SUPLE MENTO
LITE RÁRIO Florianópolis - SC • Setembro / 2018 • N.146 • Edições A ILHA • Ano 38
LANÇADA A NOVA REVISTA
ESCRITORES DO BRASIL REVELAÇÃO: A FONTE
ONDE GUIMARÃES ROSA BEBEU PARA CRIAR “GRANDE SERTÃO: VEREDAS
LIVRO EXISTE PARA
SER LIDO – por Luiz Carlos Amorim
O IDIOMA PANLATINO – por Enéas Athanázio
PESSOA E SEUS HETERÔNIMOS: MAIS DE CEM Portal A ILHA: http://www.prosapoesiaecia.xpg.uol.com.br
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são dependentes de cor, são viciados em vida. E meus olhos
VENTO
são como o vento,
Luiz Carlos Amorim
vão onde o vento os leva viajam nas asas dele.
O vento, moinho de espaços, carrega sempre no lombo um bocado de saudades, outro tanto de sentimentos, emoções de toda sorte. Carrega também o caos.
NANO POEMA
Mas ele transporta tudo,
Pinheiro Neto
como um corcel da memória,
I
como alimentador de sonhos,
O verso já não flui
dando asas ao sentir.
o verbo torna-se escasso,
O vento transcende o tempo
as metáforas me abandonam.
pois depositamos nele
As mãos… ah, as mãos
todos os nossos segredos,
- andropauseantes –
para que possam alçar voo
já não acompanham os desejos
na longa viagem dele.
que a mente rouba
Pego carona na cauda
dos lapsos de lucidez.
de um vento viandante
II
para cavalgar estrelas,
Uma vida juntos
para ir além do olhar,
outra vida separados.
para lapidar emoções,
Somos diferentes:
para aprender novas cores.
enquanto moços
Meus olhos, míopes,
- vívidos e ávidos –
são dependentes de luz,
sem sentimentos. Agora velhos, areia da ampulheta descendo rápido goela abaixo. 2
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SUPLE MENTO
LITE RÁRIO
EDITORIAL SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA DIGITAL
A nossa revista agora é digital, eletrônica. Mais uma modernidade a qual o Grupo Literário A ILHA aderiu, pois não há como fugir ao progresso da tecnologia. Mas a edição de número 145 foi um sucesso, teve milhares de acessos e foi lida no mundo inteiro. Aliás, está sendo lida, pois continua disponível no blog CRÔNICA DO DIA, em Httpp://lcamorim.blogspot.com. br, na página do Facebook do Grupo Literário A ILHA, na página deste editor e em várias páginas de grupos literários no Face. O custo de impressão e distribuição da versão em papel tornou-se impraticável, tivemos que nos adequar, mas quem quiser imprimir pode pedir o arquivo em pdf para que possa ter a revista impressa. O Grupo Literário A ILHA está preparando a sua nova antologia, POETAS DA ILHA, que deverá ser lançada ainda este ano, em comemoração aos 38 anos de existência e resistência do grupo e da revista. A coletânea reunirá a obra de sete poetas do grupo que vivem na Grande Florianópolis. Aliás, seis deles, pois um dos poetas, Júlio de Queiroz, está no livro como uma homenagem póstuma, ele que foi e continua sendo um dos maiores escritores de Santa Catarina e do Brasil. A nova revista ESCRITORES DO BRASIL, que teve sua primeira edição lançada em agosto, também foi um sucesso. Milhares de acessos, centenas de leitores enviando mensagens para parabenizar-nos pela publicação do novo espaço para a literatura. Em novembro, nova edição. Quem quiser publicar, contate conosco, pelo email revisaolca@gmail.com . A revista está disponível também no blog CRÔNICA DO DIA, na página do Grupo Literário A ILHA no Facebook e nas páginas de vários grupos literários. O Suplemento Literário A ILHA está no ar, cada vez com mais páginas e mais conteúdo. O Editor
Visite o Portal PROSA, POESIA & CIA. do Grupo Literário A ILHA, na Internet, http://www.prosapoesiaecia.xpg.uol.com.br 3
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PESSOA assinando com mais de E SEUS cem nomes diferentes, HETERÔNIMOS entre heterônimos e
O
grande Fernando Pessoa foi um poeta dos mais incomuns que já existiram. O português repetiu várias vezes que era todo ele uma fragmentação de personalildades distintas e, para dar voz a todas elas, criou para si mesmo uma infinidade de heterônimos. O primeiro heterônimo de Fernando Pessoa apareceu ainda na infância do escritor e se chamava Chevalier du Pás. Mais tarde, ele inventou Charles Robert Anon e H.M. F. Lecher para escrever prosa em inglês. Pessoa criou pseudônimos como Alexander Search, que ele usava para escrever castas para si mesmo e David Merrick, que servia para escrever contos em inglês. Na verdade, em toda a sua vida, Fernando Pessoa escreveu
pseudônimos, com os quais escreveu sob as mais diferentes óticas. Além de Fernando Pessoa, o ortônimo, que publicou pouquíssmas obras em vida (incluindo Mensagem, de 1934) e de Álvaro de Campos, as mais conhecidas facetas do poeta são três de seus heterônimos: Bernardo Soares, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Ao tempo em que fragmentam a obra do poeta em vários estilos e visões de mundo, os heterônimos auxiliam Pessoa na trabalhosa e provavelmente impossível tarefa de procura do “eu”.
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Assim, os focos dos heterônimos tanto se opõem como se complementam, trazendo à tona uma poética que jamais deixa de carregar um traço em comum, ainda que bastante sobredeterminado. Bernardo Soares – Apesar de ter sido o “autor” de uma das mais importantes obras da língua portuguesa, O Livro do Desassossego, Bernardo Soares é considerado apenas um semi-heterônimo, já que, segundo o próprio Pessoa, a personalidade do ajudante de guarda-livros nada mais é que uma mutilação dele mesmo, Fernando Pessoa. Segundo o poeta português, O Livro do Desassossego é uma biografia sem fatos. O livro faz reflexões fragmentadas acerca da existência humana e reconhece a escrita como uma ação sem utilidade, dos que já se entregaram completamente à indiferença. Bernardo Soares tem
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grande importância para os críticos e biógrafos de Pessoa, pelo fato de o próprio poeta ter se admitido parecido com o heterônimo, de forma que os estudos acerca da vida do próprio Pessoa poderiam se basear na obra de Campos. “Crio em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não. Para criar, destruí-me ; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena nua onde passam vários actores representando várias peças.” Alberto Caeiro – Alberto Caeiro é a faceta campestre de Pessoa. Nascido em Lisboa, passou a vida no campo, tendo ares ligeiramente arcádicos. Órfão, foi criado por uma tia-avó, para voltar a Lisboa por pouco tempo, antes de ser vitimado pela tuberculose aos 26 anos de idade. Apesar de ter completado apenas os estudos primários, os heterônimos (e o ortônimo)
o consideram um mestre. Único dos heterônimos a ser um poeta puro, nunca tendo escrito prosa, a temática central de Caeiro é a natureza e ele é completamente antimetafísico. Ainda assim, ele é talvez o mais filosófico e profundo dos heterônimos, pois embora sua obra sugira que não existe mistério algum nas coisas, ele acaba por fomentar a reflexão existencial a partir das coisas mais simples. Ricardo Reis – Nascido na cidade do Porto e educado num rígido colégio de jesuítas, formou-se em medicina, além de estudar latim. Sendo de posicionamento político monarquista, quando a república foi proclamada em Portugal, Reis revoltou-se e partiu de mudança para o Brasil. Seu grande tema é que a morte é certa a tudo o que é vivo e ele é uma espécie de representação do papel da cultura clássica na obra de Fernando Pessoa, que criou Ricado Reis no intuito de escrever poemas pagãos. Há na 5
obra desse heterônimo um delicado equilíbrio entre o epicurismo e o estoicismo e uma forte aura neopagã. Alberto de Campos – Nasceu em Tavira e, depois de estudar num Liceu, foi para a Escócia e se formou engenheiro mecânico e naval. O mais famoso dos heterônimos de Fernando Pessoa é o único cuja obra apresenta fases, assim como as dos poetas reais. Sua primeira fase é decadentista: exprime um completo tédio da vida e a ideia de que não há o que se fazer para remediar tal sensação. Depois vem a fase futurista, em que o poeta é influenciado por Marinetti e exalta a máquina, a industrialização e a tecnologia. Por último, vem a fase abúlica, em que os temas são a tristeza e o cansaço e o poeta passa a ter um quê de niillista.
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O GIRO DO UNIVERSO Salete Holske – Florianópolis, SC
Aí os sonhos voltam leves como flocos e pousam delicados. Então eles se quedam cálidos, silentes e esperam pacientes. E o giro do universo faz-se rápido e mais lento, tão rápido e tão lento. Aí o tempo para e espera que o encontrem, os sonhos se despedem e vagam indecisos, volteiam, revolteiam e vão-se irresolutos e voltam noutro dia, macios como flocos. E o giro do universo, mais rápido, mais rápido, a fonte latejando. O corpo ressuscita e vibra e tudo se transforma. Se o coração palpita e o giro do universo se faz estonteante, se a boca se entreabre num riso atordoado e o sangue jorra e corre igual lava de vulcão, então tudo está bem, permanecemos vivos.
NOTURNO Mario Quintana
Tudo ficou mais leve no escuro da casa. As escadas pararam de repente no ar… Mas os anjos sonâmbulos continuam subindo os degraus truncados. Atravessando os espelhos como se entrassem numa outra sala, o sonho vai devorando os sapatos os pés da cama o tempo. Vovô resmunga qualquer coisa no fim do século passado.
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BRAÇO FORTE, MÃO AMIGA Urda Alice Klueger – Palhoça, SC
OS MENINOS
E
les eram irmãos, e na sua simplicidade explodiam de inteligência. Um já estava mais grandinho, já perdera um pouco da espontaneidade – o de seis anos, no entanto, ainda tinha a candura de um anjo, um moleton vermelho com capuz, uma cesta de Páscoa
na mão, e uma falha no lugar onde um dente novo estava nascendo. - Lá eu vou ter um cachorro novo! Eu e alguns amigos dávamos-lhe corda: - Lá tem passarinho... - E tem lagarto... - Tem cachoeira? – ele
queria saber. - Tem. E tem muito lugar para brincar. - Tem dinossauro? - Não, dinossauro não tem! - Mas tem Tiranossauro requi! - Também não tem tiranossauro. Onde ficou o teu cachorro? - O vizinho vai cuidar dele. O nome dele é Tupi. É difícil encontrar-se coisa mais autenticamente brasileira do que um menino de seis anos com um cachorro chamado Tupi. E também é difícil encontrar-se vizinhos tão solidários que cuidam dos cachorros alheios, como a gente encontra na solidariedade gerada pela pobreza. Penso que a pobreza extrema só consegue sobreviver, mesmo, porque existe a solidariedade. E é ela que vai ficando com os Tupis que ficam ao longo dos caminhos. Sorrindo dentro do capuz vermelho, pura confiança diante da vida, o menino avisava: - Eu sou valente. Sou homem. Não tenho medo. Sei fazer café. - Sabes? - Sei. Quando a minha mãe estava doente, quando a 7
minha irmãzinha estava para nascer, eu aprendi a fazer café. E também sei fazer ovo. Cozido e frito. - Sabes cozinhar arroz? O desapontamento: - Comida de sal eu não sei. Ele não era um menino. Era ternura pura. Mal dava para crer que dali a poucas horas estaria sob a mira de um canhão, diante de um tanque do Exército pronto para disparar. Estaríamos na Palestina? No Iraque? Não. Era a Santa e bela Catarina, na chamada Europa brasileira, e esta história é de verdade, e faz só umas quarenta horas que começou a acontecer. E só umas trinta que os canhões começaram a ameaçar o menino. De verdade e para valer.
