Revista ESCRITORES DO BRASIL, edição 8 de agosto/2020

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LITERATURA BRASILEIRA PARA O MUNDO Florianópolis, SC Agosto/2020 Número 08 Edições A ILHA Ano 02

NA PANDEMIA, A ARTE QUE SALVA ENTREVISTA INÉDITA DE GUIMARÃES ROSA EDIÇÃO ÚNICA DA OBRA DE LEDO IVO

FRANKLIN CASCAES, UM GIGANTE EM FLORIANÓPOLIS

LEMINSKI: LOUCO, MODERNISTA E MUSICAL


SUMÁRIO EDITORIAL......................................... 3

E MUSICAL.......................................34

VIDA E COR........................................4

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS.......................... 37

LIBERDADE........................................4 FRANKLIN CASCAES GIGANTE EM FLORIANÓPOLIS......................... 5

POEMA DE SETE FACES................. 38 CABELOS.......................................... 39

COPACABANA, MINHA CRENÇA..... 8

ANINHA E SUAS PEDRAS...............40

DIA DOS PAIS INVERTIDO................ 9

CANÇÃO DO DIA DE SEMPRE........41

GRITO NO SILÊNCIO....................... 10

NÃO HÁ VAGAS...............................42

JORNADA DA NOITE........................ 10

ANJO DALTÔNICO...........................43

POESIANDO HÁ 40 ANOS................ 11

A INFÂNCIA......................................44

A POESIA POSSÍVEL.......................14

“O CORVO” – NUNCA MAIS.............45

LEMBRANÇAS.................................. 15

DESNUDEZ DA SAUDADE...............47

ROSAS NO AMANHÃ....................... 16

CANÇÃO DA ALVORADA................47

AUDÁCIA OU CAUTELA?................. 17

A POESIAS NECESSÁRIA QUE FAZ A VIDA MAIS FÁCIL........48

MADRUGADA................................... 19 O LAGO............................................. 19 OCA.................................................... 20 POEMA EM CONSTRUÇÃO............. 22 PALAVRAS NUAS............................ 25 CÉU SEM NUVENS........................... 25 A CAMINHO DO MAR...................... 26 VENTO SUL....................................... 27 AS RENDEIRAS DA LAGOA DA CONCEIÇÃO................................ 27 PROVOCANDO A POESIA................ 28 O TEMPO........................................... 30 GONÇALVES DIAS, O GRANDE POETA DA PRIMEIRA GERAÇÃO ROMÂNTICA .................................... 31 CANÇÃO DO EXÍLIO........................ 32 PAISAGEM COM ACENOS.............. 33 LEMINSKI, POETA LOUCO, MODERNISTA

ESTES SÃO OS POEMAS:................49 ALTIVA ELEGIA............................... 51 LAREIRA DA AMIZADE................... 51 UM SER DE LUZ!.............................. 56 PÁSSARO AZUL................................ 57 LUVA SEM PAR................................ 58 AS GARÇAS DA LAGOA.................. 59 INVENTÁRIO DE UM POETA.......... 61 A ILHA - QUARENTA ANOS DE LITERATURA.............................. 62 SONHO...............................................64 A AÇÃO DE FARQUHAR EM SANTA CATARINA.................... 65 CULTIVE........................................... 68 PANDEMIA: A ARTE QUE SALVA...................................... 69 LITERATURA EM TEMPO DE PANDEMIA................................. 71

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EXPEDIENTE Literatura brasileira para o mundo Edição número 08 – Agosto/2020 Publicação das Edições A ILHA Grupo Literário A ILHA Florianópolis, SC Editor: Luiz Carlos Amorim Contato: lcaescritor@gmail.com grupoliterarioailha@yahoo. com.br Grupo Literário A ILHA na Internet: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br Todos os textos são de inteira responsabilidade dos autores que os assinam. Contate com a redação pelos endereços: lcaescritor@gmail.com lcaeditor@bol.com.br Veja a página do GRUPO LITERÁRIO A ILHA – ESCRITORES DO BRASIL no Facebook, com textos literários, informações literárias e culturais e poemas e a edição on line, em e-book, desta revista.

EDITORIAL VOLTANDO, APESAR DA PANDEMIA A edição de número 8 desta revista deveria ter saído em maio, mas devido à pandemia do novo coronavírus que abateu-se sobre o mundo, decidimos pular aquele mês e a edição 8 de ESCRITORES DO BRASIL – Literatura dos brasileiros para mundo, sai agora, quando na verdade deveria sair a edição 9. Entregamos a vocês uma edição encorpada, recheada de prosa, poesia, informação literária e cultural da melhor qualidade, com um time de ótimos representantes da literatura brasileira contemporânea e clássica. Sim, clássica também, porque não podemos nos esquecer dos nossos grandes escritores, dos grandes nomes da nossa literatura. Vamos lê-los, pois eles são imortais através da sua obra. E comemoramos, também, os quarenta anos do Grupo Lilterário A ILHA, o grupo que publica esta revista através das Edições A ILHA. A revista SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA, edição 153 de junho, saiu no prazo, apesar do confinamento pelo qual passamos por causa da covid 19, pois junho é o mês do aniversário da revista e do grupo e não poderíamos deixar de comemorar com a publicação mais perene do gênero, que também completou quarenta anos. Então vamos comemorar, com muita literatura. O Editor Visite o Portal do Grupo Literário A ILHA:

PROSA, POESIA & CIA

em Http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br

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POESIA

LUIZ CARLOS AMORIM VIDA E COR No meu jardim, meu pé de manacá-da-serra, O jacatirão de inverno, explodiu em cores, tão cedo, em fins de abril - ele floresce em julho para me lembrar, festivo, que o frio está chegando e que a vida floresce também no Inverno

LIBERDADE A poesia Ficou presa Na ponta do lápis Na ponta dos dedos Sem querer abandonar A alma do poeta. É preciso Libertar a poesia! Só ela poderá Salvar o mundo.

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MATÉRIA DE CAPA

ESPECIAL FRANKLIN CASCAES GIGANTE EM FLORIANÓPOLIS Está fazendo quase três anos que o mural de Franklin Cascaes, o nosso grande escritor e pesquisador da cultura açoriana e do folclore catarinense, foi retratado em painel de 34 metros de altura por 12 metros de largura, na capital catarinense, Florianópolis. Dá-me orgulho ver que nossos artistas contemporâneos – como aqueles que estão pintando os murais – estão colocando nossos grandes nomes da cultura catarinense ao alcance dos olhos de toda a gente, para que nos lembremos de que eles existiram, graças a Deus, e que a obra deles está aí, para que a conheçamos e a admiremos, para que a gente volte a lê-la e a divulgá-la, pois é um patrimônio cultural eterno. Precisamos valorizar a obra de nossos grandes escritores, precisamos incentivar a sua leitura, pois sua obra merece ser recriada sempre e sempre. Depois de nosso Cascaes,

o escritor que estabeleceu a magia da Ilha, com suas histórias fantásticas de boitatás, lobisomens, fan-

tasmas, feiticeiras, bruxas e embruxados no cenário da Ilha de Santa Catarina e do mar de Coqueiros, no continente, com suas pedras gigantes brotando do mar, que seriam as bruxas petrificadas, tivemos o nosso poeta Cruz e Sousa. O Grande Cisne Negro, o maior simbolista brasileiro, está com o cisne que o identifica e um seu poema, “Devaneio”, em outro con-

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junto de murais.E mais recentemente, Antonieta de Barros também foi retratada em outro mural, imortalizando-a. (LCA) A homenagem ao escritor e pesquisador da cultura açoriana Franklin Cascaes tem chamado a atenção no Centro de Florianópolis, entre as ruas Vidal Ramos e Tenente Silveira. Aos poucos, o que era só mais uma parede em meio a tantas que compõem o aglomerado de prédios foi se transformando numa tela multicolorida graças ao grafite. Se estivesse vivo, Cascaes completaria 112 anos no dia 16 de outubro. A homenagem na região central da cidade demorou uma semana para ser feita. “Nessa proporção de trabalho, que ele é gigante, para passar as medidas para ele ficar perfeito igual ao Frank – não era para ser uma caricatura do Franklin, era para ser o Franklin saindo da parede. Então a


gente usa projeção urbana no período da noite, pega as principais linhas e depois, ao longo do dia, com sprays e com as escolhas de cores a gente vai dando profundidade e realismo pra obra”, disse o grafiteiro Valdi Valdi, um dos responsáveis pela obra. A tela gigante foi financiada pela Lei de Incentivo à Cultura, por meio da Fundação que leva o nome do homenageado. Bio - Franklin Joaquim Cascaes nasceu em 16 de outubro de 1908, na praia

de Itaguaçu. Filho de Joaquim Serafim Cascaes e Maria Catarina Cascaes, Franklin era descendente de açorianos; seus avôs paternos, inclusive, desenvolviam atividades típicas dessa cultura, como o trabalho na roça, a pesca, a produção de farinha e açúcar em engenhos e a criação de gado. Na década de 1930, Franklin Cascaes passou a frequentar o Liceu Industrial de Florianópolis no turno da noite, onde trabalhou como auxiliar de mestre e contramestre na oficina de modelagem. Poucos anos mais tarde, foi convidado a dar aulas de desenho na mesma instituição, o que marcou o início de sua carreira como professor. Essa carreira, aliás, durou por quase trinta

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anos. Por volta de 1946, Franklin começou a realizar uma vontade antiga: percorrer a Ilha de Santa Catarina em busca de vestígios da cultura açoriana. Preencheu centenas de cadernos com histórias, rezas, hábitos e costumes tradicionais, sempre procurando respeitar o modo de falar do ilhéu. Mais tarde, dedicou-se à elaboração de peças de arte e literatura que retratavam histórias e personagens fantásticos, como as famosas bruxas. Tamanho empenho, contudo, não era visto com bons olhos por todos. Para grande parte do meio acadêmico, por exemplo, faltava a Franklin Cascaes rigor científico, o que parecia invalidar todo o seu trabalho. Também foi por conta da falta de rigor científico que Franklin não foi convidado para participar do Primeiro Congresso de História Catarinense, em 1948, cujo tema era o bicentenário da colonização açoriana. Bruxas dando nós em caudas e crinas de cavalos. Madame Estória conta que


as mulheres bruxas costumavam, para levar cabo suas malvadezas bruxólicas, roubar cavalos nos pastos e potreiros, fazê-los galopar pelos ares e dar nós indesatáveis nos rabos e nas crinas deles. “Ilha rodeada pelo incomensurável, o desconhecido que atrai e assusta, batendo furioso contra as rochas e transportando as bruxas em suas viagens noturnas sobre vassouras ou em baleeiras roubadas dos pescadores.” As lendas contam sobre dois tipos de bruxas: a terráquea, bruxa por opção própria, e a espiritual - predestinada, devido ao fato de ser a primeira ou a sétima filha de um casal sem varões. De acordo com a tradição, para se evitar essa maldição, a irmã mais velha deve batizar a mais nova. O Boitatá - “Este Boitatá está passeando sobre a Ilha de Santa Catarina. É meia-noite. Ele está apreciando, lá de riba as sessenta praias que ela possui, brancas quiném jasmim. Para afugentá-lo a pessoa que o avista deve chamar a

outra que estiver mais perto e gritar assim: zenobra trás a corda do sino mode amarrar o boitatá que ele anda por aqui. Ele foge imediatamente do mundo fascinante da fantasia humana”. Os Lobisomens - Já os lobisomens apareciam com muitas formas. E a transformação, segundo os ilhéus, era assim. Diziam que no meio da noite, o sujeito ia até o lugar onde um animal estivesse deitado. Qualquer

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animal: cachorro, boi, vaca, porco. Ele então levantava o animal, tirava a roupa e rolava no chão, no calor do outro animal. Aí ganhava a metamorfose de lobisomem, porque ele nasceu com aquele instinto de ser lobisomem, porque ele já tinha toda a propensão. Livros de Franklin Cascaes: “O Fantástico na Ilha de Santa Catarina I e II” e “Mitologia Marinha – Desenhos de Franklin Cascaes”.


POESIA

PIERRE ADERNE COPACABANA, MINHA CRENÇA Copacabana, minha crença A tua curva é meu recanto, Copacabana, princesinha do mar tua areia já foi o meu manto quando eu não tinha onde morar. Já chorei olhando o forte no balanço das ondas do posto seis oferendas a Iemanjá joguei a sorte trinca de ases, dupla de reis

tua orla foi minha procissão nas noites onde o vento era amigo tantos poemas, uma paixão tu só me queres como amigo se amanhã o mundo decidir acabar e tu deixares de existir saiba que serei um novo Deus e um novo mar hei de parir.

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CRÔNICA

LUIZ CARLOS AMORIM DIA DOS PAIS INVERTIDO Nesse Dia dos Pais, quero inverter a ordem das coisas e homenagear minha filharada. Quero agradecer-lhes, minhas filhas, nesse dia e em todos os outros, pelo privilégio e pela honra que Deus me deu de ser o pai de vocês. E agradecer a sua mãe, também, por ter me dado vocês, nosso maior tesouro. Quero dizer-lhes que eu só tive a exata noção do que é ser um ser humano completo e feliz depois que vocês chegaram. Que os filhos dão um objetivo maior à vida da gente, que depois que eles chegam, a gente tem uma razão maior para viver. Que muito do que aprendi na minha trajetória por este mundo de Deus, até aqui, foram vocês que me ensinaram. Não trocaria o orgulho e o privilégio de ser pai de vocês por absolutamente nada neste mundo. Vocês cresceram e cada uma está trilhando o seu próprio caminho e eu fico

aqui torcendo pelo sucesso de vocês. E tenho certeza de que Ele estará sempre presente em suas vidas, porque sei da educação que tiveram. Sinto falta de vocês – filhos são sempre

crianças, não importa a idade que tenham – pois nossa casa parece insistir em me lembrar que está faltando alguém. Mas aí eu penso que é assim mesmo, que pais são aqueles seres que ficam aumentando a casa até que, quando ela está pronta, do tamanho ideal – grande demais -, os filhos começam a sair do ninho para terem as suas próprias casas. É a ordem

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natural das coisas. Então o meu beijo e o meu abraço a vocês, sempre, pois vocês são o maior presente que eu poderia desejar. E me sinto abraçado, beijado, amado, mesmo que vocês, a minha filharada, não possam estar aqui, pois tenho, na memória, muitas pastas com uma quantidade enorme de arquivos cheios de abraços, beijos –melados, lambuzados, molhados, alguns deles, dos quais gosto tanto quando dos outros – e faço uma releitura deles, desde a mais remota infância de vocês até recentemente, quando a juventude plena e a vida adulta lhes chegou e a vida lhes mostrou seus próprios caminhos. E enquanto não posso abraçar vocês, abraço a sua alma, o seu espírito, e mato um pouco da saudade. Feliz Dia dos Pais e feliz Dia dos Filhos, minhas filhas. O meu é feliz porque eu tenho vocês.


