Revista SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA - 42 anos de literatura

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SUPLE MENTO

LITE RÁRIO

Florianópolis, SC – Junho/2022 – No 161 – Edições A ILHA – Ano 42

GRUPO LITERÁRIO A ILHA: 42 ANOS

DE LITERATURA OS SERTÕES:

PARA LER SEMPRE

O POETA ZININHO DE FLORIANÓPOLIS

QUINTANA:

CARTA A UM POETA

URDA ALICE KLUEGER,

POR ELA MESMA LYGIA FAGUNDES TELLES: A DAMA

DA LITERATURA BRASILEIRA Portal A ILHA: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br


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MEU CORAÇÃO E EU

AGRADECIMENTO Roseana Murray – Saquarema, RJ

Luiz Carlos Amorim – Florianópolis, SC

Porque a vida é uma festa trágica, alegre, triste, porque a vida é um presente, não importa o recheio, porque o tempo é caudaloso e apaga o próprio tempo, porque há sempre alguém que se ama, porque o Universo é imenso e somos apenas uma leve pegada, porque somos feitos de sangue, ossos, lágrimas e poesia, porque cada dia é absurdamente único, porque em tudo o que tocamos, pele, objeto, coração, deixamos nossa tatuagem, há que agradecer.

Ponte 25 de Abril, sobre o Douro, Lisboa

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Meu coração, pejado de saudades, está de malas prontas, de mudança para as terras d'além mar: Portugal, amada, da língua liquida e fluida, sonora e musical, a única que tem a palavra saudade. Vou encontrar meu coração lá, mais tarde, à beira do Tejo, sob a luz sem igual de Lisboa, no esplendor do Douro ou à beira do Sado...


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SUPLE MENTO

LITE RÁRIO

EDITORIAL GRUPO LITERÁRIO A ILHA: 42 ANOS DE LITERATURA E o Suplemento Literário A ILHA chega aos 42 anos de circulação, assim como o Grupo Literário A ILHA completa 42 anos de literatura, mostrando a produção de nossos escritores, evidenciando a evolução da nossa literatura, abrindo espaços para os novos escritores e para os consagrados também. Para comemorar esses quarenta e dois anos de existência e resistência, sem nenhum apoio oficial, estamos começando a organizar a nova antologia do Grupo Literário A ILHA, reunindo grande parte dos integrantes da nossa agremiação, contemplando os gêneros poesia, conto e crônica. Pretendemos entregar essa obra até meados do segundo semestre e se for possível a reunião, aqui em Florianópolis, de uma grande parte dos autores, faremos um lançamento do novo livro. Os escritores mais frequentes nas atividades do grupo serão convidados. O Grupo Literário A ILHA já comemorou muitos aniversários com o lançamento de antologias reunindo seus integrantes, mas esta será a que reunirá o maior número de escritores, embora não entrem todos, pois são quase cem participantes e um livro com um número tão grande de autores seria um volume muito grande. O critério para convite será a frequência de participação em nossas publicações. Então, além das edições especiais das duas revistas que o grupo publica – SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA e ESCRITORES DO BRASIL, teremos uma grande antologia. O Grupo Literário A ILHA continuará a abrir espaços para os novos e não tão novos escritores, registrando a trajetória da literatura em Santa Catarina e no Brasil. Esperemos que gostem do conteúdo desta edição. Comuniquem-se conosco, deem sua opinião sobre a revista, deem também sugestões, que queremos fazer sempre a melhor publicação para nossos leitores. Nosso e-mail para contato é revisaolca@gmail.com. O editor

EXPEDIENTE SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA – Edição 161 – Junho/2022 – Ano 42 Edições A ILHA – Contato: lcaescritor@gmail.com e revisaolca@gmail.com A ILHA na Internet: Portal PROSA, POESIA & CIA.: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br Os textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da revista. 3


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SUBLIME ESPERANÇA

Lorena Zago – Presidente Getúlio, SC

comunhão, teto, pão e harmonia no lar. Eis o que preconiza o grito dos corações aflitos: - um tempo de paz! Vibrem acordes de clareza no olhar, exultem sentimentos sem ganância e sem dor. Clamem os humanos por consciência, sensibilidade e honradez. Flua a sabedoria do mais alto candor, em busca de uma vida que remeta ao amor!

O silêncio conclama ao vento: - ide os humanos assessorar, leva-lhes alento, compreensão compaixão no olhar. Dinamicidade e coragem, sem aflição, igualdade e aconchego unam as mãos, vozes e virtudes sejam mediadas, medidas solidárias, ao universo contempladas. Possa a escuta oportunizar seu viver ouvindo o vento, em sua brisa conceber...

Proclame-se a luz e a leitura, também, por tempos de harmonia e integridade, além... Um oceano de compreensões possa mover as interações, desenhar um cenário de auroras e excelsas lições, destemidas e impregnadas de sublimes ações.

Haja espaço para todos suas conquistas alçar em contextos e memórias, suas vidas louvar. Distem os tempos do sofrer, sem o brilho no olhar, acolham-se os momentos de

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CARTA PARA UM POETA Mario Quintana

Meu caro poeta, Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de inst i n t i vo, c a r r e g a d o de emoção. Com is-

so não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio 5

Ra m s é s , s e fo r e s palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? – perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: “eu te trago a minha verdade.” E o poeta,


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quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos! Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. M o d és t ia à par te, as digres sões so bre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fa zer pesquisas com perguntas assim: “O que é poesia? Por que se tornou poeta? Co mo escreve os seus

poemas?” A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz. A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te

posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez 6

de associações de ideias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um p oema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação. Como vês, para isso é preciso uma luta


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constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: “Eu não te largarei até que me abenç o e s ”. P o i s b e m , haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técnica dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te

digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o públic o e trazer-te uma efêmera popularidade. Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nas cer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles m ol d es, o b e d e c er àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma fo r m a q u e a g e n te primeiro aprendia nos cadernos de ca-

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ligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa


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óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas. Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de

que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já es-

crevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família. Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

O livro O VALE DAS ÁGUAS, seleção de crônicas sobre Corupá, a Cidade das Cachoeiras, com muitas fotos e cores ilustrando os textos, está à disposição, na Amazon. Veja no link https://amz.run/4LtO . Se você conhece Corupá, vai gostar de relembrar e rever as belezas da cidade. Se não conhece, vai gostar de conhecer as belezas do Vale das Águas. 8


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ORAÇÃO DO MILHO Cora Coralina

Sou de origem obscura e de ascendência pobre. Alimento de rústicos e animais do jugo. Fui o angú pesado e constante do escravo na exaustão do eito. Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante. Sou a farinha econômica do proletário. Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha. Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paiois. Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece. Sou o carcarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos. Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, que me fizeste necessária e humilde Sou o milho.

Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres. Meu grão, perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada. Ponho folhas e haste e se me ajudares Senhor, mesmo planta de acaso, solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos, o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou. Sou a planta primária da lavoura. Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo. E de mim, não se faz o pão alvo, universal. O Justo não me consagrou Pão da Vida, nem lugar me foi dado nos altares. Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.

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A VOZ DOS NOVOS ESCRITORES Carla Rodrigues

Schollhammer

“Inicialmente, a ‘Geração 90’ foi um golpe publicitário muito bem armado.” A frase, extraída de Ficção brasileira contemporânea (Civilização Brasileira), tem a força de um petardo, mas entra discreta no pequeno – nem por isso menor – e recente livro de Karl Erik Schollhammer, professor d a Po nt i fíc i a U n i versidade Católica do Rio (PUC-Rio) e teórico da literatura brasileira. “O título de Geração 90 designa um grupo preferen c ialmente de homens paulistas, todos de uma mesma orientação literária. Foi uma maneira de dar manifestação a autores que não tinham conquistado

visibilidade”, identifica Schollhammer. A nova geração também é tema de livro do escritor Carlos Nejar, História da literatura b ras i l ei ra (Editora Leya/Biblioteca Nac ional), membro da Academia Brasileira de Letras. O descrédito do termo geração vem acompanhado da percepção de que diferentes estilos de escrita se pretenderam sob o mesmo guarda-chuva geracional: o hiper-realismo de obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins, o novo

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regionalismo, cuja principal expressão estaria no trabalho de Ronaldo Brito, o miniconto e a literatura marginal – principalmente a que emerge nas periferias de São Paulo – são algumas das correntes que estariam abarcadas num conceito de geração tão amplo quanto forjado por interesses de mercado. “Geração é um termo útil publicitariamente”, diz o professor Arn a l d o Fr a n c o J ú nior, da Universidade E s t a d u a l Pa u l i s t a (Unesp). Para ele, uma das principais marcas da literatura brasileira a partir do final dos anos 1970 é a radical profissionalização do escritor, que produz diferentes efeitos: aumento exponencial do número de editoras e consequente expansão do mercado editorial, o


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jornalismo se torna muito presente na prosa brasileira e o escritor e o profissional da escrita ficam cada vez mais próximos. “Como no Brasil não há apoio a o e s c r i t o r, n o s sos grandes autores eram dipl omatas”, lembra Schollhammer, se referindo a nomes como Guimarães Rosa, cujo ofício de escritor era sustentado pelo trabalho no Itamaraty. “Há pessoas que querem viver de escrever. A literatura passa a ter um olho no mercado editorial, e isso significa fazer concessões”, identifica Franco Júnior. Desde que, em 1968, o filósofo Roland Bar thes anunciou a morte do autor, a teoria literária, o pós-estruturalismo e o pensamento da desconstrução discutem a controversa questão do lugar do autor na produção textual. A ideia de que o autor não está presen-

te para garantir o sentido de seu texto, a importância da relação entre autor e leitor para a significação de um texto e a abertura do texto às múltiplas interpret aç ões fizeram com que a propagada morte do autor tivesse sido defendida como ruptura com a literatura tradicional. Afinal, eram os anos 1970 na Fran ç a e quebrar paradigmas

Guimarães Rosa

tradicionais estava na ordem do dia. Hoje a volta do autor está não somente no culto à personalidade do escritor de livros, como também no retorno das chamadas “escritas de si”. “Embora ninguém queira ser 11

um autor identificado com o realismo dos anos 1930 nem com o século XIX, o fato é que há uma grande constância do realismo na li teratura brasileira”, defende Schollhammer. Ele percebe em blogs testemunhais, livros autobiográficos e depoimentos em primeira pessoa uma sobreposição entre autores e personagens que fazem par te des ses dois movimentos: a manutenção do realismo, para ele a marca mais estável na histó r i a d a l i te r at ur a brasileira, e a volta do autor. Schollhammer identifica a volta do autor também na popularidade das festas literárias. “A Flip equivale ao Festival de Cannes, mas existem outras, algumas anteriores, como a de Passo Fundo, e todas apostam na volta do autor”, acredita o professor. Já a volta


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ao realismo não interessa aos autores brasileiros. “Hoje todo mundo quer ser R u b e m F o n s e c a ”, argumenta ele. Num ponto, no entanto, os j ovens autores brasileiros diferem do estilo de Fonseca: enquanto o escritor é conhecido por ser reservado e silencioso, os autores contemporâneos querem ter o estilo – e, por que não, o sucesso – de Fonseca, mas sem a mesma exigência de reclusão, hoje já nem tão rigorosa assim. Recentemente ele participou da perfomance do lançamento do livro de sua discípula, a jovem escritora Paula Parisot, cuja estreia teve lançamento público em São Paulo também com a presença do padrinho Fonseca. “Nem Fonseca é mais recluso”, brinca Schollhammer. A partir da expansão do mercado editorial e de sua profissio-

nalização, escritores são p ostos diante da tarefa de negociar com o mercado. “A polarização entre arte e mercado é pobre. Mas é ponto de partida para pensar a narrativa na literatura contemporânea”, argumenta Franco Júnior. “O que se vê, de 1990 em diante, é a toma-

Rubem Fonseca

da da palavra literária por segmentos que não tinham voz”, diz ele, se referindo ao que se convencionou chamar d e l i te r at ur a m a rginal, mas que ele chama de “marginal mesmo”, para diferenciar do grupo de poetas da década de 1970 que rodava 12

seus poemas em mimeógrafos. Até porque, nos anos 1990, a literatura marginal ganha espaço no mercado editorial, torna-se produto de consumo da indústria cultural e autores da periferia são lançados por grandes editoras como Cidade de Deus, de Paulo Lins. Ao mesmo tempo que estão no mercado, são textos que desafiam a tarefa da crítica literária, acostumada até então a pensar sobre valores eruditos. A literatura marginal vem desarrumar os padrões estéticos. “São textos que abrem mão do belo, do poético e causam choques perturbadores”, diz Franco Júnior, citando Antonio Candido, o primeiro a perceber as dificuldades que se apresentam a partir do momento em que, pela primeira vez, o outro, o diferente, se inscreve – ou se escreve – no


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Antônio Cândido

horizonte da literatura ocidental. Entra em cena, assim, o esvaziamento do papel da crítica acadêmica, situação que levou a professora Flora Susse kind, da Uni-Rio, às páginas do caderno Prosa e Verso, do jornal O Globo. Num artigo intitulado “A crítica como papel de bala”, ela protestava contra o que chamou de “apequenamento e a perda de conteúdo significativo da discussão crítica, assim como da dimensão social da literatura no país nas últimas déc adas”. Fatores como o fim dos suplementos literários dedicados exclusivamente às

resenhas e a perda de espaço do discurso acadêmico nas páginas dos jornais estão forjando, nas últimas duas décadas, um modelo de debate literário ou superficial – no qual, segundo Flora, estaria faltando a valorização da dimensão social da literatura –, ou exclusivamente pautado por interesses de mercado. Desse diagnóstico discorda Nejar: “Tantas vezes ouvimos a anunciação do fim da crítica e mesmo da poesia e o espírito humano sempre se renova e o que parece terminar, com e ç a ”. J á S c h o l lhammer concorda com Flora, mas atribui a renovação à percepção de que a mudança do lugar da literatura na sociedade é uma condição e um desafio. “Ainda é muito precária a compreensão da crítica sobre a falta de autonomia da literatura de hoje. 13

Hoje a literatura não interage mais com a sociedade de forma autônoma”, diz Schollhammer. Dele discorda o imort a l C a r l o s N e j a r. “A literatura jamais perderá o seu lugar p r e p o n d e r a n te n a sociedade enquanto existirem autores capazes de se debruçar sobre a condição humana com grandeza.” O professor acredita que os autores argentinos têm mais reflexão sobre esse novo lugar para a literatura. “Eles veem a literatura como uma etnografia do presente, em que a criação da ficção também é uma maneira de expor outras realidades”, diz.

