SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA - Edição 154 - Setembro 2020 - Edições A ILHA

Page 1

SUPLE MENTO

LITE RÁRIO Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ANA MARIA MACHADO:

A ESCOLA NA FORMAÇÃO DE LEITORES

CRUZ E SOUSA: A NEVROSE DO POETA

EDUCAÇÃO, CULTURA E A PANDEMIA

FLÁVIO JOSÉ CARDOZO E AS PRIMEIRAS TRADUÇÕES DE JORGE LUÍS BORGES NO BRASIL

ADÉLIA PRADO, PERSONALIDADE LITERÁRIA 2020 DO PRÊMIO JABUTI Portal A ILHA: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

CANSAÇO HISTÓRICO

POESIAR-SE Luiz Carlos Amorim

Afonso Romano de Sant´Anna

É preciso salvar a beleza que emana da poesia. Há que se matar a indiferença e a insensibilidade que expulsam a poesia de nossa essência. É preciso ser poesia para gritar o que está preso na garganta e sussurrar vida ao pé do ouvido. E a poesia é o brado da alma é a voz da emoção, a cor da razão. Poesia é coração, é sentimento, é a busca do amor, todos os tipos de amor, qualquer tipo de amor… Então, Poesio-me!

Triste, tardio descobrimento Outrora pensei: somos o acúmulo de reconhecimentos, basta re-velar. Revelei. Revelei-me. Revoltei-me. Cansei de relevar. Triste, tardio descobrimento: a história é a história dos desvios, múltipla ficção; a ilusão, sim, é linear, e eu cansei de me adiar. Quem for ex-brasileiro que me siga. Quem ainda for ingênuo - que prossiga. 2


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

SUPLE MENTO

LITE RÁRIO

EDITORIAL “A ILHA” NA PANDEMIA

Cá estamos nós, comparecendo com mais uma edição da revista mais perene do gênero, o nosso Suplemento Literário A ILHA, apesar da pandemia do novo coronavírus, que parou o mundo. Não interrompemos a publicação da revista, pois nossos escritores continuam produzindo e mais do que nunca as pessoas estão lendo. Então continuaremos dando espaço à literatura produzida pelos catarinenses e brasileiros, levando-a aos quatro cantos do mundo, para leitores da lusofonia, onde quer que eles estejam. Nesta edição, matéria sobre a obra de Cruz e Sousa, com uma nova visão sobre a poesia do Cisne Negro, entrevista com a escritora de literatura infanto-juvenil e poeta Else Sant´Anna Brum, reportagem com Adélia Prado, a personalidade literária 2020 do Prêmio Jabuti, conversa com Flávio José Cardozo, o responsável pelas primeiras traduções de Jorge Luis Borges no Brasil e entrevista com Ana Maria Machado, que fala sobre a importância da escola na formação de novos leitores, além de matéria mostrando as consequências da pandemia da covid 19 sobre a cultura, arte e educação no Brasil. Muita prosa, muita poesia e muita informação literária e cultural para você, boa leitura para esses tempos de quarentena e isolamento numa pandemia nunca antes vista em nosso país. A literatura, assim como as outras artes: música, cinema, teatro e dança, são a salvação de todos nós, para nos entretermos no tempo imenso que temos para ocupar. O editor

Visite o Portal PROSA, POESIA & CIA. do Grupo Literário A ILHA, na Internet, http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br 3


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

DIA 01 DO DIÁRIO DA PANDEMIA – 17.03.2020

Urda Alice Klueger – Palhoça, SC

Hoje fui ao supermercado e à farmácia com a Maria Antônia , e na volt a , tranquei o portão para um recesso real. Trouxe bastante comida do supermercado, quase só coisas básicas e muita comida de gato e há bastante comida de cachorro

em casa, mas sei que essas coisas acabam rapidamente. Esqueci-me de comprar pescoço de galinha para cozinhar para os cachorros, coisa que é muito fácil comprar aqui em Palhoça. No supermercado havia muita gente fazendo muita compra e até uma mulher usando máscara. O estacionamento estava lotado. Com essa ida à cidade, o dia fugiu rapidamente. Fiquei pensando na sorte que tenho por ter os 3 cachorros e as duas gatas com quem conversar, e todas essas plantas

4

nos meus quinhentos m2 de mundo, e a internet, e até um telefone. E penso, agora, nas tantas goiabas maduras e amadurec endo, e nas tantas carambolas na mesma situação – há que se pensar em fa zer sobremesa, por exemplo. Por enquanto só programei voltar a estudar um pouco de francês a cada dia e acabar de reler “O tempo e o vento”, de Érico Veríssimo. Faço as contas e vejo que faz 56 anos que ando lendo “O tempo e o vento”, periodicamente voltando a ele! Bons livros são assim! O b s .: 15 0 d i a s depois, meu portão continua trancado, o coraçãozinho do meu cachorro Atahualpa parou e já morreram 100.000 pessoas no Brasil. Tem-se muito medo. O COVID está muito perto.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

MEU PAÍS É O UNIVERSO Jacqueline Aisenman – Genebra, Suiça

IDENTIDADE Mia Couto

Preciso ser um outro para ser eu mesmo Sou grão de rocha Sou o vento que a desgasta Sou pólen sem inseto Sou areia sustentando

A minha casa o meu país a minha rua o meu mundo tudo reflete o que sou e o que não sou. Vulnerável, infiel e avariada, ávida do que nem mais há. A inconstância dentro e fora permite me reinventar sempre o tempo todo vidas e vidas na mesma vida.

o sexo das árvores Existo onde me desconheço aguardando pelo meu passado ansiando a esperança do futuro No mundo que combato morro no mundo por que luto nasço.

5


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

CRUZ E SOUSA: A NEVROSE DO POETA Alice Vieira

A p ós - graduan da de Literatura Alice Vieira publicou em livro a sua dissertação A NEVROSE DO POETA, sobre o grande poeta catar inens e CRUZ E SOUSA. E fala do seu trabalho: Pergunta – Apresente o poeta Cruz e Sousa e sua obra, por favor. Alice – Acho que, inicialmente, é interessante destacar como a poesia dele se instaura de maneira única na nossa lírica, por conta do vigor verbal dessa poesia, de como ela se insere

na nossa tradição literária. E como ela significa uma ruptura de tudo que tinha sido produzido até então, num contexto em que ainda se valorizava muito a literatura parnasiana, ainda se valorizava o naturalismo. A poesia de Cruz e Sousa aparece com excessivo jogo de palavras, também de efeitos sonoros, de emprego de palavras que, por vezes, parecem até preciosismos verbais e chamam muito a atenção. Por isso, houve dificuldade na recepção crítica dessa poesia, ela foi muito estranhada a 6

princípio. Pergunta – A respeito do vigor verbal, do preciosismo das palavras, dá pra dizer que são características gerais do simbolismo, talvez até do pioneirismo de Cruz e Sousa? Alice – São duas questões: de fato, ele teve contato com a literatura simbolista, ele conheceu Verlaine, ele conheceu os poetas franceses e esse trabalho com a linguagem, essa l i n g ua g e m t r a b a lhada em termos de efeitos sonoros, de imagem, de preciosismos verbais, ela


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

tem, de fato, relação com a poesia simbolista e com o que existia na tradição até então tida como europeia. Tanto que o Cruz e Sousa foi mal visto por alguns críticos da época, que entendiam aquilo c om o imp or taç ão cultural. Mas na verdade, não se tratava apenas da reprodução de uma tradição eur o p eia , p or q ue existem alguns tons que são característicos de Cruz e Sousa. Por exemplo, quando falo de preciosismo verbal, existe uma escolha de palavras muito próprias do Cisne Negro, que não é do simbolismo, é do Cruz e Sousa, mesmo. Você bate o olho no poema e consegue identificar. Ele tem um trabalho consciente com a linguagem, ele faz isso com tal primor e vigor verbal que, às vezes, é muito fácil de identificar. Existe a nota simbolista, mas exis-

tem as peculiaridades de vocabulário, do trabalho com a palavra do poeta Cruz e Sousa. É um misto das duas coisas: tem o poeta e tem o movimento, mas muito das coisas são do poeta, do Cruz e Sousa, dele mesmo. A idiossincrasia da literatura dele.

Pergunta – Qual a importância da literatura de Cruz e Sousa para a literatura nacional? Alice – Na verdade, Cruz e Sousa foi descoberto para a literatura nacional. O mais importante é que ele aparece no contexto da lite7

ratura brasileira de supervalorização do parnasianismo, em que o parnasianismo, de certa maneira, já tinha saturado um pouco a tradição da literatura brasielira. Ainda havia o naturalismo e, quando Cruz e Sousa aparece, ele traz uma inovação não vista para a nossa poesia. Tanto que ele foi recuperado e estudado muito mais tarde, a partir do nosso modernismo, inclusive ele influenciou literariamente parte do nosso modernismo que é menos conhecido, que é espiritualista e ao qual se ligava C e cíl i a M e i r e l e s . Algumas figuras não tão conhecidas em termos de expressão nacional do nosso modernismo e muitas figuras do nosso modernismo literário brasileiro foram diretamente influenciadas por Cruz e Sousa, in c l us i ve rel en d o


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

suas obra de maneira espiritual. A obra do poeta foi relida por Cecilia Meireles, que achava Cruz e Sousa o suprassumo da nossa lírica. Mas isso é influência da lírica de Cruz e Sousa dentro do modernismo, especificamente. Porque em termos da nossa lírica, ela é fundamental para a construção da nossa tradição literária. Até hoje, muita gente é afetada pela poesia de Cruz e Sousa. Muitos poetas são diretamente afetados e o principal motivo é essa característica de vigor, de magia verbal, característica da poesia do maior poeta simbolista, que foi inédita na nossa tradição literária. Pergunta – A “nevrose” do poeta é a mesma coisa que neurose? Alice – Na verdade, eu coloquei a palavra “nevrose” no título

da minha obra, justamente porque essa é a palavra empregada na época. Trata-se, na verdade, de uma palavra muito usada nos estudos da clínica médica psiquiátrica do final do século 19, muito antes da consolida-

ção dos conceitos da psicanálise, que tornariam a “nevrose” algo mais comum, normal. Somos todos neuróticos, mas muito antes disso, quando a clínica médica psiquiátrica se inseria num contexto de valorização 8

excessiva da ciência, esse crescimento da clínica significou uma mania de patologização, de dar nomes médicos, nomes clínicos, dar nomes de doenças a praticamente tudo. No final do século 19, a medicina psiquiátrica, que começaria aquela política pesadíssima dos manicômios, que a gente conhece, dava nome de doenças a praticamente tudo. E o nome genérico pra isso é a palavra “nevrose”. No meu estudo, eu contatei que Cruz e Sousa emprega a palavra nevrose em muitos de seus poemas, só que em sentido contrário ao que era empregado pela clínica médica. Porque consultando um manual médico que era usado na França naquela época, , tradicional da psiquiatria, vi que existe uma série de prescrições sobre a nevrose. Usa-se


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

a palavra “histeria” mesmo, usa-se a palavra “melancolia”, mas no sentido de doença. Ele, o doente, era um indivíduo que precisava ser isolado, separado da sociedade, porque r e p r e s e n t ava u m perigo para si mesmo e para os outros. Ele era doente dos nervos. E o Cruz e Sousa usava essa palavra no sentido exatamente contrário: o ser nevrótico, para ele, é um poeta excepcional, diferente dos outros, excessivamente sensível e, por isso mesmo, consegue compor uma poesia de grande vigor verbal. Quis trabalhar um pouco o fato de como Cruz e Sousa ressignifica esse conceito que é da ordem da clínica médica psiquiátrica e ele transforma o diagnóstico em uma característica poética, no sentido positivo. Ele tem consciên-

cia de como esse conceito representava, de certa forma, o excesso do cientificismo do final do século 19. Ele se apropria desse conceito caracterizando o poeta e também toda essa imagem de poeta decadente, o poeta simbolista como diferente dos outros, porque ele é

um nevrótico, ele tem uma distinção dos nervos, uma hipersensibilidade, por isso consegue fazer a poesia dele como ela é. Pergunta – Alice, você procurou comparar a criação poética a um estado místico de espírito. Essa relação entre 9

poeta e místico está clara na obra de Cruz e Sousa? Alice – Na verdade, quando falo do misticismo de Cruz e Sousa, não é tanto uma explicação da obra dele a partir da mística. É mais uma tentativa de aproximação da imagem do poeta com a imagem do místico. Porque isso sim, é bem claro na obra dele. Ele faz várias analogias entre a figura do poeta e a figura do místico, mas não necessariamente no sentido religioso, do ponto de vista cristão. Trata-se, na verdade, de uma antologia da figura do poeta e a figura do místico, a partir do seguinte ponto de tangência, que o próprio Cruz e Sousa ressalta na sua poesia: por exemplo, o fato de que pra ele, a poesia era muito mais que um trabalho, um hobby, ela se tratava de um destino. Havia


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

um comprometimento tamanho do poeta com aquela poesia, que é como se ele a comparasse a um noviciado divino, uma etapa preparatória de alguém que está se inserindo na vida mística, que quer se tornar um religioso. As analogias que Cruz e Sousa constrói entre a vida do poeta e a vida do místico, são muito interessantes, muito fecundas, para entender a relação dele com a poesia. Porque a maneira como ele compreende a poesia é de tal maneira ligada a uma ideia de sagrado, do comprometimento existencial com o prático dessa poesia, que a analogia com o místico é muito pertinente. É como se o mesmo caminho para o místico, de abnegação e de isolamento, para encontrar Deus, o poeta tivesse que fazer para encontrar a poesia. Dedicação

completa e total. Até coloquei no meu livro uma das analogias que foi, para mim, mais evidente, porque aparece na poesia, inclusive. Nessas construções da imagem da figura do poeta, Cruz e Sousa com frequencia evoca a imagem de Santa Teresa

Dávila, uma mística que se insere na tradição de modernização da mística espanhola. E Santa Teresa é muito famosa, porque houve uma cer ta polêmica na recepção dela, devido ao caráter fortemente erótico das descrições de experiências 10

místicas que ela fazia. Então, Santa Teresa, na época, foi um escândalo, porque o contato dela com o divino era de uma natureza tão erótica, que não poderia ser aceita dentro daquela tradição reformadora da igreja nesse contexto. Hoje ela já foi aceita. Mas o que é especialmente interessante é que esse erotismo de Santa Teresa Dávila é muito pertinente, para fazer essa comparação com a figura do poeta em Cruz e Sousa, porque de certa maneira, esse erotismo na mística em Santa Teresa é bastante comparável ao erotismo que existe na obra de Cruz e Sousa. Mas não enquanto tema e sim enquanto trabalho com a forma, trabalho com a linguagem, trabalho com o vigor verbal da palavra. De maneira tão intensa , que chega a ser sensorial,


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

erótica mesmo. Por isso, travei uma analogia entre a Santa Teresa e a figura do poeta, como figuras igualmente nevróticas, porque são figuras que passam do limite aceitável para a sociedade da época. Para o poeta, no contexto da patologia, o apego excessivo à linguagem, ao trabalho formal, era de certa maneira entendido como uma doença e S a n t a Te r e s a também se inseria nesse contexto de desmedida, porque ele se refere à experiência mística de uma maneira que não era tradicionalmente aceita pela igreja da época. Pergunta – Quando Cruz e Sousa lançou seu primeiro livro, “Broquéis”, era 1893, o Brasil mal tinha abolido a escravatura. Queria saber se ele sofreu preconceito por ser negro.

