SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA - Dezembro/2022

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SUPLE MENTO LITE RÁRIO Florianópolis, SC – Dezembro/2022 – No 163 – Edições A ILHA – Ano 42 Portal A ILHA: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br AMORIM LANÇA O DIÁRIO DA PANDEMIA GANHADORES do Prêmio Jabuti 22 100 ANOS SEM LIMA BARRETO A LITERATURA, DIREITO HUMANO PERDEMOS NÉLIDA PINÕN

O RENASCER DO NATAL

Um menino vai nascer, neste Natal. Trará consigo a paz, a pureza verdadeira e o amor, quase esquecido. Trará ternura nas mãos, compreensão e carinho e esperança no olhar. Nós sabemos o seu nome. E nós sabemos, também, da flor do jacatirão,

que aparece todo ano, lhe anunciando a chegada. E quase ninguém a vê...

Um menino vai nascer. E a flor do jacatirão, arauto humilde e singelo, lhe festeja o nascimento, preparando as boas vindas. Saberemos nós, os homens, imitar a natureza?

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SUPLE MENTO LITE RÁRIO

EDITORIAL

QUE 2023 SEJA UM FELIZ ANO NOVO

E lá se vai 2022, que foi melhor que 2021 e muito melhor que 2020. A covid ainda está aí, mas quase todos estão vacinados e a pandemia já não está tão forte quanto esteve nos anos anteriores. E o Grupo Literário conseguiu manter a publicação do seu SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA, mesmo nos anos mais difíceis. Continuaremos na luta, pois sabemos que 2023 haverá de ser melhor. A literatura foi uma das artes que nos ajudaram a atravessar a pandemia e não podemos parar, pois mais do que nunca estamos lendo e também escrevendo. Nesta edição, muita prosa e muita poesia e, como sempre, muita informação literária e cultural. Trouxemos matérias sobre os ganhadores do Prêmio Jabuti, sobre o aniversário da morte de Lima Barreto, os 120 anos da publicação do livro OS SERTÕES, de Euclides da Cunha, resenha de livro sobre Kafka, reportagem sobre a Flip 22, que voltou com tudo, e muito mais. Este ano, apesar da pandemia, foi muito bom para o Grupo Literário A ILHA, pois comemoramos o quadragésimo segundo aniversário desta reunião de escritores e desta revista com a publicação de uma antologia, ESCRITORES DO BRASIL, com a participação de quase metade dos nossos escritores. Foi um encontro memorável para o lançamento da antologia, que aconteceu na Bienal do Livro de São José. Continuaremos trabalhando na divulgação dos escritores de língua portuguesa em 2023 e nos próximos anos. Continuem conosco. O Editor

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EXPEDIENTE SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA – Edição 163 – Dezembro/2022 – Ano 42 Edições A ILHA – Contato: lcaescritor@gmail.com e revisaolca@gmail.com A ILHA na Internet: Portal PROSA, POESIA & CIA.: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br

UM NATAL DE VERDADE

Lu I z C A r Los Amor I m – Li S boa, Por TU ga L

Os enfeites natalinos estão pela cidade toda, nas ruas, nas lojas, nas casas, nos jardins, os papais noéis invadiram a televisão, os jornais, as revistas, o rádio e até a Internet. Está chegando o Natal. E este Natal será melhor do que os últimos dois, pois poderemos nos reunir, apesar de a covid 19 não ter ido embora, até poderemos nos abraçar, quem sabe? E, de qualquer maneira, poderemos comemorar o nascimen -

to, mais uma vez, do Menino mágico que nasce todos os anos para trazer paz e esperança aos nossos corações. Natal, ah, o Natal... essa época mágica de desembrulhar esperanças, de dar de presente carinho, compreensão e amor, de construir e fortalecer a paz e a fé, de engavetar a saudade... Aquela saudade pequena, que vai ficando maior e que vai

doendo um pouquinho mais à medida que o Natal vai chegando. Saudade de almas queridas, como do Menino aniversariante, inquilinos vitalícios de nossos corações... E está aí o Natal, o mesmo Natal que, quando éramos

crianças, trazia Papai Noel com os brinquedos, trazia a árvore enfeitada, guloseimas e canções. Canções que falavam do nascimento de um Menino encantado que tinha o poder de modificar as nossas vidas, se quiséssemos. Ele representava o ano novo que vinha em seguida, a renovação, significava que a vida seria melhor, que nós, seres humanos, poderíamos ser melhores. Inexorável, vem a adolescência, a juventude e, adultos, vamos deixando aquela esperança mágica de lado, ocupados em sobreviver. Mas ainda há tempo de ver um raio de luz nascendo no horizonte de nossas vidas, um fio de esperança apontando o futuro. Ainda há um resto de fé se multiplicando, e este é o tempo para multiplicá-lo

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mais e mais. Porque o Natal é renascimento, é o encontro da paz, é busca do amor: é a comunhão com Deus. É a ternura de um Menino nascendo, é um sentimento maior que nós, homens, ainda podemos exercitar. Há que querermos um Natal completo e por inteiro, um Natal verdadeiro. E o espírito do Na -

tal, que aproxima os homens, pulsará em todo ser. E brilhará nos olhos de toda criatura, luz a colorir a vida, a semear a paz, sonhada e perseguida. E estará nas mãos de todas as pessoas, carinho a semear ternura. E soará dos lábios de cada um, canção a propagar a fé. Isto é o Natal do coração, presente maior que

podemos ter. Temos a mania de dizer, nós os adultos, que o Natal perde a graça, depois que crescemos. Mas temos que resgatar o nosso eu-criança em algum cantinho, temos que continuar sendo um pouquinho criança para não deixarmos de festejar com a alma e o coração o nascimento do Menino Deus, o aniversário do Homem de Nazaré. E haveremos de dizer uma prece para comemorar-lhe a grande data e pedir-lhe a bênção neste Natal...

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Viaje por Portugal através das crônicas desta obra.

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ILUMINAÇÃO

JúLIo de QueI roz

Não, Francisco, a terra, a luz, a lua, Não são irmãs amadas, disjuntas, mas são eu. assim como sou eu o verme que, na cova escura, Mordisca qualquer carniça que também é eu. E o mordiscar também é eu.

a longíngua estrela invisível, Pulsando na borda do universo é eu,

assim como sou o nêutron vagueando

No núcleo essencial. Sem mim o cosmo, incompleto, definharia; Sem o mínimo dele, Eu é que perderia a inteireza potenciada. Sim, irmão de assis esta é a grande paz: Ser tudo para todos e, sozinho, nada ser.

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NILTON SOARES FONSECA

TA m A r A zI mmerm A nn Fonse CA - Ind AIAL , s C

Foi um dançarino de primeira linha, um marido romântico a sua maneira, um pai divertido e ao mesmo tempo extremamente ciumento; presente, estava em todas as nossas festinhas feitas em nossa casa lá em Santa Terezinha, zona norte da capital Paulista. Cantava, se emocionava, ria das gracinhas de todos que lá estavam, nos levava e buscava na escola, no metrô, para o trabalho, aos programas de auditório, ao teatro, ao cinema. Amava, ao lado de mamãe, ver a Kombosa lotada dos filhos e

amigos dos filhos, seja viajando pro interior, pro litoral paulista, pra Santa Catarina ou para o Rio de Janeiro. Os passeios e viagens foram sempre uma alegria para todos e muito importantes para a nossa formação como família: a unidade, o amor, o companheirismo e a união que hoje são nossas referencias. Papai fazia e levava a “marmitinha” toda caprichada feita com muito amor pra mamãe no trabalho. Era detalhista: o pano

de prato deveria estar branquinho e fazia questão dele mesmo entregar para mamãe, acompanhada de um beijo. Ao voltar do trabalho sempre nos trazia bandejas de docinhos, ou pizza e refrigerantes, o que pra nós era uma grande festa! Dormia no sofá, no chão, na cama, na kombi, deitado, sentado, assistindo TV, onde fosse. E nós, os cinco filhos, puxamos isso dele, somos muito bons de cama, deitamos e dormimos

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muito, muito bem onde quer que seja!

Curtia e ria muito com seus cinco filhos e sua amada esposa: era na verdade uma grande criança. Claro que não era perfeito e tinha seus defeitos, mas sua marca maior foi sua alegria, generosidade, sua simplicidade em saber viver e nos mostrar, ao lado de mamãe, que devemos sempre seguir o caminho do bem, tratar to -

dos sempre da melhor maneira. Que a riqueza maior está em ser simples, humilde, respeitar o próximo e valorizar o que possuímos.

Um homem simples, andava por todos os cantos de São Paulo, conhecia a cidade como a palma da mão. De bermuda e chinelos, caminhava à vontade onde quer que fosse, seja para ir buscar mamãe na Caixa Econômica do Estado de

São Paulo, ou na UBE entre os ilustrados escritores. Da mesma maneira frequentava os botecos do bairro, nas horas de folga, fazia fretes com a kombosa, chamava um ou outro amigo para ser seu ajudante, por vezes, apenas para que a pessoa se sentisse bem, por estar naquele momento desempregado. Algumas vezes nem cobrava de quem o contratava, percebendo a precariedade de quem o contratava Adorava curtir na companhia de minha vó Lolita uma cerveja gelada, momento em que conversavam sobre tudo. Vó Lolita o amava e vice e versa.

Em 1985, Deus o chamou, mas impressionantemente, ele está todos os dias conosco, e assim será.

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NASCI ANTES DO TEMPO

CorA CorALI nA

Tudo o que criei e defendi Nunca deu certo. Nem foi aceito. E eu perguntava a mim mesma Por quê?

Quando menina, ouvia dizer, sem entender Quando coisa boa ou ruim acontecia a alguém: Fulano nasceu antes do tempo. guardei.

Tudo que criei, imaginei e defendi Nunca foi feito. E eu dizia como ouvia a moda de consolo: Nasci antes do tempo. alguém me retrucou. Você nasceria sempre antes do seu tempo. Não entendi e disse amém.

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EXEMPLO DE AMOR A SER IMITADO

Se me fosse dado o direito de escolha para a próxima reencarnação, se ela existir, voltaria na figura de um animal: um cão vira-latas, de preferência.

- Por quê?

- Simples: O animal age por instinto, ataca para se alimentar ou se defender ou ao seu dono, no caso de animal doméstico, como o vira-latas, por quem tenho carinho especial. A dedicação destes pequenos animais à família que o acolhe é de impressionar. Ele nada pede, ama simplesmente!

De todos os sentimentos do homem, como o ódio, a inveja, o egoísmo, a traição, ambição e pequenez, a falsidade, o AMOR é que perma-

nece no cão. Ele se faz sentir em todas as suas atitudes.

O vira-latas dificilmente é levado ao veterinário, é lavado com esguicho, come ossos e restos de comida do seu dono. E com que dedicação retribui essas migalhas, acompanhando-o a toda parte, como guardião fiel.

Com dezessete meses, esta semana morreu Juma, uma das filhas da Mocinha, minha cadela de estimação.

Juma, como uma potranca elegante e delgada, pulava com facilidade o muro de 1,50 m do meu quintal, lambia minhas lágrimas quando eu chorava, se arrastava pelo tapete, como soldado camuflado no campo de batalha, porque sabia que levaria um pito para cair

fora. Juma morreu apesar do carinho e cuidados recebidos.

Impressionou-me e fez-me refletir muito a atitude da Mocinha, durante o período em que Juma esteve doente.

Permaneceu ao lado da filha dia e noite, aquecendo-a com seu corpo sadio e forte, sabendo de antemão que o corpo da filha estava se dizimando!

Juma não resistiu, morreu!

Dias se passaram, Mocinha quieta e triste permaneceu sobre o túmulo da filha, no fundo do quintal.

Meu Deus! À cada instante de nossas vidas, recebemos dos animais mensagens de amor e fraternidade.

Por que não paramos um pouco para ouvi-los?

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É NATAL

É Natal

Quando o verde da mata Se transforma Em tapete colorido De flor de jacatirão, Nosso presente a cada véspera de Natal.

É Natal Quando em cada lar, renasce Jesus nos corações, De humilde manjedoura Como os corações dos homens.

É Natal

Quando os sinos dobram E as cigarras trombeteiam, Trazendo à tona a lembrança feliz e triste do Cristo amado e traído Por assumir nossa culpa.

É Natal, a festa maior da humanidade, de esperança e fé de perdão e amor.

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PENSANDO NELE

(Para meu bisavô Katzwinkel, que veio no século X i X de Kaunas, Lituânia, e para minha prima ivone Narloch, nascida Katzwinkel)

Se procurar nos velhos documentos da família vou encontrar, mas a verdade é que não sei de cor sequer o seu nome. Minha avó, que estava prestes a fazer 7 anos quando chegou aqui, casou-se com 26 por volta de 1908 ou 1909 – o que significa que eles vieram mais ou menos no ano de 1889... No tempo em que convivi com ela ouvi-a falar muitas vezes nele, mas ela dizia “Meu pai”, e então nunca soube o nome dele, mas ele é muito forte na minha vida. Estou na madrugada de Natal e penso nele,

como pensei tanto hoje, e nos últimos dias, e nos últimos anos, pois quando era mais jovem não chegava a me aprofundar neste assunto. Esta é uma época em que ele fica mais forte dentro de mim, pois fez uma coisa, no seu primeiro Natal no Brasil, que só gente muito especial teria feito: para não deixar passar em branco o Natal das suas crianças, an-

dou 30 quilômetros a pé de ida e 30 quilômetros de volta para, na manhã do dia festivo, suas crianças terem a surpresa de UM docinho de Natal cada uma, escondido sob o prato emborcado na mesa rústica de uma cabana de imigrante dentro da floresta ainda praticamente virgem. Quem era ele, como

era? Penso no meu pai, nos meus tios – o que teriam herdado dele? Penso em mim: a oitava parte da minha genética vem dele, e fico a lembrar como o meu pai era em relação ao Natal, data mágica e sagrada dentro da magia, fazendo tudo o que estivesse ao seu alcance para que cada Natal fosse um sucesso dentro de cada um de nós. Penso em mim e em toda esta curtição do Natal que possuo decerto porque herdei, e que faz com que eu faça todos os ritos, todas as comidas, enfeite a casa, mesmo que seja para comemorar a data apenas com os meus animaizinhos, como já fiz algumas vezes, como fiz hoje. Com meus cachorros empanturrados de peru saí para a noite, para a beira do mar desta enseada aonde vivo, e me sentei um pouco na beira daquela água que fica magnífica assim de noite, com os diversos pontos de luzes no seu entorno,

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tanto cá pelo continente quando mais lá longe, na ilha... Fiquei admirando a beleza daquilo tudo e pensando nele, naquele meu bisavô que me passou esta curtição do Natal, e me indaguei coisas: será que algum dia ele pensou que a sua filha teria um filho que teria uma filha, isto é, eu, que em pleno século XXI estaria na beirada do mar a pensar nele e a querer saber mais sobre aquele homem quase estranho mas que vivia tão fortemente nela? Imagino que ele fosse um jovem quando atravessou o grande mar-oceano num navio à vela que saiu de Hamburgo, navegou até Lisboa e depois ficou três meses vendo só “céu e mar”, conforme minha avó Emma Katzwinkel Klueger contava tantas vezes, pois quando se aventurou assim sua criança mais velha ainda não completara sete anos... Imagino que depois daquela travessia é provável que nun-

ca mais tenha visto o mar... O que pensava ele, o que sonhava? A luta pela vida era difícil e perigosa, então – dentre outras coisas, com sua família, estava dentre o fogo cruzado do genocídio Xokleng que acontecia no Vale do Itajaí, coisa tão criminosa e abjeta que foi parar num julgamento na Corte de Haia, na Holanda – a situação era difícil e imagino que sonhava, sobretudo, com segurança, com muita comida para suas crianças, com uma casa mais confortável do que sua cabana de palmitos... É provável que muita gente tenha esquecido dele, depois da luta que foi sua vida, mas agora ele está tão vivo e tão forte aqui

dentro de mim! Então fiquei lá na praia, nesta noite, olhando no entorno e pensando nele, e estar ali, com aquela água linda e aqueles colares de luzes me dava a sensação de estar dentro de um presépio, daqueles que o Frei João Maria o.f.m. fazia na igreja de Nossa Senhora da Glória, na Garcia, em Blumenau, quando eu era pequena, e então ficou mais forte a sensação de que ele estava ali comigo, quiçá em mim, pois se vim dele... Só queria contar que tenho pensado muito nele, naquele meu bisavô Katzwinkel que um dia veio lá do Mar Báltico, da cidade de Kaunas, na Lituânia. Como ele é forte em mim!