O HOMEM VELHO
Dentro da noite de breu, quatro horas da manhã,
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entramos no terreno. Umas poucas pessoas já tinham entrado antes – quando o dia clareasse haveria ali 500 famílias, mais todos nosostros, os apoiadores dos mais diversos lugares. Uma chuvinha fina ensaiava engrossar, e alguns grupos já haviam acendido algumas pequenas fogueiras. Alguma coisa me dizia que a cachoeira ficava lá para aquele lado, e então fui para lá, e parei na última fogueira que havia naquela direção. Alguns homens haviam estendido uma lona e
tempo, pela pobreza, quiçá por muitas fomes, fazia com que parecesse homem de muita idade. Na noite de breu eu o via à luz do pequeno fogo, com seu jeito de polaco, e fiquei prestando atenção. Ninguém sabia lhe responder. Ele insistia: - Uns dizem que é terra do governo; outros dizem que é terra do exército. Mas o que faz esta soja aqui? Quem está plantando aqui? Que terra é esta? Eu sabia que terra era aquela. Disse-lhe que sabia. - Esta terra era da Lumber.
feito um precário abrigo, e me abriguei junto deles, a me informar onde ficava a fonte d´água. - Alguém sabe me dizer que terra é esta, afinal? – era um homem velho – talvez não o fosse muito, mas a barba embranquecida, o rosto castigado pelo
O homem pensou, ponderou, me avaliou. - Da Lumber? Meu pai falava na Lumber! - Pois é... Era terra da Lumber... É necessário um parágrafo, agora, para dizer quem era a Lumber, já que a maioria das pessoas não 8
gosta tanto de História quanto eu, mas tem uma imensidão de gente que gosta de televisão, e faz pouquinho tempo que a televisão apresentou uma mini-série sobre Percival Farquhar e a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Lembraram? Pois a Lumber não era outra coisa que uma madeireira pertencente ao mesmo Percival Farquhar que construiu a Madeira-Mamoré. Como ele viveu mais de 90 anos, nem consigo fazer conta de quantas maldades foi autor. Lá no princípio do século XX, Percival Farquhar fechou negócio com o governo brasileiro: construiria uma ferrovia que iria de São Paulo até o Rio Grande do Sul, em troca de... apenas 15 km de terra de cada lado, férteis terras cobertas de centenários pinheiros (aqueles que a gente chama de pinheiro do Paraná, a Araucária brasiliensis). Quinze de cada lado da uma larguíssima faixa de 30 quilômetros, pejada de boa madeira, uma loucura de pinheiros a serem cortados e embarcados para o exterior, caso a ferrovia fosse em linha
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reta – só que Percival Farquhar mandou construí-la completamente cheia de curvas, o que aumentou muitíssimo a área a tomar posse. Nessa coisa de posse, no entanto, havia um pequeno entrave: morava gente naquela terra. Pelos séculos afora sempre um pouco de gente foi entrando pelos sertões do Brasil, e lá foi tendo filhos e se multiplicando, e aqueles pinheirais, 400 anos depois de Cabral, estavam cheios de pessoas que viviam de pequenas agriculturas e criação de um pouco de gado. Percival Farquhar, então, criou a Lumber, e ela foi a encarregada de dar sumiço naquela gente. Primeiro, o povo foi ameaçado, amedrontado, e um bocado de gente acabou caindo fora – quem resistiu, acabou morrendo. O requinte da violência chegou a tal ponto que a Lumber importou creio que duas centenas (já não lembro exatamente o número) de pistoleiros, aqueles que a gente chama de caubóis e que costuma ver em filme de bandido e mocinho, e eles vieram inclusive com seus cava-
los de arreios enfeitados de prata. Quem não se amedrontou o suficiente para correr, morreu na pontaria dos caubóis que falavam inglês, e a Lumber acabou “limpando” as terras. Resultado: uma guerra que seria dolorosamente lembrada no futuro, a do Contestado, que durou de 1912 a 1916, queimou 9.000 casas e matou 30.000 pessoas, sendo civis 90% dos mortos. Até aviação de guerra foi usada, pela primeira vez no mundo, naquela região. Portando, o homem velho, agora, se arrepiava ao lembrar do que o pai dele contava – ele decerto sabia o quanto aquela terra estava impregnada de sangue, como ela havia sido tirada do povo um dia! Fiz mentalmente um cálculo: estávamos a 6,5 km da estrada de ferro – portanto, ali era, sem nenhuma dúvida, antiga terra da Lumber. Quando a Lumber se fora, tão pejada e pesada de ouro quanto um verme gordo, que já quase não consegue mais se arrastar de tão pesado, aquela terra ficara para o governo brasileiro. No fim dos anos cinquenta, 9
Juscelino Kubitschek a passara, por decreto, para o Exército, que por algum tempo andou por lá, usando-a como campo de exercícios e fazendo mais um bocado de maldades com quem morava ali por perto. Tem ações de monte na justiça, desde então, para confirmar amplamente o que aqui digo, bem como outras barbaridades que vou pular, pois senão vou cansar o leitor. O fato é que por duas vezes o povo brasileiro já fora expulso daquelas terras à força, e o fato é que agora estava voltando, mas o homem velho estava inconformado: - Se é do Exército, quem é que está plantando aqui? Olha, olha aqui, dona, veja a soja! – e munido de uma tocha feita de um pau de lenha, ele iluminou o chão e, como agricultor conhecedor que era, arrancou um punhado de ramos rasteiros de tão pisoteados, onde até eu reconheci a soja. Fiquei pasma, sem saber explicar nem para mim: se a terra era do Exército, quem plantava agricultura de rico nela? Há pouco vi fotos que foram tiradas lá depois
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que o dia amanheceu, e não há dúvida quanto à plantação de soja naquelas terras. Decerto que o Exército não fica mandando soldados lá para cultivar a terra – haverá algum oficial arrendando a terra para fazendeiros ricos produzirem a baixo custo? Eu acho que o Exército deve muitas explicações a nós, brasileiros – inclusive sobre aquela plantação de soja. Então para rico não há canhão, não há tanque, não há tiro, não há terrorismo? Pior é que esta é uma história de verdade! Senhor ministro, há que sabermos o que se passa lá! A soja na mão, a indagação na testa, de repente o rosto do homem velho suavizou-se, e à luz da tocha pude ver o sonho bailar nos olhos azuis dele. Do bolso de dentro do casaco ele tirou um pacotinho de nada, coisa que cabia na palma da mão. - Dona, sou horticultor. Se esta aqui é mesmo terra do Exército, então decerto a gente vai poder ficar. Veja estas sementes – parecia tão pequeno aquele pacotinho! – São sementes de
repolho japonês. Tem aqui 1.900 sementes. Quando amanhecer, vou começar a plantá-las. Vão ser 1.900 repolhos em pouco tempo! - e ele era todo brandura e emoção ao pensar nas suas carreiras de repolho crescendo! Emocionei-me também, pois emoções assim lindas mexem com a gente. Como poderia pensar que 12 horas depois aquele homem que sonhava com canteiros cheios de alimento estaria diante de tanques, sob a mira de canhões? Como é que plantador de soja podia, e horticultor pobre não podia? Como é isto, heim, senhor ministro? Como é, heim, heim?