Carlos Nejar


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Schollhammer propõe pensar a literatura dentro do que c hama de “c amp o expandido”, em que entram em cena objetos, materialidades, novas formas estéticas e relação com outras formas narrativas, como cinema e TV. “Não se trata mais de olhar apenas para a literatura, mas de tudo que se relaciona c om ela”, explic a . Na França revolucionária do século XIX escritores assumiram o papel de erguer as bandeiras dos valores modernos – a tríade liberdade, igualdade e fraternidade –, estavam, a seu modo, unindo literatura e

exposição de outras realidades. Naquele momento eram os ideais da democracia que inspiravam autores, numa socie-

dade em que escrever era privilégio de poucos. Hoje não só as novas tecnologias colocam ao alcance da mão novas fer-

LEIA o Blog CRÔNICA DO DIA

ramentas de publicação, como estão encurtadas as distâncias entre autor e editor. Em 1856, Gustave Flaubert pôs o ponto final em Madame Bovary e foi parar nos tribunais franceses sob acusação de ter escrito uma obra indecente. Ao longo do século XX, além de perder autonomia, a literatura perde também seu c a r áte r r evo l u c i o nário – tanto e a tal ponto que um manifesto de geração se dá como uma jogada de mercado. “O que Flaubert fez foi muito mais revolucionário do que se pode fazer hoje”, reconhece Schollhammer.

Em http://luizcarlosamorim.blogspot.com.br Literatura, arte, cultura, cotidiano, poesia. Todo dia um novo texto: um conto, uma crônica, um artigo, um poema. Leia e comente. Sua opinião é importante para que possamos melhorar o conteúdo. 14


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IR ALÉM

ABISMO

Erna Pidner – Ipatinga, MG

Fernando Pessoa

Vou além da noite colher estrelas pra te ofertar; além do mar trazer seus mistérios e os desvendar. Além da montanha buscar a harmonia que a natureza nos pode dar. Além do luar suave e sereno a nossa vida a iluminar. Além do asfalto sempre em frente a caminhar. Além da esperança de um futuro risonho a me esperar. Além da saudade o meu peito a apertar. Além da certeza de que um dia irei chegar!

Olho o Tejo, e de tal arte Que me esquece olhar olhando, E súbito isto me bate De encontro ao devaneando – O que é ser-rio, e correr? O que é está-lo eu a ver? Sinto de repente pouco, Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco – Mesmo o meu estar a pensar. Tudo – eu e o mundo em redor Fica mais que exterior. Perde tudo o ser, ficar, E do pensar se me some. Fico sem poder ligar Ser, ideia, alma de nome A mim, à terra e aos céus...

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E súbito encontro Deus.


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URDA ALICE KLUEGER POR ELA MESMA

“Meu sonho de consu- Urda já foi dona de mo era ser sócia da Bi- editora e publicou diversos escritores cablioteca” tarinenses e também Urda Alice Klueger realizou pesquisa arnasceu em Blumenau. queologia no litoral de Foi lá, também, que Santa Catarina. Foi começou sua carreira cronista dos jornais A de escritora. Historia- Notícia de Joinville e dora graduada e pós- Diário Catarinense de -graduada, é autora Florianópolis, e vivende diversos livros, en- ciou ativamente a histre romances, crôni- tória cultural do Vale cas, relatos de viagens do Itajaí nas últimas e literatura infanto-ju- décadas. Atualmente venil, alguns deles já mora em Palhoça, em clássicos da Literatu- Enseada de Brito, seu ra Catarinense, como paraíso particular. Na “Verde Vale” (1979), entrevista a seguir, ela “No Tempo das Tan- conta histórias deliciogerinas” (1983), “Cru- sas da infância e revezeiros do Sul” (1992). la verdades que não 16

sabíamos, como a história sobre a sua saída do DC. Pergunta – Considerando textos seus e o filme “Por Causa do Papai Noel”, de Mara Salla, concluí-se que você começa a ler em função de um acidente de bicicleta que teve na infância, onde teve que ficar imobilizada por conta de um tornozelo quebrado. Urda – Na verdade, esta imobilidade me deu mais tempo para ler, porque começo a ler muito desde o momento em que


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sou alfabetizada. Morávamos em Balneário Camboriu, e meu pai veio para Blumenau para que eu pudesse entrar na escola. Estava passando o período de eu entrar na escola, e lá em Balneário não tinha nada, só uma escolinha muito longe. Era uma escola reunida, e para chegar lá eu teria que caminhar pelo mato. Então eles acharam melhor voltar. Quando minha mãe foi à escola para me matricular, as matrículas já tinham passado e não havia mais vagas. A diretora disse a minha mãe: “a senhora a leva para ca-

Cartaz do filme

sa, ensina um pouco, e ela entra junto com o primeiro ano de repetentes”. Então foi muito engraçado essa coisa de eu ser alfabetizada, porque minha mãe usou o método em que ela foi alfabetizada. Aprendi as sílabas, conheci-as todas, mas não juntava sílaba com sílaba. Houve um domingo de manhã, tínhamos chegado da missa, e minha mãe tirou um tempo antes do almoço para me fazer estudar mais um pouco. E eu lá: b + a = ba, t + a = ta, t + a = ta. E ela: “o que é que dá?” E eu nada. Íamos de novo, e de novo, e de novo, e eu nunca que chegava na batata. De repente ela ficou furiosa, deu-me uma “porrada” na cabeça e eu disse “batata”. Daquele momento em diante eu estava alfabetizada. Começaram as aulas. Como era uma turma de repetentes, alguns daqueles alunos já tinham completado 14 anos e saíam para trabalhar nas fábricas, 17

considerava-se que era gente já alfabetizada e por isso não tinha cartilha para aprender a ler e escrever. Porém havia o primeiro livro de leitura, e no primeiro dia em que o recebi – ele tinha as lições, com letras grandes, mas textos em letra pequena, como a apresentação – , levei para casa e li tudo no primeiro dia, e teve alunos na minha sala que nunca o leram até a metade. Depois comecei a ler compulsivamente. Tanto é que meu sonho de consumo de infância era fazer doze anos para poder ser sócia da Biblioteca Pública Municipal Doutor Fritz Müller. Até os doze anos eu havia lido tudo que tinha na minha casa, nos meus vizinhos e na minha escola. Isso engloba livro, revista, jornal e tudo o


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que estivesse ao meu alcance, inclusive as enciclopédias Barsa e Delta Larousse. E quebrar o tornozelo nessa altura foi uma coisa magnífica, porque nos primeiros meses eu ainda não era sócia da biblioteca, tinha apenas onze anos, mas depois sim. Eu não podia andar, meu pé perdia a firmeza, mas andar de bicicleta podia. Então ia de bicicleta à biblioteca, e não conseguia dormir enquanto não acabasse o livro. Eu fazia de conta que estava dormindo para minha mãe ir dormir, e quando estava tudo em silêncio, acendia a luz e acabava o livro.

Pergunta – Para os padrões brasileiros, começas a publicar tarde... Urda – Eu tinha uns 26 anos. Eu não levava a sério! Escrevia direto, mas... Teve um período, quando eu tinha 13, 14 anos, em que persegui outras linguagens. Tentei pintar, tentei fazer histórias em quadrinhos, tentei fazer projetos de plantas baixas, mas aquilo não me preenchia. O meu negócio era mesmo escrever, mas ninguém escrevia! Escrever era uma anormalidade. Eu até tinha visto um escritor, uma vez. Era o professor José Ferreira da Silva. Certa vez, quando eu estava na biblioteca pegando um livro, alguém me disse: “aquele lá é um escritor”. Fiquei atrás da porta, olhando por uma fresta. Ele estava sentado do lado de fora, no jardim dos fundos da Fundação Cultural, em uma mesa e com uns papéis. Fiquei espiando: “aquilo era um 18

escritor!” Porque eu achava que os escritores ou já tinham morrido, ou moravam em algum lugar distante, mas que não existiria um escritor aqui. Aos 14 anos, lá em Armação, vou conhecer um escritor de verdade, o Marcos Konder Reis, que foi meu amigo até a morte. Trocamos 35 anos de correspondência. As cartas que o Marcos me mandou, recentemente doei para o museu histórico de Itajaí, e muitas das que escrevi para ele tenho as cópias em carbono. Estas ainda não doei porque as quero reler. Uma parte da minha vida está ali. Bem, tinha um tema que me apaixonava mais, que era o tema da imigração e vou ler sobre todas as imigrações possíveis e imagináveis.


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Marcos Konder Reis

Pergunta – Alguma influência da tua avó, que era lituana? Urda – Minha avó era imigrante, isso pode ter tido influência. Mas também o gosto pela história que desperta muito cedo em mim. Os meus livros preferidos eram os romances históricos. Alguns deles li várias vezes. Cito aqui “Os Frutos da Terra”, do Knut Hamsun , e “E o Vento Levou”, da Margaret Mitchell , entre outros. Então eu tinha aquela fascinação pelo romance histórico, mas não achava que o que fazia tinha alguma importância, algum valor, algum significado. Eu tinha vergonha, e escrevia escondida no mato, num bananal ou dentro de um grande galinheiro que havia lá em casa. Escrevia

tudo em cadernos, e os guardava dentro do galinheiro, em um quartinho de guardar ração onde meus pais não iriam achar. Todo mundo nesse tempo escrevia cartas, porque não havia a facilidade do telefone e da internet, mas ninguém escrevia nada além de cartas. Sentia-me fazendo alguma coisa errada. E quando pensei em escrever uma coisa do início ao fim, perguntei-me do que gostava mais. Imigração. E a que eu mais entendo é daquela em que estou dentro, a imigração do Vale do Itajaí. Foi aí que escrevi o “Verde Vale”. A primeira pessoa para quem mostrei o texto foi o Marcos Konder Reis. Pergunta – E o livro foi logo publicado? Urda – Escrevi e datilografei em algumas vias. Mandei uma para o Marcos, outra para o “seu” José Gonçalves, aqui de Blumenau, e outra para o “seu” José Escalabrino Finardi, 19

que escreveu a história de Ascurra. Todos os três se entusiasmaram e foram falar com seus editores, dizendo que tinha aparecido um livro que era diferente e era bom. Recebi então recados de duas editoras, a Lunardelli e outra de Porto Alegre. Quando me perguntam se é difícil publicar um livro, é difícil, todo mundo se queixa, mas para mim não foi difícil publicar. Fiz essa opção por Florianópolis porque ir a Porto Alegre era uma coisa muito distante, muito difícil. Acho que naquela altura eu não saberia ir a Porto Alegre resolver alguma coisa, enquanto Florianópolis era logo ali.


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Pergunta – Qual foi a repercussão do “Verde Vale” no tempo do seu lança mento, e qual era a posição do Odilon Lunardelli a respeito desse livro? Urda – O “seu” Odilon Lunardelli não leu o “Verde Vale”! Quem leu foi o Marcos Konder Reis e o “seu” José Gonçalves. Quem me levou lá foi o “seu” José Gonçalves, e pelo caminho, no carro, ele foi me explicando o que eu tinha que dizer e como negociar. Quando cheguei lá não aconteceu nada disso. O “seu” Odilon olhou para mim e perguntou: “essa é a Urda?” “É.” “Trou-

xeste o original do livro?” “Trouxe, está aqui.” Ele pegou, colocou na gaveta e disse: “sai lá pelo mês de junho.” Depois houve revisões, porque isso foi antes do tempo do computador e a edição empastelava. Essa era uma revisão que só o escritor podia fazer, porque só ele sentiria quando estivesse faltando uma linha, uma palavra ou até um capítulo. A revisão que hoje se faz é outra, e visa principalmente os erros de português. No “Verde Vale” faltou uma linha, e as primeiras nove edições saíram sem aquela linha. A cada nova edição eu dizia: “saiu de novo sem aquela linha.” E o “seu” Odilon: “mas por que não me avisaste que faltou uma linha?” Então a edição completa é a décima. Pe r g un t a – S e u s romances, até o “Cruzeiros do Sul”, sempre foram identificados em relação à imigração germânica. Por que esta 20

opção de trabalhar a temática germânica desta forma um pouco mais ousada, de uma germanidade miscigenada? Você teve um contato anterior com a obra do Gilberto Freyre? Urda – Tive contato com a obra do Gilberto Freyre depois que escrevi “Verde Vale” e “No Tempo das Tangerinas”. Parece que ganhei um rótulo: a escritora que escreve sobre Blumenau e sobre o alemão. As pessoas esquecem dos meus livros que são totalmente diferentes. Acho que o que pegou foi a miscigenação que havia dentro da minha casa. Nós éra-


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mos híbridos em tudo: culturalmente, etnicamente e religiosamente. E as rejeições que minha mãe sofreu refletiam muito na gente. Não era só ela que sofria, eu sofria também. Tenho lembrança de aniversários, casamentos, dessas festas que reúnem toda a família. Nós éramos três meninas muito bonitinhas, e pessoas da família me pegavam no colo e diziam: “estás vendo essa aqui, como é bonitinha? É do Rolando!” – que era meu pai. E aquilo tinha toda uma carga de preconceito. Ela era do Rolando, mas era também filha da brasileira. Isso reflete profunda-

mente em mim, tanto é que nunca me senti alemã, mas sempre uma brasileira de muitas origens. E a partir de um certo momento, além de brasileira, passo a me sentir americana. Hoje, se me perguntarem, não diria cidadã do mundo, mas cidadã da América. Pergunta – Na sua primeira fase há um livro, chamado “Te Levanta e Voa”, que vai abordar o movimento hippie. Como é que este movimento chega até você? Houve uma Blumenau hippie? Urda – Houve! Quando Blumenau fez 150 anos, foram gravados programas de 30 segundos com diversas pessoas que falavam sobre a Blumenau do passado. Cada qual escolhia sobre o que falar, e falar do “Opa” e da “Oma” era quase que unânime. Mas o que me marcou mesmo não foi a “Oma” e o “Opa”, mas o movimento hippie, e fa21

lei sobre o que tinha acontecido. Quando o movimento chega a Blumenau, os hippies vão se alojar num hotelzinho que tinha na rua Ângelo Dias. A partir de certo momento Blumenau entra nas rotas hippies. Nessa altura nós já estávamos totalmente fascinados pelos Beatles e por algumas coisas que estavam acontecendo no mundo, e quando os hippies começaram a chegar, para mim, aquilo foi o máximo! E eles passaram a ter um lugar de trabalho, que foi a escadaria da igreja matriz, hoje catedral. Eles passavam os dias, ali, fazendo sandálias e diversos artesanatos. O X-salada era uma coisa recente em Blumenau; acho que chegou junto com os hippies. Foi uma coisa tão incrível que nós só quería-