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TÃO SEU

LUiS LaÉrCio gErôNiMo – LagarTo, SE

É assim que eu era Quando eu pensara Que tu me quiseras Tão seu!

É assim que eu sou Quando em mim pousou Ternura sincera Tão seu?

Não sei se serei Pois enfim cansei dessa longa espera recolher-me-ei Quem sabe outra vez N'outra primavera!

A antologia comemorativa dos 42 anos do Grupo Literário A ILHA e de circulação da nossa revista Suplemento Literário A ILHA já está à disposição na Amazon e no Clube de Autores.

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ESCRITORES DO BRASIL

Muita prosa e muita poesia em mais de 300 páginas.

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TESTEMUNHO EM BRILHO

m A r IA T eres A F re I re – C U ri Tiba, P r

Na minha morada silenciosa e escura aguardo o momento especial. O momento em que a luz clareia minha escuridão como o prenúncio da claridade constante que envolverá meus momentos, horas, dias e noites que seguirão.

A claridade que se incorporará à minha existência envolver-se-á de risos, conversas, abraços, beijos, cumprimentos carinhosos, de alegria!

Estarei acompanhada de brilhos, enfeites, mesa decorada, vinho saboroso, comida deliciosa. Estarei acompanhada de pessoas calorosas, vestidas com

suas melhores roupas, com seus finos acessórios, envoltas em animação, em satisfação, em esperança de que o momento quase perfeito se repita nos dias adiante. Retiram-me do local escondido, protegido onde estou embrulhada em papel de seda para que eu me mantenha brilhante e suave. Desembrulham-me, apreciando minha beleza singela, ainda que imponente. Levam-me para eu ser colocada no lu -

gar que é sempre meu, acima das desavenças, acima do malquerer que, por vezes, se instala entre as pessoas. Acima da inveja, do ódio, da luta, do desencontro, dos vários desamores. Acima dos males terrenos que afligem mentes, almas e corações. Acima sim, para que o meu brilho lhes recorde para onde devem dirigir seus passos: para a luz, esperança e fraternidade. Lá, do alto, observo a casa colorida,

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em verde, vermelho, prateado e dourado. Cores espalhadas por todos os espaços familiares, em pequenos objetos, em flores diminutas, em grandes pétalas que preenchem vasos de cristal límpidos e transparentes. Enfeites da época que relembram tradições, apegadas aos seus corações e mentes, tradições veneradas, tradições que sustentam o sentido da festa, a ingênua crença das crianças e a esperança de muitos.

Continuo a olhar, curiosa, os brindes em alto e em bom tom para que todos se unam no tilintar das taças, cheias de borbulhas na de -

licada cor âmbar a confirmarem os desejos de felicidade. Sigo olhando, atenta, aos atraentes pratos abarrotados dos manjares apetitosos que traduzem a reverência ao capricho de criação de tantos sabores delicados, fortes, claros, escuros, mas sempre convidativos à degustação.

Junto a mim, outros acompanhantes se instalam harmonizando-se àqueles duradouros momentos de contentamento e resplandecente de boa vontade entre as pessoas. Todos nós, bolas, pingentes, guirlandas, luzinhas e tantos outros, somos partes desse momento

de regozijo e cooperamos para que assim seja. Nós, as enfeitadas decorações de Natal.

Sou a estrela que, na ponta mais alta da árvore de Natal, simboliza a verdadeira estrela que guiou os três Reis Magos até ao Pequeno Menino que nascia e trazia consigo a esperança de amor e renovação ao mundo. Sou a estrela cujo brilho deve ser a guia de todos para a luz, para a compreensão, solidariedade e fraternidade. Recolhem-me à minha morada silenciosa, porém com um sentimento esperançoso de ter cooperado em um festejo glorioso de amor e aconchego humano. No próximo ano voltarei para renovar esses votos, com o mesmo brilho de sempre, pois represento a estrela que guia suas vidas!

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CANÇÃO DO DIA DE SEMPRE

mAr Io Qu I nTAnA

Tão bom viver dia a dia... A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida, inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio: Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua, Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança das outras vezes perdidas, atiro a rosa do sonho Nas tuas mãos distraídas...

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17 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

DIÁRIO DA PANDEMIA EM LIVRO

Lu I z CAr Los Amor I m – São Jo SÉ, SC

A pandemia, infelizmente, continua e atualmente estamos tendo a ameaça de uma nova onda, mas eu parei de escrever o Diário da Pandemia no final do ano passado, em novembro e continuei a registrar o que havia para registrar semanalmente, até junho deste ano de 2022. Comecei a escrevê-lo em abril de 2020, então o diário tem mais de dois anos de registros de como nos comportamos durante as fazes mais terríveis da covid 19, com confinamentos, desemprego, solidão, falta de vacina, descaso com a doença, distribuição deficiente e

irresponsável da vacina, depois que ela finalmente foi aprovada. Lá por meados do ano de 2021, quando a vacina estava bem encaminhada, com uma cobertura das duas doses aproximando do ideal para evitar a disseminação descontrolada, os

números de mortes e novos casos diminuídos, transformei o diário em Crônica semanal da pandemia, pois já não havia tanto a registrar. E parei em maio deste ano, quando os números do novo coronavírus caíram ainda mais e a vacinação já estava na

quarta dose. Com a nova onda, em meados deste ano, pensei em voltar com o diário, mas existe tanta coisa acontecendo neste nosso mundão de Deus que achei melhor não. Tivemos uma nova ameaça de pandemia, desta vez com a varíola dos macacos, que estava se espalhando pelo mundo, temos a guerra criminosa da Rússia contra a Ucrânia, que já dura meses, temos os absurdos do atual desgoverno do Brasil, que rasgou a Constituição, com a PEC das bondades, distribuindo benefícios em ano de pandemia em ano de eleição para se reeleger. Ainda bem que este desgoverno está saindo. Vamos esperar que as coisas melhorem. Então estou revisando os dois anos de registro para publicar o Diário da Pandemia, em dois

18 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

volumes. O primeiro volume, referente ao ano de 2020, já está pronto e deverá estar disponível nas plataformas como Amazon, Clube dos Autores e outras, impresso e em e-book. O segundo volume, referente ao ano de 2021 deve sair no início do próximo ano. Torcendo para que a nova onda não se concretize e as pessoas que ainda não tomaram a vacina se conscientizem de que só se imunizando poderemos respirar e considerar a pandemia ultrapassada, tomando todas as doses que devem ser tomadas para, se pegarem a covid, que peguem bem fraquinha, sem perigo de internação, UTI e morte.

A PANDEMIA,

A DIA

DIA

Este primeiro volume do meu diário é um registro do dia a dia de uma família durante a pandemia da

covid 19 nos anos de 2020 e 2021. É claro que não será o mesmo cotidiano de outras tantas famílias pelo mundo todo, o nosso foi até brando, pois tínhamos nosso neto Rio, que nasceu em 2019, um ser de luz que veio para iluminar dias terríveis que teríamos logo

em seguida. Nossos dias em Lisboa e em São José, na Grande Florianópolis foram mais suaves, apesar de todo o terror acontecendo ao nosso redor, pois em 2020 moramos em Lisboa uma parte do ano, no mesmo apartamento do centro de Lisboa, com

a família do Rio: eu, Stela, Rio e os papais, Pierre e Daniela. Foi uma bênção ter a companhia do Rio, pois a sua alegria contagiante e a sua fofurice transbordante faziam a gente esquecer que a pandemia estava lá fora. Só saíamos para ir à farmácia, ao supermercado, à quitanda, mas não era problema ficar em casa o tempo todo, pois Rio estava lá e nem percebíamos o tempo passar, a não ser pelo desenvolvimento dele. É sempre um privilégio poder ver nosso neto crescer. Voltamos ao Brasil ainda em 2020, mas retornamos a Portugal em 2021 e ficamos mais um bom tempo usufruindo da companhia de Rio, de Daniela e de Pierre. Moramos em apartamentos separados, mas estávamos sempre visitando Rio. E mesmo quando voltávamos

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ao Brasil, continuávamos falando com o neto, em chamadas de vídeo do Whatsapp, Facetime, Messenger, Zoom. E ele acalentava a nossa saudade com sua alegria imensa. Então este diário mostra como foram os nossos dias de pandemia, um a um, mas não só o que fizemos, o que deixamos de fazer, nossos sentimentos e medos, a solidão dos confinamentos, a falta do abraço e do sorriso das pessoas, o nosso cotidiano, mas também a progressão da pandemia, o colapso da saúde, o desgoverno do nosso pais, que desvalorizou a nova doença e também as vacinas, deixando de comprá-las em tempo hábil, atrasando a disponibilização para o povo brasileiro, que chegou a morrer aos milhares por dia. Registra também a politicagem gras -

sando numa época em que os políticos deveriam trabalhar para minimizar os efeitos da pandemia. Também a roubalheira dos recursos que deveriam ser usados para suprir hospitais de pessoal qualificado, equipamentos e medicamentos. A economia, combalida com o fechamento do comércio, da indústria e de serviços, provocou desemprego e fome. Este diário não é uma tragédia completa para nossa família, que tivemos dias felizes, apesar de tudo, mas foi para muita gente. Muita gente mesmo, no mundo todo. Não pegamos a covid 19, mas Rio, Daniela e Pierre sim. Os pais do Rio, duas vezes. Mas estão bem, com saúde e sem sequelas, pois estavam vacinados. Meu diário registra os anos de 2020 e 2021. O próximo vo -

lume abrange o ano de 2021 e o comecinho de 2022. O que não quer dizer que a pandemia acabou, ela continua aí, mas a maioria das pessoas está vacinada, então os casos diminuíram e ela já não mata tanto quando nos anos anteriores, graças a Deus. Sobrevivemos à covid 19. Apesar de desgovernantes e políticos que não sabem nada de política, quem dirá de saúde. Gostaríamos de esquecer esses anos terríveis, mas não podemos deixar de lembrá-los, para que não aconteçam de novo. (Luiz Carlos a morim – Escritor, jornalista, editor, professor e revisor, Cadeira 19 da a cademia Sul b rasileira de Letras, Fundador e presidente do g rupo Literário a i Lha E editor das Edições a i Lha)

20 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

SOLIDÃO

aproximo-me da noite o silêncio abre os seus panos escuros e as coisas escorrem por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora em que me recolheria como um poente no bater do teu peito mas a solidão entra pelos meus vidros e nas suas enlutadas mãos solto o meu delírio

É então que surges com teus passos de menina os teus sonhos arrumados

como duas tranças nas tuas costas guiando-me por corredores infinitos e regressando aos espelhos onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite trazem a sua esponja silenciosa e sem luz e sem tinta o meu sonho resigna Longe os homens afundam-se com o caju que fermenta e a onda da madrugada demora-se de encontro às rochas do tempo

21 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

GANHADORES

DO PRÊMIO JABUTI E O LIVRO DO ANO

miada foi Lilia Schwarcz, ao lado de Jaime Lauriano e Flávio dos Santos Gomes, com “Enciclopédia Negra”. Confira os premiados do Prêmio Jabuti 2022

LITERATURA

Os vencedores do 64º Prêmio Jabuti, que condecora as melhoras obras literárias do país, foram divulgados.

O grande vencedor foi “Também guardamos pedras aqui”, de Luiza Romão, eleito o Livro do Ano. Além da estatueta, a autora receberá R$ 100 mil. “Tudo começou na virada de 2016 para 2017 quando terminei de ler a “Ilíada” e completamente atravessada por essa narrativa de horror, comecei a sonhar, ouvir e conversar com essas figuras: heróis tombados, amazonas, pitonisas, guerreiras (que através dos séculos parecem dizer tan -

to sobre o aqui-hoje).

Num país em ruínas, num momento de espólio como este em que estamos vivendo, essas pedras são minha aposta”, contou a autora sobre a obra de poesia em uma publicação no Instagram.

A premiação é dividida em quatro eixos principais: literatura, não ficção, produção editorial e inovação, que comportam vinte categorias.

Dois anos após vencer o melhor livro de biografia e reportagem de “Escravidão”, Laurentino Gomes volta a receber o prêmio na mesma cateogria com o segundo volume da obra. Outra veterana pre -

• Conto: “A vestida: contos”, de Eliana Alves Cruz

• Crônica: “A lua na caixa d’água”, de Marcelo Moutinho

• História em quadinhos: “Escuta, formosa Márcia”, de Marcello Quintanilha

• Infantil: “Sonhozzz”, de Silvana Tavano e Daniel Kondo

• Juvenil: “Romieta e Julieu”, de Ana Elisa Ribeiro

• Poesia: “Também guardamos pedras aqui”, de Luiza Romão

• Romance de Entretenimento: “Olhos de pixel”, de Lucas Mota

• Romance Literário: “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk

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NÃO FICÇÃO

• Artes: “Apontamentos da arte africana e afro-brasileira contemporânea: políticas e poéticas”, de Célia

Maria Antonacci

• Biografia e Reportagem:“Escravidão – Volume II”, de Laurentino Gomes

• Ciências: “Um tempo para não esquecer: a visão da ciência no enfrentamento da pandemia do coronavírus e o futuro da saúde”, de Margareth Dalcolmo

• Ciências Humanas: “Enciclopédia Negra”, de Jaime Lauriano, Flávio dos Santos Gomes e Lilia Moritz Schwarcz

• Ciências Sociais:

“Máfia, poder e antimáfia”, de Wálter Fanganiello Maierovitch

• Economia Criativa: “Nem negacionismo, nem apocalipse”, de Gesner Oliveira e Arthur Villela Ferreira Inovação

• Fomento à Leitura: “Vaga Lume: como livros mudam a vida de crianças e adultos na Amazônia”, de Sylvia Guimarães

• Livro Brasileiro Publicado no Exterior: “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior

O livro O VALE DAS ÁGUAS, seleção de crônicas sobre Corupá, a Cidade das Cachoeiras, com muitas fotos e cores ilustrando os textos, está à disposição, na Amazon. Veja no link https://amz.run/4LtO .

Se você conhece Corupá, vai gostar de relembrar e rever as belezas da cidade. Se não conhece, vai gostar de conhecer as belezas do Vale das Águas.

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SE EU PUDESSE TRINCAR A TERRA TODA

Se eu pudesse trincar a terra toda

E sentir-lhe um paladar, Seria mais feliz um momento... Mas eu nem sempre quero ser feliz. É preciso ser de vez em quando infeliz Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol, E a chuva, quando falta muito, pede-se.

Por isso tomo a infelicidade com a felicidade Naturalmente, como quem não

estranha

Que haja montanhas e planícies

E que haja rochedos e erva...

o que é preciso é ser-se natural e calmo Na felicidade ou na infelicidade, Sentir como quem olha, Pensar como quem anda, E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, E que o poente é belo e é bela a noite que fica... Assim é e assim seja...

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LIMA BARRETO: HOMENAGEM NOS CEM ANOS DE SUA MORTE

Obras celebram a vida e trabalhos do autor, que soube interpretar a loucura, o racismo e a política brasileira de uma forma que continua atual, mesmo um século depois Novas produções foram lançadas em novembro para celebrar a obra do escritor brasileiro Lima Barreto, cuja morte completou 100 anos dia 1º de novembro. No mês da Consciência Negra um livro, um filme e um podcast dão destaque ao autor que soube retratar a cidade do Rio de Janeiro além dos cenários de cartão postal, e que era crítico ferrenho do racismo, que ele sofria na pele, já na década 1910.