AS PESSOAS E AS COISAS
A chuva fina deu lugar à tempestade; até trovões rolavam no céu. Poucas fogueiras resistiam àquela água toda; uma e outra lanterna mostravam a azáfama que havia por tudo. Montes de coisas e montes de pessoas eram cobertas por lonas de plástico, quando dava – pois muita gente e muitas coisas estava mesmo era se molhando impiedosamente. Mesmo 10
com tanta chuva, depois de um tempo infinito, a barra do dia acabou começando a se formar, e houve um momento em que já se conseguia distinguir vultos, montes, toldos – e impressionava-me com aquelas pessoas que ficavam de pé, firmemente segurando alguma estaca ou alguma ponta de uma lona que cobrisse um grupo inteiro. Conforme clareava eu podia distinguir os rostos daqueles postes vivos, e impressionava-me ver aqui um professor doutor; ali, uma universitária que eu imaginara que só pensava em baladas; acolá, o mauricinho que vivia de calça de vinco e camisa social – isto é, estas eram as caras de alguns dos apoiadores, pois a grande maioria eram as caras das pessoas de muitos filhos e pouca comida, aquela gente sofrida que ria de felicidade ao pensar nos seus sonhos parecidos com os sonhos do homem velho, o sonho dos canteiros vicejantes, e quando pensava neles, os olhos daquelas pessoas tremeluziam de luz! E apesar da chuva fez-se dia, e então, impressionada, eu olhava sem conseguir
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distinguir muito bem o que eram montes de coisas e montes de pessoas, pois assim como montes de coisas tinham sido cobertos com lonas de plástico, também montes de pessoas o tinham sido, e lá no chão encharcado, acocoradas ou sentadas, as pessoas resistiam aos elementos assim como vinham resistindo à fome, às humilhações, à exclusão social, desde o tempo em que tinham nascido. Às vezes eu pensava que estava olhando para um monte de coisas, e então, de repente, sob a beira do plástico uma criança ou um adulto espiava para fora, e então eu entendia que eram pessoas, e não coisas – e ficava a pensar que os reais culpados por aquilo tudo eram os que estavam no comando do Capital, e que eram eles quem decidiam a sorte de cada um, quem deveria viver subhumanamente, como montes de coisas, embora fossem pessoas e não coisas, e que àqueles comandantes do Monstro do Capital pouco se lhe dava sequer se aquelas pessoas viviam ou morriam. Talvez morressem mesmo; faltavam só dez
horas para os canhões nos demos conta, havia e os tanques. parado! E os carreiros de formiga continuavam por COMO todos os lados, e agora CARREIROS se traziam colchões, DE FORMIGAS panelas, fogões antigos, A luz do dia trouxe ursos de pelúcia meio toda uma vida nova estraçalhados, baldes de para aquela gente que plástico sem alça, trouxas sonhava com coisas de roupas – esperara-se maravilhosas como a chuva acalmar para canteiros vicejantes e se descarregar ônibus sorriam de esperança, e caminhões – e os e enquanto as mulheres carreiros de formiga cuidavam das crianças faziam novas casas e sob os toldos improvi- mobiliavam as velhas, e sados, homens velhos mesmo estando o solo e homens novos, sem encharcado, as casas temor da chuva intensa iam sendo organizadas, que não parava, anda- e também se organizou vam pelo descampado uma assembléia para e pelo mato ralo como se decidir e se informar se fossem carreiros de coisas sobre a posse da formigas, e seus certeiros terra, e falou-se da terra golpes de facão cortavam que era fértil e não era as árvores finas que de nenhum fazendeiro, seriam os esteios das o que afastava a possuas casas, e eles se sibilidade de jagunços, ajudavam em grupos, e e como havia risos e esqueletos de moradias sonhos, e vontade de que seriam cobertas de trabalhar naquela gente lona cresciam por toda a que passara a noite sem parte, e logo havia mui- dormir! Devia ser umas tas, muitas casas novas, nove da manhã, o que e toda uma cidade de quer dizer que faltavam lonas de plástico nascia sete horas para os ao mesmo tempo. canhões e os tanques, Depois de mais de quatro como se ali fosse a horas sem dar sossego Palestina, ou o Iraque, a ninguém, de repente ou o Afeganistão... a chuva foi ficando fina, E os carreiros de formiga virou garoa... quando continuaram andando e 11
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carregando, e como era um, ali, estava pejado grande a Esperança! de sonhos e planos, e como aquela ali era uma AS SETE improdutiva e abandoHORAS nada terra do Exército, Se a escuridão primeira decerto que logo sairia e a muita chuva segunda um decreto para reguhaviam atrapalhado muita larizar aquela situação, coisa, e mesmo assim as pois o Exército obedecia coisas foram se organi- a chefes lá em Brasília zando, dá para imaginar e não a fazendeiros as tantas coisas mais que violentos e nem a juízes foram feitas naquelas regionais – um tempo de sete horas seguintes! Esperança tinha comeQuem sabe o menino çado! Estava muito claro da cesta de Páscoa e que as chefias políticas do capuz vermelho até jamais iriam permitir que tenha achado um lagarto o Exército disparasse e pensado que era um uma única bala sobre filhote de Tiranossauro aquele povo pobre e requi – quem sabe tomou armado apenas de seus um banho na cachoeira, sonhos e da esperança como nos dissera no no Futuro – era tempo decorrer da noite que para risonhos sonhos! faria, quando ainda no E aquelas sete horas ônibus. transcorreram com os É possível que o Homem carreiros de formiga Velho tenha achado cheios de inesgotáveis um lugar de terra muito energias, caminhando macia, e feito um pri- sem cessar em direção meiro canteiro, e tenha ao porvir, e havia comida começado a semear as cozinhando nas fogueiprimeiras 1.900 semen- ras, e havia chimarrão tinhas de repolho! Cada fumegante nas cuias,
e havia cheiro de café no ar, e as crianças aprendiam as canções dos Sem-terrinha! Não dá nem para imaginar tudo o que aconteceu naquelas sete horas!
ESCOLA DAS AMÉRICAS
Foi então ... Era quatro da tarde, e aquilo não podia estar acontecendo! Como em Bagdá, como em Faluja, como em Ramalah, como em Mogadíscio, como no Saara Espanhol – de repente estavam ali os canhões e os tanques e as tropas, e aquilo parecia reportagem que se via na Al-Jazeera durante a Guerra do Líbano, e os canhões e os tanques a tudo cercaram e interromperam o acesso à água, bloquearam as estradas e ninguém mais entrava e nem saía, e um tanque derrubou uma barraca que tinha dentro mulher grávida e criança, e o terrorismo implantado foi
Visite o Blog CRÔNICA DO DIA Em http://lcamorim.blogspot.com.br Literatura, arte, cultura, cotidiano. Todo dia um novo texto. 12
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coisa que nem merece ser descrito neste texto que falava na beleza dos sonhos, da resistência e da Esperança! Em pouco, pouquíssimo tempo, os recém-chegados deram aos experientes e aos inexperientes um curso completo do que é, realmente, o Exército, aquele que a gente se acostumou a considerar “Braço forte, mão amiga” e da confiança que se pode ter nas autoridades. O final da tarde e a noite foi coisa para nunca se esquecer, e o que eu fico pensando é que muitos, decerto a maioria daqueles soldados que ali estavam também eram filhos de gente pobre e humilhada, e que talvez fizessem o seu papel de monstros lembrando vagamente onde estariam seus pais, suas irmãs, seus filhos... Mas o Monstro lhes mandava aterrorizar e eles aterrorizavam, e bem que tenho ouvido falar que continua bem em atividade a Escola das Américas Pode-se resumir o acontecido numa frase: a total ausência de qualquer respeito à dignidade humana naqueles campos. Ordens em altas
vozes, no alto falante dos soldados, dizia coisas como “A ordem tem que ser cumprida!” “Vamos atacar, vamos desocupar a área!” “Vamos cumprir a ordem!”, intermediadas por hinos patrióticos, e de discursos de intimidação, que falavam muito como “a noite vai ser dolorosa, a noite vai ser longa!”. Há que se pensar que tais coisas aconteciam dentro de total escuridão, mas que antes que a noite caísse, postara-se ali, além dos caminhões e outros veículos, os enormes três tanques e uma dolorosa e macabra fileira de ambulâncias. Foram horas e horas, toda uma noite de terror, principalmente para as crianças, e não fosse a gente pobre tão unida e tão capaz de juntar suas parcas forças para resistir, e talvez o estrago fosse pior. No meio do terror, do barulho, da fumaça que cegava a todos dentro do acampamento, das técnicas de aterrorizamento nos alto falantes e pelos próprios canhões, tanques e ambulâncias, a gente pobre se uniu e negociou
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o quanto pode – o inimigo era mais forte, havia que capitular. E o sonho daquela terra acabou. Não sei se ficaram lá as 1.900 sementes de repolho daquele horticultor, quando os agricultores tiveram, mais uma vez, que abandonar aquela terra mais de uma vez encharcada de sangue, como o vinham fazendo desde os tempos de Percival Farquhar. Fico aqui me perguntando uma pergunta sem resposta: quem deu a ordem para aquele terrorismo de guerra sobre a população indefesa? Temos no poder um homem que acreditamos ser representante do povo. Teria partido dele a autorização para aquilo? Quem autorizou? É bem verdade que no fim ninguém morreu de bala e de granada – mas, e a morte lenta pelo abandono, pela pobreza, pela falta de perspectiva? Onde estão os direitos do ser humano? E O QUE É QUE AQUELA SOJA ESTAVA FAZENDO LÁ? Que as autoridades competentes me expliquem!
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DESCAMINHOS DA ALMA
PARA TI
Chris Abreu – Florianópolis, SC
Mia Couto
Será que a nossa trajetória Segue um caminho certo? Ou criamos com cada passo Uma nova direção? Tem dias que sinto-me perdido, Dobrando as mesmas esquinas, Percorrendo o Labirinto Em vão. Vencido pelo cansaço, Com o coração corroído, Desacredito, desencorajado, nesta nobre Missão. Empresta-me Grande Poeta A tua estrela em desatino Pra suavizar meus descaminhos Inundados de inquietação. Ao ser resgatada A alma perdida, Assim que calibrada A bússola da vida, Sigo adiante na expedição. Por hora busco alento, Divertimento e desalinhos, A leveza dos sonhadores E a liberdade dos escritores.
Foi para ti que desfolhei a chuva para ti soltei o perfume da terra toquei no nada e para ti foi tudo Para ti criei todas as palavras e todas me faltaram no minuto em que talhei o sabor do sempre Para ti dei voz às minhas mãos abri os gomos do tempo assaltei o mundo e pensei que tudo estava em nós nesse doce engano de tudo sermos donos sem nada termos simplesmente porque era de noite e não dormíamos eu descia em teu peito para me procurar e antes que a escuridão nos cingisse a cintura ficávamos nos olhos vivendo de um só amando de uma só vida
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O IDIOMA PANLATINO ENÉAS ATHANÁZIO – Baln. Camboriú, SC
A
grande quantidade de línguas faladas no mundo dificulta o entendimento e a aproximação dos povos. Essa profusão de idiomas se deve, segundo a lenda, à Torre de Babel onde se implantou o caos linguístico como uma espécie de castigo à pretensão humana de atingir o céu. Afirmam os estudiosos que existem 2796 línguas vivas no planeta, classificadas em 12 grupos ou famílias linguísticas principais e 50 grupos secundários. Quanto mais distantes as raízes dos idiomas, mais difícil se torna a comunicação. Em face disso, ao longo da história, têm surgido projetos de implantação de línguas artificiais ou criadas, dentre as quais o esperanto tem sido a mais difundida e duradoura.
Todas essas tentativas, no entanto, falharam e a babel idiomática continua. William Agel de Mello, diplomata, escritor e consumado linguista, propõe uma solução diferente, inovadora e prática. Diante da impossibilidade da adoção de um idioma único em todo o mundo, como os fatos vêm demonstrando, sugere ele, com base em longos e acurados estudos, a fusão das línguas em grupos derivados da mesma raiz ou tronco. Haveria assim uma união de idiomas aparentados, aproveitando-se o que eles possuem em comum. Não seria uma substituição mas, “ao contrário, o retorno à unidade partindo da pluralidade.A ideia básica é a convergência das línguas numa língua única” – explica o ensaísta. Com esse propósito, as línguas ficariam pertencendo a grupos designados como Pangermânicos, Pan-eslavos, Pancélticos, Panlatinos e outros. Como o nosso por15
tuguês é derivado do latim, integraria o grupo Panlatino, junto com o espanhol, o catalão, o provençal, o franco-provençal, o francês, o ladino, o sardo, o italiano e o romeno. Entrariam aí idiomas mais e menos falados, mas todos dando sua contribuição. Não se trata, portanto, de um idioma artificial como tantos outros, uma vez que nunca deixou de ser falado. Além de aproximar os homens, “entre as finalidades específicas destaca-se a de servir de veículo de comunicação entre os povos que falam línguas afins” – afirma o linguista, acrescentando: “A superlíngua assim formada é concomitantemente filha e irmã das que lhe deram origem. É uma, mas ao mesmo tempo todas. Outra vantagem incontestável das línguas submetidas à fusão é o fator tradução.” Como se sabe, a tradução de textos de uma língua para outra é uma atividade complexa e inçada de problemas.