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mos comer X-salada. E eles ficavam conversando sobre poesia, sobre filosofia, tocando música. Aquele espírito que vai nortear o modo de vida hippie de alguma forma estava ali junto, dentro da parte artística, porque muito do que se queria dizer era proibido. Se bem que este proibido tinha certo tamanho, porque nós podíamos, por exemplo, ir contra a guerra do Vietnã. Fizemos uma passeata contra a guerra do Vietnã no dia em que terminei o terceiro ano do científico. Então aquilo, para mim, era um fascínio! A todo momento eu estava enfiada lá no meio dos hippies. Meu pai não me deixaria ir embo-

ra com eles, mas meu sonho era ir embora com eles! Isso foi muito forte em minha vida, tanto é que não passou, ficaram as heranças daquela escadaria lá da igreja. E quando digo isso na televisão, nos 150 anos de Blumenau, várias pessoas me abordaram. Senhoras de blazer e salto alto me diziam: “você me fez viajar no tempo! Eu estava lá, fui junto com eles, andei descalça daqui até a Bahia, ou Bolívia, tocando flauta doce, e hoje não posso me referir a isso dentro da minha casa porque meus filhos e meus netos vão dizer que sou louca, que isso é uma vergonha, e você vai lá na televisão e fala!” Ou quem me dizia: “eu passava do outro lado da rua porque meu pai dizia ‘não chega perto, é tudo maconheiro, é perigoso’.” Pergunta – Como nasceu o projeto do “Cruzeiros do Sul? É aqui que começa a mudança do seu 22

olhar, que até então dizia de direita? Porque neste livro a crítica social e a crítica à política econômica são muito fortes. Urda – O “Cruzeiros do Sul” demorou quatro anos e meio para ser escrito, entre pesquisas, leituras e escritas. Fiz também algumas viagens durante esse tempo. Fui a Paris para ficar um mês, e lá fiquei muitas tardes, naquelas mesinhas na rua, tomando um cuba-libre e imaginando como iria continuar o “Cruzeiros do Sul”. Ele andou comigo por quatro anos e meio! Surgiu do Plano Cruzado, onde o povo tomou a frente fechando os supermercados e onde houve o congelamento dos preços. O lema era: “Tem que dar certo!” Como muita gente, num primeiro momento também acreditei piamente. Naquela semana em que o plano entrou em vigor, onde a moeda perdeu três zeros, o Brizola apareceu na


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televisão durante o horário político do PDT. Como produto da direita, eu tinha uma certa bronca do Brizola, e fiquei escutando para criticar. E o Brizola criticou o Plano Cruzado dizendo que inflação não se tira por decreto, entre outras coisas. Seis meses depois, quando o plano veio por água abaixo, eu disse: “esse cara realmente tinha razão!” Esses quatro anos e meio em que estou escrevendo o livro também vão coincidir com minha vivência sindical. Era bancária e vou me aproximando cada vez mais do sindicato dos bancários, principalmente a partir de 1985, quando houve uma grande greve da categoria em Blumenau. Foi uma sequência de greves. Nós íamos para as assembleias, e quando aparecia o fotógrafo do Jornal de Santa Catarina, escondíamos a cara para não aparecermos na foto. Tínhamos medo do Serviço

Nacional de Informação. Então vai se dando uma nova visão de mundo, para mim, dentro dessa minha vivência sindical e de luta por conquistas, e aí acontece o Plano Cruzado e o pronunciamento do Brizola logo no começo foi uma coisa muito forte, porque vi que ele estava certo. E o Plano Cruzado aconteceu dentro de

onde eu trabalhava, no banco, onde vou atender as pessoas que ficaram na miséria por causa dele, as pessoas que venderam suas terras e colocaram o dinheiro na poupança para viver de juros. Então pensei: “tenho que escrever sobre essas pessoas”. Essa foi a ideia original. E quem vai ser meu herói? Teria que ter um personagem 23

principal, e quem vai ser? Um descendente de alemão? De italiano? Um luso? Teria que ser alguém que representasse todo mundo. Vou ler sobre a história do estado e retroagir a 1650, e começar a história com o índio. Para isso as pesquisas de Sálvio Alexandre Müller e de Sílvio Coelho dos Santos me ajudaram bastante. Pergunta – No “Cruzeiros do Sul” temos a formação do território, do povo catarinense, a ação do ser humano sobre o meio físico. O mesmo pode ser observado em “As Brumas Dançam Sobre o Espelho do Rio”, no “Verde Vale” e também no romance o “Sambaqui”, que trabalha o processo civilizatório do povo sambaquiano, porque este também ocupa um espaço, constrói uma cultura. Neste aspecto, há aqui uma influência do Knut Hamsun?


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Urda – No começo certamente sim, e talvez até hoje. Li esse livro, pela primeira vez, por volta dos quinze anos, e nos dez anos seguintes devo tê-lo lido umas vintes vezes. Depois passei um longo tempo sem o ler, e há uns quatro anos eu o reli e saquei de onde veio a minha influência maior. Acho que teve um monte de gente que me influenciou, como Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Mauro de Vasconcelos, isto para citar os brasileiros. Adoraria saber escrever como Machado de Assis, mas acho que não tenho competência para tanto. Muitos estrangeiros, li os clássicos, tanta coisa, mas o X da questão está lá

no Knut Hamsun. Há também um outro escritor que me marcará e estabelecerá um “antes” e um “depois” na minha vida, que é o Franz Kafka. Li “O Castelo” e “O Processo” e não estava preparada para aquela porrada. Até hoje não sei definir como mexeu, o que mudou, o que aconteceu, mas sei que eu era uma pessoa antes e me tornei outra depois. Pergunta – Você começa escrevendo romances e depois passa a se exercitar em outros gêneros, como a crônica, o ensaio, os relatos de viagens. Como surge a crônica na sua carreira? Urda – Se alguém me dissesse que eu iria

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escrever crônica, eu diria que não, que sou uma romancista histórica. Porém um dia o jornal A Notícia me ligou dizendo que eles estavam montando um caderno cultural e queriam que eu escrevesse as crônicas. Eu disse: “mas eu não sei escrever crônicas!” “Tenta para a gente ver. Faz umas três crônicas e manda para a gente dar uma olhada.” Fui para casa pensando nos assuntos para escrever três crônicas. Datilografei, coloquei no malote e fiquei esperando que me telefonassem. De repente um amigo meu chega dizendo “Urda, que coisas legais andas escrevendo no A Notícia!” Liguei para eles perguntando se estavam me publicando. “Sim, já publicamos três e precisamos de material para esta semana.” Fiquei uns três anos publicando no A Notícia. Ter uma coluna fixa em jornal é uma coisa muito estressante porque a gente fica


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pensando no que vai escrever, já que no dia marcado o texto tem que estar lá. Mais tarde escrevi para diversos jornais, mas com compromisso sério foi o A Notícia e o Diário Catarinense, e neste último fiquei bem menos tempo. Pergunta – O que houve no Diário Catarinense? Urda – Pertenço a um comitê pró Palestina em Blumenau. Acho que está acontecendo um genocídio lá na Palestina, uma coisa tão horrorosa quanto a que fizeram com o povo judeu na 2ª Guerra Mundial. E assim como falo do judeu que foi injustiçado na 2ª Guerra Mundial, tenho que falar do palestino injustiçado pelo judeu. Quando o redator chefe do jornal me contratou, falei que não ia dar certo: “as minhas ideias e as de vocês não fecham”. “Mas nós vamos respeitar as suas ideias”, disseram-me. No período que estive lá, escrevi

um total de quatro crônicas sobre a Palestina, três passaram, e a quarta virou um samba de crioulo doido. Fui demitida em altos brados. Os Sirotsky mesmo não me disseram “tu não podes escrever sobre a Palestina”, mas botaram lá uma professora da UFSC,

partidária de Ariel Sharon, para brigar comigo no jornal e levantar essa questão de que eu estava errada. Sabe que a gente sempre acaba tendo uns leitores mais fiéis. Alguns destes não queriam que eu fosse demitida, e ficaram mandando e-mails para o jornal, eles responderam, 25

eram mensagens escritas pelos Sirotsky, e os leitores me passaram estes e-mails. Para a minha carreira, isso foi ótimo! Essa briga acabou envolvendo pessoas, leitores, simpatizantes e antagônicos de doze países. Já há trabalhos acadêmicos feitos sobre esse material que recebi. Isso me deu também uma visibilidade que eu não tinha, o que faz com que eu já tenha publicado em três continentes e em muitos órgãos de imprensa. Com aquele exercício de escrever toda semana para o A Notícia, acabei criando o hábito de toda semana produzir uma crônica. Pergunta – Como é o teu processo criativo? De onde vêm os temas? Urda – Vêm daquilo que está acontecendo. Por exemplo, quando o Obama foi eleito e todo escritor do mundo falava sobre ele. Não sobrou texto para mim, então nem me meti a falar do Oba-


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ma. Estava como espectadora do que ia acontecer e esperando que mudasse para melhor, se bem que sabíamos que trocar republicanos e democratas nos Estados Unidos é quase trocar seis por meia-dúzia. Uns são mais agressivos, outros menos, mas ambos são capitalistas. Obama disse que ia fechar Guantánamo, o que já era um bom começo. Mas quando acontece algo que mexe intimamente comigo, então escrevo sobre aquilo. Por exemplo, outro dia morreu, nas montanhas da Colômbia, Manuel Marulanda Vélez, e todo mundo falou sobre ele. Porém houve um viés sobre o qual não vi ninguém falar: o ser humano Manuel Marulanda. Todos falaram do aspecto político, mas fui pesquisar como ele andava solitariamente pelas montanhas com seu cachorro e sua arma, andando por cada rincão da Colômbia

sem nunca ter ido até a capital. Então fiz um texto sobre o ser humano. E quando não há um fato que mexa comigo, escrevo textos sobre o amor, a natureza, a pré-história, o meu cachorrinho – série de crônicas que se transformaram no livro “Meu cachorro Atahualpa”, um dos meus

livros mais vendidos. Pergunta – Do “Cruzeiros do Sul” ao “Sambaqui”, nós temos um intervalo de quase duas décadas onde publicaste livros de crônicas, relatos de viagens e artigos de história. Por que este período tão grande sem publicar um novo 26

romance, “Sambaqui”? E por que a pré-história? Urda – O fato de estar escrevendo crônicas para o A Notícia me tirou o tempo para escrever romances. E apareceu um monstro assustador na minha frente chamado aposentadoria. O que vou fazer na aposentadoria? Depois de um primeiro momento de susto, pensei: “vou ser feliz”. E ser feliz, para mim, era cursar História, curso que sempre sonhei fazer. Nesse período em que me envolvi com o curso de História, escrevi quase nada. Logo no primeiro semestre de História entrou na sala de aula uma professora de arqueologia. Eu andava muito pelo mundo, via muita arqueologia, e pensava: “por que é que no Brasil não tem nada?” E ela vai falar justamente da arqueologia de Santa Catarina, do nosso litoral, de um período de 6 mil anos, de coisas que conheci e não sabia o


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que eram. E a arqueologia era uma coisa que estava dentro de mim há muito tempo! Desde os tempos de ginásio! Lembro de, aos 15 anos, o Padre Sílvio Tron, nosso vigário, me chamar na casa paroquial e dizer: “senta aqui minha filha; o que tu queres ser quando cresceres?” – porque todas as meninas que estavam estudando iam fazer o curso de Normal para serem professoras, e eu queria fazer o Científico porque não queria ser professora. Então respondi que queria ser arqueóloga. “Tu sabes que no Brasil não é possível ser arqueólogo? Porque pra fazer arqueologia tem que ir pro Egito ou Pompéia”. Isso era uma coisa inadmissível de se pensar naquela altura, que um colono blumenauense e pobre, como eu era, poderia um dia ir para o Egito, quanto mais estudar arqueologia! Então naquela oportunidade o Padre Síl-

vio tirou isso da minha cabeça, mas tenho lembrança daquele momento como uma coisa que era muito forte até ali. Então era uma idéia antiga. Quando, de repente, surge a professora Elisabete Tamanini com a arqueologia de Santa Catarina. Lembro que fiquei olhando os slides que ela mostrava nas aulas e vi uma baleia de pedra

que deve ter uns 5 mil anos, que está lá no Museu do Sambaqui de Joinville, e pensei: “meu Deus, preciso ir mais fundo nisso, escrever a respeito!” Entre o começo da pesquisa e o romance ir para a gráfica, passaram-se de dez anos e dez meses. Pergunta – Além de escritora, você é historiadora, graduada e pós-graduada em 27

História. Como entende o romance histórico? Onde termina o romance e começa a história? Nos seus romances, o que é ficção e o que é história? Urda – Nos meus isso é muito fácil de definir, porque a ficção são os meus personagens e os fatos são os fatos históricos, e às vezes misturo personagens da história com meus personagens imaginários. Hoje, porém, tenho uma visão um pouco mais refinada sobre o termo romance histórico, mas continuo me chamando de romancista histórica. Acho que o romance, que a literatura em geral, de alguma forma acaba refletindo o pensamento daquele escritor, que é um testemunho do seu momento na história. Dificilmente um romance não vai trazer a história. Neste momento estou lendo um romance histórico do Salim Miguel chamado “Nur na Escuridão”, e é


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só começar a ler para ver que é um romance histórico, apesar de ele dizer que não. Vejo na contracapa desse livro a primeira observação, feita pelo Sílvio Coelho dos Santos , dizendo: “Salim Miguel, neste romance, teve o poder de nos trazer toda a história de um tempo, etc.” E é! Acho que é muito difícil separar o romance da História. Pode-se separar a História do romance, agora o romance da História é difícil. Pergunta – Qual é a realidade de uma editora como a Hemisfério Sul em um município marginal, como é o caso de Blumenau? Urda – Mas ela não se restringia a Blumenau. Ela estava em praticamente todo o estado de Santa Catarina, e tinha alguns pontos de venda fora do estado. A distribuição do livro é uma coisa complexa, mas a gente sempre vai lutando com muita dificuldade

financeira e ficamos mais de dez anos no mercado. Posso te dizer que há uma grande dificuldade em se conseguir bons textos. Textos ruins aparecem em grande quantidade, e se alguém que deseja ser escritor vier a ler esta entrevista, digo que o que faz com que um texto seja bom ou ruim é a quantidade de leitura que um escritor tem. Há es-

critores que não leem e não querem ler, escrevem qualquer coisa e acham que está bom, e não é assim. E não são doze livros, como às vezes escuto alguns escritores dizer que leram, mas dois mil pelo menos! Sempre dou esse conselho. Outro dia tive o prazer de encontrar um rapaz a quem dei este conselho, e agora vejo que ele anda es28

crevendo bem melhor. Ninguém está condenado a não escrever bem, mas precisa se preparar. Pergunta – No momento em que começas a publicar, estabelecias contatos com círculos de intelectuais de Blumenau? Havia a troca de ideias e uma formação intelectual? E hoje, como está isso? Urda – Lá no começo eu tinha o Marcos Konder Reis , que foi meu interlocutor. Lembro que em algum momento o Lindolf Bell entrou na minha vida, mas de uma forma esparsa. Não chegamos a ser grandes amigos, mas houve momentos que me marcaram. Houve, por exemplo, um dia em que estive na Galeria Açu-Açu, no tempo em que ela ficava na Rua Namy Deeke, e ele me chamou para olhar por uma janela que ele tinha feito, e que era muito bonita, e me disse que quando so-


