Revista ESCRITORES DO BRASIL - Literatura Brasileira para o mundo

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LITERATURA BRASILEIRA PARA O MUNDO Florianópolis, SC – Maio/2021 – Número 10 – Edições A ILHA – Ano III

CRUZ E SOUSA: TRIUNFO SUPREMO MACHADO DE ASSIS, POETA

A POESIA E O TEMPO

VINÍCIUS: ANTES DE PARTIR NÉLIDA PIÑON: TRISTEZA NA PANDEMIA


SUMÁRIO CANÇÃO.............................................................4

CAROLINA.......................................................44

TODOS OS DIAS...............................................4

NO ALTO...........................................................44

VINICIUS DE MORAES: ANTES DE PARTIR 5

CÍRCULO VICIOSO........................................44

FOTOGRAFIAS

LIVROS E FLORES.........................................44

(LUA LUA, MUNDO DA LUA)....................12

A LITERATURA E SUA IMPORTÂNCIA PARA TODOS...................................................45

TODOS OS DIAS PARA AS MÃES...............13

FESTA................................................................48

ALMA DE CONDOR.......................................15

PEDAÇOS.........................................................49

NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM............15

SOL SECA E O TEMPO ÁGUA.............................................50

A TALENTOSA NÉLIDA PIÑON: TRISTEZA NA PANDEMIA................................................16 INDIFERENÇA.................................................20 MANHÃ FRIA..................................................21 TODOS OS DIAS.............................................21 CRUZ E SOUSA: DA VIDA OBSCURA AO TRIUNFO SUPREMO..............................22 ANDANÇAS DA DOR....................................26 NA NOITE AMENA DE VERÃO, SONHO..27 MÃE...................................................................31 POR ONDE ANDAS?......................................32 DESCONCERTOS............................................35 ARREBATAMENTOS.....................................35 CÉU AZUL........................................................38 RENÚNCIA.......................................................38 A AÇÃO DE FARQUHAR EM SANTA CATARINA........................................................39

DE SEMENTES SORRISOS, NASCEM ETERNAS SAUDADES..................................50 A DESTERRITORIALIZAÇÃO E A PERDA DE SENTIDO DOS EXCLUÍDOS A RETERRITORIALIZAÇÃO A PARTIR DAS CIDADES – 2ª. PARTE...........................51 BANCO DE OUTONO....................................57 71 ANOS SEM VOCÊ,.....................................58 DONA ANTÔNIA.............................................58 (IN MEMORIAM)............................................58 SORRISO...........................................................60 PERCEPÇÃO....................................................61 PRESENÇA DE AUSÊNCIA...........................62 ENCANTOS DA ILHA DA MAGIA DE SC.. 63 OLHOS EM CENA...........................................66 AVESSA.............................................................66 ESCREVENDO NA SELVA............................67

MACHADO DE ASSIS, POETA.....................43

DOIS ANOS......................................................69

A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS........................................43

O DIA MUNDIAL DO LIVRO E O LIVRO NA PANDEMIA................................................70

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EXPEDIENTE Literatura brasileira para o mundo Edição número 10 – Maio/2021 Publicação das Edições A ILHA Grupo Literário A ILHA Florianópolis, SC Editor: Luiz Carlos Amorim Contato: lcaescritor@gmail.com revisaolca@gmail.com Grupo Literário A ILHA na Internet: h t t p : / / w w w. p r o s a p o e siaecia.xpg.com.br Todos os textos são de inteira responsabilidade dos autores que os assinam. Contate com a redação pelos endereços: lcaescritor@gmail.com revisaolca@gmail.com Veja a página do GRUPO LITERÁRIO A ILHA – ESCRITORES DO BRASIL no Facebook, com textos literários, informações literárias e culturais e poemas e a edição on line, em e-book, desta revista.

EDITORAL A LITERATURA NA PANDEMIA Nesta nova edição de ESCRITORES DO BRASIL, depois de pularmos a publicação no mês de fevereiro, por causa da pandemia, trazemos muito conteúdo, rico e eclético: contos, crônicas, ensaios, poemas, entrevistas, resenhas, artigos, etc. E numa das grandes entrevistas, Nélida Pinõn, essa grande escritora brasileira da nossa época fala da resistência na pandemia e muitos outros assuntos. Como já dissemos em outra oportunidade, o fato de a pandemia de covid 19 fazer com que a gente fique mais em casa, proporcionou-nos mais tempo para ler e também para escrever. Então bom conteúdo não falta e esta edição de ESCRITORES DO BRASIL está recheada de boa prosa e boa poesia e muita informação literária e cultural. Então não paramos de produzir e não podemos parar de publicar. Por isso, um grupo de escritores catarinenses, a maioria deles da grande Florianópolis, está produzindo um volume que reúne vinte escritores e cada um está resenhando, comentando a obra de um outro. De maneira que todos os vintes serão resenhados e todos os vinte resenharão um dos colegas. Não dá pra dizer que é uma antologia, mas é quase, porque na resenha sempre mostramos trechos da obra do autor comentado. Diria que é um livro de fortuna crítica e amostra da lavra de cada escritor. O leitor vai conhecer muito de cada escritor e vai ter muita sugestão de leitura. E isso é bom. Não podemos parar. A vida continua e é mister que se registre a sua passagem. E a literatura faz isso. O Editor

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POESIA

LUIZ CARLOS AMORIM CANÇÃO

TODOS OS DIAS A vida se repartindo, coração se avolumando, amor se multiplicando... isto é você, mãe, mulher.

Canto uma canção antiga, uma canção romântica, uma canção de amor, uma canção de vida. Canto pra você. Canto todas as canções numa cantiga só... Às vezes desafino, é verdade, mas a canção é poesia, acalanto, emoção, é alma, é sentimento. É tudo, é você, mãe.

Todos os dias são seus, toda vida lhe pertence; a natureza, perfeita, é sua irmã gêmea. Que presente, então, lhe dar, a não ser nosso respeito, todo carinho e amor e uma pequena flor, gigante como você?

Meu cantar é minha luz, luz que vem de você, minha comunicação com Deus, a ligação com o universo... Minha canção é você, mãe...

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VINICIUS DE MORAES: ANTES DE PARTIR O poeta e compositor morreu alguns meses depois de ter concedido a entrevista ao jornalista Narceu de Almeida Filho, em 1979. Quando o jornalista Narceu de Almeida Filho bateu este longo papo com Vinicius de Moraes, em sua casa, bem situada numa tranquila rua da Gávea, no Rio de Janeiro, não poderia imaginar que, no momento da edição da entrevista, o Poetinha já não existisse mais. Vinicius estava todo animado, layout novo, de cabelos cortados, barba raspada, vestido elegantemente e sem o seu famoso boné que o acompanhou durante muitos anos. Havia

Vinicius de Moraes – São dois livros. Um deles é o que venho escrevendo sobre o Rio de Janeiro. Há uns 25 anos que trabalho nesse livro. O outro são os poemas escritos de 1960 para cá, porque nesse tempo todo eu não publiquei nada de poesia, a não ser algumas edições especiais que fiz na Bahia, na editora do Calazans Neto. Uma delas é a “História Natural de Pablo Neruda”, que fiz quando ele morreu. Agora vou reunir esses poemas escritos a partir de 1960 e completar o Pergunta: Quais os livros livro, que tem um título meio nos quais está trabalhando, contabilístico – “O Dever e o Haver”. É uma prestação neste ano de 1979? emagrecido vários quilos e abandonado temporariamente as excursões musicais para dedicar-se, novamente, à poesia. Poeta do amor, Vinicius estava ainda em lua-de-mel com sua mulher, Gilda, a quem conheceu na Europa, onde ela estudava. Entre pilhas de livros, discos, um violão, dois conjuntos de som e objetos de arte, ele falava de seu objetivo maior no momento – “fazer feliz essa moça” – e olhava, apaixonadamente, para a mulher sentada ao seu lado.

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somente quando baixa a inspiração? Vinicius de Moraes – É, eu escrevo somente quando a coisa vem. Teve uma época da mocidade, até aí pelos 30 anos, em que eu escrevia muito, tinha necessidade, aquela compulsão de pegar o papel e sentar para escrever. Até os 40 anos foi mais ou menos assim. Depois começou a escassear, a rarear. E veio o período geral de contas, do que foi de música popular, que foi feito, do que deixou de ser muito importante para mim. feito. Pergunta: Você ficou Pergunta: Esses dois livros, famoso como poeta muito em termos de poesia, seriam cedo, antes dos 20 anos, não foi? a sua palavra final? Vinicius de Moraes – Eu Vinicius de Moraes – Muito considero esses dois livros cedo. Meu primeiro livro, “O uma espécie de limpeza geral da casa, sabe. Depois disso, se ainda tiver alguma coisa a dizer, terá de ser uma coisa realmente nova. Do contrário, eu paro de escrever. Para mim não é mais fundamental escrever. O que foi dito foi dito, e é, digamos, o meu recado de poeta. Não sei se terei algo de importante a dizer. E, se não tiver, prefiro não dizer. Escrever por escrever, simplesmente, é uma coisa que não farei em hipótese alguma. Pergunta: Você tem algum método de trabalho permanente, periódico, ou escreve

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Caminho Para a Distância”, teve uma ótima crítica. Eu tinha 19 anos quando o publiquei. Com 22 anos ganhei o Prêmio Nacional de Poesia – chamava-se Felipe de Oliveira e premiava todas as artes literárias. Ganhei uma disputa com o Jorge Amado, e por um focinho apenas de frente. Pergunta: O fato de ter ficado famoso muito cedo foi bom ou ruim para você? Vinicius de Moraes – Para mim não foi muito legal, não, sabe. Me deu uma certa soberba, eu achava que era um poeta genial, essas coisas. Mas depois, uns dois ou três críticos me puseram no meu lugar, direitinho.


Um deles foi o João Ribeiro, com relação a esse primeiro livro. Ele fez uma crítica muito boa, mas também muito severa, como quem diz: “Olha, menino, trabalhe mais com o verso livre, os seus sonetos não são muito bons”. Outro foi o Manuel Bandeira, que fez uma crítica bastante severa. Finalmente, quando ganhei o Felipe de Oliveira, o Otávio Tarquínio de Sousa escreveu também um rodapé muito bom, me colocando em minha devida posição. O Mário de Andrade, igualmente, me deu umas podadas muito bem dadas. Isso tudo me ajudou muito.

grupo do Otávio de Farias que me incensava. Para eles, era assim como se eu fosse o poeta que todo mundo esperava. Era o grupo da faculdade de Direito. Essas coisas me subiram um pouco à cabeça. Mas com aquelas críticas, a própria vida, a experiência com o conhecimento maior dessas pessoas, aí eu comecei a me situar. Processou-se também uma evolução política muito grande. Eu tinha sido formado para ser um intelectual de direita. Mas em 1942 aconteceu uma coisa muito importante em minha vida, que foi a vinda ao Brasil do escritor americano Waldo Frank. O José Olympio ofereceu um coquetel a ele e todos os escritores compareceram. Começamos a conversar e, lá pelas tantas, ele me confessou que achava coquetel de intelectuais uma coisa chatíssima e perguntou se não podíamos sair por aí. Saímos, era dia de São

Pergunta: Na época você recebeu bem essas críticas? Vinicius de Moraes – Não recebi muito bem, não. Recebi mal, sabe. Porque, além do mais, havia todo o

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Jorge e eu levei o Waldo para ver as putas do Mangue. Havia um delírio lá, ele ficou impressionadíssimo. Aliás, a origem da minha “Balada do Mangue” foi esse dia. Depois eu o levei à favela do Pinto, aquela que havia no Leblon. Hoje eu não faria mais uma coisa dessas, não há condições. Mas foi tudo bem, ficamos lá numa tendinha, pagamos umas cervejas para os crioulos e eles tocaram para nós. Ele achou tudo ótimo, queria mesmo era ver esses ambientes e fugir das cerimônias oficiais. Daqui ele foi para a Argentina, acabou se envolvendo em política lá – era um socialista, mas com uma grande dose de filosofia hindu, bastante maluco. Era um judeu, muito amigo do Hemingway e do Chaplin. Na Argentina, um grupo de fascistas aplicou-lhe uma tremenda surra e ele ficou três meses no hospital. Depois, voltou ao Brasil e pediu ao Oswaldo Aranha, o chanceler da época, que eu fosse indicado para acompanhá-lo na viagem que faria pelo interior do país. Eu ainda não era do Itamaraty, mas o Aranha sabia que eu ia fazer o concurso para ingressar na carreira diplomática e me designou para ciceronear o Waldo. Para mim, a viagem foi maravilhosa, escutei


histórias fantásticas dele, inclusive a de quando foi martirizado pela Ku Klux Klan. Foi a primeira vez que andei armado em minha vida, porque chegou a notícia de que uns tiras argentinos tinham vindo matá-lo no Brasil.

lismo. Não sei como consegui me safar disso. Acho que foi meu lado de moleque de praia que reagiu na hora certa. Mas essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada. Saí um homem de direita e voltei um homem de esquerda. Foi o fato de ter visto a realidade brasileira, principalmente o Nordeste e o Norte, aquela miséria espantosa, os mocambos do Recife, as casas de habitação coletiva na Bahia, o sertão pernambucano, Manaus. A barra me pesou mesmo.

Pergunta: Até essa época você era bastante católico e místico, não? Vinicius de Moraes – Não era tão católico, não, mas era um cara muito mistificado, não só pela formação, mas também pelo grupo que orientava, sobretudo o Otávio de Faria. Eram todos Pergunta: Essa virada se caras de direita, muitos manifestou em sua obra? haviam aderido ao integra- Vinicius de Moraes – Logo

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em seguida, porque aí eu já tivera também a experiência inglesa. No Brasil, pouca gente havia tido essa experiência com exceção de Gilberto Freyre, que também estudou em Oxford. Para mim, a leitura dos poetas ingleses foi muito importante, especialmente no sentido de certa simplificação e desmistificação e todo aquele arcabouço aristocrático, metafísico. Veio tudo por água abaixo. Pergunta: E quando você começou a fazer música? Vinicius de Moraes – A música começou mesmo na década de 1950, quando voltei de meu primeiro posto diplomático no exterior, em Los Angeles. Agora, eu sempre fazia minhas músicas, antes, mesmo sozinho, mas sem nenhum intuito de editar ou ver cantar. Aos 15 anos tive uma experiência interessante: eu me liguei a uma dupla vocal que havia aqui, chamada Irmãos Tapajós, e comecei a compor com eles. Fizemos várias músicas, das quais duas tiveram muito sucesso. Uma era um foxtrote brasileiro, chamado “Loura ou morena” (que foi regravado há uns 10 anos), e a outra era uma “berceuse”, “Canção da amante”. Foi o primeiro


filhos, pois com 24 anos de carreira eu estava mais ou menos próximo da aposentadoria. Tinha certo medo de jogar aquilo tudo pra o alto. Mas quando me livraram desse problema moral, fiquei muito satisfeito. Pergunta: Voltando à dinheiro que ganhei em música: você teve parcerias minha vida, produzido por históricas. Por que lá pelas essas músicas. tantas, a parceria acaba? Vinicius de Moraes – É Pergunta: Quando você foi como um casamento, sabe. exonerado do Itamarati, em É parecido. Acho que há 1968, houve alguma ale- um desgaste. Além disso, gação específica? no tempo da bossa-nova, Vinicius de Moraes – O por exemplo, havia milhares Otto (Lara Resende) sabe de compositores fazendo de uma história muito música, e apenas uns poucos engraçada que aconteceu: letristas. De maneira que quando o decreto veio de eu não chegava para as Brasília, assinado pelo encomendas: era o Tom, o presidente Costa e Silva, o Baden Powell, o Carlinhos despacho dizia: “Ponha-se Lyra. Depois, na geração esse vagabundo para tra- 1963, pintaram o Edu Lobo, balhar”. Aí, dizem que o o Francis Hime. Tanto Magalhães Pinto botou a assim que eu sou um dos mão na cabeça e chamou o pouquíssimos compositores Otto imediatamente, comen- brasileiros que atravessou tando: “Ih, isso vai dar um essas gerações todas. Eu fiz barulho dos diabos. Escreve música com o Pixinguinha, um arrazoado aí para man- o Ary Barroso, com o pesdarmos para Brasília”. O soal da geração do Antônio Otto escreveu e, por isso, Maria, o Paulinho Soledade; o despacho não se tornou depois peguei o Tom, o público. Mas a exoneração Baden, o Carlos Lyra, o veio de qualquer maneira. Edu, o Francis e, em 1969, O que para mim foi ótimo, o Toquinho. E mesmo com porque eu já não aguentava caras mais jovens que o mais aquilo, mas tinha um Toquinho eu já fiz música, problema moral devido aos como o Eduardo Souto Neto,

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o João Bosco. Pergunta: Com quais parceiros você acha que houve mais criatividade? Vinicius de Moraes – Com o Tom, sobretudo, mas também como o Carlinhos Lyra e o Baden. O Baden tem uma produção muito boa, e foi ele quem me introduziu o elemento africano, o que não havia antes na bossa-nova – eram todos brancos, arianos. Pergunta: Como foi seu encontro com Deus e depois seu desencontro, seu desencanto? Vinicius de Moraes – Bom, o encontro foi normal: família católica, colégio de padres, aquele negócio de confessar aos domingos, de comungar. Mas acho que a vocação para o pecado era maior. Mas eu me meti a católico porque toda aquela


fase de direita era muito ligada ao problema de Deus, principalmente por causa da influência do Otávio de Faria. Ele era aquele cristão dramático, lia muito Pascal, Claudel, os filósofos sofredores, me deu os primeiros livros para ler. Até hoje eu tenho uma grande admiração e estima por ele, embora as divergências ocorridas fossem graves demais para permitir que mantivéssemos um relacionamento estável. Mas gosto muito dele, quero um grande bem a ele. Depois a vida foi em frente, me liguei muito ao Bandeira, Drummond, Pedro Nava e outros, que tinham uma consciência cristã, mas não levavam aquilo como um cartaz na testa. Alguns eram francamente agnósticos. De toda essa mistura nasceu um desencanto, um desinteresse que acabou sendo total. Eu não acreditava mais. Pergunta: Hoje você não tem mais qualquer preocupação com o problema de Deus ou de religião? Vinicius de Moraes – Num plano assim de vida, não. Restou talvez certa religiosidade, própria de meu temperamento. Por exemplo, eu me interesso por candomblé, certas superstições. Isso é sinal de que tem algum fogo na cinza. Mas aqui, na cuca,

não tenho mais grandes indagações. Ao mesmo tempo, me recuso a elas um pouco. Não me interesso mais por coisas que não sei explicar. Pergunta: E a morte? Vinicius de Moraes – Bem, a morte sempre me preocupou, e ainda me preocupa. Mas hoje, de uma maneira muito mais simples, como uma espécie de saudade da vida, uma pena de deixar

isso aqui com todas as cagadas e confusões, porque sempre vivi dentro de uma grande plenitude. Sobretudo por causa das mulheres: tenho muita pena de deixá-las. Sei que a velhice pode ser uma coisa legal, mas não gosto da ideia de envelhecer porque perderia tudo o que as mulheres ainda podem me dar.