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Em seu livro “O Idioma Panlatino e outros ensaios linguísticos” (Editora Kelps – Goiânia – 2011), William Agel de Mello expõe em minúcia o projeto Panlatino e faz outras incursões no mundo das línguas. É admirável a segurança com que ele se move nesse intrincado universo, demonstrando completo domínio de tantos temas nele envolvidos, desde a história e a geografia até os segredos e particularidades de inúmeros idiomas. Seu livro é um manancial inesgotável de informações a respeito das línguas em geral e do Panlatino em particular. Faz comparações e análises, estuda as afinidades e diferenças num trabalho único e que tem merecido a atenção de renomadas autoridades sobre o
William Agel de Melo, à direita
assunto. É um trabalho que deveria ser conhecido por todos nós, uma vez que é a língua que nos difere dos outros seres vivos. O autor é também renomado africanista, conhecedor da África por dentro e por fora, historiador e ficcionista. Sobre ele Guimarães Rosa depositava esperanças de que realizaria uma grande obra literária, o que, de fato, aconteceu. Sua obra tem sido submetida ao crivo de numerosos
in t é r pr e t e s , t a n t o que tem ele nos dias atuais uma extensa e significativa fortuna crítica. Seria o projeto Panlatino uma utopia? É possível, mas como diz o seu autor “qualquer tentativa, por mais humilde que seja, no sentido de facilitar a comunicação entre os povos é um bem à humanidade.” Como seria o mundo se não existissem os utopistas?
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MINHA CIDADE Júlio de Queiroz
Sempre que volto a minha cidade seu ar está suave, cheirando a novas sementes. Que os prefeitos de minha cidade são incompetentes grasnam os vereadores de minha cidade,
O SONETO
que todos os passantes atestam
Cruz e Sousa
gastadores inconsequentes.
Nas formas voluptuosas o Soneto
Na minha cidade, os vizinhos cumprimentam-se amavelmente,
Tem fascinante, cálida fragrância E as leves, langues curvas de elegância
mas por detrás de cortinas entreabertas, meneiam cabeças inclementes.
De extravagante e mórbido esqueleto.
As ruas de minha cidade dão voltas como serpentes .
A graça nobre e grave do quarteto
Cresceram assim, voluptuosas e irreverentes.
Recebe a original intolerância,
Na minha cidade, nem o caminho para o cemitério é reto.
Que transborde terceto por terceto.
Toda a sutil, secreta estravagância
Mas o mar, o mar, o mar de minha cidade
E como um singular polichinelo Ondula, ondeia, curioso e belo,
lava e abençoa todos na sua grandeza indiferente
O Soneto, nas formas caprichosas.
e faz de minha cidade um lugar tão bonito
As rimas dão-lhe a púrpura vetusta
que seu ar é sempre fresco,
E na mais rara procissão augusta
cheirando a novas sementes.
Surge o Sonho das almas dolorosas… 17
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O CHAPÉU MÁGICO Else Sant’Anna Brum – Joinville, SC
N
a fazenda do coronel Felisberto tinha, além de seus cinco filhos, uma porção de outras crianças, filhas dos empregados que moravam ao redor. Durante o dia, depois das aulas na escola que ficava na própria fazenda, a criançada se reunia para as mais diversas brincadeiras. Dava gosto ver aquela turma animada pulando, correndo, jogando e cantando. Uma das brincadeiras de roda de que as crianças mais gostavam era: ”Seu rato está em casa?” Agora, o que as deixava quietas e atentas eram as histórias contadas pelo Tio Felício, um antigo empregado da fazenda, já bem velho e que todas as noites vinha contar uma história. Certa noite ele
demorou um pouco a chegar por causa da chuva que caía e do forte vento. As crianças que esperavam quietas começaram a notar o barulho que o vento fazia: fu-u, fu-u! Ouviam também o plic-ploc da chuva, o pio da coruja, o coaxar dos sapos, o cri-cri dos grilos, até que escutaram com alegria o plac-plac dos tamancos do Tio Felício e o toc-toc da batida na porta. Tio Felício começava dizendo: - Aprontem os ouvidos! E lá vinha a história!
Era uma vez um homem que tinha um chapéu mágico. Este chapéu, diferente dos outros, tinha três pontas e, aonde o homem quisesse ir o chapéu levava, o que o homem quisesse saber o chapéu informava. Uma linda tarde de sol ele estava cami18
nhando com seu chapéu, quando um forte vento arrancou o chapéu de sua cabeça. Ele ficou desesperado, mas por mais que chamasse e gritasse, o chapéu não voltou. Desanimado, sentou-se na beira da estrada. Não demorou muito e um moço vinha passando. Ele perguntou: - Moço, você viu o meu chapéu? O moço respondeu: Como é o seu chapéu? - Ah! O meu chapéu é mágico e tem três pontas. - Não, eu não vi o seu chapéu. O homem não desistiu e pensou: Há de passar alguém aqui que viu o meu chapéu! Não demorou muito, aproximou-se uma velhinha e ele, cheio de esperança perguntou: -A senhora viu o meu chapéu? - Como é o seu chapéu? -Ah! O meu chapéu é mágico e tem três
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pontas! - Não, meu senhor, eu não vi, mas sou amiga da fada Busca-Busca que pode lhe ajudar. Tirando um apito do bolso, soprou suavemente e para espanto do homem o som do apito era: dim-dim-dom! Imediatamente apareceu uma linda moça a quem eles contaram o desaparecimento do chapéu. - O seu chapéu, disse a fada Busca-Busca, está longe daqui, na gruta do bruxo Rupião. Eu vou buscá-lo, mas o senhor terá que
imitar a voz de um passarinho. O homem bem depressa cantou: Bem-te-vi! Bem-te-vi! Como num relâmpago a fada desapareceu e logo a seguir apareceu mais linda ainda, com o chapéu de três pontas na cabeça e graciosamente o colocou na cabeça do seu dono. O homem agradeceu e voltou para casa feliz da vida! Tio Felício arrematou: - Esta história que contei, eu mesmo inventei. As crianças bateram palmas de alegria e
uma delas disse: Eu sei uma música que fala num chapéu de três pontas e vou ensinar para vocês: “O meu chapéu tem três pontas Tem três pontas o meu chapéu. Se não tivesse três pontas Não seria o meu chapéu!” Todos cantaram e os olhinhos brilharam de satisfação quando vovó Ledinha chegou com uma peneira de pipoca. Então, o único som que se ouvia era: trec... trec...
RUA DAS PRETAS
da casa de Tom Jobim. Numa dessas noites tropicais, resolvi convidar amigos da música carioca e da música do mundo para relembrar os saraus na casa de Tom Jobim e no apartamento de Nara Leão nos anos 50, na avenida Atlântica, em Copacabana . Tornou-se frequente - apesar do vizinhos não gostarem muito. Fazíamos as tertúlias
toda semana e por lá passaram: Teresa Cristina, Wagner Tiso, António Zambujo, Maria Gadu (uma menina que vinha de São Paulo), Dadi, Mú Carvalho, Madeleine Peyroux, Gabriel Moura, Vinícius Cantuária, Edu Krieger e mais um monte de gente da pesada. Em 2011, pousei no aeroporto na Portela, em Lisboa, de mala e cuia, trouxe o sarau
Pierre Aderne – Lisboa, Portugal
Tudo começou em Ipa� nema, no ano de 2005, quando mudei-me para a rua Nascimento Silva, 130, quase em frente
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de Ipanema na bagagem e montei a tenda na minha casa da rua Poços dos Negros, 13. E mais à frente, na Rua das Pretas. Eram noites que viravam dia na panela: mornas, fados, bossas, sambas, funanás, além de paletes de vinho que chegavam do Douro - oferecidas pelo amigo Dirk Niepoort para molhar a garganta da malta e ajudar a contar as estórias. Muitos deles, até, gente da própria música portuguesa - que ainda não se conhecia, então acabou por se conhecer nos saraus lá de casa, que acabaram por virar depois documentários, exibidos pelo CANAL BRASIL e pela RTP e SIC, em Portugal . Não lembro de toda gente que passou lá por casa, mas teve um bando de gente bamba da música de
língua portuguesa e do mundo: Tito Paris, Carminho, Caetano Veloso, Jorge Palma, Gilberto Gil, Melody Gardot, Valter Hugo Mãe, Camané, Salvador Sobral e Luísa Sobral, Lura, Luiz Caracol, Walter Hugo Mãe, Sara Tavares, Cuca Roseta, Fred Martins, Julio Resende, Couple Coffee, Uxia, Philippe Baden Powell, José Eduardo Agualusa, Mitchel Long... Há pouco mais de dois anos, resolvi abrir o sarau ao público e o levei para um palacete de um amigo no Príncipe Real, bairro nobre de Lisboa. Em um ano, mais de 140 artistas da música lusófona e anglo-saxônica estiveram por lá e aproximadamente 4.000 pessoas de varias partes do mundo assistiram as tardes virarem noites com o Tejo por todas as
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janelas . A Rua Das Pretas acabou por virar um circo de saltimbancos da música lusófona e já tem pousos fixos em Lisboa, Porto, Nova York e Paris. Há pouco mais de dois meses foi lançado o primeiro álbum da RUA DAS PRETAS, que conta com a participação de muita gente linda da arte : Brian Cullman, Tanner Walle, Gabrielle Hartman, João Barradas, Augusto Baschera, Nilson Dourado, Walter Areia, Diogo Duque, Fred Martins, Jesse Harris, Jeremy Gustin, Liliana Macedo, Maria Inês Paris e tantos outros. É bom lembrar que todo sábado temos encontro marcado no Palácio do Príncipe, em Lisboa . Na foto abaixo, o espetáculo RUA DAS PRETAS.
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A PRIMEIRA LÁGRIMA Luiz Delfino
Quando a primeira lágrima caindo,
RECORDAÇÕES...
Pisou a face da mulher primeira, O rosto dela assim ficou tão lindo
Lorena Zago – Presidente Getúlio, SC
E Adão beijou-a de uma tal maneira,
De mãos dadas seguem seus caminhos,
Que anjos e Tronos pelo espaço infindo
Sem olhar os rochedos escalados.
Qual rompe a catadupa prisioneira,
Desvendar as agruras vencidas,
As seis asas de azul e d’ouro abrindo,
São as suas lições que ficaram desbravadas.
Fugiram numa esplêndida carreira.
O espaço infinito, que os remete
Alguns, pousando à próxima montanha,
A rememorar os obstáculos superados,
Queriam ver de perto os condenados
Empresta-lhes lições estendidas, Pelos caminhos distantes galgados.
Da dor fazendo uma alegria estranha.
Segurar, em suas mãos calejadas,
E ante o rumor dos ósculos dobrados,
As compreensões constituídas ao longo dos tempos,
Todos queriam punição tamanha,
Complementa a longa jornada
Ansiosos, mudos, trêmulos, pasmados..
Que, em suas vidas, se esvaiam ao vento. Hoje, ainda se ouve, ao longe O fervor, que os unia, eternizados! Porém, dos sentimentos guardados, Só lhes restam lembranças alquebradas.