Alice – Sofreu, sim, muito. Está na biografia dele. Sofreu muito pela sua condição racial. Foi difícil, para ele, de muitas maneiras, inserir-se na esfera pública. Ele foi sistematicamente excluído. Você pode pensar que existia toda a inovação formal da obra,

mas eu não acho que trata-se só de inovação formal da obra, eu acho que houve a exclusão sistemática de Cruz e Sousa por causa da condição racial dele. Então foi muito difícil pra ele conseguir um espaço nos jornais, inserir-se no círculo social dos intelectuais cario11

cas da época, porque quando ele mudou-se para o Rio de Janeiro, havia várias anedotas e histórias de como era difícil para ele interagir socialmente nos cafés e como ele conscientemente tentava manter uma postura de distância. Porque a figura de um negro poeta e intelectual e que, acima de tudo, escrevia poesia simbolista consciente da linguagem que usava, incomodava muito. Inclusive, tem até um relato realmente muito ruim, muito tocante, que existe na biografia de Cruz e Sousa, de um anônimo que mandou um soneto imitando os cacoetes estilísticos e verbais do poeta, para fazer piada a respeito da condição racial dele. E isso saiu nos jornais da época. Foi difícil para ele de muitas maneiras. Ele foi um poeta que morreu c om fome, morreu pobre,


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

sem dinheiro, voltou num vagão de animais, recebido por poucos amigos. Teve dificuldade de se inserir na esfera pública, teve dificuldade de conseguir um trabalho e sofria muito com a discriminação no cenário intelectual carioca.

Transcrevo o poema “Assinalado”, abaixo, que toca no tema de nossa conversa, que dá uma prévia de como ele se apropria da ideia de “nevrose”, que é a ideia da loucura patológica da época, para transformar em característica do poeta. Faz que tu'alma suplicando gema E rebente em estrelas de ternura. Tu és o Poeta, o grande Assinalado Que povoas o mundo despovoado, De belezas eternas, pouca a pouco... Na Natureza prodigiosa e rica Toda a audácia dos nervos justifica Os teus espasmos imortais de louco!

O ASSINALADO Cruz e Sousa

Tu és o louco da imortal loucura, O louco da loucura mais suprema. A Terra é sempre a tua negra algema, Prende-te nela a extrema Desventura. Mas essa mesma algema de amargura, Mas essa mesma Desventura extrema

EXPEDIENTE

SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA – Edição 154 – Setembro/2020 – Ano 40 Edições A ILHA – Contato: lcaescritor@gmail.com e revisaolca@gmail.com A ILHA na Internet: Portal PROSA, POESIA & CIA.: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br 12


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

O TEMPO É VELOZ

Eloah Westphalen Naschenweng – Florianópolis, SC

Que a realidade apenas não seja - apenas, viva; a eternidade não tem tempo, é veloz e fugaz. A certeza não existe; o que se acredita é que surpresas são incertezas que temporariamente nos levam pra dentro do sonho. Um minuto pode significar uma vida toda. Instantes podem ser poemas e ilhas de amor. Num dia qualquer habita-me um tempo que não sonhei, doce e gentil memória com passado, com presente; o futuro é incerta ilusão. O amor não tem tempo, o poema nasce quando a vida copia seus versos. 13


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ANHANGUERA Enéas Athanázio – Balneário Camboriú, SC

A estação ferroviária era o coração da Vila. Prédio retang ul a r, c o n s t r uíd o em madeira de lei, tinha extensas abas no telhado, para a frente e os fundos, de forma a cobrirem a plataforma de pedra-ferro e as pessoas que nela se encontravam. Diante dela estacionavam os trens que trafegavam pela chamada Linha Sul, entre eles o misto que vinha do norte, pela manhã, e o que retornava do sul, à tarde. Nesses horários, boa parte da população deixava seus afazeres e se dirigia à estação para ac ompanhar a passagem dos

trens. Constituíam as opor tunidades diárias de encontrar conhecidos, inclusive entre os p a s s a g e i r o s , ve r caras estranhas e até mesmo comprar jornais e revistas do jornaleiro do trem. Naquelas escalas a Vila se agitava por alguns minutos antes de recair

e nela só permaneciam o agente, o telegrafista e algum eventual desocupado. Numa manhã vazia, durante as férias de internato, eu me encontrava na estação. Não me lembro o que fazia, mas, com certeza, procurava a companhia de algum amigo.

no silêncio e na mesmice normais. Em passos lentos, as pessoas retornavam às suas atividades, algumas conformadas, outras invejando no íntimo os que viajavam em direção a outras paragens. A estação se esvaziava

Foi então que um trem se anunciou, apitando para os lados do norte, e as rodas mar telaram nos velhos trilhos de aço, quando margeava a Pirambeira, e o eco respondia nas encostas rochosas da serra. Em pouco tempo

14


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

a composição entrava na longa curva de acesso à Vila e estacava resfolegante diante da plataforma. O maquinista, viajando sozinho, travou a locomotiva e foi conversar com o agente da estação, entrando na sua sala. Enquanto isso, a máquina permanecia fumegando tranquila, à espera de seu condutor. Tratava-se de um trem singular e não recordo de ter visto outro igual. Compunha-se de uma pequena loc omo tiva, de número 235 (n ú m e r o q u e s e gravou para todo o sempre na minha m e m ó r i a), e u m único vagão cargueiro, rumando para o sul. Presumo que transportasse algo de muito valor ou importância para justificar um deslocamento tão caro. Mas, enquanto eu matutava no

assunto, o maquinista saiu da sala e se dirigiu à locomotiva para prosseguir na viagem. Foi então que me ocorreu a ideia de pedir-lhe uma carona e viajar com ele até a estação seguinte, Anhan guera , dis tante cerca de doze quilômetros. Para minha surpresa, ele concordou e eu embarquei, acomodando-me no banquinho destinado ao foguista que, no caso, não havia. E foi assim que realizei uma das viagens mais pitorescas de toda minha vida e da qual nunca esqueci,

15

ainda que decorridos tantos anos. Durante o trajeto conversei muito com o maquinista, de nome Lino, mas ele não revelou o conteúdo do misterioso vagão solitário. Com incrível agilidade ele abastecia a fornalha, retirando com rapidez as achas de lenha do tender, de modo a abrir por curto espaço de tempo a porta arredondada. Na passagem pude o b s e r va r l u g a r e s conhecidos, agora v i s tos d e out r os ângulos, fazendas onde o gado pastava, lagoas cujas águas refletiam a luz


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

do sol, plantações de várias cores, a mata verdejante e o mar de pinheiros cujas copas ainda farfalhavam, antes da chegada devastadora das serrarias. Por fim o pequeno trem encostou na estação de Anhanguera e eu saltei, depois de agradecer ao maquinista. O telegrafista, rapaz c o n h e c i d o, f i c o u espantado com minha aventura e sugeriu que retornasse no misto da tarde. Eu, porém, preferi voltar a pé. Decidido, pus o pé na estrada, pisando nos dormentes, e iniciei a caminhada de retorno.

Caminhar sobre dormentes é cansativo porque eles são mais próximos entre si que a distância normal do p a s s o, d e m o d o que em alguns trechos caminhei ao lado dos trilhos, quando havia espaço. Cruzar pontes e pontilhões também assustava; não tinham soalho e eu avistava a água pelos vãos, lá em baixo. Para espantar a solidão ou, talvez,

16

o medo, entoava alguns cantos desafinados, declamava versos ou ensaiava discursos para um público inexistente. No interior dos profundos cortes por onde c orriam os trilhos os sons ganhavam um tom lúgubre. Fo i c o m i nte n s o alívio que avistei, afinal, o Corte d o A g r i ã o, i n d i cando que chegava aos limites da Vila. Satisfeito c omigo mesmo, ainda que cansado, relatei a aventura a umas poucas pessoas e houve até quem duvidasse. Eu não havia me preocupado em obter uma prova da insólita jornada. Que fazer diante do ceticismo humano?


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

LIBERTAÇÃO

ROGAI POR NÓS

Gilberto Nogueira de Oliveira – Nazaré, BA

Júlio de Queiroz

Vós outros, santos e heróis, rogai por nós, rogai por nós. São Sócrates e São Alcebíades, que conhecestes o andor do saber, rogai por nós, rogai por nós. São Oscar Wilde, pela beleza que amastes e que vos perdeu, rogai por nós, rogai por nós. Santos amantes e marinheiros, santos profetas e lutadores, rogai por nós, rogai por nós. São Davi e São Jônatas, pelo rocio dos montes enluarados, rogai por nós, rogai por nós. São Wagner e São Luís II da Baviera, pelas sinfonias só ouvidas por vós, rogai por nós, rogai por nós. Vós outros, santos sem nome, que ainda hoje vagueais entre nós, lembrai-vos de vossas presentes dores e rogai por nós, rogai por nós.

O homem precisa é se lilbertar dele mesmo. Liberto-me de mim só para chegar A um ponto desconhecido que é meu próprio eu. Depois que eu chego perto, me sinto feliz, Como se tivesse conseguido chegar até mim. Andei pensando em um modo inexistente De chegar até mim. Todos nós devemos achegar-nos, Até libertarmo-nos. Devemos enfrentar Tudo o que é ruim E deixar que o bom nos enfrente. Todos os que se enfrentam tem um final feliz, Assim como eu estou me enfrentando Para conseguir o bom e me livrar do ruim. É a maturidade. Eu não quero tudo, também nada, eu não quero. Também não ficarei Entre o tudo e o nada, Pressionado por duas forças cruéis. Não sei onde fico, porém sei o que quero. Eu quero a libertação E quero encontrá-la onde haja liberdade, Pois o importante não é falar que existe E sim colocá-la em prática. Eu quero libertar essa oprimida palavra Que se chama liberdade. 17


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

A REBELIÃO DO ARMÁRIO

Conto de Maria Teresa Freire – Curitiba, PR

Entrei no quar to silencioso e escuro. Pretendia acender a luz, quando ouvi sussurros. Espreitei, tentei entender o som, que às vezes recrudescia. Mantive a escuridão e dei mais alguns passos que me levaram em direção ao armário. Como assim? Alguém dentro do armário? Que barulhos abafados eram aqueles? Aproximei-me mais ainda e com muita cautela entreabri a porta do armário. Quase cai para trás de susto! Eu ouvi! Eu ouvi, mesmo! Uma voz forte disse: “Eu represento os vestidos e estamos revoltados com a situação atual! Aqui pendurados não

temos visto nem as paredes do quarto!” Vozes mais estridentes, em uníssono falaram juntas: “E nós? Desde o ano passado não damos nenhuma ‘voltinha’! A ‘nobre lady’ não se digna nem a nos olhar, mesmo no inverno. O que são camisas para ela? Nada, menos que nada”, alteou uma voz entre todas. “Vocês não são as únicas esquecidas! Nós também estamos relegadas a um canto do armário, totalmente sem ação”. Um som esganiçado ecoa: “Mentirosa! Eu vi você, dona calça, saindo com um blusão de lã. O que

18

me diz disso?” O mencionado blusão, c om voz grossa e retumbante logo se apresenta: “O que? Estão me vigiando? A mim e aos meus companheiros? Estamos no inverno, ora, mais do que certo que nossa querida dona nos use. Ela fica tão linda de lilás e verde!” “Olha só o puxa-saco”, grita uma saia! “Ela também fica elegante quando nos veste. Somos de várias cores e ela nos adora!” Casacos e jaquetas logo exprimem suas opiniões: “Ora, ora, sem nós ela não poderia passar o


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

inverno!” “Ah! Ah!” Intrometem-se as calças de malha de algodão: “Ela nos usa quase todos os dias. Somos as preferidas!” “Calma lá”, reagem as camisetas. “Nós também somos favoritas, pois nos escolhe para fazer seus exercícios, suas caminhadas e se estatelar no sofá, às vezes lendo, outras assistindo o que ela chama de série”. E os sons aumentam, pois estão insatisfeitas, injuriadas e totalmente revoltadas, as roupas do armário. Os lenços, cachecóis,

echarpes, esbravejam que são usados somente em casa, c omo se fos sem panos velhos. As meias, loucas de raiva, nem mais aceitam companheiras antigas e surradas, as mais usadas pela ‘madame’! “Que falta de elegância e charme”, dizem as roupas enfurnadas no armário! “Não poderia ter mais capricho e se vestir melhor para jantar, almoçar ou tomar o chá da tarde?” “Os pijamas estão felizes”, protestam as roupas novas, principalmente. “Eles são usados, lavados 19

e estão sempre cheirosos”. “Gente, esperem por nós, os sapatos, as sandálias, as botas, que nem saímos das caixas! Os cintos, coitados, pendurados continuam, sem esperanças de uso. Que ingratidão da nossa dona! Só as pantufas são calçadas.” Em coro, bem orquestrado, as roupas decidem se rebelar e lutar por sua liberdade de sair! Combinam que, assim que as portas do armário se abrirem, pularão sobre sua dona e exigirão seus direitos de livre locomoção. Em altos brados gritarão: “Não queremos mais ficar confinadas! Vamos para a rua!” Em surdina, recuo lentamente e n o escuro saio do quarto. Vou dormir no sofá da sala, meu querido e paciente companheiro de todos os dias. E assistir minhas séries. De pijama!


