SUPLE MENTO
LITE RÁRIO Florianópolis-SC – Setembro/2021 – Nº 158 – Edições A ILHA – Ano 41
REABERTURA DO MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA NA UTI, COM COVID
A RETOMADA DOS EVENTOS LITERÁRIOS
51 ANOS DO LIVRO “SINGRADURA”,
DE FLÁVIO JOSÉ CARDOZO
AGUALUSA:
DE QUEM É ESSA LÍNGUA?
Portal A ILHA: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br
Florianópolis-SC – Setembro/2021 – N. 158 – Edições A ILHA – Ano 41
ASAS DA ALMA Luiz Carlos Amorim São José, SC
Queria sair de mim, transportar a alma através do tempo, através do espaço, através da vida, mas meu coração não deixa. Quero que a emoção me leve onde meus olhos não alcançam, onde meus sentidos não chegam. Um canto de mim quer um canto no mundo para ser eu mesmo, mas outro canto de mim quer se jogar
para todos os cantos do mundo, para concretizar todos os sonhos, para viver todas as vidas que trago comigo. E depois voltar para mim, pejado de completude, matar as saudades e começar tudo de novo. Minhas vidas são muitas e quase não cabem dentro de mim. Minha alma precisa de mais asas, para levar-me mais longe…
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SUPLE MENTO
LITE RÁRIO
EDITORIAL A LITERATURA SOBREVIVENDO À PANDEMIA
Apesar dos tempos cada vez mais difíceis, com a pandemia continuando a se alastrar em novas variantes como a Delta, que está aumentando o contágio pela covid 19, continuamos com o trabalho de divulgar os escritores brasileiros e da lusofonia. Nós, escritores, continuamos a escrever, a produzir literatura, durante a pandemia, até porque temos mais tempo para isso, já que só devemos sair quando for estritamente necessário e obedecendo os protocolos sanitários. E o coronavírus não minou nossa inspiração, pelo contrário: temos muito mais assuntos para escrever. Então cá estamos com a edição 158 do Suplemento Literário A ILHA, passando dos 41 (quarenta e um) anos de circulação, de resistência na trajetória do Grupo Literário A ILHA. Muita prosa, muita poesia e muita informação literária e cultural, como sempre. Um grupo enorme de bons escritores estão presentes nas páginas da nossa revista, oferecendo vários gêneros: conto, crônica, poesia, ensaio, entrevista, reportagem, artigos, etc. Nesta edição, falamos do efeito da pandemia na literatura, da nossa língua e nos eventos literários e culturais, que estão ainda restritos, apesar de a vacinação estar “quase” adiantada, no Brasil, a despeito de nosso presidente. Assuntos como “O ministro da Educação e o Ensino no Brasil”, “Diário da Pandemia”, “De quem é esta Língua Portuguesa?”, “A Pandemia e o novo `Covidioma`”, “A Educação Brasileira na UTI, com covid 19”, “Reinauguração do Museu da Língua Portuguesa”, “A Retomada dos Eventos Literários”, “Os 51 anos do livro SINGRADURA, de Flávio José Cardozo”. E muito mais. Venha para as nossas páginas. Com certeza há textos que agradarão a cada um dos leitores. O Editor
EXPEDIENTE “SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA – Edição 158 – Setembro/2021 – Ano 41
Edição: Luiz Carlos Amorim.
Edições A ILHA – Contato: lcaescritor@gmail.com e revisaolca@gmail.com A ILHA na Internet: Portal PROSA, POESIA & CIA.: http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br 3
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Editorial 2
O MINISTRO DA EDUCAÇÃO E O ENSINO DO BRASIL
O ministro da Educação brasileiro continua falando asneiras e obscenidades, dando atestado de ignorância, preconceito e incompetência. Como se já não estivéssemos indignados por tantos pronunciamentos estapafúrdios em todas as áreas, as declarações feitas na semana passada pelo tal ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, no programa “Sem censura”, da TV Bra-
sil, fazem tremer os alicerces das escolas. Ao defender turmas exclusivas para educação especial, Ribeiro disse que crianças com deficiência “atrapalhavam entre aspas” os demais alunos em sala de aula. As declarações provocaram duras críticas de entidades que reúnem deficientes e defendem o ensino inclusivo. Recentemente, após uma visita a Recife, Ribeiro tentou se ex4
plicar. Acabou piorando a situação, ao dizer que se referia a crianças “com um grau de deficiência que é impossível a convivência”. No mesmo dia, o Ministério da Educação divulgou nota para tentar remendar o absurdo: “O ministro da Educação, Milton Ribeiro, já manifestou publicamente seu pedido de desculpas às pessoas que se sentiram ofendidas”. Como de praxe, Ribeiro alegou que frases foram tiradas de contexto. Balela. O material está gravado. Por trás das declarações desastradas, está a defesa da equivocada Po lít i c a Na c i o na l de Educação Especial(PNEE), lançada em outubro do ano passado sem discussão com a socie-
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dade, sob protestos de entidades do sector, como pretexto de ampliar vagas para alunos. Com deficiência na rede pública, o Ministério da Educação passou a estimular a criação de turmas especiais. É o contrário do que vinha sendo recomendado pela política de inclusão conquistada a duras penas e adotada com sucesso há algumas décadas no país. De tão absurda, a nova política não parou de pé. Em 1º de dezembro de 2020, o ministro Dias Toffoli, do STF, concedeu liminar suspendendo os efeitos da PNEE.
No fim do ano, em julgamento virtual, o plenário do Supremo referendou a decisão. Os ministros entenderam que tanto a Constituição quanto acordos internacionais exigem a educação inclusiva, em que crianças com deficiência possam conviver com os demais alunos no mesmo espaço. Por mais que agora peça desculpas e tente desdizer o que disse claramente na TV oficial, Ribeiro não consegue disfarçar seu preconceito. Quarto ministro a ocupar o cargo no governo Bolsonaro e mais um a perpetrar o de-
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sastre na educação nacional, tem se empenhado mais na defesa da ideologia bolsonarista que na melhoria dos vergonhosos índices educacionais do país. Em sua passagem pelo MEC, notabiliza-se pelo esvaziamento de órgãos como o Inep, pela intromissão descabida nas provas do Enem (cogitou ter acesso antecipado às questões para que elas não desagradassem ao chefe) e pela inaceitável omissão durante a pandemia, quando o ministério foi mero espectador do caos no ensino. A pasta deixou de gastar recursos que poderiam preparar as escolas para a tardia volta às aulas. Agora foi além. Como pode um ministro da Educação proferir tamanha barbaridade, ter visão tão excludente, tão tacanha, limitada e mesquinha do ensino?
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FIM DO MEDO Júlio de Queiroz
Dá-me tua mão, irmão, abre as pétalas da tua consciência. Vê, tudo é os medos com que nos temos apavorado desde a infância do tempo. Um dia, nossa espécie terá palavras adultas para o nascer e o morrer; saberá que não há términos. Saberá, com a certeza que nos sonegamos, que nenhum de nós foi ou será terminal. Etapa é o que cada um de nós é. somos etapas de amor passando uns pelos outros; a tarefa comum e individual é amar. Desveste a angústia. Este estádio fala da dor - que tememos com horror pré-histórico – mas também fala da mansa compaixão
abraçando tudo que a vida faz latejar - aurora que pressentimos verdade – Não te passo lições fáceis, isso seria menosprezar teu entender: Envolve com amor equidistante este viajado e dolorido pedaço de ti. Sem palavras, entra no vocabulário sutil das emanações. Tu o consegues. Entra na tua fonte. Deixa correrem tuas águas universais. Asperge, lava, inunda não apenas tua carne ofendida mas toda a ofendida humanidade. Podes apressar ou retardar, não impedir, o fim do medo, a instauração do amor compaixão. Ajuda a abrir o portal.
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SINGRADURA – 51 ANOS DO LIVRO DE FLÁVIO JOSÉ CARDOZO
Este ano completam-se 51 anos da edição do livro Singradura, a primeira das tantas obras de Flávio José Cardozo, jornalista e escritor catarinense. A Editora da UFSC lançou, em 2020, uma nova edição do livro, para comemorar o aniversário de cinquenta anos da publicação. São 20 contos que se unificam na temática homem-mar e no cotidiano da gente simples da Ilha de Santa Catarina. Figuras como o músico Mané Flor, Ti´Orquídea, uma negra lavadeira, Marinês, Marcelina e
Marília, que protagoniza o conto que dá nome ao livro, passeiam pelas páginas e nos oferecem o drama e a alegria de viver em Florianópolis. Mas, ao mesmo tempo são histórias tão universais que poderiam acontecer em qualquer lugar do mundo. A pena certeira de Flávio ao narrar estas vidas catarinas tem simplicidade e profundidade em equilíbrio. E nesse olhar sobre o dia a dia das gentes, concretizado em contos e crônicas, se revela o olho do jornalista. Aquele que vê a vida em movi7
mento e que percebe a história humana em cada fato aparentemente comum da vida que escorre pelos dias. Flávio Cardozo nasceu dentro do círculo do carvão, na pequena Lauro Müller, em 1938. Cursou Jornalismo na PUC/ RS. Durante vários anos ocupou o espaço da crônica no jornal Diário Catarinense. Em 1965 venceu o Concurso Universitário de Contos em Porto Alegre ; em 1967 o Concurso Nacional de Contos em Florianópolis; em 1968 o I Concurso Nacional de Contos em Curitiba; e em 1977 o Concurso Remington de Literatura no Rio. Seu primeiro livro de contos publicado foi "Singradura" (1970). Em 1978 lançou "Zélica e Outros". Ambos são ambientados na Ilha de Santa Ca-
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Flávio José Cardozo autografando para o escritor Luiz Carlos Amorim
tarina, num tempo "mais ingênuo", em que a ilha ainda não era um polo turístico agitado. O autor retrata com profundidade a condição
humana e suas paixões mais elementares. Seus outros livros publicados são "Água do pote" (1982 - crônicas), "Sobre sete viventes" (1985
- crônicas), "Longínquas baleias" (1986 - contos), "Beco da lamparina" (1985 crônicas), "Sofá na rua" (1988 - crônicas), "Tiroteio depois do filme" (1989 - crônicas) e "Senhora do meu desterro" (1991 - crônicas). Publicou também um romance, “Guatá”, que abre-se para o mundo mineiro, de onde saiu. Flávio José Cardozo é membro da Academia Catarinense de Letras
AS METÁFORAS no das pessoas sim- seus clientes; MariDO SINGRAR EM ples que habitavam nês, “cara de anjo” SINGRADURA a ilha de Santa Ca- (p. 188), que cansa L u z ia
A n t o n e lli
Pivetta – Brusque, SC
O livro de contos de Flavio José Cardozo, intitulado Singradura, é composto por 20 contos, e chama a atenção pela temática, que se utiliza muito da relação homem-mar e de histórias do cotidia-
tarina. Vagam por da vida simples com sua narrativa perso- Emanuel e vai monagens marcantes como Mané Flor (Manoel Flores), um banjoísta que perdeu a visão e já não encontra mais sentido pra vida; Ti’Orquídea, uma negra lavadeira que vive à espera do reconhecimento dos 8
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rar no circo, depois volta, mas nada consegue com ele. Marcelina, grávida, que ao fugir com seu homem descobre que ele também é o homem de sua irmã. E Marília, moça que vive numa vila de pescadores a divagar entre a areia e o mar. A linguagem faz com que as palavras carreguem uma pluralidade de significados, tornando sua ficção intensa, uma das principais características dessas narrativas. É por meio dessa linguagem metafórica que se inferem muitos dos finais que o autor criou, nos quais
deixa implícitas muitas das revelações, permitindo ao leitor deduzir seus significados. Cada conto possui uma singularidade própria, em que os personagens singram em suas histórias e refletem por meio delas a vida de pessoas comuns. Talvez o vigésimo conto da obra publicada em 1970, e que dá nome a mesma, seja um dos melhores exemplos de como essa linguagem é rica. O narrador relata a história de Marília, uma jovem que aparentemente está louca e espera seu príncipe encantado à beira 9
do mar, que segundo sua imaginação se chamaria Bernaldo. Já no início, quando apresenta a personagem Marília e sua relação com o mar, o autor descreve o fenômeno da maré alta por meio de metáforas: “em que tudo tão sólido há de restar indistinguido no verdelhão violento, feito açúcar que se anexa de corpo e alma e abdica docilmente da unidade própria” (p.213). Num plano de significados reais, quando as águas da maré sobem, tapam tudo o que há por ali, tudo se transforma em mar, como o açúcar que se dissolve ao entrar em contato com qualquer líquido, porém, não perde sua doçura. Marília também abdicará de si mesma para viver sua loucura, mas sua essência carregará com ela, “seu cheiro virgem e sua espera calada” (p. 213) permanecerão no mar.