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A ORIGEM DE “GRANDE SERTÃO: VEREDAS” (Compilado do ensaio de Luís Augusto
Fischer)
S
imões Lopes Neto nasceu a 9 de março de 1865, na Estância da Graça, a 29 quilômetros do centro de Pelotas, sul do Estado do Rio Grande do Sul. Viveu a infância na estância de seu avô paterno, o Visconde da Graça, um dos homens mais ricos do estado naquela altura, de quem herdou o prenome. Perde a mãe ainda menino, sendo levado a viver na cidade. Aí estuda por dois anos; depois, é mandado para o Rio de Janeiro, onde se matricula numa escola, talvez no educandário de um avançado professor,
Menezes Vieira. O futuro escritor permanece estudando na Corte até 1882, tendo começado, ao que indicam afirmações suas nos anos futuros, a cursar Medicina. Então, retorna para sua cidade natal, aos dezessete anos, onde passa a viver e vem a falecer a 14 de junho de 1916. Por que retornou? Matéria sem esclarecimento, até agora. Seus dois biógrafos, em tempos distintos, tentaram encontrar as razões, mas pararam na mera tradição oral: ele teria ficado doente. De qualquer forma, vale sublinhar: o mero fato de haver vivido alguns anos da adolescência no Rio de Janeiro, a capital do país e a maior cidade brasileira de então, deverá ter-lhe proporcionado uma experiência forte, tanto da vida urbana em si, quanto do contraste entre a capital nacional e sua cidade sulina, Pelotas, e mais ainda entre a capital e o ambiente campeiro de sua infância. Durante sua vida relativamente curta (faleceu aos 51 anos), desenvolveu várias atividades, sempre na cidade. Teve cargos 22
de destaque municipal e foi vereador; foi despachante, industrial, empreendedor em vários negócios, corretor, quase sempre malsucedido; nos últimos anos, já em franca decadência econômica, trabalhou modestamente como jornalista e professor, enquanto desenvolvia sua atividade de escritor. Compôs peças de teatro e escreveu contos, causos e lendas. Por todas as indicações disponíveis, pode-se afirmar que era um sujeito de grande iniciativa, mas acabou a vida sem dinheiro, e isto apesar de provir de família abastada. Herdou propriedade, mas nunca foi um criador de gado. Quanto à formação intelectual do escritor Simões Lopes Neto, há poucas informações exatas. Consta que lia desde a infância e era de família instruída, com parentes que tinham intimidade com o mundo intelectual, a literatura e a imprensa. Talvez mais decisivo que tudo tenha sido sua espontânea decisão — aliada a um tino artístico notável — de registrar o mundo que conheceu em criança e
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que via transformar-se, naquela virada do século. A chegada da energia elétrica, por exemplo na frigorificação das carnes (até então tratadas nas charqueadas, motivo da riqueza de sua cidade e de sua família, diretamente), mudaria aquele mundo rústico para sempre. O trabalho intelectual de Simões Lopes Neto é contemporâneo de vários outros, de mesmo sentido e direção, no Rio Grande do Sul e no Brasil, e mesmo no Ocidente como um todo. Em sua geração, apareceram estudiosos e artistas que concentrariam suas forças naquela tarefa que veio a chamar-se folclore. O período de sua atividade jornalística
e literária também foi relevante para sua carreira: entre 1890 e 1920, mais ou menos, veio à luz um número importante de escritores dedicados a temas “regionais”, temas não conectados diretamente à capital do país. Por um paradoxo facilmente explicável, enquanto a turma de Olavo Bilac pontificava no Rio de Janeiro e dominava os ambientes urbanos cultos de norte a sul, dando origem a grupos impressionantes de seguidores parnasianos, em algumas regiões do interior brasileiro experimentava-se um certo crescimento, uma certa elevação dos padrões de urbanidade, porque o progresso irradiava da
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capital e do litoral para a zona rural, da “plantation” para o sertão. Tinha tal força o processo, que levou escritores, jornalistas e letrados em geral a se mobilizarem em favor do registro das transformações que aconteciam sem cessar. Aí entram os escritores como Simões Lopes: muitos filhos da terra, do campo, do interior, estavam experimentando as delícias e os problemas da cidade, ao vivo. Eram jovens preparados para as carreiras urbanas modernas (além da Medicina e do Direito, havia toda uma nova atividade empresarial, administrativa e burocrática florescendo, com a República). Mas estes mesmos jovens, por outro lado, o lado de dentro de suas almas, eram saudosos do tempo velho, das antigas formas de vida e de socialidade, do tempo mais lento do mundo rural que de alguma forma eles haviam vivenciado. Por isso, não é de admirar que toda uma geração de escritores tenha produzido obras, algumas muito bem-sucedidas, a respeito dessa espantosa mudança, que estava
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soterrando todo um mundo antigo, primitivo, ligado ao cenário rural, que é também, no caso do Rio Grande do Sul e de outras partes do país, o mundo do cavalo, o mundo das distâncias largas, das tropeadas, mundo que era também aquele da palavra empenhada, da honra e, não menos, o mundo dos causos transmitidos pela tradição oral. Neste grupo de escritores, de valor desigual mas igualados no trato da mesma questão — o da transformação abrupta da vida provincial, especialmente no mundo rural —, estão, como dissemos acima, o paulista Monteiro Lobato, o mineiro Afonso Arinos o maranhense Graça Aranha, para citar alguns dos maiores, e isso sem contar uma forte geração de gaúchos, por exemplo Alcides Maya, Roque Callage e outros. Esta é a turma de Simões Lopes
Neto, este é o grupo de escritores que ele lidera, em matéria de qualidade. Por que lidera em qualidade? É fácil de explicar essa liderança, tanto quanto deve ter sido um total mistério obtê-la. Para entender essa razão, vale a pena recuar um pouco no tempo para averiguar quais são os antecedentes da revolução de Simões Lopes Neto. Desde que o Brasil conquistou a Independência, em 1822, os escritores e intelectuais brasileiros se colocaram a responsabilidade de, por assim dizer, inventar o país literariamente. Afinal, era preciso escrever os poemas e os romances que iriam dizer, para o leitor brasileiro, para o compatriota, que povo, que país, que nação constituía o Brasil. Era também preciso mapear o território, o vasto e desconhecido território do jovem país, do Brasil
recém-independente. E outra, agregada a esta: era preciso, era mesmo urgente retratar os tipos humanos que viviam em todos os cantos do mapa nacional. Como eram? O que pensavam? E como falavam? Estava posto, assim, o problema que seria chamado, de modo simplificador e até hoje empobrecedor, de “regionalismo”. Porque uma coisa era escrever sobre a cidade, especialmente sobre a grande cidade do tempo, que era a capital, o Rio de Janeiro. Cidade cosmopolita, em dia com as novidades francesas e inglesas, o Rio proporcionava assunto para poemas, peças de teatro, contos e romances, em larga escala. Os talentos dessa matéria logo apareceram, dos mais singelos até figuras notáveis, como José de Alencar, até alcançarmos a graça de um gênio como Machado de Assis.
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Mas bem outra coisa era escrever sobre o mundo rural, aquele que também estava se modificando, para sempre. Primeiro, era necessário o conhecimento factual, a vivência empírica. Saber como é que o sol ilumina nos pampas, no sertão ou no Pantanal; ter noção do canto dos pássaros e da fúria dos elementos; saber lidar, minimamente que seja, com o cavalo; conhecer enfim as sutilezas que só a vida real no campo pode proporcionar. Segundo, e mais decisivo para a arte que se chama literatura: saber, com a intimidade possível, manejar a linguagem do local. O alcance do significado de uma palavra, que muda conforme a região; a entonação; o ritmo da frase; o colorido das vogais e a rispidez das consoantes. Isso não tem como: para não cair em artificialismo, só mesmo tendo o ouvido
e, naturalmente, a alma mergulhados no contexto. Antes da geração de Simões Lopes Neto, alguns escritores brasileiros andaram tentando fazer literatura com esses materiais, o mundo rural e a linguagem que o caracteriza. Gente de talento, como o citado José de Alencar, que escreveu uma sequência de quatro romances por assim dizer estendidos sobre o mapa do Brasil: começa justamente por O gaúcho, em 1870; O tronco do ipê, de 1871; Til, de 1872; e O sertanejo, de 1875. Todos
romances de tema rural, escritos no que se costuma chamar de última fase do autor, focalizando o mundo do interior do Rio Grande do Sul, do estado do Rio, de São Paulo, do Ceará. Mas para conseguir fazer a adequada transfiguração da vida em arte não basta conhecer o local e o sotaque desse local, apenas. Muita gente conhece a linguagem de determinado lugar, e nem por isso será capaz de reproduzir os feitos e os efeitos dela por escrito, na folha de papel. Na obra da geração acima citada, que escreveu sobre o tema
rural nos anos 1850 a 1870, pode-se dizer que ocorreu uma combinação de intenção correta com execução problemática, quando não francamente equivocada. Em suma, ocorreu com eles que os aspectos externos da região foram
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registrados, mas ali não estava a alma, o modo de ver o mundo, os aspectos mais sutis. Ficou um “regionalismo” meio de fachada, para a Corte carioca ver. A chegada da geração de Simões Lopes é que resolveu adequadamente o problema, ele mais que os outros. Para começar, foi o conto e não o romance o veículo adequado para fazer falarem esses mundos rurais em transformação. Por quê? Difícil saber. O certo é que os escritores da geração brotada entre 1890 e 1920 preferiram as histórias breves, talvez porque no tamanho mais curto caibam melhor os “causos”, pequenas histórias, muitas vezes com caráter exemplar, ocorridas por ali. Também no conto cabem melhor as lendas e os relatos de assombração. Nosso João Simões Lopes Neto foi exemplar também nisso: depois de começar a publicar livros com uma coleção de poesia popular chamada
Cancioneiro guasca (1910), ele apresenta as duas joias de sua arte: Contos gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Cabe acrescentar que não se trata de qualquer tipo de conto. O que essa geração praticou foi, preferencialmente, o conto de tipo antigo, ancestral, não o Moderno tal como concebido e praticado por Edgar Allan Poe, que em grande medida é descrito num ensaio do mesmo Poe como sendo todo concebido e escrito tendo em vista um específico fim, uma determinada projeção, em busca de efeito particular. Um conto assim moderno
dificilmente encontraria lugar, espaço e forma para a matéria de que tratam Simões Lopes Neto e os outros, matéria relativa ao mundo primitivo, ao mundo anterior à lógica da cidade e da mercadoria. Mais importante: além do conto, houve também uma revolução da linguagem nessa geração. Eles souberam colher, da experiência rural, sertaneja ou pampiana, 26
não apenas os enredos, os personagens e os causos, mas também a forma de falar, o sotaque, as inflexões e o colorido da oralidade. Aqui está o pulo do gato, a diferença entre esta geração e aquela de Alencar, diferença que é, no fim das contas, o motivo pelo qual é possível e válido recolher de suas obras frases significativas e exemplares — frases nas quais se respira a fala popular rural, transformada em literatura mas com aspecto de pura, espontânea. Mais uma explicação para o mistério que, de toda a geração, só Simões Lopes Neto soube executar: além dos temas e dos personagens e além da linguagem local, o grande pelotense tirou da cartola uma estratégia narrativa, um jeito de contar as histórias e as lendas. Inventou o velho e sábio peão, Blau Nunes, que quando começa a falar, para contar as histórias dos Contos gauchescos, tem supostamente quase noventa anos, e portanto já viu coisas que mereciam ser contadas para as novas gera-