“Lima talvez estivesse a frente de seu tempo e, por isso, vem sendo retomado agora”, diz

a historiadora Lilia Schwarcz, que já biografou o autor e lança, neste mês, o livro “Triste República, em parceria com o cartunista Spacca, pela editora Companhia das Letras. O livro é uma HQ

que conta a história da Primeira República brasileira (que durou de 1889 a 1930) pelos olhos críticos de Lima Barreto. Spacca ressalta que os problemas e as preocupações da época se parecem muito aos de hoje. Desde a pandemia

de gripe espanhola que acometeu o mundo e o Brasil entre 1918 e 1920, até as observações de Lima sobre o que hoje chamamos de “racismo estrutural”, que são os reflexos mais sutis da discriminação racial na nossa sociedade. Lima Barreto foi escolhido para conduzir o leitor no passeio pelo passado, pois como disse Spacca, “foi alguém que viveu e sofreu nesse tempo, e soube registrar isso em sua obra.” O escritor, inclusive, chegou a receber críticas por fazer romances e crônicas muito ancorados na realidade brasileira. Após ter perdido a mãe muito cedo e ter visto o pai enlouquecer durante a infância, Lima assumiu o sustento da família. Ao longo da vida se tornou dependente

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do álcool, e por causa do alcoolismo foi parar em um hospício duas vezes.

O filme LIMA BARRETO, AO TERCEIRO DIA, com direção de Luiz Antonio Pillar, retrata um dos períodos no qual ele ficou internado no hospício. O autor foi internado porque começou a ter delírios causados pelo álcool, e no longa ele passa a alucinar com os personagens de seu romance mais famoso, “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, e a relembrar sua juventude.

Como pontua Schwarcz, “a questão da loucura social é parte fundamental da obra do Lima”. Ele percebeu, muito antes da luta antimanicomial sequer existir aqui no Brasil, como apenas as classes subalternas iam parar no manicômio. Ele descreve em sua obra como as pessoas negras e po -

bres estavam mais propensas a serem internadas e consideradas loucas, situação que perdura até hoje. Lima antecipou diversas discussões que passariam a se popularizar apenas mais tarde, como a influência da raça e da classe na saúde mental e no trata -

mento pelas instituições públicas.

O modo como Lima Barreto conseguiu interpretar o Brasil do passado de uma forma que continua atual no presente também é tema do podcast “Lima Barreto, o negro é a cor mais cortante”, da Rádio Batuta, criada

pelo Instituto Moreira Salles. “Quando ele pensa em corrupção, em desigualdade, e nas ambiguidades do Brasil, ele está refletindo diretamente sobre a Primeira República, mas também sobre a nossa República de hoje”, explicou Gabriel Chagas, professor de literatura e cultura luso-afro-brasileira na Universidade de Miami. Gabriel é um dos apresentadores do podcast, ao lado da professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Beatriz Resende. Os dois recebem um convidado por episódio para tratar sobre a vida e a obra do escritor carioca, suas críticas ao racismo e à política, sua passagem pelo hospício e a forma como ele retratou a realidade do Rio de Janeiro. Lançado no cente -

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nário da morte do escritor, o podcast destaca aspectos de sua vida e de sua obra em avaliações feitas por dois profundos conhecedores: Beatriz Resende e Gabriel Chagas.

Lima Barreto foi um dos primeiros escritores a deslocar o

foco da literatura para os subúrbios do Rio de Janeiro, mostrando uma parte da cidade que outros artistas preferiram esconder.

“Ele escolhe como tema o subúrbio do Rio de Janeiro e chama atenção para um país que, em geral, ignora grande

parte das suas periferias”, disse Chagas. O professor explicou que esse é um dos motivos da obra de Lima Barreto seguir tão atual, alguns problemas e desafios do Brasil permanecem os mesmos ao longo dos anos, vão apenas se atualizando. “Um país que ignora seus avessos, suas ambiguidades e seus interiores jamais pode ter uma democracia efetiva e um progresso de fato. Lima Barreto percebeu isso há mais de 100 anos”, completou Chagas.

27 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42
REVISÃO DE TEXTOS E EDIÇÃO DE LIVROS
Da revisão até a entrega dos arquivos prontos para imprimir.
Contato: revisaolca@gmail.com

FANTASIA

mAurA soAres – FLoriaNóPoLiS, SC

Era como se o mundo não existisse e tu e eu vivêssemos numa imensa floresta Árvores frondosas ao nosso redor

Pássaros em todas as árvores

Um lindo regato deslizava perto de nós Flores multicoloridas encantavam um jardim. Somente nós dois e o nosso amor a realidade estava longe, dispersa de nós Tínhamos um ao outro, nada mais importava. Era pedir demais? Eu merecia tanta felicidade? E tu, era assim que imaginavas a vida a dois? realidade, fantasia... onde uma começa e a outra acaba?

Um tênue fio divide as duas.

desperto do sono. barulhos de carros na avenida. Levanto, ainda tonta com o sonho. Olho pela janela a chuva molhou o asfalto e continua a correr deslizando pela sarjeta levando pedaços de papel atirados ao léu. Sonho, fantasia, realidade...

até quando? até sempre. É o sonho que nos embala, a fantasia que nos conduz e a realidade a nos mostrar que outro dia começa. atenta ao relógio recomeço as tarefas deixadas no dia anterior.

8.12.2009 [In: Um amor para lembrar, págs. 25/26]

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A LITERATURA COMO UM DIREITO HUMANO

No Brasil, a leitura enfrenta a perda de leitores nos últimos anos, causada por fatores que estão associados à dificuldade de acesso aos livros

Por VALENTINE HEROLD

“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.”

“a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”
 (Antonio Candido)

O ano é 1988. Ainda a passos lentos, marcado pelas mais de duas décadas de

perseguições, torturas e cerceamento de liberdades, o Brasil tentava se reerguer do período sombrio da ditadura militar. Ayrton Senna celebrava seu primeiro título mundial no grand Prix do Japão, a teledramaturgia fazia história com a novela Vale Tudo (e a icônica pergunta “quem matou Odete Roitman?”), ambientalistas choravam o brutal assassinato de Chico Mendes e o mundo da cultura perdia o cartunista Henfil e o comunicador

Chacrinha, geniais em seus respectivos campos de atuação. Mas é possível que nenhum desses fatos históricos seja inicialmente lembrado quando pensamos naquele ano, pois outro episódio ficou marcado na memória coletiva do país como “o” acontecimento de 1988: a promulgação da Constituição b rasileira . Foi justamente naquele contexto de abertura política e investidas para construir uma democracia forte que Antonio Candido escreveu o célebre ensaio o direito à literatura , publicado pela primeira vez naquele ano e cujos trechos estão na epígrafe desta reportagem.

Professor, sociólogo e um dos nossos maiores críticos literários, Candido revolucionou o olhar para a literatu-

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ra ao jogar luz sobre sua intrínseca relação com os direitos humanos. Este icônico texto é o fundamento e a síntese de sua análise transformadora. Em menos de 30 páginas, ele elabora uma defesa da literatura enquanto direito de todos e dever do Estado, além de retratar com clareza os porquês da leitura ser uma ferramenta de desenvolvimento social e instrumento necessário para o pleno exercício da cidadania. o direito à literatura é, de certa forma, também um manifesto, ainda tão contemporâneo, sobre a desvalorização do livro e dos leitores por parte do poder público no nosso país. “Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização”, escreveu Candido no início do ensaio. As questões políticas nefas -

tas remanescentes da ditadura e os imbróglios da transição para eleições presidenciais diretas não eram o único sinal da barbárie apontada pelo crítico. O Brasil lidava com inflação descontrolada, PIB estagnado, desemprego e uma imensa dívida externa. Ironia do destino ou tragédia anunciada, se conjugarmos essa última frase no presente ela permanece desgraçadamente atual. O paralelo socioeconômico é de devastação, mas o artístico também, pois estamos sendo governados por uma administração federal que não esconde seu profundo desprezo pela liberdade e pelo caráter emancipador da arte. No contexto de extinção do Ministério da Cultura e constantes cortes de verbas para o campo artístico, encontramos o setor literário desamparado. E as consequências

desse abandono já vêm sendo sentidas e medidas através de números, como o da perda de 4,6 milhões de leitores, apontada pela edição mais recente da pesquisa retratos da Leitura no b rasil . Mas teria muita coisa mudado mesmo nos últimos anos ou nunca fomos, de fato, um país leitor? Antes de buscar compreender como chegamos até aqui e quais as consequências dessa lacuna histórica, é preciso voltar a Candido e exercitar um olhar generoso em relação à função social da literatura. “Pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o outro”, escreveu o crítico. A afirmação parece óbvia, quando associamos o adjetivo “indispensável” a direitos vitais como água, alimentação,

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moradia ou acesso à educação. “Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoiévski ou ouvir os quartetos de Beethoven?”, continua. Essa provocação é o ponto de partida para um esclarecimento sobre o que ele chama de bens compressíveis e incompressíveis.

Um bem incompressível equivale às necessidades básicas de todo indivíduo e um compressível àquelas não são essenciais para a sobrevida humana. Algo aparentemente fácil de ser diferenciado, só que na prática da defesa pelos direitos humanos a teoria é outra, marcada por uma linha muito tênue entre sobrevivência física e espiritual, em que a fruição artística é assimilada como um poderoso instrumento de transformação social.

Voltemos ao ano de 2021, meses após a

divulgação da quinta edição da Retratos da Leitura no Brasil. Promovida a cada quatro anos pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural, a pesquisa é um termômetro do comportamento do leitor médio brasileiro. Além de mapear dados estritamente atrelados à atividade leitora, como quantidade de livros lidos, preferências de autores, gêneros e formatos (digital ou papel), e de revelar essa distribuição por faixas etárias, gênero, renda, escolaridade e estados de origem, entre outros critérios socioeconômicos, a pesquisa, nas últimas duas edições, também se propôs a entender certos hábitos diários dos entrevistados e como eles podem influenciar ou atrapalhar no foco da leitura. Perguntas como “Qual fator mais influencia o senhor, a senhora, na hora de escolher um li-

vro ou autor para ler?”, “Quais atividades mais gosta de fazer em seu tempo livre?”, “Quais dificuldades encontra para ler?”, “Quem foi a pessoa que mais o/a influenciou ou incentivou a gostar de ler?”, “Seus pais ou alguém da família já lhe deu algum livro de presente?” , “Quais atividades passa mais tempo realizando na internet?”, entre muitas outras, nos fornecem preciosos insights sobre o comportamento de leitores e não leitores do Brasil. Mais do que nos permitir entender os hábitos de leitura, a retratos nos ajuda também a entender o próprio Brasil através dos costumes literários de sua população. Principalmente ao compararmos os resultados desta última edição com as anteriores.

Os dados mais alarmantes são, com certeza, os da perda de leitores, da dimi -

31 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

nuição do gosto pela leitura conforme o avançar da idade e do aumento de tempo dedicado às atividades virtuais. Mas, afinal, o que é um leitor para os critérios da pesquisa? Esqueçamos a ideia de alguém que emenda um livro no outro, ávido por novos títulos. O conceito utilizado abrange toda pessoa que leu, inteiro ou apenas alguma parte, pelo menos um livro nos últimos três meses. Ainda assim, temos apenas 100,1 milhões de leitores em todo o país, ou seja 52% da população. A média de leitura por ano é de 2,55 livros inteiros e 2,41 livros em partes. “Muitas pessoas nunca sequer tiveram a oportunidade de ler um livro de literatura. Ou porque não têm acesso, pois ninguém nunca os apresentou, ou porque realmente não conseguem compreender o que está escrito. Dos

67% que responderam que não gostam de ler, 40% afirmaram que têm dificuldade para entender a leitura. Não podemos esquecer que ainda temos no Brasil um alto número de analfabetos funcionais e isso tudo nos aponta para um problema estrutural que passa pela educação”, ressalta a pesquisadora e coordenadora

da retratos da Leitura no brasil, Zoara Failla. “A possibilidade de ser leitor é um direito roubado de muitos brasileiros desde a alfabetização. Uma coisa é quem realmente não gosta de ler, mas teve o direito dessa escolha; agora, é muito mais complicado para quem nunca nem teve a possibilidade de dizer se gosta ou não por-

32 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

que nunca recebeu o estímulo e as condições materiais e intelectuais para isso.” Socióloga e gerente de pesquisas do Instituto Pró-Livro, Zoara está à frente da Retratos da Leitura desde seu início, em 2001. Ao longo desses 10 anos, ela vem acompanhando de perto não só os resultados de todas as edições, como também o panorama literário do país, e afirma que os dados recentes não foram de grande surpresa. “Olhando para os últimos quatro, cinco anos, verificamos um desmonte das políticas públicas do livro envolvendo as bibliotecas, a desarticulação do Plano Nacional do Livro e Leitura, o enxugamento dos orçamentos de grandes espaços e de projetos voltados para a leitura. Também não podemos esquecer que temos cerca de 60% das escolas públicas do ensino básico sem

bibliotecas, um número muito alto. A justificativa é a falta de verba, mas sabemos que passa primeiro por uma vontade política. E, claro, temos a presença forte do uso do celular”, pontuou em relação ao panorama.

Os dados da terceira, quarta e quinta edições da pesquisa em relação ao uso do tempo livre só fizeram confirmar o que empiricamente já estava sendo observado no dia a dia: as redes sociais e os serviços de streaming têm ganhado um espaço cada vez maior na vida dos brasileiros. Em 2011, 24% das pessoas entrevistadas pela Retratos da Leitura responderam que gostavam de navegar pela internet nas suas horas vagas. Quatro anos depois, esse número subiu para 47% e pulou para 66%, em 2019. O aumento das horas no Whatsapp também foi bastante significativo, já

que os 43% de 2015 passaram a 62% em 2019 (em 2011, ainda não existia o aplicativo). Enquanto o Facebook, Twitter e Instagram ocupavam o tempo livre de 18% das pessoas no ano da terceira edição, o dado pulou para 35%, na quarta, e para 44%, nesta última. Tempos não tão distantes em que, inclusive, o TikTok ainda nem reinava nos smartphones das crianças e adolescentes. Em paralelo a essas pesquisas de cunho mais sociológico (como também a b rasil que Lê ), outros estudos relativos ao cenário do livro chegam regularmente às notícias. É o caso do Painel do Varejo de Livros no b rasil e da Pesquisa de Produção e Vendas do Setor Editorial b rasileiro, ambos realizados em parceria entre Sindicato Nacional dos Editores de Livros e a Nielsen Books -

33 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

can Brasil. Respectivamente mensal e anual, eles também apontam dados atrelados ao comportamento dos leitores brasileiros, mas com foco mercadológico.

O interessante é perceber que, muitas vezes, os resultados do Painel do Varejo e da Retratos da Leitura parecem totalmente antagônicos. Enquanto uma nos revela um esperançoso e muito celebrado aumento nas vendas dos livros mês a mês, a outra lamenta uma grande perda no número de leitores. Para o professor, doutor em Filosofia e ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura, José Castilho Marques Neto, as pesquisas de vendas de livros se relacionam às dos hábitos dos leitores, mas não podem ser confundidas. “Ter um aumento na compra de livros não significa que o brasileiro esteja lendo mais. E um futuro

aumento no número de leitores também não irá, necessariamente, envolver aumento de vendas.”

Poder de compra não necessariamente significa assiduidade.

