Revista ESCRITORES DO BRASIL - Edição 5, agosto 2019

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LITERATURA BRASILEIRA PARA O MUNDO Florianópolis, SC – Agosto/2019 – Número 05 – Edições A ILHA – Ano 02

PASSEIO POR CAMINHOS PESSOANOS A LÍNGUA BRASILEIRA: TUPI OU PORTUGUÊS?

MANOEL DE BARROS, POR ELE MESMO A DERRADEIRA ENTREVISTA DE GUIMARÃES ROSA


SUMÁRIO EDITORIAL.............................................3

CATARATAS DO IGUAÇU.................. 41

VENTO.................................................... 4

ARCO-ÍRIS DO AMOR......................... 48

BIBLIOTECA...........................................5

DOÇURA DE MEL................................ 49

AMORDAÇADA.......................................6

CINTILA UMA LUZ...............................50

ENCANTO ETÉREO................................7

MORRE O AMOR!.................................51

ESPAÇO NOTURNO................................8

QUIRIATIVIDADE GOROBAL.............52

REFLEXOS DA ALMA...........................9

“A LUZ DOS SEUS OLHOS” DE LUIZ CARLOS AMORIM................53

A DERRADEIRA ENTREVISTA DE GUIMARÃES ROSA........................10

SEMENTE..............................................55

PALAVRAS.......................................... 14

OUTONO................................................55

VIAGEM POÉTICA...............................15

BICHOS, GENTE...................................56

RUDE URBE..........................................16

LANÇAMENTO NA FEIRA DO LIVRO DE LISBOA.........................57

LÍNGUA BRASILEIRA: TUPI OU PORTUGUÊS?.................................17 NORTES.................................................20

SAUDADE DE MANOEL BANDEIRA............................................58

“VIDA OCIOSA”: ALGUMAS NOTAS...................................................21

OS DESLIMITES DA PALAVRA..........59

SUAS CHAVES EM MINHA RUA........27

CALAFRIO............................................61

UM PEREGRINO EM DESTERRO ETERNO................................................28

SEM TÍTULO.........................................62

(para Helena Ortiz, in memoriam)..........28

[A MANUEL BANDEIRA].....................63

O AMOR DE DUDU NAS ÁGUAS.........29

ENLEVO............................................... 64

IDAS E VINDAS.....................................30

PARA NÃO FALAR DE PAIS...............65

O ÚLTIMO ACORDE.............................32

CENA IV.................................................66

ALOCUÇÃO AO RIO HERCÍLIO...........33

POEMA PORTUGUÊS..........................67

PLANOS.................................................35

A DIFICIL ARTE DE ENVELHECER...69

SURPREENDENTES COINCIDÊNCIAS.......36

MEU CANTO.........................................70

EMERGÊNCIA!.....................................38

CARTA RESPOSTA..............................71

131 ANOS DE PESSOA - PASSEIO PELOS CAMINHOS PESSOANOS EM LISBOA.......39

O CANTO DO GALO..............................73

VEM AÍ A EDIÇÃO 150 DO SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA.....40

INFINITOS IMPRECISOS.....................75

AQUI MORAVA UM REI......................60

PEDIDO..................................................63

ROMÂNTICA........................................ 74

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EXPEDIENTE Literatura brasileira para o mundo Edição número 05 – Agosto/2019 Publicação das Edições A ILHA Grupo Literário A ILHA Florianópolis, SC Editor: Luiz Carlos Amorim Contato: lcaescritor@gmail.com lcaeditor@bol.com.br Grupo Literário A ILHA na Internet: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br Todos os textos são de inteira responsabilidade dos autores que os assinam. Contate com a redação pelos endereços: lcaescritor@gmail.com lcaeditor@bol.com.br Veja a página do GRUPO LITERÁRIO A ILHA – ESCRITORES DO BRASIL no Facebook, com textos literários, informações literárias e culturais e poemas e a edição on line, em e-book, desta revista.

EDITORIAL ESCRITORES DO BRASIL INICIA SEU 2º. ANO DE SUCESSO A revista ESCRITORES DO BRASIL completou um ano de vida com a sua edição de número quatro, um ano de sucesso maior do que o esperado, um ano levando a literatura do escritor brasileiro para todos os cantos do mundo. Então iniciamos novo ano com esta nova edição, a de número cinco, mantendo e ampliando espaços para escritores da nossa terra, novos ou não, publicando o que de mais novo está sendo produzido. O Grupo Literário A ILHA se orgulha de estar trabalhando durante estes últimos quarenta anos na divulgação do escritor brasileiro e a criação de mais este espaço para publicar principalmente a produção dos novos é a prova de que o trabalho de todos esses anos com a sua revista SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA foi importante, pois as páginas da mais antiga revista literária do Brasil acabaram sendo poucas para a demanda e havia a necessidade de estender as possibilidades, de criar mais opções. E a revista ESCRITORES DO BRASIL está aí, cumprindo este objetivo. Nesta edição, falamos de grandes escritores brasileiros e trazemos uma gama de novos escritores, alguns que mostram a sua produção pela primeira vez. Então, aqui está muita prosa e muita poesia, para que possamos saber o que se está a fazer em termos de literatura em nossa terra tupiniquim. Esperamos retorno de nossos leitores, pelo e-mail lcaeditor@bol.com.br . Digam o que estão achando, o que gostariam de ver na revista. Boa leitura. O Editor Visite o Portal do Grupo Literário A ILHA:

PROSA, POESIA & CIA

em Http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br

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POESIA

LUIZ CARLOS AMORIM VENTO O vento, moinho de espaços, carrega sempre no lombo um bocado de saudades, outro tanto de sentimentos, emoções de toda sorte. Carrega também o caos. Mas ele transporta tudo, como um corcel da memória, como alimentador de sonhos, dando asas ao sentir. O vento transcende o tempo pois depositamos nele todos os nossos segredos, para que possam alçar voo na sua longa viagem. Pego carona na cauda de um vento viandante para cavalgar estrelas, para ir além do olhar, para lapidar emoções, para aprender novas cores. Meus olhos, míopes, são dependentes de luz, são dependentes de cor, são viciados em vida. E meus olhos são como o vento, vão onde ele os leva, viajam nas asas dele.

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CRÔNICA

NEIDA ROCHA BIBLIOTECA O espírito dos escritores vagueia há mais de cinquenta anos, pelos corredores da Biblioteca Universitária Prof. Martinho Cardoso da Veiga. Entre livros e letras, procuram ouvidos e olhos atentos aos seus clamores. Libertam suas almas aprisionadas, nas páginas amarelas do esquecimento. Os textos gritantes buscam eco e prendem-se ao teto, aguardando leitores sensíveis e sedentos, para ganharem asas e seguir

eternamente no coração Em sonhos, me junto àquela dos frequentadores daquele procissão no sagrado e santuário. inviolável recôndito, sede dos nobres e que tratam a Nos corredores, os escri- todos de igual para igual. tores consagrados se cruzam com outros ilustres desco- Minha alma entra em êxtase, nhecidos, que juntando suas pois identifico alguns exemeconomias realizaram seus plares escondidos, nas prasonhos de publicar um livro. teleiras, com meu nome em suas lombadas. No silêncio da noite, enquanto aguardam o raiar Que com o passar dos anos do sol e a invasão da mul- e no plano espiritual, meu tidão, os literatos despertam espírito também vagueie, e ganham vida, confabu- junto ao público leitor, espelando entre si sobre a movi- rando ser tocado por mãos mentação dos pesquisadores curiosas e que meu nome e leitores. não caia no esquecimento.

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POESIA

LUIZA MOURA AMORDAÇADA

Amorteço Amorfa Ora Ramo Ora Roma Ora O mar Amar Amor A Mor.

Luiza Moura de Souza Azevedo é natural de Feira de Santana/BA, enfermeira, hipnoterapeuta e psicanalista em formação. Também compositora e produtora fonográfica. Membro da Academia de Letras do Brasil/Suíça. Chanceler Honorária da Sociedade Filosófica Ateniense na Cidade de Feira de Santana. Publicou pela editora Mente Aberta o livro “Bordejos Poéticos”, em conjunto com outros escritores e participou também da Antologia Poesia Agora, editora Trevo, São Paulo e do Livro “Amor é o que nos faz gigantes”. Instagram: @luiza.moura.ef

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POESIA

ADIR PACHECO ENCANTO ETÉREO Minha alma apolínea, reverbera-se entre sonhos esquadrinhando estrelas. Estátuas entalhadas entre limbos seculares, aos altares refletem antagônicas esperanças. Contudo, acorrentado em paradoxos e misérias vivo a intempérie de meu tempo com os algozes da matéria. Sorriso cansado sem lágrimas no pranto, vendo a lua me encanto com a luminosidade etérea.

Adir Pacheco reside em Florianópolis, mas nasceu em Lauro Müller, SC, em 8 de julho de 1952. Militar da reserva do Exército, músico, poeta, contista e cronista. Graduando em História/Filosofia, pela Cesumar Medalha de Honra ao Mérito “ A Castanheira”, Exército Brasileiro Título, Dr. Honoris Causa/Literatura - Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos.Membro de 3 Academias. Membro de associações literárias e culturais. Possui 8 livros publicados. Participou 4 Antologias e revistas e suplementos literários.

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POESIA

ADIR PACHECO ESPAÇO NOTURNO Bebendo um copo de cerveja, a leveza de meu ser neste espaço noturno encontra-se à mesa. E vejo a certeza do amanhã na beleza das estrelas, no aroma das madrugadas, nos violões em serenata. E sinto a alegria da vida no encontro da noite com o dia. Com ousadia, tento decifrar a sinfonia do alvorecer e o florescer da vida, na alegria pura da medida de cada ser.

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POESIA

ADIR PACHECO REFLEXOS DA ALMA De pé, pus-me a chorar os erros da vida. A alma sedenta em cárcere na matéria, apresenta-se em silêncio ao diálogo do corpo. E se encanta com a natureza. A miragem das colinas, o nômade errante, os mistérios da vida, o movimento das estrelas. E apresenta-se ao pó, que reflete a natureza do silêncio na terra lavrada. E beijei o altar com lágrimas nos olhos tendo a alma abençoada pelas pedras da estrada.

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ENTREVISTA

GUIMARÃES ROSA A DERRADEIRA ENTREVISTA DE GUIMARÃES ROSA Uma preciosidade histórica da língua portuguesa: a entrevista realizada pelo escritor e jornalista português Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Guimarães Rosa morreria menos de um ano depois de tê-la concedido. Publicada no livro “Conversas com Escritores Brasileiros”, editora ECL em parceria com o Congresso Portugal-Brasil.

É curioso como um mineiro de Cordisburgo, a dois passos (brasileiros) da Itabira de Drummond, gosta, ao contrário deste (à primeira vista), de falar, de contar, de ser ouvido. Até nisso parece grande o seu amor à língua. Guimarães Rosa — Estive em Portugal três vezes. Na

causa da guerra. Pergunta - Durante essas estadas, travou relações ou conhecimentos com alguns escritores? Guimarães Rosa — Não. Até porque eu ainda não era “escritor” (“Sagarana”, com efeito, só foi publicado em 1946) e o que me interessava mais era contatar com a gente do povo, entre a quais fiz algumas amizades. Gosto muito do português, sobretudo da sua integridade afetiva. O brasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia, enquanto o português é mais pedra. Eu tenho ainda uma costela portuguesa. Minha família do lado Guimarães é de Trás-os-Montes. Em Minas o que se vê mais é a casa minhota, mas na região em que eu nasci havia uma “ilha” transmontana.

Eis o homem. O homem que em menos de 20 anos, com sua prosa, seu estilo, sua literatura — sem os favores profissionais da medicina, que pode dar saúde mas ainda não deu gênio, conquistou o Brasil, Portugal, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos, o mundo. primeira, em 1938, passei lá apenas um dia; ia a caminho Quem esperou quase qua- da Alemanha. Na segunda, renta anos para publicar o em 1941, passei lá quinze primeiro livro, ou quem dias, em cumprimento de avançou sozinho pelos uma missão diplomática que grandes sertões da língua, me fora confiada em Hamnão precisa ter pressa nem burgo. Na terceira, em 1942, Pergunta - Mas não chegou pedir emprestado um corpo, passei um mês, pois estava a conhecer Aquilino? uma casaca, máscaras. já de regresso ao Brasil, por

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Guimarães Rosa — Conheci Aquilino (Aquilino Ribeiro), mas acidentalmente. Eu entrei numa livraria, não sei qual, do Chiado (presumo que a Bertrand) e, quando pedi alguns livros dele, o empregado perguntou-me se eu queria conhecê-lo, pois estava ali mesmo. Respondi que sim, e desse modo obtive dois ou três autógrafos de Aquilino, com quem conversei alguns instantes. Voltei a estar com ele, mais tarde, num jantar que lhe foi oferecido enquanto de sua vinda ao Brasil. Mas ele, naturalmente, não se recordava de mim (porque eu não me apresentara como escritor), e eu também não lhe falei do assunto.