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Pergunta: Você vê muita diferença entre o Vinicius dos 18 anos e o Vinicius de hoje? Vinicius de Moraes – Não vejo muita diferença entre os meus sonhos de ontem e de hoje, entre certa parte lúdica que sempre tive, sempre em fermentação. Acho que hoje eu sonho mais do que sonhava antigamente. Quer dizer, a viagem é permanente, não é uma coisa de um dia ou um momento, com paradas e fases de descrença. Não sou de ter fases de descrença. Pergunta: Você está satisfeito consigo mesmo? Vinicius de Moraes – Bem, eu gostaria de mudar algumas coisas de mim, mas de um modo geral não sou um sujeito de jogar fora. Tenho uma estima por mim bastante grande, sabe. Uma estima que vem da constatação das coisas que fiz, das pessoas que eu amei, dos amigos que tive e tenho. Considero tudo conquistas consideráveis, no cômputo geral. Às vezes tenho a imodéstia de dizer a mim mesmo: “Você vale a pena”. Isso sem nenhum sentimento de vaidade. Não tenho qualquer preocupação com a glória literária. Se tivesse essa preocupação,


eu trataria muito melhor das minhas coisas. A publicação de antologia dos meus poemas pela Aguilar (editora) foi um dos partos mais difíceis e demorados que já houve, tudo por despreocupação minha. Hoje em dia tenho uma preguiça enorme de trabalhar, escrever. Pergunta: Você se tornou mais exigente? Vinicius de Moraes – Muitíssimo mais exigente. Hoje eu leio muito pouco, porque a maioria das coisas publicadas me parece ruim. Atualmente, quando encontro um escritor que me interessa, para mim é uma festa. Mas, em geral, mal consigo passar das primeiras quatro ou cinco páginas. Pergunta: Qual era a visão que você tinha do Brasil quando começou a fazer poesia? Vinicius de Moraes – Eu achava o Brasil um país ideal, realmente, e essa visão durou até lá pelos meus 40 anos. O primeiro choque que o Brasil me provocou foi quando voltei dos Estados Unidos, em 1951, e vi aqueles bares americanos que começavam a proliferar, o bar vermelhinho desaparecendo, as pessoas comendo em pé nas lanchonetes, a

penetração do estilo de vida houvesse no Brasil? Vinicius de Moraes – Acho americano. que uma volta a uma demoPergunta: E hoje, como cracia relativa já seria muito bom! O povo ter liberdade você vê o Brasil? Vinicius de Moraes – Eu – isso me parece fundadigo sempre uma coisa: mental. Quer dizer, ver as tenho uma grande fé no pessoas felizes, contentes, Brasil. Uma fé meio estú- com as caras alegres, sem pida, meio instintiva, por angústia. E, sobretudo, haver causa do povo. Realmente, a a realização, ou pelo menos minha fé no Brasil não vem um arremedo de realização, das instituições, nada disso. de uma organização social Pelo contrário, acho que mais justa, com uma melhor elas têm sido extremamente distribuição da riqueza, negativas para o país. Agora, uma reforma agrária legal. eu acredito neste povo. E Isso eu gostaria de ver: os cada vez que eu volto ao problemas sociais mais Brasil, de alguma viagem graves resolvidos ou, no ao exterior, essa crença mínimo, colocados num aumenta, compreende. E bom caminho. Isso já me como essa crença é um bem daria um pouco de paz, de gratuito, eu prefiro tê-la a calma, de uma tranquilidade bastante maior do que aquela não tê-la. que eu tenho hoje. Eu não Pergunta: Que tipo de consigo me destacar do prosociedade você gostaria que blema humano.

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POESIA

SELMA FRANZOI DE AYALA FOTOGRAFIAS (LUA LUA, MUNDO DA LUA) Quase noite no Vale Neotrentino Montes delineados de dourado Flores de outono Flores do tempo Folhas de outono Folhas do tempo Folhas ao vento Viagem no tempo... Rastros de saudade Resgate histórico-cultural La Mora e Canti nel dialet talian... cultura e tradição de meu povo imigrante rastros de saudade por todo o Vale... Vale de minhas emoções Cântico em dialeto trentino Quase noite no Vale Neotrentino Luar que prateia todo meu vale Lua lua Mundo da lua...

Folhas do tempo Folhas ao vento Cantos em dialeto trentino Rastros de saudade Refugio de emoções lua lua mundo da lua... Montes dourados de meu Vale delineados de saudade e de outonos folhas ao vento outono do tempo tempo ao vento lua lua mundo da lua... FOTOGRAFIAS...

Sonhos, segredos, ilusões Sintonia do tempo Resgate do tempo Resgate dos sonhos Viagem no tempo Flores de outono Flores do tempo Folhas de outono

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CRÔNICA

LUIZ CARLOS AMORIM TODOS OS DIAS PARA AS MÃES Por Luiz Carlos Amorim ciclo, ela fica esperando – Escritor, editor e revisor que os filhos voltem para – Cadeira 19 da Academia uma visita, nem que seja Sulbrasileira de Letras. rápida, trazendo os netos. Fundador e presidente do Fico matutando, aqui, Grupo Literário A ILHA, que quando o Dia das Mães completou 40 anos em 2020. Http://luizcarlosamorim. vai chegando, que ver a blogspot.com.br filharada debandar dói um bocado para nós, pais, Dias das Mães é, talvez, imagine para as mães. O o dia mais relevante das coração fica apertado, a tantas datas comemora- saudade toma proporções tivas e merece, de fato, astronômicas e a casa fica m u i t a c o m e m o r a ç ã o , enorme, imensa, vazia, porque elas, as mães, são silenciosa e triste. as criaturas mais impor- A filha Fernanda veio tantes desse mundão de passar um tempo conosco, Deus. Não que os outros inclusive para ajudar, que dias não o sejam, porque a mãe fez uma cirurgia todos os dias são delas. delicada, foi no final de São elas que nos trazem 2015. E quando maio de ao mundo. São elas que 2016 estava quase chedão filhos aos homens, gando, ela foi embora, são os seus filhos que pois ela e o marido foram nos dão netos e assim morar na França. E então por diante. Sem elas não tudo se repete. Depois de mais de quatro meses, a existiríamos. É a n o s s a m ã e q u e casa volta a ficar grande se dedica a nós, seus demais, maior ainda. A rebentos, pela vida afora. saudade, que já estava E quando a gente cresce instalada porque Daniela e vamos viver a nossa e s t á b e m l o n g e , d o vida para recomeçar o outro lado do Atlântico,

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também, em Portugal, consegue ficar maior, aumenta de novo… Era muito bom ter a casa ocupada, mais viva de novo… Fernanda voltou em 2017, mas ficou apenas duas semanas, a vida dela é na França, tem lá a família, trabalho, casa. E no Dia das Mães, a mãe não terá, de novo, a filharada aqui e a casa, tão grande, continuará não tendo barulho de criança. Nem da nossa filharada, porque para os pais eles nunca crescem, são sempre crianças, nem do neto Rio, que fez dois anos em abril, lá em Lisboa. Ainda bem que atravessamos o Atlântico todo ano e podemos vê-las e também ao neto. E elas moram no coração da gente, são inquilinas cativas, vitalícias, e a mãe pode conversar com elas e como o neto Rio como se estivessem aqui, até olhando nos olhos, com toda a tecnologia de


comunicação que temos, hoje, à disposição. Só faltará o abraço, o beijo, mas uma mãe sabe como abraçar a alma, beijar a alma da sua filharada, independente da distância. Até porque a pandemia não deixa a gente abraçar ninguém. Por isso apredemos a sorrir com olhos, abraçar a alma, beijar o

coração. Uma mãe é mãe em tempo integral, a ligação com sua prole é condição sine qua non, então eles estarão sempre juntinho dela, não importa aonde estejam. Que todas as mães sintam-se abraçadas e beijadas por seus filhos e que todos os filhos também

sintam-se abraçados e beijados pelas suas mães. Sempre. Parabéns, com um grande abraço e um grande beijo que eu vou levar para ela, para a Dona Iracina, minha mãe, que além da passagem do seu dia, também faz aniversário no dia 10 de maio: tudo em dobro.

D. Iracina, minha mãe, à beira do Tejo, em Lisboa.

REVISÃO DE TEXTOS E EDIÇÃO DE LIVROS Da revisão até a entrega dos arquivos prontos para imprimir. Contato: revisaolca@gmail.com

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POESIA

SALOMÉ PIRES (MEL) ALMA DE CONDOR

NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM Não Basta só ter um trabalho, Porque no real sentido humano, Viver só para o trabalho é insano, O existir é composto de retalhos. O trabalho é fartura a compreender, Nestes retalhos da independência moral Há um bem maior na difícil escala natural, O Pão do Espírito que precisamos receber.

Na planície dos nossos dias, Ao pé da montanha dos saberes, Os olhos para cima em seus víveres, Lamentam o nascer das asas tardias. Quem apenas decifra as palavras, É Condor, mas negaram-lhe as asas, Seus voos seguem em superfícies rasas, O cume é utopia em reais escalavras.

Não basta apenas a alfabetização, Precisamos do escudo da razão e direito É preciso alimentar a alma e o coração. Seremos Senhores da consciência pura, Quando desprovidos de todo preconceito, Além do pão, levarmos à cultura!

Um povo é grande também pela cultura, Não deve ficar no sopé lamentando, Sem oportunidades em meio a censura. Precisamos levar o ouro da ternura, A inteligência, que vigora arquitetando, A alma de condor que busca as alturas.

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ENTREVISTA

JUAN CRUZ A TALENTOSA NÉLIDA PIÑON: TRISTEZA NA PANDEMIA

A escritora Nélida Piñón em Madri, em 2019.

Nélida Piñón (Rio de Janeiro, 83 anos), membro da Academia Brasileira de Letras e ganhadora do prêmio Príncipe de Astúrias de Letras em 2005, escreveu em Vozes do deserto uma ficção prolongando a metáfora de Sherazade. Agora, enquanto assiste às terríveis consequências da pandemia de coronavírus no Brasil, confia também em que a ficção, a narrativa, seja útil para confrontar um drama que a mítica personagem a quem ela deu voz superou graças à sua capacidade de contar para vencer a opressão e o esgotamento. Ela continua escrevendo. Sua última obra está a ser lançada na Espanha e, embora esta seja sua principal tarefa, inventar, ela não deixa de se condoer pelo que ocorre em sua terra e

no mundo. Disto falou de sua casa no Rio de Janeiro, avisando ao repórter espanhol que “o Brasil vive um momento de rancor generalizado”, ao mesmo tempo em que exibe o que está à vista em seu escritório, “cheio de pilhas de papel, originais —toda minha vida criativa está aqui dentro” . Pergunta: O que é a sua vida criativa agora? Nélida – É a capacidade que tenho de adicionar à minha vida tudo o que está fora. O criador trabalha a partir do que existe e do que existiu. Sou uma mulher que acredita que só se pode ser contemporâneo se se for arcaico. Navego nas águas dos gregos, dos persas, das Américas e do mundo. Não faço uma distinção profunda de onde estou, quem sou ou de que época. Pergunta: Este período se parece com o que Sherazade combatia, falando para que a condenação não se cumprisse. Agora se vive uma condenação, e conversamos para que a noite não caia…

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Nélida – A humanidade sempre sofreu grandes dificuldades. Nunca houve uma época frutífera, só instantes de celebração, mas cada vez que a humanidade fracassa seguimos em frente. Agora se fala da globalização, mas os vikings já começaram esse processo; e o fizeram os gregos com Alexandre, os bucaneiros ingleses do Caribe e os extraordinários globalizadores portugueses. Sempre foi assim. Todos abriram espaços para a globalização. O que acontece é que hoje vendemos nossa liberdade de indivíduos pátrios por objetos perecíveis sem nenhum valor. Não tenho medo, enfim, do dano que possa ocorrer, porque o pior já está ocorrendo. Pergunta: O que foi o pior do pior? Nélida – Se não percebermos a força desta advertência histórica que ameaça a civilização é porque não estamos preparados para sobreviver. É preciso que estejamos preparados para sair disto e


tentar ver o que impede nossa sobrevivência. Por trás de tudo isto estamos vivendo uma explosão demográfica. A terra tem dificuldades para abraçar oito bilhões de pessoas. Ninguém quer ficar na África, ou na Europa, ninguém quer ficar onde está, sempre estamos procurando um lugar onde se possa assegurar a fortuna… Mais do que nos deslocando geograficamente, estamos nos deslocando em espírito, e nisto vejo insatisfação, necessidade, um infortúnio extraordinário. Como se não tivéssemos futuro, nos empenhamos em apagar os fatos do passado. O passado não se destrói, mas é preciso corrigir os desvarios do presente.

teve um código moral que servisse a todos! Os códigos que tivemos serviam a alguns, aos donos do código, aos que o escreveram e não aos que padeciam os horrores desse código. Desde a Bíblia, os códigos beneficiavam só uma parcela da população. Outros eram escravos da vontade alheia… O que vejo hoje é uma desunião que privilegia interesses próprios. A União Europeia demorou muito a ajudar; teve e tem medo da segregação, de que possam surgir outros Brexits. Assim como na América, não estamos unidos, há interesses.