Nesta equação livreira, as bibliotecas e os empréstimos entre amigos têm uma presença importante. ***

“Toda literatura representa uma ação cidadã, porque ela é memória. Toda literatura preserva alguma coisa que de outro modo morreria com a carne e os ossos do escritor. Ler é resgatar o direito a essa imortalidade humana, uma vez que a memória da escrita é abrangente e ilimitada.”
(Alberto Manguel, em Encaixotando minha biblioteca)

Para entender o tamanho do desafio que é tornar o Brasil um país realmente leitor, é preciso mais uma vez recorrer à História. Não só para os caminhos apontados

por Candido 33 anos atrás, como também para um tempo mais distante, lá no século XIX. Segundo as pesquisadoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman, autoras do livro a formação da leitura no brasil (Editora Unesp), podemos situar no ano de 1840 o início de uma sociedade brasileira leitora. Recém-independente, o país ainda estava empenhado em se desvincular da imagem de colônia, mas já possuía meios (ainda que mínimos) para produzir e fazer circular jornais, livros e revistas produzidos aqui. Tipografias e bibliotecas fundadas ainda sob a corte portuguesa contrastavam, entretanto, com escolas ainda precárias, a falta de livros verdadeiramente nacionais e com o avanço do mercado leitor na Europa. Por lá, a popularização da leitura datava das revoluções burguesas iniciadas no

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século XVIII e com a chegada de máquinas às fábricas. Segundo Marisa, para poderem usar esses novos instrumentos de trabalho, os operários precisavam ler as instruções, daí o desenvolvimento da leitura que veio a seguir. Por aqui, a tradição oral ainda tinha muita força e a alfabetização era luxo. O abismo social e racial entre quem era permitido estudar e quem era marginalizado já se instaurava. Além de estarem em total descompasso com a realidade local, as obras trazidas para o Brasil com a chegada da família real em 1808 não eram nada novas. Em 1810 foi fundada a Biblioteca Nacional, então chamada de Biblioteca Real, aberta ao grande público quatro anos depois. Imponente, requintada e muitíssimo elogiada por estrangeiros de passagem pelo Rio de Janeiro, a bibliote-

ca era um local ímpar. Dentre seus frequentadores, estava o missionário norte-amerciano Robert Walsh. “Passei grande parte do meu tempo nesse nobre estabelecimento, e não o considero inferior a nenhum outro similar na Europa, tanto no tamanho quanto na amplidão das acomodações”, escreveu. Já a preceptora da princesa Maria da Glória, a inglesa Maria Graham, apontava para a carência de obras atualizadas: “Há algumas belas obras de história natural; mas, com exceção dessas, nada moderno; raramente um livro que tenha sido comprado há menos de 60 anos”. A falta de títulos nacionais talvez tenha passado despercebida aos olhares estrangeiros, mas é pontuada por Marisa e Regina no livro. Hoje gerida pelo governo federal, a mais antiga instituição cultural brasileira sofre

com cortes de verbas e teve, nos últimos 10 anos, seu orçamento reduzido em 46%.

A crítica à falta de livros nacionais nas bibliotecas também era direcionada aos currículos escolares e o “abrasileiramento” da literatura, principalmente nos livros didáticos, vai acontecer somente do meio para o fim do século XIX, tendo o intelectual paraense José Veríssimo, fundador da Academia Brasileira de Letras, como um dos grandes defensores do antilusitanismo. Aqui também é preciso citar José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Euclides da Cunha e Maria Firmina dos Reis que, entre outros autores, retrataram com perspicácia em seus romances o Brasil que estava se formando nesse período da pós-abolição. É nessa mesma época que surgem com mais regularidade as publi -

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cações voltadas ao público infantil, como folhetins e revistas em quadrinhos. Para Marisa Lajolo, que também é autora de livros infantis, professora de Literatura na Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisadora de Literatura Brasileira há mais de 50 anos, a educação está no centro dos problemas e das soluções da formação de jovens leitores. Já em 1996, na primeira versão de a formação da leitura no b rasil , ela escreveu junto a Regina que “o futuro escritor – e com ele, quantos leitores? – está fadado a ler na clandestinidade. Com efeito, raras vezes as leituras que produzem prazer circulam num ambiente sancionado, como a escola. (...) Essas leituras são clandestinas, porque nada têm de pragmáticas. A escola, prática e aplicada, considera-as indesejadas e

bane-as, estabelecendo-se uma dicotomia intransponível e inconciliável. Se a escola patrocinar leituras que atendam apenas à imaginação e ao gosto, rompe o pacto educacional; se evitá-las, torna-se detestável (...)”.

Difícil não lembrar de Clarice Lispector e de sua memória literária de infância tão lindamente retratada no conto Felicidade clandestina. Após muito ir atrás, ela consegue emprestado um livro que estava ansiosa para ler e recebe, da mãe de sua amiga, a autorização para ficar com a obra o quanto quisesse antes de devolvê-la. “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que

não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.”

Ou ainda pensar no jovem Professor, personagem criado por Jorge Amado em seu clássico Capitães da areia, um menino pré-adolescente que, pelas circunstâncias e abandonos da vida, teve que crescer antes da hora. A leitura, para ele, sempre foi esse espaço de refúgio. Ele furtava tudo para vender e comprar comida, só que o destino dos livros roubados era em um lugar bem-guardado, no trapiche onde dormia. Após 25 anos, a análise de Marisa continua centrada na escola enquanto maior formadora de leitores, mais do que a família. Mas ela acredita que esse desencanto pelos livros entre os jovens acontece a

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partir do Fundamental II, momento em que a educação se torna mais canônica e impessoal, daí também uma explicação para um dos resultados surpreendentes da Retratos da Leitura que é o da faixa entre os 5 e 10 anos representar a maior porcentagem dos que dizem que gostam muito de ler. “Sendo realista, a escola continua com esse protagonismo. Claro que depende muito das famílias e das comunidades, mas se pensarmos no instrumento pedagógico mais disseminado na sociedade brasileira, temos as escolas. Agora, a prática da leitura é algo que vai mudando ao longo da vida. Atualmente, tenho achado interessante a presença dos booktubers ! Eles têm quase a mesma idade dos jovens que queremos tornar leitores, se expressam de uma maneira que gera identificação e

falam dos livros de jeitos muito diferentes dos professores”, aponta a pesquisadora. Ex-aluna e orientanda de Antonio Candido quando foi estudar na USP, nos anos 1960, Marisa reverbera o pensamento do mestre até hoje em sua prática docente e em sua visão de mundo para com a defesa da literatura enquanto direito humano. “Lembremos que o direito à literatura inclui também o direito de escolha do que ler. A abolição das políticas do livro e o atual projeto de taxação são instrumentos de uma elitização inaceitável das práticas leitoras”, defende.

***

“Nas mãos de um leitor, um livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. daí a ambivalência da sociedade em face dele, suscitando por vezes condenações violentas quando ele veicula noções ou oferece

sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever.”
 (Antonio Candido)

Em maio de 1933, diversas cidades alemãs foram palco de uma queima pública de livros, episódio que iria se repetir ao longo dos anos subsequentes e que tem até um verbete próprio em alemão, b ücherverbrennung , de tão marcante que foi essa prática no período nazista. Era o começo do regime, iniciado com a chegada de Hitler ao poder apenas quatro meses antes, tendo sido a ação capitaneada pelo então ministro da Propaganda, Joseph Goebbels – a mesma figura que inspiraria o ex-secretário de Cultura do Brasil, Roberto Alvim, escolhido a dedo pelo presidente Bolsonaro em novembro de 2019. Alvim durou pouco no cargo, sendo exonerado em janeiro de 2020 devido à reper-

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cussão negativa de um discurso que fez parafraseando Goebbels e referenciado o nazista com diversos elementos estéticos. Uma dessas queimas de livros dos anos 1930 que ficou para sempre marcada na história de Berlim é retratada com grande emoção no best-seller a menina que roubava livros (2007), de Markus Zusak. Esse mesmo gesto de re -

púdio aos livros havia sido referência para outra grande obra de ficção, que também toca no tema da censura literária por parte dos regimes totalitários, a distopia Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. No Brasil, livros também já foram alvos da fogueira dos reacionários, como aconteceu em 1937 quando, numa praça de Salvador, cer-

ca de mil exemplares do já citado Capitães da areia foram queimados pelo Estado Novo de Getúlio Vargas devido ao caráter socialista da obra. E poucas décadas depois, a ditadura militar instaurou um sistema de censura que resultou na circulação clandestina e até mesmo no apagamento de incontáveis obras. Agora, outra forma de ameaça contra o acesso livre à leitura paira no ar com o projeto de taxação do Ministério da Economia. Em julho de 2020, o ministro Paulo Guedes propôs uma reforma tributária que inclui a criação de um novo tributo. Para substituir o PIS e a Cofins – que hoje não são cobrados sobre os livros –, seria aplicada a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), com uma alíquota de 12%. Com a mudança, os livros voltariam a per-

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der isenção à cobrança de imposto o que, claro, acarretaria em um aumento no valor do produto comprado pelo consumidor. A relação do mercado do livro com o sistema tributário é uma verdadeira peleja que teve início em 1946. Na época, Jorge Amado liderou o debate que culminou a favor da isenção de impostos sobre o papel utilizado na impressão de livros, revistas e jornais, prevista na Constituição Democrática. Em 1967, essa imunidade foi ampliada para o próprio objeto livro e assim permaneceu até 1988, quando a Constituição reiterou a jurisprudência. Por último, houve a lei promulgada em 2004, que reduziu a zero a alíquota do PIS e da Cofins nas vendas de livros. Conquistas realizadas a passos lentos e com o envolvimento de muita gente, que estão agora ameaçadas nova-

mente.

“Esse projeto de taxação gerou um grande debate sobre o impacto que esse aumento de preço causaria. Claro que nós, editoras, somos totalmente contra pois nos preocupamos com o futuro do mercado do livro. Essa alíquota de 12% acabaria sendo maior no preço de capa, representando um aumento de cerca de 20%”, explica a vice-presidente do Grupo Editorial Record, Roberta Machado. “Tudo influencia no custo de produção de um livro, desde a energia elétrica gasta na impressão até o preço da gasolina para o envio dos exemplares, passando pela alta do dólar, que está ligada à compra do papel e aos contratos de direitos autorais, no caso de livros traduzidos. É uma conta que envolve toda uma cadeia! Em 2004, quando entrou a alíquota zero, conseguimos diminuir bastante o preço do

livro e observamos que isso acarretou um aumento de vendas, numa democratização maior da leitura.” “É um desafio viver de vender livros, mas são em momentos como esses que estamos passando, tão duros, que vemos o quanto a arte nos salva”, continua. “Falando do que percebemos durante a pandemia, foi interessante ver um aumento na procura por obras de fantasias, clássicas, distopias e também de ficção nacional, escolhas bem significativas, que nos mostram o quanto a literatura está sempre em diálogo com a atualidade.”

Para entender como é definido o preço final de um livro, existe uma conta fácil de ser feita e que, para Roberta, é importante de ser propagada. Cerca de 50% do valor fica para os pontos de venda, 15% são destinados às despesas administrativas, ou -

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tros 15% aos custos gráficos, 10% vão para os autores e os últimos 10% compõem o lucro da editora. A atual proposta do Ministério da Economia chegou a surpreender muitos leitores que sequer sabiam que já existia essa isenção. A repercussão nas redes sociais nas semanas que seguiram o anúncio do projeto ecoou em todo o país, assim como muitas críticas ao já elevado preço do livro. Essa resposta por parte das entidades livreiras, de autores, profissionais do mercado do livro como um todo e da sociedade civil foi tanta que o texto não foi, até hoje, apreciado pelo Congresso. Em cerca de três meses, 1 milhão de assinaturas eletrônicas contra a taxação foram colhidas e entregues ao Senado. O projeto não é levado adiante, mas também não sai de vez da pauta. “Nós não podemos

entender esse projeto de taxação de maneira estanque, separada do conjunto do ataque destrutivo à cultura que está acontecendo nesse governo. É um item fundamental, porque mexe com o bolso dos brasileiros e com a sustentabilidade econômica da indústria editorial, mas ele faz parte de um conjunto de destruição ao pouco que ainda se construiu pela formação de leitores no Brasil. Não se pode esquecer que a primeira coisa que governos tiranos fazem é cortar a palavra”, analisa o ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura, José Castilho Marques Neto. “Após o Golpe de 2016, como o impeachment da presidenta Dilma, na primeira semana do governo de Michel Temer tivemos dois atos importantes nesse caminho. Ele suprimiu o Minc e, por pressão da so-

ciedade, acabou voltando atrás, mas com um detalhe, rebaixando a Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas a um departamento.” Nesse fluxo de sucateamento tido por muitos analistas como um projeto político contra a cultura, a visão que os atuais governantes têm da literatura preocupa tanto quanto suas ações. Ao defender o projeto de taxação, Paulo Guedes justificou a alíquota afirmando que quem paga por livros hoje no Brasil já seriam os mais ricos, então não haveria muita diferença na prática. Uma falácia que vai de encontro com a ideia elitista que a literatura é, em sua essência, voltada para quem tem mais renda. “É uma alegação de um absoluto distanciamento do que é o Brasil”, contesta Castilho que, além de ter atuado com protagonismo na criação do

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Plano Nacional do Livro e Leitura, já dirigiu a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. “É um absurdo enorme dizer que são os ricos que mais compram livros quando a própria pesquisa Retratos da Leitura nos mostra o contrário. Essa afirmação de Guedes foi de uma perversidade imensa, uma versão contemporânea da afirmação de Maria Antonieta mandando o povo comer brioche na falta de pão.”

Apostando na ciên -

cia para combater os argumentos rasos do ministro da Economia, o setor livreiro tem nas pesquisas uma poderosa ferramenta para construção de futuras políticas públicas. Dentre as informações mais substanciais da quinta edição da Retratos da Leitura no Brasil estão as que dizem respeito ao papel das bibliotecas e dos mediadores na formação de leitores e do quanto se precisa investir neles. Apenas 7% dos en -

trevistados afirmaram que sua principal forma de acesso ao livro é através do empréstimo em bibliotecas públicas ou comunitárias. A maioria também (56%) enxerga a biblioteca como um local voltado para os estudos, e não como um espaço público de fomento às atividades culturais. Para Castilho, as bibliotecas são a maior e mais capilarizada rede de equipamento público cultural do país. Ou pelo menos deveriam ser. “Em um país com as dimensões do nosso e com uma pobreza ainda persistente, o acesso a um bem e a um direito como o livro depende muito do funcionamento de instituições públicas. E aí a comparação com a saúde é inevitável: o que seria do Brasil se, anos atrás, o SUS não tivesse sido transformado em política pública? Entendemos que a biblioteca é um equipamento

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cultural que fornece muito mais do que um livro emprestado, é um local de encontros, de debates, de formações, de preservar e publicizar a cultura. É um patamar e um local de transmissão de conhecimento e quem faz a cultura é a população. Então o que precisamos fazer aqui? Primeiro, voltar a rejuvenescer essas bibliotecas através de ações integradas dos eixos do Plano Nacional do Livro e Leitura. Não adianta só abrir as portas e passar um detergente para o piso ficar cheiroso”, defende o ex-secretário executivo. Hoje, completamente desmobilizado, o PNLL foi criado em 2006 e é chamado por José Castilho de “pacto social” por conseguir conciliar os três níveis da federação e a sociedade civil. Elaborado a partir da escuta de demandas de bibliotecários, educadores, pesquisadores, em -

presas, governos estaduais e prefeituras, ele é formado por programas e projetos seguindo quatro eixos principais costurados pela democratização do acesso à leitura.

O plano foi um marco que, em 2016, resultou na solicitação da lei da Política Nacional de Leitura e Escrita, instaurada dois anos depois.

De toda essa efervescente movimentação iniciada na metade da década 2000, nasceram programas emblemáticos, como o Vale Cultura (descontinuado em 2016), e grandes incentivos para a criação e manutenção de bienais e outras feiras literárias.