POESIA

ADIR PACHECO GRITO NO SILÊNCIO ...E o grito feriu o silêncio Na amplidão da noite, Sob a angústia dos tristes Ante a alma inquieta. No concerto da noite, A música da solidão Entre lágrimas vivas Na metafísica dos espinhos. É simplesmente um ser De olhar para o teto, No grave repouso Entre guardados perdidos Abraçado ao vazio. Sob o canto da noite, Os cabelos grisalhos Na contagem do tempo, E este instante infinito Ante este espaço Do sidéreo firmamento.

JORNADA DA NOITE Enquanto a noite desce sobre a face triste Uma voz grita no palco do destino, E entre portas abertas o tempo assiste Traços de mistério num silêncio clandestino. E a jornada da noite avança célere Adentrando os espaços místicos das ruas Entre vultos enamorados se insere Pelas calçadas da madrugada sob a lua. Entre os limites da alquimia do universo Essências navegam notívagos sonhos Sementes de esperança e dias risonhos Atmosfera eloquente do espírito imerso. E a noite segue plena de incertezas Compactuando com sentimentos diversos Tendo a lua altiva espargindo belezas Despertando inspirações em prosas e versos.

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RESENHA

CELESTINO SACHET POESIANDO HÁ 40 ANOS Lá pelo final dos anos 30 – claro que do século passado -, na então Escola Primária, hoje Ensino Fundamental, um garoto morando quase em plena floresta que subia pelas montanhas, logo ali, tinha que aprender na lista dos “acidentes geográficos”: - Ilha é um pedaço de terra cercado de água por todos os lados. E a garotada, só de meninos, porque as meninas estudavam na sala ao lado, o garoto calça curta, pés descalços, boca quase fechando,

São Francisco do Sul, SC

dizia no ouvido do colega o resto da frase: - cercada de água por todos os lados, menos por baixo e, menos ainda por cima, senão a ilha desaparece. Na escola, ali no sul do Estado, quase nos beiços do Rio Grande do Sul, aprende-se que em Santa Catarina duas ilhas estavam plantadas à beira-mar: em São Francisco e lá em Florianópolis. A primeira encostando no Paraná, e a segunda, lá na metade do Estado, onde vivia a capital de Santa Catarina.

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São Francisco ficava marcada pela distância e pelo mistério que povoava a cabeça da turma. Como o garoto nunca tinha visto o mar – e, muito menos uma ilha-, era difícil engolir o que era essa tal de ilha que aparecia na escola. Nos anos escolares mais à frente, era comum a escola entrar em outras palavras como romance, crônica, conto, poesia, poema que, frequentemente, falavam em literatura e crítica literária. Continuando seus estudos, mais tarde, até em Florianópolis, além de morar em uma ilha cercada pelas águas do mar, lá pelos anos 70, o agora professor universitário entrou em contato com os escritos de Luiz Carlos Amorim, que em agosto de 1979 publicou um livro com o arrojado título “Velhas histórias jovens” - contos e poemas. Logo na abertura da obra, a apresentação: “Sou funcionário do Banco


do Brasil e frequento o segundo ano da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Joinville. Ao longo de cinco anos, minha voz esteve plantada na coluna “Correspondente Musical” dos “Diários Associados” de Santa Catarina, de “A Notícia” de Joinville e outros jornais do Estado, além de uma coluna de contos. O conto “Caprichos de Neli” recebeu um prêmio em dinheiro da “Revista Rainha”, nos anos 70. O primeiro livro de Luiz Carlos Amorim, o “Velhas histórias jovens” enriquece 50 páginas com o poema “EU”, filosofia, religião, credo literário: “O que sou? / Sou um homem, / um robô / ou um fantoche? / Sou alguma coisa perdida no vazio, / um amontoado de incertezas, / sou um todo de conflitos. / Sou a lágrima que não rolou, / sou um crente descrente, / sou um nada... / Sou o desencontro do amor, / o sentimento contido, / o sorriso que não veio... / Não sei quem sou, / ou o que sou. / Não sei mesmo se existo...” Em junho de 1980, um acontecimento inesperado na ilha de São Francisco: o desembarque, na Praça

Central, de uma Revista, com 16 páginas, formato 15,5 x 21,5, com o título A ILHA, Suplemento Literário, com o aviso, logo na abertura: “É preciso que se faça um movimento e se mostre o que a gente francisquense está escrevendo. Este suplemento literário nasceu para isso. Sim, porque temos gente que escreve, temos gente fazendo literatura.” A primeira edição de A ILHA reuniu sete autores e prometia reunir o dobro na

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próxima edição. E, hoje, os francisquenses pioneiros de uma caminhada no poesiar-se, merecem palavras e foguetes por estarem abrindo mais uma história para a Literatura dos Catarinenses gerada em uma revista, capitaneados por Amorim, vendo as centenas de escritores revelados desde então. E A ILHA, Suplemento Literário, em cada trimestre dos quarenta anos de sua trajetória, abre espaços na Cultura dos Catarinenses. Em 1982, o Grupo Literário A ILHA e seu protetor transferem-se para Joinville. E, ali, florescem ambos, até 1999. Do ano 2000 em diante, as vozes dos autores e as letras passaram a soar em Florianópolis, nos povos de língua Portuguesa na Europa e na África. E outros contos luso-catarinenses contam e cantam a personalidade da arte literária dessa nova ILHA que veio à luz, em São Francisco do Sul. As mudanças e terremotos cibernéticos e digitais, hoje, levam a publicação para novas terras e outras mentes que tomam corpo embarcadas no impulso


elétrico. E AILHA continua caminhando, corpo e alma, nela mesma e em sua irmã gêmea, ESCRITORES DO BRASIL, com o mesmo formato – talvez o layout um pouco diferente da avó de 1980. Mas, agora, o recheio é ostensivamente outro. Dentro dos números publicados, a partir de 2018, as capas de cada edição, esteticamente coloridas, envolvem o leitor ao percorrer o texto animado entre outros gênios de nossa literatura, pela presença de Quintana – que fala sobre ele mesmo; de Raquel de Queiroz, a dama das letras; pela face doce de Cora Coralina; pela seriedade de Drummond, pelo rosto respeitado de Cruz e Souza, e tantos outros ícones da literatura brasileira e universal. As Edições A ILHA, trazem hoje para campos

todo o mundo, divulgando a literatura dos brasileiros internacionalmente. A edição anterior teve mais de cinco mil acessos, até agora, com leitura nos quatro cantos do mundo. E a produção do escritor brasileiro ultrapassa fronteiras, alcançando leitores em todos os lugares. E comparece, dentre tanta prosa e tanta poesia, este e v á r z e a s d o p o e m a , poema de Luiz Carlos os ” Poetas da Ilha”, Amorim: antologia dos versos de Júlio de Queiroz, Luiz - É preciso Carlos Amorim, Cláudia salvar a beleza Kalafataz, Maria Lúcia que emana da poesia. Lisboa, Maura Soares, É preciso ser poesia Rita Marília. para agitar Na revista “Escritores o que está preso d o B r a s i l L i t e r a t u r a na garganta para o Mundo”, feve- e sussurrar vida reiro de 2020, o edito- ao pé do ouvido. rial abre o texto com E a poesia e s t a p r o c l a m a ç ã o : “ A é o brado da alma revista continua a fazer é a voz da emoção sucesso aumentando de a cor da razão. tamanho e aumentando Então, s u a p o p u l a r i d a d e p o r Poesio-me !

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POESIA

AFONSO ROMANO DE SANT´ANNA A POESIA POSSÍVEL Uma geração vai, Outra geração vem. Quando eu era menino e meus pais e tios contavam da ditadura que demorou quinze anos, partiu vidas em duas, entre censuras, políticas e torturas, eu os olhava como uma criança olha o desamparo de um adulto. Hoje, minhas filhas me perguntam sobre esses quinze anos de outra ditadura que me sobreveio em plena juventude

e eu as olho como adulto, olho o desamparo da criança. Tenho quarenta anos. Escapei de afogamentos e desastres antes e depois das festas e atravesso a zona negra do enfarte. Em breve estarei sem cabelos e com mais rugas na face. Quando vier de novo nova ditadura, estarei velho e com tédio frente ao espelho contemplando o desamparo em que vou deixar meus netos.

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CRÔNICA

MAURA SOARES LEMBRANÇAS Embora não querendo, as lembranças me assaltam nesta hora matutina. Lembranças de olhares, de sorrisos furtivos, de mãos se entrelaçando, de bocas se entregando, de corações palpitando. Nesta hora matutina, ainda sob as cobertas, neste inverno/primavera que não se decide, lembro do aconchego, de beijos dados antes do amor. Amor fugidio que se foi como tantos outros e deixou para trás coração solitário que amarga as saudades das venturas passageiras.

Doces lembranças de beijos regados a vinho, de olhares profundos como a querer gravar na retina para sempre o enlevo do amor. Doces lembranças de tempos em que o amor construído ficava para sempre, mas que, nos dias atuais, passam como a brisa da tarde. Amores fugidios, que chegam, se instalam, vivem momentos de ternura, de aconchegos sob as cobertas e, saciados na libido, partem para viverem suas corriqueiras vidas, às vezes sem entusiasmo, sem valor, mas

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vida a ser vivida pelo comprometimento. Pelo dever a ser cumprido. Amores passageiros que deixam nas mais das vezes, os corações aflitos a ansiar pela volta que não mais acontecerá. Palavras ditas nos momentos de enlevo ficarão guardadas nas memórias que poderão um dia se tornarem versos e se transformarem em poesia... Doces lembranças... Palavras ternas... Beijos e encontros de corpos no calor da paixão... Lembranças... Nada mais.


POESIA

SILVINHA SCHMIDT ROSAS NO AMANHÃ Tempo, dá-me um minuto a mais para viver, para sentir, para não ver as rugas surgindo, os calos marcando o caminho da minha existência… Dá-me uma hora a mais para recomeçar, retocar o fim; plantar sementes nas trilhas de hoje para as ver florir quando passar; para compreender as marcas no rosto cansado, a fraqueza nos pés doloridos, a trilha estreita que leva ao horizonte. Tempo, dá-me um tempo para eu entender que a vida passa, para eu não me perder nas lembranças de ontem e esquecer de me encontrar hoje. Dá-me um tempo para eu me acostumar com a idade que chega, com a vida que me leva as forças e, para com mais convicção, acreditar que o amor ainda é o caminho mais forte, a certeza mais certa de que haverá um amanhã.

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CRÔNICA

MARIA TERESA FREIRE AUDÁCIA OU CAUTELA? À frente de decisões titubeio. Escuto duas vozes debatendo dentro de minha mente. Uma delas, masculina, me incita a desbravar o desconhecido, a audácia. A outra, feminina, me aconselha ao cuidado, à cautela. Um burburinho danado entre o audacioso, com um timbre imperioso e a cautelosa, com uma sonoridade branda, se enceta. E a cautela, cujo tom denota uma mulher recatada e cuidadosa pergunta: “de que me serve tanta audácia se tenho que arcar com consequências posteriormente?” Mas a voz forte e sonora se inflama e questiona: “que consequências são essas de que tanto reclamas? Pois antes de qualquer confusão que tu alegas, passastes por momentos excitantes que te animaram a vida!” A cautela tenta replicar, mas a voz firme e cadenciada do audacioso

se sobrepõe e segue expondo seus argumentos. “Teus momentos foram inusitados com arriscadas ações, às vezes hilárias, por outras até beirando o perigo que te deixaste com a respiração em suspenso. Ávida de curiosidade, tu te lançaste em novas empreitadas que te renderam homenagens, apoios e aplausos. Desejosa de novas emoções, tu te dedicaste a tentar novos amores que te fizeram suspirar

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e sonhar com prazeres indescritíveis.” A audácia continua sua exposição, deixando a cautela assombrada com tantas atitudes tomadas que revelavam sua alma também formada por audácia, mas que ela não conseguia enxergar ou admitir. Todavia, a audácia, incomplacente, retoma: “impetraste viagens para locais díspares, atraída pelo excêntrico; aceitaste a incumbência de liderar grupos para fomentar interesses


criativos; trocaste a segurança do lar familiar para aventurar-te em profissão incomum; afirmaste tua independência e liberdade, livrando-te de qualquer domínio familiar e de jugo social, e tiveste outras atitudes que considero corajosas”. Ao refletir sobre as verdades ditas, cautela repõe: “tu enumeras tarefas que me foram confiadas e nem tanto audaciosas. Não foi preciso tanto audácia, mas sim coragem e otimismo para organizá-las e con-

cretizá-las.” “Apesar de não concordar contigo, vejo que não reconheces a audácia presente em tua vida e que podes seguir nesse rastro e até dar-te ares de mais audaciosa”, provoca a própria audácia, na voz masculina fremente, que faz esganiçar a complacente voz feminina. “Acreditas que, por ser eu a própria cautela, pressinto o perigo das pessoas descobrirem o verdadeiro sentimento que abrigam dentro de si mesmas? De que,

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às vezes, a aparência fria e distante esconde, verdadeiramente, uma natureza calorosa e até carinhosa? Com medo da decepção ou da manipulação? Também crês que evito descobrir falsas identidades ou falsos comportamentos, sejam por motivos justos ou injustos? Pensas que, cautelosa, impeço a sedução de um homem bonito e convincente? Que driblo o engano de quem quer que seja por qualquer coisa que seja? Tens razão! A cautela me livra de erros, falsidades, fingimentos e outras situações desagradáveis.” “Ah! Cautela! Estás a afastar partes boas da vida por medo. Enfrentas teu medo! Enfrentas teu temor em viver plenamente! Resistes aos arrojados ou àqueles com atitudes temerárias, ou ainda, àqueles com excessiva animação. Não temas sentir fogo em teu sangue. Não és valente, nunca foste valente? Ou preferes esconder-te atrás da covardia para não provaste os sabores picantes da vida? Audácia ou cautela? Ou preferes audácia E cautela?