Freyre, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Agripino Grieco, que, segundo ele, eram os “notáveis escritores e poetas” que estavam a “encostar a pena contra a lava” que ia no Brasil “sepultando prosódia e morfologia da língua-mater”? Eu creio mesmo que é essa uma das primeiras referências ao seu nome, em Portugal…

Guimarães Rosa — Não sabia dessa curiosa referência do Aquilino. Antes dessa, porém, há uma referência a mim numa publicação do Consulado do Porto, de 1947, feita por não sei quem. Sei de outra referência feita, anos depois, salvo erro, por um irmão de Pergunta - Não sabe que, José Osório de Oliveira. justamente numa crônica motivada pela sua ida ao Pergunta - Voltando a Brasil, Aquilino colocou Aquilino: acha que recebeu o seu nome, logo em alguma influência dele? 1952, ao lado dos de José Já, pelo menos, um crítico, Lins do Rego, Gilberto o mineiro Fábio Lucas,

notou alguns “pontos de contato nada desprezáveis” entre a sua obra e a de Aquilino. Guimarães Rosa — Eu gosto de Aquilino, sobretudo da “Aventura Maravilhosa”, mas não creio que dele tenha recebido alguma influência, a não ser na medida em que sou influenciado por tudo o que leio. A verdade é que antes de 1941 só conhecia de Aquilino um ou dois trechos, como infelizmente ainda hoje sucede em relação à quase totalidade dos escritores portugueses vivos. E, como sabe, “Sagarana”, foi escrito em 1937. Pergunta - Um garçom do Itamarati entra com um copo de água, e pergunta se precisa mais alguma coisa. Guimarães Rosa agradece e diz: Vá com Deus, como se fosse um beirão ou um transmontano. Mais uma razão, portanto, para eu prosseguir: Como encara ou explica o enorme prestígio de que goza nos meios intelectuais e universitários portugueses? Guimarães Rosa — Em relação a mim, houve por aqui (no Brasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo

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e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Portugal. Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eu tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. Uma das coisas que eu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, uma palavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a ”História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias de naufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Bernardo Gomes de Brito e publicados em 1735). Já

vê, por aqui, que as minhas “raízes” estão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande a distância “linguística” que me separa dos portugueses. Pergunta - Eu penso até que na imediata e incondicional adesão portuguesa a Guimarães Rosa há muito de transferência sublimada de uma frustração linguística nossa, coletiva, que vem pelo menos desde Eça. Mas não nos desviemos. Admira-me muito que não tenha citado nenhum livro de cavalaria, nem nenhuma novela bucólica, pois pensava que deles e delas havia diversas ressonâncias na sua obra, sobretudo no “Grande Sertão: Veredas”…

depois até com Camilo. Ainda continuo a gostar de Camilo, mas quem releio permanentemente é Eça de Queiroz (quando tenho uma gripe, faz mesmo parte da convalescença ler “Os Maias”; este ano já reli quase todo “O Crime do Padre Amaro” e parte da “Ilustre Casa de Ramires”). Camilo, leio-o como quem vai visitar o avô; Eça, leio-o como quem vai visitar a amante. Quando fui a Portugal pela primeira vez, eu só queria comidas ecianas (que gostosura, aquele jantar da Quinta de Tormes). Aliás deixe-me que lhe diga que me torno muito materialista quando penso em Portugal; penso logo nos bons vinhos, nas excelentes comidas que há por lá. E talvez seja também por isso que se há um país a que eu gostaria de voltar é Portugal…

Guimarães Rosa — Sim, li muitos livros de cavalaria quando era menino e, por volta dos 14 anos, entusias- Pergunta - … que, natumei-me com Bernardim ralmente, o receberá de (Bernardim Ribeiro), e braços abertos, em festa.

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Mas permita-me ainda uma pergunta: como “enveredou” — e penso que a palavra se ajusta bem ao seu caso — pelo campo da “invenção linguística?

eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sempre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um ato religioso. Tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido — até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.

Guimarães Rosa — Quando escrevo, não penso na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Outras confissões interesBrasil, seja de Portugal, de santes de Guimarães Rosa: Angola ou Moçambique, e “Gosto das traduções que filaté de outras línguas: pela tram. Da tradução italiana mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem à gíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha” só correm em Portugal — será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque

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do Corpo de Baile gosto mais do que do original.” Ou: “Estou cheio de coisas para escrever, mas o tempo é pouco, o trabalho é lento, lambido, e a saúde também não é muita.” Ou: “Não faço vida literária: como regra, saio daqui e vou para casa, onde trabalho até tarde.” Ou: “No próximo ano, vou publicar um livro ainda sem título, com 40 estórias” (que têm aparecido quinzenalmente, no jornal dos médicos “O Pulso”, onde frequentemente aparecem também cartas ou a atacá-lo ou a defendê-lo ferozmente). Ou ainda: “eu não gosto de dar, nem dou entrevistas. Tenho sempre a sensação de que não disse o que queria dizer, ou que disse mal o que disse, ou que criei maior confusão; e não estou assim tão seguro do que procuro e do que quero. Com você abri uma exceção…”.


POESIA

CÉLIA BISCAIA VEIGA PALAVRAS Tantos apelos para a paz do mundo, para impedir o caos iminente. Ansiedade é o que o mundo sente, vendo a terra cair num fosso tão profundo. Pedem a paz, porém estranhamente, não deixam de mexer no lodo imundo. Das armas nucleares, indo ao fundo, onde se encontra, da guerra, a semente.

Célia B. Veiga é poeta, escreve prosa, é atriz, declamadora e editora. Tem vários livros publicados, como “Palavras e Exemplos” - poesia, “O nome dele era Pedro - romance interativo, “A feia Acordada” infantil, entre outros.

É mesmo um paradoxo infernal: quem mais pede a paz universal mais mostra atos de belicosidade. Palavras podem a todos encantar; mas não exemplos que vivem a arrastar multidões na história da humanidade.

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CRÔNICA

ELOAH WESTPHALEN NASCHENWENG VIAGEM POÉTICA E, porque nos disseram que a viagem poética se faz com o coração, partimos para ser, para ouvir, para sentir e para viver.

A esperança agarrada na vontade, a praia varrida pelos ventos, as tempestades e o calor das tardes ensolaradas balizam nossos sonhos e não conseguem Nesse caminhar mágico, lá agitar o leme. vamos nós confiantes, à procura de um recanto de Somos como uma janela encanto, de uma paixão ou que se abre para o frio de um porto seguro. entrar, somos mãos esten-

didas, uma rosa oferecida e um esgar de solidão bem-vinda. Nesse caminhar impensado, lento e distante do amanhã, forjamos nossas crenças por crer que o amor ali mora e estará bem na curva à nossa espera.

Eloah está auxiliando na organização de evento literário e cultural da Associação Cultive, de Genebra, liderada pela escritora brasileira Valquiria Imperiano. Será no auditório da Biblioteca Pública Estadual de SC, nos dias 12 e 13 de setembro, com lançamento da antologia Cultive, posse de membros da associação e premiação de concurso de poesia para alunos escolares da região de Florianópolis.

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POESIA

FLÁVIO AUGUSTO ORSI DE CAMARGO RUDE URBE A rude urbe trepida Sob rodas e passos enquanto de uma janela, moldura do cotidiano de vidro e aço, alguém... Alguém? Alguém quem? Talvez o… o... o... Pouco Importa. E o... Pouco Importa, Emoldurado, acuado, por fuligens, sirenes, solidão, desemprego, assalto, medo atávico das serpentes destes tempos tormentosos que rondam a caverna agora apartamento... Absorto contempla a rude urbe que trepida e a criança que no parque brinca alheia às balas perdidas.

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POESIA

PAULO BEARSOTI LÍNGUA BRASILEIRA: TUPI OU PORTUGUÊS? Em Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), romance de Lima Barreto, o personagem-título – pequeno funcionário público – é um homem simples, tímido, de princípios rígidos, amante da leitura e nacionalista ferrenho.

Descontente com o caráter excessivamente estrangeiro da cultura e da sociedade brasileira, Quaresma envia à Câmara Federal uma petição em favor da adoção do tupi como língua oficial do Brasil. Todos riem do requerimento. Dizem que Quaresma está louco; acabam por dispensá-lo do trabalho e interná-lo numa

clínica psiquiátrica. Do ponto de vista histórico, porém, a proposta do pequeno funcionário, apesar de seu evidente aspecto caricato, não é inteiramente descabida. Por longo tempo após a chegada dos prmeiros colonizadores, a lingua mais falada no Brasil ainda não era o português, mas justamente uma língua de base tupi surgida dos contatos entre os índios do litorial e a população luso-brasileira. A generalização do português como língua no Brasil se deu apenas em meados do século 18, ou mesmo depois.

O TUPI NA FORMAÇÃO DO BRASIL A rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, deve seu nome a um dos mais destacados intelectuais brasileiros do final do século 19 e começo do século 20. Homem de muitos saberes, baiano,

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afro-descendente, Sampaio escreveu obras de geografia e geologia – como O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina e um importante trabalho sobre a formação da sociedade brasileira: O Tupi na Geografia Nacional. Nessa obra, ele afirmou que os bandeirantes não eram falantes habituais do português, mas da língua tupi, mais exatamente de um idioma construído com base nela, que eles levaram para muitos cantos do Brasil e deixaram registrado nos nomes tupis que deram a lugares que nem sempre foram habitados por povos tupis. A tese causou polêmica e mesmo certa indignação entre os que cultivavam uma imagem aristocrata dos fundadores da elite paulista. Contudo, a documentação apresentada por Teodoro Sampaio e outros autores (como Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do


Brasil) é bastante sugestiva. Por exemplo, em 1694, ninguém menos que o padre Antônio Vieira declarava que: “É certo que as famílias dos portugueses e índios de São Paulo estão tão ligadas hoje umas às outras que as mulheres e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala é a dos índios. A portuguesa, os meninos a vão aprender na escola.”

APOGEU E DECLÍNIO DA LINGUA GERAL

Como se sabe, até 1530 a Coroa portuguesa não se interessou pela colonização do Brasil. Foram implantadas apenas algumas feitorias comerciais. Nesses locais, homens de origem europeia viviam em meio a um número muito maior de povos indígenas e desposavam índias. O natural, portanto, é que adotassem Tal situação não dizia res- o idioma indígena e não o peito apenas às camadas português como língua geral populares. O bandeirante de comunicação. Domingos Jorge Velho, tristemente famoso pelo No século 16, a costa bramassacre do Quilombo dos sileira era predominamente Palmares, era membro da habitada pelos índios mais alta elite paulista. Em tupis, que falavam um sua ascendência, comenta idioma com relativamente Sérgio Buarque, contam-se pouca variação dialetal. q u a s e e x c l u s i v a m e n t e Contrariando o Concílio homens e mulheres de de Trento, de 1952, que origem europeia. Mesmo impunha o uso do latim nas assim, quando foi tratar com atividades litúrgicas catóo bispo de Pernambuco, precisou, nas palavras do próprio bispo, levar intérprete, “porque nem falar sabe, nem se diferencia do mais bárbaro tapuia, mais que em dizer que é cristão, e não obstante o haver se casado de pouco lhe assistem sete índias concubinas e daqui se pode inferir como procede o mais”.

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licas, os jesuítas adotaram o tupi como língua oficial para a catequese. Esse fato, associado à forte presença populacional indígena, fez com que o tupi, e não o português, predominasse como língua geral para a comunicação entre os múltiplos e linguisticamente diferenciados povos que participavam do processo colonial brasileiro. Nas regiões em que esse processo se desenvolveu mais rapidamente, como Bahia e Pernambuco, a presença da língua portuguesa era mais intensa já desde o início do século 17. Na maioria dos lugares, porém, a língua geral de base tupi predominou, como já dissemos, até meados do século 18. Seu declínio, como não poderia deixar de ser, relaciona-se a varios fatores. O


mais imediato talvez seja o declínio da formação social em que se sustentava o uso da língua geral brasileira, ou seja, a decadência das missões jesuítas e do emprego da mão-de-obra indígena. Igualmente, a descoberta de ouro e metais preciosos, no início do século 18, incentivou forte processo migratório, que

levou a uma relusitanização do ambiente colonial. A metrópole também contribui ativamente. Em 1757 e 1758, o marquês de Pombal, como parte de sua campanha contra os jesuítas, editou leis que tornavam obrigatório o emprego da língua portuguesa.

lação indígena, seu processo de aniquilação física, o “calvário das dores inenarráveis do extermínio genocida e etnocida”, no dizer do antropólogo Darcy Ribeiro. Em última análilse, somente isso explica que não sejamos hoje como Paraguai, um país bilingue, com ao menos alguns milhões de falantes Finalmente, há a depopu- da língua geral brasileira.

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POESIA

CLÁUDIA KALAFATÁS NORTES A noite semi-insone se instala. Avaliando meu proceder, um severo veredito se instaura a complexidade do que vive em minhas entranhas é pouco observada; Ponta de gigantesco iceberg, cujo cume revela nada; Nenhuma ideia sobre o que há embaixo... Divagações em noite estrelada rótulos em que não me encaixo percepção enganada, o querer na imensidão do que nos é palpável sofrer, para destilar você convivência e cortes: nossos nortes!