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

MADRUGADA AS CORES DO BRASIL. Fernando Dias.

THIAGO OLIVEIRA

Busco o sono, só não acho Santo sonho, bem escasso. Curto, plano, belo — Passo! Dom de canto?! Canto baixo. Sinto o peso manso e farto; Cerro os olhos, quase os bato. Coragem, tenho, não sou pato. Ao tabaco, mais um trago Lua longe, frio opaco; Dor de magoa, ancorado! Leito quente, solitário Sem ter fogo, apagado. Conto o tempo — Tá parado! Sons de grilos, bicho chato. Bate a fome, só tem prato; Olho a porta, outro trago. Visto o pranto, pinga, vago; Quais que, tanto? — Anotado!

Os frutos mil dessa Pátria amada São vossas peles. As cores. Os tons. Seja o homem vil, ladrão da madrugada O que desdenha os amores dos próprios irmãos. São vossas vidas breves, tão breves que são. São caminhos enxutos de medo, como ratos temem a morte. Em passos tortos e leves, caminha na solidão O pavor dos cultos e supremos, que amolecem em meio à sorte. Pátria amada, Pátria sofrida. Brasil. De tantos sonhos és formado. A que preço matas teu povo? Pátria malvada, Pátria malvista. Brasil. São vossos povos os ouros dourados. Que em teu berço florescem de novo. 20


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

LIVROS PARA SEMPRE

Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, editor e revisor – Cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras. Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, que completa 40 anos em 2020. Http:// lcamorim.blogspot. com.br – http://www. prosapoesiaecia. xpg.com.br

Estou lendo um romance – ótimo romance – e um dos personagens, apaixonado por literatura, leitor inveterado, faz uma afirmação que me chama muito a atenção: “Uma obra literária deve ser lida uma única vez”. Não sei se a opinião é também do a u t o r, m a s r e s peito a opinião do personagem. O que não quer dizer que não tenho

cá minhas convicções. Como já mencionei em uma crônica recente sobre estantes para livros, há muito livro que, realmente, basta ser lido uma vez. Depois de lido não há porque g ua r d á - l o, te m o s mais é que passá-lo adiante – doar, e m p r e s t a r, p r e sentear - para que outros leitores possam apreciá-lo, talvez mais do que nós, até. Mas há livros grandiosos, verdadeiras obras-primas que precisamos manter por perto, para que possamos voltar a eles, pois a cada

21

nova leitura, a cada nova recriação, nos revelam novas desc o b e r t a s . E nã o me refiro apenas a livros de poesia. Há romances, livros de contos e de crônicas, livros até de outros gêneros, os quais dão prazer de se ler de novo, possibilitam-nos recriá-los de uma maneira nova, descobrindo novos detalhes e novas nuances que enriquecem ainda mais a qualidade do texto, da trama, de tudo. Não vou citar títulos de livros que tenho guardados comigo, porque são muitos


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

e também porque a minha preferência pode não ser a mesma dos meus leitores. E isso é natural. Mas eu sou um daqueles leitores que de vez em quando volta a um livro já lido, como um livro de poemas de Quintana ou de

Pessoa, de Coralina ou Júlio de Queiroz, por exemplo, nem que seja para ler só um ou dois poemas. Há até quem diga, como a personagem do livro que estou lendo, que é perda de tempo ler de novo alguma coisa

que já lemos. Mas a verdade é que o prazer de ler uma obra bem escrita e bem urdida é coisa para se degustar devagarinho e de novo. É claro que devagarinho é força de expressão, pois quando pegamos um bom livro lemos com sofreguidão, de um fôlego só, essa é que é a verdade. Então, c onfesso mais uma vez: tenho uma grande estante de livros em meu escritório e de vez em quando retorno a algum deles.

LEIA o Blog CRÔNICA DO DIA

Em http://lcamorim.blogspot.com.br Literatura, arte, cultura, cotidiano, poesia. Todo dia um novo texto: um conto, uma crônica, um artigo, um poema. Leia e comente. Sua opinião é importante para que possamos melhorar o conteúdo. 22


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

TUCANOS COLORIDOS, VIDA COLORIDA

Tamara Zimmermann Fonseca – Indaial, SC

Voavam alto, livres e felizes, enquanto as pessoas entravam e saíam da bela clínica de saúde, a passos largos, de olho em seus celulares sem perceberem o casal de tucanos Que de discretos não tinham nada. Grandes e coloridos, Cores fortes e alegres, Deus certamente é o maior artista do mundo! Provavelmente estavam enamorados, voavam das árvores do estacionamento, para as árvores próximas das

amplas janelas de vidro

a poucos metros de muitas pessoas

que perdiam o charme do casal. O espetáculo do voo, do pouso, das belas asas, dos bicos enormes que se tocavam,

Ao contrário das pessoas,

estavam atentos e riam da pressa

e da falta de atenção desses humanos para o mundo,

que tinham olhos apenas para a telinha em suas mãos. E você aí, percebe o mundo ao seu redor ou está de olhos baixos, enquanto a vida passa?

23


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

PASSOS E ESPAÇOS

TANGO

Maura Soares Florianópolis, SC

Aracely Braz

Teu passo firme ao som de Piazzolla marcava o tango sincopado. Enlaçavas teu amor, e juntos no bailado, demonstravam todo o amor. Amor pela vida, pela música, pelo som do bandoneon. Na luz difusa do salão em que corpos se enlaçam em fortes abraços de amor e paixão, a plateia extasiada vibra com os bailarinos, na dança aconchegante em que amantes se unem ao som do tango e o calor da paixão. O ritmo acelera para o acorde final. O amor, uma quimera, na última nota se esvai e os corpos suados, cansados, já não aguentam mais. Bailo contigo; quero ser teu amor, mas és meu amigo e meu sonho desvanece; a orquestra já terminou, o bandoneon já desanima e o último acorde silencia no ar. (24.3.2020)

Seria ingratidão se eu me calasse, Seria ingratidão se eu não falasse O que tem a dizer meu coração: A ILHA tem dentro dela, Como uma linda aquarela, Versos de muitos autores, Versos de sonhos e amores. Meu poetar simplesinho Nela tem o seu cantinho Pra se mostrar, pra se por. Quarenta anos de jornada, É uma longa caminhada. Parabéns ao criador! Continue A ILHA sempre, Porto amigo, acolhedor, Onde encontram bom abrigo O poeta e o prosador.

24


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

O ESCONDERIJO SECRETO DE ALICE Lorena zago – Presidente Getúlio, SC

Alice é uma menina muito peralta, que gosta de morar em s u a á r vo r e, q u e chama de Esconderijo Secreto. Sempre que deseja ficar sozinha em seu mundo imaginário, sobe em sua á r vo r e p r efe r i d a , para ausentar-se, durante algumas horas e brincar de Alice no País do Mundo Secreto. Neste universo, Alice sente-se protegida dos inimigos imaginários, que são seus pais, quando fez travessuras, de suas irmãs, quando mexeu em seus pertences, dos

amiguinhos reais, quando está magoada com eles, imaginando que não será vista e nem encontrada, por ninguém. Para aumentar sua segurança, a cada dia que passa, prega sarrafos, pedaços de madeira, de borracha, de papelão... E, a cada obstáculo que constrói, registra restrições aos estranhos, tais como: •Atenção! •Proibido subir! •Silêncio! •Não interrompa!

25

•Estamos em reunião! •Esconderijo Secreto! •Pais, irmãos, parentes adultos não podem participar de reuniões de crianças! Assim, a cada semana, a cada mês, prega sarrafos e mais sarrafos, objetos que na sua imaginação ingênua e criativa, servem de obstáculo e prot e ç ã o, p a r a q u e possa curtir aquele mundo fantástico, onde pode falar tudo o que sente von-


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

tade. Sua árvore é seu espaço de terapia, a quem conta todos seus segredos infantis. - Lindo tempo, este! Quisera nunca mudasse!

A menina Alice, fala com cada galho de sua ár vore, c om c a da fo l ha , c o m cada flor que dela se desprende e aos quais atribuí papéis diferentes, de

grande importância em seu fantástico mundo imaginário. Mesmo que alguém a observe, ela imagina não estar sendo vista, nem ouvida, pois sua árvore é sua melhor amiga: acolhedora, protetora, forte, carinhosa, fiel; a quem confidencia todos os seus sentimentos, suas vontades, seus pensamentos alegres e tristes, e suas fantasias e esperanças. Alice tem oito anos e confia plenamente em sua árvore! É o s eu M un d o Encantado e o seu Esconderijo Secreto!

REVISÃO DE TEXTOS E EDIÇÃO DE LIVROS Da revisão até a entrega dos arquivos prontos para imprimir. Contato: revisaolca@gmail.com

26


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

Estou neste mundo, no meu mundo, no seu mundo, no nosso mundo. O que é mundo? É tudo... Sabe o que é mundo? Então responda para você mesmo, que é suficiente para nós. Sou de tamanho pequeno, já percebo o frio e o calor. Como? Lá fora há vento, vento forte, ar vivo. Se saio no colo nu, como apareci, devo perceber o frio. - Não saia com a criança. - Não tem importância. - Tem sim, está frio! - En t ã o c o l o q u e roupa mais quente nela. - Está bem!

M A R L I L Ú C I A L I S B ÔA BULUCHA. Natural de Florianópolis, nasceu em 03 de maio de 1955, filha de Laércio Lisbôa e Maria de Lourdes Lisbôa, ambos “in memorian”.

Após concluir os estudos no Colégio Coração de Jesus em 1972, fez o Curso Normal de Educação Física. É Graduada em Educação Física pela UDESC, 1976; em Pedagogia, pela UDESC, 1982 e em Direito, pela UFSC, 1990. É Especialista em Planejamento Educacional e em Recreação. É Mestre em Educação e Cultura, pela UDESC. É membro da Associação dos Cronistas, Poetas e Contistas Catarinenses - ACPCC. É membro da Confraria do Pessoas e também do Grupo Literário A ILHA. É ocupante da cadeira de número 7 da Academia de Letras do Brasil de Santa Catarina, Seccional de São José, tendo como Patrona Antonieta de Barros.

HORA H

“Saio de casa, não sei o que sou, nem quem sou. Encontro-me, passo por várias emoções, entre elas há a que me fez reconhecer...

A construção foi minha meta, a meta do começo, a meta do porquê... Chego na construção e o que acontece? Eu respiro, vim da matéria orgânica, vim de matéria viva! E você?

MARLI LÚCIA LISBÔA

Marli Lúcia Lisboa (Bulucha) – São José, SC

para os meus olhos, ainda não consigo ve r b e l e z a . S o u pequeno. E daí? Daí... eu não sei. Está frio. Sinto. O que me move fala com todos que encontra, pela rua. Atravessa ruas, entra em c a s a s, sai correndo, pega máquinas e eu sinto frio. Volta ao ponto de partida, morada. E eu continuo com frio. Frio é o vento? Não, é a vida. Não, é o ar. É isso, o ar. Hoje não é ontem, hoje está quente. Quente? Por que sinto isso? Calor e frio? Ainda não sei. E você, sabe por que sente frio e

Sentimentos. Respiro, durmo, sinto calor, frio, evacuo, urino, como e...

Algo.

Vontade. Necessidade. Desejo. Querer. Medo, mas tenho calma, cansaço. Erro, verdade, desespero, alegria, tristeza, confiança, segurança, desconfiança, insegurança, falsidade, fingimento, interesse... Luz. Trevas... Discórdia. Dúvidas. Ofensa... Perdão... Amizade... Amor... E mais... saudade... Eu choro...

É a Hora H... tudo é a hora H...”

Marli Lúcia Lisbôa (Bulucha)

Tem publicado o livro “Brincando e teclando com alegria”, 2004; o conto “Sol e Lua em Coqueiros”, no livro “A ilha da magia em 100 palavras”, 2015 e diversos poemas em “A Ilha suplemento literário”, 2017.

E entre uma e outra atividade, ocupa seu tempo registrando pensamentos e sentimentos.

27

MARLI LÚCIA LISBÔA

O DESPERTAR DA HORA H Por Luiz Carlos Amorim – escritor, editor, revisor, cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras, fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, com 37 anos de trajetória.

Hora H

Respiro, sinto.