Pergunta: Você tem muita relação com a Galícia, com a Espanha [a escritora é filha de galegos]. Como viveu, vendo do Brasil, a situação desse país? Nélida – Foi uma grande dor, mas de alguma forma as dores que vinham da Itália prepararam para as futuras tragédias. A Itália nos advertiu: preparem-se. Quando a tragédia chegou à Espanha, imagine o que senti… Como isso podia acontecer na Europa? Supunha-se preparada para entrar no éden, no paraíso econômico e na justiça. As pessoas acrediPergunta: Como qualifi- tavam estar sob as bênçãos de caria este momento moral da um deus econômico, poderoso. Eu me dava conta de que isto humanidade? Néllida: A humanidade nunca se arrastaria por todo o mundo,

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mas que semearia menos pânico. O pânico teve uma força poderosa, mais do que a pandemia, talvez. Veremos, porque há muitos mistérios, muito que não sabemos e muitas verdades que sairão dos laboratórios farmacêuticos, porque não nos dizem o que está acontecendo. Pergunta: Um susto mundial, portanto. Nélida – Os brasileiros estão muito abalados, o mundo inteiro está assustado. Agora, além disso, assusta essa palavra espanhola, brote [surto]. É impressionante seu sentido simbólico. O surto está estabelecendo nossos limites. A partir de agora não temos liberdade, porque somos vítimas do próximo surto. Não se pode gozar sob a tutela do surto. Pergunta: Como está vivendo a situação no Brasil? Nélida – Como todos, vi com visão crítica e muito dolorida. Ter um governante que não se dá conta do peso da pandemia e do que está acontecendo no mundo é uma enorme tristeza. Os fracassos que chegam


percebo minhas limitações, mas sei que meu dever é continuar criando, escrevendo. Meu dever como intelectual brasileira é continuar produzindo livros; tendo à independência total, estética, moral, sem medo da histeria. Pergunta: Como sente, em sentido metafórico, neste tempo difícil, que soa a música do Brasil? Nélida – Pode ser uma conjugação de todos os acordes musicais do mundo. Os brasileiros são muito musicais, mas talvez não tenhamos feito a música que possa limpar o que estamos sofrendo: miséria, falta de emprego, insegurança com o futuro, descrédito do poder e das instituições… O que Brasília produz não está a favor do povo. É natural que estejamos tristes e que Pergunta: Vale hoje no Brasil olhemos de forma desapegada a opinião de uma intelectual para o poder. como você? Nélida – Não acredito muito Pergunta: O país pode ser no poder do intelectual. As visto agora como uma harpessoas hoje levam muito mais monia rompida? em conta o que sai na televisão Nélida – Ao longo da hisdo que o que se fala em um tória do Brasil sempre houve livro. O Brasil se volta para os fraturas, como em qualquer seus próprios interesses com país, mas independentemente uma visão paroquial. Hoje não da tragédia é um país alegre. tem grandes políticos, grandes Só precisa administrar essa oradores, personalidades em alegria de modo que não quem confiar, que expressem se perca nas exaltações. É as necessidades reais. No meu preciso ser alegre e triste, entender, os políticos são um alternar um pouco. Não se fracasso. Como intelectual, pode ser alegre o tempo todo. de Brasília nos educaram há muito tempo para o sofrimento. É como se se pudesse esperar o pior de Brasília. É um câncer que começou há muito. Chego à conclusão de que as administrações se impõem a favor de seus interesses e não dos do povo. Sinto um profundo descrédito do poder, como o que agora vive o Brasil. Se não percebermos a força desta advertência histórica que ameaça a civilização é porque não estamos preparados para sobreviver.

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Quando você passa a ser triste é quando pode corrigir a realidade. O Brasil tem uma história muito fascinante, mas também de desapego da realidade do pobre. Teremos que fazer correções dramáticas. Temos racismo; todo mundo é racista, e o Brasil é porque somos herdeiros do racismo do mundo, da Europa, dos Estados Unidos… Não o inventamos, o herdamos, e naturalmente nos pareceu que beneficiava as elites. É um país que tem uma integração geográfica extraordinária, não aconteceram conosco as fraturas bolivarianas, temos uma língua deslumbrante que soube permitir que cada canto criasse neologismos; uma literatura muito rica, artistas, cineastas, e essa gente do samba, as canções populares nas escolas, uma arte extraordinária. Portanto, é um país que tem muita hegemonia e possibilidade de defender seus estatutos históricos. Pergunta: E agora sofre. Nélida – Não gosto muito da noção de sofrimento, não acredito que seja necessariamente redentor. Acredito que


porque não tem essa vocação.

o sofrimento seja muitas vezes traumático, impede de pensar, de criar. Por isso aposto num futuro do Brasil que não merecerá o silêncio, virão grandes transformações, e espero que sejam benéficas, não totalitárias, nem de esquerda nem de direita. Pergunta: O país do futuro, e sempre será, como dizia Stefan Zweig. Nélida – Ele só disse que era o país do futuro… Mas o futuro está demorando muito! O futuro é abstrato, inaudito, só vale o presente que vamos vivendo, e tomara que não tenhamos que disfarçá-lo para que pareça de ouro, ou mais justo, mais poderoso, mas sim que venha graças à indústria, aos bancos, à extraordinária agricultura brasileira que hoje alimenta um quarto da humanidade… O mundo vai comer graças ao Brasil! É um país que não pode ser periférico

Pergunta: Esse seu otimismo está em um de seus últimos livros: “Falta-me vocação para ser triste”. Nélida – Tenho momentos tristes, porque senão estaria desconectada da realidade. Sou estudiosa da história, leio os séculos com um prazer imenso e sei qual é a história da humanidade. Uma história absolutamente desencontrada, que alterna tragédias, genocídios… A Europa é a Europa de milagre, sofreu invasões pelo Danúbio, os mongóis chegaram pela Hungria, todos os povos se deslocaram, cada um pôs sua história, sua gênese, seu sangue, sua língua. Muitas de nossas línguas vêm do latim, mas outras estão escritas a sangue, impostas mediante tanta gente assassinada, hecatombes históricas, invasões. Não se pode considerar que a Europa seja um território suave, agradável, deslumbrante. Não. Nasceu das lágrimas, como nós, matamos índios, fomos terríveis com os negros…

capazes de odiar um negro por sua pele. Mas somos racistas com os negros assim como com as mulheres, não suportamos quem é diferente, o vizinho. Esse “não posso respirar” é um hino do horror humano, somos capazes de tudo. E para quê? Para sobreviver ou para impor nossa vontade? Não matamos só por nosso pão e dos nossos filhos. Matamos por um espaço que tem de ser unicamente nosso. Pergunta: Seu pai a ensinou a dar flores e livros de presente. A esta altura da vida, que presente espera? Nélida – As flores e os livros do meu pai são a memória de meus ancestrais. O que realmente considero um presente, mais que estar viva, foi o esforço de entender por que estou na Terra e o esforço da tolerância. Isso é o que mais quero. E, evidentemente, outro presente que quero é continuar escrevendo.

Pergunta: A tolerância, que esforço difícil. Nélida – O Brasil vive um momento de rancor generalizado. Choro diante desses Pergunta: Como aponta esse sentimentos exacerbados. joelho de um homem que asfixia outro em Minneapolis. Nélida – É a prova de que os norte-americanos nos superaram em racismo. É terrível, como se ainda estivesse entre nós a Ku Klux Klan: somos

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POESIA

LUÍS LAÉRCIO GERÔNIMO PEREIRA INDIFERENÇA Não sei porque insistes comigo. Capricho ou outra coisa à toa, Pois dizes que o mundo no qual vivo, É de ares, como o do pássaro que voa. Em resposta eu te digo: ideia e materialismo a minha mente povoa. Quisera eu olvidar, de todo esse teu lamento, Porém, sou terra, água, fogo e ar, Eu sou os quatro elementos,

Que vivem a me atiçar, embora eu viva a lutar, Pois o pneuma é o meu contentamento. Essa é a indiferença, vivência do meu lado místico. Talvez com um pouco de paciência, Tu não me aches esquisito, Cada dia aumenta minha crença, E dessa oposição prevaleça, A subserviência, do corpo e da alma Ao espírito.

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POESIA

ELIANE DEBUS MANHÃ FRIA Cortante o vento que me bate à porta nesta manhã fria. Afugenta-me a alma, Sozinho-me Eu e minha angústia. O vento que resvala lá fora diz-me que algo está vivo, vivo, eternamente vivo: os vícios e as maldades. E eu e minha angústia, gasalhadas,

TODOS OS DIAS Fio de navalha rente à carne invisível, todos os dias, lanha a pele fina. Magoa. Machuca. Mortifica. Invisível, todos os dias, fio de navalha rente à carne

fugimos do vento do tempo, que se apresenta frio.

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ENSAIO

LAURO JUNKES CRUZ E SOUSA: DA VIDA OBSCURA AO TRIUNFO SUPREMO Cruz e Sousa, o mestre do simbolismo brasileiro, não é hoje apenas uma glória para seu estado natal. É alto patrimônio nacional e alvo da mais elevada consideração internacional. Infelizmente nós, seus conterrâneos, muitas vezes nos contentamos com o puro conhecimento do seu nome, com a suposta homenagem da denominação do Palácio Cruz e Sousa, com a exploração de seu prestígio no "Prêmio Cruz e Sousa" de Literatura. A melhor homenagem que podemos prestar-lhe é ler, apreciar e valorizar sua obra. Entretanto, a própria edição de sua Prosa Completa há anos vem-se resumindo em já esquecida promessa dos órgãos culturais do Estado. Cruz e Sousa foi um dos escritores que mais tenazmente lutou pelo seu ideal estético-literário. Foi um ser que viveu para a poesia. Corporificou sua existência em poemas. Sofreu a tortura estética. Como verdadeiro fanático da arte, consagrou

sua existência ao ansioso empenho pela realização poética. "Emparedado" por pobreza e preconceito racial, experimentou dramaticamente na própria carne a incompreensão, o desprezo e a oposição. Entretanto, não vacilou nunca e "entre raios, pedradas e metralhas ficou gemendo, mas ficou sonhando" . E deixou um legado do mais alto mérito literário. Sua glória é sua obra. E bem merece continuar agora, após o "Triunfo Supremo" , o seu " Caminho de Glória", tendo superado a

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"Vida Obscura" e confirmado sua condição de "O Assinalado". Se em vida lutou contra a pobreza, a miséria, a doença e o preconceito, tudo sacrificando pela sua criação literária, essa obra construída com o sacrifício da dedicação total e sob a angústia do aguilhão estético, nunca satisfeito e sempre a exigir mais, essa obra corporifica o que de mais admirável, sólido e denso pode criar o espírito humano, quando se obsessiona por uma causa enraizada em convicção profunda. João da Cruz e Sousa nasceu na cidade de Desterro, antiga denominação de Florianópolis, a 24 de novembro de 1861, filho de negros a serviço do Marechal Guilherme Xavier de Sousa, do qual o menino recebeu as melhores condições e estímulo para desenvolver bons estudos. Inteligente e dedicado, concluiu o curso secundário em 1876, tendo o renomado cientista Fritz Muller sido um dos seus professores. Em seguida, tentou o magistério


particular e logo depois empregou-se no comércio. Ligou-se a um grupo de jovens literatos, junto com os quais lutou posteriormente pela " Ideia Nova", ou seja, pela implantação das ideias e da estética realista em oposição ao desgastado Romantismo. Participavam do grupo: Virgílio Várzea, Santos Lostada, Araújo Figueiredo e Horácio de Carvalho. Aproximando do jornalismo, publicou seus primeiros escritos poéticos por 1879-80. Em 1881 tornou-se "ponto" de uma companhia teatral. De 1882 a 1885, novamente como "ponto", percorreu todo o país. Nessa época foi anunciado seu livro de poemas "Cambiantes", que não chegou a ser publicado, mas cujos poemas foram posteriormente

incorporados ao Livro Derradeiro. Em 1885, de volta a Desterro, assume a redação do jornal "O Moleque", dinamizando-o, mas sofrendo várias restrições e resistências, devido ao preconceito de cor. No mesmo ano publica, em conjunto com Virgílio Várzea, o livro " Tropos e Fantasias". De 1886 a 1887 é novamente "ponto", continuando em seguida no jornalismo, em Desterro. Em 1888 tentou o jornalismo no Rio de Janeiro, mas após oito terríveis meses retornou. Em 1890, no entanto, Virgílo Várzea, que já se encontrava bem colocado na Corte, animou-o com um convite e Cruz e Sousa seguiu, em dezembro, novamente para o Rio, onde passou a viver do trabalho em jornais. Logo no ano seguinte, é abalado pela morte de sua mãe, em Desterro. No Rio, tornou-se adepto da Escola Nova (Simbolismo), comungando as mesmas ideias e aspirações de Bernardino Lopes, Emiliano Perneta, Emilio de Menezes, Nestor Vítor, Gonzaga Duque, Oscar Rosas e outros, grupo que estabeleceu grandes polêmicas contra os "velhos" da vitoriosa tradição parnasiana. O ano de 1893 tornou-se marco histórico-literário, devido à publicação dos livros de Cruz

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e Sousa – "Missal" (prosa) e " Broqueis" (poesia), que deflagravam o Simbolismo no Brasil. Desde 1891, Cruz e Sousa conhecera a bela moça negra Gavita Rosa Gonçalves. Em maio de 1893 já estavam vivendo juntos e em novembro casaram, embora sem recursos, mas estando ela já no sexto mês de gravidez. Em dezembro, Cruz e Sousa obteve modesto emprego de arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil, emprego necessário para a subsistência, mas burocrática atividade martirizante para seu gênio livre e de altos voos poéticos. Em fevereiro de 1894 nasceu o primeiro filho. A pobreza atingia níveis dramáticos, que se refletiam em seus versos pessimistas. Sua luta pela superação da obscuridade e sua ânsia de glória literária não chegavam a realizar-se. Nestor Vítor, o mais achegado de seus amigos, carac-


terizou-o como verdadeiro fanático da arte, que tudo empenhou pelo ideal poético. Em 1895, Cruz e Sousa recebeu a visita de Alphonsus de Guimarães, que o procurava para melhor conhecer sua arte, sentindo-se atraído pelas mesmas tendências. Tornou-se posteriormente a grande alma irmã de Cruz e Sousa, os dois expoentes máximos no nosso Simbolismo. Em outubro daquele ano, nasceu o segundo filho e Gavita ainda o amamentava quando, em março de 1896, chegou à demência, que perdurou por seis terríveis meses. As tribulações do poeta eram superiores às suas forças. Sobreveio, ainda, em agosto do mesmo ano, a morte do pai do poeta. Em 1897 nasceu o terceiro filho e o poeta sentiu-se tuberculoso. Viu dois filhos morrerem, enquanto ele lutava desespe-

radamente contra a doença e a pobreza. Em 8989, logo no início, não podendo mais trabalhar, foi aconselhado pelo médico a procurar melhores ares. Transportado para clima considerado mais saudável, em Sítio-MG, não resistiu e veio a falecer a 19 de março de 1898. Gavita, que estava grávida, deu à luz um quarto filho, João da Cruz e Sousa Jr. O terceiro filho também faleceu logo em seguida e Gavita igualmente o seguiu em 1901. O filho póstumo do poeta sobreviveu até 1915, quando também morreu, mas deixando grávida D. Francelina, da qual nasceu posteriormente Sílvio Cruz e Sousa, neto do desditoso poeta, que conservou sua descendência, residindo em Moça Bonita-RJ. Todo o drama existencial de Cruz e Sousa foi magistralmente narrado por Raimundo Magalhães Jr. no livro "Poesia e Vida de Cruz e Sousa", obra de leitura tão fascinante quanto instrutiva. O próprio poeta deixou ressoar sua vivência dramática através de inúmeros poemas, um dos quais é "Vida Obscura". Após a morte, e somente então, a glória de Cruz e Sousa foi crescendo sempre mais. Figura insuperável do Simbolismo Brasileiro, e seu

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grande mestre, tornou-se das mais altas expressões da poesia universal, cada vez mais descoberto e estudado no estrangeiro. Entre nós, pouco reconhecido em vida, não obstante sua angustiante busca de realização literária, desprezado mesmo e combatido, seu reconhecimento foi lento e gradativo. Mas sua consagração já se manifesta de forma inconfundível pela ala espiritualista do Modernismo, com Tasso da Silveira, Cecília Meireles, Jorge de Lima e outros. E continua inabalável, sempre em linha ascendente. Cruz e Sousa formou seu espírito dentro do movimento da "Ideia Nova", que lutou pela implantação do pensamento realista e naturalista em Santa Catarina.