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ções. Ele presenciara, desde seu presumível nascimento, nada menos que a Guerra da Cisplatina (1825-28), a Guerra (interna) dos Farrapos (1835-45), as turbulências das guerras contra Rosas e Oribe (1851-2), a Guerra do Paraguai (1865-70), de que o Rio Grande do Sul foi protagonista e financiador, e ainda os vários movimentos políticos e militares da instauração da República (1889), os quais, no Rio Grande do Sul, levaram a uma guerra civil (interna, de novo) conhecida como Revolução de 93 (1893-5). É pouco? Vivido, experimentado, calejado das batalhas, capaz de entender muito do estranho mundo humano, Blau Nunes é o diferencial da obra simoniana. É sua a voz que fala na maior parte das frases, das sentenças de grande alcance moral; é seu o ponto de vista que organiza os contos, assim como é ele o protagonista da lenda, mas estruturalmente um conto sensacional, da “Salamanca do Jarau”. Foi uma solução simples, como as grandes solu-
propriedade da terra e das armas não era o único valor. Não por acaso, Guimarães Rosa começa abordando esse mundo não pelo romance, mas pelo conto, ainda que em forma longa: Sagarana, de 1946, dá conta de vivências do mundo do sertão mineiro e arredores em histórias relativamente breves, de certa forma ainda marcadas pela restrição da visada dos sertanejos. Dizendo de modo extenso, a equação é: para o romance, tal como se desenvolveu na Europa Ocidental do século XVIII ao começo do século XX, se requer uma perspectiva de conjunto sobre a vida, sobre a cidade, sobre a organização social que nela se dá; só essa perspectiva pode emoldurar a trajetória do indivíduo, do herói problemático em busca inglória por valores autênticos, como disse Lukács; só essa perspectiva ampla confere sentido ao narrador, incessantemente e por especialmente ao narisso requeria coragem, rador de terceira em que até mesmo a pessoa, espécie de ções artísticas que de vez em quando aparecem no mundo. Simples, mas é preciso reconhecer que alguém precisava pôr de pé este ovo; e Simões Lopes Neto o fez. Depois dele, ficou fácil ver que esse era o arranjo narrativo adequado para relatar o fim do vasto mundo rural brasileiro em sua feição até então conhecida; depois dele, ficou aberta a trilha para Riobaldo, o personagem-narrador de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, personagem que é uma espécie de neto de Blau Nunes. A estratégia narrativa de ambos é, mais que semelhante, idêntica: Blau e Riobaldo relatam o sentido daquele mundo em eclipse histórico para ouvintes que não são dali, daquele lugar, e por isso mesmo não conhecem as coisas antigas. A ética de um e de outro é a mesma: em ambos encontramos a evocação de um tempo passado, em que a honra valia mais que a lei, em que a natureza ameaçava a presença humana
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voz impessoal que, em última análise, representa a opinião pública, a cidade, as instituições do estado nacional moderno. Foi só depois, com Grande sertão: veredas, publicado dez anos após Sagarana, que apareceu um romance, isto é, uma leitura de conjunto sobre uma trajetória ampla, de um herói como Riobaldo. Ainda assim, não se trata de romance tradicional, mas de uma modalidade de grande novidade em muitos sentidos: um ex-jagunço relata suas histórias pessoais, mescladas a episódios de interesse coletivo de grande significação para o futuro daquele mundo, em primeira pessoa e numa linguagem toda particular, que arranca do jeito de falar e alcança uma forma escrita sui-generis. (Vale notar, em parêntese, que narrativa em primeira pessoa, como se sabe, não era invenção recente, e pelo contrário, está lá nos começos do romance do século XVIII, como em Defoe, assim
como reapareceu no romance confessional e testemunhal vanguardista no começo do século XX. Em certa medida, o extraordinário avanço da invenção de Guimarães Rosa ocorreu com um aparente recuo ao passado, nesse sentido esboçando um gesto análogo ao de Machado de Assis quando estruturou suas Memórias póstumas de Brás Cubas com base em Sterne e De Maistre: para avançar, os dois, em alguma medida, recuaram uns passos em relação à moda narrativa de seus respectivos tempos, de seus contemporâneos — nem Machado aceitou as constrições do Realismo, que de resto ele criticou abertamente em Eça de Queirós, nem Rosa aceitou a forma realista dos romancistas de tema rural de sua geração, que foi a do chamado Romance de 30.) O que há de relação entre o grande atingimento de Guimarães Rosa e as soluções narrativas inventadas por Simões Lopes Neto? Aliás: há alguma relação documentável? Resposta: há 28
sim. Antes de verificar qual é essa relação, vale ainda uma nota: entre Sagarana e Grande sertão: veredas, há duas grandes mudanças, ambas fortíssimas. A primeira: dos nove contos ou novelas que compõem o primeiro dos volumes, apenas um é narrado em primeira pessoa, procedimento este que é central do segundo. A segunda: a linguagem do livro de contos é bastante convencional, muito próxima de toda narrativa de tema rural da mesma geração, ao passo que no romance Guimarães Rosa foi, como é consabido, revolucionária. Estrutura narrativa e linguagem diversas entre um momento e outro, portanto. Algum nexo com Simões Lopes Neto? Simões Lopes Neto passou a palavra a Blau Nunes, um gaúcho de larga experiência e singelo (mas não analfabeto); é ele que conta as histórias, sendo ao mesmo tempo testemunha direta de várias delas; e as conta em sua linguagem, muito particular, repassada de localismos no vocabulá-
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rio e estruturada por formas sintáticas também características. E ele as conta para um sujeito que é da cidade, que não conhece o sertão, quer dizer, o tipo particular de sertão que é o pampa. Com essas duas providências, evitou o abismo que toda a narrativa brasileira até então cavava entre o narrador culto, operando em registro urbano, e o personagem interiorano, falando dialeto. Foi nele que Guimarães Rosa viu, ou quando menos confirmou, o caminho que tomaria ao escrever sua obra mais relevante, Grande sertão: veredas, de 1956. Sobre essa leitura, não resta dúvida: está no Instituto de Estudos Brasileiros da USP o exemplar de Contos gauchescos e Lendas do Sul, edição da Globo, 1949, manuseado por Rosa, contendo algumas sublinhas significativas. Vale lembrar que essa edição foi a primeira de circulação nacional da obra de Simões Lopes; ela contava com um prefácio de Augusto Meyer, crítico gaúcho mas com prestígio no Rio de Janeiro, onde
vivia, com todo um estudo filológico de Aurélio Buarque de Holanda, que ainda não havia feito o célebre dicionário mas já era respeitado como comentarista, e finalmente com uma extensa nota biográfica de Carlos Reverbel. Vale sublinhar: a obra maiúscula de Simões Lopes Neto entra de fato na circulação culta do país no mesmíssimo ano em que Erico Verissimo oferecia ao público a primeira parte de seu ciclópico e encantador O tempo e o vento. Entre os nascimentos de Erico (1905-1975) e Simões Lopes (18651916), medeiam quarenta anos de diferença; mas a história de sua recepção precisa vir marcada por essa contemporaneidade, que se acrescenta de outros fenômenos dignos de registro, como o começo do movim e n t o tradicionalista, acompanhado pela emergência de uma novís29
sima geração de escritores dedicados ao tema gaúcho, isso tudo sendo examinado com desconfiança pelos jovens urbanos e modernos do grupo Quixote (sua revista circulou entre 1947 e 1952). Guimarães Rosa, então, de fato leu Simões Lopes Neto. E o que mais aparece, nessas anotações, é um traço narcisista: Guimarães Rosa destaca todas as passagens referentes à sua própria obra até então publicada — na verdade um livro apenas, Sagarana, que causara frisson em 1946 como uma renovação do dito regionalismo —, perse-
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guindo os rastros de sua verve nos comentários e no vocabulário organizado por Aurélio Buarque para a edição da Globo, em que Rosa aparecia como abonador de usos que Simões Lopes havia feito décadas antes. Por exemplo: Rosa marcou uma passagem em que Aurélio fala de escritores que “mantêm a verdade essencial da fala de seus tipos sem descer ao servilismo fotográfico”: Monteiro Lobato, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Luís Jardim, José Américo de Almeida e Guimarães Rosa. Em segundo lugar, figuram as significativas sublinhas de Rosa para passagens eloquentes de Simões Lopes Neto, que pelo jeito deixaram o autor mineiro com água na boca. É o caso, por exemplo, da célebre passagem do conto “Negro Bonifácio” em que a Tudinha estraçalha a genitália do Bonifácio, estando este já morto. Guimarães Rosa sublinhou as seguintes expressões:
“de ponta e de corte”, “como quem finca uma estaca”, “uma cousa nojenta”, “uma prenda que foi querida”, “tateou no negro” e “uma cruzeira numa toca”. É muito interessante acompanhar as sutilezas dessa leitura. Rosa sublinhou com vermelho a expressão “por fevereiro”, na frase “Era por fevereiro”, de Simões Lopes. Um uso particular de uma preposição, conotando certa imprecisão, eis o que terá feito o mineiro vibrar. Outra: o lápis preto — ele marca em várias cores a leitura, meticuloso — funcionou para sublinhar dois trechinhos de certa frase de Simões Lopes, na “Salamanca do Jarau”: “um olho d’água, que saía em toalha e logo corria em riachinho”. Bonito mesmo, vamos convir. Amigo de gatos, Rosa não deixou passar uma ótima frase da mesma lenda: “como os gatos, que acompanham com os olhos cousas que passam no ar e ninguém vê”. Rosa não
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escreveu nas margens dessa edição, nem em carta ou anotação alguma que se conheça, a confissão do quanto admirou Simões Lopes Neto, especialmente, dizemos nós, na armação, na arquitetura de sua ficção maior, quem sabe também nas estratégias de linguagem; mas nós, seus pósteros, bem podemos averiguar isso agora, panoramicamente. Para não ser mal entendido: é bem possível que Rosa viesse a ser o gênio que foi sem ter lido a obra de Simões Lopes Neto; mas é certo, é fato incontornável, que tomou conhecimento da obra do gaúcho. Não se trata de falar em influência, termo por si mesmo problemático e de limitado alcance crítico, mas sim de considerar a proximidade formal, em estrutura e em linguagem, do escritor mais novo, Rosa, com o escritor mais antigo, Simões Lopes Neto, conhecido pelo outro.
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A MENTIRA
QUALQUER COISA
Terezinka Pereira - EUA
Rita Marília
Qual foi a mentira que pôs uma barreira no caminho onde a liberdade morria no meio do verso? De agora em diante a poesia vai ficar delicada como um beijo de despedida. Para que desejar que tudo fosse diferente, e que a vida desse uma grande patada em alguém que se põe de joelhos para rezar? Não há nenhum deus no céu e a soberba de quem confiou em seu nome, cai sem armas. Sou poeta, assim que morra, serei imortal. Estes versos não têm sol nem alegria. Estou enamorando-me de mim mesma como um Narciso perdido no fervor dos tempos.