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Seu nome talvez seja o indício metafórico mais forte de sua relação com o mar e de seu destino: Mar e Ilha, Marília. Dois símbolos que se pertencem e que necessitam estar próximos um do outro para se completarem, daí talvez se possa inferir o porquê de seu fascínio pelo oceano. Ilha pode significar isolamento, que era o que a personagem buscava em sua “pedra-esperança” (p. 213) dentro do mar, e a ideia mitológica de busca do paraíso perdido pode ser facilmente atribuída à ilha e à personagem. O mar pode simbo-
lizar a dinâmica da vida, lá se nasce e lá se morre, a encarnação da Grande Mãe, “e o mar te embalará como a uma criancinha nascida hoje” (p. 217), por isso, a protagonista deseja o mar, só suas águas podem envolvê-la no esquecimento. Será Bernaldo, o francês, o barqueiro da morte, “olhos acesos que são fachos na tempestade” (p. 214), que conduzirá a alma de Marília, o Caronte da Ilha, que pede a ela que o espere “de branco e fita no cabelo” (p. 214), que a chama para singrarem juntos, para que ela conheça aquele mar no qual se debruça sonhadora? O Herói com H maiúsculo no trecho: “é herói, Herói numa só palavra” (p. 214), pode nos fazer acreditar nessa possibilidade, nessa referência à figura de Caronte, transportando na sua barca os mortos que se 10
preparam para a travessia final. Outras características de Bernaldo reveladas na obra - “seu idioma é de anseio” (p. 214), atracará no porto muito “mais depressa do que é humano” (p. 215) - podem nos levar a pensar nessa ligação com o barqueiro do Hades. Assim como “Ismália”, Marília põe-se na torre a sonhar, aqui representada pela pedra “desligada dez metros deste mundo” (p. 213) sobre a qual se “estira e olha o céu” (p. 219). No entanto, aceita o convite de ver a lua no espelho do mar, para assegurar-se de que o satélite é outro
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ao refletir-se naquele espelho, como a personagem do poema de Alphonsus de Guimaraens, que quer a lua do céu, e quer a lua do mar, e depois de todo o delírio também morre “sua alma subiu ao céu/seu corpo desceu ao mar”, Marília prepara-se para um verdadeiro noivado do sepulcro, que só se realizará com sua morte. A voz em sua cabeça pode ser considerada a própria morte, seu desejo de morte, chamando-a, prometendo-lhe um beijo que “será suspirado por toda a gente da cidade e das freguesias, pelas damas
de escol e pelas rendeirinhas amigas” (p. 215). Algo supremo que somente ela desfrutará “na alcova azul” (p. 217) (o mar mais uma vez), onde serão um só, “na maciez das noites” (p. 217). Talvez o que mova os desejos de Marília seja a perspectiva de juntar-se ao mar como a Ilha, de renascer como um novo ser e recomeçar uma vida menos ilusória e enganadora. O ininterrupto movimento das águas, quando Marília se debruça na pedra e sente “os ruídos [...] que são o roçar das águas ao pé das vi11
gias” (p. 219), pode significar a força dos sentimentos e paixões em que se debatem e naufragam os corações humanos. Ela, errante, “anda perdida por curvas de praia, sentada em pedras com a cabeça erguida na busca de fantasmas ou de queixo enterrado no coração” (p. 218); não quer ninguém, mas desperta desejos: “as carnes tenras se agitam sob a pouca veste praieira e fica belo vê-la fazendo sombra na areia e silhueta na distância” (p. 218). Principalmente em Pedro, o pescador honesto, futuroso e sadio que depois das várias tentativas de conquistá-la passa a sentir ódio, “uma fome canina de violar todas as leis” (p. 219), e será o protagonista de sua desgraça (ou de sua salvação). No dia em que se dá o desfecho da his-
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tória de Marília, ela continua a ouvir as vozes do chamamento e vai até a pedra. A noite não demora a chegar, e seu último delírio é representado pela frase: “não apagaremos nunca, tu e eu” (p. 219), o fato não será esquecido. O intrigante é que ela parece saber o que a espera, como se aquele sacrifício fizesse parte de sua sina, pois é Pedro quem se aproxima como “bicho concentrado em sua emboscada” (p. 219), ela percebe o “ataque felino” (p. 219). No entanto, não se assusta nem se surpreende, só vai debater-se e lutar contra a investida quando Pedro com sua voz a desperta do sonho, e a ilusão se destrói. Há uma luta corporal em que ele violentamente bate na personagem e ela “se recolhe em concha” (p. 220), se encurva para receber a raiva de Pedro, e desfalece.
Pedro vai embora e ela permanece ali. Será o mar então que “roubará todo o sonho e toda a espera” (p. 220) de Marília, com o fenômeno da maré alta, que já fora anunciado no início do conto. Ela será encoberta, virará mar e ilha, não perderá sua essência, mas morrerá para juntar-se às águas como tanto desejara: “tão milagroso de longe, mas assim de perto tão natural e senhor sereno dos elementos” (p. 216). Encontra, enfim, a paz eterna. A viagem da perso-
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nagem através dos pensamentos, que a levou à morte, permanecerá para sempre. A história, assim como a maré, sempre retorna. A metáfora do singrar, então, se completa, pois Marília singrou tanto em sua imaginação que acabou singrando eternamente no (e com o) mar. Levando-se em consideração que a obra se chama Singradura, e que a frase “e a singradura viverá bilênios” (p. 220) encerra o último capítulo do livro, será que o autor não nos deixou aqui outra metáfora?
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UM CONTO DO LIVRO SINGRADURA: DESAFOGADOS Flávio José Cardozo
Bem podes, barqueiro, remar com descanso que o mar está manso e o vento acalmado... (Reza de temporal) Ao raiar da segunda-feira, remanescia apenas o tom desinsofrido de idos pandemônios – esgarçamento de nuvens, esgalharias e frutinhas soltas, barcos meio emborcados e humildes por tal derrota na firmeza da terra, em retaguarda. Umidades flutuavam ain-
da; mas tudo, enfim, era um saldo: o diabo foi-se, se foi cansado com a própria malvadez. E um sol agora já fariscava o dia, amadurando nos lados da Armação. Reanimava-se o Pâ nt a n o d o Sul, se consertava. Depois de quatro dias, os primeirinhos do ano, voassem todos os disponíveis curiós e vigorassem todas as claridades! É o que se chama vida: bela bonança. Entretanto, três mulherinhas esquivavam -se des sas belezas; sentiam as três tamanho aperto em si, por horas passadas e presentes, que o retorno amavioso das luzes nem importava. Eram elas: Laudélia, Judite e Juliana, e, em tristeza cabisbaixa, lá se iam. O andarzinho na areia empapada não tinha pressa e a cabeça de cada uma indagava de que 13
servem os pios da matinada e de que pode valer outras g entes b us c arem com apetite o manejo dos trens parados. Iam as três, cober tas de preto e todas com seu rosário saliente de continhas brancas. Chegaram a dois metros da água e, ombro a ombro, elevaram a testa. E Juliana deu início: - Em nome do Deus Pai... As duas responderam, descontraídas de maior ódio e sem exuberâncias de fé, ao mesmo tempo. Baixinho como a respiração fatigada do mar, apenas vieram pôr em prática a cerimônia proposta na longa vigília, no fim das esperanças. Juliana dissera: “Devemos. As almas deles precisam”. A fortaleza dela, mulher com o dobro de idade e gravidade, buscou convencer as outras a deixarem a
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cozinha em que estavam por quatro noites e dias, com as crianças inocentes, a suspenderem os gemidos já de grandes saudades, soltos entre a fumaça de palmas benzidas, orações benditas e ao tanger dos temporais. Laudélia, a mais ingênua, ainda perguntara: “Morreram mesmo, será?”, e a velha confirmou o fato com um movimento seguro de cabeça. Depois disse: “Vamos, estiou”. Encapuzaram-se com as mantilhas e chegaram à praia com os olhos inchados, luto e insônia, e viram até com nojo a mudança irônica do tempo e as retardadas promessas de sol. - Ave Maria... Ninguém as presenciava no pequeno coral de recém-viúvas. As crianças, para quem tudo felizmente não tinha impor tância, fica-
ram brincando em casa, na ignorância dos fatos, e logo estariam cobrando os dias perdidos. E só bem longe viam-se vultos e sinais de redes famintas: depois dum cataclismo, todos os tesouros submarinos deviam andar à flor das águas, peixes difíceis foram sacudidos de suas tocas de madrepérola, pescadores de verdade não perdem fácil a vocação. Um vento é um vento. Eles se aprestavam, outros homens. Judite recordava o seu marido Alfredo naquele mesmo afã de preparar os instrumentos de pesca. Laudélia revia o seu Jerônimo. Só Juliana, afincada na puxação do terço, não desvirava a cabeça, mantida na mesma direitura mística, liberta dos pensamentos inúteis. Leonardo morreu. Chorara bastante, mas os anos criam 14
c a l o s: m o r r e u e não tem remédio. To d o s t r ê s m o rreram. Quem crê, aceita. Chora por chorar, em homenagem, por dever. E reza. Juliana rezava. Nem sequer, porém, reconhecia um só segundo o quanto foram debalde tantas oraç ões para Santa Bárbara (ó santinha, onde tu vais? vou levar a trovoada lá no monte do Calvário...), para Santa Clara (clareai!), Santa Rita (enxugai!), Santo Antônio (mandai sol!). Nada disso resolvera. Ventou pelos demônios, choveu pelos infernos. Na secura da terra, barcos rijos bandearam – quanto mais lá dentro! Mas Juliana não pensava nisso. Morreram. Não pensava nos vivos naufragados: elas três ali, as crianças em casa. Pensava, sim, nas a l ma s n e c es s i t a das. E prosseguia
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com voz cheia de certeza, os olhos p ostos agora n o chão como numa c ova , imaginada mente ocupada pelos corpos reavidos e amortalhados. As duas acompanhavam e as palavras saíam duras: - ... agora e na hora... Não, fé não havia naquela dupla de mulheres pequenas. Juliana sentia a tibieza das respostas e engrossava na parte na parte que lhe tocava: Deus que as perdoasse. Súbito, eis a comprovação de que as mais moças tinham o espírito em desordem: sem suportar mais, Judite debruçou-se e o rosto procurou sentir a frieza mortal das marés de ontem. Laudélia solidarizou-se, caiu e chorou também. De pé, restou Juliana, desviada a atenção por aquela cena de
fraqueza. “Fracas, ah que mulheres fracas!” - Não tem remédio, não sabem? Judite ergueu-se. Encarou a velha vizinha e esteve por chamá-la de criatura sem amor, sem sangue nas veias, cristã errada, cristã sem Cristo. Mas nada disse. Enfrentou o mar e cuspiu nele até secar a boca. Laudélia levantou-se e fez o mesmo, c om um grito fino de moça roubada: - Coisa ruim, Satanás! Pobres delas, moças de hoje em dia, que não sabiam quem nos governa. Que adianta brigar com o mar? Pobrezinhas. Juliana confor tou-as com a mão e pediu paciência, deixassem de heresias, pelo amor das almas. - Deus é que chama, é o juiz. O s ol já es t ava aberto, outras figu15
ras se mexiam na distância. E o terço, parado ao meio, voltou, salmodiado: - Ave Maria... Laudélia e Judite aceitaram recomeçar. Não que já houvesse sossego; mas a impotência delas era tão desgraçada, o mar se dobrava com tanta indolência e surdez que o inevitável era continuarem minúsculas e comportadas, rezando e memorando os dias delas e deles, da vida... - ... da nossa morte, amém. O Alfredo se teve d e f e i t o s? T i n h a . Não um mundo só de defeitos; não, eram comportamentos próprios de rapaz casado novo, acostumado ainda com liberdades. Gostava dum baile em Santo Estêvao ou nos Barreiros, com amigos, gostava dumas e outras cachaças moderadas e até de namoriscos escondidos,
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sem consequências. Contudo, resp e i t ava a J u d i te e nunca foi de fazer o que outros faziam, noutras terras: bater, os covardões. Ela implicava com as saídas dele, com os reisados e b o i - d e - m a m ã o, as danças, a bebida, e mencionava seu medo a traições, várias vezes. A tudo ele se contrapunha no maior dos risos. Chamava-a de menininha e prometia encontrar ainda um cofre cheio de ouro numa pesca qualquer pelos Naufragados, lá onde um navio se perdeu, na antiguidade. “Te dou tudo, sua boba!” Ela acreditava (quem que não sonha com riqueza?) e ele também, naturalmente. Quando ganhou o filho, então é que Judite acreditou mais ainda. Passou a querer que o marido se dedicasse ao mar com outro em-
penho; e prendia-o com todas as manhas e até choros para que não saísse por aí, nos dias de folga, e ele foi ficando, pois tinha um coração amigo, e existia o guri a caminho. Mas bem luzia nos olhos, com algum tempo, uma amolação por aquilo. Ultimamente, andava inquieto. E Judite reconhecia agora, na praia e entre a reza, que tudo não passou de egoísmo dela. Pois se cada um tem sua natureza! E o Jerônimo da Laudélia, bom ou mau? Mais ou menos. Não bebia, é verdade, mas se largava também em bailinhos aqui e lá, em folias do Divino, nos tais reisados. E em boi-de-mamão nem se fala. Gostava de figurar como Pai Mateus, o doutor. Tocava viola, sabia modas dos Açores e da Madeira. De serviço, 16
além da pesca, fazia alguma carpintaria em casa, bancos e prateleiras. Tinha outros pendores esse Jerônimo. Dizia: “Pesco pra viver, é o jeito. Mas eu quero ainda é fazer casa. Primeiro a nossa, Laudélia. Aqui mesmo”. Ouvindo isso, e se influindo, ela cismou logo com economias. Imitou a out r a , J u d i te, e o pescador que buscasse peixe, quanto mais peixe, melhor. Precisavam levantar dinheiro. As farras sumiram, vetadas. Mulher tem muito poder. Laudélia agora pensava: que que adiantou tanta miséria? Por fim, Leonardo, beirante os cinquenta, de pouco riso e siso. Não parecia, mas ninguém como ele numa vida solta. Esse, sim, não se deixava amarrar – bordeleiro, jogador de cartas. E re-
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laxadão descrente. Juliana pedia: reze um pouco, homem. Teimoso, ia para o mar sem um só sinalzinho- da- cruz. Chegava em casa e já saía, sem dizer pra onde; voltava e não contava de onde. Mas ela sabia: carteado maldito, Maria Barbosa ou Madame Odete. Um pai de cinco filhos com aqueles modos! E, além de não ligar para as razões dela, costumava mal-aconselhar os vizinhos: “Vocês são umas plastas, trabalhando a semana inteira e ficando assim em casa, apodrecendo!”. “Morreu, pobre alma dele. Deus o guarde”- pedia Juliana, na oração. Onde estarão? Três moradores na mesma costa e defuntos no mesmo alto-mar desvairado. Planejaram uma pescaria para bem começar o ano. Leonardo,
como sempre, não disse nada. Mas Alfredo, alegríssimo, participou a Judite; e Jerônimo também deu conta a Laudélia: queriam abrir o ano com uma chuva de peixe como o Pântano nunca vira. Saíram nesse justo tempo de festa e se perderam como três peninhas na ventania. Fazia quatro dias – arrumaram os trens de viagem, se despediram (os dois) na madrugadinha e foram encontrar-se todos em qualquer ponto. Onde andarão seus corpos? - ... rogai por nós, pecadores... Correram as contas. E chegou a última. Rezaram-na e, então, em complemento solene, Juliana se aprumou como um sacerdote e pronunciou a encomendação final: - Justo juiz de Nazaré, filho da Virgem, que em Belém foste nascido en17
tre as idolatrias, eu vos peço pelo vosso sexto dia, pelos três cálices bentos, pelas três hóstias consagradas, eu vos peço, imploro e volto a pedir com mansidão de ovelha: recebei Leonardo, Jerônimo e Alfredo no seio das vossas glórias de luz. Valei-lhes a santíssima pureza de Nossa Senhora do Desterro, a espada de São Tiago e as armas de São Jorge, a capa de Abraão e a arca de Noé. Valei-lhes Santo André e Santa Andria, São Virtuoso e São Brás de Lupe. Recebei, Jesus dos Passos. Amém. Judite suspirou: - Amém. - Amém – concluiu Laudélia, no mesmo arquejo. Acabou. Iam mexer-se. E daí, mal o último amém deixava de existir, surgiu a mocinha Brites, filha maior de Juliana,
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gritando, gritando: - Mãe, ô mãe, o pai chegou! - Santo Deus santíssimo! S e r i a? C a i u u m xale, na corrida. Ficou um pé de tamanco. São chegados os três Reses lá da parte do oriente, pela estrada vêm guiados de um só Deus onipotente. Pois lá estava ele mesmo, Leonardo: grosso bigode, seu sério parecer, o corpo são e bem salvo. Tomava uma caneca de café e mostrava-se apenas cansado. - Homem! Juliana se venceu e abraçou-o. Parecia uma noiva – e isso acontecia depois de quanto tempo? Até as crianças deram
ovação. - Homem, te salvaste! As duas outras perguntaram, num único tropel: - E o Jerominho? - E o Alfredo, Seu Nardo? Ele tirou a mulher do pescoço. Estava mesmo moído, cara de sono. Só grunhiu. - Eles vêm aí. - Estão vivos?! P r e c i s ava d i z e r ? Claro que estavam. Puxou um banco, sorveu o resto do café e tirou um cigarro. Juliana sentou-se ao lado, mansinha como se ali estives se um santo, São Leonardo. Parecia boba. Mas as outras pareciam mais bobas: tinham de fazer o quê? será que estão em casa? já virão vindo? mas que demora! Aí vinham. Vinham mesmo. Elas correram, cada uma para o seu. - Deus te salvou, 18
Jerominho! - Alfredo, nós rezamos pra vocês! A p e quena c a s a de Juliana abrigou aquela gente toda, que se pôs em roda duma mesa. As mulheres se lembraram de como eles não estariam com fome e foram para o fogão. Depois serviram café. Judite perguntou: - Como é que se salvaram, como é que não morreram? Alfredo olhou Jerominho, Jerominho olhou Leonardo, que não olhou ninguém. - H e i n , h o m e m? Um temporal desse, a gente até botou luto... Elas queriam saber. Mereciam. - Ninguém se salvou – disse Leonardo. Os dois mais moços baixaram a cabeça. - Ninguém? - N i n g u é m. N i n guém foi pro mar. As três se ergueram. O quê?