Mais tarde, quando residia e militava no Rio de Janeiro, assimilou as novas ideias simbolistas. Sua produção inicial é claramente parnasiana, pelo rigor da métrica e meticulosidade da rima. E seu débito com o Parnasianismo acompanhou-o sempre, considerando-se sobretudo o rigor formalista de seus sonetos e um certo materialismo pessimista implícito em suas ideias. Mas na fase simbolista enriqueceu sua poética com um misticismo pagão e com vagas aspirações espiritualistas, bem como, no plano formal, com a rica musicalidade, a potência verbal, a opulência de estilo e a capacidade de criar imagens vibrantes e de sensível beleza. Ente os estudiosos de sua obra, sobretudo Abelardo F. Montenegro a interpretou como uma válvula de escape para suas tensões interiores, como compensação de insatisfações. Aliás, Montenegro, em seu alentado estudo, também

é o autor que mais extenso e pormenorizado paralelo traça entre os dois mestres do Simbolismo Brasileiro: Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimarães. Realmente a trajetória humana e poética do Poeta Negro está marcada por uma densa angústia, por constante senso trágico, mas evidenciando ao mesmo tempo sua personalidade sofrida, sua entrega total à realização artística, sua firme persistência e perseverança na busca do ideal. "Emparedado", anseia pela libertação na transcendência e sublimação, por transpor-se para um misticismo cósmico. Revela-se, assim, constante em sua poesia e consciência de posições antiestéticas: por um lado a sensação amarga e pessimista da existência, a angustia trágica, a consciência da raça sofredora, o vivo sentido da dor, como muito bem retrata em "Vida Obscura"; por outro lado, a busca da libertação, de reconhecimento e igualdade,

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a ânsia do infinito, o anseio pela ascensão ao mundo das Essências, a aspiração ao sonho, à diluição no vago, indefinido e nebuloso. Daí sua poesia revestir-se de dramaticidade e perenidade, realidade e sonho, carne e espírito, materialidade concreta e diluição no abstrato. Um dos seus sonetos magistrais é "Cárcere das almas", que bem exemplifica esses traços. Roger Bastide analisou muito bem as implicações simbolistas da poesia de Cruz e Sousa, quando colocou a gênese do Simbolismo no misticismo e mostrou a luta constante, na poesia do Cisne Negro, por desprender-se da natureza concreta, da prisão corporal, para ascender às esferas celestes, ao mundo das Essências, à transcendência – num misto de Platonismo e Cristianismo. Afirmando que o Simbolismo de Cruz e Sousa "é uma experiência sofrida e vivida do símbolo no interior de uma busca espiritual", Bastide confere ao autor de "Últimos Sonetos" uma "situação à parte na grande Tríade harmoniosa: Mallarmé, Stephan George e Cruz e Sousa." Essa afirmação, partida de alguém nascido na França, pátria do Simbolismo, é indiscutivelmente honrosa, ao menos "pós-mortem", para nosso inditoso poeta.


POESIA

MAURA SOARES ANDANÇAS DA DOR Não compartilho com ninguém as minhas dores Ninguém precisa saber de mim, do que sou, do que fui, dos meus amores. As dores são minhas, de mais ninguém Levarei as mágoas embora, daqui para o Além. São dores da alma, eu me magoei sozinha Nas andanças dos tempos fui até avozinha. Parei em algum lugar do passado Em que cantava pelos campos em flor. A dor veio com o tempo em outras eras O meu mundo ficou triste, de repente Amei muitos amores nas existências diversas. Vivi muitos sonhos, armei fronteiras que ficaram dispersas.

Não sei qual a dor maior que mais afligiu meu peito. Só, imóvel no leito, tento lembrar e não consigo Foram tantas marcas, tantas cicatrizes d´alma Que me deixaram prostrada, mas fria e calma. Não compartilho nomes nem lugares Pois em outras eras, e até em lupanares Dei meu amor a quem não merecia. Agora aqui estou a cismar com minhas entranhas Qual a dor maior em minha vida. A dor maior, podem achar estranho Mas a dor maior foi, sem dúvida, a dor da despedida. (2005)

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PROSA POÉTICA

ELOAH WESTPHALEN NASCHENWENG NA NOITE AMENA DE VERÃO, SONHO O luar enche o mar...

emoção, entre o desejo e a espera.

Na noite amena de verão, eu sonho.

Exilada do mundo aquieto-me diante da

Vejo, maravilhada, a beleza passar pela imensidão do universo, impelida pelo luar encantado, mergulhado no mar sedento, desafiando as ondas na sua fosforescência. Sopra morno e lento o vento e, na bruma, a lua deusa da noite espia lívida e pálida no céu noturno marchetado de estrelas. Andarilhas vagantes em lugar incerto, as estrelas moribundas se refugiam impulsionadas pela luz no martelar das vagas, recriando matizes e brilhos. O meu olhar amarra-se ao infinito e à cálida noite de verão, como se o tempo fosse indivisível e eterno. A beleza esmaga-me e vence-me entre as asas da luz e ondula pelo meu rosto em graça fluente e benfazeja. Pés descalços na água rasa, solto os pensamentos que correm prenhes de melancolia, sustentados pela viva

magia que atravessa a mística natureza para depositar na alma o impulso vicejante do sonho, que clama e livre assoma. A vida entregue à beleza, passeia absoluta na noite, guardando na sua essência os seus segredos. Sei que é de sonhos que o coração se alimenta e abre os recessos da alma, para torná-lo mágico e delicado como uma canção de amor. Por um instante, tal qual Titânia, a rainha das fadas, na peça de Shakespeare “Sonhos de uma Noite de Verão”, em pleno devaneio, crio uma nova identidade penetrando num sonho povoado por elfos, fadas e outros seres encantados para beber a poção da flor mágica do amor e fazer do sentimento obscuro - esplendor. Irrequieta, em muda vigília, arrasto-me na distorcida linha do tempo. A geografia dos sentimentos segue os mesmos caminhos e os vestígios da fantasiosa beleza que

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o amor encarregou-se de transformar, mas não de apagar. Então te vejo nas minhas vontades, no meu clamor, no meu sonho revestido de magia e mesmo que tão diferente - na sua delicadeza e na sua efemeridade-, agarro-me ao sonho e dou luz ao tempo para dourar a fantasia. Na grandeza do sonho, vou deixando a

ilusão alcançar o chão sólido nas cores vívidas sopradas pelo vento em acalanto. Abro-me para a vida – o espírito soergue-se. Um novo mundo crio. Transfigurada e muda, toco o infinito.

Visite o Portal PROSA, POESIA & CIA. do Grupo Literário A ILHA, na Internet, http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br • 28 •


RESENHA

A POESIA E O TEMPO Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, jornalista, professor, editor e revisor – Cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras. Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, que completou 40 anos em 2020. http://www. prosapoesiaecia.xpg.com. br / Http://luizcarlosamorim. blogspot.com.br O livro de poemas OLHOS DO TEMPO, de Selma Franzoi, não é simplesmente um livro de poemas. Na verdade, é um tributo à saudade. É a sensibilidade, a alma da poeta (poetisa eu sei!) falando através da poesia, sua melhor linguagem. Versos que nos inundam com a verdadeira essência da poesia, pois poesiar é isso: acertar diretamente o coração do leitor, a sua alma, identificar a nossa emoção, o nosso sentimento com ele, levar o leitor a recriar o que estamos sentindo, mesmo que o que ele recrie seja diferente do que sentimos quando esteriorizamos o nosso poema. E aí reside a riqueza da poesia: a pluralidade do sentir. O leitor nem sempre vai recriar o poema como

nós, poetas, o criamos. Por isso, a cada nova leitura de um mesmo poema, podemos estar recriando um novo sentimento, uma nova emoção. Saudade é um sentimento comum a todos nós. E Selma saber dizer como ninguém a saudade que lhe transborda o coração e que dá vida a sua poesia. O lirismo e a sensibilidade de Selma transcendem a sua poesia e nos fazem viver a sua emoção, a dor da solidão, da separação, da falta de alguém tão querido. Aguça a vontade de guardar lembranças e lugares por onde passou, de renascer sonhos, amores e amizades. De viver, na verdade, de reviver olhares e pedaços de tempo. A família é seu moto perpétuo, assim como o amor, razões para seguir sempre em frente. Seus valores, seus afetos, são seu tudo. A poesia de Selma, que é feita da carinho e de saudade, é também a adoração ao seu pai: “Pai, / Teus olhos tão azuis / Lembrando o céu e o mar / Fala de sonhos, caminhos,

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viagens. / Fala de segredos do verbo amar… / Lembrarei tuas palavras com emoção / Tuas rimas, teus contos, cantos e encantos / E o som da tua gaitinha, entoando uma triste canção. / Meu pai, lembrança eternizada em meu coração.” Perder o pai foi como perder o rumo, como perder tudo. E a poesia foi a sua aliada mais fiel para guardar as lembranças, para não perder de vista o passado: “Perder / O ritmo, a rima, a melodia da tua palavra / Tua sintonia entre o tempo e a lembrança. / Lembranças do coração, memória da alma, / Memórias do tempo, alma do tempo…” Mas a poesia é também a sua guerreira, sua mãe, a pioneira mais querida, o seu porto seguro: “Canto os novos sonhos, / Novos tempos, novos ideais. / Heroína, instrutora, / Professora, desbravadora, / Meio médica, meio enfermeira, / Toda guerreira. Pioneira.” E a guerreira é mãe e ela é doce, é morena, sua referência: “Mãe, morena mãe, / Teu doce olhar / Parece


a noite / Pedindo pra lua brilhar.” Mas quem brilha é ela, não é, poeta? OLHOS DO TEMPO é poesia sensível na ponta dos dedos de Selma e no pulsar do coração. E a poeta sabe cantar como ninguém as estações, quaisquer das quatro, os seus dezembros, a sua cidade que fica no seu querido vale neotrentino, que representa as suas origens – Itália, as viagens para o país do coração, os mares

da Itália, a natureza que sempre foi sua irmã gêmea, a sua casa, os seus amores. E a poesia. Como neste poema: “E depois da poesia / quero banhar minh´alma em sais de esperança / florir meu sentimento-criança ainda cheirando a jasmim... / Liberar um sonho adormecido / o sonho de um amor antigo, quase esquecido / prisioneiro do tempo e de minhas fantasias / prisio-

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neiro da minha poesia… / Quero cantar minha última canção quase esquecida / dedicada a tantos que, como eu, / buscam na noite, no canto e na poesia / refúgio pra sua paz…” Os versos de Selma são para se ler com vagar, para se absorver toda a poesia que há neles. E para se ler mais de uma vez, pois cada vez haverão novas descobertas, novas emoções, novas nuances da sua poesia.


GRANDES POETAS BRASILEIROS

MÁRIO QUINTANA MÃE Mãe... São três letras apenas As desse nome bendito: Também o Céu tem três letras... E nelas cabe o infinito. Para louvar nossa mãe, Todo o bem que se disse Nunca há de ser tão grande Como o bem que ela nos quer... Palavra tão pequenina, Bem sabem os lábios meus Que és do tamanho do Céu E apenas menor que Deus!

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CRÔNICA

MARIA TERESA FREIRE POR ONDE ANDAS? Pelos caminhos da vida? Por entre montanhas com brisa suave... Em meio ao mar vigoroso com sol brilhante... Na areia quente, fina e amarelada... Na neve gelada, macia e branca... Por entre árvores frondosas, verdes, altas... Circundada por flores exoticamente coloridas... Por estrada asfaltada... Por estrada de terra... Subindo ladeiras íngremes... descendo-as... Onde estás? Por onde andas? Em plenas nuvens? Longe... muito longe. Perto... muito perto. Por onde andas? Queres estar ocioso, ao sabor do vento, sem nenhuma atividade, nem mental. Queres esquecer o burburinho urbano. Distanciar-te de qualquer movimento social. Preferes estar envolto pela tranquilidade, em meio ao abraço de quem amas. Deitar-te em uma rede e deixar-te embalar para adormecer e alcançar sonhos ternos. Queres

beber do néctar da vida que segue seu curso sem pressa, lânguida, sem nenhuma correria imposta por alguém, pelo trabalho, pela responsabilidade, pela culpa, pelo medo, pelo amor ou desamor, por você! Escolhes o alvoroço, a multidão, a ação que te tornas delirante pela dança, pela música, pelos sons dos motores dos carros e das motos, pela fala estranha, em tom alto, estridente, pela conversarada que se interpõe no teu diálogo, no teu momento

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de lazer. Aprecias o vai e vem frenético de outra urbanidade que não a sua, absorvendo as particularidades diferentes de onde vives, as individualidades que não são aquelas da comunidade em que habitas. Queres estar em local desconhecido, estranho, a explorar novas paragens, novos cenários. Queres viver, por pouco tempo, entre rostos cujas fisionomias te são surpreendentes, veementes, envolventes, contentes. Queres caminhar em ave-


nidas largas, iluminadas pelos neons do consumo, pelas vitrines luminosas que evidenciam o que podes e o que não podes adquirir. Queres entrar em loja sofisticada. Para escolheres o terno escuro com talhe perfeito dos ombros aos pés. Talvez um chapéu, sobretudo, camisa, gravata. Para contares uma bravata. Ou desejas pedir e experimentar o vestido preto, de corte sensual, ajustado ao teu corpo. Colares, brinco, pulseiras para adornar colo, orelhas e braços desnudos. E assim tu completas a vestimenta que te envolve. Queres apreciar a bolsa exótica, importada, que tu pensas te conferir o status de cidadã moderna, abonada, atualizada. Embarcaste em pequeno

barco para atravessar pequena parte do mar salgado e encontrar o local em que te quedas totalmente apartado dos privilégios da vida moderna, mas nos braços da natureza airosa, que te oferece um canto inexplorado, ignorado, desconhecido das ações depredadoras do ser humano. Neste canto, desfrutas do que tens à tua volta, sem questionares se estás correto ou errado. Sem questionares, simplesmente usufruis. Subistes a montanha misteriosa, que abriga no seu cume, o refúgio para tuas meditações, para tuas dúvidas, para tuas certezas errôneas, para teus conceitos de vida que não se aplicam à tua vivência e deformam o trajeto que tens definido. Lá te deixas

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ficar para refletir sobre teus erros e acertos. Sobre tuas escolhas. Sobre tuas projeções e teus planos. Sobre amores, desamores, amizades, decepções, sinceridades e falsidades. Viajas para campos livres, onde cavalos cavalgam altaneiros, céleres, como se fossem alados. És parte deste animal que te carrega com segurança para sentires o vento no rosto, a espalhar teus cabelos, a te fazer sentir liberta de qualquer outra sensação que não seja a soltura de seu próprio ser. No teu retorno, ao trotar suave do teu companheiro, sentes ao longe o aroma convidativo da comida caseira, cozida em fogão de lenha, que aquece a cozinha, o coração da cozinheira que prepara um manjar saboroso, apetitoso, memorável, inolvidável. Ao redor da mesa, volteias para ter servires de tudo que te atrai. Saboreias as comidas que agradam a vista, ao paladar. Queres experimentar comidas de gosto refinado servidas em pratos


e travessas de porcelana, bebidas suaves e fortes vertidas em copos e taças de cristal reluzente. Lês o cardápio, cujas iguarias estão apresentadas em idiomas que desconheces e não entendes. Optas por aquele que te é rotineiro, mas com certeza te será oferecido com acompanhamentos extravagantes e molhos incomuns. Sentado em cadeira de veludo, à mesa, coberta por toalha de linho bordada a mão, imaculadamente branca, em que descansam guardanapos vermelhos para as damas de lábios carmim, aguardas o petisco inusitado como uma experiência divertida a ser enfrentada. Queres provar a comida popular de sabor picante, que comes em pé, na calçada, onde transeuntes passam rapidamente, esbarrando em ti, mas

nem assim derrubando o quitute que levas a boca para matar a fome que grita no teu interior. Escolhes sanduiches, que não lhe atrasam os compromissos, mas condenam sua saúde. Comes no bandejão, que tem arroz e feijão, cozidos com antecipação, mas duvidosos na preparação. Escolheste a natureza suave, com campos de vegetação rasteira, salpicada de pontos coloridos, de formas diversas, com pétalas delicadas, caules finos que balançam ao vento e à tua passagem, as eternas flores. Deténs-te à beira do riacho que segue preguiçoso seu caminho, espelhando o céu, as nuvens, os raios, as tempestades. Sua calmaria apazigua os efeitos da natureza impetuosa. Buscas o vento cálido e a água fresca do mar

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que te aliviam o calor do sol abrasivo quando caminhas nas praias de areias brancas, amarelas, finas e grossas. Brincas nas ondas fortes, mas não bravias, que te refrescam o corpo e te recebem nas espumas fragorosas. Procuraste a aventura empolgante, entusiasmante que te agita o corpo todo e te faz vibrar, te eleva a adrenalina já acelerada. Pulas de penhascos, voas livre no céu claro e despido de nuvens. Mergulhas em águas profundas e confirmas os tesouros viventes do fundo do mar. Corres em máquinas poderosas, alcançando velocidades inatingíveis. Percorres distâncias em bicicleta, em barcos, a pé, correndo, para sentires o prazer do desafio dos teus próprios limites. Preferes um sofá confortável, uma poltrona jeitosa e assistes teus programas na tela com imagem, som e movimento. Abres um livro, escutas música, dedilhas t e u c o m p u t a d o r, t e u celular. Escolheste permanecer no aconchego do teu lar, porque assim te sentes protegido, relaxado e abrigado. Por onde andas?


POESIA

RITA QUEIROZ DESCONCERTOS Colho espinhos na travessia das horas Expurgando as ilusões que sangram À beira do caminho.

ARREBATAMENTOS Palavras pulsam Explodem no peito! Verto versos Pinto sonhos antes desfeitos!

Na despedida, as fantasias se liquefazem E o cata-ventos varre os retalhos Que se embrenham nas sendas do crepúsculo. Insanamente, escrevo e naufrago Abismada na poesia Que me salva!