Nos primeiros anos de implementação do PNLL, principalmente entre 2008 e 2010, a crença no projeto resultou em um aporte financeiro de cerca de R$100 milhões, investidos em reformas de bibliotecas, formação de agentes de leitura e promoção do Bra -

sil em feiras literárias internacionais, entre muitas outras ações. Hoje, esses avanços parecem bem longínquos. “Quando foi sancionada, a Política Nacional de Leitura e Escrita previa sua implementação a partir de 1° de janeiro de 2019, mas aconteceu o que acontece com grande parte das leis que afirmam nossos direitos de cidadãos: nada. Vindo de um governo que suprimiu e continua suprimindo todos os nossos direitos, inclusive nosso direito maior, que é o direito à vida, não devemos esperar nada de positivo. Devemos manter a resistência da sociedade civil e esperar um novo período político para que possamos implementar a lei e retomar nossos planos. Quando a situação histórica virar – e vai virar! –, novas iniciativas vão ocorrer e sempre terão o PNLL como ponto de partida”,

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contextualiza. Outras demandas do setor livreiro ligadas a políticas públicas estão há anos e anos na pauta. A redução do IPTU para livrarias e o preço fixo do livro são duas delas, realidade já em muitos outros países. Espanha, Alemanha, Portugal, Coreia do Sul, Grécia, Japão e nossos vizinhos latinoamercianos Argentina e México são algumas das nações onde o preço único do livro é lei. São pouquíssimas até agora, menos de 20 no mundo todo, e uma das pioneiras nesse debate foi a França, que, em 1981, instituiu a Lei Lang, nomeada em homenagem ao então Ministro da Cultura, Jack Lang. Já na época as discussões acerca da concorrência desleal de grandes redes em relação às pequenas livrarias estavam acaloradas e culminaram na instauração da lei que determina que

o preço das editoras deve estar impresso na capa ou contracapa da obra e que o máximo de variação permitida é de 5% em cima daquele valor. No Brasil, a movimentação acerca desse tema é liderada pela Liga Brasileira de Editores e pela Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro, Leitura e Biblioteca, na Câmara dos Deputados, que já redigiu inclusive o projeto da Lei do Preço Fixo ou Comum. O PL 49/2015 se baseia na bibliodiversidade e, apesar de bem-estruturado, ainda precisa ser amplamente divulgado.

Outra experiência além-mar única é o programa Books in Prescription, política pública de saúde inglesa baseada na biblioterapia. Desde 2013, pacientes portadores de doenças psíquicas recebem orientação médica para diminuir a medicação – ou até mes-

mo tirar, nos casos mais leves – e substituir antidepressivos e ansiolíticos por livros. O destino final após a consulta não é mais a farmácia e, sim, a livraria, com receita indicando as recomendações de leituras.

***

“ o prazer de ler um livro amortecia humilhações (...) Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Entre o mundo dos livros e a realidade, ia uma colossal distância. o s livros podiam conter sordidez, malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia neles uma redenção qualquer.”
(Isabela Figueiredo, em Caderno de memórias coloniais)

Na ausência de ações unificadas do governo federal, alguns governos locais vêm se esforçando no estímulo à leitura e no apoio a projetos de forma-

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ção. Planos estaduais e municipais do Livro, Leitura e Literatura garantem direitos básicos e ações continuadas em diversos lugares do Brasil, mas ainda são movimentos tímidos em comparação à força das políticas públicas nacionais. A verdade é que ainda falta vontade política e muito orçamento para ir além. A sociedade civil, com resistência e resiliência, acaba preenchendo essa lacuna e as bibliotecas comunitárias são um grande exemplo disso. O pedagogo pernambucano Gabriel Santana é autor, junto a André Cervinskis, da pesquisa Mapeamento das bibliotecas comunitárias de Pernambuco, iniciada em 2014, com financiamento do Funcultura. Ao longo de quatro anos, a dupla percorreu 10 cidades do Estado, do Litoral ao Sertão. “Queríamos mapear experiências de leitu-

ra que estivessem fora da gestão pública mas, com nossos resultados, poder contribuir para o Estado pensar suas políticas públicas de leitura. Esses diagnósticos costumam incomodar os gestores, porque eles se veem confrontados com o tanto que falta a ser feito. Em muitas cidades, os prefeitos e secretários costumam enxergar política de leitura apenas como compra de livros”, relata Santana.

“Uma biblioteca comunitária tem uma concepção fluida que envolve muito mais do que empréstimo de livros e contações de histórias. Ela exerce uma função articuladora para com a comunidade e de acesso a informações relevantes no dia a dia dos moradores, como reunir contatos de costureiras, carpinteiros, ter uma conexão de internet à disposição e por aí vai. A biblioteca

comunitária fomenta uma identidade local, valorizando uma raiz comum a partir de uma experiência de gestão compartilhada. Isso é valiosíssimo”, dimensiona o pesquisador. Gabriel reconhece o PNLL como estimulador direto de muitos projetos sociais envolvendo o incentivo à leitura. Em 2007, um ano após a criação do Plano, ele fez parte da fundação da Releitura, uma união de bibliotecas comunitárias da Região Metropolitana do Recife, hoje integrada numa ampla rede nacional. A Biblioteca Popular do Coque, uma das mais conhecidas na capital pernambucana, foi fundada há quase 15 anos pela pedagoga Maria Betânia com a ajuda de seu filho, Rafael Andrade, que também participou da criação da Releitura. Em 2007, quando tudo começou, não havia biblioteca no

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bairro, “até as das escolas estavam fechadas”, lembra Rafael. “Fundamos o espaço a partir de uma demanda da própria comunidade, que queria um lugar onde as crianças pudessem socializar. Hoje, nosso acervo é composto por títulos para todas as idades, mas o foco maior é na literatura infantil e juvenil. Ainda assim, temos atividades para todo mundo, pois entendemos que a biblioteca comunitária não pode estar desconectada dos problemas da comunidade. Fome, saneamento básico, condições sanitárias dentro de casa, acesso à internet… como poder ser leitor e investir tempo na leitura quando se está tomado por esses problemas?”, questiona. Uma análise que conflui com a do direito à literatura de Antonio Candido, quando escreveu que “em princípio, só numa sociedade igualitá -

ria os produtos literários poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil, onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura. Por isso, numa sociedade estratificada deste tipo, a fruição da literatura se estratifica de maneira abrupta e alienante”. Hoje, a Biblioteca Popular do Coque tem parcerias com um instituto privado que ajuda Maria Betânia e Rafael na manutenção do espaço. Foram alguns primeiros anos na base do voluntariado e de muita dedicação. Ao longo dos últimos 14 anos de atuação na biblioteca, Rafael pontua que a maior mudança foi o reconhecimento por parte dos moradores do espaço como central na comunidade. Ele ob -

serva que um dos grandes impactos positivos foi ajudar jovens a escolherem cursos técnicos e graduações, além de acompanhar o surgimento de autores dentre os frequentadores do espaço. Toda essa discussão envolvendo a importância da leitura e de sermos um país leitor passa por fortes questões políticas e sociais, mas há aí um caráter de fruição que também é central. O prazer em escolher um novo livro e ter ao menos alguns minutos para se dedicar aquele universo ficcional é incomparável. Mas, às vezes, predomina uma sensação de isolamento que parte da solitude da atividade leitora. A necessidade de conversar com outros leitores e partilhar experiências é comum e vem alimentando centenas de clubes de leitura Brasil afora. Um clube expressivo no Brasil contempo -

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râneo é o Leia Mulheres, criado em 2015, em São Paulo, pelas amigas Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques. Rapidamente a ideia seduziu outras mulheres apaixonadas por literatura de autoria feminina de diversas localidades e hoje acontece mensalmente em mais de 100 cidades brasileiras. As mediadoras do clube são todas voluntárias e os encontros, totalmente gratuitos, características que Juliana Gomes faz questão de ressaltar. “A democratização da leitura é muito importante pra gente, evitamos escolher um livro que custe mais de R$50 e prezamos por um ambiente de troca igualitária e respeito. Um clube de leitura não tem nada a ver com uma aula, é uma conversa, um intercâmbio de experiências de leitura que quase sempre estão associadas à história

de vida de cada leitora, cada leitor”, pontua a fundadora e ativista pela leitura, que há 25 anos trabalha com literatura. “Ouvir outras pessoas sobre um livro que acabamos de ler potencializa a apreciação da obra e nos estimula a querer ler mais. Acredito que o aumento desses clubes também vem mexendo nos papéis dos autores, que precisam agora se acostumar com esses críticos que não são acadêmicos. O foco é no leitor, que sempre foi protagonista, mas por muitos anos visto como coadjuvante no mercado do livro.”

Em meio a essa mudança de paradigmas está a internet.

Quando compartilhada com amigos e desconhecidos, em plataformas virtuais, a leitura parece ganhar uma força afetiva renovadora e revolucionária. A recente popularização das redes sociais e o consequente boom de

perfis e canais dedicados a resenhas de livros no Instagram e no YouTube colocou os leitores no centro do debate. Mais recentemente, o TikTok e o Twitch vêm igualmente se revelando populares palanques para a criação de conteúdo sobre livros e também para negócios. Existem já muitos influenciadores digitais deste nicho, com milhares de seguidores e contratos fechados com grandes editoras, como é o caso da booktuber Tatiana Feltrin, com mais de meio milhão de inscritos em seu canal, e Pedro Pacífico, jovem advogado que faz resenhas para uma comunidade de quase 400 mil pessoas no Instagram. Perfis voltados à literatura nessas redes acabam cumprindo um papel muito instigante na formação de leitores, em um diálogo pessoal e interações diretas. A paulistana Livia

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Piccolo é uma dessas criadoras de conteúdos com um percurso que começou no teatro e no cinema, se estendeu pela literatura e agora agrega essas três frentes de atuação na internet. À frente do canal da editora Antofágica no YouTube, Livia também pensa e escreve sobre literatura no seu Instagram e dá cursos sobre a arte das narrativas. “A leitura é a melhor ginástica cerebral. Nascemos com genes que nos preparam para falar, mas não para ler, então ler é uma tremenda aventura, um esforço grande que nos faz olhar tudo de maneira mais complexa, mais rica. E por isso mesmo o livro exige que a gente esteja 100% no momento presente, focado. O que é meio paradoxal em relação ao nosso modo de vida atual, com estímulos o tempo inteiro, muitas demandas aceleradas,

com nossa atenção sempre em disputa. Mas não acho que redes sociais e leitura sejam incompatíveis, muito pelo contrário, vejo comunidades de leitores sendo criadas no ambiente virtual. Agora, com certeza, é um desafio”, avalia. Para Livia, um dos maiores erros envolvendo a prática leitora e a internet são as comparações com a aparente produtividade e ritmo de leitura dos outros internautas. “Ou a gente se sente uma porcaria porque está lendo menos, o que é falso, ou superior, o que é também falso. Comparações de um modo geral já são tóxicas e, em se tratando de leitura, que é uma atividade que deve ser prazerosa e focada nas demandas pessoais de cada um, elas são ainda mais perigosas. Cada leitor tem seu ritmo e devemos respeitar a qualidade da nossa leitura, não

focar na quantidade.” São inúmeros os caminhos a serem trilhados na construção de um Brasil de leitores. Alguns já foram desbravados e estão apenas à espera de serem retomados, outros já levaram um incontável número de leitores à linha de chegada. Mas ainda falta um tanto para ganhar novamente os 4,6 milhões perdidos nos últimos anos e conquistar mais e mais brasileiros na paixão pela leitura. Os caminhos podem ser múltiplos, terem como paradas as bibliotecas públicas, as escolas, projetos comunitários, livrarias, bienais e clubes, mas todos passam pela compreensão da literatura enquanto um bem social imprescindível e construído de forma coletiva. Voltando a Antonio Candido mais uma vez: “negar a fruição da literatura é mutilar nossa humanidade”.

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VESTÍGIOS DE NATAL!

É verão...

o ano espira seu prazo, o dia amanhece mais cedo, as noites convidam ao diálogo, Nas varandas, nas calçadas, nas esquinas, nos campos, Nos jardins, nos bosques, nos bancos da praça. as cigarras entoam seus cantos, anunciando o advento, o tempo da graça, da expectativa, da bonança. da saudade de ser criança, da alegria e da esperança, dos abraços de gratidão, dos

olhares em comunhão, dos semblantes a demonstrar, que a vida remete a superar, os momentos, as vivências, as ciências, os saberes, as dificuldades, as incertezas, as necessidades, as buscas incessantes, os prazeres. a corrida desenfreada, o consumismo inculcado, as sugestões subliminares, mesclando-se à emoção emanada dos humanos. das festas de congraçamentos, de focar os olhos atentos, ao

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Universo transpondo intentos, de infinitos tempos que nos fazem sonhar, Tentando harmonizar momentos, E consagrar cada vivência, de completude e sabor, amor... harmonia... paz... paixão.... e compaixão. Que tempo é este então? advento, esperança, renovação?

É tempo de gratidão? de diálogos, abraços e comunhões? Reflexões, compreensões? receber, doar, perdoar e viver?

Este tempo remete à união. Este tempo, sem dúvida, é NaTaL!

o Natal que nos move a sentimentos mais nobres, Que nos convida a olhar os contextos, Sob múltiplos enfoques,

Que nos transpõem a outros horizontes,

Que nos faz fraternos, Que nos impele a sermos solidários, Nos converge a gestos mais ternos, impulsiona à condutas de gratidão, de emoção, envolver, envolver e abraçar. Enfeitar nossa casa, nossa rua, nosso coração, nossa árvore de Natal! relembrar com bravura e ternura, as aflições superadas.

Fé e forças a outras instauradas, rever, rever e vencer !

E, pelas glórias alcançadas, agradecer ! Então é Natal ! E ano Novo, também!

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FLIP 22: MESMO PÚBLICO DE ANTES DA PANDEMIA

Durante cinco dias, o público retornou à cidade do litoral sul fluminense, depois de dois anos acompanhando os debates literários apenas de forma on-line, devido à pandemia de covid-19. Terminou no domingo (27 de novembro) a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que em sua 20ª edição homenageou a escritora Maria Fir50mina dos Reis, autora do primeiro romance abolicionista do país, Úrsula, lançado em

1859. Durante cinco dias, o público retornou à cidade do litoral sul fluminense, depois de dois anos acompanhando os debates literários apenas de forma on-line, devido à pandemia de covid-19.

De acordo com o diretor artístico da Flip, Mauro Munhoz, a taxa de ocupação nos hotéis e pousadas de Paraty chegou a 90% durante os dias da festa, o que representa um público de 25 mil pessoas, número próximo ao recebi -

do na última edição presencial da Flip, em 2019. “O público estava de fato ansioso pelo retorno ao presencial e fez conosco uma linda comemoração de 20 anos”, disse ele. Munhoz ressalta que havia muitas dúvidas sobre o evento ser presencial, além da mudança de data para novembro, quando normalmente ocorre nos meses de junho e julho, além da coincidência com a Copa do Mundo de Futebol. “Como seria fazer a Flip no verão? Choveria? E a Copa? Como o clima político e social afetaria a festa? Todas essas perguntas foram respondidas pela ocupação da cidade, pelos aplausos do público durante as mesas e pelos tan -

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tos encontros que aconteceram durante a festa. A estação das chuvas foi generosa conosco e apenas refrescou os dias de calor. A Copa, por sua vez, contribuiu para o clima de festa que tradicionalmente se espalha pela cidade durante a realização da Flip”. Para ele, o resultado superou as expectativas e reflete o trabalho intenso realizado pela organização junto à comunidade de Pa -

raty. “Esses cinco dias são resultado de um longo percurso, não só pelos meses de trabalho que antecede a festa, mas, sobretudo, pelas ações de permanência e enraizamento no território que dão sustentação ao que pudemos experienciar desde quarta-feira (23)”.

O evento contou com 17 mesas na programação principal, com convidados como a educadora e filó -

sofa Guarani Mbya Cris Takuá, a filósofa e escritora Djamila Ribeiro, a professora norte-americana Saidiya Hartman, a antropóloga argentina Rita Segato, o crítico literário Luiz Mauricio Azevedo, a poeta performer luso-angolana Alice Neto de Sousa, o ator, diretor e escritor baiano Lázaro Ramos e as autoras Cecilia Pavón, Cidinha da Silva, Ladee Hubbard, Nastassja Martin e Teresa Cárdenas.

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DE PASSARINHOS

eLIAne deBus – FLoriaNóPoLiS, SC

os passarinhos airosos, o amarelo da fruta, mordiscam vagarosamente . os passarinhos airosos, o azul do céu, cintilam magnificência. No entre tempo do mordiscar e do voar o silêncio da constância do céu anil. ............................