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nhávamos ou desejávamos alguma coisa na vida, tínhamos que seguir. E quando vivíamos numa cidade pequena como a nossa, e seguíamos o próprio sonho, no primeiro momento seríamos condenados, mas se persistirmos no sonho, adquirimos o respeito da comunidade. E é bem isso! As pessoas passam a te respeitar, se bem que sempre tem aquelas pessoas que dizem te admirar e ver todos os quadros que tu pintas, quando não sou pintora. Mesmo tendo visto todos os quadros que não pintei, a pessoa cria um respeito. Naquele tempo, na escola, não se imaginava que um aluno pudesse vir a ser escritor, diferentemente de hoje, em que a escola estimula. E quando apareço com o “Verde Vale”, o livro fazendo sucesso e agradando, um grupo de escritores que periodicamente se reunia em almoços no antigo restaurante

Moinho do Vale passou a me convidar para estar junto com eles. Neste momento também estava surgindo um movimento cultural em Blumenau, o primeiro que vejo surgir, que vai ser o dos Poetas Independentes. Esse pessoal ainda está vivo. Alguns

sumiram e outros continuam em sua senda de arte. E havia uma crítica muito grande dos velhos sobre os novos, uma ciumeira até: “os caras vieram aqui para estragar a imagem da nossa cidade. Nós somos os intelectuais da cidade!” Passei a conviver também com os novos 29

e cheguei a um acordo comigo mesma, porque não queria ser como aqueles velhos, queria estar sempre aberta ao que fosse novo. Às vezes você escorrega e faz alguma coisa em desacordo com esta premissa, mas tenho procurado prestar atenção ao que é novo. E o que acontece hoje em Blumenau é o que acontece em qualquer lugar do mundo, hoje e em qualquer tempo. Temos alguns bons escritores, mais alguns médios e uma quantidade incrível de péssimos escritores. Isso não é próprio de Blumenau, não é uma crítica que estou fazendo a esta cidade, e deixo uma Pergunta – quando Shakespeare era vivo e escrevia, será que era só ele que escrevia? Não, ele era o melhor de todos; tanto é que tantos séculos depois nós ainda o estamos lendo. E isto é de âmbito geral e irrestrito, e Blumenau não foge à regra.


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ÀS VEZES

Eloah Westphalen Naschenweng – Florianópolis, SC

Às vezes somos como folhas que correm e se balançam na dança do vento, mudam a paisagem para descansar ao relento e com o tempo crescer outra vez. O conforto está na espera, nos sonhos incompletos e na vida que passa, morosamente, à procura de paz. O medo? Não existe.

O que persiste é a ilusão dos desejos adiados que não desvanecem, mas continuam escondidos no tempo. Na alma, força infinda, nunca se apaga, ao contrário se abrasa, reacende e renova seus sentimentos. Essa é a magia da vida, que no espanto e na surpresa do tempo pode florescer outra vez...

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A PRIMEIRA PESCARIA

Else Sant´Anna Brum, escritora infantil e educadora - Joinville, SC

Era uma vez um menino chamado Adonias, que morava numa chácara muito bonita. Nesta chácara havia uma lagoa formada por uma vertente nascida em terras vizinhas. A lagoa, que tinha profundidade suficiente para que nela se criassem peixes, continuava depois num límpido riacho. O riacho percorria as terras do senhor Fernando, pai de Adonias, e desaguava num rio que passava perto dali chamado Rio do Policarpo. O menino gostava de brincar, tomar banho no riacho, soltar barquinhos de papel, trepar nas árvores, espiar ninhos de passarinhos, colher frutinhas e pendurar balanços nos galhos de uma enorme cerejeira. Mas o sonho dele era

pescar na lagoa onde nadavam belos cascudos e roliças traíras. Quando ele completou seis anos de idade, pediu para sua mãe, Dona Rosinha, que lhe desse um anzol. - Você é muito pequeno para pescar, meu filho! - Mamãe, por favor, compre esse presente pra mim! Adonias tanto insistiu que sua mãe resolveu fazer um anzol para o menino. Pegou um alfinete, en-

tortou na forma de anzol, limou-o para formar a farpa, prendeu um barbante, amarrou numa vara e o entregou para o filho. O menino saiu depressa para sua primeira pescaria. Cavou na horta para encontrar algumas minhocas, colocou uma no anzol e postou-se na beira da lagoa para pescar. Não demorou muito, sentiu que 31

alguma coisa mordera a isca. Puxou rapidamente com bastante força. Daí a pouco Dona Rosinha veio acudir o filho que vinha correndo e gritando com um peixe pulando dentro das calças. Vocês hão de perguntar: “Como assim?” É que Adonias usava calças com suspensório, que ficava larga na cintura. Dona Rosinha tirou o peixe com todo o cuidado e falou: - Ainda bem que é uma traíra, meu filho, porque se fosse um peixe com esporão você estaria todo espetado. Adonias, entre assustado e feliz, correu para tomar um banho no riacho, falando consigo mesmo: - Ninguém pode negar, eu já sou um pescador! No almoço daquele dia, a família se deliciou com a gostosa traíra frita. O pescador mirim cresceu e nunca deixou de pescar tanto em lagoas e rios da vizinhança como no mar. Perguntem para sua mulher Dona Ângela quantos peixes ela já preparou e ela vai dizer: - Sem conta, sem conta...!


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A BOFETADA NADA SUTIL Jacqueline Aisenman - Portugal

Certas decisões tomadas são de uma estupidez tão grande que é uma bênção não termos alcance para compreender até onde vão nos atingir... Mas os anos passam, e mesmo se a memória seletiva as apaga, certas cenas, fotográficas, acabam aparecendo e mostrando todas as consequências. É quando o peito aperta. Muito. E lágrimas descem. Tardias. E chega quase sempre A inevitável pergunta:

Por quê? E triste e reveladora, bofetada nada sutil, vem a resposta, do tempo. Sempre do alto de sua experiência. Experiência que nos custou o vigor da pele, a largura dos sorrisos, a leveza do humor, a beleza dos traços o sustento das primeiras crenças e tantas outras coisas já esquecidas pelos buracos da estrada do que chamamos vida.

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PARABÉNS, VELHA SENHORA QUERIDA

Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, editor e revisor – Cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras. Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, que completa 42 anos em 2022. Http:// luizcarlosamorim. blogspot.com.br

A nossa querida Velha Senhora está de aniversário novamente. Mas ficou mais jovem, a Velha Senhora. Completou mais um aniversário, no dia 13 de maio e se revela cada vez mais menina. E que melhor maneira de comemorar, senão em seu seio? Sua comunidade, as pessoas que vivem na cidade a qual serviu, até que foi aposentada, aos cinquenta e seis anos, deveriam festejar-lhe a longe-

vidade. E festejam, ag ora , pa s s ean d o através dela, que finalmente a reforma foi concluída e podemos ser acolhidos, de novo, por seus b raç os a m or os os. Parecia pouco, parecia ter se aposentado ainda jovem, mas trabalhou muito a velha senhora, dando p a s s ag e m a o s eu povo, ao progresso, facilitando as idas e vindas do continente para a ilha e vice-versa. E agora volta a fazê-lo e estamos felizes em podermos ser acolhidos por ela. Velha senhora que, apesar de aposen-

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tada, continuou servindo a sua cidade, o seu litoral, posando como principal cartão postal da capital de Santa Catarina. Era triste e melancólica, a dama de ferro, se vista de perto, passando por mais uma operação plástica, mais uma das tantas cirurgias para poder receber, no futuro, os caminhantes da sua cidade. Sim, os caminhantes, mas não só os caminhantes, pois ela já não está tão cansada, a idade já não lhe pesa tanto, depois dos tratamentos, e agora já pode suportar veí-


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culos: automóveis, caminhões, ônibus. Depois da série de cirurgias que sofreu ao longo de tanto tempo, agora poderemos sentir todo o seu carinho e dedicação de novo, carregando-nos em seu seio. E continua imponente e majestosa de qualquer ponto da cidade que domina, a velha senhora mais bela da capital. Presto homenagem a você, Velha Senhora, em nome de todos aqueles que vivem na nossa bela Florianópolis, e quero que saiba que a amamos,

você que nos deu passagem por mais de meio século por seus braços estendidos sobre o mar, um do lado do continente e o outro do lado da ilha de Santa Catarina e agora pode fazer isso de novo. Sentimos falta de caminhar sobre o seu peito protetor, a nos dar segurança para chegarmos ao outro lado. E agora podemos matar as saudades. É bom que se frise que as pontes de concreto que se perfilaram ao seu lado não têm a beleza e o carisma que você tem. Sabemos 34

que já trabalhou demais, que merece a sua aposentadoria, mas está tão bela, remoçada e renovada, que nos faz ainda mais felizes vê-la voltando ao trabalho. Enquanto estiver assim, altaneira e soberana, saberemos que está feliz. Sabemos que lhe foram incômodas as cirurgias contínuas que sofreu e pedimos perdão por iss o, m a s e r a p a r a devolver-lhe a saúde e poder mostrar que é a Velha Senhora mais forte que todos conhecemos. Parabéns, Ponte Hercílio Luz, patrimônio da Santa e bela Catarina. Que possamos comemorar muitos outros aniversários, sempre no meio dos seus longos braços abertos. Você, que é patrimônio histórico e artístico de nossa terra, mas mais do que isso, é patrimônio do coração de todos nós.


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INSPIRAÇÃO

Rita Pea – Portugal

Aracely Braz

Por que me foges, imperiosa amiga? A procura me sufoca e tu, distante ainda, Em qual recanto te escondeste assim? Já são longos os caminhos percorridos Nem o mar, nem o sol ou sombra de um abrigo Trazem esperança, a tua luz em mim. Sei que és a chave, és os bemóis Desta canção, deste poema. Peço da vida o que ela tem de bom: Se lentamente chegares, qualquer dia, Inundarás de perfume meu jardim, Renascerá o esplendor de um coração...

Provei nos lábios a solidão. E o cenário é caótico cá dentro... Gera-se a chuva que caiu no meu corpo inquieto, saúdam-se as palavras, cobertas de neve e de silêncios... A tua ausência embaciada tão viva, no reflexo da taça de tinto... Bebi-te! Para adormecer. 35


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DIÁRIO DA PANDEMIA – 19.04.2020

Urda Alice Klueger – Palhoça, SC

Passei muitas ho ras da minha infância imaginando a mais perfeita caverna que alguém já viu. Era na encosta de uma alta montanha, e tinha uma abertura que era a porta e outra grande abertura que era a janela. Coloquei um grande vidro nessa janela, e por ela, lá embaixo, via um vale e uma aldeia. A caverna tinha tudo:

espaço, iluminação, um canto fechado em madeira onde eu morava, e nesse canto tudo era maravilhoso: um móvel cheio de gavetas contendo grãos e farinhas, carnes defumadas penduradas em um varal, uma prateleira cheia de livros, tudo o que eu pudesse imaginar de bom havia ali. Gastava duas ou três semanas imaginando a caverna e depois empacava: o que fazer com ela? Como inseri-la numa história? Não encontrava utilidade para ela e ficava com muita pena, pois ela era tão perfeita, tão segura, tão protegida... Passava a imaginar ou-

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tra coisa, então, e um dia lá estava eu de volta, e a caverna voltava com toda a sua perfeição, e eu queria muito fazer algo com ela, em vão, e tinha que abandoná-la de novo, até que um dia, lá pela adolescência, acabei por abandoná-la e nunca mais pensei nela. Até agora, pois agora ela está aqui. Soube disso no dia em que fui tomar vacina: estava tão apavorada, lá fora, com tanto medo, que tudo o que queria era voltar para casa, e só então entendi que estava morando naquela caverna que um dia criara na minha imaginação. Esta casa é simples, do tamanho certo pa-


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ra uma mulher que tem 3 cachorros e 2 gatas, e ela se me afigura aquele recanto confor tável que havia lá na minha caverna. Minha cerca é frágil, de arame, o que impede que minha cachorrona Tereza morda alguém na rua, e meu jardim está cheio de capim e todo desorganizado, precisando de podas e cuidados, coisas que já não consigo fazer sozinha, e meu amigo Cristiano, que me ajudava, está impossibilitado de fazê-lo. Se fosse um tempo normal, já teria saído, comprado algumas ferramentas que poderiam me ajudar um monte, organizado melhor as coisas – e se a se-

ca não estivesse tão grande, também tudo seria mais fácil na encosta desta montanha. Recolho-me à caverna, no entanto, e ela é maravilhosa e, por enquanto, segura. Sei, agora, porque a imaginei em tantos detalhes lá na minha infância. Nosso país endoida e o mundo todo é abalado pelo coronavírus (o país já estava bem doido antes), mas fico aqui na minha caverna, protegida pelos meus cachorros, e é tão bom aqui que nem a maré altíssima que houve faz uns 10 dias chegou a me atingir. Oxalá continue assim: vejo as notícias e sinto-me desamparada diante do futuro. Não sei tudo o que 37

pode acontecer no país, talvez até uma guerra civil ou hordas de pessoas movidas pela fome que derrubariam a minha cerca e matariam meus cachorros, ou quem sabe revoltosos movidos por igrejas perigosas ou por ideias tão loucas quanto o terraplanismo – o futuro esconde tudo mas o futuro é uma frágil parede de vidro na janela da caverna, e tudo pode acontecer. Não dá nem para pensar como será depois, se restará pedra sobre pedra. Bem que Dilma já disse isso faz 4 anos, mas então ela não contava com a pandemia...