Hora H

SENTIR

Roupa. Percebo que não sairei só c o m u m a ve s t e, nem duas. Serão mais vestes, uma por cima da outra, até eu não sentir m a i s f r i o. C o m o e l e s s a b erã o s e estou ou não com frio? Eu não sei, você sabe? Ótimo. Olha só, mandam em mim. Sim, ainda s o u d e t a ma n h o pequeno. Saio. Aqui fora está frio. Sinto frio. Antes eu não sentia. Agora sinto. Se n t i r e i s e m p r e? Agora, acho que sim. E você, sente? Frio? É alguma coisa. Toda essa roupa me dá agonia. É roupa demais para o meu pequeno corpo. Corpo? Você tem corpo? O que você faz com ele? Brinca, vive, sente ou vai jogar fora? Pense nisso. Saio, não sei com o que nem com quem. Q uem? A pa is a gem não é bonita

HORA H me encantou porque me surpreendeu. É diferente do que a gente tem visto, é original, é singular, é novo. Gosto do modo como a autora dialoga com o leitor, como interage com ele, de maneira direta, mas com um toque quase infantil que escolheu para tratar de assuntos sérios. Até porque se trata de um nascimento para o mundo, da descoberta de um mundo totalmente novo para um ser que emerge para ele. E, também, é a descoberta do outro, do próximo. Esse estilo tão próprio da autora, de escrever tudo, sem se preocupar com convenções, apenas provocando o leitor para fazê-lo pensar sobre si mesmo, se descobrir, é uma característica primordial que faz o livro tão especial. Já li várias vezes e cada vez me encanto mais. E vou ler outras mais essa abordagem única e profunda do ser humano. É um grande livro, um ensaio de vida, uma leitura que nos faz refletir sobre nós mesmos e nos descobrir.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

calor? Saberia responder-me? Ainda não sei falar direito, não posso fazer perguntas com respostas. Não conheço ninguém, não sei de ninguém. Ninguém sabe de mim. Será? Por enquanto sei que respiro, que há o frio, que há o calor. Veja que conhecimento ex traordinár i o eu tenho! Você sabe disso tudo? Que gênio você é... - Lá vem o frio, fe c hem a s jane las, portas, peguem r o u p a , c o b e r t o r, acendam a lareira... Não repare, isto são parágrafos soltos que estão tomando minha, minha... minha o quê? Sei lá, é qualquer coisa, talvez mais tarde eu descubra. É rápido. É o frio. Roupa e mais roupa. Se não fosse isso, tudo seria melhor. Sentir frio é bom. O frio nos contrai,

eu sinto mais eu! Eu? Ainda não sei o que é isso. Acha engraçado? Então ria, oras bolas! Deixe de ser idiota e preste atenção no que vê. O frio. Passou... Tiro a roupa, está quente; o calor é bom. Ando sem roupa, sou pequeno ainda. E o meu sexo? Ah, dessa vez ele não escapa. Escapou. Lá vem... tive que sair correndo. Vou me molhar, o calor! Como posso

28

pensar, como posso agir desse modo? O frio, o calor... Quando eu sinto frio todos sentem, mas g ostam de c ol o car roupa e mais roupa. Isso deve ser porque eles sabem do frio. Eu ainda não sei o que é necessário quando há o frio. Mais um detalhe importante: eu sinto o frio. Frio é o ar, a água, o gelado, o úmido. Frio é tudo o que é liquido? Então frio é o que sinto, é este li qui d o que es t á


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

me envolvendo, é este...? Vejamos! Frio maldito. Quando sinto calor todos gostam, pois dizem que se divertem mais. Como é que eles se divertem? Eu não sei responder. Sei que gosto de sentir calor, pois assim posso andar nu ou s e n ã o... s e m i n u , pelo menos. Dizem que, por enquanto, não faz mal mostrar meu sexo, mas mais tarde... fa z. Isso tudo é engraçado! Ainda não entendo nada. Ao frio, há calor ao redor de mim, feito por mim. Não sei porque con-

sigo isto! Ao calor, há água ao redor de mim, feito por mim. Não sei como consigo isto! Meu calor é a temperatura interna o u ex t e r n a , n ã o interessa, do meu corpo ou não. Você deve saber, estude! Ria. Minha água é o suor que sai do meu interno para o externo, sei lá, do meu corpo ou não. Que idiota que sou agora! Há o frio e há o calor. Vo c ê s a b e r e s p onder todas as p e r g u n t a s ? Te m todas as respostas prontas? Não? Então não ria, leia...

29

Sou pequeno ainda, não posso formar perguntas e respostas com mais... mais seres que respiram. Não sei nada de nada. Sei que respiro, que há frio, que há calor. Já havia sentido isso? Já? Que aplicado vo c ê é. Eu não havia. Interessante, não? O que você sente? Olhe, não ria. Eu sinto minha respiração, frio e calor! Do nada, fui sentir minha respiração. Se respiro é lógico que vivo. De algum modo, mas vivo! Não importa mais nada. De repente a respiração. E agora...? E agora, o frio e o calor! Depois disso nada mais, nada mais haverá? Não importa mais nada. Será? Será que essa... me fará saber de mais alguma coisa? Vamos ver...?!


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ar tigo 91 (antigo supletivo); faculdade sem possibilidade, c o n s e g ui a p e n a s fazer o técnico em jornalismo, no qual QUARENTENA cheguei a me formar Edltraud Zimmermann e trabalhar na área Fonseca - Indaial, SC (jornalismos cinemaTrabalho desde os tográfico). quinze anos de idade. Com o casamento, Nunca parei, apenas a carga de trabalho descansei quando me aposentei em 1981 com trinta anos de carteira de trabalho assinada. Atravessei vários períodos (estou com 86 anos de idade) trabalhando sem parar. Solteira, o meu tempo sempre foi ocupado: preenchido c om aulas particulares, ministradas nos intervalos do meu expediente; e responsabilidade à noite estudava pre- aumentou. Não tive parando-me para a mais tempo para mim. conquista de novos Os anos foram pasempregos; para o sando; as crianças meu crescimento pro- cresceram, a apofissional, fiz vários sentadoria chegou, cursos: português, o marido faleceu e história, geografia, eu envelhecendo. A estenografia (taqui- locomotiva que me grafia e datilografia), movia parou. primeiros socorros, Em 1988, já em Santa 30

Catarina, conheci d o na Eul i na Sil veira, de quem fiquei amiga. Dona Eulina é seresteira e fundou um grupo de serestas que se apresentava em vários municípios. Convidou-me para fazer parte de seu grupo como “Eulin e t e ”, o u s e j a , bailarina de palco, com mais quinze senhoras, todas da terceira idade, sendo a mais nova com sessenta anos e a mais idosa com noventa e três anos, vestidas a caráter dos anos vinte, trinta e quarenta. Voltei à vida. Durante anos, Eulina se apresentava só com as bailarinas. Viajávamos muito: Uruguai, Argentina, Paraguai e vários municípios catarinenses e estados vizinhos. Permaneci no grupo durante quinze anos e por todo esse tempo não fiquei sem atividade, por isso iniciei minhas via-


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

gens. Conheci alguns países e fui parar no Egito. Naveguei pelo Mar Mediterrâneo, Mar Vermelho e Rio Nilo. Chegou o Coronavírus. Nossas vidas pararam. Estamos em quarentena há quatro meses, confinadas em casa. É possível viver sem nada a produzir ou se ocupar, limitada a um espaço de quat r o c e n t o s m et r o s q ua d r a d o s? N ã o, não posso parar assim, sentada no sofá da sala vendo TV, atrofiando meus músculos. Por isso me programei: hei de superar esta inact i v i dad e e es tou conseguindo. Como? Simples: pela manhã, caminho em volta de

nossa casa, sento-me na varanda, nem sempre ensolarada, leio livros que possuo há anos, de preferência dos historiadores Rocha Pombo, Gilberto Freire , Oliveira Lima, Epitácio Pes s oa, Câmara Cascudo e outros. Recomecei a reler a coleção “Conhecer“, editada em 1966. Estou vibrando. De março, quando começou o coronavírus, até o momento, já lí quatorze títulos. À tarde,

31

escrevo. Na internet, procuro amigos que passaram pela minha vida. Uso máscara, não recebo visitas e nem as faço, uso álcool em gel quando preciso e assim, com minha filha Tamara ao meu lado e os demais pelo celular, diariamente em contato comigo, espero superar essa fase com a mesma vontade de viver de todas pelas quais atravessei. (Indaial, 12 de agosto de 2020)


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ANA MARIA MACHADO: UMA GERAÇÃO DE LEITORES

Uma das maiores autoras infanto-juvenis do Brasil fala da importância da escola na formação das futuras gerações de leitores

entrevista, marcada por risos, lembranças e colheradas de sorvete, nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a escritora fala de como o professor pode assumir esse papel, servindo de exemplo para que as futuras gerações passem a andar com livros a tiracolo. Ela Ana Maria Machado Foto: Ricardo Beliel fala de leitura e de O livro está tão incor- dezenas de países e livros numa conversa porado à vida de Ana conquistou o Prêmio que não é de hoje, Maria Machado que H a n s C h r i s t i a n mas continua atual. se mistura aos badu- Andersen, o Nobel laques na bolsa. Para da literatura infanto- P e r g u n t a – A onde quer que vá, -juvenil. senhora criou um carrega um exem- Num país conhecido curso na Casa da plar entre batons e pelos baixos índices Leitura, no Rio de chaves. Não passa de leitura, Ana Maria Janeiro, para ensinar um dia sem ler ou é otimista: acredita professores a trabaescrever algumas que seu hábito ainda lhar com literatura. linhas. Aos 79 anos, será compartilhado Na sua opinião, quais já public ou mais por todos, um dia. são as principais de uma centena de "Ler é muito gos- falhas de formação livros, muitos dos toso; é natural que que eles têm? quais para crianças e as pessoas gostem", Ana Maria – Na faculé reconhecida inter- diz. "Só falta alguém dade, eles aprendem nacionalmente. Sua que desperte esse muito sobre pedaobra foi publicada em interes s e." Nes t a gogia e psicologia, 32


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ram na burocracia, no currículo, no horário que não reserva um espaço para que as crianças leiam.

mas pouco sobre arte. Têm pouco contato com as obras. Acabam entrando no Magistério sem instrumentos para distinguir arte de não arte, textos bons de ruins. O objetivo do curso é suprir essa falha, tornando-os capazes de reconhecer, sozinhos e com segurança, a boa literatura. E isso só é possível com interesse e muita leitura. Pergunta – Nossos docenteslêem pouco? Ana Maria – Muito pouc o, porque a formação que recebem não dá ênfase a isso. É uma situação completamente contraditória. Ninguém contrata um instrutor de nata-

ção que não sabe nadar. No entanto, as salas de aula brasileiras estão cheias de gente que, apesar de não ler, tenta ensinar. Como esperar que os alunos se interessem? Pergunta – Isso quer dizer que a literatura não está sendo bem trabalhada nas escolas? Ana Maria – Não só a literatura. A arte em geral, toda a cultura criadora e questionadora. Nas minhas viagens pelo interior do Brasil, tenho conhecido algumas experiências individuais surpreendentes. Mas elas ainda são mais exceção do que regra dentro do sistema educacional. Esbar33

Pergunta – Como usar o livro na sala de aula? Ana Maria – Com muita paixão. Quando o trabalho é feito com gosto, fica fácil descobrir a melhor forma de envolver a turma. É possível analisar o contexto da história, fazer um júri simulado, uma dramatização, um debate... Tudo vai depender da realidade de cada turma. Na Inglaterra existe um programa muito interessante. Num determinado horário, toda a comunidade escolar, do porteiro à directora, para o que está fazendo para ler. Cada um escolhe o assunto que quiser, ficção ou não-ficção. Quando acaba esse tempo, tudo volta ao normal.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

Pergunta – E não há nenhuma atividade depois? Ana Maria – Não precisa. Ninguém lê para fazer prova. O resultado é que, espontaneamente, surgem inúmera s discussões sobre as histórias. Os níveis de leitura sobem e as pessoas passam a se expressar melhor. Pergunta – Qual o papel da literatura na formação da criança? Ana Maria – Ela permite sonhar, enfrentar

medos, vencer angústias, desenvolver a imaginação, viver outras vidas, conhecer outras civilizações. Além disso, nos dá acesso a uma parte da herança cultural da humanidade. Afinal, temos direito a c onhecer Dom Quixote, algumas histórias da Bíblia, o Cavalo de Tróia... Pergunta – Como escolher um título para indicar para a classe? Ana Maria – Em primeiro lugar, o pro34

fessor nunca deve indicar algo que não tenha lido. Nem algo que, tendo lido, não lhe tenha agradado. O trabalho será sempre melhor quando usarmos um tema com o qual temos afinidade. Como referênc ia , sugiro que o professor conheça os catálogos das editoras, os rankings dos prêmios e as listas de seleções feitas anualmente pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, que são muito confiáveis e variadas. Com tudo isso em mãos, é só começar a fuçar nas bibliotecas. Pe rgunta – Mas existem bibliotecas suficientes no Brasil? Ana Maria – Uma p es quis a rec ente mostrou que 80% dos municípios brasileiros têm biblioteca. Ela s p o d em não estar muito atualizadas, é verdade, mas o maior problema é que as pessoas


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

não têm o hábito de visitá-las. E é só frequentando que podemos pressionar para que melhorem. Conheço uma, aqui no Rio, que funcionava de segunda a sexta-feira, das 9 às 17 horas, um horário terrível para quem trabalha. A comunidade, que era muito ativa, reivindicou e o poder público se viu obrigado a mudar o horário e abrir a biblioteca também nos finais de semana. Pergunta – Como despertar o gosto pela leitura? Ana Maria – Ler é gostoso demais. Por isso, é natural que as pessoas gostem. Basta dar uma chance para que isso aconteça. Ninguém é obrigado a gostar de cara. Tem de ler dois, três títulos, até encontrar um que nos desperte. No caso da criança, dois fatores contribuem para esse interesse: curiosidade

e exemplo. Assim, é fundamental o adulto mostrar interesse. Na casa onde cresci, um dos quartos havia sido transformado em biblioteca. Meu pai era jornalista e minha mãe, uma leitora voraz. O livro era um concorrente dos filhos na atenção deles e, portanto, só podia ser uma coisa muito boa... O problema do Brasil é que poucas crianças vivem essa realidade. Pergunta – Então cabe à escola estimulá-la. Ana Maria – Sem dúvida. O peso da escola é muito maior aqui do que nos países mais desenvolvidos, onde as

35

pessoas leem mais. Como ainda não somos uma sociedade leitora, não podemos esperar que o exemplo venha de casa. Ou acabaremos condenando as futuras gerações a também não ler. A escola tem de entrar para quebrar esse ciclo vicioso, criando em seu espaço um ambiente leitor. O mestre tem de dar o exemplo e despertar a curiosidade dos jovens. Pergunta – Qual a melhor forma de ler para os alunos? Ana Maria – Em voz alta, em silêncio, em grupo... Não importa a maneira, desde que isso seja feito com


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

prazer. E, no caso dos pequenos, com muito carinho também. Quando o contato da criança com a história vem acompanhado de uma dose de afetividade, torna-se inesquecível. Eu me lembro até hoje das histórias de minha mãe, de meu pai, as que minha avó contava. Lembro do jeito de cada um. Quase consigo sentir o cheiro do suor da pessoa, o ranger da rede da minha avó...

Huumm... Pergunta difícil essa. Prefiro citar autores: Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Ziraldo, Sylvia Orthof, Bartolomeu Camp os Q ueiroz, Marina Colasanti, Pedro Bandeira, João Carlos Marinho, Mary e Eliardo França, Ricardo A zevedo, Marcos Rey, José Paulo Paes, Cristina Porto, além das duas autoras brasileiras que receberam o Prêmio Christian Andersen, a Lygia Bojunga e eu.

nenhum. Continua sendo fundamental conhecê-los durante a infância, mesmo q u e e m ve r s õ e s adaptadas. O que existe são novas leituras. Hoje, lemos um clássico de maneira muito diferente do que há cinquenta anos. É importante ter em mente o seguinte: o que está escrito não muda, nós é que enxergamos novos aspectos, pertinentes à atualidade. Essa é a mágica da literatura.