Cantoria desvairada do passarinho, destinada agonia, do ser sozinho! Cantoria lamento do passarinho,

pensamento por terra, jaz no chão seu ninho. invólucros vazios redondinhos anunciam a vinda do que foi. ......................... o sanhaço Emplumado em cinza Mistura-se ao verde Voa ligeiro de penas-aço o sanhaço de penas-aço Voa ligeiro Mistura-se ao verde Emplumado em cinza o sanhaço

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OS 120 ANOS DE 'OS SERTÕES'

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” Talvez esta seja a frase mais lembrada quando se trata do livro ‘Os Sertões’, obra-prima escrita por Euclides da Cunha (1866-1909) e lançada há exatos 120 anos.

O livro, muitas vezes visto como uma epopeia da vida do sertanejo, numa luta diuturna contra as dificuldades impostas pela natureza e enfrentando ainda incompreensão daqueles que formam a elite nacional, é considerado o primeiro livro-reportagem brasileiro, posto que foi escrito como romance de não-ficção. Euclides da Cunha, um jornalista de formação militar, foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1897 para cobrir a Guerra de Canu -

dos, conflito armado ocorrido em 1896 e 1897 para encerrar a suposta contestação popular ao regime republicano que surgiu no interior da Bahia.

O convite para ser o correspondente de guerra do matutino paulistano foi feito pelo jornalista Júlio de Mesquita (18621927), proprietário do jornal. Antes, Euclides da Cunha havia publicado um

artigo no periódico, chamado A Nossa Vendeia, no qual traçava um paralelo entre o movimento chefiado pelo líder messiânico Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), mais conhecido como Antônio Conselheiro, no povoado de Belo Monte, terras onde antes havia um arraial chamado Canudos, com o movimento monar -

quista francês que pretendia derrubar a república, no fim do século 18. Um texto redigido pela equipe do acervo do jornal O Estado de S. Paulo enfatiza o nascedouro da obra durante os meses em que Cunha atuou na cobertura especial do conflito. “É em Canudos que começa a escrever as primeiras notas de sua obra-prima ‘Os Sertões’, cujas primeiras amostras públicas aparecem no Estado, ainda em 1898, sob o título ‘Excerto de Um Livro Inédito’”, afirma o texto publicado pelo acervo do jornal. Segundo conta o biógrafo de Cunha, o diplomata, cientista político e historiador Luís Cláudio Villafañe Santos, o jornalista “já saiu de São Paulo [rumo à Bahia] com a intenção de escrever um livro”. “O jornal havia prometido a ele que publicaria um livro, em forma

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de folhetim. Isso acabou não ocorrendo”, comenta Santos, que no ano passado publicou a obra Euclides da Cunha - Uma Biografia. Pioneirismo no gênero o s Sertões seria escrito ao longo de cinco anos, de 1897 a 1902. “E, sim, se pode dizer que foi um pioneiro livro-reportagem porque tem muito de um livro que procura ser mais do que literatura, procura ser um livro de não-ficção. Uma não-ficção literária, um livro de jornalismo literário, para usar a expressão mais correta”, afirma Santos. Nesse sentido, Cunha vestiu a carapuça do jornalista que era. “No livro, está a ideia de que ele estava relatando fatos, ainda que o fizesse de forma literária”, comenta o biógrafo. Contudo, o interessante é notar que,

ao longo do processo de depuração e escrita do livro, a própria visão de Euclides da Cunha sobre a ocorrência histórica parece ter mudado substancialmente. Se durante o conflito, quando ele reportava ao jornal O Estado de S. Paulo, sua visão era “oficialesca”, na obra literária ele se coloca numa postura de denúncia da violência impetrada contra os sertanejos. Para isso é preciso entender o contexto. Para atuar na cobertura, o jornalista resgatou sua patente militar — era primeiro-tenente, mas

havia deixado de exercer — e assim foi que ele atuou e teve os acessos necessários ao trabalho. “O jornal o mandou como jornalista, mas ele também foi a Belo Monte como militar. Levou uniforme, teve ajudante de ordens e uma inserção dentro do comando militar”, aponta Santos.

Foto de Euclides da Cunha, de autor desconhecido

“Depois, a narrativa do livro acabou sendo imensamente diferente da narrativa de suas reportagens publicados ao longo da guerra”, compara o biógrafo. “Antes, ele tinha uma visão pró-exército, oficialista, governista. E isso não se verifica quando ele escreveu o livro, cinco anos depois.” Para Santos, isso pode ter decorrido por conta da própria mudança de mentalidade da época. Àquela altura, já eram conhecidas as “muitas denúncias de todos os absurdos” cometi-

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dos durante as batalhas em Belo Monte. Estudioso da obra de Euclides da Cunha reconhecido internacionalmente, o professor Leopoldo Bernucci, da Universidade da Califórnia em Davis, também concorda com a classificação pioneira de Os Sertões como livro-reportagem. Segundo ele, a obra pode ser definida “como um livro que absorve, como nenhum antes dele, um tipo de discurso que chamamos de reportagem”. “O discurso jornalístico é um entre tantos outros que compõem esta obra, sendo que o historiográfico é o que predomina, tanto pela intencionalidade do autor que o anuncia nas suas primeiras páginas como pela própria estrutura cronológica e interpretativa dos fatos”, analisa Bernucci, autor de, entre outros, Discurso, Ciência e Controvérsia em Eu-

clides da Cunha. Ele ressalta que as “outras linguagens” que podem ser detectadas no livro são “a da Bíblia, da geologia, da antropologia, da geologia, do folclore, da meteorologia e das práticas militares”.

Reprodução de capa da primeira edição do livro Os Sertões, 1902

“O jornal, a partir do século 19, já se comportava como o romance moderno em sua elaboração discursiva. Entravam nele o texto ficcional, o aviso publicitário, as declarações governamentais, comerciais e jurídicas,

os relatórios militares, todos justapostos e ocupando um mesmo espaço cultural. Euclides se apropriou da estrutura multifacetada do jornal, fazendo coexistir vários tipos de discurso no seu livro”, contextualiza o professor. “Porém, diferentemente do que ocorre no jornal, as várias linguagens de Os Sertões acham-se organicamente articuladas. Tanto é assim que, pelo fato de os diversos tipos de discurso estarem tão imbricados nessa obra, torna-se praticamente impossível precisar onde termina a linguagem jornalística e onde tem início a linguagem historiográfica, por exemplo”, completa ele. Para Bernucci, “a dívida” que Euclides da Cunha tinha com os jornais da época era enorme, seja porque ele os utilizou como fonte de pesquisa,

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seja porque ele próprio atuou em diversos. “[Foi] um grande colaborador em conhecidos periódicos, como O Estado de S. Paulo, e os cariocas Jornal do Commercio, Kosmos, O Paiz”, enumera. “Via-se confortavelmente nesse meio jornalístico.”

“Os Sertões nasceu nas próprias reportagens que o então ‘correspondente de guerra especial’ do jornal O Estado de S. Paulo enviava àquela publicação, bem como nos telegramas que cobriram pormenorizadamente os dois últimos meses do conflito”, acrescenta o publicitário

e pesquisador independente Felipe Rissato, co-autor, ao lado de Bernucci, do livro À Margem da História - Euclides da Cunha.

De acordo com levantamento realizado por ele, a cobertura de Cunha constou de 31 edições do jornal — o jornalista teria enviado 64 telegramas à redação com seus relatos.

“Ele não era o único repórter de campo nas operações, assim como não foi o único a publicar um livro a respeito da Guerra de Canudos”, ressalta Rissato. “Mas o jovem ex-militar, reformado no ano

anterior, em 1896, tinha posição de destaque mesmo em outras folhas, que reproduziam suas reportagens. Além disso, apesar de seu livro aparecer somente em 1902, cinco anos após a guerra, quando fundiu as reportagens, os telegramas e as anotações imprescindíveis que fizera na caderneta que levava consigo para o livro, Euclides manteve na narrativa recursos jornalísticos, como a objetividade mesmo em descrições detalhadas.”

“O pioneirismo da obra se dá por ser uma novidade para a época em relação à forma como foi escrita, pois mistura elementos jornalísticos e literários”, diz a especialista em dramaturgia Ana Sampaio Machado, professora de ética em comunicação na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Ao descre -

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Luís Cláudio Villafañe G. Santos, autor de livro sobre o autor de Os Sertões

ver detalhadamente a paisagem, as pessoas e os fatos sem romancear, prezando pela organização, se encaixa no gênero jornalístico, porém não pode ser classificado como tal, por sua extensão, pela escolha do vocabulário incomum e pelo estilo de escrita.” Sucesso repentino Oficialmente não há uma data exata do lançamento da primeira edição de Os Sertões, mas Rissato aponta para a alta possibilidade de o livro ter saído do prelo em 2 de dezembro de 1902. “A data exata é incerta, mas ficou como sendo ‘oficial’ a data da dedicatória mais antiga, 2 de dezembro, encontrada em um exemplar oferecido ao cunhado de Euclides, Octaviano”, afirma o pesquisador. “No dia 3, já aparecia a primeira crítica, de José Verissimo, no Correio da Manhã, do Rio de

Janeiro.”

O sucesso foi retumbante. Segundo o material publicado pelo acervo do Estadão, o livro foi “recebido com entusiasmo pelos críticos literários da época e a prime ira edição se esgotou em algumas semanas”. No ano seguinte, Euclides da Cunha foi eleito como membro da Academia Brasileira de Letras. Ele também foi convidado a integrar e tomou posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Costuma se dizer que ele foi dormir desconhecido e

Capa do livro de Luís Cláudio Villafañe G. Santos

acordou famoso. E isso é parcialmente verdade”, comenta o biógrafo Santos. Para o biógrafo, esse sucesso incrível surpreendeu a todos, inclusive ao próprio autor. Não demorou muito para o livro ser alçado ao panteão dos clássicos da língua portuguesa. “Há vários fatores que contribuem para que seja considerado uma obra canônica da literatura nacional”, explica Bernucci. “Poderíamos enumerar alguns desses pontos dizendo o seguinte: um clássico é aquele livro que não somente se lê, mas que é relido em distintas épocas, consideração que faz ressaltar nele seu caráter imperecível e sua característica de artefato cultural duradouro, como as grandes pinturas. Outro fator: os clássicos trazem as marcas das leituras que precedem as

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nossas. Assim, não poderíamos deixar de encontrar em ‘Os Sertões’ os traços de muitos outros livros parecidos na cultura ocidental.”

Ele ressalta ainda que o livro, ao longo dos 120 anos de sua trajetória, “vem se impondo também como obra que impactou outras culturalmente importantes”. “Isto é, como livro fundamental e fundador na tradição dos debates sobre a nossa nacionalidade”, aponta. Para o professor, o livro ainda “atinge uma dimensão universal para que possa ser chamado de clássico”. “O livro toca os nossos corações tanto pelas descrições e narrações dos fatos geograficamente localizados quanto por aquelas que, desbordando da esfera local, passam ao mundo dos sentimentos universais, como por exemplo o da solidariedade que

todos devemos ter uns com os outros como povo de uma mesma nação”, diz.

“A Guerra de Canudos representou o contrário desta noção, porque se configurou como uma verdadeira guerra civil, em que como é típico, indivíduos de um mesmo país lu -

as pulsações de sua presença e o valor de sua importância, não só como veículo de mensagens, mas também como instrumento ou meio de transformá-las e defini-las”, acrescenta o especialista. “Esta definição, grosso modo, serviria para demonstrar a diferença entre o discurso tipicamente jornalístico de fins de século, com o qual Euclides estava tão bem familiarizado, e a apropriação transformadora que o autor faz desse mesmo discurso, recarregando-o de qualidades estéticas.”

tam uns contra os outros, irmãos contra irmãos destruindo-se”, comenta Bernucci.

“Creio também que toda grande obra literária traz algo que é a consciência de sua própria linguagem. A linguagem euclidiana sinaliza direta e indiretamente

Machado situa a importância da obra no fato de que ela “trata de questões relevantes não apenas para a época em que se deram os acontecimentos relatados, mas para os nossos dias”. “A Guerra de Canudos foi a última revolta contra a República. Uma República, então, que se

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consolidou a partir de uma postura de indiferença, incompreensão, desprezo e violência dirigida aos pobres”, afirma ela. “Euclides da Cunha foi para Canudos com as ideias propagadas nas grandes cidades. Mas quais eram essas ideias?

Fake news”, diz Machado. Ela ressalta que o que se propagava era que os jagunços — “o próprio termo já é pejorativo”, frisa — estavam armados e “recebiam apoio de potências estrangeiras que tinham interesse em destruir a República”.

“Contudo, as armas que os camponeses tinham foram as que eles próprios tomaram dos soldados vencidos nas primeiras campanhas”, contexualiza Machado.

Ela recorda que “chegou-se até mesmo a se dizer que os moradores de

Canudos, católicos monarquistas, eram comunistas”. “A obra de Euclides da Cunha tem enorme força narrativa para o contexto atual. Seria ótimo se mais pessoas se sensibilizassem não apenas com a descrição do massacre de Canudos, mas com os sofrimentos e mortes diárias que ocorrem pela indiferença e ódio em nossa sociedade”, compara. “A situação de Canudos persiste, mas está espalhada e devidamente disfarçada.”

Já Rissato situa a

importância de Os Sertões no fato de que a obra deu a Euclides da Cunha um status de representante da elite intelectual do Brasil. “A guerra ocorrida no sertão baiano passou para a história brasileira como o primeiro grande acontecimento com cobertura diária na imprensa, garantindo ao evento um caráter de interesse então ainda não visto no país”, pontua. “A obra de Euclides, por não ser unicamente jornalística, nem mesmo unicamente literária, recebendo de há muito o caráter de ‘inclassificável’, reúne estudos de geologia, etnografia, sociologia, antropologia e uma série de ciências, que permitiram ao autor, no ano seguinte à sua publicação, o ingresso na Academia Brasileira de Letras e no Instituto Histórico e Geográfico Brasilei -

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ro, colocando-o em posição de destaque da nossa intelectualidade em todos os tempos.”

Mas, segundo o biógrafo Santos, foi essa mistura de conhecimentos que fez com que o autor se perdesse na parte científica do trabalho. “Ele foi muito ambicioso e tentou atuar em várias frentes: geologia, geografia, botânica, filosofia das religiões, filosofia em geral, coisas militares e história também”, afirma. “Ele criou uma historiografia sobre Belo Monte que vai durar muitíssimo.” o s Sertões foi dividido em três partes: A Terra, O Homem e A Luta. “Suas chaves de leitura são o que fazem do livro um tremendo sucesso. A primeira é que o próprio autor dizia que ‘Os Sertões’ era o consórcio entre a ciência e a arte, a ideia de que a literatura não era só

literatura, era também ciência. Ele propunha isso e, no início, a obra foi vista assim, não só como um livro literário, mas como um livro que estava contando a realidade”, diz Santos. “Ele se orgulhava de ter escrito um livro assim, dizia que era a nova literatura, que seria assim a literatura dali por diante.”

Segundo o biógrafo, essa ideia um tanto enciclopédica de Euclides da Cunha baseava-se no fato de que a sociedade passou a querer uma explicação para o ocorrido em Canudos. “E Os Sertões,

como um livro de ciências entre aspas, produz uma explicação que vai encontrar muito respaldo”, conta. “E é curiosa porque acaba tirando a responsabilidade.”

Isto porque uma das linhas de argumentação do livro é que aquela sociedade, por ser “muito atrasada e isolada” na história, teria um encontro inevitável “com o século 20”. E, nesse encontro, a sociedade “atrasada” iria se perder. Segundo Santos, era um meio de “retirar a culpa” pelo massacre. Ao longo do tempo, contudo, a faceta “científica” do livro acabou sendo derrubada, justamente porque notou-se que a argumentação acadêmica do mesmo não se sustentava. “A face literária é extraordinária, insubstituível na bibliografia brasileira. Já a parte científica, embora extremamente ambiciosa, demonstrou

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ter problemas graves”, pondera o biógrafo. Engenheiro militar por formação, Euclides da Cunha tinha certos conhecimentos científicos, mas seguramente muito menores do que a ambição do livro pretendia abarcar. “Ele fala de geologia, um assunto que entendia pouco. Fala de botânica, que ele não entendia nada. Fala de história, um assunto em que ele tinha visões complicadas. De antropologia, em que também tinha visões muito complicadas. Fala de arte militar, um ponto onde ele tinha um lugar de fala por falar disso como militar”, enumera Santos. “Ele ataca em todas as áreas, faz um livro que tenta ser enciclopédico.”