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SAUDADES

Célia Biscaia Veiga – Joinville, SC

QUEAESTIO UNICA Júlio de Queiroz

Qual é o preço da paz? Senhores letrados, dizei-me Bem sei que o preço da glória É muita dor e incerteza. Quem não sabe que o sucesso É pago com escuridão e doenças? Às crianças ensinamos Que a morte é o preço da vida. Mas vida, sucesso e morte São sem valia sem paz. Senhores doutores, dizei-me: Que preço há de pagar um homem Para, alegre e indiferente, Ver nascer seu cada dia?

Às vezes fico lembrando De pessoas que passaram Pela minha vida, Algumas em traços fortes Outras só em rápidas pinceladas. Amigos de infância, vizinhos, Professores e coleguinhas de escola, Primeiros colegas de trabalho, Companheiros de espera Na fila no ponto do ônibus, E assim por diante... E sinto saudade dos bons momentos Passados ao lado dessas pessoas, Mas me fica uma dúvida: Será que em algum lugar Alguma dessas pessoas Também lembra de mim E sente saudades, como eu? 38


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A HISTÓRIA DO DICIONÁRIO

Fazia parte da lista de material escolar. Lembro-me bem: além de lápis, caneta, borracha e caderno, éramos obrigados a levar um minidicionário para a escola. Podia ser o Aurélio (o mais comum), o Silveira Bueno ou qualquer outro. Assim, criávamos o hábito de consultar o livro da verdade sempre que um vocábulo desconhecido brotava no texto. Com o tempo, virou algo automático, um hábito bom. Hábito que gostaríamos que todos os leitores e escritores tivessem, mas que na verdade muito poucos têm. Não gosto

de escrever nem mensagem de whatsapp sem um querido dicionário por perto. O dicionário é um inestimável amigo para quem quer se expressar melhor. Cada palavra consultada é uma dúvida a menos e um conhecimento a mais para compor o vocabulário individual. Quanto mais sinônimos e antônimos se sabe, quanto mais conceitos se aprende, mais fácil fica de se entender o mundo e se fazer entendido. Os erros ortográficos e sintáticos vão rareando e a boa comunicação só tem a ganhar. Essa necessidade de clareza pela padronização dos significados não é de hoje,

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aliás, é antiquíssima. Os acadianos da Mesopotâmia elaboraram o primeiro dicionário de que se tem conhecimento, coisa de 2600 a.C. Era uma lista de palavras em escrita cuneiforme que relacionava nomes de profissões, objetos, divindades, etc. (Opa! Vale a pena consultar o que é ‘cuneiforme’ no dicionário, caso você não saiba.) O gramático grego Pânfilo de Alexandria, no século I d.C., foi um dos primeiros a que podemos chamar de ‘lexicógrafo’ (que elabora dicionários, dicionarista). Ele conseguiu relacionar e descrever as mais de 4 mil palavras do antigo vocabulário


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grego. Essa lista era conhecida como ‘leksikón biblíon’ (livro das palavras), o que nos gerou hoje os termos ‘léxicon’ e ‘léxico’, como sinônimos de dicionário. Daí para frente, a produção de dicionários nunca mais parou. Os antigos romanos compuseram vários e, na Europa, a língua latina foi a principal utilizada até a Idade Média na escrita dos tais glossários (de ‘glossarium’) e vocabulários (de ‘vocabularium’). (Nunca tivemos um “palavrário”.) Por fim, a tradução do grego ‘leksikón biblíon’ ficou como ‘dictionarius liber’ em latim e daí temos a origem da

nossa palavra ‘dicionário’. ‘Dictionarius’ vem do latim ‘dictio’, que significa ‘fala, discurso’. É por isso que dizemos que quem fala bem tem boa dicção. Também daí temos vocábulos como ditado (‘dictadus’), ditador (‘dictador’, que dita a lei), ditame (‘dictamen’, lei que foi ditada) e dito (‘dictus’, ditado popular). Em 1590, o italiano Ambrósio Calepino conseguiu elaborar um gigantesco dicionário que reunia palavras de onze línguas. Sua vida dedicada à Lexicografia fez com que o termo ‘calepino’ também se tornasse sinônimo de dicionário. Por ser tão amplamente empregado por todos que prezam pelo bom uso da língua, o dicionário foi se popularizando e ganhando apelidos curiosos que hoje fazem parte de seu rol de sinônimos. Além de glossário, vocabulário e léxico, 40

temos os ótimos tira-teima, tira-dúvidas, desmancha-dúvidas e o controverso ‘pai dos burros’. De todos os seus nomes, o que mais gosto é ‘tesouro’. Essa preciosidade da civilização humana bem merecia ser mais valorizada. Não precisamos mais consultar aqueles calhamaços com mais de um quilo nem sequer os 200 gramas de conhe cimento que eu era obrigado a levar para o colégio. Os dicionários nem peso mais têm, seguem vivos na internet e nos aplicativos de celular. Basta descobri-los para entender este trecho do poema ‘Ode ao Dicionário’ (1956), de Pablo Neruda: “Dicionário, não és tumba, sepulcro, caixão, túmulo, mausoléu, és senão preservação, fogo escondido, plantação de rubis, perpetuação viva da essência, celeiro do idioma.”


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FUXICO

Marta Carvalho – Florianópolis, SC

Nas rodas de fuxico de todas as manhãs, Tem Marias, tem Joanas, todas finas artesãs, Mãos ligeiras, mãos que tecem, mãos que fazem e acontecem, Todas muito tagarelas, entre fuxicos, panelas e chorumelas. As conversas são diversas, e dos vizinhos não se esquecem: Quem casou, quem descasou, Quem sumiu e não assumiu, Quem fugiu e não pagou! Tudo dito sem maldade, Fica entre a irmandade, Só pra matar o tempo

E espantar o desalento... Quem conta um conto, Sempre aumenta um ponto, E de ponto em ponto, Mais um trabalho fica pronto! Na hora da merenda, Sempre chega mais uma encomenda, De alguém que trouxe, Porque o outro recomenda. A arteterapia traz muita alegria, E também o pão de cada dia, A vida é tecida em cada ponto, E a esperança renovada a cada novo encontro!

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davam o apito do trem para saudá-los alegremente, com esperança de terem sido vistas. Ferroviário era a profissão bem remuneraSAGA da. Horas extras (eram FERROVIÁRIA muitas) no fim do mês – AMOR PARA resultavam em um saSEMPRE. lário invejável, para a EDLTRAUD ZIMMERMNN vida modesta que leFONSECA – Indaial, SC vavam. O avô fora ferroviário. Porém, meu sogro, nascido na cidade de O pai também. Toda a família paterna, Angatuba foi buscar para companheira, pasoube depois. O avô não conheci, po- ra até o fim de seus rém o pai sim; veio a ser meu sogro. Gostava de ouvir suas lembranças saudosas, à beira do fogão, nas noites frias quando os visitava, em Itapetinin- dias, linda e encantaga, e mais tarde em dora jovem da cidade Sorocaba, para onde de Guareí. Doralina, se mudaram durante o seu nome, de família período do meu namo- numerosa, vários irmãos, mas isto não o ro com o Nilton. A vida do jovem Zi- intimidava. co, enquanto solteiro, Foi à casa do pai João não passava de me- e Lha Dona, como ra aventura. Era até eram conhecidos os charmosa perante as pais da mulher amameninas vizinhas da da, e a pediu em casaestrada de ferro, e que mento. sonhavam casar-se Doralina sabia que o com um ferroviário e, casamento traria nocom ansiedade, aguar- vas responsabilidades, 42

mas decidida aceitou o pedido e com a anuência dos pais logo vieram a casar-se. Naquele tempo o progresso engatinhava, ser ajudante de maquinista era fogo, literalmente! A função era manter a caldeira sempre acessa e, para isso, o ajudante deveria cortar a lenha encontrada na beira da estrada, para queimá-la. Doralina foi guerreira na criação dos filhos. Com os meninos maiores atrás de si e o menor Clovis nos braços, caminhava longas distâncias pelos trilhos de ferro, pisando dormentes, atravessando a mata, levando a marmita com a comida quentinha para entregar ao marido, como combinado, na encruzilhada mais próxima, onde o maquinista já avisado, dava uma paradinha para que a marmita fosse entregue. Momento difíceis foram vividos. O salário invejável, de quando solteiro, agora


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era apertado. A família aumentara. No ventre o quarto filho que seria uma menina. Muitas portas foram fechadas por parentes próximos que, com receio de arcarem com a responsabilidade do sustento de mais bocas, se faziam ausentes. A omissão de pessoas que poderiam ter lhes amenizado o sofrimento, acompanhou a dor profunda no coração de Doralina. Essa dor piorava quando os meninos adoeciam e não havia recursos por perto. Mas Deus existe. Ele está lá em cima para nos proteger. Ele não desampara seus filhos. Leni a caçulinha, nascera em melhores tempos. Zico ingressara na política local e chegou a eleger-se vereador por um Partido que mais tarde foi extinto e perseguido. Durante a vereança tudo fora favorável. Nilton filho do meio mostrando-se hábil pa-

ra a aviação, ganhou bolsa de estudos e entrou para a escola de pilotagem. Faltava-lhe pouco tempo para receber o brevê, quando a política mudou e o que fora privilégio passou a ser perseguição. Meu sogro Zico exibia na parede da sala de visitas enorme diploma emoldurado, concedido quando promovido a maquinista. Tinha orgulho da profissão e ao

assumir o comando da locomotiva fumegante, sentia-se no paraíso! A ferrovia fornecia uniforme impecável e o boné, orgulho dos filhos quando pequenos e dos netos mais tarde. Aposentou-se, porém, no decorrer dos anos da política econômica, da inflação decorrente e o ordenado do ferroviário aposentado ficou devassado. Contudo não conheci 43

ferroviário que amasse com mais intensidade o seu trabalho, os trilhos e o apito da locomotiva que conduzia. Dos três filhos homens, dois seguiram seus passos. Sérgio o mais velho e Nilton com quem casei-me em 1962. Um garotão com vinte e três anos estagiando na grande oficina da FEPASA, localizada na Barra Funda para exercer o cargo de maquinista. Época em que o progresso chegava a galope e ser maquinista nada tinha a ver com as grandes e fumegantes locomotivas movidas a carvão. O amor do casal Zico e Doralina venceu revezes, lutas e angariaram muitas conquistas até a morte do marido em 1983, deixando saudades na enorme família que havia formado. Pelo céu do interior paulistano, se ouve ainda hoje o apito do trem, mas não com a vibração e a alegria e romantismo da saudosa Maria Fumaça.


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O TEU RISO Pablo Neruda

Tira-me o pão, se quiseres, tira-me o ar, mas não me tires o teu riso. Não me tires a rosa, a lança que desfolhas, a água que de súbito brota da tua alegria, a repentina onda de prata que em ti nasce. A minha luta é dura e regresso com os olhos cansados às vezes por ver que a terra não muda, mas ao entrar teu riso sobe ao céu a procurar-me e abre-me todas as portas da vida. Meu amor, nos momentos mais escuros solta o teu riso e se de súbito vires que o meu sangue mancha as pedras da rua, ri, porque o teu riso será para as minhas mãos

como uma espada fresca. À beira do mar, no outono, teu riso deve erguer sua cascata de espuma, e na primavera, amor, quero teu riso como a flor que esperava, a flor azul, a rosa da minha pátria sonora. Ri-te da noite, do dia, da lua, ri-te das ruas tortas da ilha, ri-te deste grosseiro rapaz que te ama, mas quando abro os olhos e os fecho, quando meus passos vão, quando voltam meus passos, nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera, mas nunca o teu riso, porque então morreria.

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O UNIVERSO DE LUNA Sônia Pillon – Jaraguá do Sul, SC

Luna, moon, lua… O astro que nos instiga ao olharmos para o céu noturno também é o nome do ser mais encantador, que em sua primeira infância traz uma energia leve, que aquece o coração. Luna é assim! A menina de cabelos cacheados e luminosos, balançados pelo vento, é pura energia! C o m s eus p e q ue nos e atentos olhos verdes, que brilham mais do que as mais preciosas e raras pedras, ela enxerga um mundo de amor e entendimento, em que a ludicidade preenche seus dias. Amorosa, para ela, toda a criança é “amiguinho” e “amiguinha”, que ela imediatamente procura interagir e brincar.

Com a pureza típica de uma criança em sua tenra idade, meninas e meninos são todos iguais, sem nenhuma distinção de aparência, raça, ou classe social. Não há espaço para restrições, nem discriminações. O que ela quer, mesmo, é se divertir jogando bola e compartilhando os brinquedos do play-

ground do condomínio, ou do parquinho público. Nesses momentos, é ela quem sempre toma a iniciativa para convidar a criançada para compartilharem o balanço, o escorregador, a gangorra e o gira-gira. Quando está com os pais, ou avós, ao ver chegar uma outra criança no espaço, logo apon45

ta: “Olha o (a) amigo (a)!”. Ela já chega sorrindo e pergunta, com naturalidade: “Vamos b r i n c a r ? ”. N e s s a s horas, até os mais retraídos não conseguem resistir a essa afetuosidade natural, uma característica incomum nesse mundo de “gente grande” que conhecemos tão bem… No universo de Luna, não faltam unic órni os, fadinha s, bruxinhas, príncipes, princesas, castelos, bichos de pelúcia, desenhos animados, assim como o alegre conviver com os coleguinhas da creche. Também há espaço para a convivência carinhosa com animais de estimação de verdade, como os gatos Cherrie, a Gorda e a Branca. Sim, o universo de Luna é repleto de alegria e encantamento! Pela janela da Infância, ela vislumbra um mundo colorido, de descobertas e aventuras em sua pleni-


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tude. É certo que as crianças crescem e que a cada fase da vida, muitas ilusões se perdem pelo caminho. À medida que a jornada

da vida avança, com a chegada da adolescência e os constantes desafios da fase adulta, nossas percepções mudam. Precisamos perder

a ingenuidade para sobreviver e superar os obstáculos que se apresentarem. Sim, sim, a gente sabe que as crianças crescem… Mas hoje, ao acompanhar de perto o universo de Luna, com seus três aninhos, torço para que essa menina adorável cresça saudável, forte e determinada para realizar os seus sonhos. Se tivesse que deixar um conselho para essa minha neta amada, com certeza seria esse: “Luna, lute como uma garota! E mantenha sempre a empatia e a ternura nesse teu lindo coração”.