Rita Queiroz é natural de Salvador-BA. Professora universitária. Escritora. Poeta. Autora de 5 livros de poemas para o público adulto e 5 livros para o público infantojuvenil. Organizadora de 9 coletâneas. Participações em mais de 100 antologias/coletâneas. Publicações em revistas literárias nacionais e internacionais. Integra os seguintes coletivos: “Confraria Poética Feminina”, “Mulherio das Letras”, “Confraria Ciranda Poetrix” e “Coletivo de autoras de literatura infantojuvenil da Bahia”; além de fazer parte das seguintes academias: AVAL, AILB, AIML e ACILBRAS.

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ARTIGO

OS ÚLTIMOS 10 ANOS NA LITERATURA BRASILEIRA

Definir o que de mais interessante foi produzido na literatura brasileira na última década é uma missão árdua. Afinal, é impossível ler toda a produção de um país ao longo de um período tão extenso e diverso como foram os últimos 10 anos no Brasil – para o bem e para o mal. Para fazer um mapeamento do que se produziu de mais marcante na ficção na última década no país, vinte pessoas – entre eles, professores, produtores culturais e críticos, que se dedicam à leitura e análise da produção contemporânea nacional. Eles foram convidados a produzir listas de acordo com suas preferências pessoais, sem necessariamente hierarquizar

os títulos selecionados. Foi evitado o termo “melhores”, justamente pela subjectividade da seleção proposta. Eles também não precisavam justificar suas escolhas, embora vários tenham optado por fazê-lo. Dez homens e dez mulheres de Minas Gerais e de outros estados brasileiros relacionaram dez livros de ficção, entre romances, contos e poesia publicados no país entre 2010 e 2020. Ficaram de fora reimpressões e reedições, além de todo o universo da não-ficção (ensaios, reportagens, biografias). O resultado é uma seleção regida pela diversidade. Foram 129 citações, de produções independentes a best sellers. Entre os cinco mais

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lembrados, três livros foram escritos por mulheres e três são de autores negros. A começar pelo campeão de citações, “Torto arado”, que entrou em 11 das 20 listas. “Surpreende pela força dos personagens e pela história”, afirmou Simone Pessoa, livreira da Livraria Ouvidor. O crítico literário José Castello comparou o romance do baiano Itamar Vieira Junior à obra de gigantes das letras do século 20. “Retoma a tradição – hoje recalcada, para não dizer renegada – dos grandes realistas brasileiros, como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Zé Lins do Rego”, destaca o autor da biografia de Vinicius de Moraes. Com o seu “O livro das semelhanças”, a poeta mineira Ana Martins Marques foi lembrada em oito listas. “A precariedade da palavra, a impossibilidade intrínseca dos nomes, é o principal tema desse livro de poemas extraordinário, em que ressurge o abismo intransponível entre as palavras e as coisas, as palavras e as imagens”, ressaltou Guiomar de Grammont, coordenadora geral do Fórum das Letras.


“Chama a atenção pelo modo como, nele, a qualidade de cada poema em si se amplifica e se articula na inteligente e sensível estruturação do livro como um todo”, completou a professora Andréa Soares Santos, do departamento de Linguagem e Tecnologia do Cefet-MG. Morta em 2017, Elvira Vigna não teve tempo de ver o destaque conferido ao seu “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, indicado por seis convidados. “Meu livro favorito da década. Uma obra-prima que, nas frases cortantes de Vigna, fica ainda melhor”, justificou o crítico Mateus Baldi. “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, emplacou em cinco listas. “Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira”, afirmou Etiene Martins, da livraria Bantu, especializada em obras de autores negros. “Marrom e amarelo”, de Paulo

Scott, também ganhou cinco menções. “Traz outro olhar para o debate, principalmente do que é ser preto em um país racista, embora de maioria negra. Livro extremamente necessário”, apontou o crítico pernambucano Ney Anderson, do blog “Angústia criadora”. Como toda produção artística, a literatura não passou incólume às inúmeras mudanças dos últimos 10 anos do país. Crises políticas e económicas profundas deixaram suas marcas no trabalho dos escritores, que não se furtaram a abordar temas como trabalho escravo, cotas, racismo, misoginia, machismo, crise climática e autoritarismo. A ascensão da autopublicação também se fez presente: quatro dos livros indicados nas listas foram bancados pelos próprios autores. Importante ressaltar, também, que as obras lembradas integram a última leva de produção ficcional antes da pandemia do novo coronavírus. Além de boa literatura,

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as obras selecionadas também servem como uma espécie de mapeamento subjetivo do país que deixamos para trás. Certamente, os milhares de óbitos, o isolamento e outras mudanças provocadas pela COVID-19 deixarão suas marcas na produção literária da década que começa sob o signo do desamparo e do luto. OS mais citados: ● “Torto arado”(2019), de Itamar Vieira Junior - 8 CITAÇÕES ● “O livro das semelhanças”(2015), de Ana Martins Marques - 6 CITAÇÕES ● “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” (2016), de Elvira Vigna - 5 CITAÇÕES ● “Marrom e amarelo”(2019), de Paulo Scott – ● “Olhos d’água”(2014), de Conceição Evaristo


POESIA

ANDRÉ GALVÃO CÉU AZUL Viro a página. E tudo muda, Adeus, segurança, Leve consigo as certezas A vida é tão sólida Quanto uma nuvem E se disfarça, Brincando de adivinhar inventando, Inebriante, insustentavelmente louca E imprevisível A vida é tão nuvem E vivemos pedindo chuva... O problema é quando Nos perdemos em tempestades E esquecemos das lições Que o sofrimento e a dor São capazes de nos infligir A vida é nuvem, Mas nós Temos medo do céu.

RENÚNCIA Às vezes a vontade que eu tenho é de renunciar ao mundo, às pessoas, mas não à vida Tudo parece tão certo e de repente todas as possibilidades somem na névoa E mais uma vez resta-me dividir espaço com a televisão, os livros, as músicas Estou cansado de tentar entender porque as pessoas não se importam com as coisas que deveriam ter valor Provavelmente o estranho da história sou eu.

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RESENHA

ENÉAS ATHANÁZIO A AÇÃO DE FARQUHAR EM SANTA CATARINA autor ingentes esforços e se fundamenta em E TORTUOSO bibliografia imensa, E m b o r a p u b l i c a d o como costuma acontecer em 1964 nos Estados c o m e n s a i o s b i o g r á U n i d o s , d e p o i s d e ficos americanos que mais de quatro décadas de marchas e contramarchas, saiu no Brasil, em tradução de Eliana Nogueira do Vale, o livro “Farquhar, o último titã”, de autoria do historiador e brasilianista avant la lettre norte-americano Charles Anderson Gauld (1911/1977). Trata-se, segundo a crítica, da mais longa e minuciosa biografia do empreendedor norte-a- esmiúçam o tema até mericano, nascido em o limite. Para chegar York, Percival Farquhar à s m ã o s d o s l e i t o r e s (1864/1953), cuja vida brasileiros o livro perestá estreitamente ligada correu longo e tortuoso ao Brasil em geral e ao caminho, merecedor de nosso Estado em par- explicações minuciosas ticular, onde sua ação da editora e da tradutora. teve sérias conseqüên- Publicado pela Editora cias, até hoje sentidas de Cultura (S. Paulo – e m a l g u m a s r e g i õ e s . 2006), o livro contém O volume tem mais de interessantes fotografias 500 páginas, custou ao e vários anexos que o

CAMINHO LONGO

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atualizam e trazem novas informações sobre fatos posteriores, além de colocar um ponto final em algumas dúvidas existentes. Ainda que o autor não veja com simpatia nosso País, antes pelo contrário, é incrível que um livro dessa importância para nossa história só agora seja acessível ao pesquisador nacional.

VISÃO E CORAGEM Percival Farquhar foi um empreendedor de acurada visão futura e invulgar coragem. Depois de realizações em Cuba e na Guatemala, voltou-se para a América do Sul e o Brasil, ponto de partida para o império que sonhou edificar, conhecido como Sindicato Farquhar. Seus negócios incluíam portos, como os de Belém e de Rio Grande, exploração de minérios e madeira,


de Farquhar, com o consentimento deste, projeto que não se concretizou em virtude da proibição da censura.

TRILHOS E SERRARIAS

frigoríficos, gado, colonização, terras, energia elétrica, carvão e outros, avultando seu interesse pelas ferrovias, planejando implantar uma rede transcontinental de trilhos que cobririam o Brasil, o Paraguai, a Bolívia, o Uruguai, a Argentina e o Chile. Sem dúvida, um empreendimento para mais de uma vida, ainda que ele tivesse vivido até os 89 anos. Encarado por muitos brasileiros como um aventureiro, Farquhar encontrou renhidos adversários, em especial entre os nacionalistas, como Monteiro Lobato, que o denunciou em carta ao então presidente Getúlio Vargas. É curioso notar que mais tarde o criador do Sítio do Picapau Amarelo deu início a uma biografia

Entre as realizações de Farquhar no ramo dos transportes, avultam a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a lendária “ferrovia do diabo”, ligando Porto Velho a Guajará-Mirim (RO), visando desviar as violentas corredeiras daquele rio e ligando por terra a Bolívia ao Atlântico. A outra foi a construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, interligando todo o sul do Brasil e cortando o Vale do Rio do Peixe, entre Porto

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União, em Santa Catarina, e Marcelino Ramos (RS). Sobre o rio Iguaçu, em Porto União, foi construída uma ponte com 427m de extensão, a maior do País, na época, ainda hoje existente. Ta m b é m c o n s t r u i u o ramal de São Francisco do Sul e adquiriu a Estrada de Ferro Teresa Cristina, ambas em nosso território. Com o término do trecho Porto União-Marcelino, deu início à serragem de madeiras (araucárias e madeiras de lei) na serraria construída em Calmon através da afiliada “Southern Brazil Lumber & Colonization Corporation”, de sua propriedade. A derrubada das matas, inclusive das erveiras (erva-mate), e a expulsão dos pos-


seiros contribuíram para fomentar a violenta Guerra do Contestado (1912/1916), fatos que são reconhecidos pelo biógrafo. Não parece, porém, que Farquhar tenha dado maior importância a esses acontecimentos e tudo indica que jamais esteve em Calmon, embora se referisse “à minha Lumber.” Existe aí, parece-me, pequeno engano do autor ao dizer que Calmon era a antiga São Roque, quando, na verdade, esta localidade fica mais ao norte e Calmon se chamava antes Osman Medeiros. O empreendedor investiu grandes capitais sacados em bancos europeus, americanos e canadenses, razão pela qual – acredito – seu sindicato era às vezes designado como

“polvo canadense.” Era a “dança dos milhões da Brazil Railway, que faziam de Farquhar a figura econômica mais poderosa do Brasil” – afirma o autor. Tanto a serraria como a estação de Calmon seriam queimadas mais tarde pelos revoltosos. Em território catarinense o empreendedor criou várias colônias, à margem da ferrovia, entre elas Legru, Rio das Antas e Nova Galícia. Esta última chegou a receber a visita do ex-presidente Theodore Roosevelt, em 1913. A grande serraria do grupo, no entanto, estava em Três Barras, com instalações modernas e maquinário poderoso que dela fizeram a maior indústria do gênero em toda a América do Sul.

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A Lumber foi fundada em 1908/1909, com base no Decreto 7426, de 3 de junho deste ano, mais tarde alterado. No ano seguinte se concluiria a primeira serraria, em Calmon, e os trilhos da ferrovia chegariam ao rio Uruguai, divisa com o Rio Grande do Sul, em cuja margem oposta fica Marcelino Ramos. Neste ano Miguel Calmon du Pin e Almeida, que deu nome à estação, já havia deixado o Ministério da Viação, de forma que por ocasião da conclusão da estrada não era mais ministro de Afonso Pena.

O GRANDE DESAFIO Farquhar considerava a construção do trecho catarinense da ferrovia um grande desafio. Em direção ao porto de São Francisco havia a Serra do Mar a vencer. O Vale do Rio do Peixe, por sua vez, é irregular, com serras íngremes, exigindo técnicas especiais de construção, uma vez que seriam usadas locomotivas leves. Suas inúmeras curvas, túneis e obras de arte levaram alguns críticos a considerar a ferrovia inviável


desde a inauguração, demorando e encarecendo o transporte das mercadorias. Por outro lado, o fato de usar lenha como combustível contribuiu para o rápido desmatamento nativo da região. Mas, para compensar, o clima da região era de boa qualidade, as terras férteis e quase desabitadas. O empreendedor, porém, não contava com a decidida oposição dos posseiros.

Curitiba. “Custou caro aos cofres da Brazil Railway subornar tantos brasileiros para que agissem em benefício do Brasil” – escreveu Olivo Gomes, entusiasta das iniciativas do norte-americano. Nem mesmo Miguel Calmon e Paulo de Frontin ficaram isentos das suspeitas de suborno. “Mas os amigos de Far-

OS ENTRAVES O autor do livro, às vezes afinado com o biografado, não poupa o País. O atraso, a politicalha, a corrupção, a burocracia, o preconceito contra os negros e os estrangeiros – tudo encarecia sobremaneira qualquer realização. Exasperava-se ao verificar que os imigrantes se amoldavam aos usos locais, absorvendo os hábitos que considerava maus, “acaboclando-se.” Mas ele vislumbrava para Santa Catarina e o Paraná um futuro brilhante na federação, ainda que a corrupção também funcionasse em Florianópolis e

quhar sentiram que os dois políticos (acima referidos) estavam mais interessados em propina do que em beneficiar o Brasil” – afirmou Gauld. Segundo ele, o austero presidente Afonso Pena sofreu um trauma moral que o levou à morte precoce, aos 60 anos, quando descobriu o lodaçal que havia no Ministério da

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Viação.

O IMPÉRIO RUIU O império de Percival Farquhar ruiu. Depois de serrarem milhões de árvores, suas serrarias, afiliadas e sucessoras desapareceram sem deixar vestígio e a riqueza produzida escoou pelos vãos dos dedos para outras regiões. Entregue ao descaso e à corrupção, o trecho da ferrovia entre Porto União e Marcelino Ramos acabou desativado e hoje se transformou em sucata. A região ficou empobrecida e jamais se refez por completo. Os ramais remanescentes funcionam em condições precárias, mal conservados e carecendo de investimentos urgentes para que não tenham idêntico destino. Em suma: nada ou bem pouco restou dos “milhões de Farquhar” em terras catarinenses. São algumas observações a respeito de um livro às vezes amargo mas que precisa ser conhecido pelos catarinenses em geral. Querendo ou não, Percival Farquhar é personagem de nossa história.


GRANDES ESCRITORES BRASILEIROS

MACHADO DE ASSIS MACHADO DE ASSIS, POETA

Certamente você nunca (ou pouco) ouviu falar sobre essa faceta do maior escritor de nossa literatura brasileira, não é mesmo? Quando pensamos em Machado de Assis, imediatamente associamos seu nome aos clássicos “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Dom Cas-

murro”, “A mão e a luva”, entre outros romances que são leitura obrigatória para os amantes de nossas letras. Machado também foi contista incomparável, é dele os clássicos “Missa do galo”, “A cartomante”, “Teoria do Medalhão”, “O alienista”, entre outras pérolas que apenas confirmam sua genialidade. Você pode até não saber, mas Machado também escreveu versos. É verdade que o poeta não chega aos pés do prosador, mas a poesia de Machado de Assis existe e merece sua atenção. Como poeta, publicou os livros Crisálidas, de 1864, Falenas, de 1870, Americanas, de 1875, e Poesias completas, de 1901, todas em domínio público, portanto, conhecê-las depende

apenas de seu interesse. A produção poética de Machado de Assis ainda carece de leitores e deve sim ser redescoberta, afinal de contas, trata-se do fenomenal “Bruxo do Cosme Velho”, e nada do que ele escreveu deve ser negligenciado. Para você conhecer o lado poeta do maior escritor da literatura brasileira, o Mundo Educação selecionou cinco poemas de Machado de Assis para você conhecer e apreciar Está certo que ele não ficou famoso graças à sua poesia, visto que era exímio contista e romancista e a esses gêneros literários dedicou sua escrita. Machado não era um escritor qualquer, era e continua sendo um dos maiores nomes da Literatura universal.

A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS Pensa em ti mesma, acharás Melhor poesia, Viveza, graça, alegria, Doçura e paz. Se já dei flores um dia, Quando rapaz,

As que ora dou têm assaz Melancolia. Não pare agora... Tem mais depois da publicidade; Uma só das horas tuas Valem um mês

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Das almas já ressequidas. Os sóis e as luas Creio bem que Deus os fez Para outras vidas.