HARPA INERTE é o segundo livro da poetisa Cláudia Kalafatás, cuja capa está estampada ao lado. O Amor, ela diz, nos poemas de seu novo livro, é a bússola que pode nos guiar nesse mar de arrebentação que é a Vida. É mister conferir a lavra desta romântica poeta.

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RESENHA

ENÉAS ATHANÁZIO “VIDA OCIOSA”: ALGUMAS NOTAS Depois de muito tempo, reli o romance “Vida Ociosa”, de autoria do escritor mineiro Godofredo Rangel (1884/1951). Foi o livro de estreia do autor, lançado em 1920, com o selo da Revista do Brasil, de Monteiro Lobato & Cia. Editores. Trazia como subtítulo “romance da vida mineira”, retirado nas edições posteriores. Edgard Cavalheiro afirmou, mais tarde, que o livro teve pouca aceitação. Monteiro Lobato, porém, discordou de seu futuro biógrafo e mais de uma vez enfatizou o valor literário da obra rangelina. “Indubitavelmente – escreveu ele – foi este livro a obra-prima do ano, e tempo virá em que o juízo unânime da crítica, em coincidência admirável com o juízo unânime do público, o coloquem entre a meia dúzia de obras supremas, formadoras da cúspide da literatura nacional.” E,

em outra passagem: “O que assombra neste livro é a perfeição absoluta de fatura, coincidindo com a perfeição absoluta de ideação, circunstância feliz

que faz da “Vida Ociosa”, em meu humilde parecer, o único livro nosso que, embora de gênero diverso, possa ser colocado numa estante entre “Brás Cubas” e “D. Casmurro.” Poderão dizer que se tratava de opinião de amigo, mas Lobato exalava sinceridade e seu parecer não foi isolado.

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Com efeito, em artigos, cartas e manifestações diretas, aplaudiram o romance: Adalgiso Pereira, Ricardo Gonçalves, Augusto de Lima, Moacir Deabreu, J. A. Nogueira, João Pinto da Silva, Tristão de Athayde, Arthur Neiva, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Silva Ramos, Raul Vergueiro, Antônio Cândido, Hilário Tácito, D. Antônio de Almeida Morais Jr., Mário Matos, João Dornas Filho, Guilherme de Almeida, Breno Ferraz, Antônio Salles, Alphonsus de Guimarães Filho, Rodrigo M. F. de Andrade, João Alphonsus, J. Guimarães Menegale, Benjamin de Garay e B. Sanches Sãez, estes dois últimos de Buenos Aires. Além desses, vale recordar o julgamento de Fernando Góes: “Seu livro de estreia – “Vida Ociosa” – romance da vida mineira, foi considerado no tempo (1920) e é considerado ainda hoje


uma obra-prima. É o ponto alto de sua literatura.” Fernando Sales, com apoio em Wilson Louzada, vai na mesma linha. Antônio Cândido, ainda que aprovando, coloca “Os Bem Casados” em plano superior.

livro em seus acervos. “Vida Ociosa” reflete o viver monótono de um magistrado interiorano ou de “um juiz em termos sertanejos”, como dizia seu autor. Obra de memo-

Uma voz solitária se elevou no Rio Grande do Sul, discordando dessas opiniões. Wilson Martins, na sua “História da Inteligência Brasileira”, publicada em 1978, fez referências desfavoráveis ao escritor mineiro. Em tempos mais recentes, Guido Bilharinho foi na mesma direção. Mesmo na aceitação dos leitores o livro foi bem recebido. A edição se esgotou em pouco tempo. É claro que sua vendagem não poderia se comparar com a das obras de Lobato, o escritor mais célebre e lido de seu tempo. A importância dessa obra, lançada há quase um século, me parece indiscutível e sua leitura encanta até hoje. É pena que só tenha merecido uma nova edição em inexpressiva brochura e sem uma divulgação adequada. Poucas bibliotecas, pelo que tenho observado, dispõem do

rialista, de fundo autobiográfico, embora fugindo às posições e poses tão próprias do gênero. A narrativa é suave e permeada de um humor leve. Evidencia-se nela o visível conflito entre o juiz sem vocação aparente e o escritor ansioso por produzir mas que se vê diante de “um gordo processo de embargos” que jazia sobre a mesa e exigia sua atenção. Registra o desabafo da vítima da doença literária assoberbada pelo trabalho do juiz: “Serviço

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até o pescoço. É uma enchente de autos. Essa atmosfera de petições e arrazoados produz-me, como a pasmaceira habitual, efeito desalentador. As impertinências dos advogados, longe de me espicaçar o brio, tiram-me até a coragem de levantar a pena empoeirada da mesinha de trabalho. E já entreouço à volta um zum-zum de descontentamento que me turba o farniente. Preciso fugir, cobrar um pouco de vitalidade para enfrentar com valentia os desgostosos...” A solução é escapar para o meio rural, para os sítios da região, em especial para o Córrego Fundo, onde é recebido com rapapés e salamaleques pelos moradores, e lá colher impressões com que encher laudas e laudas. E assim se desenvolve a narrativa, tranquila como o próprio autor, trabalhada, segura, límpida, composta com calma, sem premências de tempo ou preocupação com críticos e leitores. O capítulo inicial é um poema em prosa. A estradinha coleante, ora se aproximando, ora se afastando do rio de águas barrentas, é vista com os


olhos do pintor exímio no uso das tintas e contido nas cores esmaecidas. “Um resto da melancolia da noite” paira no ar da manhã na saída do povoado que ainda dorme e o viajante afunda em velhas recordações imprecisas. A velha porteira, na sua envergadura rude de largos tabuões horizontais, emite um rangido prolongado e sonoro que o eco reproduz ao longe. Nasce um sol radioso e sob a soalheira escaldante o viajante prossegue e com mais um estirão avista a fazenda do destino – o Córrego Fundo. Não tarda a reconhecer o Américo, encarapitado sobre um cupim, a investigar o horizonte na busca do visitante tão esperado. É o filho solteirão de Próspero e Siá Marciana, os fazendeiros, com pretensões a professor e estudioso das ciências. Saudado com efusão, o viajante suarento, é conduzido para o casarão

em ruínas mas amplo e acolhedor. Então é um Dr. Félix para cá, Dr. Félix para lá, culminando-o de rapapés, doces, comidas e guloseimas. Com seu incansável arrastar de chinelos, Siá Marciana vai da sala para a cozinha na preocupação constante de bem tratar o visitante. Próspero, já idoso, relata histórias de caçadas e pescarias enquanto conserta as redes danificadas pelos jacarés. Siá Marciana trata as galinhas com punhados de grãos de milho e Américo questiona sobre os mistérios do reino científico. Na sua placa, dormitando, o velho papagaio mal entreabre os olhos. As horas escoam lentas, sons difusos vêm dos fundos, da horta, do pomar e do terreiro enquanto o visitante relaxa, distende os músculos, alivia a cabeça. É verdade que às vezes o acode o remorso de ter deixado o serviço sem férias ou licença. Não demora a aparecer o José, aluno único de Américo, para a aula do dia. O menino aprendia com surpreendente rapidez, ainda que reagisse a pedradas quando o chamavam de Zé Correto, alcunha que abominava.

caçada nada heróica em que ele e os companheiros se deram mal. Trepados num jirau, à beira de um barreiro em que os animais vinham lamber o chão salitroso, aguardavam a chegada da onça pintada. Mas o jirau desabou e com ele os caçadores que tiveram que fugir através da mata inceira, apavorados, na escuridão da noite. E o velho narrador gozava de si próprio num riso pesado de sarro. Sucediam-se incontáveis casos de outras caçadas e pescarias que o Dr. Félix ouvia com intenso prazer. No silêncio da sala penumbrosa “um ulular remoto encheu a calma da noite com seu lúgubre ecoar.

– Que significa esse uivo, Próspero recorda uma Sr. Próspero? perguntei.

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Fazendo um gesto vago, o velho respondeu: Não sei. A mata é misteriosa. Pode ser um pio de ave noturna ou o urrar de uma fera. Há certos sons indecifráveis, mesmo para os que estão familiarizados com a vida nas brenhas. Daí as superstições, a crença no sobrenatural, tão comum entre os rústicos...” O silêncio recai na varanda onde todos rodeavam uma bacia de brasas como que hipnotizados pelo lume. E o tempo corre lerdo, macio, sem cuidados e atropelos. Sobrevém a chuva violenta, as bátegas tamborilando no telhado e nas paredes. O chão vai aos poucos sugando a água e o pátio se transforma num lodaçal. A natureza ressequida parece reviver; o gramado, as árvores, a mata, tudo reverdece. Surgem visitas inesperadas escapando da intempérie. Mas o sol ressurge, o céu retoma seu azul anilado e os viventes, humanos e animais, se reanimam ao frescor da tarde.

por notícias dos conhecidos e do mundo. Vão à cachoeira onde a piracema acontece e tanto peixe enche os balaios a ponto de enojar. Vem à memória a sina triste do sentenciado Lourenço, momento mais alto do livro, revivida de forma impactante. Moído pelos ciúmes, em momento de desvario, ele comete um crime de morte por amor à mulata Frederica. Condenado a trinta anos de prisão, conta e reconta os dias, os meses e os anos da pena, ajudado pelo carcereiro, já transformado em amigo. Mas tudo na vida tem um fim e um dia a reclusão termina. Avelhantado, doente, rengo duma perna e troncho duma orelha, ganha a liberdade. “Ei-lo trôpego, aturdido pelo ar livre e espaço desempeçado, buscando, em terras longes, o para-

Próspero organiza excursões a que Dr. Félix adere a contragosto. A cavalo, visitam a fazenda de Nhô Quim Capitão que, entrevado na cama, anseia

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deiro da mulata. É o último anseio pela felicidade.” Anda e anda, pergunta, indaga, procura, investiga. Estradas sem fim se afunilam no horizonte, curvas tortuosas sobem pelas coxilhas e descem pelas canhadas, e o sonho de reencontrar o amor da juventude parece cada vez mais remoto. Mas vai que um dia, num rancho à beira-chão, chega ao ponto que lhe indicaram. Num esforço para reentrar no presente grita o “Ô de casa!” Frederica assoma à porta. Está gorda, maltratada pela vida, tem os cabelos nevados. Nem de longe lembra a morena elegante e sensual de outrora. Ela o contempla de longe. Boas tardes. – diz ele em voz cava. – Boas tardes! – responde ela. A mulher o observa sem dar mostra de reconhecer. Você é a Frederica? – indaga com receio. Sou, responde ela Recai um silêncio pesado. Observam-se longamente. Convidado a entrar, ele senta numa tripeça, atiça o fogo do cachimbo e começa a baforar. Antão você é o Lourenço? – inquire a mulata. Sou, responde o visitante num jeitão tristonho. Alarido de


crianças ecoa no terreiro chamando-o à realidade. Você mora com homem? – pergunta Lourenço. Com o Martinho – informa ela. – Tenho onze “famílias” dele... O pensamento dele esvoaçou frouxo para a prisão, relem brando tanta espera, tanta paciência, tanta resignação. A vida sabia-lhe amarga. Enquanto estava na prisão o mundo dava suas voltas, tudo mudava e remudava. Não havia mais o que fazer ali. O Martinho é bom sujeito? – ainda perguntou. Bebe, às vezes. Do mais não tenho queixa. A vida é dura. Adeus – murmurou ele. Adeus, Lourenço, respondeu ela. “Guardou o cachimbo, retomou a trouxa e o bordão, e afastou-se, trôpego, paciente, rebocando a custo a perna enferma, como um casco desarvorado, sem rumo, toando ao léu...” Nem um queixume, uma reclamação, um indício de revolta. Fora, o sol dardejava e o calor o enlaçou. A estrada se estendia ao infinito entre curvas sinuosas que levavam para longe, longe, longe. Não obstante, a vida no Córrego Fundo continua e os dias escorrem para o poço sem fundo do tempo.