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- Ninguém foi pro mar, é o que digo. Juliana reinvestiu a mesma carranca de sempre. - Pra onde é que foram? - Pra onde? Pra Caieira. Na casa dos Ortiga. Terno de Reis. Os casais se encaravam agora. Então foi isso? Eles enganaram. Disseram que iam pescar, fazer a maior pescaria pra começar bem o ano, e foram foi pro pagode. Oh que casa tão bonita com uma cruz na
cumeeira! viva o sor dono da casa com a sua companheira! Foi isso? - Foi. - Foi. - Foi! – rugiu Leonardo. – Foi e acabou-se. Vocês pensam que homem é só pra dar murro? Jerominho e Alfredo não soltaram palavra, mas as caras amarradas faziam a mesma pergunta. - Vocês pensam o quê? Não pensavam nada.
Laudélia foi a primeira a se relaxar da surpresa: pegou a mão do marido, apertou-a. - Vamos pra casa – convidou no ouvido. Judite fez o mesmo. Só ficaram Juliana e Leonardo. Ele seguiu para o quarto, queria dorm i r. N a s c o s t a s dele ela gritou: - Foi coisa de Deus, homem! Deus é que deu essa ideia de não ir pro mar. Leonardo se estirou e roncou. Juliana ainda veio com rezas: - Santo Cristo onipotente, que ajudaste a minha gente...
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O POBRE POEMA Mario Quintana
Eu escrevi um poema horrível! É claro que ele queria dizer alguma coisa... Mas o quê? Estaria engasgado? Nas suas meias-palavras havia no entanto uma ternura mansa como a que se vê nos olhos de uma criança doente, uma precoce, incompreensível gravidade de quem, sem ler os jornais, soubesse dos sequestros dos que morrem sem culpa dos que se desviam porque todos os caminhos estão tomados... Poema, menininho condenado, bem se via que ele não era deste mundo nem para este mundo... Tomado, então, de um ódio insensato, esse ódio que enlouquece os homens ante a insuportável verdade, dilacerei-o em mil pedaços. E respirei... Também! quem mandou ter ele nascido no mundo errado?
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PERDIDA, NUNCA ACHADA...
Maria Teresa Freire – Curitiba, PR
Um pavor me assola! Realmente, uma reação apavorante que toma conta do meu ser! Um temor de não encontrar a solução. Procuro. Reviro, mexo, remexo. Na bolsa. E nada de encontrar. A chave! Isso significa cadeado lacrado, portão fechado, porta chaveada, sem chance de abrirem-se. Sem mágica que faz abrir aquilo que o homem com a sua pequena capacidade não consegue liberar sem ter uma, duas ou mais. As chaves. E como desapareceram, se estavam ali mesmo, no fundo da grande e exagerada bolsa de praia? Nada caiu da bolsa, nin-
guém roubou nada. Então como desapareceu? Ah! Claro! A tal da falta de atenção. As chaves foram caminhar comigo na praia, à beirinha do mar, chutando água limpa e fresca das ondas convidativas. Creio que elas se encantaram com aquelas ondas espumantes, belas e branquinhas e se jogaram felizes e soltas bem no meio delas! Chaves são objetos, não tem vontade própria, não se jogam
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ao mar! Eu as perdi mesmo, por conta da desatenção! Claro que a primeira justificativa na minha cabeça foi: “eu não fiz por querer! Eu estava com elas bem guardadas!”. É, tão bem guardadas que ficaram em algum lugar da areia amarelinha e extensa ou engolidas por aquela imensa quantidade de água oceânica. Esperança de encontrar? Ora, ora, nenhuma, claro. Mas voltei, refazendo os mesmos passos (acreditei eu)
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para que, com a ajuda de São Longuinho a quem pedi fervorosamente, eu pudesse encontrá-las. Procura em vão, obviamente! Outro desespero se instalou em minha mente. E se alguém encontrar e souber de qual casa são as chaves? Entrarão como se fossem visitar, com chaves na mão, e bem lampeiros levarão todos os per tences importantes: a foto de anos atrás da família toda, meu chinelo preferido, meu chapéu de praia favorito (comprado em Cartagena), minha chiquérrima bolsa de praia (francesa – presente de uma amiga), alguns quadros por mim pintados, as minhas redes de Natal (RN). Os meus pertences queridos e muito estimados. Entretanto, raciocino e chego à conclusão de que será difícil encontrar a casa, se não me co-
nhecerem. São tantas perto da minha. E poucas pessoas me conhecem, a não ser os vizinhos do lado esquerdo, direito, da frente, de trás, da diagonal, enfim os bem pertinho. A imagem de pessoas estranhas encontrando minhas chaves e adentrando minha casa não me sai da mente. Vejo-me dormindo e um serial killer assassinando-me em plena madrugada quando ninguém houve ninguém, pois estão todos profundamente
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adormecidos. Decisão tomada: novas chaves. Contato o chaveiro uma vez, várias vezes. Finalmente, quando estava pensando em procurar outro, ele faz contato. Está sempre muito ocupado. Explico a ele que preciso fazer novas chaves, tetras (caras, mas este é o custo alto da minha distração!). É necessário cópia para todos da casa. Então, lá se vai um dinheirão. Mas, a casa estará mais segura e eu poderei dormir envol-
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ta em suaves lençóis de cetim e plainando nos doces sonhos da tranquilidade. Cadead os novos, chaves em tríplice aliança da segurança. Não deram certo. Não destrancaram o cadeado. O chaveiro tem que limar, ou sei lá o que. Não sou chaveiro. Ele sabe o que fazer. A tetra original desapareceu. Acho que a bruxa está solta desde o dia em dei uma simples e ingênua caminhada na praia. E aí ela começou a agir contra o meu firme propósito de manter minha casa a salvo das maldades dos catadores de chaves desconhecidas. O caos se desinstala. O chaveiro faz as cópias corretas. A tetra reaparece depois de ser invo-
luntariamente esquecida no canto do jardim, por ter escorregado das mãos de quem a carregava (as minhas, claro!) Escorregado! Eu deixei cair mesmo. Vamos adiante. Finalmente, as chaves abrem e fecham o portão, os cadeados e a porta. A casa voltou à paz da segurança local. Quem, por acaso achar o chaveiro com várias chaves vai se atrapalhar sem saber qual abre o que. A ideia é essa mesma. Todas jun-
tas, pois unidas vencerão e dificultarão a ação do malfeitor. Agora o alívio total. Dentro de poucos dias cairá no esquecimento a balburdia e a preocupação causada pelo desaparecimento involuntário das chaves que protegiam o castelo. Mas quem sabe eu andarei com elas enfeitando meu pulso. Prateadas e de vários tamanhos poderão passar como pingentes de uma pulseira. Será que alguém vai perceber que são chaves?
Visite o Portal PROSA, POESIA & CIA. do Grupo Literário A ILHA, na Internet, http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br 23
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DAS PEQUENICES DOS VERSOS Eliane Debus – Florianópolis, SC
Asozinho-me nestes dias pandêmicos Só comigo Desembrulhada de vestes Desprovida de filigranas Só comigo Asozinho-me nestes dias pandêmicos
Com palavra e mundos Mundos de palavras Leiturizo-me No mesmo chão de Paulo! Na trincheira da escrita me (des) armo
Escrevinho-me em linhas curvas Linhas turvas Escrevinho-me para me ler!
A palavra Sem serventia ganha amparo no dizer do poeta.
Leiturizo-me Nas nuvens aligeiradas Nas frutas mais do que maduras Na casca rugosa da árvore Na terra molhada de chuva No som dos animais da casa-lar Leiturizo-me
Meu verbo é ponta de faca Fatia palavras Come-as ao calor da hora Vomita sílabas Regurgita alfabetos (re)escreve histórias É tempo de gritar!
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DIÁRIO DA PANDEMIA – 06.07 A 09.07.2021 – INVASÃO DOS OSSOS
Urda Alice Klueger – Palhoça, SC
Repentinamente, desde semana passada, há uma invasão de ossos aqui em casa, o que é a coisa mais fantasticamente bacana que pode acontecer numa casa onde moram 2 cachorros. Explico: ganhei-os do Restaurante Nossa Senhora Aparecida, aonde estive, morta de fome, depois de duas horas de inexplicável congestionamento em Palhoça. Essas constantes idas a Palhoça para fisioterapia me tiram o equilíbrio, depois de quase ano e meio sem sair de casa – atrasa tudo, perco a CPI, mas começo a andar me-
lhor... e ganho ossos! Aprendi com Atahualpa todo o sagrado ritual dos ossos para os cachorros. Atahualpa se criou comigo desde pequenino, foi cachorro de apartamento, cachorro de condomínio – mas sabia exatamente tudo sobre a sacralidade e a delícia que são ossos para um cachorro! Agora, com essa invasão de ossos, fico prestando atenção no que os Mal Diagramados fazem. A cada dia tiro da geladeira alguns ossos e os compartilho com parcimônia: uns 5 ossos grandes para Tereza Batista, que pesa 30
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kg, e uns 3 ossos pequenos para Zorrilho, que pesa 8. Há que dar os do Zorrilho no meu quarto, que tem um portãozinho de metal que garante a integridade física de Zorrilho e dos ossos dele. Tereza ganha os dela no restaurantezinho dos cachorros, entre a geladeira e o freezer, e um a um os pega e os carrega para o sofazinho da varanda, onde fica horas se divertindo com eles, retirando possível carne, roendo e, mais importante, transformando-os em armadilhas. É bem isso, armadilhas. Cachorros que dispõem de ossos
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costumam distribuí-los ao seu redor, um pouco distantes de si, de preferência em semicírculo, e ficam ali durante horas esperando que alguém queira roubar algum deles, para então pegarem o ladrão. O ladrão pode ser qualquer coisa que se mexa, como outro cachorro, algum bicho, quiçá uma pessoa. No tempo de Atahualpa, como só éramos ele e eu, o ladrão sempre era “o bicho”, um ser imaginário que poderia aparecer do nada. Às vezes eu tinha que fazer de conta que era o bicho, para ele poder dar vazão ao seu instinto de defesa – fazia de conta que ia pegar um osso, para ele fazer GRRRRRRRRRR e me mostrar seus poderosos dentes. Os cachorros ficam como que em êxtase por algumas horas, enquanto esperam o inimigo, e só saem dali quando estão tão cansados que não
aguentam mais. Então, aqui em casa, atravessamos uma fase de ossos e de muitas energias. É claro que Zorrilho cuida da sua armadilha sobre a minha cama (tenho um cobertor especial para isso) (e incomoda um monte as gatas que entram no quarto, com os dentes à mostra e um barulhão!), enquanto Tereza fica lá na varanda. No final de tudo, tem sobra de cacos de osso para todo o lado. É bem provável que, depois de dormir um pouco, Tereza Batista monte uma segunda armadilha, num semicírculo sobre a cama de cachorro que há aqui no escritório – tal-
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vez Zorrilho aproveite o tempo para ir dar uma volta na praia, pois ele tem um buraco na cerca, onde só ele cabe, e vai e vem quando quer. Sei que, quando anoitece e eu me recolho ao quarto e dou sumiço nos cacos de osso que ficaram por lá, Tereza, fidelíssima escudeira, esquece os ossos e trata de me acompanhar e cuidar de mim. Agora faz frio há tanto tempo que me parece difícil lembrar que há uma primavera pela frente. Desde abril que é frio, e quando vou para o quarto ligo o aquecedor e trato de juntar minha turma. Tereza já está lá e logo vem as gatas, tomando
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posse dos seus lugares... mas cadê Zorrilho? Quando Tereza abandona o escritório com seu semicírculo de ossos, Zorrilho se apodera daquele espaço, como se ele próprio tivesse montado o cenário, e fica em transe, cuidando daquela armadilha
como quem está para perder a vida se se descuidar. Não adianta chamá-lo para o calorzinho do aquecedor, pois só duas ou três horas depois ele sai do transe em que está e vira um cachorro normal de novo, e talvez vá para o quarto também, como o resto da fa-
A escritora do Grupo Literário A ILHA, Rita Pea, estará lançando na Feira do Livro de Lisboa o seu novo livro "O Mar de Electra", no dia 10 de setembro. Também Neusa Maria Bernardo Coelho está na antologia Sem Fronteiras pelo Mundo, que será lançada na Feira de Lisboa, além de ter lá seu livro "Tri-
buto a Zilda Arns" à disposição dos leitores portugueses. São escritores do Grupo A ILHA, assim como o editor desta revista, Luiz Carlos Amorim,
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mília, mas nem sempre Zorrilho dorme no quarto: guardião-geral, ele dorme nos mais inesperados lugares, como debaixo da mesinha da sala (onde também há uma cama), pois se sente o responsável pela segurança geral – e se algum bichinho da natureza resolver entrar pela porta da sala, eternamente com a portinha de passar cachorros aberta? Divertido tempo de ossos numa casa onde vivem 2 cachorros! autor catarinense que já vem participando da feira há vários anos, presentes em um dos eventos literários mais importante da Europa.