CAROLINA Querida, ao pé do leito derradeiro Em que descansas dessa longa vida, Aqui venho e virei, pobre querida, Trazer-te o coração do companheiro. Pulsa-lhe aquele

afeto verdadeiro Que, a despeito de toda a humana lida, Fez a nossa existência apetecida E num recanto pôs o mundo inteiro. Trago-te flores - restos arrancados Da terra que nos viu

passar unidos E ora mortos nos deixa e separados. Que eu, se tenho nos olhos malferidos Pensamentos de vida formulados, São pensamentos idos e vividos.

NO ALTO O poeta chegara ao alto da montanha, E quando ia a descer a vertente do oeste, Viu uma cousa estranha, Uma figura má. Então, volvendo o olhar

ao subtil, ao celeste, Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, Num tom medroso e agreste Pergunta o que será. Como se perde no ar um som festivo e doce,

Ou bem como se fosse Um pensamento vão, Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. Para descer a encosta O outro lhe deu a mão.

CÍRCULO VICIOSO Bailando no ar, gemia inquieto vagalume: "Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!" Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: "Pudesse eu copiar-te o transparente lume,

Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela" Mas a lua, fitando o sol com azedume: "Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela Claridade imortal, que toda a luz resume"!

Mas o sol, inclinando a rútila capela: Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta luz e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vagalume?"...

LIVROS E FLORES Machado de Assis Teus olhos são meus livros. Que livro há aí melhor, Em que melhor se leia A página do amor?

Flores me são teus lábios. Onde há mais bela flor, Em que melhor se beba O bálsamo do amor?

Machado de Assis transitou com maestria por diversos gêneros literários, entre eles a poesia

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ARTIGO

SANDRA CARLA NOBERTO A LITERATURA E SUA IMPORTÂNCIA PARA TODOS

Muitos ainda se questionam sobre qual a importância da literatura ou o que é a literatura. Estes questionamentos são plausíveis, pois numa sociedade onde há poucos leitores e uma grande carência educacional, não se pode esperar que se tenha uma compreensão mais abrangente sobre o tema. A resposta mais recorrente e também a mesma que é apresentada nos livros didáticos é que “a literatura é a arte da palavra”. Este conceito diz respeito ao trabalho

com a linguagem pelo artista literário (escritor, jornalista, etc), criando certo efeito estético na obra literária. Porém, essa compreensão de 'arte da palavra' pode ser incompreendida pelos alunos, que talvez a concebam complexa, por isso faz-se necessária uma

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apresentação mais 'cautelosa', por assim dizer, aos leitores em formação. Ao saber também, que antes de qualquer conceito sobre o que seria literatura, o aluno deve ser apresentado ao texto literário de uma forma prazerosa, sem maiores pressões. Depois de haver certa sintonia entre leitor e texto literário, é que se pode discutir sobre esta ou aquela denominação literária. Além disso, esta compreensão é adquirida através da leitura, que permite a autonomia social do indivíduo, estimula seus conhecimentos e ajuda a refletir sobre seu pensamento a respeito do mundo e de si mesmo. Desta forma, a literatura deve ser compreendida como uma necessidade no nosso cotidiano, pois sua expressividade artística é o meio que conseguimos de demonstrar nossos


desejos e ideologias, mesmo que seja recriando nossa realidade e, neste sentido, a literatura torna-se então a arte da palavra. Por sua vez, a realidade social, o comportamento e a história de cada época pode servir, muitas vezes, de inspiração para a expressão artística e contribuir à interpretação da obra literária. Nesta perspectiva, a literatura é de grande importância para a sociedade. Sua leitura é imprescindível, pois além de ser prazerosa, contribui para o enriquecimento intelectual e cultural de cada l e i t o r, d e s e n v o l v e n d o seu senso crítico e despertando-o para novas experiências. O texto literário provoca um certo encantamento por parte de quem lê, proporciona diversão, conhecimento de mundo, sensibilidade

e reflexão sobre a realidade. Esse encantamento é o reflexo dos desejos e anseios expressos como forma de demonstração dos sentimentos humanos. No âmbito escolar, a literatura merece espec i a l a t e n ç ã o . Te n d o em vista o papel social que possui a escola e sua influência em cada cidadão, é importante que a literatura, como fonte de conhecimento e de expressividade humana, tenha sua ascensão na sala de aula, com o intuito de despertar o gosto pela leitura. No entanto, há uma grande quantidade de jovens pouco interessados pela literatura. Isto ocorre devido à falta de estímulos e incentivo à leitura, bem como outras carências, em especial as condições de ensino e projetos político-pedagógicos que não valorizam a

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literatura na sala de aula. Visto que a literatura ajuda ao homem a entender seus sentimentos e proporciona a expressividade pela arte, nota-se desta forma, que se é algo proveitoso e de caráter educativo, deve ser contemplado na escola e em outros espaços sociais que proporcionam educação e cultura. O que é necessário são métodos inovadores, aulas mais atrativas e menos mecânicas, que aproximem o aluno da literatura e cative-o a esta vivência da arte, no intuito de valorizar seu desenvolvimento intelectual e sensibilizá-lo diante de obras literárias. É preciso que o professor aproxime a literatura à realidade desses jovens. É importante ressaltar também que a literatura não está presente apenas em livros: se aliada às suas adaptações para outros meios de expressar


a arte e a imaginação humana, também pode permitir o despertar e o gosto pela literatura. A música, a telenovela o cinema e o teatro são os maiores exemplos da literatura além dos livros: a canção Fanatismo, de Raimundo Fagner, que é uma adaptação do poema de Florbela Espanca, a telenovela Gabriela Cravo e Canela, romance do escritor baiano Jorge Amado, os filmes Dom (da obra Dom Casmurro) e Memórias Póstumas de Brás Cubas, que são adaptações dos romances de Machado de Assis e a peça Sarapalha, adaptação de um conto do escritor regionalista Guimarães Rosa, são alguns exemplos de adaptações literárias. Estas formas

de arte, se trabalhadas junto à obra literária podem despertar o gosto dos alunos pela literatura, desde que o livro seja lido, pois, sua interpretação é primordial, é a recriação da obra segundo cada um. Outro exemplo importante da literatura na sociedade é através da internet, pois com advento desta ferramenta tecnológica a informação se tornou mais prática e rápida. Além disso, nas redes sociais o que mais se encontra hoje são textos literários, que servem para demonstrar a expressividade do internauta, sobre assuntos como política, sociedade, cotidiano. Isto também pode ser abordado em sala de aula, pois são exemplos

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próximos da realidade social dos alunos, que podem estimular a leitura, demonstrando que a literatura está presente em várias partes do nosso dia a dia, não apenas na escola, como atividade obrigatória. Assim, pode-se perceber que leitura é um dos meios mais eficientes de formar cidadãos, de adquirir conhecimento e cultura. E a literatura é uma das mais belas formas da expressividade humana. Sua função social permite o gosto pelas artes, cultura e conhecimento de si mesmo, pois tem o poder de expressar os sentimentos mais especiais do homem, merecendo, desta forma, a importância e os valores sociais enquanto manifestação artística.


GRANDES POETAS BRASILEIROS

CORA CORALINA FESTA Faz da tua casa uma festa! Ouve música, canta, dança... Faz da tua casa um templo! Reza, ora, medita, pede, agradece... Faz da tua casa uma escola! Lê, escreve, desenha, pinta, estuda, aprende, ensina... Faz da tua casa uma loja!

Limpa, arruma, organiza, decora, muda de lugar, separa para doar... Faz da tua casa um restaurante! Cozinha, prova, cria, cultiva, planta... Enfim... Faz da tua casa Um local criativo de amor.

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CONTO

LUIZ CARLOS AMORIM PEDAÇOS Segunda-feira. Terceira aula, psicologia, curso superior. Turma grande, muitos jovens, alguns mais adultos. Dona Maria, a professora, meia-idade, uma pessoa simpática e amiga de todos. Ao final da aula, quando dona Maria empilhava os livros para sair, um dos alunos, talvez o mais velho da turma, adianta-se e lhe oferece uma rosa. Aquela segunda-feira era o dia seguinte do Dia das Mães e Roberto frisou, com um

sorriso: - Pelo Dia das Mães... Dona Maria, que já tinha tomado a rosa das mãos de Roberto, ao ouvir o motivo pela qual ele a oferecera, desmanchou o sorriso e deixou cair a rosa no chão. O sorriso de Roberto também sumiu. Ficou muito surpreso com a reação da professora, mas não esboçou qualquer gesto, não disse nada. Os olhos tristes e estupefatos olhavam para a professora, desciam até a

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rosa, no chão, e voltavam ao rosto dela. Ela baixou os olhos e não os levantou. Deu as costas a Roberto e ficou silenciosa, imóvel. Duas lágrimas apontaram nos olhos de Roberto. Em meio ao silêncio da sala, ele deu meia-volta e saiu. Dona Maria voltou-se, logo em seguida. Olhou para a rosa, apanhou-a do chão e ficou a fitá-la. Dois fios de lágrimas brilhavam também em seu rosto...


POESIA

MARTA XAVIER DE SEMENTES SORRISOS, NASCEM ETERNAS SAUDADES

SOL SECA E O TEMPO ÁGUA O sol fogoso embebeu-se d’água daquela viçosa vegetação. As folhas grunhiram em lamento, apoiadas ao fio de esperança sua plena sustentação. As plantas louvaram com o choro seco, e, para alívio dessa tristeza, uma obra divina se confirmou, no orvalho que encharcou a plantação.

Saudade lembra sal, Tempero da existência, Guardado no cofre d'alma, Falsamente esquecido. Gatilho desconhecido, Trancada com segredo, Aflora, de quando em quando, Em vapores de emoções. Saudade, tão pessoal, tão sua, Apura o sabor da existência. A outros pode não servir, O que aos olhos te fez sorrir.

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ENSAIO

URDA ALICE KLUEGER A DESTERRITORIALIZAÇÃO E A PERDA DE SENTIDO DOS EXCLUÍDOS A RETERRITORIALIZAÇÃO A PARTIR DAS CIDADES – 2ª. PARTE Urda Alice Klueger admiram ou odeiam, por ela – Palhoça – SC são intimidados, e, às vezes, (Trabalho apresentado a ela tentam desafiar (Rodrià disciplina de gues, 2001). Multiterritorilidade, O ser humano se comporta modernidade-mundo e vínculos de acordo com suas crenças, territoriais, ministrada valores, significados, modos pelo prof. dr. Álvaro Luiz de pensar e de agir, conHeidrich, do Programa de Pós-graduação em Geografia forme o seu convívio com (doutorado), da Universidade a família, com o lugar em Federal do Paraná.) que nasce e cresce, com o mundo em que vive e com A monumentalidade, quando a aprendizagem durante a pensamos a cidade, atua formação escolar. Segundo na dimensão do simbólico, Moreira (2005, p. 157): […] dando visualidade, repre- as crenças cognitivas são sentando e valorizando as construídas a partir da inforideias, ações e concepções mação que a pessoa possui, daqueles que a utilizam. Ela tem sempre uma razão de ser, a qual pode estar bem explicitada ou não. A monumentalidade se difunde e se concentra, como diz Lefebvre, nas mais variadas formas, e aqueles que habitam as cidades, especialmente (mas não unicamente) os grandes centros e capitais, com ela convivem e a

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e é definida como a convicção de algo que pode ser acompanhado de elementos emotivos e/ou afetivos. As atitudes são formadas a partir das crenças adquiridas e da experiência pessoal que estão acomodadas por elementos emotivos que auxiliam na criação de sentimentos positivos ou negativos, dependendo da situação. Há vários fatores que podem influenciar uma pessoa no modo de ver as coisas, entre eles a cultura, idade e a diferença de sexos. Homens


e mulheres percebem diferentes aspectos do meio ambiente e têm atitudes diferentes em relação a eles (Tuan, 1980). Podemos citar, como exemplo, a diferença de mentalidade do casal na sociedade ocidental. A mente da dona de casa em relação aos cuidados com as crianças pequenas, provavelmente é diferente da mentalidade do seu marido. Em relação às definições de percepção, sobretudo numa perspectiva socioambiental, que amplia o entendimento da visão de mundo dos outros, encontramos interpretações de vários autores, mas para Tuan (1980, p. 4), percepção é: Percepção é tanto a resposta dos sentidos aos estímulos externos, como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem para a sombra ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a sobrevivência biológica, e para propiciar algumas satisfações que estão enraizadas na cultura.

Ferrara (1999, p. 264) faz a seguinte definição sobre percepção, ajudando no entendimento e visão de mundo socioambiental, como no caso dos caminhantes: Portanto, percepção ambiental é a forma de conhecimento, processo ativo de representação que vai muito além do que se vê ou penetra pelos sentidos, mas é uma prática representativa de claras consequências sociais e culturais. […] supõe uma elaboração de informações que ocorrem no

interior do indivíduo a partir de pequenas experiências, porém são apenas possíveis e, nesse sentido, não podem ser jamais previstas ou programadas. Mas devido o curto tempo para incorporações referentes a essas interessantes leituras para a análise proposta por esse artigo, o olhar passa apenas pela possibilidade e por esse breve esboço referencial, pois a mesma exigiria profunda leitura dos autores e posterior incorporação dos discursos dos

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caminhantes. Dessa forma, brevemente é apresentado o olhar sobre eles e sobre Antônio, deixando para um trabalho futuro, a possibilidade de verificação da teoria com mais informações que podem ser colhidas, pois eles, os caminhantes, continuarão pelas estradas, seja de Santa Catarina, do Paraná ou de qualquer outro lugar do Brasil e do Mundo. Mas sabemos das limitações de tais leituras, as que envolvem a percepção, assim como outras análises possíveis sobre outros autores, pois ampliando um pouco a discussão de percepção, Oliveira (2002, p. 1992), diz que “a percepção é essencialmente egocêntrica e ligada a uma certa posição do sujeito percebedor em relação ao objeto, ao percepto, sendo estritamente individual e incomunicável (senão através da linguagem ou do desenho)”; no caso pretendido, se fez análise por meio dos discursos, ou seja, dos diálogos produzidos a partir do contato com caminhantes e em especial com Antônio. Não podemos deixar de citar algo sobre aquilo que diz respeito às representações sociais, enquanto possibilidade de análise da percepção, Moscovici (2005, p. 9), estabelece que, “em


síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e, como tal, nunca é desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto de um grupo específico de pessoas que se encontram em circunstâncias específicas, nas quais estão engajadas em projetos definidos”. Muitas leituras científicas poderíamos ainda fazer sobre a vida dos caminhantes e até mesmo dos andarilhos nas cidades e no meio rural, inclusive abrir um novo trabalho sobre a violência por eles vivida, mas há que se terminar este trabalho, mostrando apenas um exemplo da violência vivida por estes cidadãos (in)visíveis no cotidiano, que dá uma dimensão maior a esta questão, sobretudo a policial, hoje mais urbana do que rural: “Uma voluntária de um grupo religioso chegou a garantir para a reportagem que integrantes “dessas corporações costumam se dirigir a esses moradores já batendo. E se fazem isso na nossa frente, sem nem respeitar a gente, imagina na nossa ausência”, observou, temendo dar mais informações. “Nós também estamos na madrugada ajudando aqueles que vivem em situação de rua e corremos riscos. A gente prefere

ciência. Destacamos, com fundamental, a incompletude da importância do espaço.” Mesmo sendo uma utopia, acreditamos que o direito a cidade é algo fundamental e a grande luta deste século, não entrar no assunto. Já para todos os cidadãos, aqui temos problemas demais”, mais do que incluído o camienfatiza.” nhante e o andarilho. Arlete Moises Rodrigues CONCLUSÃO (2007, s/p) nos permite concluir e abrir novas questões, em A cidade como direito, Apesar dos muitos testemuonde abre diversas vertentes nhos dados pela Literatura possíveis para se caminhar e pela História ao longo da analiticamente sobre o que vida da Humanidade sobre trouxemos neste artigo, ela a existência dos desvalidos deste mundo caminhando coloca que: “Para analisar a utopia da em direção às cidades e se “cidade como direito”, apon- internando nelas como a tamos alguns pressupostos proteção mais eficaz, houve sobre utopia, heterotopias, um período recente da nossa topias, direito à cidade, História em que eles eram cidade/urbano, movimentos em muito menor quantis o c i a i s , d e s i g u a l d a d e s dade, pelo menos no meio socioespaciais, cidade-mer- ambiente onde vivíamos. cadoria, com seus vários sig- Referimo-nos às décadas de nificantes, significados, con- 1970/80. Já tínhamos autoteúdos, definições, noções, móvel, então, e andávamos conceitos, desigualdade por muitas estradas, sendo sociais, econômicas, sócio- que nosso senso de obser-espaciais. O conhecimento vação sempre foi bastante cientifico é incompleto, aguçado para estar atenta ao inconcluso, o que segundo nosso entorno. É possível Morin (1996) é próprio da que talvez fosse igual a quantidade dos caminhantes sem bagagem física pelos caminhos deste mundo, e que se tornassem menos visíveis devido ao hábito de se pedir e se dar carona que então vigia, hábito esse que

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nos traz à presença de um tipo de solidariedade que ora foi olvidada e de um sentimento de segurança que então existia. Parece-nos, no entanto, que a implantação do neoliberalismo foi um marco básico para que a atual realidade se concretizasse: o ser humano, acossado pelo grande Capital, tanto deixou de ter confiança no seu semelhante quanto “esqueceu” a solidariedade que o fazia dividir o seu transporte particular com os que pouco ou nada têm de material, com os que já não tem território ou sentido. O fato é que hoje a realidade dos caminhantes que sequer perdem tempo pedindo carona e dos motoristas que tem um grande medo de serem assaltados se casou e, acreditamos, tais fatos somados à nefanda implantação do neolibe-

ralismo criou esta nova situação onde seres humanos perpassam pelas estradas quase que com invisibilidade, como um carreiro de formigas ao qual não se presta atenção, seguindo em direção às cidades onde poderão se internar e voltar a compor comunidades de sobrevivência, redes de mútuo apoio, reterritorializações e buscas de sentido, sobreviverem de novo como indivíduos, deixando de lado o estigma de formigas invisíveis que caminham ao lado dos nossos automóveis como se já não existissem. Trazendo novamente um olhar utópico, acreditamos e reafirmamos que o direito a cidade é algo fundamental e a grande luta deste século, assim como o direito à vida e à diversidade para todos os cidadãos, aqui incluindo outra vez o caminhante e o andarilho. Mas a realidade é um pouco mais dura. No concluir deste trabalho, nos vem a notícia de que em Maceió/AL, vive-se uma onda de assassinatos de moradores de rua, onde há a desconfiança de que por trás dos assassinatos esteja um grupo de extermínio, que estaria realizando uma “limpeza social” nas ruas da cidade. Mesmo com essa notícia, mantemos o entendimento de que a utopia é

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um sonho possível e que em breve tais notícias não sejam mais corriqueiras e que a cidade seja, de fato, de todos.