Qualquer coisa é um nada Que devagar Lentamente De nós vai se apoderando Operando Abrindo, fechando Se fazendo Se tornando ser Crescente A nos envolver docemente Semente Eternamente.
A poeta é também fotógrafa e está com a sua exposição fotográfica no CIC
EXPEDIENTE Suplemento Literário A ILHA – Edição 146 – Setembro/2018 – Ano 38 Edições A ILHA – Grupo Literário A ILHA - Contato: revisaolca@gmail.com A ILHA na internet: portal PROSA, POESIA & CIA.: http://www.prosapoesiaecia.xpg.uol.com.br 31
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RODEADO POR LIVROS José Eduardo Agualusa – Portugal
Gosto de me sentir rodeado por livros. A presença de livros, de muitos livros, tem um poder calmante, como flutuar num oceano pacífico, olhando o céu, numa tarde de sol. Escrevo melhor em casa, na minha biblioteca. Ontem, interrompi o romance em que estou a trabalhar para procurar uma coletânea de haikus, na secção de poesia. Não encontrei o livro que procurava, de forma que comecei a desmontar tudo. Reparei, sem grande surpresa, dado tal fenómeno ser recorrente sempre que começo a remexer nas estantes, que, nas filas de trás, iam surgindo títulos desconhecidos. Não me lembro de ter comprado aqueles livros. Não sei como se introduziram na minha casa. Acredito, desde há muito tempo, que livros esquecidos nos confins de estantes remotas tendem a chamar ou a engendrar novos livros.
Trata-se de um prodígio ignorado pela ciência. Isso não o invalida. A ciência reconhece hoje prodígios muitíssimo mais assombrosos, infinitamente menos credíveis, como o chamado entrelaçamento quântico. Segundo a mecânica dois ou mais objetos situados a milhões de anos-luz de podem estar ligados uns aos outros de tal forma que, atuando sobre o primeiro, os restantes respondem a tal ação no mesmo instante. Quem acredita em teses como esta não tem por que não acreditar que livros esquecidos evoquem para o seu convívio outros livros esquecidos, ou — possibilidade que exige um esforço de credulidade apenas um pouco maior — que dois ou mais livros juntos interajam uns com os outros, numa espécie de festiva suruba literária, de forma a gerar títulos inteiramente originais. Pode ser que os dois prodígios ocorram simultaneamente: uns livros chegam através de misteriosas cerimónias de evocação; os outros são engendrados, ali mesmo,
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nas estantes, a partir de terceiros. Visitei recentemente aquela que deve ser a maior biblioteca privada de Portugal. Pertence a José Pacheco Pereira, conhecido comentador político. Pacheco Pereira começou por adquirir um casarão enorme numa localidade perto de Lisboa, mas depressa compreendeu que não iria conseguir colocar lá todos os seus livros — mais de 100 mil. Então foi comprando as propriedades em redor — uma escola, um lagar, um quartel da Polícia —, e agora a biblioteca estende-se por todos aqueles espaços. Emergimos de um corredor sombrio e estamos num pátio e logo a seguir nos antigos calabouços da Polícia, sempre entre livros. A biblioteca ameaça devorar a povoação inteira. Imagino o furor noturno nas estantes dobradas ao peso dos livros. Os desvairados títulos que ali se engendram. O fantasma de Borges vagando feliz pelos corredores.
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OUTRO PEDIDO
TE MEREÇO?
Cláuda Kalafatás
O dinamismo
Cláudia Kalafatás
Quanta confusão: insegurança se apoderando,
da realização de nossos projetos pessoais
eu, novamente me afastando
sinalizando um outro caminho,
e a felicidade: quando?
um outro querer,
Horas se arrastando,
um novo sonho,
mal-estar físico chegando (só físico?),
como a fragrância de sândalo que emana de tua pele: escândalo!
desacelerar para minimizar o inevitável machucar
Será essa sensação de alívio e conforto
e quando eu disser que tenho que ir embora,
que sinto, às vezes,
diz: fique!
um sinal de que se aproxima nosso encontro?
E se tu vieres a chorar: chora! Traga-me a boa lembrança
Será essa certeza tão convincente
do amor de outrora,
que me impede de desistir e de enlouquecer,
que há muito tempo em meu peito não aflora,
neste estonteante poder do enternecer?
faz a árvore de nossa relação ser firme, perene: tora!
Estremeço... Encabulo-me...
Se sentir saudades,
Te mereço?
vem para a minha casa e mora! Então pedir-te-ei, agora, seja lá o que tu estiveres passando emocionalmente, não me ignora!
Vem aí o novo livro da poeta Cláudia Kalafatás
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LIÇÃO SIMPLES
CAMINHANDO
Jurandir Schmidt – Joinville, SC
Aracely Braz
Andei, andei
Escreve negro grafite
Em êxtase, sem destino.
que teu invólucro
Caminhava
é igual ao da enxada
Num desejo de busca
do homem do campo.
Admirando a exuberância
Imprime rotativa gigante
Do sol, da lua, das estrelas.
que tuas peças
Em parceria com o marulhar do rio
são parentes do arado,
Cantei uma canção de ninar,
Leiam povos e raças
Colhi flores, provei frutas.
que seus olhos
E deparei com as encantadas
saibam valorizar
Cores do arco-íris!
as coisas da terra.
Cansado pela trilha,
Aprende cérebro retraído
Acomodei-me na selva
que os ensinamentos
E adormeci.
vêm da simplicidade
Um anjo, em sonho,
do lápis e do papel
Me abraçou
da enxada e da terra.
E ao despertar, murmurei:
ilustração
irmãs da colhedeira.
Hás de estar não só em sonho, Mas a caminhar Sempre, comigo!
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LIVRO EXISTE PARA SER LIDO Por Luiz Carlos Amorim - Escritor, editor e revisor, Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, com 37 anos de trajetória, cadeira 19 na Academia SulBrasileira de Letras. http:// lcamorim.blogspot. com – http://www. prosapoesiaecia. xpg.uol.com.br
L
i, recentemente, o desabafo da escritora Inês C. Lohn, no Face, e não posso deixar de me pronunciar. A escritora costuma deixar livros dela em lugares onde os possíveis leitores possam encontrar, para levá-los e ler, como eu já faço, inclusive, há vários anos. Deixamos os nossos livros em bares, restaurantes, bancos de praça, ônibus, trens, navios, aeroportos, etc., com a indicação de que quem encontrar o livro pode
levá-lo, se assim o desejar, para lê-lo e depois deixar em um lugar onde outra pessoa possa pegá-lo para ler e assim continuar a corrente de leitura. Transcrevo o depoimento da própria escritora: “Hoje depois de fazer todo um percurso pela cidade e ver ao longe as pessoas encontrando o livro que deixei em algum lugar e ver a expressão das pessoas depois de ler o bilhete, tive uma surpresa triste e desagradável. Quando eu já estava voltando para casa, ainda no centro, um jovem me alcançou e me destratou por eu colocar livros para serem encontrados na
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rua. Escutei poucas e boas e ele devolveu o livro que havia encontrado. Disse-me: é por conta de pessoas assim que o Brasil desabou e se encontra na lama. Livros devem estar expostos em Livrarias e Academias de Letras ou em lugares apropriados e culturais da cidade. Não devem ser distribuídos de graça, deixados por aí expostos na rua em qualquer lugar.” Ah, então livros não existem mais para ler, eles são feitos para ficarem guardados, para servirem de enfeite? Pois é justamente o contrário do que eu professo: não deixem seus livros guardados. Façam com que sejam lidos, com
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que continuem sendo lidos, sempre. Livro não é para ficar fechado. Livro fechado não existe, ele só existe enquanto lido, quando é recriado pelo leitor. Livro tem que estar na mão do leitor, nos olhos do leitor, na mente do leitor, no coração do leitor, fazendo o seu trabalho de disseminar o conhecimento, a cultura, a fantasia, a história do ser humano. Fico indignado com a ignorância que grassa por aí, cada vez mais grave, porque a culpa não é das pessoas, o problema é de todo um sistema de educação, de um ensino sucateado justamente por quem tem que primar pela sua melhora, pelo seu resgate, pela sua boa manutenção e desenvolvimento. Falo do governo, a administração deste nosso Brasilzão,
que faz mudanças na educação, mas nunca para melhor, sempre para pior. E não apenas esta que está no poder, mas as anteriores também, principalmente, porque deixaram o país no estado em que está. E num país sem educação, onde o ensino é relegado a último plano, acontecem coisas como a que aconteceu com a escritora. Não é de hoje que combato isso e procuro incentivar iniciativas que possibilitam a aproximação livro-leitor, que ajudam a incutir o gosto pela leitura, o hábito da leitura. Existem pessoas anônimas que recolhem livros na sua comunidade, na sua cidade, para poder doá-los a quem queira lê-los, a quem não pode comprar livros. E existem muitas dessas iniciativas pelo
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Brasil, felizmente, mas há quem procure dificultar, como o rapaz ignorante que ofendeu a escritora e todos nós e, recentemente, a prefeitura do Rio, vejam vocês, que multou uma pessoa por distribuir livros de graça na praia. E a pessoa tinha licença para a sua banca, com tudo certinho, tudo legal. Educação e cultura são a base de um povo. Sem isso, não somos nada. E os “políticos” corruptos que comandam este país não tem cultura, nem educação. E querem que ninguém tenha. Precisamos começar a pensar nisso. Porque um país sem educação interessa a esses mesmos “políticos”, porque é mais fácil manipular o povo. E com políticos corruptos e um povo sem educação, o país sucumbe.