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DAMA ANTIGA
Suely Ravache Costa
Sonhei com uma época de mulheres bem mais femininas… procurando a proteção de um homem forte que as tratassem como ingênuas meninas. Sonhei com um tempo de paixões ardentes carruagens, fraques, chapéus… decotes ousados, plumas, véus… homens e mulheres… enamorados Amores verdadeiros, que duravam por toda a vida… sem essa de amizade colorida! Sonhei com uma época distante… “Sonhei ser uma Dama Antiga!”
Sonhei que vivia em outra época… um tempo dourado pelo romantismo onde recebia flores de um admirador, tempo em que perfumava minhas cartas contendo as mais belas juras de amor! Sonhei que vivia em outra época… onde o namoro era curtido nos mais simples detalhes, onde um leve toque de mãos trazia o rubor às faces, onde um breve olhar traduzia o melhor dos sentimentos contidos no coração! Sonhei com momentos de muita ternura… vestidos rodados… sombrinha na mão... passeios ao sol… lenços por descuido caindo no chão… cavalheiros por perto, com seus modos galanteadores, demonstrando afeto. 28
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ciado ao racismo, impõem sobre nós, mulheres negras. O filme foi criado e dirigido por Negra Luz (Cláudia Almeida) DEZ que é advogada e ENCONTROS poeta e editado por Pedro Nguvu atraCOM O vés da empresa KuRACISMO tano filmes. Negra Luz – Cláudia Almeida O filme foi lançado no dia 24 de julho O curta metragem agregando as refle“Dez Encontros com o Racismo” foi desenvolvido com objetivo de atuar exatamente no rec o n h e c i m e nto da maior vulnerabilidade social da mulher negra, a partir das narrativas de 10 escritoras participantes, que ultrapassaram esse estágio de vulnerabilidade e, hoje, seguem lutando, resistindo, tanto individualmente como coletivamente, com o fito de alavancar outras mulheres negras a sobreporem as barreiras que o patriarcado, asso29
xões do Dia de Tereza de Benguela. Está disponível para acesso e tem autorização para usos formativos, acadêmicos, etc. Para acessar basta buscar no YouTu b e o c a n a l Kutano filmes ou entrar em contato pelo Instagram @contempoetica . “
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A PRAÇA DIANTE DE MIM Negra Luz
Diante da praça, o dia,
No passado,
Nuvem de fumaça no meu pensar,
No banco, papelotes passados às pressas,
Passa
Muitos passos na praça.
Passam rodas,
Pressão, polícia,
Passam o rodo.
Presos... Prisões.
O passado não deixa passar,
Passou a caravana da sopa,
O branco passa,
Pedintes passeiam,
O negro atravessa.
Passam suas vidas com o que lhes passam.
Há passos
Doces, passas murchas,
Passa-se uma cena...
Passarinhos estão a voar!
A peça do dia:
Passa Tempo,
A Praça diante de mim.
Ouço passadas.
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DE QUEM É ESTA LÍNGUA?
José Eduardo Agualusa - Luanda
Uma pequena editora brasileira, a Urutau, acaba de lançar em Lisboa uma “antologia antirracista de poetas estrangeiros em Portugal”, com o título “Volta para a tua terra”. O livro acolhe 49 poemas inéditos, de 49 poetas naturais de nove países distintos. É impossível não notar a ausência de grandes poe tas africanos radicados em Portugal desde há muitos anos, como a angolana Ana Paula Tavares ou o cab o -verdiano José Luís Tavares. Além disso, os poemas escolhidos são francamente desi-
guais. Há, contudo, exc e l e n te s s urpresas. O livro denuncia a s d i ve r s a s f o rmas de racismo a que os imigrantes estão sujeitos. Alguns dos poetas brasileiros antologiados queixam-se do desdém com que um gran-
de número de portugueses acolhe o português brasileiro. É uma queixa frequente. Não obstante as intensas trocas culturais entre Portugal, Brasil e países africanos onde se fala português, persiste ainda no país de Fernando Pessoa 31
um certo sentimento imperial (e uma desoladora ignorância) em relação ao comum idioma materno. “A q u i e m Po r t u gal eles dizem que nosso português é errado, que nós não falamos port u g u ê s ”, e s c r e v e a poetisa paulista Maria Giulia Pinheiro, para concluir: “ Se a sua linguagem, a lusitana, / ainda conserva a palavra da opressão / (…) ela não é a mais bonita do mundo. // Ela é uma das mais violentas.” Os portugueses mostram grande orgulho na universalidade e do alcance da língua que falam, mas quase sempre se esquecem de acrescentar q ue es s e a l c a n ce —é a sexta língua mais falada no mundo — se deve aos 211 milhões de brasileiros. Se to-
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dos os brasileiros falassem nheengatu — é só um exemplo —, a língua portuguesa seria tão relevante, a nível internacional, quanto o tagalo. Conhecem o tagalo? É falado por mais de 50 milhões de filipinos. Já o nheengatu seria a sexta língua mais falada no mundo. A língua portuguesa é a soma de todas as suas variedades. Ninguém pode pretender conhecê-la sem conhecer dela uma única variedade. E, não a conhecendo, como pode amá-la? Os portugue-
ses que desprezam as variedades brasileiras e africanas da língua portuguesa não conhecem e não amam a própria língua materna. São inimigos da nossa língua. Acompanhei Antônio Houaiss há muitos anos, quando ele visitou Lisboa, a convite da poetisa Natália Correia, então deputada no p a r l a m e n t o p o rtuguês, para defender a ideia de uma ortografia comum. Natália era uma mulher enorme (em todos os sentidos), com uma energia que cont a g i ava o s b o n s 32
espíritos — e assustava os maus. No parlamento, um deputado interr o m p e u H o ua i s s , us a n d o da m es ma deselegância a que se refere Maria Giulia Pinheiro: “O senhor fala um por tuguês errado. ”Não me recordo qual a palavra específica que terá irritado o português. Recordo-me, isso sim, que Houaiss aproveitou a oportunidade para ministrar uma aula sobre a transumância das palavras e a fabulosa riqueza da língua. A s s i m q u e te rm i n o u d e f a l a r, Natália Correia ergueu-se de um salto, enquanto bradava para os restantes deputad o s : “A j o e l h e m - se diante deste h o m e m! N e n h u m de vocês fala português tão bem quanto ele.” Como sempre, tinha razão.
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REVIVENDO MÁRIO QUINTANA
O Hotel Majestic incorpora o poeta No Patrimônio arquitetônico transformado Em símbolo literário do Estado. Eis a “Casa de Cultura Mário Quintana” Aconchegando teatro, biblioteca, exposições Cenários de objetos pessoais e legados de si. Augusta personalidade Literária A granjear na trajetória da História: Prêmios Machado de Assis e Jabuti!
Neusa Bernado Coelho – Palhoça, SC
Ilustre Poeta, nascido em Alegrete Filho de farmacêutico, foi militar, atendente Jornalista e Tradutor do século XX Solitário a vida inteira, Poetiza com técnica e ironia. A imperiosa poesia, fiel escudeira. Musicaliza quartetos e tercetos Em “A Rua dos Cataventos” Primeiro livro de Sonetos. . Nas metáforas apuradas de temas profundos: :O poeta serpenteia a Morte, Memória, Velhice forte... Temporalidade em floreios de canção Registrada na simplicidade da vida fugaz... Os pares do panteão mordaz Incorporam o coração Quintanares
Um dia ao se mudar para o Hotel Royal, Quintana brada as tradicionais comicidades: "Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas...” Três tentativas frustradas na ABL Basta o Poeminha do Contra, Na quarta, refuta a expectativa: "Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho, Eles passarão...Eu passarinho!" Idoso, aos 87 anos, o ilustre escritor perece. Era ano de 1994, em Porto Alegre. Eterniza-se nas praças e monumentos. Alvorece na poética graça Inspira fãs, amantes infindos... Nos versos da primavera, ventos, realidade Quintana do dia a dia e simplicidade natural Galardão das ruas em tempos floridos Declama no céu um sarau ungido A enfeitiçar a malta cultural!
Dá um clique no tempo, e voa...nas Anáforas do ‘Seiscentos e sessenta e seis’: “A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa...” Somos marcas do ‘relógio pressa’ Esse tempo que escorre e passa, pois... “Quando se vê, já são 6 horas: há tempo... Quando se vê, já é 6ª feira…” O eu lírico expressado nas tarefas cotidianas Rutila no hábil Quintana "Jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas". Vivendo intensamente...por ora... Adeus tempo presente, já és outrora! 33
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CONHECE
Marli Lúcia Lisboa (Bulucha) – São José, SC
Eu saberei a resposta. E você? Ui, estou me sentindo agoniado, é a hora que chega? É o medo? É a esperança? Não sei… Sabe como eu permaneci até agora? Em discórdia. Isso mesmo, tudo não tocava em mim. Ou eu não tocava em tudo. Sei lá! Mas agora, algo me toca, algo me cobre, algo me faz agir desse modo. Sabe o quê? Algo...
Discórdia. Tudo contra tudo, todos contra todos, eu contra tudo, eu contra todos. Tudo contra mim, todos contra mim... Qual colocação é correta? Como sempre, por que há discórdia? Será porque eu sou eu, o outro é o outro? Não. Então, por quê? Ora, é natural. Ah, deixe de ser vazio! O que sou eu para falar assim... Discórdia... é a ambição, egoísmo, covardia, desespero, que traz discórdia. Discórdia é a esperança de trazer...união! Discórdia... união. Que coisa mais esquisita. Que ideia idiota. Que palavras contrárias. Discórdia... união. O que você pensa de tudo isso? Discórdia... união. Que coisa, mas é verdade! A discórdia de tudo e de todos leva à união de uns, de outros. Não é? Ah, não está mais a rir? Ótimo... A discórdia gradativa não é favorável, pois 34
haverá uma união gradativamente integral. Como? Bem, nas cinzas de uma correspondência destruída há sempre algumas partículas de duas almas! Lembre-se, no inicio são apenas duas e depois? De onde tirei isso? Sei lá... Tudo está tão complexo, que não sei como acabará tudo isso. Isso o quê? União. É o olhar que dirijo para tudo, todos... É o olhar dirigido à mim! E você? Para onde dirige o seu olhar? Não sabe? União. É preciso haver discórdia para haver união. Até agora estava em discórdia com aquilo que não era eu... e comigo. Mas, se eu estava em discórdia, com o que eu estou em união? Com o quê? Com quem? Por quê? Para quê? Nossa, não sei, não sei... Dúvidas. Isso mesmo: dúvidas! Tenho dúvidas de tudo, de todos. Tenho dúvidas de...
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mim. Tenho dúvidas de todos os porquês. Mas não tenho dúvida de que encontrarei a resposta de cada um, de cada porquê! Qual é a sua dúvida? Não tem? Sim, muitas, não? Você procura o fim de sua dúvida? Eu, sim. Sabe por quê? Porque estou a escrever e você... a ler! Tudo que existe é dúvida! A vida é uma dúvida da presente morte! Uma máquina também encontra seu fim. Como? Quando falta o parafuso adequado, quando falta alguma coisa para fazê-la funcionar, quando falta um cuidado... Dúvida de um começo... Dúvida de um fim! Dúvida de uma discórdia... Dúvida de uma união! Dúvida de um erro... Dúvida de uma verdade!