REFERÊNCIAS FERRARA, L. D. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1999. FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio: Global, 2003 GOLON, Anne e Serge. Angélica, a marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. http://diariodonordeste.globo.com/ materia.asp?codigo=570329, acessado em 24/07/2010. HTTP://marfaber.vilabol.uol.com. br/antiga/roma/imperio/htm, consultada em 24.07.2010. http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia/2010/07/26/alagoas-vive-onda-de-assassinatos-de-moradores-de-rua.jhtm acessado em 26/07/2010. HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: FTD, 2003. LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. MORAGAS, R. A. R. Concepção de cidade/urbano no ensino de Geografia: elementos para análise. Jataí (GO). Revista Eletrônica de Educação do Curso de Pedagogia do Campus Avançado de Jataí da Universidade Federal de Goiás, vol. I, n. 2, jan./jul., 2006. MOREIRA, A. L. O. A floresta: um referencial para a percepção e edu-


cação ambiental. 2005. 218 f. Tese (Doutorado)– Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2005. MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em psicologia social. Tradução: Pedrinho A. Guaresche. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. OLIVEIRA, Lívia. Ainda sobre percepção, cognição e representação em Geografia. In. Mendonça, F. A. & Kozel, S (Orgs.). Elementos de Epistemologia da Geografia Contemporânea. Curitiba: Ed. da UFPR, 2002. RIBAS, R. A. Subutilização dos espaços públicos de lazer: o caso do parque das andorinhas – Presidente Prudente-SP. Presidente Prudente,1998. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista. RODRIGUES, A. M. A cidade como direito. Porto Alegre: IX Coloquio Internacional de Geocrítica. Los problemas del mundo actual. soluciones y alternativas desde la geografía y las ciencias sociales. UFRGS, 28 de mayo – 1 de junio de 2007. RODRIGUES, C. M. Cidade, monumentalidade e poder. Uberlândia: GEOgraphia, vol. 3, n. 6, 2001. SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: EDUSP, 2009. STEINBECK, John. As vinhas da ira. Lisboa: Livros do Brasil, 2007. TUAN, Y-F. Topofolia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.

ANEXO – 1 TAMBÉM TEMOS “AS VINHAS DA IRA” Chove, hoje. Fico pensando onde eles estarão. Apesar de não ter viajado, ultimamente, sempre acabo andando um pouco por aí: vou a Itajaí, a Joinville, fui a

Jaguaruna, todas as semanas vou até Florianópolis. Como podem ver, não tenho saído do Estado, mas não se precisa ir longe para encontrá-los: em todas as rotas eles estão, esses homens magros, barbados, cabelos por cortar, carregando na sua viagem o pouco ou o nada que têm. Eles andam a pé de uma cidade para outra, sujos e desgrenhados, e ninguém

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pensa em dar nem eles pensam em pedir carona, coisa que foi tão comum nos tempos da minha juventude, nos tempos em que a filosofia hippie tinha explodido pelo mundo, e andar de carona era a coisa mais natural possível. A estes homens, ninguém dá carona, e, como já disse, nem eles se atrevem a pedir. Vão a pé – uns muito raros empurram ou puxam um carrinho com alguns miseráveis trastes – a maioria leva muito menos: coisas envolvidas num cobertor, ou uma ou duas sacolas de plástico onde ainda cabe o seu tanto de esperança. É o que lhes resta. E a cada um que encontro eu fico pensando atrás de que esperança que vão – por que estão indo para outra cidade? Há quilômetros e quilômetros vazios entre uma cidade e outra – será que pensaram em levar água, alguma coisa de comer? Onde dormirão quando a noite chega sem que a outra cidade chegue? E onde se abrigarão em dias de chuva, como hoje? O fato é que há homens sem nada andando pelas beiras das estradas onde passam, velozmente, os carros importados, de luxo. Sempre são homens, nunca são mulheres. As mulheres deles ficaram em algum lugar,


porque decerto têm crianças, e há que sobreviver nos tais lugares, e alimentar as crianças. Talvez sejam humilhadas em empregos sem dignidade. Talvez tenham que fazer coisas piores. Já não têm seus homens para protegê-las. E os homens já não têm nada. E caminham entre uma cidade e outra. E quando os vejo chegando perto de Blumenau, penso que talvez venham porque um certo padre, aqui, organizou cozinhas comunitárias para homens assim, onde é certo pelo menos, o prato de comida. Mas eles não andam só nesta direção. Andam em todas as direções. E estão sujos. E estão magros. E são homens. Dentro deles vivem coisas iguais às que eu sinto, às

que você sente: eles sonham com um futuro melhor, eles se lembram de um passado em algum lugar, eles têm saudade dos que já não sabem mais onde estão, eles têm necessidade de amor, de banho, de carinho, de comida. Imagino que, quando anoitece, dormem sob a proteção de pontos de ônibus que existem ao longo das rodovias – que pensarão dentro da sua solidão ladeada pelas luzes velozes dos carros de luxo? Provavelmente, sentirão fome; certamente, sentirão a falta de alguma mulher, sentirão desejos aos quais já não têm direito, porque um monstro chamado Capitalismo os castrou de alma e de corpo e os tornou escória, lhes tirou todos os direitos além do

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direito de serem desprezados. Alguém de vocês que passa pelas rodovias nos seus carros de luxo ou não já se perguntou quem são aqueles homens sem mulher e sem bagagem que caminham em todas as direções, bem aqui no dito rico (?) e sem problemas estado de Santa Catarina? Alguém já parou e lhes perguntou os nomes, ou de onde eram, ou se queriam alguma coisa? Aposto que não. A polícia deve pará-los, às vezes, com certeza, para se certificar que não são bandidos. Eles já não têm forças nem energia para serem bandidos. Talvez já não consigam mais nem roubar um pão, o que seria justo para quem têm fome. E revistas e jornais ficam falando maravilhas de Santa Catarina, dizendo que é o próprio paraíso terrestre. E muitos catarinenses estão convencidos de que o mundo gira em torno do seu umbigo. Mas os homens sem nada continuam caminhando. Em todas as direções. E não poderão continuar caminhando sempre. Um dia eles acabarão fazendo valer os seus direitos de seres humanos. Por enquanto, ninguém se importa. Mas neste dia de chuva, estou aqui, preocupada a respeito deles. Onde se esconderão em dias assim?


POESIA

LORENA ZAGO BANCO DE OUTONO A tarde amena convida à reflexão. Cores de outono colorem O velho banco na praça, Sob a sombra da centenária figueira.

E estimulam o intelecto. Quisera conhecer suas raízes, Compreender a estrutura E seu edificador. Saber das alegrias compartilhadas, E das tristezas ali deixadas.

Folhas desprendem-se decorando o cenário. Nuanças outonais sensibilizam os seres. Lembranças emergem... alegria e nostalgia... Memórias celebram tempos idos... Praça, figueira, banco, sombra, conforto... Expressam sensações de prazer, Convidam à gratidão,

Oferecer ajuda e fortalecer o bastante, Exaurindo as dores, constituindo-as em aprendizados. Desejaria reverter o irreversível, Estimular compaixão, felicidade e gratidão. Ao Universo, exemplos de comunhão!

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EDLTRAUD ZIMMERMANN FONSECA 71 ANOS SEM VOCÊ, DONA ANTÔNIA (In memoriam)

Hoje, dez de maio, vou falar de uma mulher comum, nascida no interior, criada com todos os costumes da época e do local onde nasceu, cresceu e sonhou... Moça bonita, despertava inveja nas mulheres. Ser da roça não era necessariamente ser e m b r u t e c i d a , v e s t i r- s e de qualquer maneira; era aí que se distinguia das demais moças do lugar: elegante, bonita, cabelos e pele cuidados, embora as mãos fossem calejadas pelo cabo da enxada que usava para carpir os canaviais ou o milharal. No trabalho cobria a cabeça, usava blusas com mangas compridas e calças compridas que a protegiam do sol inclemente. Os tecidos de seda com os quais confeccionava suas roupas vinham da cidade bem

como as revistas de moda de onde copiava os modelos. Da mesma forma os sapatos! Por sua beleza e elegância era até “mal falada “, e o que importava? À luz de lamparina de querosene, lia Machado de Assis, José d e A l e n c a r, M o n t e i r o Lobato, Arthur Azevedo e outros, sonhando em viver na cidade grande! Mas qual! Casou-se com um jovem bom partido, como diziam: bonito, herdeiro de muitas terras que dariam excelentes roças e pastagens. O marido queria muitos filhos homens para dar continuidade ao trabalho. Vi e r a m t r ê s m e n i n a s : que frustação para ele, que só queria filho homem. Antônia continuava sonhando com a cidade: - minhas filhas não

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vão trabalhar no mato. Elas terão que estudar na cidade grande, lerão muitos livros, adquirindo muito saber! A segunda filha, aos cinco anos, foi vítima de um acidente doméstico com querosene, e aos seis anos foi para o Rio de Janeiro, para tratamento, o que lhe causou muito sofrimento. Com o tempo as duas meninas que ficaram na roça foram para a cidade para trabalhar e estudar, realizando um dos sonhos da mãe. Sem filhos homens que os ajudassem no trabalho do campo e sem as meninas que foram para a cidade, o remédio era segui-las. Nossa heroína finalmente foi morar na cidade, onde com certeza, não seria invejada e nem “mal falada“, por ser edu-


cada, culta e se vestir bem. Na cidade o começo foi difícil. Faltava móveis para o novo lar, mas o que ela desejava muito com a pouca economia que trouxeram, era comprar um guarda-roupas.

Não gostava de ver suas roupas e as da família em baús ou penduradas em prego atrás da porta do quarto. Um dia ela teria um lindo guarda-roupas! Não deu tempo! Quatorze de Julho de 1950,

aos trinta e oito anos, de volta da viagem que fizera a Itajaí para visitar os pais, o ônibus em que viajava se acidentou e ela morreu. Este ano de 2021, em 14 de julho, fará exatamente 71 anos que você nos deixou. Viveu apenas seis meses na cidade! Para nós, suas filhas, Lurdinha, eu e Miriam é uma ferida que nunca cicatrizou. Eu me tornei escritora como você sempre desejou, Lurdes e Miriam também estudaram e acreditamos, mãezinha querida, que sobre nossas cabeças estão suas mãos protetoras. Um dia voltaremos a nos encontrar, se Deus quiser.

VALE DAS ÁGUAS: O paraíso de água doce eBook Kindle por LUIZ CARLOS AMORIM

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R$ 12,00 para comprar na Amazon O VALE DAS AGUAS é uma seleção de crônicas sobre minha terra, a Cidade das Cachoeiras, no decorrer de toda a minha vida como jornalista e escritor. Sempre escrevi e publiquei crônicas em blogs, sites, revistas e jornais por todo O Brasil e em alguns países de língua portuguesa. Então aqui está um tributo a minha cidade natal, um registro de sentimentos e emoções, de falar de gentes, de lugares, de natureza, de beleza e de vida. De cantar o paraíso de agua doce. Não é a toa que "a natureza tem queda por Corupá"

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POESIA

ROSÂNGELA BORGES WIEMES SORRISO Teu sorriso bate em meu peito Esse toque desperta tudo: A alma, o coração, o corpo… Molhada, a pele é ardente E o beijo é doce…

A essência desse momeno Está solta nos olhares Nos corpos, nas mãos… Descobrimos o amor Dentro da noite…

Na liberdade desse sentimento Estamos presos aos beijos Aos abraços, aos sonhos… Calados falamos de tudo Num leve tocar de corpo

Perdidos num mundo de magia, Unidos pela troca de carinhos, Trocamos sorrisos E adormecemos ouvindo Apenas o bater dos corações Na canção de nossos hálitos…

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CRÔNICA

TAMARA ZIMMERMANN FONSECA PERCEPÇÃO Cedinho acordei, agradeci a Deus pela noite bem dormida. Segui para o quintal, abri a porta e me deparei com um dia lindíssimo! O céu tão cor de rosa, tons cor de rosa misturada com o um azul recatado, fiquei por alguns minutos admirando cada detalhe do que estava diante de minhas vistas. Uma sensação de felicidade tomou conta do meu ser: olhava nuvem por nuvem, suas formas enigmáticas, e me encantava cada vez mais. Obviamente, eu não poderia ver sozinha tamanha beleza, então chamei mamãe para esse espetáculo matinal! Junto a nós, os passarinhos cantarolavam harmoniosamente e nossos cães, a nossa volta, acompanhavam alegremente esse momento. O senhor vento apareceu, apresentando-se mansamente como se nos abraçasse. As plantas de nosso jardim também sentiram o vento e bailavam ao bel prazer da brisa. O dia passou tranquilamente

e a noite chegava, com ela, as baixas temperaturas. Quantas estrelas! As noites de inverno costumam ser estreladas; recordo as noites em Guareí, na casa do tio Alcides e da tia Pina, onde tínhamos somente o brilho das estrelas iluminando o caminho, doces lembranças da simplicidade da vida singela e de muito amor. Sorrio, sinto-me feliz, emociono-me com o que Deus nos dá e com a graça de percebê-lo. Esse mundo é incrivelmente apaixonante! Suas cores, formas, força, beleza, tudo ao alcance de nossos olhos e em todas

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essas belezas uma fonte de amor. Lamento tanto que vivemos tempos em que a maioria das pessoas tem os olhos voltados apenas para seus celulares e seus umbigos... Tanto tempo desperdiçado e esse mundo de meu Deus, querendo nos abraçar. A vida é feita de pequenos grandes acontecimentos e todos os dias eles acontecem na nossa frente e para todos. Sou grata a Deus, todos os dias e a todos os momentos. Sou grata aos meus pais, que nos ensinaram os valores do que realmente importa.


POESIA

SÓLON SCHIL PRESENÇA DE AUSÊNCIA Queira dedicar-te um poema falando de mar, falando de estrelas. Queria cantar-te em rimas ricas ou não, não faz diferença. Teu sorriso alegre como criança brincando nas brancas areias de uma praia qualquer… Queria dizer-te coisas tantas que nem sei se poderia dizer-te… Queria, neste momento, ouvir tua voz

como ouço os pássaros cantando. Queria que fosses tu e não apenas a brisa que sopra a afagar-me agora. Queria sentir em meus lábios o mel do teu beijo, mas só posso, neste instante, sentir a presença da tua ausência, só posso abraçar a solidão e viver a saudade que deixaste em mim.