Tudo acontece devagar. Siá Marciana “opera” o papo do frango Manequinho, atravessado por um graveto; a gata da estima, lanuda e confiada, aparece em busca de afagos; Américo dedilha a sanfona e sons algo desafinados enchem o ambiente; Sontonho, cego de um olho,

ocupa-se do engenho e da farinha. Insiste em presentear o visitante com dois polpudos sacos do produto preparado com grande zelo. Mas Dr. Félix necessita voltar ao trabalho. Afinal, é juiz e deve retomar as inquirições, os despachos e as sentenças, enfrentando o rábula chicaneiro que vivia espiolhando seu trabalho na busca incessante de falhas, senões e nulidades. Que fazer se não voltar ao batente e enfrentar com coragem

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a luta cotidiana. E assim, levando acavalados na garupa da montaria os sacos de farinha, entra no povoado. Sente-se ridículo aos olhos dos passantes que o observam com curiosidade em virtude de tão estranha carga. E sobrevém o epílogo humano e comovente. Dias depois, numa visita surpreendente, surgem no foro os moradores do Córrego Fundo. Trazem pequeno presente, acondicionado em elegante caixinha. É um anel valioso, adquirido com as moedas que o juiz lhes deixava em paga da hospitalidade. Foram guardando, em segredo, para comprar a jóia valiosa. Emocionado, Dr. Félix nem sabe como agradecer o gesto espontâneo daqueles seres rudes na aparência mas humanos no coração. “Retiraram-se, por fim. Tornando ao escritório, retomei o estojo e contemplei melancolicamente a jóia coruscante de rebrilhos, calculando comigo o quanto de privações e amarguras se condensariam naquela cercadura chispante e naquela gota de sangue mineralizado. Em vez da festiva alegria com que os pobrezinhos contavam,


com que aperto de coração figuras humanas com seus eu recebia a sua dádiva!” cacoetes e sua fala característica. É um quadro perPara compensar, obteve feito, traçado pela mão de para o Américo a criação mestre de fino observador. de uma escola e sua nomeação como professor, Desde 1977 – quarenta realizando um sonho há anos! – venho sustentando m u i t o a c a l e n t a d o . “ E uma cruzada para reerguer foi um nunca acabar de Godofredo Rangel e retimútuos agradecimentos...” rá-lo do injusto ostracismo. Perdi a conta das ocasiões C o m o o b s e r v o u J o s é em que pesquisei, escrevi Afrânio Moreira Duarte, e falei sobre ele. Devo “Vida Ociosa” é o retrato reconhecer que o resultado do hinterland mineiro de tem sido pífio mas ainda corpo e alma. Ali estão a alimento a esperança de geografia, a paisagem, a que surja um editor coranatureza, os usos e cos- joso que reedite suas obras tumes, a linguagem e as completas, em caprichados

volumes, e com ampla divulgação em todo o país. Será demonstrado, então, que a justiça literária também pode demorar mas não costuma falhar.

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Em http://lcamorim.blogspot.com.br Literatura, arte, cultura, cotidiano, poesia. Todo dia um novo texto: um conto, uma crônica, um artigo, um poema. Leia e comente. Sua opinião é importante para que possamos melhorar o conteúdo. • 26 •


POESIA

CLÁUDIA KALAFATÁS SUAS CHAVES EM MINHA RUA Amor meu, se sentes minha falta, vem! Vou reverenciar-te, colocar-te alta, em altar, não se detém! Quando vejo que é mensagem tua penso no quanto já me és, voo, alcanço a lua! Nervosa, sem traquejo, digo à mim mesma bobagem! Ela virá! E quando menos esperar, Ela estará com suas chaves em minha rua...

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CRÔNICA

JOSÉ ALBERTO DE SOUZA UM PEREGRINO EM DESTERRO ETERNO (para Helena Ortiz, in memoriam) Olhas para trás e enxergas uma longa estrada percorrida, um caminho sem volta, e tu ainda tentas fazer algo nesse tempo sem qualquer pressa. Sem rumo, sem destino, tu consegues avistar tantos vultos sempre presentes em toda essa jornada, aparecendo vaporosos na penumbra do olvido. Tens vontade de voltar nesse espaço curto para

rever velhos companheiros e ficar remexendo n’algum bom combate em épocas ocultas da memória.

afins, compartilhando os sucessos uns dos outros. Porém, és andarilho solitário, um velho trapo esquecido dos prazeres, e vives quase a divagar pelos corredores do mundo em maldito mistério.

Uma pipa de bom vinho seria o suficiente para juntos brindarem então um efêmero reencontro de vocês com aquelas glórias outrora viven- Tentas te manter na saga ciadas. do itinerante para não perderes equilíbrio e cair Dessa confraternização em definitivo no solo decerto nasceria um ins- duma desgraça plena a se tante mágico de suprema anunciar iminente. harmonia entre seres Já deixaste de ter qualquer paradeiro por não te submeteres aos grilhões daqueles teus desafetos, buscando te encontrar em vielas quebradas. Uma estranha indiferença te tornou um nômade a percorrer um deserto de vida, apesar de inúmeros oásis aonde chegas para retemperar energias.

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POESIA

ELISA LUCINDA O AMOR DE DUDU NAS ÁGUAS Estou virando uma menina tornada mulherinha com tanta coleirinha de maturidade ainda assim me sinto parida agora tenra, maçã nova nova Eva novo pecado. Tudo gira e eu renasço menina vestido curto na alma de dentro... Deixo no mar os velhos adereços a velha cristaleira, os velhos vícios as caducas mágoas. Nasce a mulher-menina de se amar com água no ventre e no olhar. Nasce a Doudou das Águas.

PARA COMEMORAR O DIA DO ESCRITOR “Elisa Lucinda esteve, em julho, no espectáculo RUA DAS PRETAS, em Lisboa, recitando poemas e cantando. Uma verdadeira m u l h e r- e s p e t á c u l o . P a r a b é n s a o apresentador, cantor e compositor Pierre Aderne, por introduzir a poesia na tertúlia intimista, que já contava com música da boa e vinhos dos melhores. Precisamos de mais declamadores de verdade como Elisa Lucinda.”

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CRÔNICA

MARIA TERESA FREIRE IDAS E VINDAS To d o s s ã o u n â n i m e s em afirmar que viajar é diversão e aprendizagem incomparáveis. Concordo. Conhecer outros locais, sua história, sua cultura, seu povo. Fazer amizades, distrair-se. Alma e mente alcançam leveza. Às vezes, o peso corpóreo nem tanto. A gastronomia típica é irresistível! Planos feitos, passagem comprada. Aguardo animadamente o dia. Decido sobre a roupa. Arrumo a mala, passo o cadeado e

vou para o aeroporto. Aí começa a ‘lenga-lenga’. No aeroporto de origem a tranquilidade reina. Check in realizado, boarding pass entregue, mala despachada.

tranqueira toda e saio me ajeitando. Até parece que estou saindo de algum lugar escondido depois de ter feito um amor, rapidinho. Sapato, relógio, cinto. Colocados nos seus devidos lugares. Fecho a maleta e saio correndo, nem tanto. Andando rápido para alcançar os companheiros que saíram na frente, sem tanta retirada de acessórios.

Passo pela Polícia Federal. R e l ó g i o a p i t a . Vo l t o . Passo novamente. Novo apito. Tiro o sapato. Outra tentativa. Apito. Dessa vez o cinto. Sinto muito, chega de apito, senão acabo sem nada sobre o corpo. Ou seja, nua! Aí Conexões aqui e acolá. realmente haverá tumulto. Chego em Congonhas. Por fim atravesso, pego a Desço do avião. Puxo a

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mala, literalmente. As rodinhas estão ficando gastas. Ainda resistem porque sabem que não têm opção. Ou roda ou vai aos empurrões. Nem mala gosta disso. Saguão do aeroporto de Congonhas. Sabe o que parece? Rodoviária. De tempos idos. Lotada. Barulhada. Malarada. O pessoal estaciona com a mala no meio do caminho e ali fica. Colado ao chão. Aí, vou passando, pedindo licença. Alguns arredam. Outros se fazem de surdos. Aí, sai um empurrãozinho e junto a cara feia do dito cujo. O espaço para passar foi conquistado, a duras penas. Não, a duras desviadas dos obstáculos: pessoas e malas.

Sigo em frente, chego ao balcão da companhia para confirmar o voo: “não, senhora”, diz o funcionário. “O embarque mudou para o portão lá em baixo. Desce pela escada rolante”. Vou-me para o outro gate. Mas, que escada rolante? Não vejo nada. Ah! Escondida no canto. Desço. Vixe! Tem mais gente ainda. Vai caber esse povo todo no avião? Claro, pois são vários voos embarcando os passageiros. E o tumulto é constante. Parece até doença crônica. Nunca se cura, nunca cessa. Vou para o avião, finalmente. Ledo engano. Pego o ônibus do aeroporto que dá algumas voltas. Acho que nem o motorista sabe

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qual é a aeronave. Acerta. Entro no avião. Coloco minha maleta no compartimento de bagagens. Todos viajam com maletas de mão. Nem maletas são. Muitas deviam ter sido despachadas. Tomo meu assento, avião decola. Como aquele lanchinho sem sabor. Chego ao meu destino. E tem a volta. Do mesmo jeito. Depois dessas epopeias, podem me perguntar: “Viajará novamente”? “Claro”, respondo. “E as experiências nos aeroportos e com os voos”? “Fazem parte da viagem”, esclareço. Após algumas vezes acontecidas, fico experiente e resistente. Pronta para outra. Viagem. Ida e volta. Do mesmo jeito.


POESIA

MAURA SOARES O ÚLTIMO ACORDE A nota final foi tocada. Silêncio na plateia. De repente, o público começa o aplauso que se intensifica e rebenta com um estrondo. O pianista se levanta e se curva para receber o reconhecimento de seu trabalho de intérprete. Duas silenciosas lágrimas brotam e ele as deixas rolar por sua face. Sabia que entre os espectadores, aquela que deveria estar ali para ouvir, havia partido. Sabia que aquele belo momento não seria apreciado. Ela ali não estava para ouvir a canção da despedida. Havia sido a última canção de amor que ele lhe dedicara. Havia sido definitivamente o último acorde. A última nota brotada de seu coração ferido. Ouviu um “bravo”! Seu coração novamente chorou.

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CRÔNICA

HARRY WIESE ALOCUÇÃO AO RIO HERCÍLIO – De onde vens, oh rio da minha cidade? De onde vem a tua água primeira? Onde está teu broto original? O primeiro filete? A primeira cascata? – pergunto a mim mesmo em tempo de refletir sobre a tua existência nas terras de Ibi-amar.

como bênção, pureza e vida e te transformava em ondas a banhar as praias desertas da costa. Lindo! Maravilhoso era aquilo! Ah! No teu percurso banhaste as mulheres do povo originário de cútis avermelhada, indescritível beleza natural. Deste de beber aos jaguares sedentos, deste refúgio às antas em fuga e deste de comer e beber aos víveres de tuas entranhas. Todos estavam ali belos e grandes a contemplar-te e a adorar-te.

Responderei que não sei, não sei, não sei! Mas sei que já em longínquas épocas, mesmo ainda sem nome, corrias garboso pelo vale virgem. Murmuraste tua canção fluvial ao firmamento azul e à flora verdejante do grande sertão. Hoje, muitos séculos depois ainda estás a produzir maraAo longe, o mar te recebia vilhas. Ao longo do teu per-

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curso construíram sonhos e vidas. Estás mais fraco em tempos estios, é verdade, e mais forte em momentos de nuvens em turbulências. Que pena, tuas águas claras de outrora são de cor de chão, da erosão anunciada e de restos de culpas de longas e variadas distâncias. Mesmo assim insisto em apreciar-te intensamente como se aprecia a musa que inspira o amante da poética original. Rio Hercílio! És o único rio que contém a alcunha maioral, epíteto governamental, designação sem precedentes. És LUZ por excelência, para a cegueira imperante. Todavia, há quem discorda, blasfema, agride e ignora: heresia. Não dês ouvidos, amigo rio, não dês atenção, não chores por isso. O problema está em quem não considera a tua grandeza e a tua beleza fenomenal. Eles olham e não veem!


Conclamo o poeta com sua interpretação correta e poética de rio e discordo em parte de sua visão, porque são assim as coisas do mundo, ou se discorda, ou se concorda: “Vejo o rio que rola a água sobre as pedras/ e nem se dá conta/ (extrema fatalidade)/ que divide a cidade./ Sou o poeta da cidade dividida/ e não consigo edificar a ponte requerida./ Vejo o rio que rola como ondas de (a)mar/ e não há receptores bastantes que possam/ entender meus poemas./ Vejo o rio que rola a água sobre as pedras/ e nem se dá conta/ (extrema desgraça)/ que divide os homens./ Vejo os homens que veem o rio/ e só veem o rio./ O rio divide a cidade, os homens/ e os poemas.”

Se desejar, poderá fazê-lo da ponte Governador Irineu Bornhausen, ou da Praça José Deeke; são lugares espetaculares e estratégicos de apreciação. Destes lugares, Deeke, o diretor, o fizera em tempos passados, tempos de amor maior. Se puder e quiser, poderá vê-lo do alto, quase das nuvens, deslizando no Fantasticable: a tirolesa.

falsidades, porque se o fizer os jogará para si mesmo. E isso não é bom e nem agradável. Deixa remorsos com vestígios de maus odores e comportamento reprovável. Oh, Rio Hercílio! Na minha ingênua alocução, ainda tenho uma súplica. Com a tua sapiência, com a tua pujança, com a tua beleza, leva para o grã-além as palavras mal escritas e mal ditas, as meias-palavras, os meios-termos, as traições, a falsidade, a descrença, a estupidez e o vazio da alma de quem está só.

Ame-o e cuide dele. Não deixe de agraciá-lo com louvores, alocuções, preces e vivas. Respeite-o. Não jogue os detritos ao rio, os resíduos, os excrementos, as más ideias, as culpas, os Oh, grande rio, belo rio, eu divórcios, as calúnias, as te amo!

Caro amigo do Rio Hercílio! Aprecie-o em todos os lugares e de todas as plagas. Ele é merecedor de sua apreciação, merece que o seu olhar se deite sobre o leito murmurante poético.