Dúvida de um desespero... Dúvida de uma esperança! Dúvidas! A dúvida está dentro de mim, o começo está dentro de mim, o fim está dentro de mim! A discórdia está dentro de mim, a união está dentro de mim! O erro, a verdade, o desespero, a esperança, tudo está dentro de mim! Mas afinal, o que há dentro de mim? Por quê? Para quê? Como, sim, como? O que há dentro de você? Talvez... nada! Nada! Tudo é silêncio! Só não há silêncio dentro de mim... Agora... a partir de agora... desde que... a construção... a pintura... É...! Discórdia que passa a ser palhaça quando passa a existir união! União que passa a ser dúvida quando passa a existir discórdia! Discórdia...união. Dúvida! De repente... E agora...? Será que essa... me fará saber de 35
mais alguma coisa...?! Por que tudo isso faz parte de mim...?! Dúvida! De tudo que está dentro de mim, saberei minha resposta do meu porquê em mim mesmo? Sei lá, o que acha disso? Nada? Então você é... nada! Se o meu porquê está dentro de mim, como vou achá-lo? Onde d evo p r o c u r á - l o? Numa máquina, num computador, num lugar complexo, numa... numa lata de tinta...?! Ou em algo que não seja nada disso, em algo que seja... o porquê da vida, do mundo? Que algo, então é esse? Não sabe? Então continue e procure comigo! Sim, venha... Conhecer... ...O que há dentro de mim!
(Do livro HORA H)
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VIVENDO
AMOR
Erna Pidner – Ipatinga, MG
Cruz e Sousa
Um dia após o outro Vou levando minha vida Temente e agradecida A tudo que Deus me deu. Vou sem pressa, persistente, E o que tenho em mente É ser dona de um futuro Promissor e contemplativo Da natureza em festa E tudo o que me resta É ser forte e confiante Para seguir em frente Sem medo de enfrentar Os percalços do caminho. Vou serena e destemida Pois o que quero da vida É viver e deixar viver A todos que têm fé E esperança no porvir. Sigo avante nessa estrada Mesmo sabendo que nada É fácil de conquistar. Vou com ânimo e coragem Numa suprema viagem Que é a vida a viver!
Nas largas mutações perpétuas do universo O amor é sempre o vinho enérgico, irritante... Um lago de luar nervoso e palpitante... Um sol dentro de tudo altivamente imerso. Não há para o amor ridículos preâmbulos, Nem mesmo as convenções as mais superiores; E vamos pela vida assim como os noctâmbulos à fresca exalação salúbrica das flores... E somos uns completos, célebres artistas Na obra racional do amor — na heroicidade, Com essa intrepidez dos sábios transformistas.
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Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige E amamos com vigor e com vitalidade, A cor, os tons, a luz que a natureza exige!...
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ÉRAMOS FELIZES E NÃO SABÍAMOS. SERÁ?
Renata Dal Bó – Tubarão, SC
A h! Q u e s a u d a des daquele tempo em que podíamos viajar, ir a um restaurante, sair para bater papo com um amigo. Era tudo tão bom, tão perfeito! Será? Há alguns dias tive que ir ao centro da cidade no final da tarde. O lugar fi-
cava apenas a algumas quadras de minha casa, mas como estava chovendo, resolvi ir de carro. Achei que em dez minutos estaria tudo resolvido. Ledo engano, o trânsito estava caótico. Levei até um susto com a quantidade de carros na rua. Ao retornar, era horário de saída da escola. Estava tudo parado. Demorei alguns bons minutos para passar. Nossa, não me lembrava mais o que era engarrafamento. Desde o início da pandemia do coronavírus não participava de um. Me deu
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até uma saudade da hora do rush. É impressionante a nossa tendência em idealizar o passado, achar que tudo era divino, maravilhoso. Já ouviram comentários como “a vida era muito boa antes da Covid-19”; “como era bom na época da minha infância”; “tenho uma saudade de quando os filhos eram pequenos, era tudo tão mais fácil!”? A ultra valorização do passado em detrimento d o pre sente tem nome: chama-se nostal gia. Digamos que a nostalgia seja a memória de um passado sem conflitos, sem dores. Criamos um passado mítico e acreditamos nele. Que bom se tudo t i ves s e ac onte c i do da maneira que lembramos hoje, que a vida antes da pandemia tivesse sido um mar de rosas, que tivéssemos tido a melhor
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infância de todas e que, ao nascer, os filhos só nos dessem alegrias. Só que não. Antes dess e ma l d i to vír us aparecer o país enfrentava uma das piores crises políticas e econômicas. Nos anos 70, época da minha infância, o Brasil vivia uma t e r rí ve l d i t a d u r a , pessoas eram torturadas e morriam na prisão. Trazendo para um aspecto mais íntimo, lembro-me de sofrer muito bullying por ser gordinha e de ter terríveis dores de barriga na hora das provas. Quando meus filhos eram pequenos tive momentos maravilhosos, mas quase morria de preocupação e cansaço quando eles fica-
vam doentes. Tenho trauma até hoje de ficar acordada de madrugada. Muitas vezes, queremos comparar o presente com um passado que só existe na nossa imaginação. Um passado idealizado, romântico e primoroso. É claro que o aqui e agora é bem mais difícil, pois os sentimentos estão à flor da pele. É tudo real, não tem espa-
ço para devaneios. E viver a realidade ultimamente tem sido de uma crueldade ímpar. Dá até aquela saudade de perder uma conexão por causa do atraso do voo, ficar horas em um engarrafamento, pegar uma fila gigante no supermercado e esperar um tempão para conseguir uma mesa no restaurante! Eu era feliz e não sabia!
Renata Marques de Avellar Dal-Bó é jornalista e escritora. Possui uma coluna de crônicas no Jornal Diário do Sul. É presidente coordenadora da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB) – coordenadoria de Santa Catarina, e membro da Academia Tubaronense de Letras (Acatul). Apresenta o programa Bate-Papo Literário, na Unisul TV. Tem dois livros solos publicados “Histórias, Sonhos e Imaginação” e “Para ti”. 38
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GIRASSÓIS Sólon Shil
Acumularam-se aos teus pés, Enferrujando as correntes Que os prendem. Mas, também delas, Te sentirás liberta. Tomarei tuas mãos E reaprenderás a andar, correr… Secarei teus olhos e deixarás Que a chuva molhe teu rosto, Correndo por teus seios, por teu ventre, E o vento, assoviando canções de amor, Embalará teus sonhos. Teus lábios, agora trémulos, Firmar-se-ão num sorriso De felicidade e paz.
Trouxe-te luz Para iluminar as trevas Em que vives. Batendo em meu peito, A chave para abrir os grilhões Que te aprisionam A um passado não muito distante. Viveste tanto tempo nesse poço escuro Que teus olhos se umedecem À aproximação da claridade. Libertei-te as mãos Mas desaprendeste de usá-las No gesto carinhoso De um simples afago. Tuas lágrimas de desespero Creio, ao longo dos anos,
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AVENTURA AO REDOR DE MEU QUARTO Enéas Athanázio – Baln. Camboriú, SC
Existe com esse título um poema que já foi famoso em que o poeta abordava aventuras psicológicas e imaginárias entre as quatro paredes daquilo que os antigos designavam por alcova (*). Mostrava que para os dotados de imaginação nem as paredes cruas conseguem impor limites. Agora, quando ditas aventuras são reais e vividas, não será tão fácil realizá-las em ambiente assim exíguo. Transpostas as coisas para o ambiente da cidade, nem sempre aventuras inovadoras são possíveis. Depois de muitos anos, tudo parece conhecido, visitado,
sabido, palmilhado. Num sentido figurado, a cidade acaba se tornando nosso próprio quarto. Essa, porém, não é uma regra. Sem sair dos limites urbanos, minha mulher e eu realizamos uma bela aventura aqui mesmo, sem viajar ou gastar, exceto o esforço físico, aliás bastante saudável. Vai o convite para que os curiosos nos acompanhem em imaginação ou refaçam nossos passos. Percorremos passo a passo a longa passarela que o município construiu sobre as pedreiras situadas após a foz do Marambaia. É uma
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obra que se transformou em atração turística, uma vez concluída e ajardinada. Vencidas todas as curvinhas, penetramos pelo caminho que sobe o morro, o último, com mostras de ser antigo e bastante usado. Enveredamos por ali, sob o mato, vencendo a subida íngreme e o chão repleto de pedras e mais pedras. Não tardamos a deparar com companheiros de jornada, entre eles um pescador simpático e conversador, contador de “causos”, cuja satisfação maior era ser primo de um construtor arquimilionário que havia
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edificado este, aquele e aqueloutro prédio. Depois de muito suor, esforço e algumas escorregadelas, avistamos, lá em baixo, a Praia do Buraco, imensa, vazia, bucólica, com muita areia fofa e banhada pelo mar azul. Por ela seguimos, pés dentro d’água, sentindo a carícia do velho Atlântico, muito calmo àquela hora. Andamos, andamos. Às vezes, solitário, algum praiano aproveitando, deitado ou vagando sem pressa, ruminando secretos pensamentos. Transposto o hotel, cujos fundos vão ter ao mar, chegamos até o penhasco do outro extremo. E ali, como que subindo ao céu, a inacreditável escadaria de concreto que leva ao pico do morro. E então, reunindo ânimo e coragem, iniciamos a escalada, degrau a degrau, dez, vinte, cinquenta, uma paradinha para tomar
fôlego, e mais dez, vinte, cinquenta, até os duzentos do total (contados...). Esbofados, suados, arquejantes, entreparamos e olhamos para o mar. Inacreditável a vista que se descortina, compensadora de tanto esforço. Mar largo, azul e calmo, separando-nos
da velha África, o misterioso continente negro das aventuras lidas na infância, a África do Sul com suas pradarias povoadas de bichos e a Namíbia com seu inóspito deserto e a maior feira livre do mundo. Além da cidade de Lüderitz, de onde Amir Klink deu 41
a partida na travessia a remo do mar-oceano, como relata em “100 dias entre céu e mar.” Tudo entrevemos com olhos imaginativos, absorvendo em largos goles a beleza sem par do mar sem fim, o “mare magnum” cujo extremo tanto temiam os navegadores de antanho. Descansados, deixamos de lado o último lanço de escadas que vai ainda mais acima e descemos pela via asfaltada que vai encontrar a Estrada da Rainha. Subindo ao topo, iniciamos a descida, tendo à frente a mole dos prédios que se elevam pela orla. A proximidade afirmava que, ainda que parecesse incrível, estávamos em nosso quarto. (* - “Voyage autour de ma chambre”, Xav i e r d e M a i s tre, poeta francês (1763/1852), publicado em 1795.)
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INSPIRAÇÃO
ETERNO OLHAR
Salete Holske – Florianópolis, SC
Jurandir Schmidt – Joinville, SC
Quero em meus olhos toda natureza toda bondade.
Mas que diabo, a inspiração me falta, os temas sobrepõe-se e rápidos se furtam. Coloco no papel algumas frases soltas que teimam em ser dispersas e continuarem soltas.
Quero em meus olhos toda claridade toda bonança um arco-íris.
A poesia está aí, pairando a minha frente, é só conectar cérebro, coração e terminais nervosos. Por que, então, não jorra, rápida e maneira, dando forma e colorido às imagens dançarinas que me enfeitam os olhos e deles não se soltam?
Quero em meus olhos a oportunidade da visão futura: a doação o transplante. Quero em meus olhos a continuidade do pouco de mim do muito da vida.
