades sendo executadas, como nos mostra o “erc Comics”. Publicação do “The European Research Concil” dedicada à divulgação cientifica em Quadrinhos. Hoje se tornou urgente e imprescindível que a comunicação cientifica alcance um grande público. Vamos, portanto falar de algo mais recente e mais próximo de nossa realidade, “Bio HQ, Biologia em Quadrinhos”. Publicado pela Zarabatana Books, e realizado por iniciativa de João Agreli, Rosângela

Dantas de Oliveira e Solange Cristina Augusto, todos professores e pesquisadores universitários. São dez Histórias em Quadrinhos resultantes de um “laboratório/diálogo”, da experimentação e interlocução entre natureza, ciência e arte. Buscando aproximar da vida cotidiana conhecimentos bastante específicos da Biologia, nas áreas da Ecologia, Botânica, Zoologia e microbiologia. Os personagens são abelhas, formigas, aranhas, mariposas, vespas e plantas, além de onça e lobo-guará. Enquanto o conteúdo fala da relação de interdependência entre as espécies que compõe um ecossistema, a forma traz a interconexão entre arte e ciência. A obra nos permite portanto refletir, a partir de conceitos e estudos sólidos, sobre nossa relação com as outras espécies e como nossa própria sobrevivência depende de reelaborar essa relação. E sua forma artística nos permite perceber como nós, seres da linguagem, temos a capacidade de difundir nossos conhecimentos e anseios atravessando tempo e espaço, “contaminando” outros indivíduos construindo “redes”, “famílias”, “reinos”, “sistemas”. Falar sobre a diversidade estética e técnica das imagens, e como elas se conectam ao conteúdo é algo relevante, mas não é a pretensão desse pequeno artigo, não deixo entretanto de ressaltar a alta qualidade dos trabalhos apresentados; e destacar como me impressionou a belíssima arte da HQ “Vivendo Intensamente”, ilustrada por Guilherme Marques Ferreira. Mas o mais importante é reconhecer o trabalho de vinte e sete pessoas, entre pesquisadores e artistas e como ele nos é apresentado com unidade e qualidade artística e conceitual. E o esforço em resistir à uma maré de obscurantismo anticientífica e antiarte. Isso é o mais importante, a ser apoiado e comemorado nesse momento.

Algum governo, ou política de estado minimamente séria, adotaria esse trabalho como material paradidático nas escolas públicas, pois ele mostra não apenas o potencial da ciência e da arte na educação, mas o que é possível fazer quando essas duas dimensões da vida humana se unem, e a universidade salta seus próprios muros.

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