REVISÃO DE TEXTOS E EDIÇÃO DE LIVROS Da revisão até a entrega dos arquivos prontos para imprimir. Contato: revisaolca@gmail.com

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POESIA

ANDRÉ GALVÃO PLANOS Quando pílula nenhuma Ou torpor me redimir, Sustentar-me-ei de poesia Nesse dia singular Diante de um salto abstrato Da mais frágil alegria Driblarei a realidade E o sonho haverá de ser Minha singela ressaca Serei outra vez infância Beligerando em partida Das minhas sórdidas iras Ao longo do instável ciclo Plantarei todos os medos E ressurgirei em paz Só a poesia recupera Os caminhos vacilantes Em busca do inesperado E ela será eternamente Minha alfaia maior, Farol a alumbrar meus olhos.

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CRÔNICA

URDA ALICE KLUEGER SURPREENDENTES COINCIDÊNCIAS Novembro de 1993, e eu estava em Cuba, aquele pequeno/grande país tão fascinante. Num dos dias de lá, fui fazer um passeio a Cayo Largo, e explico o que é Cayo Largo : é uma pequena ilha, das centenas e centenas que circundam a grande ilha de Cuba, dona de uma natureza paradisíaca, verdadeira pérola engastada no mar de cristal que é o Caribe. Uma kombi de turismo pegou-me cedo no hotel e levou-me a um pequeno aeroporto todo ajardinado, onde esperamos o avião sentados em simpáticos bancos brancos, de ferro forjado, sob imensas árvores

tropicais e rodeados por uma vegetação luxuriante. Ali, naquele aeroporto-jardim, começaram a se formar as amizades para o dia - eu estava sozinha e havia uma mocinha espanhola também sozinha, o que fez com que nos aproximássemos. Quando adentramos o pequeno avião de guerra, de e desembarcamos na ilha fabricação soviética, já pere- paradisíaca já velhas amigas. cíamos velhas conhecidas. Passamos o dia juntas: tomamos imensos banhos O nome da mocinha era de mar na água quente e Maria de Jesus. Jesus para azul do Caribe; comemos os íntimos. Viajamos os 30 lagostas pescadas na hora, na minutos até Cayo Largo, nossa frente, em um viveiro; espiando, lá embaixo, uma curtimos a praia imensa, Cuba toda cultivada, toda de areia branca, cheia de coberta de campos com plan- cadeiras brancas que indutações de cana e de fumo, ziam ao sono; ouvimos um simpático grupo musical tocar música cubana; passeamos pela ilha. De tardinha, quando o avião voltou, já havíamos trocado nossos endereços e prometido nos escrever. Quando voltei a Blumenau, mandei um cartão postal para a minha amiga espanhola Jesus. Logo em

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seguida, ela me mandou um Cartão-de-Natal. E aí terminou nossa amizade. Novembro de 1994, exatamente um ano depois, estava eu em Salvador/BA. Era um dia quente e eu estava, há horas, sentada a uma mesa, num barzinho do Pelourinho, pensando em como escrever um livro que não estava querendo ser escrito. Já andava lá pelo terceiro ou quarto cuba-libre, fazendo anotações num caderno, sem prestar atenção ao que acontecia ao redor. De repente, de uma das mesas próximas, naquele lugar encantado que é o Pelourinho, uma moça de vestido colorido se levanta e vem falar comigo : - Usted no es Urda, de Cuba?

noite, voltava à Espanha e a gente tinha se encontrado bem na saideira dela. Alguns amigos que estavam com ela, também viajariam naquela noite e, nos muitos cuba-libres, todos já ficáramos amigos também. Nossa despedida foi uma coisa bem caliente, todos a se abraçar nossas casas, e de novo nos e depois a ficar abanando. E encontrávamos! Surpreen- Jesus e eu a repetir : dente coincidência, coisa mágica que pode acontecer, - Até o ano que vem, na de repente, na vida da gente! África! Tínhamos um ano inteiro de notícias para contar e De certo Jesus foi, mas eu esqueci que tinha passado não fui. Demorei dois anos horas a pensar num livro para ir à África, desenconque não queria sair, e Jesus trei da minha amiga Jesus. e eu gastamos o resto do Afinal, a África é tão grande dia a botar os assuntos em - por quais países ela viajaria? dia. Que lugar melhor existe Será que outra grande coinpara se jogar conversa fora cidência poderia acontecer, do que um barzinho ao ar se tivéssemos viajado na livre, em pleno Pelourinho, mesma época? Nunca se na encantada cidade de Sal- sabe. vador? Ela tinha planos de ir à África no ano seguinte Em todo o caso, depois : eu também. E se a gente disso, sempre que viajo, se encontrasse, de novo, na fico de olho para ver se não África? encontro, de novo, minha amiga espanhola. Será que Muitos cuba-libres depois, as surpreendentes coincidênJesus se despediu - naquela cias podem se repetir?

Olhei para a moça. - Jesus! Pois é, sem mais nem menos, sem ter combinado nada, ambas tão distantes das

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POESIA

LORENA ZAGO EMERGÊNCIA! Emergência! Estrelas cintilam E do alto acenam Tão sábias mensagens Ao Mundo confuso De sentires e pensares. Os olhares traduzem, As emoções confessam, Os sentimentos manifestam, Os clamores evocam

Sensações de urgências Que em turbilhões se confundem Num cenário de emergências E infinitas compreensões Aos seres proclamam. Sensações de mudanças Ao mundo conclamam Momentos e condutas Humanitárias e transparentes, De serenidade e amor!

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CRÔNICA

LUIZ CARLOS AMORIM 131 ANOS DE PESSOA - PASSEIO PELOS CAMINHOS PESSOANOS EM LISBOA Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, editor e revisor – Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, que completou 39 anos em 2019. Cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras. Http://lcamorim. blogspot.com.br – http:// www.prosapoesiaecia.xpg. uol.com.br No dia 13 de junho deste ano, Fernando Pessoa, o grande poeta português, um dos mais importantes da Europa, completaria 131 anos. Nasceu em Lisboa e morreu lá, em 1935. Viveu nove anos na África do Sul, mas voltou para a sua Lisboa. O maior poeta por-

tuguês morreu cedo, mas a sua obra o mantém vivo para todos aqueles que leem a sua obra, verdadeira obra-prima.

Fui, então, a outra casa onde Pessoa viveu, no Largo do Carmo. Lá a gente só pode ver a parte externa da casa, mas é interessante, pois a casa está bem conservada, Uma vez morando em com figuras de Pessoa nas Lisboa, aproveitei a data tão janelas e placas indicando importante para conhecer os que ele viveu ali. lugares onde viveu o poeta. Fui à Casa Fernando Pessoa, Depois, fui para o Largo em Campo de Ourique, de São Carlos, n.º 4, casa casa onde o poeta viveu os onde nasceu o nosso Ferúltimos quinze anos da sua nando António Nogueira vida, um centro cultural de Pessoa, a 13 de Junho de Lisboa concebido para ser a 1888. O poeta viveu ali até Casa da Poesia, mas estava completar cinco anos, o em reformas, então só pude que explica a placa que entrar pelo corredor que se encontra na fachada leva até o restaurante, única do edifício, recordando o coisa que está funcionando. seu nascimento. À frente deste encontra-se a estátua “Hommage a Pessoa”, uma escultura de bronze com 4 metros de altura inaugurada em 2008, por ocasião do aniversário do poeta. E depois fui ao Café A Brasileira, onde Pessoa era assíduo frequentador. Por esse motivo há uma estátua do poeta bem à frente do

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Café, com um lugar vago ao para a Rua dos Douradores». lado para o turista sentar e ser fotografado com Pessoa. O que me deixou confuso é que, mesmo com toda a É muito interessante seguir os passos de Pessoa na sua amada Lisboa. Existem outros lugares frequentados por Pessoa em Lisboa, mas há um, ainda, que é bem marcante na sua literatura. Trata-se da Rua dos Douradores, onde Pessoa almoçava frequentemente, em 1913, no restaurante de galegos Antiga Casa Pessoa. Ele tornou a rua célebre, no seu Livro do Desassossego, pois o seu heterónimo Bernardo Soares, que assina o livro, celebridade dada à rua dos colocou-se como ajudante Douradores no LIVRO DO de guarda-livros, a trabalhar DESASSOSSEGO, que e morar nesta rua, mencio- transformou-se num clássico nando que «Se eu tivesse o da literatura portuguesa, a mundo na mão, trocava-o, rua é obscura, com vários estou certo, por um bilhete prédios abandonados, sem

VEM AÍ A EDIÇÃO 150 DO SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA MAIS DE 39 ANOS DE LITERATURA Leia a revista SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA, do Grupo Literário A ILHA, publicação que já está no seu trigésimo nono ano de circulação, no endereço: https://issuu.com/grupoliterarioailha/docs/revistaliteraria_146_alta

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nenhuma alusão ao fato. E foi nesta rua, também, que morou Anthero de Quental, importante escritor português. A rua ainda serviu de cenário em uma obra de Eça de Queiroz. E nem por isso mereceu a atenção do poder público para a sua preservação e manutenção. Uma pena. Fiquei um pouco triste pelo fechamento do meu passeio em Lisboa, pelos caminhos de Pessoa, mas voltei para casa para escrever este artigo, ler a poesia de pessoa e continuar lendo o Livro do Desassossego. Parabéns, meus poeta, pelo seu aniversário. Você, Pessoa, continuará vivo eternamente através da sua poesia.


POESIA

TAMARA ZIMMERMANN FONSECA CATARATAS DO IGUAÇU Fecho os olhos Mentalizo o lugar Respiro fundo Ouço o ronco de suas ferozes águas Passando ao alcance de minhas mãos Sinto as gotas, que tentam Em vão, fugir da queda A refrescar meu corpo, Numa sensação De liberdade e euforia De sorriso e braços abertos Minha gratidão Ao Criador Por esse presente divino Cataratas do Iguaçu Sua beleza é como um abraço De Deus!

Filha de peixe, peixinho é: Tamara é filha da escritora Edltraud Zimmermann Fonseca, não é à toa que é poeta.

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ENTREVISTA

MANOEL DE BARROS Manoel Wenceslau Leite de Barros, o nosso Manoel de Barros, menino-poeta/ poeta-menino, nasceu em Cuiabá, em 9 de dezembro de 1916 e nos deixou em Campo Grande, 13 de novembro de 2014. Foi advogado, fazendeiro e poeta. Foi um renovador da língua poética e é autor de várias obras pelas quais recebeu prêmios, como o Prêmio Orlando Dantas, em 1960, conferido pela Academia Brasileira de Letras ao livro Compêndio para Uso dos Pássaros.

fabulosas. Pergunta - Quando faz cinquenta anos que Guimarães Rosa lançava Grande Sertão: Veredas, você completa 90 anos, t a m b é m re c r i a n d o e remexendo com as estruturas formais da literatura. Trace um paralelo do que representa este momento. MANOEL DE BARROS - Outra vez o Rosa me

Em 1969 recebeu o Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal pela obra Gramática Expositiva do Chão e, em 1997, o livro Sobre Nada recebeu um prémio de âmbito nacional. Esta entrevista foi publicada na revista Caros Amigos, nº 117, em 2008, uma das raras vezes em que o poeta recebeu jornalistas em sua casa. As perguntas nem sempre são as melhores, mas as respostas, ah, as respostas, elas são

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contou: “Precisei botar o nosso idioma a meu jeito a fim que eu me fosse nele. Botei minhas particularidades. Usei de insolências verbais, sintáticas e semânticas, me encaixei na linguagem. Fiz meu estilo. Eu achava que o escritor havia que estar pregado na existência de sua palavra. E você, Manoel?” Me perguntou. Respondi: “Eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de


palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério”.

a poesia vêm de minhas dobro. Duas vidas, uma percepções infantis. para ensaiar e outra pra representar. Você conPergu n ta - Fale u m corda com isso? pouco sobre a infância, a

juventude e a velhice. Pergunta: O que ficou na sua cabeça do encontro MANOEL DE BARROS - A um editor que me com Rosa? sugeriu que escrevesse MANOEL DE BARROS um livro de memórias - Conheci o Rosa na pri- eu respondi que só tinha meira viagem que ele memória infantil. O editor fazia para o Pantanal. Fui me sugeriu que fizesse ao encontro de um mito. memória infantil, da juvenPorque, para mim, ele era tude e outra da velhice. um mito. Porém, no ins- Estou escrevendo agora tante que o conheci, ele minhas memórias infantis se tornou um ser amável e da velhice. bom de conversa. Conversamos sobre nada e passa- Pergunta - Tem uma rinhos. Foi uma conversa frase de um ator que nunca me saiu da cabeça. instrutiva! Dizia que Deus fez tudo Pergunta: Aos 90 anos bom, só cometendo um s e m p r e v o l t a m o s à erro: a duração da vida. infância? Você afirma A vida é muito curta que seu conhecimento e deveria ser não infiv e m d a i n f â n c i a . É nita, pois seria muito p o rq u e t a l v e z , c o m o chata, mas pelo menos o Sócrates, tudo que sabemos é que nada sabemos? MANOEL DE BARROS A metáfora era essa mesmo. Tudo o que eu aprendera até meus 90 anos era nada; meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para

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MANOEL DE BARROS - Concordo, sim. E até proponho uma solução científica. Seja esta: O Tempo só anda de ida. A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer É só amarrar o Tempo no Poste. Eis a ciência da poesia: Amarrar o Tempo no Poste! E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste. Pergunta - Se a angústia é um espinho na carne, que não se pode tirar, para o poeta a passagem do tempo é angustiante?