Numa das junções é que devo procurar o elo que intercepta o que o cérebro comanda e os terminais registram. Imagino o coração, calmo e satisfeito. Feliz, ele se torna um pouco relaxado. Na angústia é que se mostra farto em munição. Talvez por isso, a ideia de que o poeta, protótipo perfeito de como geralmente o são, deva ser errante, antes de mais, e proporcionalmente infeliz à obra que mostrar. 42
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A PANDEMIA E O NOVO COVIDIOMA
Atualizar um dicionário já é difícil em condições normais, imagine em meio a uma pandemia que, em um curto período de tempo, acelerou o surgimento de palavras novas — e a ressignificação de outras. Com 382 mil entradas, a sexta edição do “Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa” (“ Vol p” ), di s p onível exclusivamente n a ve r s ã o o n - l i ne no site da Academia Brasileira de Letra s, enfrentou este desafio. Dos 1.160 verbetes inseridos nesta nova
edição da obra, que é considerada o fiel da balança da língua pátria, 65 (cerca de 5% do total) estão ligados direta ou indiretamente ao contexto pandêmico, como “Covid-19”, “lockdown” e “trabalhador essencial”. Mas houve também um número considerável de termos barrados pelos lexicógrafos. Alguns são curiosíssimos: “coronaplauso”(salva de palmas da população em quarentena como forma de agradecimento à dedicação dos trabalhadores da área de saúde), “coron a b a by ” (c r i a n ç a nascida durante a pandemia) ou ainda “blursday” (impressão de que todos os dias são iguais na quarentena). Preteridos ou não, todos fazem parte do chamado “covidioma” — outro termo novo que, por ironia, aca43
bou ficando de fora da lista. — A pandemia trouxe esse e s tím u l o a m a i s para os lexicógrafos — diz o acadêmico Evanildo Bechara, presidente da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, que produz o “Volp” — A sociedade passou por uma ebulição cultural e tecnológica e isso teve repercussão no uso da língua. Produzida em parte ao longo da pandemia, a nova edição, no ar desde o mês passado, só foi possível graças a uma palavra que também faz sua estreia no “Volp”: “home office”. O uso do termo, aliás, é polêmico, já que a frase “I’m doing home of fice” (estou fazendo home office) não existe em inglês. Mas não tem problema. Basta dizer que, para levar a cabo sua tarefa,
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a equipe de Lexicologia e Lexicografia da instituição aderiu ao “teletrabalho” — termo que também estreou agora no dicionário. Mesmo com as atividades presenciais da ABL suspensas, o trabalho de atualização continuou com muitas trocas de e-mails, mensagens de celular e o uso de “videoconferência”, esta tecnologia pandêmica que acaba de realizar o sonho do verbete próprio. Coisa de dar “nomofobia” (med o patológic o de ficar sem acesso ao celular). Foi uma dinâmica inédita nos 75 anos de carreira de Bechara. Aos 93 anos, o professor aderiu ao confinamento, já que não é um “negacionista”. Sim, mais uma palavra recém-dicionarizada. O ingresso de um verbete novo depende de uma sé-
rie de exigências. Em primeiro lugar, a sua criação precisa traduzir com eficiência a ideia que quem a empregou quis transmitir. Em segundo, não pode haver palav ra s a nt i ga s e mais expres sivas que transmitam melhor a mesma ideia. Também são levadas em consideração a frequência de uso, a presença em textos oficiais, jornalísticos, acadêmicos, etc. e a relevância para a vida social. “Covidengue” e “covidivórcio” ingressaram na Real Academia Española, mas ficaram de fora do
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“Volp”. Ainda que tratem de fenômenos que também ocorreram no Brasil, tiveram, segundo a equipe da ABL, uma rep erc us s ão baixa ou inexistente por aqui. — Há expressões que nasceram para situações específicas e que acabaram não tendo circulação na sociedade. É como se morressem em seu nascedouro—explica Bechara, que acaba de lançar o livro “Fatos e dúvidas de linguagem” (Nova Fronteira), uma reunião de seus estudos publicados ao longo da carreira. Pa lav ra s ex i s tem
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para nomear a realidade que nos cercam. Mas nem sempre é necessário inventá-las. Autor do livro “De onde vêm as palavras: origens e curiosidades da língua portuguesa” e vice-presidente da Academia Brasileira de Filologia, Deonísio da Silva lembra que a crise sanitária não apenas enseja o surgimento de termos e expressões como também altera o significado das existentes. É o caso, por exemplo, de “comorbidade”, “ imunossuprimido” e “média móvel”. Por sinal, “pandemia” não designou originalmente a peste. Foi precedida em séculos por “epidemia”, do mesmo étimo, observa Deonísio. — Q uantas des tas novas palavras ou novos signific ad os prevalec e rão? Ainda é cedo para saber — diz
ele. — O alemão já criou mais de mil palavras nessa pandemia. E com a habitual precisão. Aliás, chamar de pandemia e não peste, como antes, já me parece uma opção pelo eufemismo. Nós como q u e exo r c i z a m o s ou abençoamos as coisas com as palavras. Responsável pela atualização do “Dic i onári o Auréli o”, Renata Menezes garante que a fábrica covidiana de expressões está longe de ser um pesadelo para um dicionarista. Pelo menos não para o “lexicógrafo-
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-raiz”, que é como ela chama os apaixonados pelas palavras. Ainda que não façam mais parte do nosso dia a dia depois que a crise sanitária acabar, afirma Renata, os novos termos estão fadados a se eternizar por meio de diferentes registros (c i e n t í f i c o s , h i s tóricos, literários, jornalísticos, lexicográficos...). — Que esse momento chegue logo e que tenhamos, de fato, aprendido algo com a pandemia, não é mesmo?—diz a consultora de lexicografia das obras “Aurélio”.
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MENINA
FUGA
Silvia SChmidt – Joinville, SC
Silvio Oliveira Dias
Se sonhadora, talvez pintasse de vermelho o coração das pessoas e lhes fizesse um rabisco em suas preocupações… Talvez cantasse canções e fizesse cirandas por toda parte… E colhesse flores onde as cores não tivessem lugar. Talvez vestisse sua boneca com vestido de princesa e fosse ela princesa dos castelos que sonhou…
Tranquei a noite única, vazia, no armário do esquecimento. Nostalgia pervertida, noite mal dormida, minha boemia.
Ontem vi teu olhar brilhante brincando de roda na calçada… O tempo, a vida são miragens que, às vezes, nem ousamos acreditar…
A noite única, em que nos meus passos a esperança fugia, dentro dessa noite em que meu todo, depois, lentamente, adormecia! 46
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EDUCAÇÃO COM COVID, NA UTI
Por Luiz Carlos Amorim – Escritor, jornalista, editor e revisor, Cadeira 19 na Academia Sulbrasileira de Letras, Fundador e presidente do Grupo Literário A ILHA, com 41 anos de literatura,. Http://www. prosapoesiaecia. xpg.uol.com.br
Tenho alertado a respeito do abandono da educação brasileira há muito tempo. Nos últimos tempos, intensifiquei o foco, escrevi vários artigos sobre o tema, porque a situação tem se agravado, não só pelo resultado constatado na aprendizagem dos estudantes, mas pelo estado cada vez mais precário das escolas públicas e do descaso para com os professores. E a pandemia veio agravar ainda mais o qua-
dro, com as escolas fechadas – tanto a pública como a particular – e os estudantes em casa, atrasando em dois anos o ensino brasileiro que já estava devaga r. At ra s a n d o mais, muito mais, pois os estudantes não têm aula, muitos deles até hoje. A l é m d i s s o, na s últimas décadas foram feitas modificações no sistema de ensino – alfabetização, ensino da matemática, etc., que ao invés
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de melhorar a educação, prejudicaram ainda mais os alunos do ensino fundamental, que estão chegando ao terceiro, quarto ano sem saber ler e escrever. E isso reflete nas etapas seguintes, é claro, no ensino médio e também no superior, pois se a base não é boa, todo o resto estará perdido. Sem contar que está havendo, atualmente, a despeito da pandemia, mudança no ensino médio. Será que
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para melhor? Espero que sim, mas não tenho muita fé. A União e os Estados – o Ministério da Educação e as Secretarias de Educ aç ão – não estão dando a devida atenção à educação, não estão investindo na educação, e isto há muito tem p o. Parec em não s e dar conta de que um ensino de qualidade é condição sine qua non para que tenhamos, mais adiante, pessoas educadas e qualific adas para trabalhar e ter uma vida digna, para que tenhamos pro-
fis sionais qualifi cados e dirigentes preparados, com um mínimo de cultura para desempenharem um bom governo à frente do país, dos Estados, dos municípios, das grandes empresas. Será que a pandemia do novo coronavírus, que parou tudo em todo o mundo, vai fazer com que isso melhore? Difícil, não é? Temos dois anos de educação ou de ensino – como queiram, pois é a mesma coisa, conforme o dicionário – para recuperar. O próprio Mec
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já admitiu, publicamente, o que temos repetido várias vezes: mais de um terço das crianças do inicio do primeiro grau, com oito anos, nove anos, não aprenderam a ler e escrever, o que compromete, como já dissemos, toda a vida escolar. Então os responsáveis pela educação brasileira concordam e sabem que o ensino fundamental e médio estão com a qualidade bem abaixo do necessário. Mas voltam a insistir na modificação no Ens i n o M é d i o q ue, ao invés de melhorar a qualidade, pode comprometer ainda mais. Há alguns anos, queriam que as treze disciplinas do Ensino Médio fossem aglutinadas em a p ena s qua tro áreas, porque a excessiva quantidade delas esta-
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ria prejudicando o rendimento dos estudantes. Como já disse, isso é temerário, porque o que parece, na verdade, é que estão querendo diminuir o conteúdo curricular para que os estudantes possam tirar melho res notas no Enem e, por conseguinte, parecer que a educação brasileira melhorou. Mas não melhorou, pelo contrário, ainda mais com o ministro da Educação que temos. Sempre a falar disparates, absurdos, preconceitos, asneiras. A mais recente foi dizer que o "inclusivismo" é uma coisa em que a crian-
ça especial não aprende e "atrapalhava" a aprendizagem das outras, que eles não deveriam estudar com os “normais”. O que esperar com um “ministro” assim? Como é possível termos ministros desse nível de burrice? A mudança atual no Ensino Médio é a adoção de um currículo profissionalizante, onde os estudantes poderão escolher as disciplinas conforme a profissão que escolhem. Tomara que não seja um tiro pelo culatra, como já foram outras “ reformas” feitas pelo nosso famigerado go-
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verno. A verdade é que, com o ensino deficiente, a qualificação para o trabalho e para o ensino superior estará prejudicada, como um ministro da educação de antes da era Bolsonaro conseguiu enxergar. E como isso é uma bola de neve, a formação de professores, como de outros profissionais, também não terá a qualidade desejada, pois o ensino superior é a última etapa da cadeia educacional. E continuaremos a ter profissionais “ m e i a - b o c a ”, i n competentes saindo de nossas universidades.
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DESENCONTROS Selma Franzoi Ayala – Jaraguá do Sul, SC
A esperança do olhar de carinho hoje. A aula, a canção, a espera do momento, do encontro… Não! Não para a vida, para a dor da saudade, da falta de você, hoje. A loucura da paixão, do amor… A sala vazia, fria, ninguém além da saudade, a falta na vida de outra vida, a canção… As palavras sem tradução, o som sem som, que angústia! Por que você faltou?
PRESENÇA Mario Quintana
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas, teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento das horas ponha um frêmito em teus cabelos… É preciso que a tua ausência trescale sutilmente, no ar, a trevo machucado, as folhas de alecrim desde há muito guardadas não se sabe por quem nalgum móvel antigo… Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela e respirar-te, azul e luminosa, no ar. É preciso a saudade para eu sentir como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida… Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista que nunca te pareces com o teu retrato… E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
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VERSO & PROSA
TAMARA ZIMMERMANN FONSECA
Amizades nasceram ao som do samba, rock, chorinho. O chope gelado, os petiscos, os encontros depois do trabalho, Uma terapia verdadeira! Quantas lembranças desse tempo juvenil! Os anos passaram, hoje já não sou tão jovem Mas trago a alegria da juventude dentro de mim Porque a vida, ah, meus amigos A vida é encantadora E o mundo é alegre, sonoro, ritmado, gostoso, colorido e muito divertido! Vem, vamos dançar! Nada de ficar somente na janela observando, julgando, deixando a vida passar sem saboreá-la!
O que esses delinquentes fazem ali? Essa era a pergunta que ecoava dentro do ônibus elétrico dos recatados senhores e senhoras, ao passarem pela Avenida Cruzeiro do Sul ao avistarem os jovens reunidos na transversal e animada Rua Duarte de Azevedo, na zona norte de São Paulo, lá nos anos oitenta. Onde lado a lado havia bares para todos os gostos. Ora, meus senhores... Nós estávamos apenas conhecendo o mundo! E que mundo divertido! E que mundo alegre! E que mundo sonoro! E que mundo ritmado! E que mundo gostoso! Embalados pela música ao vivo no famoso Verso & Prosa, dançávamos noite adentro!
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ENTRE NA FARRA
PEDAÇOS DE MIM
Rosangela Borges Wiemes – México
Aracely Braz
Resolvi libertar as pedras que tanto guardei: Elas rolaram, rolaram E sumiram na rampa da solidão. Espargi as cinzas do passado, De hoje, do amanhã, de sempre. Elas subiram, voltaram, Ofuscaram os ares e a minha visão. Desatei meus lenços Vermelhos, verdes, brancos, Azuis da cor do céu, O meu céu, meu existir. Espalhei flores multicores, Flores do ocaso, do amanhecer, O compasso dos meus passos, meu viver. Dispersei meu versos. Eram, enfim, as pedras, as cinzas, Os lenços e as flores. E com eles, alegria, paixão e ilusão, O crepúsculo, o amanhecer, A natureza, a saudade, a flor. Essa difusão se fez amor, Esse amor, que desfio sem preconceitos Do ontem, do hoje, do amanhã, De Sempre…
Me dê seu alerta Me faça princesa Me chame pra festa Esqueça o perigo Me mande um recado Enfrente o abismo Repita o começo: Calor, doce desejo… Me mostre o pecado Me faça bebida Mate a sua sede Tente a recaída Me beije a boca Me chame de louca: Atração, libido, farsa… Entre na farra Durma em meus braços Destrua os pedaços Segure minha barra Fale depois Lembre de tudo E esqueça de nós… 52
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É ASSIM!
Eloah Westphalen Naschenweng – Florianópolis, SC
É assim, esse sopro de poesia que escorrega no meu peito!
constantemente, na solidão e na saudade entrecortada de sons, rimas e poesia.
É breve, como o vento, que chega e aconchega-se com paixão e compaixão, deixando o coração falar...
É magia entre as palavras soltas, é a ponte que une esse poder cristalino e atravessa os sentidos; o vento não a desfaz, porque o poema que nasce pode ser símbolo da esperança, firmado na alma do eterno poeta.
Encontra espaços nos pensamentos e a cor da alegria, se faz beijo de luz, levando o desejo e o afago no rio revolto do viver. Palavras silenciosas, correm e ganham voz, tal qual berço colorido de embalar. O vento traz a brisa, o perfume do alecrim, o abraço da saudade e o canto por trás do pranto. É assim, a ocasião especial, um breve renascer para lembrar brandura, afeto e ternura, porque o tempo voa e não retorna, só vai... É leveza, antes de ser sonho. É suave dança, vestígio do infinito a deslizar, 53
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DESABRACADABRA
RÉGIO
Jacqueline Bulos Aisenman - Portugal
Mia Couto
Desbravando caminhos desfazendo e tecendo ninhos. Desbravadora derrubando as árvores sacudindo os medos vencendo segredos ditadora! Cada estrada aberta Uma porta fecha Abre o passo incerta Parte e se interessa... Transamazônica ilusória e militar Guerra transgênica eufórica, instava! Cada trecho um inimigo Cada inimigo um espinho Cada espinho uma porta Cada porta uma batida Cada batida uma dor. Acabou. Não tem mais. Não tem mágica. Mais que nada. Se acaba. Acaba. Abra. Cada . Dá. Abra. Dá... Desacabradou.