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ENSAIO

NEUSA BERNADO COELHO ENCANTOS DA ILHA DA MAGIA DE SC Florianópolis, Floripa, Nossa Senhora do Desterro ou simplesmente Ilha da Magia, assim é carinhosamente chamada a capital catarinense. O nome faz jus pelo seu encanto, belezas naturais e pelo rico folclore que ainda é difundido pelos nativos descendentes de açorianos. Os visitantes que escolhem morar na Ilha encantada, precisam pedir permissão às lendárias bruxas para poderem ter sucesso em seus empreendimentos. Diz a lenda que as megeras voam em suas vassouras e percorrem todo o litoral assustando os pescadores, fazendo algazarras nas praias, roubando barcos e tarrafas. Além disso, entram pelo buraco das fechaduras das casas que tem crianças não batizadas e se divertem pelos terreiros fazendo nós nas crinas dos cavalos. Esses causos

surreais com seres sobrenaturais permanecem na crendice popular ilhoa até hoje, registrados em manuscritos por Franklin Cascaes (1908-1983). O trabalho documentado durante 30 anos pelo mestre é repleto de escritos, desenhos, gravuras, lendas, contos, crônicas, cartas, peças em cerâmica, madeira, cestaria e gesso. A pesquisa e coleta de informações orais sobre essa tradição pitoresca e as estórias místicas em torno das lendárias bruxas foi realizada junto a população descendentes d o s a ç o r i a n o s . To d o esse acervo denominado “Coleção Professora Elizabeth Pavan Cascaes”, está sob a guarda da Universidade Federal de Santa Catarina no MArquE (Museu de Arqueologia e Etnologia Oswaldo Rodrigues Cabral).

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Grafite de Thiago Valdi - Franklin Cascaes- Floriaópolis/SC

Em 2017, o artista Thiago Valdí marcou o centenário de nascimento do grande mestre da cultura açoriana, Franklin Cascaes, com um painel 34x12m em grafite, no centro de Florianópolis.

Gelci Coelho-Peninha-Enseada de Brito- ag 2020/foto

Gelci José Coelho, o Peninha, 71 anos, é museólogo, multiartista, folclorista e pesquisador da cultura popular


catarinense. É um dos guardiões da história, memória, e arte de Franklin Cascaes. Entre os anos 1973 e 1983 trabalhou com o mestre na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), tornou-se amigo e seu seguidor. Atualmente, Peninha reside na encantada Enseada de Brito/ Palhoça/SC, onde concedeu a entrevista para esta matéria. Na vila, fundada em 1747 por casais açorianos, Peninha difunde as obras e lendas legadas pelo seu mestre Cascaes. Escreveu e publicou a obra “Narrativas absurdas: verdades contadas por um mentiroso”. São histórias ligadas a herança dos açorianos, mistura realidade, ficção, poesia, reza, espanto, tragédia, assombração e benzeduras (antídoto das bruxarias). Ele relata: “Adoro essas coisas todas, os rituais, os cânticos, as histórias, a arte sacra de todos os credos e religiões. As crenças, os mitos, as devoções causam-me espanto e emoção” (Peninha, p.197). Ao chegarem no Brasil, os habitantes da Ilha do Açores e Madeirenses trouxeram um caldeirão

cultural alimentado por misticismos vividos no cotidiano desde a era medieval. Estabeleceram-se no litoral de Santa Catarina e adaptaram seus hábitos e costumes às crenças espirituais dos indígenas que aqui habitavam. Muitos causos de embruxamento, rezas, benzeduras, sobrevivem ainda no imaginário popular. Em Itaguaçu, terra de Cascaes ainda encontra-se grande quatidade de despachos e oferendas entre as pedras, restingas e o mar. Peninha relata que no imaginário popular, as bruxas são mulheres formosas, mas apresentam-se de forma medonha para não serem reconhecidas e não perderam o fado. Conforme sua narrativa, elas realizam quatro reuniões por ano, geralmente na passagem das estações. Fazem o sabat, uma espécie de congresso, onde prestam contas ao diabo sobre as ações realizadas e planejadas. Para não perder os poderes, seguem um ritual de beija-rabo do diabo fedido a enxofre. Conta que um dia, as bruxas resolveram fazer um baile chic, estilo alta sociedade. Convidaram as amigas

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e outros seres sobrenaturais como os caiporas, curupiras, boitatás, vacatatás, ondinas, vampiros, mulas-sem-cabeças, sacis, lobisomens, entre outros. Ao som da orquestra selenita irisada da lua cheia, fizeram uma linda festa de comes e bebes, mas não convidaram o temido diabo fedorento e antissocial. Escolheram a praia de Itaguaçu, lado continental de Florianópolis, um lugar lindo para o festerê e foi um sucesso. Todavia, uma das convidadas, invejosa, resolveu sair para fofocar ao diabo, q u e e n f u r e c i d o s u rg e no meio da festa. Ao se deparar com todo aquele luxo bruxólico, o tinhoso castigou as participantes, transformou-as em pedras e inundou o pátio com água do mar. Atualmente a paisagem é relíquia histórica tranformada em patrimônio natural e cultural.

Patrimônio cultural - Praia de Itaguaçu

As bruxas petrificadas


continuam lá até hoje, flutuando no mar de Itaguaçu. No local, não se sabe se houve mais festas sem a presença do diabo, mas há um lindo monumento em memória ao folclorista Franklin Joaquim Cascaes, ornado com um magnífico boitatá de bronze dourado com os dizeres: Ao mestre o reconhecimento e a homenagem da gente de Florianópolis. Entre as crendices populares existem muitas lendas de bruxas recolhidas na literatura oral. Peninha adverte, quem gosta de contar estórias de bruxa, atrai os males para si, portanto, precisa se proteger contra os poderes maléficos. Ensina usar o símbolo de Salomão, uma vela ascesa (que foi benta na sexta-feira santa) e rezar a seguinte oração contra os males do bruxedo: Treze raios tem o sol, treze raios tem a lua. Salta demônio para o inferno, pois esta alma não é tua. Tosca Marosca, rabo de rosca. Aguilhão nos teus pés, freio na tua boca. Por cima do telhado São Pedro, São Paulo e São Fontista. Dentro da casa, São João Batista. Bruxa tatarabruxa, tu não me entres nesta casa,

nem nesta comarca toda. rastejante com os dois olhos Por todos os santos, dos no mesmo lado e a boca torta. Já o siri, foi agraciado e santos, Amém! ganhou de presente, no casco, uma linda imagem de Nossa Senhora coroada, segurando a saia rodada. Nas escamas da tainha a imagem aparece sutilmente representada por um longo véu multicolorido. Essas são algumas das lendas da encantadora Ilha Monumento a Franklin Cascaes da Magia que corre a boca Em outro conto, Peninha diz pequena entre os habitantes que Nossa Senhora, rainha de Florianópolis e litoral do mundo, queria conhecer a próximo. Neusa Bernado Ilha da Magia, mas não tinha Coelho- Poetisa-Historiadora ponte, nem canoa, a Hercílio Luz ainda não era construída, BIBLIOGRAFIA rss. Ao avistar um vaidoso E REFERÊNCIAS linguado, perguntou para ele CONSULTADAS: se a maré ia encher ou vazar. O linguado malcriado, arremedou, repetindo a frase de Narrativas absurdas: verdades conmaneira jocosa: Me nhe nhe, tadas por um mentiroso/Gelci José me na ná. Um siri, que estava Coelho(Peninha)-Fpolis: Santa Ediali na margem e presenciara a tora, 2019. cena vergonhosa, interferiu e O Fantástico na Ilha de Santa ofereceu-se para dar carona, Catarina/Franklin Cascaes.5.ed.rev.levando Nossa Senhora até -Fpolis, Ed.da UFSC, 2003.103p. na outra margem. Agrade- (Volumes 1 e 2) cida, levantou os babados Entrevista com Gelci José Coeda longa saia, subiu no lho(Peninha) em 16 de agosto casco do siri e lá se foram de 2020. eles cruzando o trecho mais http://www.dicaautolocadora. estreito do canal que separa com.br/praias.html o continente da Ilha. No meio https://ndmais.com.br/noticias/ do canal surgiu uma manta memoria-de-florianopolis-a-imde tainha que fez um lindo portancia-dos-tombamentos-culcortejo prateado até às mar- turais/Carlos Damião/ND gens do mar da Ilha de SC. Diz a lenda que o linguado ( N e u s a é p o e t i s a e ganhou um castigo, ficou historiadora)

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POESIA

JACQUELINE BULOS AISENMAN OLHOS EM CENA Mudo meus olhos de cena e mudo meu olhar Dentro de mim entram outros olhos e outros personagens Mas somente nos olhos. Somente no olhar. Cintilante, borbulhante... Vivos. Pintados, Ornamentados, Coloridos! E com os olhos, só com o olhar deles Começo a perceber o mundo diferente A atiçar a vida, a aguçar os sentidos Roçar as pessoas, acariciar as situações me embaraçar mundo a fora, aflorar... Ver tudo o que nunca vi. Sentir o que não senti. Até o êxtase, o vômito, o gozo. Aí, simples como o nada, Duas lágrimas escorrem. Meus olhos então, Voltam a ver o mundo como eu sempre vi, fantasma solitário, observador. Sou eu outra vez e mais ninguém me habita. Até quando?

AVESSA Acordei do avesso. Os sonhos todos de fora, expondo sem vergonha alguma a nudez das minhas vidas e aindas.

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POEMA

HARRY WIESE ESCREVENDO NA SELVA

Pela primeira vez na minha inusitada existência escreverei num lugar excepcional: na selva. Com papel e caneta nas mãos sigo a trilha quase fechada e retiro os galhos quebrados que me impossibilitam a caminhada e a escrita. É de manhã e o nevoeiro encobre a mim, caminhante-peregrino e a floresta. O verde da selva e o branco do nevoeiro formam uma simbiose pacífico-ecológica. Estou aqui para ouvir a imensidão da mata e descrever seus propósitos. Sim, desejo perceber os sons da

natureza com a leveza com que se comportam. Como é cedo, vejo os últimos animais noturnos se ocultarem em seus esconderijos. Enquanto se recolhem a passarada acorda e entoa suas canções, sinfonia perfeita sem instrumentos, sem partituras e sem maestro. Então indago a mim mesmo: o que tem a me dizer a música da selva? – São insígnias, somente insígnias. Então, curvo-me diante da magnificência natural e torno-me ébrio de amor e sábio de esperança. Os pássaros não cantam para mim, cantam para saudar a manhã e para atrair as companheiras para a festa do amor. Ouço, bem perto

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de mim, o nhambu, ave de chão, está logo ali, atrás de arbustos e samambaias. Então, lembro, quase de inteiro, uma estrofe de um poema de minha autoria: “Ouço o murmúrio dos matagais, sopro da ventania comportada. O enlevo exposto aos ventos traz dos pássaros escondidos os cantos”. Assim se percebe que poemas e selvas se aglutinam em tempos de amor total. Sigo a caminhada e a brancura do nevoeiro vai até o chão. De tanto insistir, deixa gotículas de sereno nas folhas que molham minhas pernas. O ar puro é essencial e possui o perfume do verde e da matéria em decom-


posição. Ainda não ouço o zum-zum das abelhas, elas vêm mais tarde quando o Sol aquecer a floresta. Aproximo-me de um lago, quase imperceptível, está coberto de folhas, galhos e paus podres. Está escuro por causa das árvores. Nele, há rãs, sapos, pererecas e cobras d’água. Talvez haja peixes. É bebedouro natural, fonte segura, casa, abrigo, nicho, satisfação permanente. Há atalhos e carreiros que se aglomeram ali. Fosse o lago o Sol, os caminhos seriam os raios a se espalharem pela mata. Agora estou sentado sobre um tronco caído. É um cerne feito pedra que teima em não se decompor. Cernes são quase eternos. Anoto as sensações da selva no bloco de rascunho para não perder a excepcionalidade da experiência. Incrível: a caneta é o instrumento que registra as sensações da selva captadas pelos órgãos dos

sentidos, que as levam ao cérebro, que as transforma em pensamentos, que ora registro no papel. Caminho entre as árvores, pulo sobre os troncos caídos e ouço o barulho da água saindo da terra, que alimenta o lago e depois vai serpenteando entre a vegetação. É o som mais original da floresta. O som vem do chão, da base, da sustentação. Aguço o ouvido e os sons são distintos: há os sons da terra se misturando com os sons dos víveres e há ainda os sons do vento passando pelas galhadas.

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Chego ao campo das bromélias. Há muita umidade por aqui. Há bromélias no chão e há bromélias fixas nas árvores. Há árvores cobertas de bromélias, cactos e liquens. Há bromélias em flor e outras, pequenas, ainda estão crescendo. Na selva não há pressa. A lei é a natureza, não há a lei dos homens. Não se deve interferir. Não cabe ao ser humano construí-la, nem a destruir. Toda intervenção é destruição. Deixemo-la, portanto, intacta, íntegra e pura. Volto a sentar-me sobre o cerne caído e enfio minhas mãos no queixo e cotovelos nos joelhos e reflito sobre selvas e abundâncias. Preciso concluir as impressões sobre a caminhada. Ainda hei de entender a grã-essência natural com seus desígnios e tendências. Sim, entenderei a linguagem silvestre com perfeição e rigor. A selva é encanto e poder!


POESIA

PIERRE ADERNE DOIS ANOS O Rio faz dois anos. Eu convidei o mar, chamei a cachoeira, as estrelas e o luar. O Rio faz dois anos: convidei o meu amor, a morena vai sambar. Vai rufar o meu tambor, vai ter serenata na janela, Vai ter cafuné, coco e calor, Vai ter brigadeiro de panela, Vão vir, amigos no computador .

O Rio faz dois anos Vai ganhar um avião pra conhecer outras culturas no braço do violão. O Rio faz dois anos, vai ganhar uma bicicleta, pedalar pelo planeta, como fazem os poetas. Vai ter serenata na janela, Vai ter cafuné, coco e calor. Vai ter brigadeiro de panela, Vão vir, amigos no computador.

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CRÔNICA

LUIZ CARLOS AMORIM O DIA MUNDIAL DO LIVRO E O LIVRO NA PANDEMIA Por Luiz Carlos Amorim nos salvou neste longo – Escritor, editor e revisor período de cuidados para – Cadeira 19 da Academia tentarmos não ser infecSulbrasileira de Letras. tados pelo vírus nefasto? Fundador e presidente do A arte, foram artes como Grupo Literário A ILHA, que o cinema, a música e a completou 40 anos em 2020. Http://luizcarlosamorim. literatura que nos salblogspot.com.br varam de enlouquecermos. Sim, a literatura também O dia 23 de abril é o dia nos salvou. Passamos a Mundial do Livro. Mas ler mais, pois ficamos eu acho que é só mais um dias inteiros em casa por dia para comemorarmos um bom tempo – ainda esse objeto sagrado que ficamos - e a leitura nos nos traz cultura, conhecimento, entretenimento. Nesses tempos de coronavírus, temos até mais para comemorar: há que se comemorar uma das poucas coisas boas que a pandemia nos trouxe. Desde abril de 2020, com os cuidados que precisamos ter nos confinamentos ou fora deles, precisamos ficar em casa, para não pegarmos a covid 19 e para não espalhá-la, só saindo quando estritamente necessário. Quem

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ocupou o tempo e a mente. Quem já lia, passou a ler mais e até muita gente que não lia passou a ler. A pandemia fez novos leitores. Então temos, sim o que comemorar neste dia Mundial do Livro. Nestes tempos de revolução no ato de ler, não só livros impressos foram lidos. O livro digital teve mais adesões, por que não precisamos esperar


que ele seja entregue, quando o compramos pela internet: ele é entregue na hora. De maneira que, apesar de não podermos sair, compramos mais livros, também, pois a revolução tecnológica na apresentação do livro permitiu isso. Comprar livros através da internet e recebê-lo através da internet é uma comodidade muito bem-vinda nestes tempos bicudos de pandemia. E ler um livro digital é muito simples, podemos lê-lo no celular, no tablet, até no Notebook.

Comprovadamente, o livro como o conhecemos, de papel impresso, continua forte e vendendo bem, mas o e-book está crescendo, ainda mais em tempos de acometimento de uma doença tão terrível como a que estamos enfrentando, quando temos que pensar duas, três, quatro vezes antes de sair de casa. Com a informática a serviço da leitura, a tendência esperada de que o hábito de ler viesse a se intensificar se tornou realidade, embora por caminhos tortos: uma pandemia

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que nos impede de sair para não contrairmos o vírus maldito nos fez consumir mais livros digitais. Então talvez devamos comemorar tanta tecnologia a serviço da leitura, mesmo que a razão de estarmos lendo mais seja uma pandemia funesta, inimaginável, que está matando aos milhares. A literatura nos salva. Nossa mente continua sã porque temos a literatura para nos levar a viajar pelo mundo mágico e pela vida aventureira de personagens os mais diversos. Isso ajuda a mantermos longe a depressão, a ansiedade e o medo. A verdade é que devemos comemorar o livro todos os dias, essa fonte de conhecimento, de aventura e de pesquisa da trajetória do ser humano neste Planeta Terra. Mesmo que a Terra esteja doente neste momento. E até por causa disso.


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