MANOEL DE BARROS - Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Pergunta - Qual o sentido da poesia? MANOEL DE BARROS A abelha ao sugar o néctar, vai refinando, refinando, até sair o mel. Poesia é o mel da palavra. Não sei se o mel tem sentido. Não sei se uma fuga de Bach tem sentido. Não sei se uma rosa tem sentido. O que sei é que a fuga produz encantamentos. E que a poesia é feita para produzir encantamentos. Como os gorjeios dos pássaros. Houve um tempo em minha vida que fui morar em uma Usina na beira do rio Cuiabá. A usina produzia cachaça. Tinha cachaça de terceira, de segunda, de primeira; e tinha o restilo. O restilo é a mais fina destilação da cana, a própria essência. Poesia é a mais pura destilação da palavra. Não sei se isso dá sentido à poesia. Pergunta - Poesia é devaneio com método? MANOEL DE BARROS - Quando um homem se aperfeiçoa para pássaro,

ele está querendo ser poeta. Mas para ser poeta ele precisa adquirir o terceiro olho. Aprendi com Sófocles que há três olhos: o divinatório de Tirésias; o olho dos conhecimentos e por fim o olho da arte que é o terceiro. Portanto, a arte que é o terceiro olho se faz com o sentido divinatório e os nossos conhecimentos. Não basta aperfeiçoar-se em pássaro para cantar. É preciso imprimir no canto uma arquitetura humana. O método. Poesia não é devaneio, ora pois. É trabalho com palavras. Pergunta - As coisas mais desimportantes são as mais importantes para o poeta? MANOEL DE BARROS - Palavras que moram nos fundos de uma cozinha — tipo lata, borra, cisco, são mais importantes para mim do que as palavras que moram nos sodalícios. Da mesma forma os homens que descobriram as suas insignificâncias, são mais

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importantes para mim do que os reis e os príncipes. Já disse que o ínfimo e os pobres-diabos, têm mais importância para mim do que os poderosos. O mais rico para mim não é o que descobre ouro, mas aquele que descobre as coisas que não prestam. Acho que a sucata tem mais valor para os artistas de hoje do que as jóias pendentes. Acho que o desejo de Clarice Lispector veio disso, quando gritou: “Quero escrever a sucata das palavras”. Pergunta - O que mais importa nesta vida banal e breve? MANOEL DE BARROS Não sei. Muitas vezes ouvi uma sentença popular que diz: O que se leva da vida é a vida que a gente leva. Pra quê ficar remoendo? Acho que o importante é buscar o regozijo. No amor a dois ou no amor ao próximo. Fernando Pessoa que sabia da vida com solidão e desespero


escreveu: “Há filosofia bastante em não pensar em nada”. Mas isso é pra não dizer nada. Eu também não sei responder nada. Peço indulgências. Pergunta - Arte é uma desgraça divina?

MANOEL DE BARROS - Só pra não misturar: poesia mora nos sentidos. Filosofia mora na razão. Poesia não indaga: advinha. Aliás, o próprio Aristóteles disse que o conhecimento passa primeiro pelos sentidos. Os filósofos fazem as suas sentenças em cima do que os poetas divinaram. Ao poeta é dado transfigurar o mundo. Ao filósofo é dado explicar. O poeta canta. O filósofo medita. Pra meu gosto, melhor é cantar.

MANOE DE BARROS - O artista pode até ser um desgraçado, mas a sua arte há de sempre ser uma graça. Pode ser que Rimbaud tenha sido um desgarrado, mas ele pôs vertigem nas palavras. Produziu encantamentos. Não acho que arte seja uma desgraça Pergunta - O padre divina, portanto. Acho que Vieira diz que “eu preciso de tempo para ser breve”. arte é uma graça humana.

régios delas. Esse paradoxo é um presente régio que o padre ganhou por ter passado a vida a lisonjear palavras. Acho que Vieira limpava a sua prosa ao ponto de poesia. Essa frase é poética por todas as ressonâncias literais e semânticas. Todos nós precisamos de tempo para enxugar as frases. Dizer a eternidade em duas palavras é uma eternidade em duas palavras. Pergunta - A eternidade está no presente?

MANOEL DE BARROS Fui ao Diconário de Littré à busca de uma definição para eternidade. Achei Pergunta - Tudo é filo- MANOEL DE BARROS estas: eternidade pode sofia, mas nem tudo é - Vieira lisonjeava as pala- ser a duração infinita do poesia? vras para obter favores tempo. Pode ser sinônimo de sempre. Pode ser sinônimo de nunca mais. De para todas as horas. E de para nunca dos núncaras. Se a eternidade está presente, eu deixo de saber. As coisas abstratas não podem ser fotografadas. Eternidade é uma palavra muito encostada em Deus. E pouco encostada nos homens. Sou ínfimo para entendê-la. Pergunta - O que se há de fazer frente ao mistério das coisas? E para o poeta, qual o sentido da

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vida?

na sua poesia? Seria por expor um dialeto infantil? Memórias Inventadas – A Segunda Infância, por exemplo, seria na sua concepção uma brincadeira de criança?

MANOEL DE BARROS - Sou um homem de fé. Acho-me incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim, a razão é acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um MANOEL DE BARROS - Aprendi com meu filho símio. quando ele tinha 5 anos Pergunta - Nossa Senhora da Minha Escuridão é um livro um tanto deísta, meio católico para quem o leu. Você crê mesmo em Deus ou, como a maioria dos poetas, no fundo, no fundo, é um agnóstico? MANOEL DE BARROS Eu não sou agnóstico. Eu creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinaram mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino pela ignorância.

zação das coisas está em sua poesia? MANOEL DE BARROS Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal. Perguntas - Se tivesse que ser crítico de seus poemas, quais temas você diria que são mais recorrentes?

que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu filho falou um dia: “Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele”. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: “É o impossível verossímil”. Pois não tem disso a poesia?

MANOEL DE BARROS - Acho que ser gente é o tema tão mais recorrente. Ou não ser gente. Se o tempo não é humano eu humanizo. Amarro o tempo no poste para ele parar. Boto a Manhã de pernas abertas para o sol. Me horizonto para os pássaros. Uma ave me sonha. O dia amanheceu aberto em mim.

Pergunta - Seus versos P e r g u n t a - P o r q u e têm mesmo pernas, bocas, Pergunta - Por que os a l g u n s a c h a m g r a ç a sexo, etc.? A humani- clássicos são sempre

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necessários e quais influências na sua literatura, dos “faróis” da poesia mundial, Valéry, Baudelaire e Homero? MANOEL DE BARROS - Penso que a partir dos “faróis” o poema passou a ser um objeto verbal. Por antes ele andava romântico. Recebia inspirações celestes. E até se falava em mensagens poéticas. Depois de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feita de palavras e não de sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de ideias. Pergunta - Quanto tempo da “inspiração súbita” demora para virar um poema? MANOEL DE BARROS Inspiração eu só conheço de nome. O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita, eu busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos para o poema. Pergunta - Você está escrevendo algo no momento? E, além de escrever, o que dá mais

prazer ao poetas nos dias boas melhoram o nosso de hoje? ego. MANOEL DE BARROS - Estou escrevendo a terceira parte das minhas Memórias Inventadas. No demais releio minhas velhas preferências literárias. E de tarde, bem na hora do crepúsculo do dia que emenda com o meu crepúsculo, ouço música. A música erudita, principalmente, desabrocha minha imaginação. Acrescento um pouco de álcool que me ajuda a ter visões. Mais tarde elaboro as visões. Pergunta - De que forma você recebe as críticas positivas e negativas sobre o seu trabalho? MANOEL DE BARROS - Não sou diferente: as críticas contra fazem um gosto amargo na alma. As

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Pergunta - Você tem fascínio pelo primitivismo e já morou com índios. O que seria o conceito de vanguarda primitiva? MANOEL DE BARROS - Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos.


POESIA

JOSÉ ALFREDO EVANGELISTA ARCO-ÍRIS DO AMOR Dependurado na abóbada celeste da paixão Reina solene o rei amor luzindo sua luz! Brilhando sobre seu inimigo ódio É o astro rei de infindas flechadas no coração! Espargindo-se em cores, o amor expressa seu arco íris: De paixão dolorosa brota rubra sua investida; Na calmaria do romance é todo azul; Do verde esperança alcança a volúpia desmedida... Sua riqueza resplandece no esplendor do amarelo; De um romance singelo brota a paz na alvura; Sua bravura remete às alturas do azul-anil; E no silêncio amante reflete sua candura! Um arco-íris colorido sela o ato de amor. Sua curvatura vem do céu à terra! Das alturas o amor se rebaixa ao chão! Seu destemor e coragem a paixão desterra!

É autor dos livros: “TENENTE CLÁUDIO PEREIRA – Tributo e Memórias”; “CASOS E CAUSOS DA CASERNA – Relatos de um militar inativo”; “DIVAGAÇÕES POÉTICAS - Um olhar aos meandros da vida” e “CONTOS & CRÔNICAS – Uma resenha da vida”, “POEMAS DA ALMA”, “VERSOS DESNUDOS”, “UMA RESENHA DE VIDA”, “JORNALISMO EM VERSOS”.

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POESIA

JOSÉ ALFREDO EVANGELISTA DOÇURA DE MEL Amigo comigo Junto no caminho. Amigo das horas... Nele confio; Sua amizade é alimento! Da minha fé é sustento! Amigo de sempre, Que me compreende! Amigo fiel. Doçura de mel. Amizade antiga E duradoura; Sempre bem-vinda E imorredoura. Na fidelidade E na humildade, Sempre pronto Para um encontro! No aperto de mão, Amor que vem do coração! E no abraço apertado, Assim é um amigo selado!

ANTOLOGIA ESCRITORES DO BRASIL No próximo ano de 2020, o Grupo Literário A ILHA completa 40(quarenta) anos de existência, de persistência e resistência em favor da literatura brasileira. Para comemorar,

publicaremos uma nova antologia poética, para reunir num só volume o máximo de autores, novos ou não, mostrando um pouco da atual poesia brasileira. Escri-

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tores que publicam nas revistas ESCRITORES DO BRASIL e SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA, podem ir preparando seus poemas.


POESIA

JOSÉ ALFREDO EVANGELISTA CINTILA UMA LUZ Há uma luz cintilando lá no céu da esperança. Na grande abóbada, um cenário de alta luz. Brisas amenas sopram de calmas ondas... Em remansos, minha nau segue segura; Suas velas de branca alvura flamejam pela esperança em mar de bonança! Há uma luz cintilando do grande farol poderoso abrasando o esperançoso! Alta luz inacessível... Ao justo reconhecível assegura na noite escura, ancoragem segura! Há uma luz cintilando qual bússola indicando um porto seguro ao coração puro!

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POESIA

JOSÉ ALFREDO EVANGELISTA MORRE O AMOR! Morre-se cada vez que não se ama Cada vez que não se proclama A vida com amor que clama! Morre-se um pouco mais E ademais, sem amor não se vive! Morre-se cada vez que O amor é um talvez... Dos sentimentos uma mudez... Morre-se incapaz... Sem amor, anda-se para trás Numa ida sem volta Em vida de revolta! Mata-se o amor sem dor; Sepulta-se a felicidade; Perde-se a humanidade; Transmuta-se a verdade! Morre-se cada vez que Não se quer o amor! Numa vida de tremor!

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POESIA

JOSÉ ALFREDO EVANGELISTA QUIRIATIVIDADE GOROBAL Se a Gorobo cria, eu também vou quiriar! A minha quiriação é com as palávaras: Peresistentes elas comvenssem Poroque não enganam! A deferensa é que elas não mentem! Quiriação literária só enganderece o saber! Poroisso levo tudo na birincadeira Mesmo que seja gorobal! Não faço poroparaganda Enganosa nem política! Os barasileiros não apereciam ler... Mas nesta beresteira que esquerevo Serão motivados a apereciarem, Pois, esquerevo o que concebo!

JOSE ALFREDO EVANGELISTA nasceu no dia 25 de Fevereiro de 1946, na cidade de São Roque-SP. Ingressou nas fileiras do Exército Brasileiro e passou para a reserva, na graduação de “Subtenente”, após trinta anos de efetivo serviço, tendo fixado residência na cidade de Lorena onde formou sua família. Formado em Teologia na Universidade Salesiana de Lorena e Jornalismo na Universidade Braz Cubas em Mogi das Cruzes. É um dos fundadores da ALLARTE – Academia Lorenense de Letras e Artes.

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RESENHA

LAURO JUNKES “A LUZ DOS SEUS OLHOS” DE LUIZ CARLOS AMORIM Já por diversas vezes reiterei a opinião de que a literatura, para manter-se com vitalidade, necessita inverter o provérbio que reza “Longe dos olhos, longe do coração”. Como a literatura depende do leitor tanto quanto do escritor – seria inócuo qualquer livro sem leitor para fruir sua beleza – a veiculação de informações e comentários sobre arte literária ou outras artes prepara o ânimo e o espírito receptor dos leitores. Nesse sentido, realmente merece aplausos o idealismo dinâmico de Luiz Carlos Amorim, nascido em Corupá/SC à frente do Grupo Literário A Ilha, seja nas edições de sua revista SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA em papel, seja em páginas eletrônicas.