REVISÃO DE TEXTOS E EDIÇÃO DE LIVROS Da revisão até a entrega dos arquivos prontos para imprimir. Contato: revisaolca@gmail.com

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AS BENZEDEIRAS DO PÂNTANO DO SUL

A MALA

Eliane Debus

Eliane Debus – Florianópolis, SC

De chinelas pelas areias, lá no Pântano do Sul, deslizam as mágicas benzedeiras. A calça comprida sob a saia,

Ontem quando entraram os larápios, pela porta dos fundos “a pá”, minha primeira impressão foi de abandono. Por quê? Sei lá. Das tantas coisas que nos furtaram, uma me deixou pensativa: a velha mala de couro que um dia te trouxe numa tarde de alegria. Tantos lugares idos, Eu, Tu e a mala. E agora levaram a nossa companheira. Fico a imaginar que, sem ela, nunca poderemos partir sem partir a nós!

vestimenta usual, aquece as pernas. O lenço amarrado ao queixo cobre os brancos fios do cabelo, protege do vento sul. Atrás da orelha o galho de arruda, Manjerona, Alecrim deixa o rastro da presença. As preces são ladainhas de um dizer infinito e promessa de cura.

Eliane Debus - Doutora em Letras é professora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui artigos escritos em periódicos e livros acadêmicos. Publicou para infância os livros O medo e seus segredos, É tempo de Pão-por-Deus, Antonieta e Triolé, triolé, poemas de Cruz e Sousa - vamos ler. Poemas publicados em revistas (Pixé, Ruido Manifesto e A Ilha) e na Coletânea Livro das Marias II, Sinergia, Escritoras Negras II, organizada por Jeovânia P.; Mulheres Maravilhosa, entre outros. 47


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CONFIAR

Marli Lucia Lisboa – Bulucha

Com confiança. Sim, confiança. Sabe o que é confiança? O que é sentir confiança? Sim? Não? Tem confiança em você? Não... E eu? Eu tenho confiança em mim? Sim... sabe por quê? Porque em toda a confiança que existe em mim na hora... há esperança! Eu confio no meu eu. E você? Confia em mim? Não. Sabe por quê? Não. Então não confia em si! Eu estou aqui com confiança, acredito em mim... mas você, não? Não sei o que acontece comigo, mas confio no que descobrirei... Escrevo com confiança, a confiança de chegar no fim para mais um começo... e tenho confiança nesse começo... Eu não

estou fingindo, faço justamente o contrário: procuro, volto, falo, olho e... Vejo tudo com confiança! Tudo o quê? A confiança que preenche a sua falta de confiança em si mesmo e em... mim! Isto tudo é confiança, é segurança. - Escuta, vai mesmo procurar saber o porquê disso tudo? - Sim. - Por quê?

- Porque eu confio no meu eu, sinto segurança em procurar saber... - Mas, se a resposta for diferente da que imagina? - Eu não imagino, não me importa qual das duas respostas descobrirei; o que importa é saber a resposta certa... Eu confio na resposta! - E se demorar muito? - Eu confio. E depois, o tempo é sem tem48

po! Ria agora. Ah, não c o n s e g u e , h e i n?! Confiança. Segurança. E você, como se sente? Confiante? Com segurança?... De onde comecei a confiar, como comecei a ter segurança...? Por que confio? Por que tenho segurança em mim? Porque eu já fui insegura, já desconfiei. E muito... Minha insegurança sentia-se isolada, pois todos são inseguros. Por que minha insegurança sentia-se isolada? Porque todos são isolados... E a máquina? A construção? São seguras ou inseguras? O que acha disso? O andaime onde estavam as tintas era... seguro? Não. Por que sei que não? Porque... Você tem confiança numa máquina?


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Sim. Então não passa de uma insignificante máquina. Trabalha pra você, lucra pra você e... é insegura! É necessário haver insegurança, mas também é necessário perceber essa insegurança! Por quê? Porque a insegurança verdadeira nos leva à segurança. Se fui inseguro comigo e com as outras coisas, agora sou seguro por mim, comigo e ... com as outras coisas? Depende delas! Desconfiança. Se essas coisas desconfiam de você, como podem c onfiar em outras, outras... máquinas? Há a desconfiança doentia que leva à destruição de

si e de... porcas, parafusos, fios, máquinas. A destruição de uma construção por falta de confiança na pintura... fazendo dela a única! Desconfie bastante que acabará desconfiando de você... Se desconfia de uma porca que está ao seu lado, como poderá trabalhar junto com ela, como poderá unir suas saliências com as delas? Ria, imagine, mas... é verdade. Desconfie de você; não sabe de onde veio, porque veio, desconfia do que você é, desconfia do lugar para onde vai... assim como eu... mas eu confio na resposta de tudo... tenho confiança nas respostas... se só confia no seu aparelhamento, na sua máquina, desconfia de outro aparelhamento, de outra máquina... Confiança... Segurança... Desconfiança... Insegurança... A segurança que nasceu da insegurança... E a 49

desconfiança e a confiança que se geram noite e dia... - Confiança em tudo, em todas as máquinas? - Não. - Então por que escreve tudo isso? - Porque eu sei que existe uma verdade, porque tudo se perdeu num labirinto de peças, num labirinto dos pensamentos que ficaram sujos, poluídos pela falta de confiança em mim, que partiu de você mesmo! - ... Você não está mais rindo, já perde a desconfiança e começa a sentir confiança em mim... Já não é mais inseguro e pouco a pouco vai se tornando seguro. Se é máquina, confia em outra máquina igual a você e não fiquemos a imaginar que só existe uma construção flácida, sólida e... máquina? Como funcionei até agora? (do livro HORA H)


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INSTANTE FUGAZ

MAURA SOARES – Florianópolis, SC

Neste instante fugaz, como mera espectadora, debruço-me à janela e vejo a vida passar célere: a criança levantando a pipa aos céus, o motorista apressado em podar o carro à sua frente, a mulher passeando com o cachorrinho de estimação, a vizinha – não sei seu nome – sacudindo o tapete na sacada, o homem fazendo sua caminhada matinal, a viatura da polícia com sua sirene em alto som, e o sol aquecendo a manhã fazendo sombra na árvore para o rapaz ler o jornal. Enfim, cá estou inserida na paisagem olhando a vida a transcorrer lá fora, neste instante em que relaxo de um trabalho caseiro. Assim como estou neste momento, outros seres também estão, só que alheios ao que se passa ao redor.

A vida flui e eles não participam nem sequer com a observação. São seres que passam pela vida e a vida passa por eles, sem se darem conta de que tudo deve ser vivenciado, nem que seja o olhar passageiro de quem se move em direção a um lugar ou a lugar nenhum. (18.7.2006)

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MILIGIRDO, GAITEIRO

Enéas Athanázio – Baln.Camboriú, SC

A V i l a m o d o r r ava num desvão de morro, esquecida pelo mundo e alheia ao que se passava lá fora. Nos domingos, quando a serraria parava e a locomovel descansava, o silêncio pesado envolvia o povoado, como se nele não estivesse viva alma. Nem o ruído da serra-fita, na incansável faina devoradora de árvores, nem o barulho abafado das tábuas sendo empilhadas nos vagões, nem o grito do boiadeiro com a junta de bois no arrasto das toras para o pátio. Nada, a não ser o silêncio, quebrado de quando em quando pelo latido de um cachorro, o grito do quero-quero no ba-

nhado ou a risada de algum dos vadios que proseavam prosas sem proveito na plataforma da estação. Mas de repente, assim de mansinho, um som suave e ritmado se elevava no ar parado e se propagava devagar pelas ruas em cruz que formavam a Vila. Afinando o ouvido, as pessoas não tardavam a identificar aquele som e sua origem. Não havia dúvida de que se tratava de toque de gaita e vinha da bodega do Mané Fortuna, para as bandas da saída, a mais frequentada e sortida d o lugar, on de s e juntavam os amigos do copo, do carteado e da bocha, e onde aconteciam as raras

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danças, domingueiras ou bailes de romper a madrugada. Também não havia dúvida de quem fosse o tocador. Trat ava- s e de um t al M il i gir d o, c a b o c l o andejo, sem paragem cer ta, que se dizia de profis são artista, sempre pera m b ula n d o p ela s bibocas arredias de civilização em busca de algum festejo para animar ou de qualquer platéia da qual pudesse extrair alguns níqueis. Sempre vestido de terno a zul, levava no bolsinho um lenço espalhafatoso e tinha a lapela retamada de fitinhas coloridas, dessas que as moças pregavam nas festas, e medalhinhas miúdas que,


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c om cer teza, simb o l iz ava m s ua fé. Embora meio surrada pelo muito uso, a roupa mostrava limpeza e capricho. O chapéu de abas larga s fi c ava j o gad o para as costas, firme no barbicacho, e as botas – ah! – essas rebrilhavam que nem es pelho, engra xadas e lustradas com esmero. Sua marca mais pessoal, no entanto, estava nos dentes, cujo brilho rivalizava com o das botas: sempre que ele se abria num sorriso, a dentuça repleta de ouro lançava chispas e revérberos. Figura espantosa, o Miligirdo! Q ua n d o a pare c ia , feitas as perguntas do costume, ele se

colocava no canto da bodega, entre a porta e a janela. Sempre em pé, ajeitava a gaita no peito com os cuidados dedicados à mulher amada, fazia uns floreios introdutórios e tocava com gosto e alma. Tocava, tocava. Com p e ríc i a e té c n i c a , percorria os botões da cordeona cromática, daquelas que não tinham teclas, só botões de ambos os lados, exigindo destreza das duas mãos. Depois de umas marcas, fazia uma pausa e se abria naquele sorriso cheio de brilhos. Dava uns passos para a frente, pegava o copo que o bodegueiro atento servia para ele. Com gestos medidos, sa52

boreava uma golada e recolocava o copo no balcão. Recuava ao ponto de antes, dedilhava os botões, quebrava o silêncio e enchia de sons os ares parados da Vila. Meio ressabiados, quietos, os ouvintes iam s e c hegan d o. Espiavam pela porta e pela janela; uns entravam e ocupavam o banco de tábua que corria junto da parede; outros ficavam de fora, ouvindo de lá mesmo. Sem barulho, para não atrapalhar, Mané Fortuna atendia aos p e di d os, s er v in d o os fregueses e colhendo gorjetas para o artista, E assim o tempo corria suave e macio, enquanto os sons ritmados davam um pouco de alegria àquela gente isolada e tristonha. Agarrado ao instrumento, Miligirdo pare c ia s a b orear os momentos de felicidade que oferecia aos ouvintes embevecidos.


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“UNA LACRIMA SUL VISO”

VINDIMA-ME

Pierre Aderne – Lisboa, Portugal

Selma Franzoi Ayala – Jaraguá do Sul,SC

Secava a chuva do chão Com o vestido Palavras tontas de amor No meu ouvido... Eu bebia dos teus sonhos Dos teus desejos A cada gota perdida de um beijo Como se fosse meu corpo O teu lagar Que recebia o teu mosto A derramar nos lábios meus O teu gosto. Tantos anseios Jovem paixão Feito amor verdadeiro. Dá-me do teu vinho Que isto não tem cura Já que o fado que hoje canto É minha jura De colher sempre no outono Pra beber na primavera...

Olho pelos olhos do tempo madrugada no vale italiano Noite em claro, lembranças, malinconia... Belas memórias que contam velhos contos, belas e tristes histórias canções da velha pátria lágrimas, lembranças e malinconia... Caminho de Telve da Sotto la partenza dalTrentino caminho a Genova imenso Atlântico... Olho pelos olhos do tempo Belas e tristes imagens vão se projetando em cenas impressionantes Pátria distante coração delirante coração imigrante uma canção de adeus e “una lacrima sul viso”… 53


Florianópolis-SC – Junho/2022 – N. 161 – Edições A ILHA – Ano 42

O POETA ZININHO

Cláudio Alvim Barbosa, mais conhecido pelos moradores de Florianópolis como Zininho, nasceu em 08 de maio de 1929 na cidade de Biguaçu. Filho de Alvim Godofredo Barbosa e Teodora Silva Barbosa, perdeu o pai com apenas dois anos de idade, o que o levou a ser criado pelos avós paternos nas redondezas do Largo 13 de Maio, na capital. Foi ainda durante a infância que Zininho começou a demonstrar suas inclinações poéticas e musicais: gostava de ouvir marchinhas de carnaval pelo rádio e saía às ruas da cidade com sua família para acompanhar os blocos e as festas. Inclusive, sua avó era bastante co-

nhecida no bairro Estreito por organizar banhos de mar à fantasia para as crianças. Depois de adulto, passou a se envolver com o universo das escolas de samba de Florianópolis, em especial com a Narciso e Dião, que mais tarde daria origem à Protegidos da Princesa. Ao longo da década de 1960, Zininho compôs diversos sambas-enredos para a escola, com destaque para “Homenagem à Princesa”, “Preconceito Racial” e “Homenagem a Carriço”. Zininho também era uma figura assídua na vida noturna de Florianópolis. Boêmio, grande parte de suas composições se inspiravam nas histórias que via, ouvia ou vivia durante as noitadas. Fazendo do cigarro e do whisky seus companheiros mais fiéis, compartilhava as mesas de bar com outros artistas da cidade e encantava seus inter54

locutores com a sutileza de seu humor. O dom da comunicação influenciou notavelmente sua vida profissional. Foi produtor de programas de auditório, trabalhou com propaganda, foi sonoplasta, criador de jingles, cantor, compositor, locutor, entre outros. Foi durante a produção de um programa que Zininho conheceu Neide Mariarrosa, que viria a se tornar sua intérprete favorita das canções que compôs. Em 1965, o prefeito de Florianópolis, general Vieira da Rosa, queria encerrar seu mandato com um presente para Florianópolis. Para isso, anunciou o concurso “Uma canção para Florianópolis”. Com mais de 200 inscritos, a competição foi realizada em setembro e o primeiro lugar ficou com aquela que viria a se tornar a mais famosa composição de Zininho, o “Rancho de Amor à Ilha”.


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Três anos mais tarde, a canção ainda era tão popular entre os moradores da cidade que o vereador Waldemar da Silva Filho – também conhecido como Caruso – apresentou um projeto de lei que propunha que ela se tornasse o hino da capital. O projeto não demorou a ser

aceito e, desde então, o “Rancho do Amor à Ilha” é considerado o Hino Oficial de Florianópolis. O intenso processo de modernização pelo qual Florianópolis passou ao longo da década de 1970 afetou profundamente a relação de Zininho com a capital. Apesar de não ser natural da cidade, o poeta considerava-se “manezinho” e não conseguiu aceitar que a cidade descrita no “Racho de Amor à Ilha” fosse “substituída”. Em seus últimos anos, Zininho

sequer abria as cortinas de casa para não ter de encarar a “nova” cidade. Faleceu aos cinco minutos do dia 5 de Setembro de 1998, no hospital Nereu Ramos, onde estava internado há três dias por conta de um enfisema pulmonar. No carnaval do ano seguinte, recebeu uma homenagem da Protegidos da Princesa com o samba-enredo “Jamais Algum Poeta teve Tanto Pra Cantar”, composto por José Nicodemo Ribeiro e Paulo Sérgio Góis.