Saio de mim para quem sou e jamais chego ao destino. No caminho do ser meu gozo é me perder. Meu coração só tem morada onde se acende um outro peito. Meu anjo está cego, meu poeta está mudo, meu guru ficou amnésico. O poeta sabia que não ia por ali. Eu vou por onde não sei. Meu aqui é sempre além. 54
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REINAUGURADO O MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
Português – a única língua que tem a palavra SAUDADE. Nos lares de Goa, na Índia, ou Macao, nas escolas do Timor Leste, nas ruas de Angola e Moçambique, nas praias do Brasil e em tantos outros lugares ressoa a cadência — por vezes mais aberta, em outras, mais anasalada — do português, uma das poucas línguas do mundo que é oficial em algum país de quase todos os continentes, com exceção da Antártida e Oceania. Não à toa, o documentarista Victor Lopes abre seu filme Língua: vidas em português (2001) com a seguinte constatação poética: “Todas as noites, 260 milhões de pessoas sonham em
português”. Essa vasta e diversa comunidade de lusófonos está contemplada no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo que finalmente reabre as portas neste fim de semana depois de ficar fechado desde 2015, quando um incêndio destruiu parte de sua estrutura. Uma reabertura que traz esperança na sobrevivência do patrimônio cultural brasileiro dias depois de que as chamas ameaçaram outro precioso acervo do país, o da Cinemateca Brasileira. Pensado como um espaço interativo para todos os públicos, especialmente em um país desigual como poucos, o Museu pretende estimular os visitantes a refletir so55
bre algo tão cotidiano quanto o idioma, conforme explica a curadora Isa Grinspum, responsável pela coleção permanente da instituição. “O Museu quer trazer a complexidade e a riqueza da língua que falamos todos os dias. Os brasileiros têm um complexo de inferioridade histórico, gigante, que nos leva a crer que somos menos devido a nossa formação de Portugal, de África, de origem indígena... E é o contrário. É a singularidade desses encontros que só nós tivemos que produziu coisas maravilhosas na literatura, na música, no cinema, no dia a dia”, comentava Grinspum dias antes da reinauguração. O Museu da Língua Portuguesa localiza-se em um belo edifício no coração do degradado centro de São Paulo: a Estação da Luz, um dos primeiros lugares onde escutavam a sonoridade do português
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os imigrantes que o Brasil atraiu da Europa ou da Ásia para substituir a força de trabalho dos africanos escravizados e, num esforço político racista e higienista, embranquecer a população. Com a restauração do prédio, uma passarela conecta diretamente o saguão da estação com o Museu, permitindo que os milhares de trabalhadores que todos os dias passam por ali possam fruir, mesmo que por poucos minutos, de um pedaço do que a instituição tem a oferecer. Ao lado de mapas interativos que reconstroem e ilustram a origem do português e as relações de parentesco indo-europeias que foram seu berço, junto com outras famílias linguísticas, vários painéis mostram frag-
mentos de textos acadêmicos e populares, poemas, anúncios, provérbios etc. Com o objetivo de documentar a imensa variedade regional e sociocultural do português brasileiro, os gestores do museu enviaram emissários por todo o país para coletar quase 200 sotaques, testemunhos em vídeo retratados e reproduzidos em tamanho natural. Lá estão os indígenas de diferentes etnias da Amazônia, o pastor evangélico, a mãe de santo do Candomblé, o pipoqueiro de alguma cidade interiorana do Sul, a professora, o estudante, a prostituta. “Absolutamente todos os brasileiros são autores de sua língua”, ressalta a curadora do Museu da Língua Portuguesa, propondo a 56
eliminação das hierarquias em um país onde a desigualdade, em todos os níveis, é onipresente. A ideia é que qualquer visitante encontre seu próprio português refletido na instituição cultural, que foi criada em 2006 pelo Governo de São Paulo em parceria com a Fundação Roberto Marinho. Depois de 6 anos fechado, o Museu da Língua Portuguesa reabriu suas portas para o público a partir de julho.
LÍNGUA VIVA
Foi o escritor Mia Couto quem disse que o português é um idioma que tem a capacidade de modificar seu próprio corpo. Assim como o objeto sobre o qual se debruça, o Museu da Língua Portuguesa também tem a vocação de ser uma entidade viva, que se atualiza à medida em que surgem novos sotaques, vocabulários e neologismos. Quando o fogo forçou o fechamento de suas portas, os debates so-
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bre a linguagem de gênero neutro começavam a ganhar terreno no Brasil. Hoje, todas, todos têm sua forma de falar, escrever e criar refletidas na instituição. Junto com o tupinambá (idioma da etnia homônima) e outras das mais de 180 línguas indígenas ainda vivas no país, também está presente, em formato palavra e som, o pajubá, um dialeto da comunidade LGBTQIA+ — falado principalmente por mulheres trans —, que se mescla ao idioma luso com vocabulário iorubá para criar parte da identidade cultural de uma população que vive constantemente sob ameaça. Embora o idioma se atualize graças à criatividade de seus falantes, o que o torna,
inclusive, uma arma de resistência, o português como identidade comum em um território tão vasto como o brasileiro foi forjado “a ferro e fogo”, explica Grinspum. “Os jesuítas pegaram o tupi, que se falava no litoral, e a partir dele, para facilitar a colonização, criaram a chamada língua indígena geral, que é falada até hoje em alguns cantos da Amazônia”. Essa língua é conhecida como nheengatu e pode ser ouvida também em regiões fronteiriças da Colômbia e a Venezuela. Foi esse processo de imposição violenta da língua que deu origem a um português diferente do falado na
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velha metrópole. Um português abrasileirado que, inclusive, soa mais amigável aos ouvidos estrangeiros. A curadora do Museu da Língua Portuguesa atribui essa maior facilidade de compreensão ao legado dos africanos escravizados trazidos à força a este lado do Atlântico: “É devido à influência das línguas africanas, especialmente o banto, que são mais vocais, de vogal aberta e (pronúncia) mais lenta”. E assim, finalmente o Brasil pode pôr fim à saudade ―palavra tão nossa, tão única do idioma― do espaço dedicado exclusivamente a manter vivas todas as formas de se falar português.
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TRABALHO DE POETA
POEMA 1
Manoel de Barros
Teresinka Pereira - USA
As coisas tinham para nos uma desutilidade poética. Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber. As gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras. O truque era só virar bocó. Como dizer: Eu pendurei um bem-te-vi no sol… O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado. O que nosso avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios. Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado? As distâncias somavam a gente para menos. O pai campeava campeava. A mãe fazia velas. Meu irmão cangava sapos. Bugrinha batia com uma vara no corpo do sapo e ele virava uma pedra. Fazia de conta? Ela era acrescentada de garças concluídas.
Estou em uma selva de nervos. Dizem que o estresse vem do trabalho excessivo, vem de dormir a manhã inteira e de levantar-me ao meio dia descansada e triunfante para viver a palavra que se detém em outros lábios. Mas, não. O trabalho do poeta embora seja como um poço sem fundo, é também como um tango bem ou mal cantado que padece nos círculos espaciais. Minha dor não vem do trabalho: ao contrário, meu trabalho vem da dor, do verso de pedra que faz explodir o horror enquanto espero a vida começar outra vez. 58
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A RETOMADA DE EVENTOS LITERÁRIOS
Está chegando a hora de retomar os eventos literários presenciais? A pandemia de covid-19 é, talvez, o fato de maior impacto sobre a civilização desde a Segunda Guerra Mundial. Seus efeitos ainda irão perdurar por muitos anos depois de o ciclo do coronavírus e suas variantes estarem encerrados. Além dos mais de 4 milhões de mortos no mundo até agora (mais de meio milhão deles no Brasil), as consequências para a saúde física e mental das pessoas já começam a ser percebidas: seja nas sequelas sobre os organismos infectados que se recuperaram da doença, seja no
comportamento coletivo. No mundo inteiro, as populações dão sinais de sentir o golpe do período prolongado de mudanças no cotidiano. Isso afeta todas as esferas da vida a partir de privações e restrições de cunho social, cultural ou econômico. O sequestro do que chamávamos “normalidade” não foi facilmente compensado pelo “novo normal”, expressão alugada para trazer alguma sensação de conforto à turbulência que ainda estamos atravessando. E precisamos atravessar. Empreender esforços antes inimagináveis, porque incorporados implici59
tamente a uma rotina considerada inquebrável e acima de qualquer perigo. Na verdade, sequer julgávamos esforço a menor interação com os outros, o passo elementar de aproximação necessário para traduzir a iniciativa em realização. Agora, tudo é difícil e requer disposição em dobro. Embora a imunização com as vacinas em uso venha cumprindo razoavelmente a promessa de proteção, inclusive contra as cepas diferentes da mesma peste, a insegurança e o medo pairam no ar feito vírus paralisante. E para piorar, a pandemia gerou uma espécie de julgamento moral subliminar que parece nos obrigar a uma tristeza resignada, ao recolhimento compulsório e à negação de valores positivos que sempre nos empurraram para frente. De repente, es-
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ses sentimentos nos lançam à beira de um abismo de dúvidas e neuroses. Vale reproduzir um trecho do astuto observador Julián Fuks, em mais uma manifestação recente de lucidez: “Durante toda a pandemia, ou desde antes, nestes anos trágicos do nosso país, a alegria tem sido um ato envergonhado, um privilégio que nos concedemos por um instante, antes de nos desculparmos. Tem sido sempre uma alegria vigiada, pelos outros, ou pelo outro que guardamos dentro de nós. Para muitos, a alegria alheia se fez inseparável do risco: vejam só como estão felizes, como estão embriagados de prazer, como podem sucumbir a qual-
quer m omento à imprudência, à irresponsabilidade, à indiferença? E então, depois de anos em que tínhamos de cumprir o imperativo de ser felizes, agora estamos obrigados a ser tristes, a calar ou usar a nossa voz apenas para a indignação e o lamento”. Esse texto, escrito pelo premiado autor de A resistência, foi publicado em sua coluna recentemente Não fazemos a menor ideia do que Julián Fuks pensa a essa altura a respeito da volta dos eventos literários, e tão pouco o invocamos a propósito da defesa aqui esboçada. Mas, tomamos a liberdade de tomar sua provocação como válida para a reflexão de que não podemos nos que60
dar prostrados à melancólica condição de espectadores de nossa própria depressão. Se a prudência é o imperativo deste momento da história, também havemos de focar naquilo que nos faz humanos – sem cedermos à vertigem do abismo, mirando um dia de conquista a cada vez, na medida do bom senso, mas sem o abandono do ímpeto de ir adiante. Os Jogos Olímpicos de Tóquio foram um claro exemplo de que é possível avançar, apesar dos cuidados. Mesmo em arenas vazias, longe do contato direto com o público, milhares de atletas de todo o planeta mostraram porque é preciso continuar nadando, remando, saltando, sacando, chutando. E muito mais importante – sorrindo, chorando, abraçando e beijando quem pudermos, sem abdicar dos protocolos de humanidade. A mensagem das
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Julián Fuks
Olimpíadas foi uma chama de esperança e otimismo, na direção da convivência entre os povos, definindo o distanciamento como a contingência que desejamos e vamos superar. As perdas econômicas em decorrência das restrições impostas pela pandemia são variadas e conhecidas. No mercado editorial, inclusive. O segmento de eventos literários experimenta um hiato que tem custado o trabalho de muita gente, e afastado o apaixonado público leitor de autores, editores e outros profissionais do livro. Se a leitura pode ser um mergulho interior e solitário, os
encontros proporcionados por eventos literários, de qualquer porte, de clubes e cursos presenciais até os festivais e feiras de alcance regional, representam oportunidades de congregação em torno da literatura. O compartilhamento de leituras e a vivência que esses encontros suscitam fazem falta. Será que está na hora de voltarmos com os grandes eventos literários com a presença do público? Com r e s p o n s a b i l i d a d e, sem desatinos, sim. Temos condições de usar os protocolos de segurança sanitária estabelecidos, e contar com o comportamento do público para o cumprimento des61
ses protocolos. Porque precisamos continuar a nadar, a conversar, a ler. Juntos. O avanço da imunização e a redução das mortes no País são fatos que permitem próximos passos, embora as novas cepas preocupem. E um deles deve ser o retorno do magnífico estímulo à disseminação da consciência crítica que os grandes eventos literários são capazes de levar a milhares de brasileiros – sobretudo num quadrante da história nacional em que a ampliação de horizontes é indispensável.