2005), em que o autor selecionou narrativas da sua vasta produção. Primeiro ponto a ressaltar: Amorim é fiel a uma linha narrativa fluente, cronológica, destituída de malabarismos estruturalistas, porque seu alvo – quanto à diegese explorada e ao leitor para quem se dirige – é o universo concreto, cotidiano, constituído por aquelas pessoas que estão sempre ao nosso alcance, quando nos dispomos a abrir de fato os olhos para perceber

Nos traz às mãos e aos olhos, também, uma antologia sua de contos, A LUZ DOS SEUS OLHOS (Florianópolis: A Ilha Edições,

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o que nos circunda. Lendo os relatos desse autor, em grande parte filtrados por um narrador em primeira pessoa, tem-se a impressão de que um repórter observador percorre insistentemente espaços públicos e privados, radiografando nossa sociedade. Em O Presente de Natal, um repórter conversa com crianças sobre o significado dessa data, para além dos presentes e da comercial figura do Papai Noel – o Natal dos ricos e dos pobres, abrangendo tonalidades espiritual e social. Autêntica solidariedade encontrará originais caminhos para, no Natal, tantos discriminados receberem Um Papai Noel para Mim. No conto-título, A Luz dos Seus Olhos concretiza-se a solidariedade plena, quando o próprio narrador compartilha sua visão com uma menina que cegara em acidente. O repórter se insinua em um Jardim


de Infância para protestar contra discriminação racial e maus tratos contra os pequenos, sendo também o Preconceito social desmascarado quando um concurso público não gera os mesmo direitos para um deficiente físico. Mas a Fraternidade poderá igualmente desiludir-se, até desesperadamente, como com um trabalhador desqualificado, com esposa e 5 filhos, ou então quando uma desesperada mãe sai em busca de auxílio para A Cura da filhinha doente. O que dizer da Gente da Terra que faz empréstimo junto ao implacável banco e se afunda em dívidas, porque a natureza não corresponde a seus esforços? Entretanto, a solidariedade poderá manifestar-se quando um pobre pensionista solicita Empréstimo para “pagar o médico por fora”(!!) em cirurgia pelo INSS. Aspecto mais ameno ocorre ao entremearem-se diversas narrativas centradas no “maior amigo do homem”: em Amigos, Amigos, a cachorrinha Diana comprova sua fidelidade ao “alemão” Fritz; outra Diana, adotada após abandono, vai trazer consequências afetivas, e a cachorrinha pincher Minie gera tanta

afeição que sua morte faz para ter seu primeiro filho, desejar Um Céu para ‘Dona poderá surpreender-se com Menina’. A Intrusa criança colocada à sua porta – que reações Situações as mais diversas tiveram? E você faria o atraem o olhar sensível mesmo, no lugar de cada para as carências e dores um? Quais as consequêndo mundo: a bela e jovem cias e perigos, quando um Teresa do Mar perde o garoto recebe boa gorjeta controle da razão com para entregar um pacote o desaparecimento de na Casa do Fim da Rua? Pedro Pescador no mar; Até um noivo poderá praum viúvo poderá ter sur- ticar um disfarçado Rapto presas, quando, em sua da noiva, visando a obter dinheiro que lhe dê condições para casar e também um namorado poderá experimentar dificuldades para oferecer um Presente que satisfaça os caprichos da amada.

Última Noite, acompanha amigo para uma “casa suspeita”; reações inesperadas poderão evidenciar Pedaços do coração de uma professora de Psicologia, ao receber rosas “pelo Dia das Mães”; inesperado Assalto e despejo poderão acabrunhar a mãe que tenta educar seus filhos; por outro lado, um jovem casal, aguardando condições

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Enfim, desdobra-se em todas as direções o universo diegético de Luiz Carlos Amorim. Apresentam-se suas histórias envolvidas em forte tonalidade emocional, representam protestos conscientes contra tantas desumanidades geradas em sociedade. No entanto, o autor respeita os fatos da vida cotidiana, retratando personagens, fatos e atos perfeitamente compatíveis com a realidade. A LUZ DOS SEUS OLHOS certamente tornará mais agudo o olhar do leitor sobre a sociedade em que vive.


POESIA

SUZANA ZILLI DE MELO SEMENTE O que é a semente Lançada na terra, Germinando no solo, Renascendo a cada dia? Bendita semente que faz Nascer a vida em forma De árvores, Frutos, Plantas... És a natureza em harmonia, Obra divina do Criador, Neste grande gesto de amor!

OUTONO

No orvalho da manhã, Senti o amor a pulsar, No clarão do sol ameno, Folhas caindo E o outono a chegar.

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CONTO

FLÁVIO JOSÉ CARDOZO BICHOS, GENTE Menino, tu que gostas de olhar os bichinhos do mundo, me diz uma coisa: qual deles querias ser se não fosses gente? Sabes que mais de uma vez me surpreendi pensando nisso?

sujeito de setecentos quilos que vive no gelo e corre como um cavalo; pensei no cavalo, talvez o animal mais bem construído que existe, não sei se tu concordas.

Já fui pretensioso à beça. Pensei na águia real, que voa a duzentos quilômetros por hora; pensei no condor, que é quase como um avião – tem três metros de uma asa a outra e sobe a mais de cinco mil metros; pensei no tigre, tipo aquele da Esso, de pelo rajado, salto atlético, cabeçorra de rei; pensei no urso-branco, um

Com o tempo, fiquei mais modesto. Ser um burro, por exemplo. Pensas que me chatearia se uma varinha mágica – toc! – me transformasse num bem orelhudo? Nada de piada, nada de dizer que já sou um burro bem orelhudo. Estou falando sério, falo do burro mesmo, de quatro patas, um camarada tão plácido e

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ao mesmo tempo tão dono de si, que embirra firme quando acha que não estão agindo certo com ele. Um burro não seria mau, podes crer. Como não seria má a coruja. É feia? A gente é que diz que é feia, são nossos olhos bobos – para nossos olhos bobos ela de fato não serve para miss. Mas me agrada muito o jeito pensativo que ela tem, num toco de pau ou numa torre de igreja, jeitão que não a impede de ser habilíssima na hora da caça. E por que não o grilo, esse cidadãozinho sempre escondido? Dizemos que ele é chato, ele que é apenas um cara persistente. Cismou em querer ser cantor e como trabalha para isso! Esfrega uma asa na outra cento e cinquenta vezes por segundo, sabias? Tenho certeza de que um dia ainda vai cantar nem que seja uma musiquinha xaropinha de uma dessas


uma vicunha? Sabes o que tem a vicunha de muito especial? Pois dizem que a vicunha com um minuto de vida já corre mais do que um homem. Barbaridade. Queria ver que cobrador me alcançava se eu fosse uma vicunha já adulta.

duplas ditas caipiras que raram goela abaixo do coiexistem por aí. tado. Se eu fosse político, ia ficar bem indeciso entre P e n s e i n o c r o c o d i l o ser uma esperta raposa também, mas esse fica bom ou um crocodilo capaz de mesmo é para quem anda engolir tudo numa boa. na política. Olha só: os sucos digestivos de um cro- E nos dias de apertura codilo conseguem desman- financeira e eventuais char anzóis de aço, pontas atrasos em algum pagade ferro, tudo o que empur- mento por que não ser

É tudo brincadeira. Isso aí é só um agrado nos bichos. Nasci gente e, por enquanto, até que estou gostando disso – dá umas tristezas de vez em quando, mas também dá umas alegrias. Por exemplo: só sendo gente é que se pode ter mesmo uma visão bem boa da maravilha que são nossos manos bichos – todos eles, grandes e pequenos.

LANÇAMENTO NA FEIRA DO LIVRO DE LISBOA O Fundador e Presidente do Grupo Literário A ILHA e editor das revistas S U P L E M E N TO L I T E RÁRIO A ILHA e ESCRITO R E S D O B R A S I L , Luiz Carlos Amorim, esteve representando o grupo de escritores brasileiros na Feira do Livro de Lisboa, autografando

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seus mais recentes títulos, incluindo PORTUGAL, MINHA SAUDADE - crônicas e A COR DO SOL poemas em cinco idiomas: português, inglês, espanhol, francês e italiano. Na oportunidade, apresentou aos leitores portugueses as duas revistas do grupo.


GRANDES POETAS BRASILEIROS

VINÍCIUS DE MORAES SAUDADE DE MANOEL BANDEIRA Não foste apenas um segredo De poesia e de emoção Foste uma estrela em meu degredo Poeta, pai! áspero irmão. Não me abraçaste só no peito Puseste a mão na minha mão Eu, pequenino – tu, eleito Poeta! pai, áspero irmão. Lúcido, alto e ascético amigo De triste e claro coração Que sonhas tanto a sós contigo Poeta, pai, áspero irmão?

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

MANOEL DE BARROS OS DESLIMITES DA PALAVRA Ando muito completo de vazios. Meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades. Não posso mais saber quando amanheço ontem. Está rengo de mim o amanhecer. Ouço o tamanho oblíquo de uma folha. Atrás do ocaso fervem os insetos. Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino. Essas coisas me mudam para cisco. A minha independência tem algemas

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

ARIANO SUASSUNA AQUI MORAVA UM REI Aqui morava um rei quando eu menino Vestia ouro e castanho no gibão, Pedra da Sorte sobre meu Destino, Pulsava junto ao meu, seu coração. Para mim, o seu cantar era Divino, Quando ao som da viola e do bordão, Cantava com voz rouca, o Desatino, O Sangue, o riso e as mortes do Sertão. Mas mataram meu pai. Desde esse dia Eu me vi como cego sem meu guia Que se foi para o Sol, transfigurado. Sua efígie me queima. Eu sou a presa. Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

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GRANDES POETISAS BRASILEIRAS

MIRIAM ALVES CALAFRIO O sorriso gela a porta do paraíso prometido A tarde cobre-se de frio grita esconde-se atrás dos casacos faz esculpir aquela saudade do lugar jamais percorrido. Escorrem feito sorvete as esperanças derretidas no ardor do querer.

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GRANDES POETISAS BRASILEIRAS

ANA MARIA MACHADO SEM TÍTULO Cabeça de palavras povoadas Conversas de amplidão imaginada Mas que leitura tanto poderia? Cheiro salgado a entrar pelas narinas E a dança leve de algas submarinas Sal azul, movimento de água fria O que se leu mostrava o infinito Só não se imaginava tão bonito Tão pleno de surpresas e imprevistos Mesmo em tantas belezas celebradas Por todas as palavras encantadas Por mares nunca dantes entrevistos

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POESIA

OLGA SAVARY PEDIDO [A MANUEL BANDEIRA] Quando eu estiver mais triste mas triste de não ter jeito, quando atormentados morcegos – um no cérebro outro no peito – me apunhalarem de asas e me cobrirem de cinza, vem ensaiando de leve leve linguagem de flores. Traze-me a cor arroxeada daquela montanha – lembra? que cantaste num poema. Traz-me um pouco de mar ensaiando-se em acalanto na líquida ternura que tanto já me embalou. Meu velho poeta canta um canto que me adormeça nem que seja de mentira.

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GRANDES POETAS BRASILEIROS

CRUZ E SOUSA ENLEVO Da doçura da Noite, da doçura De um tenro coração que vem sorrindo, Seus segredos recônditos abrindo Pela primeira vez, a luz mais pura. Da doçura celeste, da ternura De um Bem consolador que vai fugindo Pelos extremos do horizonte infindo, Deixando-nos somente a Desventura. Da doçura inocente, imaculada De uma carícia virginal da Infância, Nessa de rosas fresca madrugada. Era assim tua cândida fragrância, Arcanjo ideal de auréola delicada, Visão consoladora da Distância...

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DIA DOS PAIS

LUIZ CARLOS AMORIM PARA NÃO FALAR DE PAIS Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, editor e revisor – Cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras. Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, que completou 39 anos em 2019. - Http:// lcamorim.blogspot.com.br – http://www.prosapoesiaecia. xpg.com.br

milagre de nos dar a vida de presente. E quero falar de avós, pois avós são pais encantados pela beleza e pela magia de um ser que representa recomeço, representa o futuro, a vida, enfim. Representa a descoberta de sentimentos que não sabíamos que éramos capazes de ter.

Neste Dia dos Pais não vou falar de pais e de filhos. Será? Acho que vou, sim, vou falar de filhos, mas vou falar mais de netos. Digo isso, porque minha filha me deu, recentemente, um presente incomensurável para este pai que já vai ficando marcado pelo tempo, presente esperado e desejado. Ela me deu um neto, Rio, que chegou em abril e, é claro, eu e a vó nos mudamos de mala e cuia para Lisboa para encher os olhos e o coração com essa alma encantadora e abençoada que acaba de chegar a este mundo, tornando-o tão melhor.