RANCHO DE AMOR À ILHA Zininho

”um pedacinho de terra, Perdido no mar! Num pedacinho de terra, Beleza sem par... Jamais a natureza Reuniu tanta beleza Jamais algum poeta Teve tanto pra cantar! Num pedacinho de terra Belezas sem par! Ilha da moça faceira, Da velha rendeira

tradicional Ilha da velha figueira Onde em tarde fagueira Vou ler meu jornal. Tua lagoa formosa Ternura de rosa Poema ao luar, Cristal onde a lua vaidosa Sestrosa, dengosa Vem se espelhar...” 55


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NICOLAU SANTOS – POETA - Silêncio que se vai ouvir dizer poesia! Podiam começar assim os vídeos no Instagram de Nicolau Santos. O atual presidente do conselho de administração da RTP usa as suas redes sociais para dizer poesia. É esse o seu lado B: a poesia - lida, escrita ou, como no caso, dita. Conta ao DN que há várias fases da poesia na sua vida. A primeira começou ainda em Angola, onde nasceu em julho de 1959. No Colégio Augusto Gil era um dos alunos que no primeiro ciclo aprendia a ler poesia. "Ainda hoje sei de cor A Balada da Neve, de Augusto Gil". Desde então a poesia nunca mais largou Nicolau Santos. E o contrário

também aconteceu. J á n a u n i ve r s i d a de, ainda em Angola, e ainda antes de 1974, colaborou com o boletim universitário onde publicava os poetas angolanos como Agostinho Neto, António Cardoso, António Jacinto, Alda Lara, Depois de 1974 passou a organizar um jornal colocado na parede da universidade com recortes de artigos do Diário de Notícias, Expresso e o Comércio do Funchal. "E como estava encarregado responsável pelos recortes comecei também a colocar poemas no jornal". Depois veio para Portugal em 1975 e foi começando a conhecer a poesia portuguesa da altura, para lá do que já conhecia. Mais tarde, por altura do ano 2000, começa uma nova fase, tudo por causa de um poema do poeta "beat" Lawrence Ferlinghetti. A história, longa para estas linhas, resulta 56

num desafio que José Fanha lhe faz; dizer poesia pelas ruas de São João da Madeira. "Nunca tinha dito poesia, mas aceitei", diz. Daí foi convidado pelo pianista João Balula Cid (1958/2017) a gravar um CD de poesia acompanhado ao piano. "Fizemos o CD que se chama E quase tudo foi possível". Não muito tempo depois o dono da editora onde o gravou, Manuel Lourenço, convidou-o a acompanhar uma banda de jazz com poesia. "E do piano passei para o jazz", conta. Um projeto que tem desde 2006. A partir daí tem andado por vários locais com concertos, como o RUA DAS PRETAS, para o qual tem sido convidado várias vezes para levar a poesia declamada, amigo que é de Pierre Aderne, o criador e condutor do concerto Rua das Pretas. E o público do consagrado concerto tem aplau-


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dido muito e ouvido com atenção, usufruindo da boa poesia que o poeta diz, tanto dele como de outros autores.

No dia-a-dia usa a poesia, e também a filosofia, como ajuda. "A poesia resolve - n os p r o b l ema s complicados quan-

do queremos passar uma mensagem. Diz-se que os poetas têm uns olhos que veem muito longe", sublinha. (DN)

COM ÁFRICA NO PEITO Nicolau Santos - Portugal

E vamos andando com África no peito Já passaram três décadas e há 7200 quilómetros de distância mas não perdemos o jeito … Basta um merengue, um funaná, uma morna, uma coladera Basta um cheiro tropical caju fresco, manga, mamão óleo de dendém, jindungo E lá vem África de novo A África que nos entrou pelos cinco sentidos pelos sete buracos da nossa cabeça Pelo cheiro a terra molhada pelo som da batucada pelo sabor da muambada Pela visão desse pôr-do-sol avermelhado que não há em mais nenhum

lado E pelo meu olhar que segue a tua pele negra de ébano Por muita Europa que nos cerque Há uma África que vive e resiste dentro de nós”

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TERESA DO MAR Conto de Luiz Carlos Amorim

Uma comunidade feliz, aquela de Praia do Norte. Famílias de pescadores que trabalhavam juntos, tirando do mar tudo quanto necessitavam para viver. Pescavam para comer e para vender. Os homens cuidavam das redes, das embarcações, faziam-se ao mar e as mulheres cuidavam da casa e dos filhos. Teresa era muito jovem, ainda, mas ensinava as crianças na escolinha da vila, ajudava a escrever bilhetes e cartas de quantos a procuravam e ouvia suas histórias. Filha de João Pescador, era uma moça muito bonita, querida por todos pela sua alegria constante e presteza

para auxiliar o próximo. Seu canto, nas noites de verão, fazia com que todos sentassem a sua volta, na praia, a ouvir suas canções que falavam de mar, de céu, de lua e de amor. Nada parecia quebrar aquela harmonia, aquela integração de gente simples, humilde, mas autêntica e pura. Até que Pedro apareceu na vila. Pescador de uma das ilhas vizinhas, viera comprar uma das embarcações do pai de Teresa. Rapaz forte e bem apanhado, despertou sobre si a atenção da moça, que o observa-

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va à distância. Pedro também a viu e sorriu. - Seu João, eu estou mudando para cá, pois morando na ilha é mais difícil vender o que se pesca. Vim p ro c urá- l o p orque soube que quer vender uma de sua embarcações. Gostaria de vê-la, pois preciso comprar novo equipamento de pesca. Deixei o que tínhamos com meu pai. - É verdade, estou vendendo um barco. Vamos vê-lo. Pedro comprou a embarcação e passou a morar na vila. Pescava com o pai de Teresa, o que fez com


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que logo pudessem travar conhecimento. Pouco tempo depois, estavam namorando. Quando Pedro foi falar com “seu” João Pes c ad or s o b re o c a s a m e n t o, o ve lho achou que era um pouco cedo, mas acabou concordando. A vila toda ficou em festa para comemorar o casório de Teresa e Pedro: um acontecimento que nunca seria esquecido. Agora ela cuidava da própria casa e esperava o marido voltar do mar, à tardinha. Era, talvez, mais feliz

do que antes, o que fazia com que toda vila parecesse também mais feliz. Nas noites de verão, cantava, ainda, apoiada no ombro de Pedro. Ensinava, ainda, as crianças e pensava no filho que viria, não sabia quando. Naquela manhã, Pedro fora pescar sozinho e Teresa, como sempre, foi esperá-lo na praia, no fim da tarde. Não se preocupava, pois não era a primeira vez que ele ia só. E depois, ele conhecia muito bem o mar. Mas anoiteceu e Pe-

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dro não apareceu. Te r e s a f i c o u c o m medo e pediu, quando a noite já ia alta, que o pai saísse para procurá-lo. O velho foi, com mais alguns pescadores. Voltou, pela manhã, sem encontrá-lo. Teresa estava desesperada. Continuou esperando por vários dias: ficava o dia inteiro na praia, olhando o mar, com os olhos molhados de lágrimas. Os homens da vila saíram para o mar outras vezes, à procura, mas Pedro não fora encontrado. A vila toda, entristecida, sofria com Teresa. E a viu enlouquecer. Hoje, já velha, mais pelo sof r im ento q ue p el o tempo, ela ainda vai todos os dias à praia, quer chova ou faça sol, para esperar Pedro. Para ela, ele vai chegar, todo dia: “Saiu de manhã, está lá, no mar, volta à noitinha...”


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GRANDEZA OCULTA

PRA DEPOIS Rosângela Borges – México

Cruz e Sousa

Estes vão para as guerras inclementes, os absurdos heróis sanguinolentos, alvoroçados, tontos e sedentos do clamor e dos ecos estridentes. Aqueles para os frívolos e ardentes prazeres de acres inebriamentos: vinhos, mulheres, arrebatamentos de luxúrias carnais, impenitentes. Mas Tu, que na alma a imensidade fechas, que abriste com teu Gênio fundas brechas no mundo vil onde a maldade exulta, ó delicado espírito de Lendas! fica nas tuas Graças estupendas, no sentimento da grandeza oculta!

Eu deixo para mais tarde, Essa estrela, Esse dia qualquer, Aquela chuva, O domingo, o café. Eu deixo para outro dia, Essa canção, Esse doce vento, Aquela sombra, Meu anjo, meu tempo. Eu deixo para nunca, Essas asas, Esse beijo em pedaço, Aquele grito, Um verso, outro espaço. Eu deixo para sempre, Esses olhos, Essa calçada fria, Aquela alma, Um abraço, outro dia. Eu deixo para agora, Essa rua, Essa história perdida, Aquela lua, Uma lágrima, o sol, A vida! 60


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OS SERTÕES”: PARA LER SEMPRE

Música e literatura misturaram - se em uma noite de Paraty em que Walnice Nogueira, ensaísta e crítica literária, brindou o público com todos os seus conhecimentos de décadas da obra euclidiana. "Euclides viu de perto, pela primeira vez, o povo brasileiro. Viu que o povo brasileiro é mestiço e analfabeto e não os brancos ricos do Rio de Janeiro", afirmou, ao referir-se a Os Sertões durante uma conferência. A atualidade da obra que narra a Guerra de Canudos (18961897) foi debatida por 33 intelectuais de 10 nacionalidades, em áreas que vão da sociologia à fotografia e abordando temas como raça, gênero e pós-colonialismo. Os temas tinham tudo a ver com o livro. "Os Sertões é uma colcha de retalhos de muitas outras narrativas", explicou Gal-

vão, ao lembrar que, ainda que esconda o fato hermeticamente em sua obra-prima, o autor passou apenas três semanas em Canudos e valeu-se, em grande medida, do testemunho de terceiros para construir seu relato.

Euclides debruçou-se sobre o massacre de Canudos ao perceber a desonestidade dos relatos oficiais que publicavam-se à ép o c a . " Não foi Trump quem inventou as fake news. Os repórteres que cobriram Canudos eram militares, muitos de61

les combatentes, e publicavam notícias falsas sobre o suposto perigo que aquelas pessoas representavam", explicou a especialista. O próprio Euclides, no entanto, vinha de formação militar, o que supôs um conflito que, para Galvão, também ficou impresso no livro. "O leitor pode acompanhar na obra a tensão e o sofrimento de quem a escreve. Ele acreditava verdadeiramente em uma instituição que agora matava o povo que deveria proteger". A especialista tamb ém c om par t ilh ou com o público detalhes curiosos do escritor. Os Ser tões, publicado em 1902, bateu um re c o r d e brasileiro à época ao ganhar três edições nos três primeiros anos de publicação. Isso deu rédea solta, de acordo com Galvão, ao "transtorno obsessivo-compul-


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sivo emendador" de Euclides. De acordo com a especialista, durante esse período, o escritor apagou, uma por uma, cerca de mil "vírgulas vagabundas" da primeira edição. O público também pôde deliciar-se com o espetáculo Mutação de Apoteose, inspirada em um trecho de A Terra, primeira parte do clássico de Euclides, com direção artística da atriz Camila Mota. "Euclides da Cunha é um autor que imprime muita oralidade na escrita, que inevitavelmente se transformou em música na aventura de transpor o livro para o teatro. Agora, é

uma nova transposição, que parte da matéria criada pela encenação do Teatro Oficina, mas coloca novamente as palavras cantadas como motor do espetáculo”, declarou Mota. “Voltar a Os Sertões, que revelou a força estética das insurreições, das lutas contra o martírio da terra,

inteligência, clareza, interpretação e eloquência", concluiu. Fazendo eco de suas pa lav ra s , Wa l n i c e Nogueira Galvão encerrou a conferência lembrando que as violências narradas na obra euclidiana perduram na sociedade brasileira atual. "Os Sertões tem que ser lido todos os dias, enquanto persistir a situação dos pobres brasileiros. Enquanto ocorrer o genocídio dos jovens negros nas favelas de São Paulo, a militarização das comunidades do Rio de Janeiro, enquanto acontecerem tragédias como as de é muito importante Mariana e Brumadineste momento, em nho", disse, ante os que devemos invocar aplausos da plateia.