Pergunta – Todo livro pode ser usado com fins pedagógicos? Ana Maria – O bom educador transforma qualquer coisa em material de aula. Ninguém pode dizer que uma semente é, em si, didática. O bom professor pega a semente e ensina Pergunta – Que títua origem da vida. O los não podem faltar Pergunta – E os mesmo vale para o na b i b li ote c a da c l á s s i c o s? E s t ã o livro. Em si, ele não é escola? ultrapassados? didático. O que existe A n a M a r i a – Ana Maria – De jeito é a possibilidade de 36


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

criar muitas aulas com base em seu conteúdo, considerando que os grandes temas da humanidade estão presentes nas grandes obras. Pergunta – Por outro lado, se o professor se preocupa demais com o aspecto didático, pode acabar se esquecendo da literatura... Ana Maria – Se ele aproveita Dom Casmurro para discutir com adolescentes a questão do ciúme e da possessividade, está trabalhando literatura e, ao mesmo t e m p o, q u e s t õ e s éticas. Mas, se usa a história para perguntar qual o sujeito da oração, está empobrecendo algo tão rico, denso e cheio de significados. Nesse caso é um grande desperdício.

O clima de repressão influenciou essa atitude? Ana Maria – Provavelmente sim. Eu lecionava no Ensino Fundamental e larguei as aulas por causa da repressão. Escrever foi a maneira que encontrei de falar com gente jovem.

Pergunta – A senhora foi proibida de ensinar? Ana Maria – Não, mas me proibiram de dizer o que eu queria em sala de aula, o P e r g u n t a – A que é a mesma coisa. senhora começou a escrever em 1969, Pergunta – E como no auge da ditadura. eram suas aulas? 37

Ana Maria – Eu sempre trabalhei com muita paixão, sem medo da leitura. Procurava passar esse sentimento para a turma. Meus alunos de 13 anos liam autores como Graciliano Ramos, Ariano Suassuna. E curtiam adoidado! Pergunta – Como a senhora escolhia o tema das redações que aplicava? Ana Maria – Os estudantes são muito d i v e r s o s , c e r t o? Então, sempre busquei linguagens e temas variados, para atingir todos: uma carta, uma disserta-


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

para c onhec er a estrutura. A partir daí, pode se permitir desobedecer. No meu caso, sempre tive uma paixão pela linguagem. Gosto de brincar com as palavras, ler nas entrelinhas. ção, uma narração... Alternava histórias ma i s s o n ha d o ra s ("Se eu pudesse...") com outras mais subjetivas ("Quem sou eu") ou mais objetivas ("A fome no Brasil"). Pergunta – Existe algum título que a senhora não tenha terminado de ler? Ana Maria – Uma porção. Para mim o livro é prazer; não uma coisa obrigatória. Não vejo problema nenhum em parar no meio quando não estou gostando.

texto é aquele que surpreende, que me deixa sem saber o que vem depois. A surpresa conseguida por meio de uma imagem, de uma situação diferente, de uma peripécia do enredo é um elemento fundamental em toda arte. Uma história que não surpreende provavelmente tem uma qualidade muito baixa.

Pergunta – É preciso ser craque em gramática para escrever com qualidade? Pergunta – Qual o Ana Maria – A grasegredo de um bom mática não é assim texto? tão relevante. Você Ana Maria – O bom d e v e a p r e n d ê - l a 38

Pergunta – A senhora já foi acometida pela famosa "falta de inspiração" em seu trabalho? Ana Maria – Claro, isso é uma coisa perfeitamente normal na vida de qualquer escritor. Em alguns dias, acordo com bloqueio; noutros, as ideias fluem com mais facilidade. Resolvo esse problema mantendo um certo método: escrevo todos os dias, no mesmo lugar, na mesma hora. Quando viajo, levo caderninhos, faço anotações, registro meus sonhos.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

CHAMADA ORAL Cissa de Oliveira – Piracicaba, SP

Você que acha normal

é cada um de nós quando acovardados,

ingerir agrotóxico como se fosse água

magros de consciência, obesos de inconsistência,

e que ainda assim mostra os dentes,

nossos nomes, pessoas de bem,

com toda a propriedade.

são ausências.

Você que passeia os olhos contentes

Do livro de poesias Versos e Provocações (2020) 112 pg. Vendas: cissa.oiveira@gmail.com Cissa de Oliveira é cronista, poeta e contista. Possui seis títulos publicados mais publicações científicas nacionais e internacionais na área da Biologia.

pelas obras do descaso, e que acha exótica mas natural a fome alheia, Você, insensível, oh você, que afinal

39


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

FLÁVIO JOSÉ CARDOZO, O REPONSÁVEL PELAS PRIMEIRAS TRADUÇÕES DE JORGE LUIS BORGES NO BRASIL

Flávio José Cardozo nasceu em Lauro Müller (SC), em 1938, morou em vários municípios de Santa Catarina e em Porto Alegre (RS), mas foi em Florianópolis que fez morada. Frequentou o curso de Jornalismo na PUC-RS, trabalhando, nesse período, no Departamento Editorial da Editora Globo, de Porto Alegre. Em Santa Catarina, foi diretor da Imprensa Oficial do Estado e da Fundação Catarinense de Cultura. Sua produção literária tem início com a publicação do

trabalhavam no departamento editorial da Editora Globo de Porto Alegre. Admiradores da literatura de Borges, sugeriram sua publicação à direção da casa. Depois de um‘trabalho de persuasão’, levado a cabo por ambos, a Globo providenciou a compra dos direitos de “Ficciones” e, logo depois, de “El Aleph”. Mas seu papel não ficou restrito ao do convencimento da versão para o português; se coube a Carlos Nejar a tradução do primeiro, coube ao catarinense a do segundo. Nesta entrevista, ele conta como enfrent o u a t a r ef a d e traduzir duas importantes obras do argentino – “El Aleph” e “Historia Universal de la infâmia” – e de sua relação um tanto dolorosa com o ato de traduzir.

livro de contos. Vale lembrar o seu papel como responsável pela versão para o português, na década de 1960, da obra de Jorge Luiz Borges, como destacam Marlova Gonsales Aseff e Andréa Cesco (2005): Poucos sabem, mas devemos ao escritor catarinense Flávio José Cardozo a primeira iniciativa de verter a obra do argentino Jorge Luis Borges para o português. Foi no final da década de 60, quando Cardozo e a jornalista Cremilda Pergunta – Quando de Araújo Medina foi o seu primeiro con40


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

tato com a literatura de Borges? F.J.C. – Foi quando eu trabalhava na Editora Globo. Eu saí de Santa Catarina e fui para Porto Alegre e, pouco tempo depois, comecei a trabalhar na Editora Globo. Primeiro, num departamento de produções, depois, em função da minha atividade literária, ganhei um prêmio como contista, e passei para a parte editorial da editora. Tive contato com uma pessoa que até hoje é minha grande amiga, a Cremilda de Araújo Medina. Nós fomos colegas no departamento editorial e trocávamos muitas impressões de livros, leituras e tal. Lemos Borges e sugerimos à direção da Globo a contratação das obras dele, nunca publicadas no Brasil.

foi a sua primeira impressão? F.J.C. – Foi algo fantástico, a revelação de um universo muito particular. Borges tem uma literatura que há muito já mereceu, com toda razão, o seu próprio adjetivo. Falamos de uma literatura borgeana. É um dos poucos escritores do século que tiveram direito a esse selo. Aquilo me encantou muito. Estávamos num momento de revelação de grandes autores latino-americanos. Borges merecia maior divulgação no Brasil. A descoberta dele deu um grande impacto. Pergunta – A tradução

Pergunta – Isso ocorreu em que ano? F.J.C. – Isso foi em 1969. Pergunta – E qual 41

brasileira também foi bem tardia, não é? F.J.C. – Exatamente. Cremilda e eu fizemos um bom trabalho de persuasão junto à direção da Globo, que acabou acertando os direitos de tradução com a Emecé, editora de Borges em Buenos Aires. Contratamos primeiro o “Ficciones”.A tradução foi confiada ao Carlos Nejar. Até hoje os direitos de publicação da obra de Borges no Brasil são da Editora Globo, agora da nova Globo. Pergunta – Então o senhor não foi o primeiro tradutor de Borges no Brasil? F.J.C. – Não, o pri-


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

F.J.C. – Exatamente. E nós temos uma certa tendência de embelezar a forma.

meiro foi o Nejar. Mas quase simultaneamente, contratamos “El Aleph”, que foi traduzido por mim. Então saiu o “Ficções” e logo depois já saiu “O Aleph”. Mas eu me considero, com alegria, como participante desse processo de esforço para colocar o Borges no catálogo da Globo. Mais adiante também traduzi “Historia universal de la infâmia”. Pergunta – E você teve dificuldades para traduzir Borges? F.J.C. – Essa aventura de traduzir é uma experiência que, para ser honesto, eu não repetiria com muito

prazer. É o receio da traição. O receio das inconveniências, até por excesso de zelo, de respeito pelo autor traduzido. No caso de Borges, especialmente, que tem todo aquele universo que conhecemos... Há armadilhas nesse processo de traduzi-lo. Do ponto de vista formal, ele não é um tipo rigoroso, tem uma linguagem muitas vezes bem simples, despreocupada. A gente pode ser tentado a querer, entre aspas, “melhorar” o Borges. Imagine... Pergunta – E ele teve a preocupação de não ser barroco, de romper com isso... 42

Pergunta – Essa foi uma preocupação sua, então? F.J.C. – Uma preocupação que levava o pobre tradutor ao sacrilégio de pensar: “Isto aqui parece um descuido”. Que pretensão, não é? Um capricho formalista. Aliás, Borges dizia que escrevia e reescrevia, mexia e remexia, e no fim ainda dava uma outra mexida no texto para ficar parecendo que aquilo tudo foi feito de improviso e com descuido (risos). Ele dizia que gostava de revisar, não para deixar a coisa arrumadinha, mas para dar uma impressão de que aquilo saiu com muita simplicidade, naturalidade. Essa era a minha preocupação, a preocupação com a traição fácil e também com uma fidelidade que não fosse subser-


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

viente, presa demais.

em conteúdo quanto no jeito de se exprimir. Toda a obra dele é particular – temas muito seus, aquela simplicidade, a forma correntia, muita sutileza, ironia. Ele tem um humor bem refinado. Foi um excelente improvisador, as entre-

Pergunta – Como você se preparou para a tarefa? Chegou a ler outras traduções, em outras línguas, biografias, críticas? F.J.C. – Não. Eu li a obra, me introduzi o quanto pude na obra dele. Quando traduzi, já conhecia os textos de ficção, os ensaios, a poesia. Já tinha uma certa familiaridade com o seu mundo, seus temas recorrentes, a linguagem. Nunca fui nem sou um especialista em Borges, apenas tomei o necessário cuidado para procurar entrar naquele universo. Essa foi uma preocu- vistas que deu são um pação. capítulo à parte em sua obra, que tem tantos Pergunta – Quais e tantos momentos as características do brilhantes, aquelas estilo do Borges que ousadias de criação mais lhe agradam e as de mundos paralelos, que não lhe agradam muito de imaginação, tanto? de cultura humanista, F.J.C. – Ele me agrada de gosto pela mitoem praticamente tudo. logia. Ele aproveitou É um escritor per- muito os valores da sonalíssimo tanto mitologia. Também me 43

agrada muito o fato de ele ser universal, transcendente, muitas vezes, e de ter uma certa fidelidade ao seu chão, como argentino. Digo uma “certa fidelidade” porque foi também bastante severo ao falar da sua terra. Às vezes, até, de uma maneira que aos argentinos parecia agressiva. Pergunta – Ele consegue ser local e universal... F.J.C. – É isso. Sua obra tem aspectos muito ligados à terra, a uma concepção que ele tem do chão natal. Mas não é o homem da terra como um herói. Às vezes ele é contraditório; contradições que são, a meu ver, propositais para mostrar o seu potencial criativo. O contraditório de Borges, muitas


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

indagação filosófica. Claro que ele enriqueceu minha visão sobre a diversidade de modos de fazer literatura.

vezes mostrado em entrevistas e escrevendo mesmo, acho que é para mostrar que o escritor pode se permitir mentir um pouco também, além da sua ficção. Mente também na ação, mas sem maldade, como quem diz assim: “A minha vida também pertence ao meu universo de escritor”. Então, você vê no Borges contradições. Há momentos em que ele se contradiz um pouco, mas sem deixar de ser brilhante.

minha visão literária. Ele é um escritor intelectualizado. Borges é completo nesse aspecto da mente voltada para o estético, o fazedor de arte com uma grande formação cultural. Então, penso que a literatura dele não influenciou a minha. A minha é uma experiência mais terra-a-terra, mais de relações de vida cotidiana, a dele é de uma alta concepção, alcança níveis de

Pergunta – Borges influenciou o seu modo de escrever? F.J.C. – Não, acho que não. Quando descobri Borges e mergulhei nos seus escritos, eu já tinha alguns fundamentos próprios em 44

Pergunta – Existe algum conto seu, em especial, que tenha alguma identidade com Borges? F.J.C. – Eu não diria isso. Se tenho algum conto que pode merecer alguma atenção nesse aspecto, talvez seja um chamado “Malvina Queluz, assim fugaz qual um peixe” – há nele um quê de mistério, de sugestão, de contenção proposital... sei lá... é uma narrativa curta que se baseia num episódio


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

muito simples, com algumas sutilezas que, sem terem pretendido qualquer aproximação, às vezes me parecem alinhadas um pouco na forma contida de Borges. Pergunta – Você traduziu outros autores depois disso? F.J.C. – Não. Na verdade, minha experiência de tradutor foi, digamos, uma experiência doméstica. Eu era da Globo. Foi meio na base da aventura. Nunca me propus a fazer carreira de tradutor. Mas foi uma experiência muito interessante, embora tão perigosa. Borges falava dos questionamentos que se faz à tradução e a defendia como um gênero perfeitamente lícito, respeitável. Em resposta aos que negam

o valor da tradução, ironizava, mais ou menos assim: “Todo mundo concorda que a literatura russa é magnífica, mas pouquíssimos lêem a literatura russa no original. Como que a consideram magnífica se só a conhecem traduzida? Todos concordam que na Bíblia há momentos de alta poesia, mas poucos s a b em arama i c o, hebraico, grego. É um sinal de que confiam nas traduções”. Pergunta – Borges não se importava muito com essa questão da fidelidade… F.J.C. – Ele até dizia que temos que admitir a tradução como uma espécie de ras-

45

cunho do original. Se o leitor rigoroso encontra imperfeições até no original, imagina no texto traduzido. Pergunta – Qual é o conto de Borges que você prefere? F.J.C. –“Emma Zunz” e “A intrusa” me agradam especialmente. Pergunta – Você privilegiou a língua de partida ou a de chegada? E termos como “c ompadrito”, p or exemplo, por que você optou por mantê-lo? F.J.C. – Tentei ficar o máximo possível dentro do contexto original e foi preciso muito cuidado com a proximidade às vezes tão enganosa que existe


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

entre as duas línguas. Podemos ser levados a soluções equivocadas. Quando não tinha saída, eu colocava uma nota, mas foram poucas. No caso de“compadrito”, por exemplo, eu mantive, pois é um termo que tem um cunho cultural muito específico. Há palavras que precisam ser preservadas numa tradução.

solução era deixar como o autor havia escrito. Há esse problema: até que ponto o tradutor peca por não ousar?