Já tenho mais de sesssenta e,

Então, não quero falar de pais, quero falar de fihos, pois sem eles, como ser avô? Então agradeço às minhas filhas pelo

quando minhas filhotas vieram, para nos darem os motivos maiores de viver, eu já tinha completado trinta. Então, o tempo para eu ser avô também foi jogado um pouquinho pra frente, eu já estava ficando um pouquinho triste com a demora da chegada dessas

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criaturinhas maravilhosas que são mais que filhos, são os netos, abençoados netos que significam o resgate da criança que havia em nós, das crianças que nossas filhas foram, nossas meninas que cresceram e foram viver suas vidas, deixando a casa vazia de suas presenças, de suas almas, mas cheia de saudade. E a vida acontece de novo, esplendorosa, explodindo em nossas mãos. São os netos chegando: Daniela nos deu Rio, a pessoinha mais neta do mundo, mais linda e mais fantástica, uma felicidade nova, uma felicidade que a gente não conhecia. E é bom ser feliz, sentir essa felicidade que começa nos outros e vem e toma a gente de roldão. Essa felicidade tem um nome, agora: Rio. O neto. E descobrir novas felicidades é divino. Ser avô é isso. Obrigado, Daniela. Obrigado, Rio. Feliz Dia dos Pais a todos os pais e avôs. Ser feliz é tudo. Tive o meu primeiro Dia dos Avós, este ano e ele foi muito feliz. Dias Felizes.


POESIA

PINHEIRO NETO CENA IV A pele das mãos enrugada. Pintas, ferrugens cortam e contam passado sem te(n)sões Reúnem-se espectros no pátio da vida. Planejam o sequestro do tempo que resta.

Pinheiro Neto é o atual Presidente da Academia Catarinense de Letras, com sede em Florianópolis, e o poeta vem fazendo um ótimo trabalho na aproximação da instituição com o público e na divulgação da literatura dos catarinenses.

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POESIA

LUÍS LAÉRCIO GERÔNIMO PEREIRA POEMA PORTUGUÊS Sonhar, sonhar; sonhar, sonhei! Do meu sonho ao despertar, bem nostálgico, acordei. No sonho, me vi navegar em águas calmas a declamar Um poema português. Do sonho, recordei aos prantos: Enchi-me de uma saudade à Albufeira; Naveguei pelo Atlântico, dos Açores à Madeira, Porém, prendi-me num canto, por seus ares e encantos, Portugal, Pátria primeira! Exaltados pela História navegadores do novo continente; Guardados em nossa memória, de um jeito poético e ardente. Saramago, Camões e Garret, poetas que nos remetem Ao Auto da Barca, de Gil Vicente.

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Lisboa, Porto e Coimbra, cidades fenomenais; Sagres, Fátima e Sintra, Alcobaça, Estoril e Funchal, Terras de perpétua cultura, lindas, Fernando Pessoa, nascendo pra vida, Despede-se e dá o último adeus a Antero de Quental. Do leito do Sado, belo, de Setúbal para além de nós, A literatura é um elo, que une a todos nós; Em caravelas velejo, obras universais eu vejo, Obras de Eça de Queiroz! História, cultura e arte, língua, povo e tradição, Vós, portugueses, foram os baluartes da nossa religião, Com os africanos formastes, junto aos índios que aqui encontrastes, O embrião desses países irmãos.

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CRÔNICA

EDLTRAUD ZIMMERMANN FONSECA A DIFICIL ARTE DE ENVELHECER Perguntei ao meu filho de doze anos qual era o seu plano de vida e o que pensava sobre o futuro. Surpreendeu-me a resposta: - Mamãe, penso como criança e vivo como criança, meu plano de vida hoje é ser criança! Fiz a mesmo pergunta a um de seus amiguinhos da mesma idade e obtive a seguinte resposta: - Nos fins de semana vendo cristais pelo catálogo, pedalo de dez a quinze quilômetros de bicicleta, batendo de casa em casa. Ganho um bom dinheiro, que deposito na poupança. Não gasto um níquel. Aos dezesseis anos, quero entrar num consórcio de carro e, aos dezoito anos, ter o meu carro zerinho!

tenha curtido as fases da vida (e elas são deliciosas), estará credenciada a chegar à velhice com alegria. Envelhecer é arte das mais difíceis. É na velhice que conferimos nosso sucesso ou não. Se vencemos, tanto melhor! Se não, desanimar não é o caminho; sempre há tempo para um recomeço! Aceitar a idade sem rejeição, com amor. É sublime envelhecer com autenticidade. É a mais bela fase da vida do homem: é o ciclo da colheita; é ter alcançado o topo da montanha e, embevecido com a tranquilidade da planície, continuar semeando bondade, ternura, paciência, compreensão, perdão, amor, tolerância,

predicados preciosos acumulados ao longo da existência. Exemplos de vida? Dercy Gonçalves, Henriqueta Brieba, Mário Lago, Ulisses Guimarães, Paulo Afonso Arinos, Tristão de Athaíde, Grande Otelo, Cora Coralina - que se tornou famosa depois dos setenta anos, quando conseguiu editar o seu primeiro livro de poesia Poemas dos becos de Goiás e Estórias Mais. Aos 95 anos, escrevia: ”Nunca escreverei uma palavra para lamentar a vida. O presente é incomparavelmente melhor do que o passado, assim como também o é o futuro com relação ao presente.” Em 1983, aos noventa e quatro anos, foi eleita a “Intelectual do Ano”, com o Prêmio Juca Pato, em cerimônia realizada na UBE de São Paulo. No dia 09 de Abril de 1985, com quase noventa e seis anos, falece no auge da sua carreira literária. Se formos inteligentes, haverá tempo para tudo!

Meditei! Viver intensamente o período da infância, com tudo o que ela tem direito, ou ser um adulto precoce com as preocupações que o envolve? Creio que toda pessoa que

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POESIA

OSMAN CALDAS MEU CANTO Eu não amo os fulgores da riqueza Nem a ambição desmedida dos poderes Nem as festas cintilantes da nobreza Eu pertenço à classe de outros seres Que amam as noites cheias de beleza E só às estrelas revelam suas tristezas Há mais doçura na luz da madrugada Que nos candelabros de salões custosos Há mais poesia na noite enluarada Que nos requintes dos festins suntuosos.

(Nota: Para entender melhor o poema acima, o autor foi desembargador em Curitiba. Mesmo rico, ele continuou simples. E mais poeta que qualquer outra coisa.)

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CONTO

RITA MARÍLIA CARTA RESPOSTA Bom dia Vovó!

para o cais do nunca.

Demorei para responder? Por aqui, tudo bem: aqui Ontem já estava deitado, eu deste outro lado da razão, e as lembranças, tudo em como diz a Dinda... cima da cama. Vó, por aqui, às vezes, falta Me empolguei lendo sua luz. Então acendemos a carta e vendo os desenhos imaginação. Outras vezes que você me mandou e falta água, então abrimos depois fui empolgado pelo a torneira das emoções. sono. Se falta luz e água, corremos pra baixo da cama e Agora, sete horas e o café caímos num abismo fundo, está pronto. A Dinda me escuro e perigoso, cheio de chama, a mãe me chama, lagartixas falantes, vespas mas vou escrever primeiro. gigantes, mulas que voam Sabe de uma coisa? Ainda sem cabeça. O que nunca tem lua e ela está arribando falta, é cama para deitar o

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corpo cansado de carregar preguiça. Eu acho que cama, pra ser bem gostosa, tinha que ter braço. Minha mãe disse que a cama dela tinha. De madrugada, eu fui espiar e achei dois braços. Pela manhã, entrei no quarto dela e só encontrei o pai colocando gravata. Eu perguntei pra mãe onde ela escondia os dois braços e ela disse que quem guardava os dois braços era o pai. Perguntei pro pai onde ele escondia os dois braços da cama da mãe. Ele disse que era segredo. Perguntei pro pai se a minha cama também podia ter dois braços. O pai disse que só quando eu crescer, eu posso colocar dois braços na minha cama. Fui correndo pra cozinha, dizer para a Dinda que minha cama vai ter dois braços, quando eu crescer. A Dinda riu e me deu um abraço. Eu queria os dois braços da Dinda presos na minha cama, mas se eu roubar os braços dela, ela vai ficar sem os dois braços


e vai ficar triste, porque não vai mais poder me abraçar, nem me dar um tapinha sempre que me manda brincar no quintal. De manhã, a coragem sempre me sacode até eu acordar e pular fora da cama. É sempre a hora do café com sono. Na cozinha sempre estão o pai, a mãe, a Dinda, eu e muitas frutas da estação, como a goiaba alegria, a banana preguiça, o kiwi bom humor e muitos outras. Depois, chega a minha irmã com cara de sapo beiçudo. Ruim mesmo é que pela porta da cozinha, que dá para o quintal da vida dos outros, como diz a Dinda, sempre entra o moleque da tristeza carregando os mortos do dia anterior. A Dinda suspira, a mãe suspira e eu, sem saber o porquê, suspiro: todos suspiramos e o pai faz a gente agradecer a Deus por ainda não sermos notícia.

quebrada. Nem sempre faz sol por aqui, Vó, porque nossa imaginação, de tão grande, faz eclipse o dia todo. A mãe disse: pare!, mas nós continuamos rabiscando tanto no azul do céu, até ele ficar todo furadinho: de noite nasceu estrela espiante.

baixei a cabeça porque não sabia responder, mas fiquei desconfiado porque um dia o meu primo chamou meu pai de tio. Briguei com meu primo, porque não quero que meu pai vire tio. Tio é bom, mas não é pai. Dei o Tio para ele e fiquei com meu pai. Acho que meu primo também queria fazer essa troca, mas o meu tio disse que ele já tem pai e não pode ter dois pais. Eu não sei porque o meu tio não vira pai dele. Ele fica com um tio e um pai e pode dizer que de dia ele tem pai e de noite ele tem tio. Mas eu não quero. Eu quero pai de dia e de noite.

Atrás de casa não pode brincar de esconde-esconde, porque as árvores não sabem contar até dez, só até cinco. O filho do vizinho disse que o tio do meu primo disse que elefante também não pode brincar por causa de quê a tromba sempre fica aparecendo. Fiquei chateado. O elefante Meu pai usa gravata… Meu é um cara legal. primo diz que é “graveta” e dá risada… Meu primo é O pai me perguntou quem burro mas não tem orelha era o tio do meu primo. Eu pontuda. Eu fui espiar a

Eu repito: Deus, muito obrigado por ainda não ser notícia. Eu não sei o que é ser notícia, mas agradeço. O que mais gosto é ir, de tarde, jogar corrida com o vento, pular amarelinha com a sombra e, só quando estou sozinho, ir brincar de poetizar assoprando palavras na barriga do caderno de pauta

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orelha do meu primo é bem grandão, mas não cabe o dedo: eu tentei. Minha irmã começou a namorar um homem feio. Meu pai disse para ela que ele era feio. Meu tio disse que ele era feio. Eu disse que o namorado dela era feio. Minha mãe disse pra todos:

“Pro feio ficar bonitinho Uma coisa vou dizer orelha dele e só tem cera orelha e é por isto que, às dentro de um buraco. Meu vezes, eu chamo e ele não Basta olhar com carinho primo tem um buraco na responde. O buraco da Pro feio que você vê. “

O CANTO DO GALO Rita Marília No poleiro canta o galo Para a moça da janela “- Ouça bem moça malvada - Não vou hoje p’ra panela”. E cantando todo dia Vai o galo bem feliz Vendo que da morte fria Vai fugindo por um triz Se levanta o sol cedo E o galo é aprendiz “Vou viver eternamente” Canta assim o infeliz.

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POESIA

SANDE MORAES ROMÂNTICA Sou das tardes de sol poente lá de uma vida serena e praieira, sou das noites enluaradas olhando o céu, contando estrelas. Sou das madrugadas de orvalho, dos cantos de viola em serestas, sou das manhãs de primavera de sol poente e quimeras. Sou do canto dos pássaros a melodia das matas, sou das rosas com espinhos e aromatizadas. Sou dos abraços sinceros entre novos e velhos, a renovar esperanças entre todos os elos. Sou dos sonhos de amor e paz e de toda beleza deste nosso universo, sou das lágrimas em despedida e enfim, da esperança que um dia, os homens voltem a oferecer flores e a dançar um bolero.

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POESIA

RITA QUEIROZ INFINITOS IMPRECISOS A poesia se esvaiu E as dores me habitaram. Pendurei os desejos em stand-by, Outonando os infinitos imprecisos. Nas horas úmidas, Confessei minha fragilidade, Espalhando fragmentos de mim, Da dor de existir em outras margens. Recolhi o sorriso em meio às lágrimas. Traços suaves me fizeram reeditar mapas, Na costura da noite em que desaguei invernos. Ainda pulso poesia E sonho preenchendo os vazios Da minha outra face obscura.

RITA QUEIROZ é natural de Salvador, Ba. Professora universitária, filóloga, poeta, colunista. Autora dos livros Confissões de Afrodite, O Canto da borboleta, Canibalismos (Penalux, 2019, 2018, 2017), Ciranda, cirandinha: vamos brincar com poesia?, Colheitas (Darda, 2019, 2018). Integrante de diversas antologias.

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PORTUGAL, MINHA SAUDADE”, crônicas de além-mar. Edições A ILHA. Pedidos para o e-mail lcaescritor@gmail.com.

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