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MELODIA E LETRA
PRESSÁGIO
Fernando Pessoa
Pierre Aderne – Portugal
Eu tenho aqui do meu lado uma letra E de presente eu pedi melodia Já que não há tinta na caneta Que dê pra pintar minha alegria Eu tenho aqui um poema pequeno Que não conhece espinho ou veneno Que ainda nem sabe andar nem voar Só sabe chorar Quando não quer mais viajar Por terra ou por mar Melodia e letra Mão e violão Letra e melodia Céu e chão
O amor, quando se revela, Não se sabe revelar. Sabe bem olhar p’ra ela, Mas não lhe sabe falar. Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente… Cala: parece esquecer… Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe bastasse P’ra saber que a estão a amar! Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem fala, Fica só, inteiramente! Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar…
Eu tenho aqui um versinho escrito Que em céu de chuva Faz um dia bonito Que olha pra mim pensando em ti E me faz esquecer de tentar te esquecer Melodia e letra Mão e violão Letra e melodia Céu e chão
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O PÉ DE COUVE
(In memoriam ao meu pai Rodolfo)
EDLTRAUD ZIMMERMANN FONSECA
- Então seu pai tinha um pé de couve com três metros de altura? Olhei espantada para o lado, onde Dulce, cabeça baixa, carimbava a palavra “PAGO”, numa pilha de mais de quatrocentos cheques que vieram pela compensação, naquela manhã. - O q u e? Fa l o u comigo? - É claro! Do pé de couve do teu pai! Três metros! Continuei surpresa, não podia acreditar no que eu ouvia. Aquilo era uma das muitas lembranças carinhosas que eu tinha do meu pai. Eu quase não conhecia Dulce, pois
fazia pouco tempo que trabalhávamos juntas e, mesmo assim, pouquíssimo tempo pois eu era caixa executiva e ela subchefe da tes o ura r ia . Fi c áva mos juntas apenas no período que antecedia a abertura do Banco. - Credo, Dulce como é que você sabe disso? - Sabendo, ué! Faça-me o favor! TRES METROS!!! - Parei de contar o dinheiro que estava fechando e olhei para ela curiosa. Seu perfil lembrava - m e a es fin g e de Nefertite, a rainha do Egito, da XVIII Dinastia, com o seu porte elegante, pescoço delgado e esguio, tez pálida, lábios carnudos alongados por um sorriso alegre e zombeteiro; mais zombeteiro do que alegre. No conjunto, uma mulher com feições calmas e tranquilas, até que 63
pisasse o seu calo, aí virava fera, isso ela mesmo dizia, porque eu até então a vira realmente sem aquele tom galhofeiro! Dulce continuava carimbando os cheques com uma rapidez incrível, provocando até um som agradável pelo ritmo que emitia, rindo baixinho antegozando a minha surpresa. - Já sei, foi a Dolores! - Hum, hum, respondeu sem erguer a cabeça. - Correção: o pé de couve do meu pai, não tinha apenas três míseros metros e sim três metros e oitenta centímetros! Dolores está mal informada! E vou provar: Tenho uma foto do velho com a mão no pé de couve, era tão alto que as folhas não saíram na foto. ... Dulce parou seu trabalho, apoiou a testa sobre as mãos
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em concha e soltou o riso gostosamente! - De qualquer forma, a brincadeira que fez projetou-me para os meus vinte anos, idade em que as esperanças estão ainda inteiras como as ilusões e quando estávamos todos partilhando a mesma mesa! Toda a sua vida meu pai fora um homem trabalhador, simples e sem vaidade. Ainda na velhice conseguia reunir um grande número de jovens que o admiravam desde a mais tenra idade no po rão de nossa casa de madeira rústica, onde os divertia toda uma noite com estórias incríveis e engraçadas. As gargalhadas de seus ouvintes ecoavam na noite e se perdiam a distância. A vizinhança sabia que o velho Rodolfo divertia os amigos. Não há, por toda a
cidade onde viveu, alguém que não tenha dele a lembrança de um homem trabalhador e alegre. Sua memória está viva entre os que o conheceram e amaram e sempre que pensamos nele é com o sorriso de saudades muito grande. Suas façanhas quase absurdas farão durante muitos anos pessoas sorrirem, mesmo que descrentes como Dulce naque-
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le momento. “Era tão grande, minha filha, que tua mãe para colher as folhas precisava subir numa escada de pintor, aquela ali, olha!” A lembrança do meu pai e do seu enorme e fantástico pé de couve deixou-me alegre o dia todo, parecia senti-lo ao meu lado. E a certa altura do dia lhe disse: - Viu pai, no que me meteu?
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COM AS LETRAS DO MEU NOME (I) Maura Soares – Florianópolis, SC
Com as letras do meu nome escrevo RUA dos sem-teto das prostitutas dos bêbados dos desocupados dos perdidos dos mal-amados mas, também, dos que protestam dos que trabalham dos que riem dos que dançam dos que passeiam
dos que plantam dos que estudam dos que namoram dos que amam RUA lugar de ir e vir de sorrir de bendizer e, sobretudo, de reunir para louvar, na procissão, o bendito nome do SENHOR. (14.10.2007)
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O ASSALTO
Conto de Luiz Carlos Amorim – São José, SC
Naquela noite, Marta colocou as crianças na cama e foi para o seu quarto mais cedo. Chegara em casa cansada do serviço, ajudara a empregada a fazer o jantar e a dispensara. Em momentos como aquele, sentia a grande responsabilidade de criar sozinha os dois filhos. Não podia dar-lhes mais assistência, conviver mais com eles, porque seu trabalho tomava o dia todo e, à noite, eles dormiam cedo. Só tinha os finais de semana para ficar com eles, praticamente. E surgiam os problemas domésticos, como o que começava a preocupá-la: o contrato do aluguel da casa onde estavam morando estava para vencer e o
proprietário a estava pressionando para que mudasse imediatamente. No entanto, decidira ficar até que o contrato terminasse. Iria procurar com calma outro local para morar. Foi até o quarto das crianças – elas já estavam dormindo – deu um beijo em cada uma. Demorou-se acariciando os cabe-
los de Robertinho, o mais velho, e sorriu, ao lembrar do desenho que ele fizera dela, no jardim, a primeira coisa que lhe mostrou ao chegar em casa. Voltou ao seu quarto, deitou-se e logo dormiu, apesar de tudo. Acordou, no meio da noite, assustada, com alguém em sua cama, a descobri-la. No primeiro momento, pensou que fosse um dos 66
filhos, mas o vulto era grande e assim que a viu acordar, levou as mãos ao seu pescoço e apertou, tentando evitar que gritasse. Marta debateu-se até conseguir afrouxar aquelas mãos e gritar por socorro. Aos seus gritos, o homem soltou-a e saiu correndo. Ela foi atrás, mas ele já tinha sumido pelos fundos. Marta foi, assim como estava, de camisola, até a varanda e gritou novamente por socorro, o mais alto que pôde, ao que acorreram alguns vizinhos. - O que foi que aconteceu? – perguntou o vizinho da casa ao lado, ainda vestindo a camisa. - Um homem entrou em minha casa, não entendi ainda se era ladrão ou se pretendia me violentar. Acordei com ele em minha cama... - Não roubou nada? – perguntou outra vizinha. - Não, ele saiu correndo assim que eu con-
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segui gritar. A polícia chegou. Um dos vizinhos havia telefonado, chamando-a. Marta contou como tudo acontecera. Os policiais entraram e foram verificar a janela arrombada, por onde o assaltante tinha entrado. Verificaram, também, que o dinheiro que havia na bolsa de Marta tinha sumido e a chave do carro, com outros objetos de valor, tinham sido separados e esquecidos em cima da mesa. Pediram que Marta comparecesse, no dia seguinte, à delegacia, para formalizar a queixa. Todos foram embora e Marta fechou a casa. Foi olhar os filhos que tinham acordado com todo o barulho, foram amparados por uma vizinha e estavam na cama. Sabia que não ia conseguir dormir mais. Sentou-se na cama e baixou os olhos para as mãos. Surpreendeu-se ao ver que suas unhas estava cheias
de pele do assaltante. Tudo acontecera muito rapidamente e agora procurava avaliar o que se passara: o homem não roubara nada, a não ser o dinheiro que tinha na bolsa. E se fosse realmente ladrão, não a teria acordado; teria levado o que pudesse, fazendo o mínimo possível de ruído. Um maníaco sexual? Não teria desistido tão
fácil... Deitou-se, mas não conciliou o sono. Admirava-se da sua reação corajosa e determinada diante de uma situação inesperada e repentina. Teve medo, sim, mas em apenas supondo o que acontecera, imaginar-se-ia desmaiando as67
sim que acordasse. Pela manhã, levou os filhos para a casa dos pais e foi procurar outra casa. Ficou com a primeira que encontrou. Quando voltou, mais tarde, para fazer a mudança, admirou-se ao ver um caminhão descarregando tijolos em frente da casa. Começou a entender: nada fora por acaso. Na verdade, ela fora obrigada a deixar a casa. Não havia dado muita importância quando o dono da casa lhe dissera que queria a casa desocupada porque ia demoli-la para construir um edifício. Mas estava parecendo que era verdade, para chegar àquele extremo. A polícia não conseguiu prender o assaltante e ninguém poderia provar que o proprietário da casa fora o mandante. Marta está morando no outro lado da cidade e o primeiro edifício do seu antigo bairro está sendo erguido...
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NO PÉ DA JANELA
Hilda Chiquetti Baumann – Ibirama, SC
Andei pela vida – vazia
macia, gentilmente me abismou
de sabedoria
mas me encantou
Eu não sabia o que era aquilo
sentia uma fome enorme
Antes tudo era natureza pura
Eu não conhecia a beleza
agora, livros, telas, o piano
feita com arte, até que
em mim a arte despertou
por uma porta entreaberta
Decodificando minha infância inteira
outro mundo pude ver
pela fresta, plim... plim
dum piano, meu coração disparou
a alma clareou
e eu, no pé da janela
me arrebatou – embora
O poema, que o rádio recitou me atingindo em cheio
Depois uma parede
não tivesse ideia
meu olhar se deslumbrou
era formidável a fome que tinha
Me feriu, como uma pancada forte
Descobrir aos poucos me saciou.
uma gravura, uma reprodução
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A ALVORADA DE ÂNGELA
Sônia Pillon – Jaraguá do Sul, SC
Não saberia dizer precisamente que ano foi. Faz tanto tempo que a conheci! Só sei que foi no início dos anos de 1920. Eu era jovem, na “flor da idade”, como se dizia naquela época. Devia ter uns 16 anos, não mais do que isso. Nossas famílias eram vizinhas, descendentes de italianos. Eles também cultivavam grandes parreirais de uvas e produziam o próprio vinho, esmagando as uvas com os pés, como nós. Plantavam de tudo um pouco, tinham uns poucos cavalos, algumas vacas e aves. A dona da casa se c hamava  n gela , que mais tarde vim
a saber que o nome era originário do grego e que entre outras coisas queria dizer “anjo, mensageira, pessoa bondosa, que quer manter um clima de harmonia no lar, leal com as pessoas que a rodeiam”. Analisando o jeito dela, diria que não poderia ter um nome melhor. Casada e com 10 filhos pequenos para criar (uma verdadeira ‘escadinha’), Ângela há muito havia deixado a vaidade de lado. Pouco a pouco, o viço da juventude deu lugar a uma expressão cansada e vincos profundos na face. E o olhar, sério,
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demonstrava a preocupação para que a família estivesse sempre assistida. Ângela levantava de madrugada para ordenhar a vaca e tirar o leite, que era servido ainda morno para as crianças. Levantava antes mesmo do marido e de qualquer um dos filhos, que precisavam andar quilômetros para frequentar a escola rural mais próxima. Quando voltavam, famintos, a ‘bóia’ já estava à espera, naquela mesa rústica de madeira, onde não faltava a bela polenta e as delícias vindas diretamente da horta. O serviço da casa e a lida na roça pesavam, mas ela nunca se queixava. Me perguntava se ela chorava sozinha, nos momentos em que a carga se tornava pesada demais. Se ela chorou, foi escondido, nunca vi. É a minha obrigação de mulher, pensava
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ela, enquanto soltava um suspiro. Não se revoltava com a situação, procurava fazer o melhor possível. Com um misto de conformismo e determinação, Ângela passava os dias. E assim os filhos foram crescendo e depois cada um deles tomou seu rumo na vida. Uns optaram por continuar ligados à terra, seguindo a trajetória dos imigrantes. Outros decidiram mudar para outras cidades e outros ainda romperam as fronteiras rio-grandenses. Queriam seguir com os estudos, ter uma vida menos sacrificada, usufruir dos recursos e das facilidades da cidade grande. Com a experiência que tinha em relação à vida e às responsabilidades com a casa e a família, ela me ajudou bastante, solícita e sempre com uma palavra de incentivo. Éramos
grandes amigas. Certa vez, quando fui visitá-la, ela me recebeu na cozinha com um olhar triste. Disse que não precisava mais servir o leite ainda quente, tirado da vaca, ouvir a agitação na grande mesa, nem precisava mais ralhar com os filhos, como fazia quando havia algazarra durante as refeições. Naquele dia, me confessou que sentiu saudade daqueles tempos. Mas nona Ângela, como a chamavam os netos, era de poucas pala-
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vras. Agia mais do que falava. Guardava os sentimentos para ela mesma. Uma noite tive um sonho estranho. Sonhei que vi minha amiga bem jovem, vestida como uma rainha, sorriso no rosto, dançando e cantarolando quando a alvorada despontou e os raios solares invadiram o campo. Quando acordei, fiquei intrigada. Pouco depois, soube que Ângela havia partido. Tinha cumprido a missão. Se foi com a certeza do dever cumprido.
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FOLHAS DE OUTONO
Lorena Zago – Presidente Getúlio, SC
renovação. Nobreza e alicerce é o seu legado Aos seres e ao planeta, com especial consideração. Ser reverenciada é a sua conquista Com a mais altaneira canção. A cada estação, uma nova versão, À natureza exala sintonias, Dos seres e universo, em harmonia. Corrobora com o equilíbrio, Nasce a esperança, traduz confiança. As folhas de outono, preciosas, estendem Ao macro e ao micro universo, solidez, Singelas, decoram as praças, os caminhos e as estações, Movem com graça e leveza, as emoções.
Outono... A natureza veste-se de cores exuberantes, Árvores colorem-se de ocre, amarelo, vermelho e marrom. Suas folhas desprendem-se vagarosas, Decoram o contexto, espalhadas pelo chão. Em cada folha uma história, Dos brotos à fase adulta, Ao planeta constituem alicerce e transformação, Aos seres, benefício, sombra e oxigenação. Celebram a vida no período que lhe foi conferido, Do desabrochar, à desintegração. Testemunha de alegrias, encanto, descanso, Tristeza, consolo e superação. Contribui com a metamorfose, Transmuta-se em elemento de
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LITERARTE NOITE DAS LETRAS No dia 21 de junho aconteceu mais uma edição da NOITE DAS LETRAS, live mensal reunindo virtualmente uma plêiade de escritores para falar de literatura. Promovida pela Academia de Letras dos Militares de Santa Catarina, o evento entrevistou três convidados, entre eles o editor das Edições A ILHA que pu-
blicam esta revista, Luiz Carlos Amorim. O tema foi A Interação da Arte e da Literatura em Nosso
Tempo. Uma audiência espetacular, inclusive com escritores do Grupo Literário A ILHA.
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