Pergunta – Muitos escritores brasileiros se dedicaram à tradução. Você acha que esse fato influenciou a literatura brasileira? F.J.C. – Sim, sem dúvida. O Brasil teve grandes tradutores. A Pergunta – Você Editora Globo trabalembra de trechos que lhou com um quadro tenham lhe exigido um de tradutores excepesforço maior? cionais. F.J.C. – Houve vários. Principalmente as Pergunta – Naquela referências, as cita- época, você chegou ções, nem sempre a conhecer Mario c o m p r ováve i s o u Quintana? verdadeiras. Eu con- F.J.C. – Sim. Quando sultava enciclopédias. eu entrei na Globo, Às vezes, a melhor ele já havia dado sua

46

grande contribuição como tradutor. Traduziu Proust, Voltaire... Traduzia do francês e do inglês. A gente se dava muito bem e isso foi uma honra para mim. Um dia, fui conversar com ele na redação do “Correio do Povo” para convidá-lo a traduzir a poesia de Borges. E ele se negou. Me mandou uma carta dizendo que não traduzia poesia. Não ousava fazer isso com Borges... Deixei essa carta nos arquivos da Globo, nem me ocorreu ter tirado uma cópia dela. Para mim, foi uma demonstração de muita humildade.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

A REDE DO PESCADOR

CIRANDA

Eliane Debus Florianópolis, SC

Eliane Debus Florianópolis, SC

No céu cinzento A pipa colorida Nas nuvens... Rastros de infância!

No mar

Lança a rede o pescador Às vezes Tainha

Corvina

Peixe espada Anchova

Gordinho... Outras vezes... Um rabo de baleia Lágrima de arraia, Pente de sereia

Tem sorte o pescador!!! 47


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

EDUCAÇÃO, CULTURA E A PANDEMIA

Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, editor e revisor – Cadeira 19 da Academia Sulbrasileira de Letras. Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, que completa 40 anos em 2020. Http:// luizcarlosamorim. blogspot.com. br – http://www. prosapoesiaecia. xpg.com.br

Então a Rússia anunciou a aprovação de uma vacina contra a covid 19, nestes meados de agosto. Todos estão preocupados com o tempo muito curto em que isto está acontecendo, pois existe todo um roteiro que deve ser seguido para que uma vacina possa ser administrada à população, com segurança e eficácia. A Rússia garante que todos os passos foram obedecidos, mas o tempo

decorrido desde o começo da pandemia coloca isso em dúvida. E mesmo afirmando ter seguido todos os passos, apesar de não ter publicado nada, eles ainda estão para começar a terceira fase, testes em larga escala em seres humanos. É ver pra crer. Tomara que a vacina seja boa, que comprovem isso, que funcione, apesar de tudo. E os números no Brasil continuam altos, muito altos. Vacinas estão sendo testadas também no Brasil, embora não tenham sido desenvolvidas aqui, e o país já comprou milhares de doses de uma delas para garantir a imuni48

zação, primeiramente para as pessoas de maior risco e as pessoas que estão à frente do combate à doença, quando estiver pronta para ser adminstrada. Inclusive fará a produção para consumo interno. O Paraná dize ter comprado, já, a vacina russa. Mas esse governo brasileiro parece ignorar (parece?) a pandemia, até remédios estão faltando nos hospitais, remédios básicos como análgésicos, por exemplo. A saúde está em colapso, hospitais estão lotados, com a capacidade esgotada, as pessoas estão morrendo igual moscas, são mais de cem mil, já, no país, e


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

o presidanta continua fazendo propaganda da cloroquina, que se fizesse efeito, já teria acabado com a ameaça fatídica. Sem contar que não existe comprovação científica nenhuma de que ela possa ser indicada para esse vírus que está devastando o mundo, pelo contrário. E ninguém faz nada. Com o Ministério Público Federal não podemos contar, é claro, pois o presidanta colocou lá uma sua pessoa “de confiança”. E o congresso, o senado, que até agora não fizeram nada, não tomaram nenhuma atitude? Os “políticos”, que foram eleitos para trabalhar

pelo bem estar dos cidadãos brasileiros, que são pagos por eles, estão mais preocupados com a sua reeleição, em plena alta da pandemia. Quantos milhares de pessoas mais precisam morrer para que alguém tome alguma providência? Infelizmente, com a justiça também não podemos contar, pois ela não existe, é um outro antro “político” igual congresso e senado, vergonhosamente. E o povo, nas ruas, não está tomando os cuidados básicos, fazendo com que a pandemia se alastre mais rapidamente. Mas que esperar de um povo sem edu49

cação em um país onde os próprios donos do poder, que deveriam zelar pela qualidade do ensino ministrado a seus eleitores, se encarregam de sucateá-lo? Enquanto a educação não for levada a sério, enquanto a educação não for resgatada neste nosso Brasilzão de Deus, continuaremos tendo grande parte da população sem ter noção da gravidade da tragédia, do flagelo pelos quais estamos passando. E por falar em educação, outra notícia ruim, bem à moda da “política” brasileira: O Ministério da Educação tem um corte de 4 bilhões de reais no seu orçamento pra 2021. Um setor que já está sucateado, vai ser ainda mais abandonado, ficando à míngua completa, não bastasse a pandemia que está causando um prejuízo enorme, não permitindo que os estudantes compa-


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

reçam às aulas, para não haver ajuntamento nas salas pequenas das nossas escolas e consequente aumento da contaminação pelo coronavírus. Em compensação, o Supremo Tribunal Federal tem um acréscimo de 25 milhões no seu orçamento para 2021, isso sem incluir a folha de pagamento. O mesmo STF que não abdica de suas vantagens nababescas e não contribuiu em nada para garantir recursos para a pandemia. Tudo à nossa custa, tudo dinheiro do contribuinte, tudo dinheiro nosso. E a arte, e a cultura, se não fossem elas, o que seria de nós na pandemia? O presidente sancionou, no dia 29 de julho, com um veto, o projeto de lei aprovado na Câmara e no Senado, que prevê a destinação de R$ 3 bilhões para a Cultura. A lei ficou conhecida como Lei Aldir Blanc, em homenagem ao

compositor e escritor, que morreu em maio, vítima do coronavírus. Segundo o projeto, o objetivo é ajudar profissionais da área e os espaços que organizam manifestações artísticas que, em razão da pandemia do novo coronavírus, ficaram sem trabalho, pois eles dependem de público e não pode haver aglomeração. O texto aprovado pelo Congresso define ainda que caberá à União repassar, em parcela única, os R$ 3 bilhões a estados e municípios. Mas o que era para ser uma ótima notícia, tem um veto como este, do presidanta, que complica tudo, pois tira a garantia do prazo para

50

o dinheiro ser liberado: “§ 2º O repasse do valor previsto no caput deste artigo aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios deverá ocorrer em, no máximo, 15 (quinze) dias após a publicação desta Lei.” De maneira que agora é esperar para ver quando o dinheiro vai chegar na mão dos artistas, dos heróis que nos amparam na pandemia, no isolamento que devemos continuar mantendo, pois só ficando em casa e cumprindo todo o protocolo de proteção é que podemos nos prevenir para não sermos todos contaminados de uma vez só, que a Saúde não aguenta, como já


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

aconteceu: está falida. Os músicos, cantores, escritores, atores e todos que estão na retaguarda deles e trabalham para que o trabalho deles chegue até nós, estão sem trabalho por todos esses meses da pandemia e tem muitos deles passando fome, dependentes de ajuda de amigos. Então essa verba para a cultura, que vai proporcionar recurso para que eventos culturais voltem a ser realizados, pode dar um alívio a quem nos dá entretenimento quando mais precisamos, confinados em casa: filmes, alguns programas de tv, livros, música, peças de teatro e dança, ainda que gravados em vídeo, tudo isso ocupou e ocupa o nosso tempo e nos fez ajudar a superar a solidão. Como as lives da Rua das Pretas, por exemplo. A lei também prevê o pagamento de três parcelas de R$ 600

para os artistas informais, a exemplo do auxílio emergencial pago a trabalhadores informais. O setor emprega mais de 5 milhões de pessoas. Essa foi a notícia boa, apesar de termos de esperar para ver quando esse dinheiro vai parar na mão dos artistas, que estão precisando e muito. A outra é bem ruim, infelizmente: querem cobrar imposto de 12% sobre a venda do livro. A constituição reza que o livro não será taxado. E agora querem mudar, isso, justamente quando o livro é uma das maneiras de conseguirmos superar o isolamento na pandemia e quando as livrarias físicas estão tentando voltar a 51

abrir as portas, depois de cinco meses fechadas. Muitas delas tiveram que fechar definitivamente, pois não c ons e guiram resistir a tanto tempo sem vender nada. Num país onde já temos poucas livrarias e onde se lê pouco, o livro vai encarecer ainda mais. É muito triste. O nosso ”governo” dá com uma mão e tira com a outra. Aliás, dá nada, pois o dinheiro que ele pode vir a liberar é dinheiro público, o dinheiro do povo. E com o recrudescimento da pandemia, os escritores da lusofonia se manifestaram, em meados de agosto, em carta aberta contra o racismo, a xenofobia, o populismo e o ódio.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

Assim começa a carta dos 187 escritores de língua portuguesa: “Nós, escritores portugueses e de língua portuguesa, estamos, por ofício, cientes do poder da palavra. E do poder da sua omissão também. Conhecemos os custos de dar palco ao que, em circunstâncias normais, não mereceria uma nota de rodapé. Temos de reagir antes que seja tarde.” Eles pedem à sociedade civil para se distanciar de projetos e movimentos antidemocráticos e exigem compromissos políticos concretos contra qualquer tipo de discriminação. A carta pretende ser encarada como um documento sem qualquer posição ideológica no aspecto político, um

documento transversal à todos os humanistas. Pretende se valer por si própria porque, afinal, a palavra é uma arma. Da mais de uma centena dos escritores que assinaram a carta, alguns são brasileiros, como Nélida Piñon, Chico Buarque, Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Luiz Fernando Veríssimo e outros. Juntamo-nos a eles. Cultura e literatura não florescem nestes tempos sufocantes, em que a terrível crise humanitária dos refugiados, nos deploráveis campos às portas da Europa, e a ameaça ecológica e ambiental, em escala planetária, são banalizadas nos noticiários. E a tudo isso ainda se junta o que se seguirá à pandemia da covid 52

19: o alastramento do desemprego e da pobreza, pasto fértil para demagogias, teses anti-imigração, racismos e extremismos de direita. Não é possível olhar para o lado nem continuarmos calados, sob pena de emudecermos. Por tudo isto, nós, escritores portugueses e de língua portuguesa, assumimos o compromisso de jamais participarmos em eventos, conferências e/ou festivais com conotações negativas, seja de que maneira for – com ideias que colidam com os princípios da tolerância e da dignidade humana. E nós todos nos unimos a esses escritores. A pandemia está muito forte, ainda. São mais de cem mil mortes no Brasil. Há que nos cuidemos, para que ela retroceda e possamos nos encontrar, de novo, possamos nos abraçar, possamos conviver. Cuidemo-nos.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

REVISÃO DE TEXTOS E EDIÇÃO DE LIVROS Da revisão até a entrega dos arquivos prontos para imprimir. Contato: revisaolca@gmail.com

53


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ADELIA, PERSONALIDADE LITERÁRIA 2020 DO PRÊMIO JABUTI

Adélia Prado é uma das mais importantes escritoras brasileiras. Seus textos são ecléticos e exaltam os recursos de estilo, mas há marcas que permeiam toda a sua obra, seja prosa ou poesia: a religiosidade, sob uma vertente metafísica, e a valorização do feminino. A literatura de Adélia fala do cotidiano, da família, da vida no interior, casam e n t o, n at u r ez a , com tal simplicidade que surpreende leitores desprevenidos. Mesmo com os temas do cotidiano ela rasga, mói, expõe sentimentos, escavando palavras até extraírem tudo como ela os imaginou. Sua vida profissional mudou depois de 24 anos trabalhando

como professora. Foi quando decidiu tornar sua face escritora a atividade principal. O início contou com o apoio entusiasmado do poeta Carlos Drummond de Andrade que, sendo apresentado aos poemas de Adélia por Affonso Romano de Sant’anna, sugeriu que fossem publicados. Seu livro de poemas, “O Coração Disparado”, recebeu o Prêmio Jabuti em 1978, e logo depois a l ç o u vo o s p a r a outros países. Desde então, Adélia recebeu muitas outras condecorações

54

nacionais e internacionais, entre elas, o maior Prêmio Canadense de poesia, o Griffin. Como reconhecimento de seu talento, sua obra é estudada em universidades de todos os continentes. E é impossível não mencionar a força de sua apresentação na Flip de 2006, considerado um dos maiores momentos da festa literária até hoje por aqueles que frequentam os grandes eventos literários. Por sua obra e seu compromisso intenso com as artes, e principalmente com n o s s a L i teratura ,


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

temos a honra de anunciar que Adélia Prado foi escolhida pela Câmara Brasileira do Livro como a Personalidade Literária da 62ª edição do Prêmio Jabuti.