“Aí tem um problema grave: como ele avança por muitas áreas do conhecimento, acaba sendo muito pouco profun -

do e até frágil”, analisa. “Suas investidas pouco a pouco vão sendo postas em questão.”

Logo após o lançamento, por exemplo, especialistas encontraram erros primários de botânica na obra. E a própria descrição de Belo Monte, segundo o biógrafo Santos, “era fruto da imaginação” do autor, sem base historiográfica.

“A ciência presente em Os Sertões vai caindo, por conta de muitas falhas”, aponta Santos.

Nas áreas de sociologia e antropologia, contudo, estão os aspectos mais con -

denáveis. “A parte antropológica é, cientificamente, hoje em dia muito mais do que ruim. É inaceitável”, afirma Santos. Residem nesses pontos a questão sobre a visão racista da obra. “A antropologia de Euclides é baseada numa leitura racialista, ou seja, uma ideia muito antiga que já estava em alguma medida até naquele momento já sendo superada”, comenta Santos. A obra basilar dessa ideia, Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas, havia sido publicada pelo filósofo francês Arthur de Gobineau (1816-1882) quase cinco décadas antes. “Então já era uma visão complicada naquele momento”, pontua Santos. “Portanto, eu não concordo que dizer que ele era racista é um anacronismo. Anacronismo é você atribuir ao personagem passado ideias

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que ele não poderia ter naquele momento, mas naquele momento existiam outras possibilidades [de interpretação do mundo]”, comenta o biógrafo.

Para ele, a segunda parte do livro, ‘O Homem’, é “um terror se lido hoje em dia”. “Precisamos dar um desconto pelo fato de que essas visões estavam, na época, mais próximas de uma visão aceitável. Eram aceitáveis em grande medida, mas deve-se dar a justa medida. Isso não quer dizer que, por viver naquele momento, ele necessariamente teria de ter essa visão. Havia outras visões disponíveis que ele poderia ter usado para iluminar as ideias dele, mas ele escolheu essa. Curiosamente, ele escolheu essa”, diz.

Bernucci, por sua vez, acredita que leituras anacrônicas “prejudicam enorme -

mente esta questão tão delicada”. “’Racista’, quando se aplica à visão que Euclides tinha das raças, seria uma palavra fácil para quem não se toma ao trabalho de se debruçar como eu e alguns de meus colegas com a vista cansada dos anos de pesquisa sobre o autor para ler a

ra particular, e também de modo mais geral, está marcada por teorias raciais vindas da Europa na sua época. Nunca fui, e não é esta a ocasião em que deveria dissimular tal postura, um admirador sem reservas de Euclides da Cunha”, acrescenta. “Mas reconheço sempre nele um temperamento prodigiosamente dotado de energia mental e física para dar ao nosso país um impulso capaz de despertá-lo do obscuro remanso em que viviam as pessoas dos seus dias.”

sua obra em contexto histórico, em conjunto e com profundidade como ela deve ser lida”, pondera.

“Acredito que as minhas leituras sempre foram justas e imparciais. A compreensão que Euclides tentava ter sobre o papel das raças em nossa sociedade de manei-

O professor recomenda que Os Sertões seja um livro lido “com as lentes do século 19”, o mesmo que “produziu grande parte das teorias raciais que o autor utilizou”. “As teorias sobre a raça negra se embatem com aquilo que Euclides, na prática, observava e sentia, já que ele nunca foi um ra-

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cista”, argumenta. Para Machado, Euclides da Cunha “era um homem que partilhava as ideias predominantes de seu tempo, e tais ideias são racistas”. “Era uma época dominada pelo pensamento positivista, que acreditava no progresso redentor da ciência, com teorias que se colocavam contra a miscigenação e apregoavam que as condições climáticas de um lugar ou físicas e psicológicas de sua população eram impeditivas ao progresso”, comenta ela.

“Chegou-se até mesmo a desenterrar o corpo de Antônio Conselheiro e enviar sua cabeça para ser estudada à luz dessas teorias. Estamos olhando para esse homem com a distância de mais de um século. As gerações futuras também nos julgarão sob uma perspectiva diferente da nossa e prova-

velmente perceberão ideias inadmissíveis. É muito difícil perceber os vieses de nossas crenças, uma vez que estamos imersos na sociedade cuja forma de pensar herdamos e ajudamos a construir.”

“Euclides era um homem de seu tempo.

qualquer afirmação ou julgamento”, acredita Rissato. “Se a crítica for ponderada a partir desse prisma, será mais feliz e menos simplista.”

Lia, estudava, refletia e pensava de acordo com as correntes científicas em voga. Ele não foi o único a se constatar que defendia teorias posteriormente caídas em relação à mestiçagem dos povos, mas é preciso buscar estar inserido em seu meio para formular

“O livro nasceu como de ciência e arte, mas hoje é um livro só de literatura. Toda a parte científica de ‘Os Sertões’ não se sustenta minimamente. E a parte antropológica e sociológica e absolutamente inaceitável”, diz Santos. “Isso não tira o mérito do livro hoje em dia. É um livro que não pode ser lido de maneira alguma como livro de ciência mas se sustenta muito como literatura. Continua sendo uma obra extraordinária, uma das maiores da literatura brasileira.”

Um autor e múltiplas visões O biógrafo Santos comenta que, nos últimos anos, a leitura sobre a obra de Euclides da Cunha evoluiu bastante.

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“Em minha biografia eu recolho um pouco dessas novas visões, especialmente sobre Os Sertões”, diz. Ele diz que um mito comum é que o autor tenha se horrorizado e denunciado o massacre de Canudos quando chegou lá, a serviço do jornal O Estado de S. Paulo. “Não foi nada disso. As reportagens que ele mandou da Bahia são do Euclides que apoia praticamente toda a campanha militar, partilha a visão de que aquilo poderia ter sido um levante monarquista”, comenta Santos. “Ele foi um jornalista totalmente enquadrado ao que era a visão daquele momento, que ele tinha… Essa imagem de que a rebelião em Belo Monte era uma rebelião monarquista, uma nova Vendeia [insurreição contra a Revolução Francesa, em 1793]”, ressalta o biógrafo.

“Em suas reportagens, ele vende essa ideia da revolta monarquista como uma ameaça à República.”

A mudança de postura de Euclides da Cunha ocorreria já em São Paulo, nos anos seguintes, enquanto ele escrevia Os Sertões em uma casa em São José do Rio Pardo, no interior do Estado. Santos lembra que o primeiro título provisório dado por Cunha para sua obra foi A Nova Vendeia, o que indica que, no princípio, ele ainda insistia nessa versão da história. “Mas nos cinco anos seguintes, a visão sobre o que aconteceu na Bahia, não só dele, mudou muito. Aquela visão monolítica da imprensa de que havia ocorrido um atentado contra a República, isso caiu por terra”, contextualiza.

“A opinião pública mudou, com uma

série de denúncias acerca dos horrores da guerra e da atuação do exército”, acrescenta Santos.

Para o biógrafo, o próprio uso do termo Canudos, adotado por Euclides da Cunha e, de certa forma, consagrado a partir de sua obra, é um indicativo de tentar perpetuar a “história do vencedor”. Isto porque Canudos reforça o nome anterior do arraial, uma fazenda de propriedade privada onde surgiu um povoamento. Naquela época, o povoado fundado por Conselheiro era chamado de Belo Monte. Usar o termo Canudos, como acabou consagrado durante a guerra, era uma maneira de deslegitimar a própria ocupação que ali havia, no entendimento do biógrafo. “No processo de trabalho do livro, Euclides adaptou sua visão à mudança

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de visão que já tinha ocorrido na sociedade brasileira de maneira geral. Ele reconhece que a ideia do massacre, aquilo tudo, havia sido um fato absurdo”, diz Santos. “Euclides não apresenta culpado. Ele relata as barbaridades mas não dá nome aos bois. Ele denuncia um crime, Os Sertões é a denúncia de um crime, mas curiosamente ele denuncia um crime sem responsáveis”, argumenta o biógrafo. A obra acaba “jogando a culpa” do ocorrido sobre Antônio Conselheiro, o líder messiânico. Cunha acaba recriando uma figura literária, conferindo uma personalidade própria para Conselheiro, apresentando-o como um desequilibrado, louco. “Assim, se houve um culpado, teria sido Conselheiro, que teria arrastado aquelas pessoas à lou -

cura. Mas nem ele poderia ser culpado, porque ele também estava louco”, explica Santos. “E isso funcionou muito bem.”

Para o biógrafo, essa narrativa não só foi bem aceita pela sociedade brasileira

como também contribuiu para “aliviar a culpa”.

“O livro inaugurou uma linha argumentativa que vai fazer muito sucesso na historiografia e na política brasileira: os crimes sem criminoso”, comenta Santos. O sucesso de Os Sertões virou alegria e tormento para

Euclides da Cunha. Isto porque, de acordo com seu biógrafo, isso fez com que ele, transformado em personagem relevante no Brasil, “passasse o resto da vida tentando escrever uma outra obra com a mesma qualidade”. “Mas ele fica devendo. E isso o atormenta”, comenta. Bernucci lembra ainda que é preciso reconhecer que Os Sertões também se apresenta como um livro importante na defesa de valores como os ideais democráticos e a preocupação ambiental. “Por fim, apesar das críticas que possam ser feitas, fica aqui a última pergunta: embora com algumas imperfeições, se Euclides não tivesse deixado esse magnífico legado histórico e literário para nós, preservando a memória de uma guerra absurda e cruel, quem poderia tê-lo feito?”

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PERDEMOS NÉLIDA PIÑON

tão sua primeira novela, “Guia-mapa de Gabriel Arcanjo”, de 1961, os livros de contos “Tempo das frutas” e “Sala de Armas”, além de “A República dos Sonhos”, “A Doce Canção de Caetana” e “O Calor das Coisas”.

Morreu no dia 17 de dezembro, em Lisboa, aos 85 anos, a acadêmica e escritora carioca descendente de galegos, Nélida Piñon. Autora de diversos romances, contos, crônicas e ensaios publicados em seus mais de 60 anos de carreira literária, Nélida foi, também, a primeira mulher a assumir a presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL), posto que ocupou em 1996, ano do centenário da academia, e em 1997. Nélida foi e continuará sendo uma das maiores representantes da literatura brasileira.

O enterro ocorreu no mausoléu da ABL e a entidade anunciou que fará uma Sessão da Saudade em 2 de março, no Salão Nobre, em homenagem à autora.

Nélida Piñon foi eleita para a ABL em 1989 e ocupou, desde sua posse em 1990, a 30ª cadeira da instituição, herdada de Aurélio Buarque de Holanda. Entre suas obras, es-

Foram 23 livros no total – o último deles, “Filhos da América”, de 2016 -, editados em mais de 30 países, de acordo com as informações da Academia.

Nélida nasceu em 3 de maio de 1937, na cidade do Rio de Janeiro, e se formou em jornalismo em 1956 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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PERDOAR

mArLI LuCIA LIsBoA (bULUCha) – São JoSÉ,SC

Com o perdão! É, também existe o perdão para mim... Quantas vezes eu, você, qualquer um pediu perdão?! Poucas, nenhuma, não sei... Pedir perdão é bacana, é algo que muitas vezes gostaríamos de receber: perdão! - Ai, não pise no meu pé! - Ah, perdão! Não, não gosto de perdão nesse sentido, para isso há outra palavra: desculpa. Perdão! Essa palavra surgiu para outra coisa, surgiu para quando nos... nos ofendemos. Quando há ofensa, deve -

ria aparecer logo na hora... o perdão! Mas nem sempre ocorre assim, o perdão fica esquecido... Ofensa... Perdão...?!

Nós não gostamos de receber ofensa, mas quantas vezes ofendemos o resto do eu, ofendemos o que não é eu? E quantas vezes ofendemos o outro que é meu? Por que ofendemos o que é meu, se não gostamos de ser ofendidos?...

- Hoje fiquei ofendido contigo!

- Não me interessa... Quando isso ocorre, o que fazemos? Uns não ligam, mas para outros é o desmoronar de uma barreira, a barreira que segura as lágrimas, a barreira que separa, que separa a alegria da... tristeza!

Mas não só desmorona, ergue barreiras também... Ergue uma barreira que destrói o eu para com você, que separa sua luz em minha visão, que acaba o dia pela noite,

que faz gelar, que esfria, que destrói o seu calor, que acaba consigo... - Hoje fiquei ofendido com você! - Por favor diga-me quando...

- Na hora de... escolher com o que, com quem sair para pesquisar sobre a matéria dada...

- Nossa, nunca poderia imaginar que eu faria tanto mal pra você... - É, senti uma destruição por dentro, como se tirassem a pintura, como se de uma vez tivesse dado um baque tão grande, capaz de demolir com minha construção, com a nossa construção... - Bem, isso não havia afetado a nossa construção, não percebi isso... - Pois é, agora nem sei o que esperar! Não sei se espero por uma nova construção, por uma nova tinta... Acho que não vale mais a pena ficar esperando... Mas, na hora..., acon-

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teceu que: - Um momento... - O que quer mais? - Quero pedir uma coisa... - O que? - Perdão...

Minha construção ergueu-se numa rapidez tão grande que quando vi, nossa construção estava pintada... Sim, você ofende e não pede perdão... Sim, você é ofendido e quer receber perdão...

Entenda isso... O que sou, se sou ofendido, se quero perdão? E a máquina? Ofensa, o perdão! A tristeza, a alegria! O que é tristeza, o que é ser triste? Tristeza... Há a tristeza das palavras que nos chegam de uma maneira dolorosa... A tristeza é o instante em que as palavras são ditas por lágrimas, onde o sorriso desaparece e faz surgir uma fisionomia triste, melancólica e às

vezes até dramática.

É a tristeza de uma adeus, da partida, de um algo que se distancia, de alguém que fica ou que vai... Tristeza, triste tristeza!

Há a tristeza de não podermos dizer a mim, a você, a eles, a tudo, a todos o que sou, o que somos! - Está triste, por quê? - Porque eu “nunca” vou poder dizer... - O quê?

É, a tristeza é... Diga-me, o que é a tristeza? Talvez tristeza seja o morrer de tudo... Se eu disser:

- Estou triste porque um botão meu não funciona e assim sendo, fico parado... O que seria isso? Máquina. Construção, tinta, hora...? E a alegria?! Ah, a alegria é diferente... A alegria é o riso que surge, às vezes, até com lágrimas... As palavras são ditas por sorrisos, o sorrir aparece e faz surgir uma fisionomia alegre, sem melancolia e às vezes fica dramática junto com uma comé-

dia... Ria!

É a alegria de um aperto de mão, de uma chegada, de algo que vai surgindo, de alguém que chega, que vem... Alegria, alegria, alegria!

Há a alegria de poder dizer a mim, a você, a eles, a tudo, a todos o que sou, o que nós somos!

- Está alegre, por quê?

- Porque eu sempre vou poder dizer... - O quê?

É, a alegria é... Diga-me, o que é alegria? Talvez alegria seja o nascer de tudo... Por que eu ofendo, perdoo, fico triste, alegre?!

(Do livro HORA H)

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CARTA PARA UMA GRANDE MULHER

eL o AH Wes TPHAL en nA s CH en W eng –F L oria N ó P o L i S , SC

Ilha de Santa Catarina, julho de 2022. Prezada Maria Firmina, Querias ser voz, e não te calaste, nem diante a mudez das mulheres ancoradas no seu mundo adormecido à espera do depois. Sem alarido, foste dona do teu tempo. E... que profundo era teu olhar. Imprimiste cor, sentimentos e emoções as palavras, e fizeste o mundo refletir sobre a realidade da desigualdade, dos escravizados e das mulheres no século XIX.