POESIA

SELMA FRANZOI DE AYALA MADRUGADA Vi você nesta madrugada em meu melhor sonho… Revi você, no frio desta madrugada, em minha maior saudade… E chorei. Chorei na madrugada no frio da minha saudade, imensa saudade de você…

O LAGO Vejo na passagem, imagens, visagens num lago espelhado pelas sombras de árvores outonais... Vejo na passagem, imagens, visagens num lago espelhado pelas sombras de árvores do triste outono da minha saudade...

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CRÔNICA

URDA ALICE KLUEGER OCA

Estamos aqui neste abrigo que ainda não sei direito o que é. Caverna? Acampamento? Castelo? Palácio? Lar? Sim, aqui é tudo isso um pouco, e tanto acampamos quanto nos abrigamos e vivemos coisas das mais simples e coisas culturais, como uma mesa de Páscoa que fiz faz dois dias, porque um pedaço do meu coração ia chegar para passar a Páscoa. A visita acabou não podendo vir mas a mesa de Páscoa está posta, com um coelhinho terno e orelhudo, que eu achei encantador quando comprei, chocolates e pralinés, sem faltar o Diamante Negro e o Sonho de Valsa, que eram os chocolates que o meu pai nunca deixava faltar nas ocasiões especiais da minha infância

e que eu também não deixo faltar na minha emoção. Sem dúvida que aqui é um lar onde vivemos nós seis, mais muitas formigas, pressurosas aranhas e tantos outros bichinhos que nem dá para saber de todos. Não vivem as baratas porque ponho poderoso repelente para elas, tanto me amedrontam – por causa de uma barata sou capaz de subir sobre a mesa! Já com os outros bichinhos dá para conviver, embora sejam necessárias, às vezes, algumas medidas drásticas, como espalhar veneno em certos espaços do chão para salvar das formigas a comida dos gatos e cachorros. Tem bichinho que é bem útil, como certos minhocões de consistência dura que entram em casa anunciando que no dia seguinte vai chover. Tenho o maior respeito por eles e detesto quando acontece de pisar em algum – quebra-se a sua casca dura e se espatifam inexoravelmente. E apenas queriam se esconder da chuva, esses

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moradores daqui do entorno deste abrigo. Então estamos aqui em seis, e cinco de nós somos felizes, cada qual da sua forma, menos Manuelita Saens, minha gatinha querida que nunca foi feliz aqui. Penso muito nela enfurnada lá no forro disto que também poderia chamar de estábulo, pois apesar da falta de cavalos e vacas há uma porteira separando o espaço, porteira que eu pedi para o Willy fazer quando fiz as cirurgias de catarata, pois temia que Tereza Batista, a minha cachorrona malhada de amarelo e branco, que sempre gosta de me cheirar delicadamente quando estou dormindo, pudesse aparecer ao lado da minha cama e, delicadamente, também me fazer um carinho com sua comprida pata – num dos


meus olhos recentemente operados. A porteira que o Willy fez acabou ficando, o que quase impediu de vez de Tereza latir em Manuelita, aquela gata que ela não consegue entender, pois não vem brincar e fazer escândalo como a gatinha Domitila, que diariamente tira hora ou mais para brincar escandalosamente com Tereza, encarando os trinta quilos de Tereza com os seus dois quilos de elástico que se contorce e berra sob as patas de Tereza, estimulando-a a mais cheiradas e mordiscadelas. A vida de Manuelita, aqui, não é feliz. Ela tem uma entrada para o forro do nosso abrigo, e fiz um apartamento para ela numa prateleira alta que dá para essa entrada, onde troco toalhinhas limpas como se fossem tapetes, e onde ela tem água e tanta comida quanto quer. Ela já arrancou uma tábua desse forro em cada peça desse

lugar, e lá de cima acompanha a vida aqui embaixo, e pode sair de lá por diversas entradas, como lá pelo covil onde fica a máquina de lavar roupa ou as muitas janelas dos fundos, e ela vai e vem, para a floresta dos fundos, terrenos baldios cheios de verdura ou mesmo para a roça de Dona Julita, onde às vezes a vejo de longe, toda desconfiada, tocaiando um passarinho e com muito medo de tudo. Nunca sei quando ela vem ou quando vai, no entanto. Tem pezinhos de pelica e não faz barulho nenhum e nunca sei se está ou não – a não ser quando ela quer. Então aparece no buraco onde tirou uma tábua no corredorzinho da parte íntima da casa, e me chama, muito queixosa e bem baixinho: - Mio... – quase como se soprasse aquele mio, única concessão que faz à minha angustiada preocupação para com ela, e então, ou quer comida, ou quer conversar, e então eu fico embaixo falando com ela, dizendo coisas assim: “Manuelita, tu te lembras como tu eras pequena e gritona lá na gaiolinha do pet shop, e como eu te levei para casa de carro, coisinha de nada, o Atahualpa querendo saber o que era aquilo...” – e conto mais uma porção de coisas

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da curta vidinha dela, que nem sabe que é famosa, com livro e tudo, e penso na vida que tinha em Blumenau e que tem aqui, onde, apesar de tudo, é muito mais livre aqui do que lá, onde soube que a síndica, agora, além de perseguir os cachorros, está a perseguir os gatos, aquela mal amada, de quem nem quero nem lembrar. Então Manuelita vive a sua vida do jeito dela e nós vivemos a nossa do nosso jeito, e neste momento Atahualpa enterra um pão de queijo na cama, quase debaixo das minhas pernas, para sentir o seu tesouro bem seguro, e um pouco antes vi vídeos sobre a Albânia, esse país quase desconhecido, de onde vem a ideologia do PC do B, tanto quanto sei. E os dias seguem, Lula está preso e é muito difícil viver no meio das barbaridades lá de Brasília. Por sorte tenho os meus bichinhos.


POESIA

JACQUELINE AISENMAN POEMA EM CONSTRUÇÃO Perdeu-se além? Sobrou o riso dos fingidos que não vale vintém! E a dor dos vencidos, será que tem fim? Talvez… se os preteridos tiverem chance também! Mas por enquanto há na vida o freio. Esperemos. O que ainda não veio talvez ainda vejamos. Os versos estarão sempre em construção. Uns contra os outros uns se encostando nos outros… Fora da rima há salvação.

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ENTREVISTA

ENTREVISTA COM GUIMARÃES ROSA

Entrevista RARA de João Guimarães Rosa com Walter Höllerer para um canal de televisão independente em Berlim, em 1962. São as únicas imagens em movimento do escritor. Imagens que nunca foram ao ar, retiradas do documentário "Outro Sertão", dirigido por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, que encontraram o vídeo numa pesquisa de mais ou menos 10 anos sobre a relação do escritor com a Alemanha. Rosa apresenta o livro “Grande Sertão: Veredas” e também outro de contos, “Primeiras Estórias”. Fala sobre seu processo de escrita. Lembremos que ele havia sido embaixador em Berlim em 1936, tendo ajudado diversos judeus a fugirem da Alemanha Nazista. Percebam que, embora responda em português, ele entende as perguntas do entrevistador alemão.

escritor. Não é difícil conciliar? Guimarães Rosa: Sempre, cada vez mais difícil. A diplomacia começou a exigir tempo integral e a literatura também. Apresentador: Às vezes, tem-se a impressão de que a poesia se torna diplomática e os diplomatas mais poéticos. Vamos falar de sua obra: o senhor tem um romance publicado. Qual o título? Guimarães Rosa: O título do romance é difícil de traduzir para o alemão. Em Português, “Grande Sertão – Veredas”. Sertão é um tipo de paisagem do interior do Brasil e veredas são camiApresentador: O senhor é nhos pelo sertão. diplomata e ao mesmo tempo, pode falar sobre seu sobrenome? Guimarães Rosa: É interessante a pergunta, porque o meu nome tem uma certa relação com a Alemanha. Deriva da língua dos suevos, que saíram da Europa Central para o sudoeste da Europa e fundaram um reino na Península Ibérica, Portugal. E Guimarães foi o nome da capital.

Apresentador: Berlim apresenta o Senhor Guimarões Rosa, romancista, cronista e contista brasileiro, que é também diplomata. Sr. Rosa,

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literário de um jornal brasileiro. Então tive que aprender a limitar meu texto ao espaço definido, fixo. E achei muito bom, porque acho que para o artista toda limitação é estimulante. Apresentador: Provavelmente o romance se passa no Estado de onde o senhor vem, Minas Gerais, não é? Guimarães Rosa: Na maior parte, no Estado de Minas, mas também nos estados próximos, Bahia e Goiás. A p re s e n t a d o r : É u m romance que retrata esse Estado, Minas, ou é apenas um título simbólico? Guimarães Rosa: É um combinado. Tem um fundo telúrico, real, e aí passa a ser uma história com transcendência, visando até o metafísico. Seria quase uma espécie de Fausto sertanejo.

cende daqueles que não têm nada ou daqueles que tem posses? Guimarães Rosa: O herói é aquele que não tem nada, mas é filho bastardo de um que tinha. É um monólogo, um livro grande. Um livro sem divisão em capítulos.

Apresentador: Essa forma de monólogo interior é muito moderna, transposta para o ambiente muito concreto e realista, primitivo. O senhor não escreveu apenas este livro, mas também livros de contos. São contos longos? Poderia falar sobre o seu conto preferido? Guimarães Rosa: Para um Apresentador: Então é uma autor é difícil estabelecer espécie de romance de desen- uma distinção, ainda mais volvimento? para um livro que acaba de G u i m a r ã e s R o s a : O sair. romance trata de lutas de jagunços, no interior do Apresentador: Então temos Brasil, com sistema quase aqui este livro que acaba de medieval, de grandes fazen- ser publicado. São 21 contos deiros e com pouca justiça, . Trata-se de um novo formato. pouca polícia. Havia grandes Como o senhor chegou a esse lutas e vendetas entre eles. novo formato mais curto? Guimarães Rosa: Eu colaApresentador: E o herói des- borei com um suplemento

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Apresentador: O senhor passou de um formato longo para o curto e seu texto foi se tornando cada vez mais conciso. O senhor vai passar de conto a histórias (ou estórias) mais curtas, para no fim escrever poesia? Guimarães Rosa: Chegarei até o hieroglifo! Apresentador: Essa talvez seja a forma como vislumbramos a literatura no futuro. Guimarães Rosa: Eu fiz poesia por muito tempo. Ganhei o meu primeiro prêmio no concurso da Academia, meu primeiro prêmio. Mas não publiquei, porque vim logo para o meu primeiro posto na Alemanha, como Cônsul em Hamburgo. Aí veio a guerra e eu não pensei mais nisso.


POESIA

RITA QUEIROZ PALAVRAS NUAS Guardo minha solidão Nas simétricas rotas Dos descaminhos. Sou o avesso atemporal Do espelho partido Submerso na noite sem destino. Colho no concreto Abraços de mistério Despidos de ilusão.

Sinto o perfume Dos olhos ocultos Travestidos de contentamento. Choro as cinzas Das desérticas ausências Tombadas na laje fria. Vejo a morte do tempo Rasgando o silêncio Do afago invisível.

CÉU SEM NUVENS Vida por um fio... Na guilhotina dos dias, O destino rompe com o cotidiano. Pedaços de eternidade se perdem pelo caminho, Deixando as lembranças empoeiradas À beira da estrada.

Baila-se a última valsa Na incompletude da fotografia Que dita a felicidade. Ficaram os sonhos E as gaivotas que sorriem Para a outra face do abismo.

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CRÔNICA

TAMARA ZIMMERMANN FONSECA A CAMINHO DO MAR

Numa manhã quente de fevereiro, resolvi dar uma voltinha pelas redes sociais. Entre uma foto e outra dos meus amigos, uma abriu como num passe de mágica, uma de minhas gavetas de memórias: a foto de meu amigo Alexandre, de mãos dadas com sua princesa Lívia, caminhado pela areia da praia, rumo ao mar. Imediatamente fui transportada para o litoral de São Paulo, exatamente no ano de 1976. Eram nossas férias, a família sempre unida, e nesse ano, estava conosco nosso primo Neno. Ficamos alguns dias na praia e tudo era uma mara-

vilha, brincávamos na rua, na praia, morremos de tanto jogar pebolim! E na hora de ir pro mar, papai e mamãe, ao contrário da maioria dos pais e das mães que também curtiam férias, iam brincar conosco na areia, sentavam, pulavam ondas, riamos encantadas com tudo aquilo. Foi assim que nós crescemos, curtindo sempre um ao outro, não importava onde, se na praia, no sitio, em casa, e com a graça de Deus até hoje seguimos assim. Mesmo papai não estando conosco há anos, não está em carne e osso, mas sempre está em nossas memórias, em nossas conversas e brincadeiras . Naquela manhã de verão, me emocionei ao ver a foto de Alexandre com sua Lívia, uma boneca descobrindo o mundo de mãos dadas com seu papai. E quão maravilhoso é ter esses momentos registrados em fotografias! Hábito que Alexandre e Jéssica, sua esposa, também possuem!