ORIGEM

Adélia Prado nasceu em Divinópolis, cidade a 120 km de Belo Horizonte, em 1935. Por lá, formou-se no ensino básico e ingressou no curso de magistério, concluído em 1953. Logo começou a lecionar. A perda da mãe, em 1950, motivou Adélia a escrever os primeiros versos e poemas. O livro Bagagem, que

marcou a estreia da autora na literatura, foi publicado aos 40 anos de idade. A obra é composta por uma coletânea de poemas que foram escritos tendo como base a ironia e o lirismo, utilizando do profano, do cotidiano da mulher, da religiosidade, da morte e da alegria. Só para exemplificar, o poema Com licença p o ét i c a fa z uma espécie de autoapresentação de Adélia Prado: Quando nasci um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira. / Cargo muito pesado pra mulher, / esta 55

espécie ainda envergonhada. / Aceito os subterfúgios que me cabem, / sem precisar mentir. Além disso, faz uma clara referência ao próprio Drummond e ao Poema de sete fac es. O próprio Carlos Drummond de Andrade enviou para o Jornal do Brasil uma crônica na qual chamava atenção para o trabalho da escritora estreante. O livro foi lançado no Rio de Janeiro e contou com a presença de nomes como Antônio Houaiss, Clarice Lispector, Drummond, Jus c elino Kubits chek, Romano de Sant’Anna e Nélida Piñon.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

PRÊMIO JABUTI, LITERATURA E OUTRAS ÁREAS

aventurou nas artes cênicas, dirigindo o grupo amador Cara e Coragem na montagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Além disso, foi inspiração para um espetáculo encenado por Fernanda Montenegro. A montagem Dona Doida: um interlúdio, foi baseada em textos de livros da autora, dirigida por Naum Alves de Souza e foi um sucesso nos anos 1980, tendo sido apresentado em vários estados do Brasil, nos Estados Unidos, Itália e Portugal.

Em segui da , em 1978, a obra publicada foi “O coração disparado”, que consagrou Adélia como a voz mais feminina da poesia brasileira e rendeu à autora o Prêmio Jabuti na categoria Poesia. No ano seguinte, começou a escrever em prosa e lançou Soltem os cachorros. A partir desse momento, precisou abandonar as salas de aula, já que a carreira como escritora estava fazendo CARACTERÍSTICAS sucesso. Adélia também se U m d o s p o n t o s 56

principais e mais marcantes na obra de Adélia Prado é a voz feminina, bem como a relação e a posição que ela é colocada na sociedade. No poema Com licença poética, dá para observar essa característica. Isso porque, por meio de algumas metáforas e analogias, são reforçadas as conquistas das mulheres. Os versos também descrevem a própria Adélia, que conquistou o seu espaço em um meio majoritariamente masculino. Com o vocabulário simples, às vezes coloquial, Adélia Prado também versa sobre a fé cristã, a religiosidade, família e cotidiano. A obra de Adélia Prado faz parte do catálogo da Editora Record, que lançou em 2015 “Poesia reunida”, uma edição de luxo, com acabamento em capa dura, para celebrar grandes sucessos


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

de uma das mais s a b e c o m o n i n - femininos em seus r e n o m a d a s a u t o - guém retratar a alma poemas, contos e ras brasileiras, que e os sentimentos romances.

DONA DOIDA Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora. Quando se pôde abrir as janelas, as poças tremiam com os últimos pingos. Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema, decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos. Fui buscar os chuchus e estou voltando agora, trinta anos depois. Não encontrei minha mãe. A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha, com sombrinha infantil e coxas à mostra. Meus filhos me repudiaram envergonhados, meu marido ficou triste até a morte, eu fiquei doida no encalço. Só melhoro quando chove.

57


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ELSE SANT´ANNA BRUM FALA DE SUA OBRA Uma das integrantes do Grupo Literário A ILHA desde o seu início, Else Sant´Ana Brum é um dos principais nomes da Literatura Catari nense. Com vários livros publicados, ela ocupa, também, cadeira na Academia Joinvillense de Letras. Nesta edição do Suplemento Literário A ILHA, ela conta sobre a sua carreira de escritora. Pergunta – A senhora escreve poesia e literatura infanto-juvenil. O que veio primeiro? Quando e por quê? D. Else – Primeiro, veio a poesia. Desde adolescente na escola, comecei a fazer poesia. Mais

tarde passei a publicá-las nos jornais de Joinville. Também participei de varais literários, concursos e da revista “Letras” na faculdade. Pergunta – D.Else foi professora do primeiro grau, a fase do ensino mais importante para a formação das pessoas. E professora muito dedicada. A sala de aula, o trato com crianças foram responsáveis no afloramento da sua literatura infanto-juvenil? D. Else – Sim. Fui professora alfabetizadora durante nove anos. Quando os alunos voltavam agitados do recreio, eu lhes contava uma história. Após esgotar as que sabia, comecei a inventar. A primeira que inventei foi bem apreciada e no dia seguinte, os alunos pediram para repetir. Repeti incluindo outra s c o is a s, e eles disseram: “Não 58

foi bem assim que a senhora contou ontem!”. Então comecei a escrever. Pergunta – O que é mais fácil para a escritora: a poesia ou a prosa infanto-juvenil? Por quê? D. Else – Gosto de escrever tanto a poesia, quanto a prosa, mas o que mais escrevi até hoje foram as histórias. Noto que elas são mais apreciadas. Pergunta – Quando começou a sua caminhada literária? Uma caminhada vitoriosa, diga-se de passagem. D. Else – Participei do concurso de “Histórias para a infância


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

tórias, mas aprecia muito ter um livro nas mãos para ler ou simplesmente olhar as gravuras.

catarinense” em 1986, tendo sido uma das vencedoras. O prêmio foi a publicação do livro “Miguelito Pirulito”. Isto me animou a apresentar a história “Cri-Cró” para uma editora e tive o livro publicado. Depois vieram “Retetéu” e “Serelepe”. Escrevi histórias para o Jornal “A Notícia” durante vários anos, sendo que em 2019 lancei a coletânea “Cri-Cró e outras histórias” com 26 histórias que teve muita aceitação.

Além desses livros, tenho “Hóspedes do Coração” – parte da coleção Poesia Viva do Grupo Literário A Ilha, ao qual pertenço. Pergunta – Já publicou em jornais, revistas, em antologias, tem livros solo publicados. O que, na sua opinião, faz com que chegue mais fácil ao leitor? D. Else – Para o leitor infantil, o livro de histórias é mais apreciado. A criança gosta de ouvir as his59

Pergunta – D. Else, a senhora ocupa uma cadeira na Academia Joinvillense de Letras. O que isso significa para a senhora, como pessoa e como escritora? D. Else – Pertencer à Academia Joinvilense de Letras é uma honra para mim como escritora e como um prêmio pelo meu trabalho. O convívio com os colegas acadêmicos enriquece e inspira a escrever mais. Pergunta – Como vê a literatura de hoje? A produção, os autores, os temas, os gêneros? Está evoluindo? Ou não? D. Else – Há uma riqueza de escritores em todos os gêneros no Brasil. Pena que não exista muito apoio e incentivo para bene-


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ficiar a classe.

tudo acontece: sapo história. vira príncipe, abóbora Pergunta – Fale vira carruagem e há o Pergunta – Como sobre a sua obra, sonho. se mantém inspirada o que já publicou, para escrever, tanto gêneros, prêmios, Pergunta – De onde poesia como prosa? novidades,etc. vem suas ideias? Há Tem algum autor que D. Else – Meu pri- algum hábito que cul- a tenha influenciado meiro livro publicado tiva, para se manter mais do que outros? foi: “Miguelito Pirulito”, criativa? Quais os seus prêmio do concurso a D. Else – Minhas favoritos? que já me referi. Este ideias surgem de D. Else – Meu TCC na livro foi entregue para o b s e r v a ç õ e s , d e Pós-Graduação pela todos os jardins de coisas que ouço, que Universidade Fedeinfância e creches do vejo. Por exemplo: ral do Paraná teve estado de Santa Cata- Um dia, meu sobri- como título: “Fantasia rina pela LADESC nho Gabriel estava – A eterna compa– Liga de Apoio ao brincando e disse: nheira do homem” e D e s e n v o l v i m e n t o “Rastutalá” e eu per- nele eu trouxe os Social Catarinense. guntei: “O que é irmãos Grimm, MonNo momento estou Rastutalá, Gabriel?”. teiro Lobato e Lygia p r e p a r a n d o u m a Ele disse: - “É o cora- Bojunga Nunes, meus segunda coletânea ção das pessoas”. autores preferidos no com mais 20 histórias. E eu escrevi a his- gênero infantil. tória “O segredo de Pergunta – Como é Rastutalá”. Em outra Pergunta – O que o seu processo de ocasião acordei de a motiva, enquanto criação? m a d r u g a d a c o m escritora? D. Else – Para criar uma palavra no pen- D. Else – O que me minhas histórias eu samento: “Tutuiú”. motiva como escrisempre vejo a criança Procurei no dicionário tora é ver minhas e o que ela gosta: e na enciclopédia e histórias contadas brinquedos, aventura, não encontrei a pala- ou lidas para e pelas animais e a fantasia vra. Então resolvi criar crianças, porque sei que é a eterna com- uma p er s onagem que não há criança panheira do homem. com esse nome, uma que não goste de hisNo mundo da fantasia gralha, e escrevi a sua tórias!

60


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

SEM TÍTULO

ALÉM

Betânia Romão

Bethania Romão

Quando o amor aperta a rosa se desfaz da pele não tem flor só nome enxuga o sangue que cai das roupas, tão intímas, da varanda sabe de cor, que quando o sol cede posto o corpo vai junto. é preciso amanhecer com pouco espaço mas com infinita grandeza a pomba vai voando, solta, ser saber da morte caduca no inverno que pousa em tantas penas

Coração rítmico - era toda a vastidão do existir por si que percorria as veias, a velha inteira, os sonhos desconhecidos pela trajetória lenta, fincados em outras etapas como o desmanchar da borracha que era tão como seu útero, em partes analisa o que se solta. do cabelo vivia a queda flutuante de percorrer daquilo que um dia forte já foi seu, que já se fez como as flores, o canteiro da cabeça sumiu, não tinha recorrência para o natural, ou mãos que fizessem rebrotar fios envelhecidos, onde estiveras de noite além dos meus sonhos? qual legião habitará, que fora tão estrangeira para nossa contingência? No eterno despencar - tão milagrosa, ela toda molhada, com suas peles, deixando o suor no lençol sol, de um corpo que há primaveras resistirá à gravidade - grave idade - me encontrei com o céu, verão ensolarado, chovia denso era Deus chorando vendo minha solidão enterrada. ao menos alguém velou por mim. 61


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

BEIJO NA NUCA

Conto de Maria Lefevre – Rio de Janeiro, RJ

Fazia frio, uma chuvinha fina caía lá fora e o tempo estava propício para se ficar quietinho num canto, lendo um livro e pensando na vida, que era exatamente o que Maria Cristina estava fazendo. Uma xícara de chocolate quente, uma manta e as indefectíveis meias de lã nos pés aqueciam seu corpo, enquanto sua mente e coração se aqueciam com recordações. Naquele momento tinha parado de ler o livro e se punha a lembrar dos muitos e-mails trocados com Arthur. A princípio eram bem formais, sobre suas rotinas, seus afa-

zeres cotidianos... Depois foram se tornando mais íntimos, com mais detalhes pessoais, até alcançarem um nível realmente permis sivo, em que trocavam carícias virtuais e deu-se conta do poder de provocação que as palavras têm. Ficou pensando em que ponto tinham começado a se distanciar e o porquê disto ter acontecido, mas deu de ombros, porque tinha sido algo nebuloso, que até agora não estava claro... Depois, já fazia tanto temp o que não importava mais achar explicações. O importante é terem vivido aquela relação tão gostosa que jamais se apaga-

ria de sua memória. Ficou lembrando do que fora dito nos e-mails e do que mais a marcara e lembrou-se de uma vez que ele se despedira dela com um beijo na nuca e arrepiou-se toda, ao pensar na sensação sentida. Começou, então, a imaginar a cena, ele afastando seus longos cabelos e deixando-lhe a nuca desnuda e suplicante, pronta para receber seus lá b i o s m o r n o s e úmidos num beijo delicioso que não f i c ar ia s ó ni s s o. Sor veu ma is um gole do chocolate q ue nte, re c l i n o u -se no sofá e fechou os olhos, deixando que sua imaginação a levasse muito além daquele beijo na nuca e foi longe... Muito longe... (Ouvindo Rita Coolidge - We're All Alone - Tradução) https://youtu.be/GjHgkJ2mE50

62


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

QUARENTENA – Célia Biscaia Veiga Joinville, SC

Ter ou não felicidade Em tempo de quarentena Seja em qualquer idade A escolha não é amena

Um sorriso de criança, Um passarinho a voar, Na TV uma linda dança Ou uma música no Ar.

É preciso investir No autoconhecimento Para poder descobrir Alegria de momento

Ter algo para comer, Um teto pra me abrigar, Um livro para se ler, Amigos a quem ligar...

De manhã, ao levantar E ver o azul do céu Um profundo inspirar Me mostra que não sou réu

Focando apenas no Bem Resolvendo o que está mal, Escolher o que convém Mesmo não sendo o ideal...

Que não estou prisioneira, Que é livre o meu pensamento E que se assim eu queira Sou feliz nesse momento

O tempo vai mais depressa Se a gente não desespera Quando a gente se estressa É só a dor que prospera.

Mas se o dia está nublado Ou chovendo sem parar Posso entender esse lado Que purifica o ar.

E neste confinamento Temos muito a aprender Viver bem cada momento Valorizar todo Ser.

É assim, o dia inteiro Posso fazer minha escolha: Da alegria um roteiro Ou fechar-me numa bolha.

Desta forma quando a gente Se der conta, já passou. E alguém melhor, diferente, Em nós será o que ficou. 63


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

DESERTO

Luís Laércio Gerônimo Pereira – Pão de Açúcar, AL

Procuro um rumo certo, um norte pra minha vida.