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Sigo a via única de um sonho adormecido
ALMA BOÊMIA
e desvio tantos outros descaminhos
Selma Franzoi de Ayala
tentando esquecer a saudade de um amor
E depois da poesia,
que um dia eu deixei fenecer…
quero banhar minh´alma
E depois da poesia,
em sais de esperança,
acumulo meu céu de canto
florir meu sentimento-criança
e afago um pouco de sonho e dor
inda cheirando jasmim…
num “cuba”, somente por desencanto
Quero sair do meu quintal e rever o meu jardim.. Sentir, então, a lembrança
e pra rimar com minh´alma em desatino.
das venturas que guardei
Canto canções em desafino –
e na mansidão da noite,
canto canções quase esquecidas
o aroma suave das flores que plantei…
liberando meu cancioneiro cativo
Depois, voar nas asas da amizade
na saudade de um amor tão antigo
desfraldando a bandeira
que minh´alma latina e boêmia
da minha liberdade…
nunca pode olvidar…
Rumo ao desconhecido
E canto,
sentimento falido
canto pelas últimas gotas
etérea busca-fantasia
de emoções contidas
que faz sonhar…
e por tantas sensações
E depois da poesia,
vivenciadas, divididas
faço um pacto com a felicidade.
entre versos-brados de liberdade
Quero distância de meus temores,
que expressam tanta verdade
angústia e outras dores
as melhores emoções
e mesmo sendo uma felicidade
de uma alma latina e boémia
momentânea e fugidia,
que sempre viveu em mim…
desencadeando, enfim,
fica tudo por conta desta minha poesia… 37
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SUFOCO NA ESCURIDÃO Celestino Sachet – Florianópolis, SC
Logo no segundo parágrafo que abre a novela, “Gritos do Amanhecer”, Júlio de Queiroz, o empresário-narrador, refere-se a “uma dessas coincidências que a vida nos prepara”. A expressão põe em choque a força da auréola do conhecimento científico que prega a suprema autoridade da explicação dos fatos: se a coincidência é uma intervenção da Vida sobre o ser humano, é porque a vida é uma autoridade superior a nossa capacidade de perceber outras faces do universo. Algumas linhas mais à frente, como que preparando uma nova surpresa, agora para o leitor, a narrativa proclama que “o inferno abriu suas portas” ao permitir que o automó-
vel, em que o narrador se encontrava, fosse de encontro à traseira de um caminhão. Este choque é a Grande Explosão que vai dar origem a um novo universo ou, se quisermos, à descarga genética, fonte de uma nova vida. Desnorteado com o choque, o empresário-narrador, quando volta a si, descobre-se prisioneiro de um casarão escuro e sem porta de saída. Sem possibilidade de comunicação com o exterior e sem rumo consciente para se orientar, o personagem desata uma caminhada pela escuridão da pré-História do gênero humano e pelos rumos da Filosofia e da Teologia
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que, do lado de fora do casarão, mapeiam as quatro paredes do mundo, herdeiras de nossos antepassados que serão postas em choque através dos 22 capítulos da novela. Escritos com algarismos romanos, XXII, o título desse último capítulo aparece desenhado em duplicata – XX e II (coincidência, senhor Júlio de Queiroz?) A partir do capítulo 2 – intitulado II -, a novela mergulha fundo na apresentação de uma violência imposta sobre a criatura humana pelas diferentes filosofias e teologias que foram aparecendo através de milénios. Qual outro Dante, enveredado pelos
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caminhos de A Diabólica Tragédia, o personagem, ainda no ventre do casarão, manifesta-se desejoso de sair de lá e encontrar uma nova Cultura. É amparado pela personagem Átropos que se confessa partícipe da origem de todos os seres humanos, porque reguladora do tempo e da vida, agora vivendo desterrada e sem qualquer espécie de poder. Poder que lhe foi retirado pela imposição da Ordem Masculina, originada no Momento da Expulsão do Paraíso, pelo Deus Pai, e na submissão à Miséria Masculina, imposta pela desgraça do pecado original. Nessa nova Bíblia que o personagem-narrador da novela se propõe a escrever, o Deus Pai dessa nova Civilização será a Mulher, “Alma forte
do passado, filha do símbolo feminino e da bondade materna” em franca oposição à autoridade paterna. Em pouco mais de 100 páginas, Júlio de Queiroz vai tecendo uma nova ordem para as coisas e uma cultura de novos valores, animado pelas afirmativas de Átropos: “toda a ordem mata a fantasia e a criatividade” e “a ordem só sabe repetir, jamais criar”. Nesse novo mundo, tecido agora no estranho ventre materno, representado pelo casarão escuro, Júlio de Queiroz também, e principalmente, se refaz a si mesmo. Ao final da novela, com a proposta de uma outra filosofia e de uma nova teologia, ele é um homem diferente “macrocosmo do indivíduo e microcosmo do universo”. E os gritos do ama-
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nhecer, percebidos ao sair do casarão, são o prenúncio de que a vitória sobre o sufoco d a e s c ur i d ã o nã o foram apenas palavras, pelas frases e pelos capítulos da novela saídos da inteligência e da criatividade do filósofo, do teólogo e do literato; gritos marcados pela técnica de um perito capaz de nos convencer de que diferentes filosofias, diferentes culturas e até diferentes teologias sempre tiveram o desejo de nos tornar mais felizes. Mas a felicidade longe está de nossas mãos. Por isso, a necessidade de encontrar novos sistemas de relacionamento humano. E, até, outro relacionamento teológico. Que a divindade (masculina!) perdoe a estranha proposta.
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FORÇA INTERIOR
SOBRE O TRAVESSEIRO
Jacqueline Aisenman – Genebra, Suiça
Maura Soares – Florianópolis, SC
a força se encontra no exterior, no universo, em toda energia do universo, em toda energia que é o universo… então por isto mesmo a força está no interior de nós já que somos o universo, somos fragmentos dele, somos sua energia… somos os que se admiram diante de sua grandeza e os que se inclinam diante de sua beleza… somos também o poder que move os desejos como os ventos movem as folhas… a força exterior que se torna a força interior a imensa força interior universal.
Sobre o travesseiro rabisco estas notas. É noite, quase madrugada. Sob a luz do abajur, registro a solidão através de breves palavras. Busco na memória os momentos felizes da juventude. Foram tantos... Tantas, também, as decepções. O amor ideal é difícil de encontrar, pelo menos, encontrar alguém que compartilhe os sonhos, que divida as tristezas, que ria nas alegrias, que dê carinho na hora do amor. Sobre o travesseiro, a letra escarranchada em papel rascunho manchado de tinta. O sono está chegando e, na breve interrupção de um cochilo, rabisco a esperança de que um novo dia vai chegar. 40
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MEUS EUS REVISITADOS Marli Uhlmann
VOZ DAS COISAS
Eu gostava de ser diferente zeleva pela minha individualidade,
Else Sant´Anna Brum – Joinville, SC
autenticidade, liberdade,
Esta relva verde,
simplicidade…
Este rio que passa,
Gostava de gostar
As árvores todas,
De meus gostos diferentes,
Os peixes do mar
meus valores,
Estão a dizer:
meus deuses tutelares…
- Eu quero viver!
Gostava do compasso
Toda a natureza
do meu passo,
Com sua beleza,
sem eco,
As flores que alegram
sem rumo,
As aves que cantam
sem controle…
Estão a dizer:
Identificava-me com Fernando Pessoa
- Eu quero viver!
- Álvaro de campos, em Lisboa Revisitada.
Que a natureza
O homem moderno Vive destruindo
A infelicidade fez-me igual
Não pode esquecer
a toda a gente…
Que precisa dela Para poder viver!
Else Sant´Anna Brum é poeta e prosadora, autora de vários livros infanto-juvenis e educadora das mais dedicadas
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o brotar de uma flor, idolatro a magia contida na poesia!
IDOLATRIA Erna Pidner Ipatinga, MG
ACONCHEGO Chris Abreu – Florianópolis, SC
Idolatro a madrugada com seus encantos e mistérios,
Inverno quente
idolatro a natureza
Quase primavera
em toda a sua beleza,
Frio inexistente
idolatro o sol
Tarde morna e bela
com sua luz e esplendor,
Árvores esqueletos
idolatro as avezinhas
Florescem precipitadas
que fazem seus ninhos,
Pássaros cantarolam
idolatro o cantor
Musicando madrugadas
em seus acordes maviosos,
Mas anseio
idolatro o professor
Pelo aconchego
com suas sábias lições,
Da lareira dos amantes
idolatro o enfermeiro
Quero vinho nas taças
que mitiga toda dor,
E o gelo nas vidraças
idolatro o lavrador
Pudesse eu escolher
a plantar e a colher,
Seria inverno eterno
idolatro a formiguinha
Quem dera!
em sua faina constante,
Embora encantadora
idolatro o leão
A primavera
que é o rei dos animais,
Saudosa me sinto
idolatro o escritor
Do frio do inverno
artífice da palavra,
E do seu abraço terno.
idolatro o ator em suas cenas tocantes, idolatro o cozinheiro que faz quitutes com sabor, idolatro, com amor, 42
MUDE SUA FORMA DE LER E ESCREVA MELHOR Denise Castro – Munique, Alemanha
V
ocê faz um diário de suas leituras? Você faz fichamento? Usa cores, post it? Escreve sobre os livros? Não? Então atente, se seu interesse é escrever mais e melhor, um dos primeiros hábitos a serem mudados é a maneira como você lê.
É bom começar a criar o hábito da leitura junto à escrita, pois a leitura é uma grande ferramenta para lhe ajudar a escrever melhor. Mas não é ler assim tão à toa... é ler observando o estilo do autor. Observar como ele constrói as frases, como ele seleciona as pontuações. Como ele emite emoção, surpresa e decepção no texto. A leitura minuciosa faz de você um leitor e escritor atento, uma vez que tudo começa pela imitação. Por mais que você não queira, mesmo inconscientemente, tudo aquilo que você aprecia ler interfere na sua escrita. E, sabendo disso, porquê
não observar ainda mais os escritores que você admira e quem sabe tentar igualar-se ou superá-los em qualquer idade? Temos sempre algo a aprender e esta é uma dica valiosa principalmente pra quem não sabe por onde começar ou para aqueles que andam se sentindo vazios de ideias. Lembrem-se, a imitação é o início, é uma espécie de processo de maturidade antes da independência de estilo. Escrever é trabalho. E leitura pode ser um trabalho proveitoso para sua desenvoltura como escritor (a).
LITERARTE FEIRA DO LIVRO DE JARAGUÁ DO SUL
Os escritores Luiz Carlos Amorim e Marli Lúcia Lisbôa, do Grupo Literário A ILHA, estiveram participando da Feira do Livro de Jaraguá do Sul, uma das maiores do Estado, com o lançamento de seus mais recentes livros. Amorim autografou MEU PÉ DE JACATIRÃO – poesia, e Marli Lúcia Lisboa autografou seu HORA H. Os escritores do Grupo Literário A ILHA estarão, também, na Feira Catarinense do Livro, em Florianópolis, no final do ano, em dezembro, quando estarão lançando, também, a nova antologia do Grupo, POETAS DA ILHA.
NOVO LIVRO DE CLÁUDIA KALAFATÁS
A poetisa Cláudia Kalafatás está com o seu novo livro, HARPA INERTE, no prelo. O livro, que reúne a produção dos últimos anos dessa poeta do Grupo Literário A ILHA que também é uma das POETAS DA ILHA, a nova antologia do grupo, será lançado até o final deste ano, na capital. Cláudia é uma poeta romântica, apaixonada, que fala de amor, de vida, de cotidiano: ritmo, sensibilidade e emoção são os nortes de sua poesia. Poesia forte, profunda e consciente. Há que se ler a poesia dessa poeta da Ilha.
ENCONTRO CATARINENSE DE ESCRITORES O Encontro Catarinense de Escritores, promovido pela Associação das Letras, de Joinville, acontece no dia 15 de setembro, com a presença dos escritores Deonísio Silva, Rodrigo Garcia e Malu Rodrigues. Serão realizadas palestras, mesas redondas e muita interação entre escritores e leitores. O Grupo Literáro A ILHA estará presente, divulgando a sua nova revista ESCRITORES DO BRASIL, esta nova edição do SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA e a nova antologia do grupo.