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Lívia, assim como todos os filhos de mamãe e papai, também terá sua gaveta de memórias, repletas de histórias para contar e assim como eu, será uma menina feliz da vida! Alexandre e Jéssica terão orgulho e muitas alegrias por serem pais presentes e amorosos. O amor, o carinho, a companhia, o abraço, o sorriso, mesmo a bronca, todos esses momentos que nos constroem como pessoas, regam nossos sentimentos e nossos caminhos. Por mais famílias amorosas, respeitosas e felizes!


POESIA

ELIANE DEBUS VENTO SUL

AS RENDEIRAS DA LAGOA DA CONCEIÇÃO De bilro é a renda Que balança lá nas tendas Da Avenida das Rendeiras Na Lagoa da Conceição

Vento Venta Ventando Voando Varrendo

Sobre a almofada de pano Com os pontos no ar Tece com os bilros de madeira Uma nova renda a rendeira. Dizem que era assim há tempos atrás

Vem zunindo Zuuuuuuuuuuuuuuumm

De um lado ela tecia a renda, a rendeira, De outro ele tecia a rede, o pescador.

Pelos montes verdes e mar azul se ouve o chiado do vento sul

Etelvina, Justina, Idalina No nome a sina deste trançar. De belezura única, arte singular.

Arredonda os galhos das árvores. Rodopia a saia das gurias. Ergue do chão a poesia. Deixa saudade depois de três dias!!!

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RESENHA

LUIZ CARLOS AMORIM PROVOCANDO A POESIA Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, editor e revisor – Cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras. Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, que completa 40 anos em 2020. Http://lcamorim.blogspot.com.br – http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br Cissa de Oliveira é cronista de mão cheia e detentora de uma prosa que já deixava vislumbrar a poesia na ponta dos dedos e profunda no coração. Li e reli suas crônicas, pois sua prosa poética sempre me encantou, também a sua noção de cotidiano: sempre atenta a tudo que acontece ao seu redor. Agora, leio “Versos e Provocações” e vejo confirmado o talento para a poesia de Cissa, essa escritora que se me configura uma importante representante das letras brasileiras. Seu livro de poemas é poesia na sua forma mais abrangente, um tributo à mulher e ao ser humano, um tributo aos direitos, anseios e aspirações deles, de todos nós. Versos que dizem bem da missão e da razão de ser da poesia de Cissa: “É preciso dar voz ao que não pode e a tudo que se insurge na busca pela verdadeira liberdade.”

E, é bom que atentemos, Cissa não se aventura pela rima, não como muitos poetas iniciantes ou ingênuos, que acham que fazer

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poesia é rimar. Ela sabe que a rima pode botar o poema a perder, mesmo que o tema seja original e perfeito, se não a dominarmos, e


sabe que o importante é o ritmo, a cadência, a musicalidade na poesia. Rima existia para mais facilmente memorizar-se as criações literárias quando não havia escrita, há muito tempo. Se soubermos usá-la, ótimo. Mas ela é perigosa se não a dominarmos. E ela também é bela, se soubermos usá-la bem. Mas poucos o sabem. Então precisamos imprimir ritmo ao nosso poema, este sim necessário e importante, condição sine qua non. Cissa vem, então, agora, nos brindar com “Versos e Provocações”. Eu diria que é uma estreia memorável de uma poeta que parece que sempre fez poesia. E ela já fazia poesia antes, sim, ela já tem um primeiro livro que eu não conheço, infelizmente. Então, para mim, é como se fosse o primeiro. E ela pergunta, em um dos deliciosos poemas: “Quem sabe onde mora a poesia?” Eu respondo: a poesia mora em Cissa, a poesia mora em nós. Ela mora em tudo. Por isso a poesia é a essência e o poema é a forma. E Cissa é os dois. Cissa sabe que “a expressão do sentimento precisa ser traduzida” e é “dentro do silêncio que essa tradução acontece”. E sabe usar o silêncio, pois consegue traduzir como ninguém a

expressão do seu sentimento. “Eu sou minha.” E é, a poeta se pertence, porque ela pertence à poesia e a poesia está nela. É preciso “moldar sonhos, preencher com vislumbre e realidade o vão dos dias, se amar.” Sim, poeta, isso é ser poeta. E você é. ‘Versos e Provocações” é um livro múltiplo e se divide em cinco partes: “Mulher, força

para dizer e para emudecer”, “A poesia se diz”, “A poesia vê”, “Poesia romântica” e “Dados desditos”. Nesta pluralidade de temas, podemos ver todas as nuances da poesia de Cissa, podemos ver a efervecência de seus versos, um olhar atento e constante sobre o ser humano e sobre o mundo, um olhar com muita sensibilidade, com lirismo,

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mas também com muito realismo. A poesia de Cissa situa a alma humana na atualidade e se preocupa com ela, nos faz refletir e nos chama à ação para que colaboremos no sentido de tentar melhorar o mundo, para que o ser humano seja melhor, para que possamos ter mais poesia na nossa vida em um futuro próximo. Porque a poesia é necessária e é necessário repetir isso quantas vezes for necessário. “… tudo o que queremos são asas de anjo… poemas.” E não é? Sim, “as Marias querem ser pássaros. Voar.” Todos queremos voar, ter asas de anjo, personificar a poesia. Poesia é, sim, uma revoada de asas de anjos que queremos ter sempre em maior quantidade na vida de todos nós. “Quem dera, Rimbaud, misturar o sol com o mar, dilaceramento que só a tua poesia faz.” Ah, minha querida Cissa, você é poeta, também, e vai seguindo os passos de Rimbaud. “Temi (…) envelhecer, tropeçar, cair feio, fraturar a serenidade.” Mas isso não aconteceu e nem vai acontecer, Cissa. Porque a poesia não envelhece. Poesia é isso. É Cissa. E seu livro é extensão dela, poesia pura. Não há como não ler e não se encantar.


POESIA

LUÍS LAÉRCIO GERÔNIMO PEREIRA O TEMPO Difícil de ser explicado, estranho de ser compreendido Cada passo meu que é dado, já foi um tempo percorrido Que a pouco estava ao meu lado, agora virou passado, E o futuro é indefinido. Essa temporalidade trouxe-me aparentes mudanças Outrora com pouca idade, corria como uma criança, Então veio a maturidade, em seguida a senilidade, Do futuro, tenho esperança. Através do pensamento, do meu presente estado Viajo na reminiscência,

memorizo meu passado, Em estado de latência, idealizo uma vivência Pra um futuro almejado. Recorte de temporalidade, de tudo aquilo que é vivo, Porém a mensurabilidade de todos os seres vivos Compete a divindade e a sua complexidade É incognoscível ao mundo sensível. O tempo assim se apresenta, limitado e obscuro Num estágio consciente, penso, percorro, procuro Enquanto eu for “ser vivente”, vai estar em minha mente, Presente, passado e futuro.

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BIOGRAFIA

GRANDES NOMES DA LITERATURA BRASILEIRA

GONÇALVES DIAS, O GRANDE POETA DA PRIMEIRA GERAÇÃO ROMÂNTICA

Gonçalves Dias nasceu no Maranhão, filho de comerciante português e uma mulher de descendência negra e indígena, o que viria a ter influência em sua vida. Foi o principal nome da primeira geração de românticos brasileiros, tendo pegado gosto pela leitura quando teve contato com escritores do romantismo português, enquanto estudava Direito, em Coimbra, aos 17 anos de idade. Foi em Portugal que escreveu boa parte de sua obra, incluindo "Canção do Exílio" (1843), seu poema mais famoso. Morou no Rio de

Janeiro na década de quarenta, procurando viver de sua escrita, e seu primeiro livro, Primeiros Cantos (1947) foi recebido com sucesso no meio literário. Publicou ainda Segundos Cantos, em 1948, e Últimos Cantos, em 1951. Seus poemas líricos e épicos tratavam principalmente do amor, a natureza, a pátria (nacionalismo), o índio (indianismo), e a religião. Além de escrever textos jornalísticos, poemas e peças de teatro, Dias também lecionava Latim e História. Apaixonou-se por Ana Amélia Ferreira do Vale, mas

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não puderam se casar, pois o escritor era mestiço. Um de seus poemas de amor mais famosos, "Ainda Uma Vez Adeus!", é dedicado a ela. Gonçalves Dias morreu em um naufrágio quando voltava de uma viagem para cuidar da saúde na Europa, também jovem, aos 41 anos de idade. Gonçalves Dias (1823-1864) foi um poeta, professor, jornalista e teatrólogo brasileiro. É lembrado como o grande poeta indianista, pois deu romantismo ao tema índio e uma feição nacional à sua literatura. É lembrado como um dos melhores poetas líricos da literatura brasileira. É Patrono da cadeira nº. 15 da Academia Brasileira de Letras. Antônio Gonçalves Dias nasceu em Caxias, Maranhão, no dia 10 de agosto de 1823 e viveu em um meio social conturbado. Durante os anos da infância, ajudou seu pai no comércio, ao mesmo tempo, que recebeu educação de um professor particular. Em 1838, viajou para Coimbra e ingressou no Colégio das Artes, onde concluiu o curso secundário.


Em 1840 matriculou-se na Universidade de Direito de Coimbra, onde teve contato com escritores do romantismo português, entre eles, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Feliciano de Castilho. Durante sua permanência em Coimbra, escreveu a maior parte de suas obras, inclusive a famosa “Canção do Exílio” (1843), onde expressa o sentimento da solidão e do exílio. Revista Literária Guanabara. Em 1845, depois de formado Em 1851, Gonçalves Dias em Direito, Gonçalves Dias publica o livro “Últimos retornou para o Maranhão, Cantos". Regressa ao Maraindo no ano seguinte morar nhão e conhece Ana Amélia no Rio de Janeiro procurando Ferreira do Vale, por quem integrar-se ao meio literário. se apaixona, mas por ser Em 1847, com a publicação mestiço não tem o consende “Primeiros Cantos”, con- timento da família dela que seguiu sucesso e o reconhe- proíbe o casamento. Mais cimento do público. Recebeu tarde casa-se com Olímpia elogios de Alexandre Her- da Costa. culano, poeta romântico Gonçalves Dias exerceu o português. Ao apresentar o cargo de oficial da Secretaria livro, Gonçalves Dias con- de Negócios Estrangeiros, foi fessa: "Dei o nome Primeiros várias vezes à Europa e em Cantos aos poemas que 1854, em Portugal, enconagora publico, porque espero tra-se com Ana Amélia, já que não sejam os últimos". casada. Esse encontro inspira Em 1848 publica o livro o poeta a escrever o poema "Segundos Cantos". "Ainda Uma Vez — Adeus!". Em 1849, é nomeado pro- Em 1862, Antônio Gonfessor de Latim e História çalves Dias vai à Europa do Brasil no Colégio Pedro para tratamento de saúde. II. Durante esse período Sem resultados embarca de escreveu para várias publi- volta no dia 10 de setembro cações, entre elas, o Jornal de 1864, porém o navio do Comércio, a Gazeta Mer- francês Ville de Boulogne cantil e para o Correio da em que estava, naufraga Tarde. Nessa época funda a perto do Farol de Itacolomi,

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na costa do Maranhão, onde o poeta falece. Gonçalves Dias faleceu na costa do Maranhão, no dia 3 de novembro de 1864.

CANÇÃO DO EXÍLIO Minha terra tem palmeiras, Onde Canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá.


POESIA

JÚLIO DE QUEIROZ PAISAGEM COM ACENOS Confesso: foi sempre um tempo palpitante. Nele, apaixonei-me por relâmpagos; vagabundeei, pés e coração nus, sonhando nuvens. Vivi a calma beleza de tardes monásticas e a gritaria azafamada e colorida de portos. Dialoguei com passarinhos na língua dos mariscos; recebi segredos estonteantes que a grama me trazia, mandados por águas escondidas. Participei, em silêncio extasiado, das festas que árvores em flor dançaram com o ar fino. Amei despudoradamente o mar, os ventos e seus amores: as inquietas areias cantantes. Cães aceitaram-me, como igual, em sua confraria; A lua, romã dos céus, de seus coxins, acompanhou-me em aventuras de orvalho e almíscar. Tantas vezes, sozinho, escapuli do casulo do sono para deslumbrar-me com os olhos luminosos da madrugada anoitecida, ou dormir, outra vez, ouvindo estórias compridas, contadas pela chuva. Têm sido tantas as faces, tantos os gestos do Amor irmão, brincando de cabra-cega comigo, que, dele, o corpo não se cansou, foi-lhe demais; o velho odre está se esgarçando. Daqui a pouco túneis de lua; galáxias apaixonadas, cometas tontos de alegria, e, pela Constituição do Universo, um passaporte para tornar-me energia amorosa

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ARTIGO

GRANDES NOMES DA LITERATURA BRASILEIRA

LEMINSKI, POETA LOUCO, MODERNISTA E MUSICAL

O curitibano Leminski ainda não é encaixado em nenhuma vertente poética, apesar de serem claros os traços de modernismo na sua forma livre e criativa de escrever. Herdeiro da poesia concretista, sua obra conta com mais de quinze livros publicados, cheio de jogos de palavras, recursos visuais e outros. Leminski também fez muitos trabalhos como letrista de MPB, o que teve influência sobre sua obra. É impossível pensar a nova poesia curitibana

sem lembrar do polaco “cachorro louco”, Paulo Leminski (1944-1989). Ele foi revelado ao público em 1964, por meio da Revista Invenção, reduto dos poetas concretos e da melhor produção experimental brasileira. Sua obra inspirou e ainda inspira dezenas de autores pelo país e, principalmente, em sua cidade natal. Autor de 27 livros, entre poesia, ficção, biografias e traduções, Leminski talvez tenha sido o único poeta brasileiro surgido nos anos 60 comparável com os compositores de MPB. Entre 1960 e 1970, grande parte da força da poesia brasileira estava concentrada na arte da canção. O autor paranaense conjugou o rigor formal e experimental da poesia concreta a uma postura anárquica e libertária procedente do rock´roll dos Beatles, da contracultura dos hippies e da poesia dos beatniks. E pôs tudo isso em prática: dos poemas

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visuais às letras de rock do grupo curitibano Blindagem, das biografias de Cristo e Trotsky à tradução de “Pergunte ao Pó”, de John Fante, publicado um ano depois da morte do autor ítalo-americano. Leminski uniu valores da poesia clássica com a visão de mundo dos jovens de seu tempo, como uma espécie de atalho entre Horácio e John Lennon. Paulo Leminski (19441989) foi um poeta, escritor, tradutor e professor brasileiro. Fez uma poesia sem compromisso, destacou-se com “Catatau”, obra “mal-


dita” marcada por exacerbado experimentalismo linguístico e narrativo. Paulo Leminski Filho nasceu em Curitiba, Paraná, no dia 24 de agosto de 1944. Era filho de Paulo Leminski, militar de origem polonesa, e Áurea Pereira Mendes, de descendência africana. Com 12 anos, Paulo ingressou no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde estudou latim, teologia, filosofia e literatura clássica. Em 1963, abandonou o Mosteiro, e nesse mesmo ano foi para Belo Horizonte onde participou da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, quando conheceu Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, criadores da Poesia Concreta. Em 1964, publicou seu primeiro poema na revista “Invenção”, editada pelos concretistas. Nesse mesmo ano, assume o cargo de professor de História e Redação em cursinhos pré-vestibulares.