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COMPANHEIROS Mia Couto

quero escrever-me de homens quero calçar-me de terra quero ser a estrada marinha que prossegue depois do último caminho

mas não lego mapa nem bússola porque andei sempre sobre meus pés e doeu-me às vezes viver hei de inventar um verso que vos faça justiça

e quando ficar sem mim não terei escrito senão por vós irmãos de um sonho por vós que não sereis derrotados

por ora basta-me o arco-íris em que vos sonho basta-te saber que morreis demasiado por viverdes de menos mas que permaneceis sem preço companheiros

deixo a paciência dos rios a idade dos livros

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LYGIA FAGUNDES TELLES – A DAMA DA LITERATURA BRASILEIRA Renata Dal-Bó – Tubarão, SC

Lygia Fagundes Telles, também conhecida como “a dama da literatura brasileira”, nos deixou no último dia 03 de abril, aos 98 anos. Considerada por acadêmicos, críticos e leitores uma das mais importantes e notáveis escritoras brasileiras do

século XX e da história da literatura brasileira, sua “gigantesca e exuberante obra continuará a ser revisitada, enquanto houver leitor no mundo”, conforme escreveu o presidente da Academia Paulista de Letras, José Renato Nalini. Lygia sempre esteve adiante de seu tempo. Feminista muito antes do movimento, em 1941 entrou para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP. Ao escrever seu primeiro livro, ainda na faculdade, sua mãe ficou preocupada: “Você já entrou para uma escola de homens

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e vai publicar um livro? Agora você não casa mais.” A previsão foi ignorada por Lygia e desmentida pela vida. A escritora casou-se duas vezes: a primeira com seu ex-professor de faculdade, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr, com que teve um filho, e a segunda com o cineasta Paulo Emíllio Salles Gomes. Lygia é antes de tudo uma romântica apaixonada pela palavra. “É impossível procurar novas palavras para dizer eu te amo e, no entanto, estou eu em busca dessas palavras, dessas novas formas, são as aventuras da linguagem. Sem paixão, mesmo com competência, você não consegue dar conta do seu ofício”, disse ela em um documentário. As obras de Lygia abordam temas variados como o amor, a morte, o medo, o adultério e as drogas. Trata ainda de


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problemas sociais e explora o universo feminino, trazendo um olhar crítico ao moralismo social e deixando transparecer suas visões políticas. Lygia publicou dezessete livros de contos e romances, traduzidos para o espanhol, inglês, russo, alemão e outras tantas línguas. Seu primeiro romance, “Ciranda de Pedra”, foi publicado em 1953 e é um marco em sua carreira literária, considerado por ela mesma como o ponto em que alcançou o amadurecimento. Em 1973, Lygia publicou seu terceiro romance, “As Meninas”, que ganhou o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, o Prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras e “Ficção” da Associação Paulista de Críticos de Arte. Em uma de suas entrevistas Lygia conta que quando era nova sentia vergonha de dizer que tinha vo-

cação para a escrita. Achava que estava sendo arrogante, que a vocação exigia sucesso. Com o passar do tempo foi se dando conta que a vocação – do latim vocare - simplesmente quer d i ze r o c h a m a d o. “Vocação é a felicidade de exercer o ofício

da paixão. Tenho vocação, mas não exijo dessa vocação o sucesso. Cumprimos com a nossa tarefa.” Lygia considera o leitor, mais do que um parceiro, um cúmplice: “Sei que a minha palavra é a única maneira de ajudar o próximo. Se eu puder 65

ajudar o outro no seu sofrimento, no seu medo, na sua luta, que também é o meu sofrimento, meu medo, minha luta, minha missão estará cumprida.” Em 1985, Lygia tornou-se a terceira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Vinte anos depois, em 2005, foi vencedora do Prêmio Camões, pelo conjunto da obra, e do Prêmio Juca Pato, em 2009, como intelectual do ano. Em 2016, Lygia foi a primeira mulher brasileira a ter sido indicada ao prêmio Nobel de Literatura. Lygia partiu para um outro plano, mas é imortal em sua literatura. Com essas palavras Lygia termina uma de suas entrevistas: “Dizer não, não vou morrer, não vou, não vou. Me leia (...), não me deixe morrer, não me deixe morrer!” Não deixaremos Lygia, não deixaremos!


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LÁGRIMAS

Adir Pacheco – Florianópolis, SC

Uma lágrima na emoção que toca. Lágrimas que a fonte do coração derrama. Lágrimas nos olhos de quem odeia e ama. Lágrimas da fome que o corpo clama. Chora o andarilho a lágrima que não molha. É a lágrima recolhida que no peito chora, pois a lágrima mais doída é a da fome que corrói a vida. São lágrimas da terra do espírito que erra. Lágrimas que se consomem no infortúnio anônimo, retirantes de uma vida, mendigando a soluçar no silêncio sem nome.

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E A PANDEMIA, ACABOU?

Por Luiz Carlos Amorim – São José, SC Não. A pandemia não acabou. Os números baixaram nos últimos meses, o que fez com que as restrições para prevenção da doença fossem abandonadas, mas nos últimos dias de maio de 2022 começam a aparecer sinais de que a tendência é de aumento de novos casos e de mortes e o surgimento de uma nova onda de covid 19 é um risco que não dá pra descartar. Além da covid, a guerra da Rússia contra a Ucrânia continua, depois de mais de dois meses, encaminhando-se para a destruição total do país vítima da insanidade e desumanidade do governante russo. Uma guerra sem motivo, um massacre, verdadeiro crime de guerra, que não acaba

porque Putin não concorda com nada que não seja a rendição total e o domínio da Ucrânia. E ninguém faz nada. E depois, o que virá? Guerra contra outros países, para dominar outros territórios? No Brasil, estamos em ano de eleição, que começa muito mal: presidente ameaça os resultados da eleição com golpe, o mesmo presidanta que deu indulto para deputado que ameaçou,

desafiou e desobedeceu o STF. Sem contar outras politicagens que já são corriqueiras no Brasil, infelizmente. E, pra variar, outras doenças graves vão ressurgindo, como a varíola, e colocam o mundo em alerta, mais um alerta dentre tantos. Já temos epidemia de dengue, no Brasil, e agora podemos ver chegar também a varíola. Está difícil. 67

Então tivemos um mês de maio bastante difícil e a perspectiva para os meses seguintes não é muito melhor, infelizmente. Precisamos voltar a cuidar mais com o contágio da covid 19, pois a pandemia ainda está aí e, como já disse, podemos ter uma nova onda. Há que se evitar isso. Mas apesara de tudo, o cronista consegue afastar a depressão, pois o neto português, Rio, veio passear no Brasil e, apesar de estarmos no outono, ele ainda aproveitou um pouco de sol no Rio de janeiro e pegou muita praia. Muito picolé, abacate, tainha e pinhão. E ele, que adora água, está ficando moreno, muito moreno, cada vez mais lindão. Rio acaba de fazer três anos e veio para o Brasil pela primeira vez, meio que de presente de aniversário, e está adorando. Está dizendo até que não quer voltar para a sua casa, em Lisboa. Mas volta em breve, pois as férias são curtas, apenas duas semanas. O Brasil vai ficar com saudades, Rio.


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ELSE SANT’ANNA BRUM LANÇA NOVO LIVRO EM JOINVILLE

Quem estudou nas escolas de Joinville na década de 1990 deve se lembrar da história de Retetéu, um sapo que encontra uma estratégia especial para participar de uma festa no céu e acaba fazendo amigos nessa jornada. Essa é apenas uma das histórias infantis escrita pela joinvillense Else Sant’Anna Brum que, aos 85 anos, lançou seu mais novo livro “Um, D o i s , Tr ê s … E r a Uma Vez” na Biblioteca Pública Municipal de Joinville. A escritora, que também foi profes-

sora nas escolas municipais da cidade, conta que o novo livro remete aos tempos de escola, quando ela unia o amor pela literatura às necessidades da cada disciplina em sala de aula. “As crianças chegavam do recreio ou da educação física eufóricas e demo ravam a se concentrar. Então, eu tinha uma senha. Batia palmas e contava ‘um, dois, três’ e começava ‘era uma vez’… Inventava uma historinha e isso acalmava os alunos, os deixava focados para as lições de matemática, ciências ou história que viriam depois”, recorda. O novo livro traz criações dos últimos anos, que nascem após a aposentadoria da escritora. Em “ Um, Dois, Três… Era Uma Vez”, El68

se traz as histórias “Carocinho de Pêssego”, “Tutuiú”, “O Peixinho que Morava Só”, “O Tesouro de Rastutalá” e “O Pintinho Perdido”. “A s h i s t ó r i a s e s tão por aí, nós só as fazemos nascer. Um dos contos, por exemplo, surgiu em um dia em que o neto da minha irmã estava brincando no chão e começou a falar ‘Rastutalá, rastutalá’. Quando perguntei o que significava, ele disse ‘é o coração das pess o a s ’. A c h e i q u e merecia virar histó-


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ria”, conta. No evento de lançamento, houve a encenação de dois de seus contos, um pelas c ontadoras de histórias da unidade e outro pelos alunos da Escola Municipal Nelson de Miranda Coutinho. Além do lançamento, Else também estará

com sua nova obra na Feira do Livro de Joinville. Ela participará de uma sessão de autógrafos em 11 de junho, às 14 horas. Além do novo livro, Else também escreveu “ Mi guelito Pi rulito”, que venceu um c o n c ur s o p r o movido pelo Go-

verno do Estado de Santa Catarina em 1986, Cri- Cró” (19 9 2 ), “ R e t e t é u ’ (1994), “ Serelepe” (19 9 6), “ Cri - Cró e outras Histórias” (2019), além do livro de poemas “Hóspedes do Coração”, da c oleção Literatura Viva, das Edições A ILHA . A autora, além de ter uma cadeira na Academia Joinvillense de Letras, é integrante do Grupo Literário desde o seu início, há 42 anos. É um dos mais impor tantes nomes da Literatura Catarinense, nos gêneros poesia e infanto-juvenil.

PORTUGAL, MINHA SAUDADE , seleção de crônicas sobre O livro

diversas viagens do autor à terra de Pessoa, também está disponível para compra no formato e-book na Amazon. Clique no link https://amz.run/4VFo Para ir direto à página do livro. Viaje por Portugal através das crônicas desta obra. 69


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ANDO A LER UM DICIONÁRIO

José Eduardo Agualusa

Há poucos dias, na Feira do Livro de Lisboa, um homem parou diante de mim, e depois de me cumprimentar apresentou-me o filho, um menino dos seus onze anos: "Este é o António. Diga-lhe alguma coisa que o faça ler. Lá em casa todos nós temos a paixão pelos livros, há livros em toda parte, mas ele não se interessa por nenhum. O que fazer?" Tentei, um tanto assustado, fugir ao desafio. Dei uma resposta qualquer, evasiva, mas depois que eles se foram embora pus-me a pensar naquilo. Como foi que eu próprio descobri a literatura? Devia ter a idade do Antó-

nio quando encontrei na biblioteca dos meus pais uma belíssima enciclopédia ilustrada, do início do século vinte, em dois volumes. Procurava-se a palavra "aves", por exemplo, e havia uma ou duas páginas com preciosas estampas coloridas de aves de todo o mundo. Tinha, além disso, imensas mulheres nuas — um deslumbramento! Lembro-me em particular da famosa tela de Rubens, "O Julgamento de Paris", talvez o primeiro concurso de misses de que há notícia. Paris, Príncipe de Tróia, tem de decidir quem é a mais bela: Hera, Atena ou Afrodite. São três mocetonas bem nutridas, três deusas clássicas, de rijas e luminosas carnes brancas. A bem dizer foi por causa das mulheres que eu me apaixonei pelos livros. Descobri que por detrás daquelas imagens, por detrás de 70

cada mulher, mais ou menos despida, havia um enredo, e passei a interessar-me por essas histórias. Nunca mais deixei de ler. Leio de tudo um pouco, romances, ensaios, poesia, e, é claro, continuo a interessar-me por enciclopédias e dicionários. Gosto particularmente de ler dicionários. A minha última paixão, em matéria de dicionários, chama-se Houaiss. Esperei por ele uns bons seis anos. Sempre que ia a uma bienal do livro, no Rio de Janeiro ou em São Paulo, perguntava pelo Houaiss. "Sai para o ano", respondiam-me imperturbáveis os responsáveis pelo projecto, e, para manterem aceso o meu interesse, agitavam factos e números:


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mais de 228 mil verbetes, extensos grupos de sinónimos e antónimos, levantamentos de homónimos, parónimos, colectivos, informações de gramática e uso, bem como da origem de cada palavra; é o primeiro dicionário a registar a data em que a palavra entrou na língua, etc. e tal. Finalmente, há alguns meses, o embaixador do Brasil em Berlim, Roberto Abdenur, ofereceu-me um exemplar (três quilos e seiscentos gramas em papel bíblia!), e pude assim confirmar a justeza da publicidade. Mais recentemente pedi a uma amiga q ue m e env ia s s e, de São Paulo, a versão electrónica do Houaiss. Não me desiludiu. Conheci o António Houaiss há muitos anos, numa ocasião em que veio a Lisboa defender o Acordo Ortográfico. Fiquei imediatamente seduzido pelo esplendor do seu

português, o rigor, a riqueza, o entusiasmo com que aquele frágil velhinho carioca, filho de imigrantes libaneses, falava a nossa língua. Ouvir o António Houaiss discursar era uma alegria para a alma. Lembro-me de Natália Correia (a falta que ela faz a Portugal!), aos gritos, numa das salas da Assembleia da República:

"Ajoelhem-se! Ajoelhem-se diante da erudição deste homem! Aprendam como se fala a nossa língua!" O dicionário em que António Houaiss trabalhou durante tantos anos, e que acabou por ser concluído, com o apoio de uma vasta equipa de especialistas, brasileiros, portugueses e africa71

nos, já após a morte do seu mentor, é o melhor monumento à memória do grande lexicógrafo. Por incrível que pareça, porém, não vi na Feira do Livro nenhum exemplar à venda — e refiro-me à edição brasileira, da Editora Objetiva, porque (ó escândalo!) não existe ainda uma versão portuguesa. O velho Houaiss teria sabido, certamente, o que dizer ao outro António, de onze anos, de forma a cativá-lo para a literatura. O que quer que ele dissesse parecia ser sempre novo. As palavras saíam-lhe dos lábios vigorosas e polidas, a brilhar, como se tivessem sido estreadas naquele mesmo instante. Suspeito que o pequeno António iria à procura dos livros, depois de ouvir António Houaiss, apenas no afã de descobrir neles, uma outra vez, a luz da nossa língua.


LITERARTE AMORIM NO PROGRAMA BATE-PAPO LITERÁRIO

O editor da revista SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA, Luiz Carlos Amorim, foi o entrevis-

tado do programa BATE-PAPO LITERÁRIO, na Uni TV, comandado pela jornalista e escritora Renata Dal Bó. O escritor, jornalista, editor e professor falou do Grupo Literário A ILHA, dos 42 anos de literatu-

"Se o silêncio não f o s s e...", o n ovo l i v r o d e El oa h Wes tphalen Naschenweng é essencialmente um livro poético. Escrito em prosa e verso, fala de sentimentos e faz do silêncio o tema principal. Composto de 138 páginas de poemas e prosa

poética, flui sentimentos e emoções, lirismo e encantamento da moça dos dedos cheios de poesia. Ela toda uma fonte de poesia. O prefácio é da escritora Maura Soares. Disponível em: https:// clubedeautores.com.br/ livro/se-o-silencio-nao-fosse

Estamos começando a enviar os convites para participação na nova antologia do Grupo Literário A ILHA para comemorar os 42 anos do Grupo e da revista Suplemento Literário A ILHA: ESCRITORES DO BRASIL. O título ainda é provisório, mas

pode permanecer. Serão cinco páginas para cada autor, uma página para identificação e as outras quatro para a obra. O livro terá de 150 a 200 páginas e será publicado no Clube de Autores e na Amazon, para que quem queira possa adquirir. Para os

ra da revista Suplemento Literário A ILHA, dos escritores do grupo e da sua obra. Veja o programa em https://www. instagram.com/p/Ccp1TNtOj9e/?igshid=MDJmNzVkMjY=

NOVO LIVRO DE ELOAH

ANTOLOGIA A ILHA autores, será impressa uma pequena tiragem para que cada um receba dois exemplares. Se for consenso, poderemos imprimir mais exemplares para um evento de lançamento, mas isso só será decidido quando o livro já estiver pronto.


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