Tinhas em mãos, a caneta, o dom das palavras e a condição de professora e poeta que eras. Escrever foi teu instrumento e a forma de doar-te, colocando no papel todas as verdades que inflamavam o teu viver. Engendraste roteiros que te levaram a criar personagens sofridas e tolhidas da sua dignidade.

Em uma época em que a mulher não

era ouvida, ou reconhecida e o negro era escravo, ousadamente escreveste teu romance “Ursula”, o primeiro romance abolicionista do Brasil. Deste, então, sentido a tua vida, e através da tua escrita foste abrindo caminhos, energizada e impulsionada pelo desafio de ser mulher. Eram tantas as amarras, eu sei... Eram elos que se

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Homenagem ao seu Bicentenário de Nascimento

interligavam com novos elos, compondo densas correntes que te acompanhavam e aos teus arraigados valores. Duzentos anos depois, Maria Firmina, louvo, admirada, a tua tenacidade! Teu legado é imensurável. Abriste uma brecha à luz do mundo para que possamos, nós, iguais em direito, mesmo fazendo parte de outros sonhos, buscar os nossos tão sonhados sonhos.

Comovida, te aplaudo e te saú -

do. Atenciosamente, Eloah Westphalen Naschenweng

Maria Firmina dos Reis foi uma escritora brasileira. Considerada a primeira romancista negra do Brasil. Publicou em 1859 o livro Úrsula, considerado o primeiro romance abolicionista do Brasil.

Visite o Portal PROSA, POESIA & CIA. do Grupo Literário A ILHA, na Internet, http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br

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QUATRO NOVE DOIS

PI erre Aderne - LiSboa

alegria tinha sempre que queria paquerando o azul do céu paisagem na pena do pincel acabava o sol começava a cantoria indo pra cama agarrado a boêmia poesia era vendida à granel

na banca do bicho da duvivier esquina de viveiros de castro acertava no milhar sem querer velas pelo leme sem pudor e sem mastro a feira era cachaça de quem queria prazer o bloco passava e deixava o folião de rastro Copacabana fazia inglês largar

a família e ir morar nas curvas do calçadão o amor ficava em vigília tentando se esquivar das lábias da paixão telefone tinha ficha e rádio de pilha mas nunca faltava comunicação um dia fui embora de Copacabana na janela do quarto nove dois a vida lá era super bacana caipirinha de limão, feijão e arroz a saudade é calada, mas é sacana te conta o passado e vai embora depois

71 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

LER É VIAJAR SEM SAIR DO LUGAR

Mariza SChioCh ET

– Joi NVi LLE, SC

-Você gostaria de viajar? -Sim -Qual o meio de transporte favorito? -Os livros. Estamos alguns anos na caminhada de espalhar livros para todos.

O projeto Ler é Viajar Sem Sair do Lugar iniciou-se com a necessidade de fo -

mentar leitura para os estudantes, ainda leitores em formação. O envolvimento foi amplo, pois os alunos auxiliaram na confecção das caixas de leitura, no abastecimento com

livros, na participação de lançamentos de livros de nossos escritores. Este ano ampliamos mais pontos de leitura e inovamos. Estamos no CEPAT (Centro Público de Atendimento aos Trabalhadores), que tem a missão de promover a gestão das políticas públicas de emprego. Realiza a captação, divulgação e encaminhamento para vagas de emprego em Joinville, de forma gratuita, correção de dados para Seguro-Desemprego, atendimento personalizado para pessoas com deficiência (PCD) e imigrantes. A caixa de leitura está sempre à disposição de pes-

72 Suplemento Literário A ILHA – Dezembro/2022 – N. 163 – Edições A ILHA – Ano 42

soas que procuram vaga de emprego e levam junto as palavras contidas nos livros lidos.

Na 2ª. CIRETRAN (Circunscrição Regional de Trânsito), inovamos com uma Casinha de Livros. Recebi quatro Casinhas de Livro de um amigo e a primeira está neste local, próximo à entrada principal. Basta abrir a Casinha de Livros e entrar na magia da leitura. Na Maternidade Darcy Vargas está a segunda Casinha de Livros. Linda, da cor rosa, sendo frequentada pelas futuras mãezinhas e seus familiares.

Na UBS (Unidade Básica de Saúde) funciona a terceira

Casinha de Livros, com os cuidados de uma enfermeira responsável desta unidade, sempre atenciosa. Ela solicita livros quando precisa abastecer a Casinha.

A DPCAMI (Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso), foi contemplada com a quarta Casinha de Livros. Cada livro lido pode curar a criança de interior ferida. Através da leitura aprende-se o exercício do perdão e gratidão pelos amigos. Policiais estão sempre dispostos para auxiliar no processo na obtenção de seus

direitos. Saímos de Joinville e estamos no município de Penha, onde cada canto é um encanto: colocamos uma Caixa de Leitura na Polícia Civil, que proporciona o momento de espera mais rápido e prazeroso. No Instituto Velejar, enquanto os velejadores aguardam os bons ventos, podem apreciar uma boa leitura e incentivar seus filhos. Quem gostou do projeto e quiser apoiar entre em contato através do e-mail izaschiochet@gmail. com

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POETASTRO

JACQueLI ne AI senmAn - PorTUgaL

Poetastro da alma vazia das rimas nada mais do que honestas Que com um olho entrevê as frestas E das palavras suga a fantasia artesão triste e sem maestria da dor alheia as linhas empresta sem apego e com toda pressa foge da vida e suplica a estia

Nunca desceu ao âmago do poço conhece do sentimento o insosso nunca amou até sentir a orgia!

Sempre escapou das beiras e dos fossos só tem em si do mundo o emboço perdeu o sonho com o chegar do dia.

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REENCONTRO

COM UM DE MEUS “MONSTROS SAGRADOS”: FRANZ

KAFKA

enéAs ATHAnáz Io - baLNEÁrio CaM boriú, SC Depois de longos anos, mergulhei no livro “Kafka – Vida e Obra”, de autoria do catarinense Leandro Konder, publicado pela extinta casa editora José Álvaro Editor em 1967, portanto há mais de 54 anos (Rio de Janeiro). Apesar do tempo decorrido, a obra provoca o mesmo impacto da primeira leitura e prende o leitor até o final. O autor se revela exímio conhecedor do assunto e escreve de maneira leve e elegante. Como se verifica do título, trata-se de um ensaio sobre a vida e a obra do escritor

tcheco Franz Kafka (1883/1924), nascido em Praga em uma família judia e de língua alemã. Duas circunstâncias que influiriam sobremodo na sua vida, uma vez que os judeus já eram vítimas das discriminações que o nazismo levaria ao extremo e que não se expressavam na língua nacional, o tcheco. Ele produziu toda sua obra no idioma de Goethe, o que dificultou sua difusão no próprio país natal. Kafka padeceu da solidão e da tristeza que ela lhe provocava durante toda a vida. Salvo curtos perío -

dos, também nunca se realizou no amor, ainda que Dora, sua última companheira tenha se dedicado a ele ao extremo. Essas circunstâncias transparecem em sua obra de criação. A ficção de Kafka enveredou, desde o início, pelos caminhos do fantástico, deixando perplexos os leitores que a julgavam “sem pé nem cabeça” e embaraçando os críticos que ficavam à procura de uma “chave” para sua interpretação e que, na verdade, nunca existiu. Como afirma o ensaísta, ele não se preocupou em enviar mensagens, mas apenas em contar estórias cada vez mais surpreendentes. Dotado de portentosa imaginação criadora, engendrou casos tão extraordinários que quebraram as cabeças de muitos intérpretes. Uma dessas “chaves” tentou explicar suas estórias como parábolas reli -

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giosas ou teológicas; outra imaginou aspectos psicanalíticos embutidos nelas e uma terceira vislumbrou reflexos doentios decorrentes do mal que o acometia. Ele foi tomado pela tuberculose, mal que o vitimou. Como afirma Leandro Konder, nem uma só dessas interpretações se sustenta e nesse sentido realiza minucioso e profundo exame. Em “A Metamorfose”, talvez sua obra mais conhecida, “Ao despertar, certa manhã, depois de uma noite mal dormida, Gregor Samsa achou-se, em sua cama, transformado num monstruoso inseto.” O contista não informa de que inseto se tratava, mas

tudo indica que fosse uma barata. Ao descobri-lo naquele estado, a família entra em pânico e aí tem início o sofrimento do personagem. Solitário e isolado no quarto, vive situações pavorosas e encontra um fim horrível. Em “O Processo”, um de seus romances, relata a estória de Joseph K que é submetido a um processo penal sem que lhe digam de que é acusado. É forçado a seguir os complexos trâmites judiciais, que não consegue entender, até que parece conformado com tão absurda situação. Por fim, acaba sendo morto, executado a faconadas, em um terreno baldio. É um exemplo da bu -

rocracia que acaba se concentrando em si mesma e perde de vista a sua finalidade. Lembra um pouco o personagem de Lima Barreto que cumpria de maneira cega o regulamento, embora não soubesse a razão. Já no romance “O Castelo”, o personagem central é chamado pelo conde West West, senhor do castelo, para prestar serviços de agrimensura. Uma vez na cidade, não consegue chegar no castelo para se avistar com seu contratante. Tantos são os obstáculos que geram as mais absurdas situações. Só depois de muita luta na qual acaba morrendo, chega o convite para que lá se apresente. São situações chocantes, absurdas, incompreensíveis. Para citar mais alguns exemplos, lembro o conto “Um Velho Manuscrito”. Nele, os nômades, vindos do norte, se

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acampam na praça da cidade, diante do palácio do governo. Passam os dias afiando as espadas. “São bárbaros, rústicos, primitivos, violentos. São odiosamente sujos, alimentam-se juntamente com seus cavalos e comem, em promiscuidade, a mesma coisa que os cavalos. Quando precisam de alguma coisa, tomam-na, sem jamais terem a preocupação de pagar...” Todas as manhãs, bem cedinho, vão ao açougue e se apropriam de toda a carne que o açougueiro havia preparado para os clientes. Cansado de tão inútil trabalheira, o açougueiro leva consigo um boi vivo, imaginando surpreender os nômades. Mas, para seu espanto, eles não se apertam: caem de dente sobre o animal e o comem vivo até os ossos. “Os gritos do boi são tão apavorantes que o açougueiro resolve nunca mais repetir o

expediente.” E o palácio do governo? Continua hermeticamente fechado. Outros textos mereceriam especial destaque, como os contos “A Toca”, “A Muralha da China”, “Um Artista da Fome”, “A colônia Penal” e ainda “A Condenação”, conto extraordinário e chocante por todos os motivos. Mas isto basta para dar uma ideia da imensidão criativa de Kafka.

Pouco antes de falecer, ele recomendou ao leal amigo Max Brod que queimasse todos os manuscritos não publicados. Por sorte o testamenteiro literário não cumpriu

a determinação e tratou de publicar suas obras. Por outro lado, criou a interpretação teológica que, sem querer, muito dificultou a difusão da obra de Kafka.

Franz Kafka foi um inconformado com o monstro mecânico em que o mundo se transformou e no qual o indivíduo isolado tende a ser esmagado. Como acentua o crítico, suas obras são geniais, embora anômalas, sui generis, impossíveis de serem imitadas Citando a Bíblia, ele dizia que os hebreus se conduziam por uma lei de toda a comunidade, enquanto hoje vigora uma competição ferrenha em que cada um só pensa em si. No fundo, ele foi um solitário e um inadaptado.

Jean-Paul Sartre foi um dos grandes divulgadores de Kafka e contribuiu em muito para sua aceitação pelos leitores da Europa oriental.

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PARALELO CULTURAL

NEUSa bErNardo CoELho - PaLhoça, SC

A inovação da Semana de Arte Moderna reflete na sociedade ao trazer uma nova visão sobre os processos artísticos. O desenvolvimento das atividades culturais ocorridas em São Paulo na semana de 1922 me faz pensar num cenário das artes criadas por meio da reciclagem e conscientização ambiental.

A Pro-CREP-Criar-Reciclar-Educar

e Preservar é um projeto ousado a fazer esse papel. Atua na transformação do lixo, de modo a lançar um olhar inovador para a poesia, artes plásticas e literatura.

A ruptura com o passado se expressa na renovação da linguagem que busca a solidariedade, a experimentação da liberdade econômica e a criação. Expressa a certeza de que os materiais recicláveis são fontes de renda e sustento para muitas famílias, por meio da criatividade.

O burburinho causado na Semana da Arte Moderna é,

na coleta seletiva, o barulho das caçambas que chegam atulhadas de reciclados, para a alegria dos trabalhadores no galpão. Separar plástico, metal, alumínio e papel; realizar o enfardamento dos materiais e reciclar óleo para usina de biodiesel, representam a nova vanguarda.

Essa nova linguagem atrai turistas, instituições escolares públicas e privadas, artistas e outros públicos admiradores da arte da transformação. No projeto, as tendências artísticas florescem nos resíduos sólidos ao adquirir valor comercial com o brechó ecológico de “Consumo Consciente”. Na “Feira do Cacareco”, tudo se aproveita e se troca dando nova destinação aos objetos e elemen -

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tos rejeitados. Na “Oficina de Mosaico de Azulejos”, o reaproveitamento de cerâmicas descartadas pela construção civil oferta ao público uma gama de belíssimos quadros, murais, vasos, todos de intensos coloridos e representações poéticas. Na “Oficina de Costura”, recicla-se os tecidos e recria-se moda em harmonia com formas e cores.

A inspiração para fazer arte, com foco na educação socioambiental, provém do lixo que seria descartado de forma irregular na natureza. É a matéria-prima age -

rar o desenvolvimento sustentável e a inclusão social. Enfim, são valores agregados a valorizar o trabalho manual e, sobretudo, preservar o meio ambiente. São oportunidades de trabalho que proporcionam o sustento para várias famílias, inclusive haitianos, mulheres desprovidas de renda, população afrodescendente, ressocialização de ex- dependentes químicos, entre outros...

Na semana de fevereiro de 1922, destacaram-se artistas e articuladores do movimento; hoje, os protagonistas são

os trabalhadores, talentos anônimos experimentadores de outras estéticas; saíram do lixão para o galpão, preservam o meio em que vivem e sublevam as coisas do homem ao sagrado. A arte de reciclar é a poesia transformada, são anseios e virtudes, quiçá instrumento de paz entre as nações. Esse paralelo cultural é meu “Olhar Feminino entre Letras e Tintas” o qual defendo ser alinhavado e cada vez mais implementado pela sociedade para irmos além, e gerar outros movimentos a exemplo deste e daquele ocorrido há 100 anos na Semana da Arte Moderna. (Fontes pesquisadas: doeganhe.com.br/ pro-crep-organizacao-para-preservacao-ambiental/)

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O Livro “Admirável Itá-

O fundador e coordenador do Grupo Literário A ILHA, Luiz Carlos Amorim, foi contemplado com a comenda Cícero Pedro de Melo, concedido pela Câmara Literária de Pomerode, no ano do seu 5º. Aniversário. A comenda foi concedida pelo trabalho realizado pelo escritor na divulgação da literatu-

LITERARTE

LANÇAMENTO

lia” foi lançado no dia 19 de novembro em Fortaleza – Ceará. O livro fala da história dos lugares visitados pela autora quando em viagem pela Itália. A organizadora do evento foi a mediadora

COMENDA

internacional cultural Sandra Bandeira Nolli. Eloah Westphalen Naschenweng recebeu, na ocasião, pela obra, a medalha Vitória Alada, que é um dos símbolos da cidade de Brécia, na Itália.

ra catarinense no Bra- sil e no mundo.

NOVOS LIVROS

O primeiro volume do Diário da Pandemia, de Luiz Carlos Amorim, está pronto e estará disponível nas versões impressa e e-book, em plataformas como Amazon e Clube de Autores.

O segundo volume sai em meados de 2023. Também em fase final de edição os livros DIÁRIO DE VIAGEM e A NOVA LITERATURA CATARINENSE, para lançamento no próximo ano.

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