Publicava seus textos em revistas alternativas, antológicas do tempo marginal, como “Muda”, “Código” e “Qorpo Estranho”, segundo ele mesmo, publicações que consagraram grande parte da produção dos anos 70. Catatau Em 1975, Paulo Leminski iniciou sua trajetória de “escritor maldito” com a obra “Catatau”, um polêmico livro de prosa em que o experimentalismo atinge níveis pouco usuais, classificada pelo autor como mero romance ideia. A obra, uma ágil alegoria tropicalista, apresenta o filósofo francês René Descartes vivendo no Brasil holandês de Maurício de Nassau, no século XVII, fumando maconha e comparando o pensamento europeu à natureza do povo tropical. Quase incompreensível, o autor falava em “essências puando como um geroclips” ou “captainhas recém-recuptas”, gerando críticas que oscilavam entre “pre-

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tencioso” e “um talento passível de recuperação”. Com a recepção dada a Catatau, que levou oito anos para concluir, Leminski jurou que jamais voltaria a escrever prosa e, em 1980 publicou dois instigantes livros de poesia: “Polonaises” e “80 Poemas”. Lançados com diferença de poucos meses e ambos herdeiros, na forma, dos melhores momentos da “geração mimeógrafo”. Casado com a também poetisa Alice Ruiz, com duas filhas, passou a ganhar a vida em Curituba como redator de publicidade, depois de ter sido jornalista e professor de Português e História.

CARACTERÍSTICAS Paulo Leminski tornou-se um dos mais destacados poetas brasileiros da segunda metade do século XX. Inventou seu próprio jeito de escrever poesia, fazendo trocadilhos ou brincando com ditados populares: “sorte no jogo / azar no amor / de que me serve / sorte no amor / se o amor é um jogo / e o jogo não é meu forte, / meu amor?”. Leminski era fascinado pela cultura japonesa e pelo zen-budismo, era


AMOR

faixa preta de caratê. Escreveu a biografia de Matsuo Bashô, e dentro do território livre da poesia marginal escreveu poemas à moda de um grafiti, com sabor de haicai. Leminsk escreveu também letras de músicas em parcerias c o m C a e t a n o Ve l o s o , Itamar Assumpção e o grupo A Cor do Som. Exerceu intensa atividade como crítico l i t e r á r i o e t r a d u t o r,

Amor, então, também, acaba? Não, que eu saiba. O que eu sei é que se transforma numa matéria-prima que a vida se encarrega de transformar em raiva. vertendo para o portu- Ou em rima. guês as obras de James J o y c e , A l f r e d J a r r y, MARGINAL Samuel Beckett e Yukio Mishima. Viveu durante Marginal é quem 20 anos com a poetisa escreve à margem, Alice Ruiz, que orgadeixando branca a página nizou sua obra. Paulo Leminski faleceu para que a paisagem passe e m C u r i t i b a , P a r a n á , e deixe tudo claro à no dia 7 de junho de sua passagem. 1989, em consequência Marginal, escrever do agravamento de uma na entrelinha, cirrose hepática, que o acompanhou por vários sem nunca saber direito quem veio primeiro, anos. o ovo ou a galinha. Poemas de Leminski:

REVISÃO DE TEXTOS E EDIÇÃO DE LIVROS Da revisão até a entrega dos arquivos prontos para imprimir. Contato: revisaolca@gmail.com • 36 •


GRANDES POETAS BRASILEIROS

MANOEL DE BARROS O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE POEMA DE SETE FACES Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte.

Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

CRUZ E SOUSA CABELOS Cabelos! Quantas sensações ao vê-los! Cabelos negros, do esplendor sombrio, por onde corre o fluido vago e frio dos brumosos e longos pesadelos... Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos, tudo que lembra as convulsões de um rio passa na noite cálida, no estio da noite tropical dos teus cabelos. Passa através dos teus cabelos quentes, pela chama dos beijos inclementes, das dolências fatais, da nostalgia... Auréola negra, majestosa, ondeada, alma de treva, densa e perfumada, lânguida noite da melancolia!

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

CORA CORALINA ANINHA E SUAS PEDRAS Não te deixes destruir… Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas. Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir. Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte. Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

MARIO QUINTANA CANÇÃO DO DIA DE SEMPRE Tão bom viver dia a dia... A vida assim, jamais cansa... Viver tão só de momentos Como estas nuvens no céu... E só ganhar, toda a vida, Inexperiência... esperança... E a rosa louca dos ventos Presa à copa do chapéu. Nunca dês um nome a um rio: Sempre é outro rio a passar. Nada jamais continua, Tudo vai recomeçar! E sem nenhuma lembrança Das outras vezes perdidas, Atiro a rosa do sonho Nas tuas mãos distraídas...

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

FERREIRA GULLAR NÃO HÁ VAGAS O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz, o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerilha seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras - porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

JORGE DE LIMA ANJO DALTÔNICO Tempo da infância, cinza de borralho, tempo esfumado sobre vila e rio e tumba e cal e coisas que eu não valho, cobre isso tudo em que me denuncio. Há também essa face que sumiu e o espelho triste e o rei desse baralho. Ponho as cartas na mesa. Jogo frio. Veste esse rei um manto de espantalho. Era daltônico o anjo que o coseu, e se era anjo, senhores, não se sabe, que muita coisa a um anjo se assemelha. Esses trapos azuis, olhai, sou eu. Se vós não os vedes, culpa não me cabe de andar vestido em túnica vermelha.

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

ARIANO SUASSUNA A INFÂNCIA Sem lei nem Rei, me vi arremessado bem menino a um planalto pedregoso. Cambaleando, cego, ao sol do acaso, vi o mundo rugir. Tigre maldoso. O cantar do Sertão, rifle apontado, vinha malhar seu corpo furioso. Era o canto demente, sufocado, rugido nos caminhos sem repouso. E veio o sonho: e foi despedaçado! E veio o sangue: o marco iluminado, a luta extraviada e a minha grei! Tudo apontava o sol! Fiquei embaixo, na cadeia que estive e em que me acho, a sonhar e a cantar, sem lei nem Rei!

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RESENHA

ELIANE FITTIPALDI “O CORVO” – NUNCA MAIS

Por que razão o ser humano é levado a tomar da pena e do papel (ou um de seus substitutos contemporâneos) e realizar a atividade aparentemente gratuita e inútil que é escrever um poema? Em outras palavras, que necessidade visceral é essa que leva o homem a extrair de si um produto que não tem nenhuma função prática para sua sobrevivência, a exercer a difícil e pouco apreciada atividade de criar poesia com palavras? Entre os homens que exerceram a

faculdade da criação poética em verso e prosa e que pagaram por ela o preço da incompreensão e da marginalidade, destaca-se o estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849). Poe obviamente entendia as profundezas dessa necessidade tão inexplicável. Talvez percebesse que o homem faz poesia para melhor entender a si e ao mundo em que vive. Ou para fantasiar outros modos de existência que não o seu, outras realidades para além desta, insatisfatória, com a qual tem de haver-se. Ou para atenuar sua sensação de impotência em relação à natureza, que lhe é indiferente. Ou ainda, como diria o crítico de arte Étienne Souriau, “para ensinar aos deuses como é que se cria”. O homem, rivalizando com o Deus bíblico que cria o mundo ao enunciá-lo, apropria-se do Verbo para utilizá-lo como varinha mágica que gera realidades. Quando o verdadeiro poeta diz “faça-se…”, ele retira a

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palavra do lugar comum a que o uso mecânico a condena, para aproximá-la da palavra primordial, aquela que transcende o significado convencional e que não apenas diz algo. O verdadeiro poeta não usa a palavra apenas para representar os elementos da realidade empírica; ele instaura o representado, como imagem e som, às sensações do seu receptor. Quando o poeta enuncia, sua palavra forja e ressignifica a realidade à sua vontade. E Allan Poe era um mestre desse processo criativo. O poema “O Corvo” é um dos mais comentados do mundo como exemplo de microcosmo estético perfeitamente acabado, de composição ao mesmo tempo cerebral e inspirada, na qual a vida e a morte encontram-se intensamente presentes e igualmente misteriosas. O poema conta uma história fantástica: a de um rapaz que está lendo em


Edgar Allan Poe

seu quarto, na tentativa de esquecer a morte recente da amada quando, de repente, é perturbado pelo som de uma batida à janela. Ao abri-la, ele nada mais vê além da treva noturna e volta ao quarto. Mas novamente ouve a batida e volta a abrir a janela. Nisso, entra-lhe um agourento corvo pelo recinto e vai pousar num busto de um Palas que está em cima da porta. Então o rapaz tem a ideia de perguntar o nome ao corvo, que lhe responde: “Nunca mais”. A princípio, o rapaz se ri do papaguear sem sentido da ave. Mas, aos poucos, movido por sua dor, dá seguimento ao diálogo, num jogo de ecos: passa a formular perguntas que, num crescendo

de agonia, exprimem as dúvidas que tem na alma – se ele algum dia será capaz de esquecer a amada e se virá a vê-la uma vez mais. A tudo isso a profética ave sempre responde monocordicamente “Nunca mais”. Exaltado, então, o herói ordena-lhe que desapareça. Mas o corvo volta a responder “nunca mais” e lá permanece pousado, assombrando para sempre o desiludido rapaz. Contar uma história é fácil. Para construir uma história, basta seguirmos os preceitos formulados, já nos anos 300 a.C. por Aristóteles: configurar uma situação, uma complicação e uma resolução. Mas contar bem uma boa história já é mais difícil. A sinopse acima não faz jus,

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nem de longe, a ”O Corvo” de Poe. Ele não constrói paulatinamente o suspense claustrofóbico do poema, os sons encantatórios e hipnóticos que sustentam a obsessão do amante masoquista. Ela não prende o leitor, como o corvo prende a personagem, no círculo da atemporalidade em que o homem se debate com sua impotência diante da morte. Seu ritmo não faz acelerar o batimento de um coração angustiado, como ocorre na caixinha de ressonâncias que é o comovente poema de Poe. Nessa sinopse, o som e o sentido não se conjugam para levar a palavra a ultrapassar sua mera referencialidade e criar no leitor a emoção pretendida – a mesma do amante torturado pela lembrança sem fim do amor ausente.


POESIA

ADIR PACHECO DESNUDEZ DA SAUDADE

CANÇÃO DA ALVORADA Na manhã ridente, mágica e sublimada, O inebriante contato sob doce aroma, Melodia que a radiosa paisagem soma Às vibrações suaves na canção da alvorada.

Enquanto a noite desce envolvendo a rua Cantos e súplicas fenecem sob a terra E anjos e mártires vicejam ante a lua Na atmosfera que o sentimento modera. E a lua manifesta-se soberana Ante a doce saudade que se desnuda Numa sutil cumplicidade profana Lendo um poema de Pablo Neruda. E neste envolvimento da noite radiosa Sublimam-se ternos e enamorados Ante a luminescência majestosa Corações marcadamente consternados. E esta saudosa lembrança refletida Neste espaço que à noite consagra Almas amantes outrora consumidas Em nostálgica nudez se embriagam.

E vibra a natureza afagando os jardins No aconchego da atmosfera dadivosa, Plasmando campos floridos e querubins, Entre o aroma refrescante das rosas. É a vida mostrando-se plena em realeza, Na majestosa beleza que envolve a terra, Ao espírito envolvido em grande tristeza, Norteando sua existência no espaço que erra. E nesta paisagem do próprio calvário Sob a cadência das noções de esperança, Renova-se o espírito em confiança, Irradiando sorrisos em um novo cenário.

E esta embriaguez da saudade aflorada Reflete lúcidas imagens bailarinas Entre emoções sutilmente adornadas Sob a altivez da alma peregrina.