Nem tudo na vida é deserto, como um fechar de cortinas

Parece-me um espectro, não sei se é errado ou certo,

Porém uma coisa é certa, navegar de peito aberto

No coração um deserto, resquício de despedida

Caminhos são sempre incertos, possuem diversas esquinas,

Mas dói como uma ferida.

Sob calmaria ou neblina.

Não posso negar meus sentidos, tão pouco desistir da vida;

Cada um tem seu deserto, é certo, faz parte do clima

Com o sentimento arisco, mas o pensamento altivo

Devemos fazer o certo, seguindo a lei ou decreto,

Embora conheça os riscos, em tentar nova investida

A vida é um caminho aberto, com estradas pra baixo e pra cima.

Cortejo nova pretendida.

Critérios da lei divina.

64


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

UM ENCONTRO FANTÁSTICO Else Sant´Anna Brum - Joinville, SC

Rodrigo garantiu para a turma de amigos que tinha encontrado a Emília e tinha ido com ela ao Sítio do Picapau Amarelo. Geovana olhou pra ele com cara de quem não estava acreditando mas não falou nada. - Isto é impossível, falou Edinho. Não pense que algum de nós vai acreditar. A Emília é invenção de um escritor. Como iria aparecer pra você? - Eu no começo custei a crer, mas ela vendo a minha desconfiança, disse: - Não pense que sou um fantasma. Pode beliscar o meu braço. Nem sou mais de pano recheado com macela como a tia Nastácia me fez. Sou

gente. E deixando conversa de lado, vamos, que o sítio é longe, longe, longe. Mas não se assuste que eu tenho aqui um pouquinho do pó de pirlimpimpim. Dá bem pra nós dois. - No mesmo instante chegamos na porteira do sítio. Sabem quem estava lá? Dona Benta, Tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho e o Visconde de Sabugosa. Comendo uma grande abóbora lá no quintal estava o Rabicó e mais adiante, num gramado bem verde estava a vaca mocha. Fui apresentado a todos. Deram-me as boas vindas com muita simpatia. Dona Benta foi logo convidando para entrar. Pediu que tia Nastácia fizesse seus famosos bolinhos e servisse o café. Realmente, não existe coisa mais gostosa! Comi tantos que perdi a conta. - Nem me fale nos bolinhos de tia Nastá65

cia, disse Rafaela com água na boca. - Bem, continuou Rodrigo, assim que terminamos o café, Emília levou-me junto com Narizinho, Pedrinho e o Visconde para debaixo da jabuticabeira. Sentamos para conversar. As jabuticabas estavam verdes, mas a conversa foi longe. Quem mais falou foi a Emília. Contou como aprendeu a falar tomando as pílulas do doutor Caramujo. Descreveu com detalhes o casamento de Narizinho com o Príncipe Escamado, do Reino das Águas Claras. Contou da viagem ao céu, da


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

reforma da natureza e da chave do tamanho. Narizinho contou que já receberam lá no sítio a visita da Cinderela, da Branca de Neve, do Pequeno Polegar, do Chapeuzinho Vermelho e de uma infinidade de personagens das histórias da Carochinha. Quando começou a escurecer entramos para jantar e depois escutamos uma história contada por dona Benta. Passei vários dias no sítio e cada noite um deles contava uma história. Numa manhã fui pescar com Pedrinho e ele me apresentou tio Barnabé, vizinho deles. Também conheci o Saci. Só não fui conhecer a Cuca porque fiquei com medo! Diante de tantos detalhes, os amigos de Rodrigo, que tinham lido os livros de Monteiro Lobato, acreditaram nele. E como não iriam acreditar se ele tinha consigo a

célebre canastrinha de couro da Emília? - Como você conseguiu a canastra, Rodrigo? perguntou Guilherme. -Ah! É que Emília é tão danada que, quando viu minha mala de rodinhas já propôs a troca dizendo: - Que malinha mais prática esta sua. Por favor, troque comigo porque o Visconde não dá mais conta de carregar minha canastra e esta belezura eu mesma carrego. Dentro da canastra, aberta por Rodrigo, os amigos viram vários

66

presentes que ganhou lá no sítio. Tinha até a receita dos bolinhos de tia Nastácia, mandada para sua mãe e um exemplar do livro Memórias da Emília, com dedicatória! A turma crivou Rodrigo de perguntas e ele foi respondendo, mas depois de certo tempo, já meio cansado falou: - Olhem, pra saber mesmo tim-tim por tim-tim sobre os moradores do Sítio do Picapau Amarelo é só ler os livros de Monteiro Lobato. É melhor até do que encontrar a Emília!


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

RETRATOS

UM GATO

Selma Franzoi Ayaka – Jaraguá do Sul, SC

Rosângela Borges - México

Sinto na brisa suave da tarde deste outubro o calor amigo do teu abraço e o mesmo carisma do azul sereno dos olhos teus de tantos e tantos momentos que se ocultaram no tempo…

Do lado de dentro Há um rio, um cristal, Um sorriso, um abrigo E um abraço sem fim. Do lado de dentro Há uma música, um olhar Uma alma, uma calma E uma tempestade sem cor Que quer nascer , cantar Ventar, crescer, sorrir E fugir daqui.

Reporto-me à juventude dos meus ideais e a tua presença deixa na tarde deste outubro um pouco de ti, mito-passado e muito de ti, mito-presente…

Do lado de fora Há um gato feliz Que ri de mim, do meu cabelo, Da minha dança, da minha dor Dos meus espaços e dos meus abraços.

E entre tantas outras saudades fragmentadas em lembranças de tantos outros outonos tantos outros encontros e tantos outros abraços nenhum abraço será tão inesquecível quanto a lembrança que hoje se eterniza no meu etéreo sonhar…

Do lado de fora Há um gato que me olha Que me para e que sorri: -Ah, menina! Encolha suas asas, Não é tempo de florir! Há muito gelo e muita chuva Caindo por aqui! 67


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

INTERCÂMBIO LITERÁRIO INTERNACIONAL Por Luiz Carlos Amorim – Escritor – http://www. prosapoesiaecia. xpg.com.br/

Fa zer par te da IWA – International Writers & Ar tists Association, que agrega escritores de vários países, faz com que conheçamos estilos e cosmovisões diferentes na literatura de outros pontos do mundo, com costumes e tradições bem diferentes da nossa. Faz muito tempo que a Dra. Teresinka Pereira, brasileira radicada nos Estados Unidos há várias décadas, convidou-me a fazer parte da IWA. Ela é uma professora que atua em

universidades americanas e, além de professora, é escritora. Ela já publicou livro meu por lá em por tuguês e um outro, em co-edição com as Edições A ILHA, em inglês. Ser um membro dessa associaç ão internac ional de escritores poss i b il i t a , c o m o já disse no início, o intercâmbio com escritores e editores de diversos países. Publicamos textos deles aqui no Brasil, vertidos para o português, e eles publicam coisas nossas lá em seus países, vertidos para a sua língua. É assim que tenho poemas, crônicas e contos publicados na India, na Grécia, nos Estados Unidos, na Rússia, em Cuba, na França e em vários outros países. E livros publicad o s p ela IWA , 68

como THE POET e THE COLOUR OF DE SUN. Foi ao sabor dessa troca que recebi, recentemente, o livro “Vela no Horizonte”, do poeta austríaco Kur t F. Svatek. O livro, é claro, é em português, publicado aqui no Brasil. E constato, mais uma vez, que a poesia é uma língua universal, porque embora as estações sejam em ép o c a s dife rentes, o clima não seja o mesmo que o nosso, os hábitos e costumes sejam outros, a emoção, o sentimento que transborda em cada verso é o mesmo em qualquer lugar, a alma é igual a de qualquer mor tal, o céu que todos vemos é exatamente o mesmo. Ent ão, não inte ressa muito a origem do poeta. Interessa, sim, o conteúdo do seu


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

poema. Isso é o que vai mostrar a alma , o c oraç ão do poeta. E “Vela no Horizonte” evidencia toda a sensibilidade e lirismo do seu autor. Como no poema “ Se s t a”: “A e r va alta / brinca com o vento sussurado / e os paraque das brancos / do dente-de-leão / elevam-se em direção

ao céu / como uma pequena nuvem / cheia de sonhos.” Ou como em “Distintivo”: “Não existem almas pretas / nem brancas; / não existem a l m a s ve r m e l h a s / nem morenas ou a marela s pá li da s // Existem simplesmente / apenas almas de seres humanos / cheias de sentimentos. /

69

E para sentir não é preciso ter cor.” Ou ainda, como em “Desilusão”: “Olho uma segunda vez / pela janela: / é um floco de neve tardio / e nenhuma b o r b o l et a .” O u c o m o e m vá r i o s outros dos poemas que compõe o livro. Poeta é poeta em qualquer lugar, em qualquer idioma.


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

ALMA EM FLOR

CIRCULAÇÃO Erna Pidner – Ipatinga, MG

Rita Queiroz Salvador, BA

Estão em circulação os mistérios do tempo o encanto das crianças a solidão das montanhas a grandeza dos momentos a liberdade dos pássaros a contemplação da natureza as virtudes soberanas a alegria das gentes a importância do sorriso a beleza das manhãs a magia do entardecer o enigma do crepúsculo a diversidade das nações a cumplicidade do amigo a reciprocidade dos sentimentos as emoções sentidas a felicidade compartilhada as conquistas alcançadas o medo reprimido a verdade verdadeira a confiança redobrada a compaixão exercida a vida vivida com fé e amor!

No calabouço das lembranças A violeta fracassa... Sombra na sarjeta Fruto da malícia dos desejos. Mas és lírio Que brota da lama Milagrosamente estrela Na confissão do pecado!

FECUNDANTE Rita Queiroz

Do ventre brotam as lembranças Junto com as águas Que banham meus olhos Feridos pelas unhas de Chronos! Dos pés vêm os riscos Traçados nos manuscritos Que se dissipam nas trilhas Iluminadas nas bocas de lobo do destino! Das mãos nascem as filhas e os filhos Untados de sangue e saudades Que se espalham com as folhas mortas do inverno Refletidas no espelho sem memórias! 70


Florianópolis-SC – Setembro/2020 – N. 154 – Edições A ILHA – Ano 40

SEREIA URBANA D´ÁGUA

Carla Daniely – Pão de Açúcar, AL

Desfila por onde passa, encanta aos demais, brilha noite e dia com a majestosa sintonia da beleza brasileira no espaço urbano da capital. Nostalgia de mulher, boca rosada, olhar sedutor, rosto angelical, corpo esbelto, ela tem o poder de hipnotizar os homens ao seu redor, traz consigo o frescor da flor; ela é a sereia do mar, mulher d´água, encantadora. É de natureza eletricamente forte, beleza radiante em cenas de câmera lenta, isocronamente sensível, ilegível a sabedoria humana, tem o poder de ser doce sem perder o sabor ou dissabor da aventura sarcástica, envolvida na fúria ela enfrenta qualquer perigo. Desfruta da vida com a melodia do seu canto, con-

tentamento, encanto, reluz a sincronia do momento, desveste em noite de lua cheia, mergulha nas profundezas das águas purificadas de natureza igual, desdenha o frio da capital, ama o embaralhado nocaute que provoca nas pessoas, ama as confissões que a sua beleza causa. Sonha acordada com o príncipe para regata-la da maldição de ser sereia urbana d´água, precisa desesperadamente de um par, um homem virgem para flertar e desfruta-lo rapidamente sendo o seu ser amado. Luar surgindo no céu estrelado, festa de casa cheia, apresenta-se no galpão cantando melodias dos seus ancestrais, voz suave, deslumbrando os presentes ao vê-la cantar, luvas finas de cedas nos braços, joias de diamantes, vestido justo e injusto no seu corpo delgado, curvas de pecado mortal, sobrenatural, surreal, enaltece o rosto perfeito com a flor vermelha nos cabelos negros, sensualizando entre sorriso malicioso e olhar pene71

trante, provoca, invoca os acontecimentos predestinados. Chama acessa da fogueira, chama acessa da beleza, chama a atenção do seu amado, enfeitiçado sincronicamente a chama para dançar, dançando, entrelaço enamorados a rodopiar no galpão, festejam, vivem, revivem o mistério no ar. Abraço, afago de desejo, beijo doce de mel, agarram-se ao prazer envolvente da paixão tirana; fogem do ambiente envenenado, fazem amor ao ver o mar, deitados na areia envolvendo-se os corpos despidos, grudam de prazer, ajudam a sintonia, fisgam os lábios beijados, desnatam o nó da maldição, choram de emoções, arrepios, sensações, desejo avassalador... Entrelaçados fazem o reflexo de a magia acontecer, enaltecem os corações, preenchem as lacunas, envolvimento de corpo e alma, felicidade esbanjada. Encontro de conto realizado; todas as noites de lua cheia o príncipe irá encontrar e amar a sua sereia urbana d´água brasileira.


LITERARTE NOVO LIVRO DE CRÔNICAS O novo livro de crónicas de Luiz C. Amorim, O VALE DAS ÁGUAS (título provisór i o), j á e s t á n o prelo, para ser lançado ainda no fim deste ano. Antes do lançamento, estará disponível na Amazon. O livro é uma seleção de crônicas sobre a Cidade das Cachoeiras, Corupá,

um lugar belíssimo ao pé da Serra do Mar, no norte de Santa Catarina. São d ezena s d e cachoeiras, mais de sessenta, por isso Corupá é chamada, também, de Vale das Águas. Além da natureza exuberante e da produção da banana mais doce do Brasil, os rios da cidade: A natue cachoeiras jus- reza tem queda por t i f i c a m o s l o ga n Corupá.

LIVROS NA AMAZON Com a dificuldade de tos de livros, devido realizar lançamen- a pandemia que já dura deste o inicio do ano e não tem previsão para acabar, enquanto não houver a vacina, uma alternativa é colocar nossos livros na Amazon e no Clube de Autores para serem comprados pela Internet. Na Amazon, vendemos no formato e-book.

No Clube dos Autores, o livro pode ser comprado impresso. Então começamos a disponibilizar nossos livros na Amazon. O e-book do primeiro já pode ser adquirido lá: PORTUGAL, MINHA SAUDADE, crónicas sobre saudade de Portugal no Brasil e a saudade do Brasil em Portugal.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.