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“AUTO-AJUDA”

ULISSES TAVARES A POESIAS NECESSÁRIA QUE FAZ A VIDA MAIS FÁCIL Poesia: a melhor auto-ajuda. Calma, esperançoso leitor, iludida leitoria, não fiquem bravos comigo, mas ler auto-ajuda geralmente só é bom para os escritores de auto-ajuda. Pois não existe receita para ser feliz ou dar certo na vida. Sabe por quê? Porque, na maior parte das vezes, apenas você sabe o que é bom e serve para você. O que funciona para um nem sempre funciona para o outro. Os únicos livros de auto-ajuda que podemos respeitar e são úteis mesmo, são aqueles que ensinam novas receitas de bolo, como consertar objetos quebrados em casa ou como operar um computador. Ou seja, lidar com as coisas concretas, reais, exige um conhecimento também real, tintim por tintim, item por item. Com gente é diferente. Gente não vem com manual de instruções

quando nasce. Nem pra viver nem pra morrer. E se você precisa de conforto ou de conselhos, existem caminhos bem fáceis, boa parte deles de graça: igrejas, templos, botecos, amigos ou parentes… Lembrou? Se alguém anda necessitando de regras, palavras de ordem e comandos enérgicos sobre o que fazer, melhor entrar

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para o exército. Mas, se você não quer deixar ninguém mandar em você, tenha coragem e encare-se de frente. Não adianta fugir de seus medos, suas dores, suas fragilidades, suas tristezas. Elas sempre correm juntinho, coladas em você. Tentar ser perfeito, fazer o máximo, transformar-se em outro, dói mais ainda. Colar um


sorriso no rosto enquanto chora por dentro é para palhaço de circo. Portanto, entregue-se, ou seja apens umser humano cheio de dúvidas e certezas, alegrias e aflições. Aproveite e use algo que, isso sim, com certeza é igual em todos nós: a capacidade de imaginar, de voar, se entregar. Se nem Freud lhe explica, tente a poesia. A poesia vai resolver seus problemas existenciais? Provavelmente não. A poesia, às vezes, é como

aquele bordão do Chacrinha: não veio para explicar, mas para confundir. Quando acerta é por acaso, como na vida. Ficar confuso é o normal, relaxe e aproveite. Selecionamos alguns trechos de poemas que provavelmente falam das respostas que você anda procurando em livros de auto-ajuda. Tomara que ajudem. O próprio pai da psicanálise, Freud, depois de passar a vida debruçado sobre os mistérios

do sexo, os grilos da cuca, os gritos do corpo, os sussurros da alma, admitiu que aonde quer que ele fosse ou olhasse, um poeta já havia passado por alil. Então, leia os poetas que indicamos aqui. O sábio Mario Quintana já dizia que um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente - e não a gente a ele. De propósito, não selecionamos nenhum medalhão ou desses poetas que estão em muitos livros escolares. Poesia está mais pra lição de vida do que lição de casa. E depois vá em frente. Procure outros poetas. Estão na livraria, na biblioteca ou na página de internet mais próxima. Vocês nunca mais estará tão sozinho a ponto de achar que precisa de um livro de auto-ajuda para mostrar o caminho das pedras.

ESTES SÃO OS POEMAS: NARCISA

AMAR É…

DE PROFUNDIS

Raquel Naveira Quando me olho no espelho, Sou pomba capaz de vôos. E arrulhos.

Ricardo Silvestrin noite de chuva debaixo das cobertas as descobertas

Álvaro de Faria Por dentro de mim Onde não existo mais. Por dentro Onde não caibo.

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Tao fundo Como se não fosse.

AUTO-PIEDADE Glauco Mattoso Amar, amei. Não sei se fui amado, pois declarei amor a quem odiara e a quem amei jamais mostrei a cara, de medo de me ver posto de lado. Se serve de consolo, seja assim: Amor nunca se esquece, é que nem prece. Tomara, pois, que alguém reze por mim…

ADEUS AMOR Leila Micolis Nem que a vaca tussa Quero mais tua fuça… Mas por dentro o coração soluça.

CURIOSO Cláudio Willer uma geração pula no abismo

mas você foi mais adiante ou saltou mais fundo levantou a tampa da vida para ver o que havia por baixo para ver que não havia nada embaixo

PAIXÃO Cairo Trindade Aos apaixonados Não faz falta o mundo. A um apaixonado Não faz falta nada. A não ser o outro. Junto.

MEU E TEU Marcelo Tápia o meu e teu num momento é só meu e teu e meu num momento é só teu.

VOO DUPLO Frederico Barbosa onde vou

só levo-me onde sou nós voo ao fundo

TUDO SE REPETE Alice Ruiz travesseiro novo primeiras confissões a história do antigo

BOMBANDO Bráulio Tavars Não vou morrer de enfarte em plena festa nem de fome nessa fatura. Quando sou a última estrela que me resta, resolvo brilhar e aí ninguém me segura.

Visite o Portal PROSA, POESIA & CIA. do Grupo Literário A ILHA, na Internet, http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br • 50 •


POESIA

ADIR PACHECO ALTIVA ELEGIA

LAREIRA DA AMIZADE Os quebrados galhos na lareira da amizade Como um perfume delicado e sereno, No silêncio povoado de cumplicidade Descortina a dança num sorriso pleno.

Carrego tuas lembranças comigo Escondida entre sorrisos disfarçados, Emoldurando paisagens vazias No espírito notadamente alquebrado. E a presença do saudoso filho amado Reflete-se em minh’alma com nostalgia, Momentos de ternura e cumplicidade Lembrados neste instante de altiva elegia. A sentida ausência do amado amigo Preenche meu silêncio introspectivo, Com o aroma no rosto em sorriso pródigo Naquela face de olhar afetivo. E sigo minha desafiadora jornada Com o espírito sensível e pacificado, Buscando a altivez d’alma harmonizada No desejo presente do viajor flagelado.

E o silêncio se quebra em leves murmúrios Como árvores desfolhadas pelo tempo, Com os abraços do vento num leve perjúrio, Combatendo a quietude suave do momento. E a lareira da amizade afetuosa Harmonizando seu calor delicado, Envolve o ambiente de luz venturosa Sob a nobre candura de um terno bailado. E assim se apresenta esta nobre virtude Com arpejos melódicos de encantamento, Sentimento agregado de altiva plenitude Entre seres amigos em nobre envolvimento.

E a mensagem ao espírito supliciado Faz-se presente nos instantes de amargura, Ensinada pelo insigne crucificado, Distribua amor com as cores da ternura.

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REPORTAGEM E ENTREVISTA

GRANDES NOMES DA LITERATURA BRASILEIRA

OBRA POÉTICA DE LÊDO IVO GANHA EDIÇÃO ÚNICA COM MIL PÁGINAS

Único alagoano ungido à condição de imortal da Academia Brasileira de Letras e um dos maiores poetas brasileiros, o escritor Lêdo Ivo ganha um presente especial no ano em que completa 80 anos de vida – 2004 - e 60 de literatura: a publicação de toda a sua obra numa única edição. A “Poesia Completa 19402004”, livro com mais de mil páginas, patrocinado pela Braskem e editado pela TopBooks, foi lançado dia 30 de Setembro de 2004, na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio de Janeiro. A apresentação da obra é do acadêmico e presidente da ABL, Ivan Junqueira, que assina na edição

um estudo intitulado “Quem tem medo de Lêdo Ivo?”. O evento também marcou a abertura de uma série de homenagens aos 80 anos do poeta, como a “Exposição Lêdo Ivo” – que reuniu parte de sua obra em painéis – e uma mesa-redonda aberta ao público, que teve a coordenação de outro acadêmico, o escritor Anselmo Maciel. Poeta, romancista, contista, cronista e ensaísta, Lêdo Ivo estreou na literatura em 1944, passando a receber, nos anos subsequentes, uma série de prêmios com a publicação de obras nos diferentes gêneros em que escreve. Tornou-se uma das figuras de maior destaque na moderna literatura brasileira, principal-

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mente na poesia. Em 1986 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a Orígenes Lessa. Entre as principais condecorações que recebeu, se destacam os prêmios Olavo Bilac, com o livro “Odes e Elegia”, Jabuti e Casimiro de Abreu, por “Finisterra”, Cassiano Ricardo, com “Curral de Peixe”, e Mário de Andrade, pelo conjunto de sua obra. Ainda como romancista foi premiado pela Fundação Graça Aranha, com “As Alianças”, e com o IV Prêmio Walmap de Literatura, por “Ninho de Cobras”. “Plenilúnio”, também editado pela TopBook, é uma obra que aborda de forma original temas clássicos do gênero, como a lua, o real, o amor e a morte. O poeta lançou ainda o livro de prosa “Melhores Crônicas”, pela Global Editora, e a quarta edição das “Confissões de um Poeta”, uma autobiografia, até 2004. Até a sua morte, em 2012, publicou ainda vários livros.


A ESTÉTICA DA DIFERENÇA Aos oitenta anos e lançando uma obra que reúne toda a poesia produzida em sessenta anos de carreira, o alagoano Lêdo Ivo faz questão de afastar quaisquer especulações acerca de ter chegado na confortável posição de fazer um balanço do seu trabalho ou mesmo de colocar um ponto final na sua produção. Definindo-se não como um grande escritor, mas como um escritor durável, atemporal, Lêdo Ivo vê a obra Poesia Completa como a grande prova de sua permanência como artista na construção de uma estética do antagonismo, do choque entre o rigor e o transbordamento, do excesso domado pela exatidão da construção.

Mais vigoroso e efervescente de ideias como nunca, o escritor se sente vivendo uma espécie de “grande estreia”, como se estivesse lançando pela primeira vez toda sua obra. E avisa: “o escritor nunca está completo”. Vejamos o que Ledo Ivo diz, quando completou oitenta anos, na entrevista abaixo, concedida a Milena Andrade:

os livros que escrevi e acho que uma obra como essa tem uma importância muito grande para o leitor comum, pois é muito difícil encontrar um trabalho meu da década de sessenta, por exemplo. Um livro que reúne uma trajetória de sessenta anos tem um peso muito grande e pode ajudar muito quem quer compreender a minha obra.

Milena Andrade - No ano em que o senhor completa seus 80 anos, o lançamento de Poesia Completa é uma coincidência ou uma reflexão sobre sua obra? Não teme que interpretem como finitude? Lêdo Ivo - Foi uma coincidência. A Braskem estava interessada em patrocinar um produto cultural, daí o Mauro Salles acabou articulando tudo e as coisas acabaram acontecendo. Sempre me esquivei dessa história de “obras completas”. Uma única vez, em 1970, uma editora reuniu tudo o que eu havia escrito até então, mas foi só isso. Uma obra como essa pode dar a impressão de que você acabou, se completou e o escritor tem sempre que ter a sensação de ser incompleto. Mas, na verdade, estou com uma sensação de estreia total. Estou estreando com todos

MA - Olhando hoje para a obra que construiu em 60 anos o que o senhor vê? O que há em comum entre o Ledo Ivo de “As Imaginações”, de 1940, e o Ledo Ivo do recém-lançado “Plenilúnio”? Ledo Ivo - É como se visse um “ex-eu”. Cobra renovando a pele. Os poemas mais antigos refletem o início de minha formação cultural, carregados de catolicismo . Tecnicamente, percebo que já estavam em semente as várias direções

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Como os meus modelos foram sempre os de poetas preocupados com a permanência, tive uma grande tranquilidade em relação à literatura. Sempre quis ser um escritor que iria entrar para a história da literatura brasileira, desde muito jovem. Me que minha poesia iria tomar considero um escritor “transno futuro – a marca do sur- geracional” e “transpessoal”. realismo, os versos longos, respiratórios, a diversidade, MA - Quais são os elea visão irônica da vida e a mentos mais marcantes da convicção de que o poeta é cidade de Maceió no seu um objeto verbal. imaginário? Ledo Ivo - O fato de Maceió MA - E o que mudou na sua ser uma cidade portuária, poesia? uma cidade de evasão. Ledo Ivo - A maneira de Desde a minha infância dizer as mesmas coisas achei que minha vida transcom outras palavras. O que correria longe da terra natal. permite o escritor mudar é a Esse universo amplo, de vasvariação de seu vocabulário, tidão me despertou um sende seu léxico. O resto não timento de que eu era uma muda. Minha poesia continuou sempre uma espécie de constante vacilação entre o rigor e o excesso, a exatidão e o transbordamento. É uma poesia irreconciliável, ambivalente, vigorosa e construtiva . Um excesso domado sob a vigilância da construção. MA - O senhor se considera um grande escritor? Ledo Ivo - Grande é Dante, como dizia Manuel Bandeira. Sou apenas um escritor durável e a prova disso é o meu trajeto de sessenta anos.

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criatura dotada da linguagem de poder falar pelos que não falam, cantar pelos que não cantam. MA - Na apresentação de Poesia Completa, Ivan Junqueira ressalta esse memorialismo, o vínculo com as raízes nordestinas de sua obra. Não há como escapar do regionalismo? Ledo Ivo - Em mim há um grande peso da ancestralidade. O sentimento é visceral. Sou descendente de índios caetés. Saí daqui com dezoito anos, mas carrego esse mundo de águas, navios, lagoas e caranguejos de Alagoas – são imagens humanizadas em mim. Alagoano é muito enraizado, tomo mundo se conhece, todo mundo é parente.


poeta hoje não é mais aquele do tempo do Bandeira, ele vive na obscuridade. Hoje, você só é notado se aparecer na televisão. Quando comecei, o Brasil era um país de letras, hoje não. O próprio jornal perdeu a primazia da informação. O escritor hoje tem que se tornar uma celebridade, como a Luana Piovani.

Lembro uma vez, um amigo meu daqui dormiu com uma mulher e no outro dia descobriu que ela era tia dele. Aqui todo mundo é família... MA - Nunca quis voltar para Maceió? Ledo Ivo - Não. Sabia que o meu destino como escritor era lá no Rio de Janeiro. Mas esse é um passo muito arriscado, pois a metrópole não recebe ninguém de braços abertos. A metrópole é um cemitério de ilusões. Hoje, com oitenta anos, aprendi que o mundo é cenário darwinístico – só sobrevivem os mais aptos. No meu caso, dei sorte, nunca tive que lutar pessoalmente, cara a cara. Sabia que teria um espaço porque minha obra é muito pessoal, muito marcada. Sou por uma estética da diferença, da “pluri-signi-

MA - Quem o senhor lê dos escritores contemporâneos? Ledo Ivo - Desde a infância que leio tudo. Gostava muito de ler livros de piratas e navios. Tenho uma grande biblioteca. Nas minhas muitas viagens, compro muitos livros, pois minha curiosidade é muito grande. Mas diria que estou numa época de releitura mais do que de leitura.

ficação”.

MA - Como vê a produção literária atual? Ledo Ivo - Com a introdução de novas linguagens, como a internet e a televisão, a posição da literatura mudou muito no Brasil. O mercado hoje tem um peso muito grande. Tem escritor que vive em função disso. O MA - Que conselho daria a um jovem escritor que quer vencer a batalha nesse cenário “darwinístico”? Ledo Ivo - Em primeiro lugar, jovem escritor não segue o conselho de ninguém, mas peço que eles não acreditem apenas no talento. A vocação é só o primeiro passo. Busquem cultura, aprimoramento, resistam às sereias do mercado e da mídia. Feche-se como uma concha, para depois se abrir.

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POESIA

LORENA ZAGO UM SER DE LUZ! Ela é cristal em sua essência, Na pele, um misto baiano com ítalo/germânico, No sorriso uma flor que desabrocha, Nos talentos tem todos os primores. Seu encanto ao universo encanta. Meiguice, perseverança e ternura, Somam-se aos movimentos, Graciosos quando dança. Sua compreensão de Mundo, Desvela-se em sublimes intentos, De alegria, esperança, confiança, Coragem e determinação. Transmuta suas posturas, Através do amor incondicional. Seus conhecimentos ganham expressão, Na ascensão diária.

Mesclam-se em movimentos físicos e espirituais, Primando pelo bem-estar, Humano e planetário. Suas condutas o dizem, E seus fazeres o demonstram. Sua beleza transcende da alma, A compaixão que compartilha aos pares. Um Ser de Luz, Que conduz à transparência, E em essência ilumina, Ao contexto, um novo texto, Onde haja espaço e compreensões, A novos seres e transformações, Despertando um alvorecer, De luz e pacificações.

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PROSA POÉTICA

CARLA DANIELY PÁSSARO AZUL O lindo pássaro azul na perfeita montanha, onde as nuvens alcançam o sol radiante. O canto melancólico do pássaro azul faz-me entender que o lugar é fascinante nos contrastes naturais junto à realeza dos outros animais. Outrora o vento trazia a leveza de um espírito reluzente, necessitando da minha presença humana, numa sintonia celestial. Era o pássaro azul envolvendo-se ao meu corpo, trazendo-me a paz que eu tanto precisava no momento. No meu semblante lágrimas deslizaram como chuva no solo fértil. Senti o Espírito Santo invadindo o meu ser na majestade do encanto e conduzindo-me até o céu, onde o meu pranto desmanchou-se no paraíso das flores. Surgiu um lindo jardim naquele lugar infinito entre ventos e calmaria. Clamei ao meu Deus para que eu permanecesse no paraíso para todo o sempre. Na divindade da minha alma tão especial, o pássaro azul estava a se transformar em um lindo lago azul e eu continuei a me encantar. Email: escritora.carladaniely@gmail.com

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POESIA

MARIA LEFEVRE LUVA SEM PAR Quando te leio, eu me procuro… Haverá um versinho pra mim? Estarei oculta no escuro De uma reticência, de uma entrelinha, Misturada numa metáfora? Talvez aquela palavrinha repetida seja eu, Mera diáfora, diluída no poema teu... Mas que bobagem me procurar na tua poesia, De olhos abertos, na madrugada fria a sonhar... Mas que tolice não perceber Que não importa o que você venha a escrever:

Eu visto em mim o teu texto, Sem pretexto, só por gostar, Como luva sem par, Como meia desencontrada Que vem meu pé esquentar... E tanto faz ser apenas uma luva, ou meia... Tua poesia me encanta e clareia, Como um raio de luar... O que eu gostaria de ler em ti, Posso muito bem redigir E fingir que foi você que escreveu pra mim, Fechar os olhos e divagar... E a outra luva vestir... E a outra meia calçar...

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CONTO

SÔNIA PILLON AS GARÇAS DA LAGOA

A luz do dia começava a atravessar a persiana do quarto. A pousada à beira-mar era aconchegante e estava com poucos hóspedes naquele inverno, que estava se despedindo. Mas era praia de surfista, sabe como é... Para os aficionados do esporte, todo dia é dia de pegar onda bem cedinho, ainda mais quando tem sol e o vento ajuda. Faltavam poucos minutos para as 8 horas. Aconchegada no edredom, Joana

começou a acordar lentamente, em movimentos lânguidos. Tinha dormido tão profundamente na noite anterior, depois de uma semana agitada, que uma agradável sensação de bem-estar a invadiu. Sentou-se na cama, cruzou as pernas e fechou os olhos, como se quisesse meditar. Aguçou os ouvidos para desfrutar do canto dos pássaros. Seus lábios se moveram involuntariamente e formaram um leve sorriso.

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Estava sozinha, mas se sentia completa naquele momento. Soltou um suspiro de satisfação. Ao abrir os olhos novamente, depois de um breve momento de abstração, Joana finalmente se levanta. Constata que o ar do mar abriu seu apetite e se arruma rapidamente para tomar o café da manhã. O refeitório da pousada estava vazio e apenas uma solícita funcionária a atendeu. Pela janela, viu que a estreita rua estava vazia. Ficou imaginando o agito que seria aquele lugar no verão, contrastando com o silêncio daquela manhã de domingo... Ao descer as escadas do refeitório, decidiu abrir os portões para alcançar a longa ponte de madeira rústica que condizia à lagoa, nos fundos da pousada. Sentiu uma emoção diferente ao ter a certeza de que apenas ela estava ali. Ouvia seus próprios passos avançando pela


ponte. A paisagem à sua frente ia se revelando mais e mais. Ao chegar ao deque, viu que a lagoa estava coberta de vegetação alta, contornando o espaço. E mesmo com o vento soprando, os raios solares garantiam o calor. Olhou em volta e viu a imensidão da lagoa, os morros, as casas ao longe... Silêncio total. Sentou-se no banco de madeira e ficou apreciando a paisagem, maravilhada, em êxtase. Sabia que aquele momento era único e não iria se repetir. Queria prolongar ao máximo. - E pensar que estou aqui,

vivendo esse momento só meu, pensou. Foi quando duas garças apareceram sobrevoando a lagoa, completando a cena e a tornando perfeita, como uma obra de um talentoso pintor... Mas a aparição foi rápida. Enquanto uma garça parecia indicar o caminho e ia se distanciando, a outra ave aquática, talvez mais cautelosa, ou cansada, opta por um voo rasante e aterrissa na lagoa, emitindo o som característico. Bate as asas, se debate. Teria se machucado na vegetação seca? Ou procurava um peixe fugidio? Joana a

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observa por cerca de um minuto, até que a garça sacode novamente as penas e prepara novo voo. Em ritmo slow motion, vai gradativamente ganhando altura e segue na direção da outra garça, até sumir no horizonte... Joana suspira, dessa vez de frustração. O presente virou passado. O sol ficou mais forte e chegou a hora de voltar pelo mesmo caminho que a levou até ali. Joana apressa o passo. Ao chegar ao portão, se vira e olha para trás. Queria registrar na memória, guardar cada detalhe. Foi embora agradecida.


POESIA

EDLTRAUD ZIMMERMANN FONSECA INVENTÁRIO DE UM POETA Escancarada a bocarra desdentada, tudo engolia Sôfrega, impiedosa, voraz, insaciável, Pedindo mais e mais ... Entre pó e lágrimas, assistia dorida, Enterro das minhas saudades, Das lembranças do passado, Guardadas em pastas envelhecidas Pelo passar do tempo e do abandono. 1962, começo de nossas vidas, do futuro que sorria! Contas pagas e a pagar, Listas e preços de supermercados, Carnês dos enxovais dos filhos que chegavam. Uma após a outra, contas de água, luz, da televisão em preto e branco. Trabalhos escolares do pré: Colagens, desenhos, rabiscos, Primeiras palavras escritas,

Lidas apenas por coração de mãe as pesquisas universitárias, trabalhos de graduação, Que riqueza! Dos artísticos cartões natalinos Enviados por amigos Muitos dos quais já partiram por desígnios de Deus. Como jogá-los no lixo? Tesouros só meus. Valores mudados. Permaneci no tempo Com essas reminiscências, Saudade amargando o meu coração Lágrimas cegando-me. Fechei o grande saco de plástico negro Contendo tudo o que fui, vivi e senti com ardor E entreguei a uma instituição de caridade para reciclagem Corações esmagados em forma de papel Eis o inventário de um poeta!

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ARTIGO

LUIZ CARLOS AMORIM A ILHA - QUARENTA ANOS DE LITERATURA Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, editor e revisor – Cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras. Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, que completa 40 anos em 2020. Http://luizcarlosamorim.blogspot.com.br – http:// www.prosapoesiaecia.xpg.com.br Com a edição de número 153 do SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA, de junho de 2020, comemoramos o quadragésimo aniversário da revista e do

Grupo Literário A ILHA. São quarenta anos de literatura, de divulgação de novos escritores, de abertura de espaços para levar a literatura catarinense e brasileira aos quatro

cantos do mundo. E não só a literatura brasileira é contemplada nas páginas da revista longeva, escritores de outros países também comparecem, para temperar o conteúdo de muitas edições. É uma revista literária internacional. Se você não leu ainda, vá à página do Grupo Literário A ILHA no Facebook. A revista está lá em formato e-book. Há que se comemorar um marco tão importante, há que se comemorar o grupo e a revista mais perenes do género - afinal, são quarenta anos de existência e resistência, sem nunca depender de nenhum órgão oficial. A nova antologia com a participação de todos os membros do grupo, que seria lançada neste mês de junho, foi adiada para o fim do ano, devido à

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pandemia. A mais recente antologia do grupo foi

Poetas da Ilha, lançada em 2018. Também faria parte das comemorações do quadragésimo aniversário a participação do grupo na Feira do Livro de Lisboa e da Feira do Livro do Porto, já que a redação da revista funcionou, temporariamente, na capital portuguesa, neste primeiro


semestre de 2020. Mas também devido à pandemia, as feiras foram adiadas e o Grupo A ILHA participará no próximo ano. Mas apesar da pandemia, o Grupo Literário A ILHA festeja, sim, com a edição deste mês de junho, comemorativa dos quarenta anos de trabalho em prol da literatura brasileira, desta nossa revista vitoriosa que é o SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA. O Grupo Literário A ILHA e a sua revista, o Suplemento Literário A ILHA, nasceram em 1980, na ilha de São Francisco do Sul. Em 1982 migrou para Joinville, também em Santa Catarina, movimentando por quase vinte anos a cultura da maior cidade do Estado. Em 2000, migrou para

outra ilha, Florianópolis. Sempre divulgando a literatura brasileira pelo país e pelo mundo, publicando a obra de nossos escritores em várias mídias, como a revista do grupo, o SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA, o portal PROSA, POESIA & CIA., na internet, em http:// www.prosapoesiaecia.xpg. com.br, através da Editora A ILHA, com mais de uma centena de livros solo e antologias de prosa e de poesia já publicados, através do Varal da Poesia - que transformou-se no Projeto Poesia no Shopping, através da participação em feiras do livro, em salões internacionais do livro e feiras em países como Portugal e Suiça, e através de outros projetos como Poesia na Rua, Poesia Carimbada, O Som da Poesia, Pacote de

Alguns dos centenas de escritores que compõe o Grupo Literário A ILHA

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Poesia e outros. São quarenta anos de trajetória, sempre adaptando-se às novos mídias, às novas tecnologias de informação para chegar até o leitor. Começamos com a revista só impressa, depois colocamos também a publicação na internet e agora ela é on line. As Edições A ILHA publicam, atualmente, além dos livros solo dos integrantes do Grupo A ILHA e das antologias, uma nova revista literária, a ESCRITORES DO BRASIL, esta que você está lendo, também on line, que veio para ampliar o espaço do Suplemento Literário A ILHA, que já estava ficando pequeno, apesar do crescente número de páginas. E está fazendo o maior sucesso, com mais de seis mil acessos a cada edição. E viva a Literatura catarinense, brasileira, universal. O Grupo Literário A ILHA continuará o seu trabalho para levá-la até o leitor. Sempre. Com muita prosa, muita poesia, muita informação literária e cultural, produzida por um time de bons escritores da atualidade e nomes imortais da nossa literatura.


POESIA

CÉLIA BISCAIA VEIGA SONHO Sonho que um dia, ao abrir o jornal, não verei notícias sobre corrupção e sim a cobertura de atos louváveis em verdadeiro benefício do povo.

e sim notícias de gestos de solidariedade independentes de catástrofes.

Sonho que um dia o maior best-seller não contará histórias de sexo e falsidades e sim narrará a comovente vida de uma professora primária. Como há tantas, totalmente dedicadas à difícil arte de ensinar. Sonho que um dia ao ligar a televisão, não ouvirei falar de bombas, nem de preconceitos religiosos,

Sonho que um dia o primeiro lugar nas paradas de sucesso não será de músicas vazias de mensagem mas sim melodias que retratem verdadeiros sentimentos. Sonho que um dia todos poderão sonhar e ter condições de ver seus sonhos realizados. Sonho, sim, que um dia ainda haverá de chegar, quando os meios de comunicação terão fatos agradáveis para noticiar. Sonho…

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ENSAIO

ENÉAS ATHANÁZIO A AÇÃO DE FARQUHAR EM SANTA CATARINA CAMINHO LONGO E TORTUOSO Embora publicado em 1964 nos Estados Unidos, depois de mais de quatro décadas de marchas e contramarchas, saiu no Brasil, em tradução de Eliana Nogueira do Vale, o livro “Farquhar, o último titã”, de autoria do historiador e brasilianista avant la lettre norte-americano Charles Anderson Gauld (1911/1977). Trata-se, segundo a crítica, da mais longa e minuciosa biografia do empreendedor norte-americano, nascido em York, Percival Farquhar (1864/1953), cuja vida está estreitamente ligada ao Brasil em geral e ao nosso Estado em particular, onde sua ação teve sérias conseqüências, até hoje sentidas em algumas regiões. O volume tem mais de 500 páginas, custou ao autor ingentes esforços e se fundamenta em bibliografia imensa, como costuma acontecer com ensaios biográficos america-

nos que esmiuçam o tema até o limite. Para chegar às mãos dos leitores brasileiros o livro percorreu longo e tortuoso caminho, merecedor de explicações minuciosas da editora e da tradutora. Publicado pela Editora de Cultura (S. Paulo – 2006), o livro contém interessantes fotografias e vários anexos que o atualizam e trazem novas informações sobre fatos posteriores, além de colocar um ponto final em algumas dúvidas existentes. Ainda que o autor não veja com simpatia nosso País, antes pelo contrário, é incrível que um livro dessa importância para nossa história só agora seja acessível ao pesquisador nacional.

VISÃO E CORAGEM Percival Farquhar foi um empreendedor de acurada visão futura e invulgar coragem. Depois de realizações em Cuba e na Guatemala, voltou-se para a América do Sul e o Brasil,

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ponto de partida para o império que sonhou edificar, conhecido como Sindicato Farquhar. Seus negócios incluíam portos, como os de Belém e de Rio Grande, exploração de minérios e madeira, frigoríficos, gado, colonização, terras, energia elétrica, carvão e outros, avultando seu interesse pelas ferrovias, planejando implantar uma rede transcontinental de trilhos que cobririam o Brasil, o Paraguai, a Bolívia, o Uruguai, a Argentina e o Chile. Sem dúvida, um empreendimento para mais de uma vida, ainda que ele tivesse vivido até os 89 anos. Encarado por muitos brasileiros como um aventureiro, Farquhar encontrou renhidos adversários, em especial entre os nacionalistas, como Monteiro Lobato, que o denunciou em carta ao então presidente Getúlio Vargas. É curioso notar que mais tarde o criador do Sítio do Picapau Amarelo deu início a uma biografia de Farquhar, com o con-


sentimento deste, projeto que não se concretizou em virtude da proibição da censura.

TRILHOS E SERRARIAS Entre as realizações de Farquhar no ramo dos transportes, avultam a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a lendária “ferrovia do diabo”, ligando Porto Velho a Guajará-Mirim (RO), visando desviar as violentas corredeiras daquele rio e ligando por terra a Bolívia ao Atlântico. A outra foi a construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, interligando todo o sul do Brasil e cortando o Vale do Rio do Peixe, entre Porto União, em Santa Catarina, e Marcelino Ramos (RS). Sobre o rio Iguaçu, em Porto União, foi construída uma ponte com 427m de extensão, a maior do País, na época, ainda hoje existente. Também construiu o ramal de São

Francisco do Sul e adquiriu a Estrada de Ferro Teresa Cristina, ambas em nosso território. Com o término do trecho Porto União-Marcelino, deu início à serragem de madeiras (araucárias e madeiras de lei) na serraria construída em Calmon através da afiliada “Southern Brazil Lumber & Colonization Corporation”, de sua propriedade. A derrubada das matas, inclusive das erveiras (erva-mate), e a expulsão dos posseiros contribuíram para fomentar a violenta Guerra do Contestado (1912/1916), fatos que são reconhecidos pelo biógrafo. Não parece, porém, que Farquhar tenha dado maior importância a esses acontecimentos e tudo indica que jamais esteve em Calmon, embora se referisse “à minha Lumber.” Existe aí, parece-me, pequeno engano do autor ao dizer que Calmon era a antiga São Roque, quando, na verdade, esta localidade

Percival Farquhar

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fica mais ao norte e Calmon se chamava antes Osman Medeiros. O empreendedor investiu grandes capitais sacados em bancos europeus, americanos e canadenses, razão pela qual – acredito – seu sindicato era às vezes designado como “polvo canadense.” Era a “dança dos milhões da Brazil Railway, que faziam de Farquhar a figura econômica mais poderosa do Brasil” – afirma o autor. Tanto a serraria como a estação de Calmon seriam queimadas mais tarde pelos revoltosos. Em território catarinense o empreendedor criou várias colônias, à margem da ferrovia, entre elas Legru, Rio das Antas e Nova Galícia. Esta última chegou a receber a visita do ex-presidente Theodore Roosevelt, em 1913. A grande serraria do grupo, no entanto, estava em Três Barras, com instalações modernas e maquinário poderoso que dela fizeram a maior indústria do gênero em toda a América do Sul. A Lumber foi fundada em 1908/1909, com base no Decreto 7426, de 3 de junho deste ano, mais tarde alterado. No ano seguinte se concluiria a primeira serraria, em Calmon, e os trilhos da ferrovia chegariam ao rio Uruguai, divisa


com o Rio Grande do Sul, em cuja margem oposta fica Marcelino Ramos. Neste ano Miguel Calmon du Pin e Almeida, que deu nome à estação, já havia deixado o Ministério da Viação, de forma que por ocasião da conclusão da estrada não era mais ministro de Afonso Pena.

O GRANDE DESAFIO Farquhar considerava a construção do trecho catarinense da ferrovia um grande desafio. Em direção ao porto de São Francisco havia a Serra do Mar a vencer. O Vale do Rio do Peixe, por sua vez, é irregular, com serras íngremes, exigindo técnicas especiais de construção, uma vez que seriam usadas locomotivas leves. Suas inúmeras curvas, túneis e obras de arte levaram alguns críticos a considerar a ferrovia inviável desde a inauguração, demorando e encarecendo o transporte das mercadorias. Por outro lado, o fato de usar lenha como combustível contribuiu para o rápido desmatamento nativo da região. Mas, para compensar, o clima da região era de boa qualidade, as terras férteis e quase desabitadas. O empreendedor, porém, não contava com a

decidida oposição dos pos- Afonso Pena sofreu um seiros. trauma moral que o levou à morte precoce, aos 60 anos, OS ENTRAVES quando descobriu o lodaçal que havia no Ministério da O autor do livro, às vezes Viação. afinado com o biografado, não poupa o País. O atraso, O IMPÉRIO RUIU a politicalha, a corrupção, a burocracia, o preconcei- O império de Percival Farto contra os negros e os quhar ruiu. Depois de serestrangeiros – tudo encare- rarem milhões de árvores, cia sobremaneira qualquer suas serrarias, afiliadas e realização. Exasperava-se sucessoras desapareceram ao verificar que os imigran- sem deixar vestígio e a rites se amoldavam aos usos queza produzida escoou locais, absorvendo os hábi- pelos vãos dos dedos para tos que considerava maus, outras regiões. Entregue “acaboclando-se.” Mas ele ao descaso e à corrupção, vislumbrava para Santa Ca- o trecho da ferrovia entre tarina e o Paraná um futuro Porto União e Marcelino brilhante na federação, ain- Ramos acabou desativado da que a corrupção também e hoje se transformou em funcionasse em Florianó- sucata. A região ficou empolis e Curitiba. “Custou pobrecida e jamais se refez caro aos cofres da Brazil por completo. Os ramais Railway subornar tantos remanescentes funcionam brasileiros para que agis- em condições precárias, sem em benefício do Brasil” mal conservados e care– escreveu Olivo Gomes, cendo de investimentos urentusiasta das iniciativas gentes para que não tenham do norte-americano. Nem idêntico destino. Em suma: mesmo Miguel Calmon e nada ou bem pouco restou Paulo de Frontin ficaram dos “milhões de Farquhar” isentos das suspeitas de em terras catarinenses. suborno. “Mas os amigos São algumas observações a de Farquhar sentiram que respeito de um livro às veos dois políticos (acima zes amargo mas que precisa referidos) estavam mais ser conhecido pelos catariinteressados em propina do nenses em geral. Querendo que em beneficiar o Brasil” ou não, Percival Farquhar é – afirmou Gauld. Segundo personagem de nossa históele, o austero presidente ria.

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POESIA

VALQUIRIA IMPERIANO CULTIVE Cultivando a amizade Cultivando o amor Seguimos pelo caminho. Somos todos irmãos na dor Na terra, no mesmo ninho Ligados num só destino Demos nossas mãos Somos todo um só coração! Seguimos pelo caminho Plantando amor perfeito Planta delicada sem espinhos Somos rosas perfumadas Com espinhos afiados Que somem durante nosso vivenciar Se todos se esforem

Teremos uma terra livre Linda Limpa, sem problemas Pessoas se amando sempre Buscando soluções Encontrando caminhos de volta Vivendo sem preocupações Que falta faz o amor! Somos todos homens nessa terra fértil Separados por fronteiras mesquinhas Cultivemos os mares, as florestas e a terra Cultivemos essa natureza E mais, cultivemos o próprio homem Demos as mãos ao próximo! Amemos sem pestanejar!

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CRÔNICA

LUIZ CARLOS AMORIM PANDEMIA: A ARTE QUE SALVA

A pandemia do coronavírus chegou, no início do ano, avassaladora, mortal, inclemente, atingindo o mundo todo e, aqui no Brasil como em outros tantos países, entramos em quarentena, ficamos em isolamento, em confinamento. Ficamos em casa por mais de dois meses, na tentativa de evitar a contaminação e a proliferação da nefasta covid 19, só saindo p a r a i r a o s u p e r m e rcado e à farmácia, de março a maio, quando o relaxamento ou desconfinamento começou, acontecendo em etapas para ver se continuava

ou retrocedia, conforme o comportamento das pessoas, do povo, e do vírus. E o retrocesso na volta ao funcionamento da economia e consequente saída para a rua de quem precisava trabalhar e pagar contas, fazer compras, foi inevitável e todos precisam continuar a se cuidar, pois a curva da pandemia continuou a subir. E ainda está subindo, apesar de alguns dizerem, neste quase final de julho, que chegamos ao pico. E cuidar-se significa sair de casa tanto menos quanto possível, usar máscara fora de casa, lavar as mãos frequen-

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temente, usar álcool gel e obedecer ao distanciamento físico – ou social. Então o que fazer, o dia inteiro dentro de casa, durante a pandemia? É preciso que nos ocupemos, pois temos muito tempo e logo nos primeiros dias de confinamento a gente consegue fazer tudo o que havia para fazer em casa: limpar, consertar coisas, fazer modificações, decorar, enfeitar, adequar, organizar, cozinhar, fazer pão, bolo, etc. Depois de tudo isso feito, certamente o que temos pra fazer é ler, ouvir música, assistir filmes e séries, televisão – que fica mais intragável agora, com as más notícias, mas há como se encontrar um ou outro canal que apresenta concertos de música clássica, peças de teatro gravadas, shows de músicas de todos os tipos. E há ainda a internet, onde podemos ter inúmeras lives ao vivo, filmes,


Live do conserto Rua das Pretas, transmitido pelo Zoom e pelo Instagram.

shows, jogos, etc. E o que fica evidente, ao verificarmos as opções que temos para ocupar nosso tempo em época de reclusão, é que não há outro jeito senão apelarmos para a arte. O que é a literatura, a música e o canto, o cinema, o teatro, senão arte? É a arte que nos está salvando de enlouquecermos, de afundarmos na depressão, de morrermos de solidão. É a arte que vem nos socorrer, ao nos dar momentos de prazer na leitura de um bom livro, ao assistir um bom filme, um bom documentário, um bom show, uma boa peça de teatro (ainda que gravada), ao ouvir boa música, seja qual for o gênero que apreciamos. É arte que está nos ajudando a nos manter sãos, ajudando a manter

a nossa saúde mental, em meio à situação tão trágica. E arte é cultura. E arte é vida. Como estamos cuidando da arte e da cultura em nosso país? Como cuidamos dela no passado, antes da pandemia? É triste ver a falta de valorização da arte, de apoio à arte, à cultura, pelos donos do poder, e isso não é de agora, deste tempo de pandemia, já vem num crescendo, de há muito tempo. Agora, então, durante a pandemia, o problema é muito mais grave. Músicos, atores, cantores, técnicos que atuam nos bastidores de espetáculos diversos, quase todos estão parados, pois as atividades que juntam pessoas, seja para atuar ou pasra assistir, estão suspensas, proibidas. Os

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músicos têm tentando resistir, fazendo lives na internet, mas é difícil cobrar pela sua arte (trabalho) oferecido. O que se pode fazer é pedir que o espectador contribua com o que puder ou achar que é justo. Não podemos esquercer, nunca, que a arte foi nosso porto seguro nesta pandemia. Não podemos esquecer o valor da arte, que nos mantém lúcidos e sensíveis, vivos, numa situação tão extrema. É a literatura, a leitura de um bom livro que nos mantém firmes na direção de um futuro possível. É a música que nos eleva a alma, que a deixa mais leve. E um bom filme pode fazer com que exercitemos a nossa sensibilidade e a nossa emoção, assim como a literatura e a música. A arte salva. (leiam meu Diário da Pandemia, na minha página e na página do Grupo Literário A ILHA no Facebook)


LIVROS

LUIZ RUFFATO LITERATURA EM TEMPO DE PANDEMIA A literatura não tem a pretensão de curar as dores do mundo; mas certamente ilumina caminhos. Não nos consola nem serve de lição para nada; porém, por meio das histórias, nos deparamos com dramas e tragédias que também são os nossos e, assim, nesse exercício de empatia, nos tornamos mais humanos. Neste momento em que nos pegamos a pensar na nossa sobrevivência, não mais como indivíduos, mas como espécie, vale a pena olhar para trás e buscar na

literatura algumas narrativas emblemáticas que, ao mesmo tempo que nos proporcionam prazer na leitura, nos fornecem elementos para refletir e seguir em frente. A seguir, ofereço algumas opções de livros, limitando-me àqueles que tematizam, direta ou indiretamente, o enfrentamento, por parte do indivíduo, de um mal que ele desconhece – e, por isso, teme. São oito romances e um conto de fadas (sim, um conto de fadas!). Deleitem-se!

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- Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento que Sopra sobre Ela, de Ignácio de Loyola Brandão - O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati - A Peste, de Albert Camus - Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe - A Aranha Negra, de Jeremias Gottheld - O Castelo, de Franz Kafka - Os Noivos, de Alessandro Manzoni - Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago - A Bela Adormecida, versão dos Irmãos Grimm


Pedidos deste livro pelo e-mail revisaolca@gmail.com


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