DIÁLOGOS E CAMINHOS DA EDUCAÇÃO INTEGRAL EM TEMPO INTEGRAL NO ENSINO FUNDAMENTAL : REGISTRO METODOLÓGICO
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Curitiba 2016
Diálogos e caminhos da educação integral em tempo integral no ensino fundamental: registro metodológico
Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central
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Diálogos e caminhos da educação integral em tempo integral no ensino D536 fundamental : registro metodológico / organização Rede Marista de 2016 Solidariedade. – Curitiba : Champagnat, 2016. 189 p. Vários autores Inclui bibliografias ISBN 978-85-7292-393-4 1. Ensino fundamental. 2. Educação integral. 3. Aprendizagem. I. Rede Marista de Solidariedade. CDD 20. ed. – 372
DIÁLOGOS E CAMINHOS DA EDUCAÇÃO INTEGRAL EM TEMPO INTEGRAL NO ENSINO FUNDAMENTAL: REGISTRO METODOLÓGICO Iniciativa da Rede Marista de Solidariedade Concepção e Coordenação Técnica: Diretoria Executiva de Ação Social (DEAS) Direção Executiva: Irmão Franki Kleberson Kucher Gerência Educacional: Viviane Aparecida da Silva Gerência de Planejamento e Administração: Alessandra Maia Rosas Hovorusko Autores: Aline Mendes Vasco, Analuci Ferreira de Souza Baroni, Andrea Zocateli Guebur, Bruno Ribeiro da Costa, Carla Tosatto, Danyelle Stropa, Edson Luiz Mendes, Fráya da Cunha, Gillys Vieira da Silva, Gisele Maria Braciak, Júlio Cesar Gomes, Katia Regina Madeira, Marilusa Rossari, Nádia Fernanda Borges, Neuzita de Paula Soares, Paulo Fioravante Giareta, Raimunda Caldas, Suzi Mary Calixto, Thais Carolina Branco e Vilson Groh. Organização: Carla Cristina Tosatto e Paulo Fioravante Giareta Conselho Editorial: Aldo César Farias, Alessandra Maia Rosas Hovorusko, Ir. Antônio Quintiliano da Silva, Barbara Pimpão Ferreira, Carla Tosatto, Danielle Regina Barriquello, Luiz Augusto Martins Kleinmayer, Marcelo Manduca, Paulo Fioravante Giareta, Valeria de Freitas Pereira, Michele Marcos de Oliveira e Viviane Aparecida da Silva. Coordenação do projeto: Carla Cristina Tosatto Revisão de conteúdo: Carla Cristina Tosatto, Paulo Fioravante Giareta e Viviane Aparecida da Silva Revisão final: Elisabete Franczak Branco Projeto gráfico e diagramação: Deborah Naomi Kosaka Apoio Técnico: Aldo Farias, Andressa Galeb e Fernanda Soares – Diretoria de Marketing e Comunicação do Grupo Marista Fotos: Acervo das Unidades Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne e Centro Educacional Marista Ecológica www.solmarista.org.br
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO Paulo Fioravante Giareta
PARTE 1 – Diálogos conceituais Educação integral em tempo integral: pressupostos teórico-metodológicos Marilusa Rossari e Neuzita de Paula Soares Projeto Político-Pedagógico integrador Gillys Vieira da Silva, Marilusa Rossari e Paulo Fioravante Giareta
PARTE 2 – Diálogos e interações no currículo 6
Integrar tempos, espaços, saberes, culturas: construindo sentidos, tecendo aprendizagens Carla Tosatto e Fráya da Cunha Quando áreas, eixos e linguagens se integram: Projeto Ora Bolas Gisele Maria Braciak e Nádia Fernanda Borges Quando áreas, eixos e linguagens se integram: Projeto Despertar da Poesia Analuci Ferreira de Souza Baroni e Andrea Zocateli Guebur Quando áreas, eixos e linguagens se integram: Projeto Robótica Aline Mendes Vasco, Bruno Ribeiro da Costa e Gillys Vieira da Silva
PARTE 3 – Diálogos formativos: pelo direito de todos à aprendizagem A formação continuada como princípio integrador Fráya da Cunha e Gillys Vieira da Silva Comunidade educativa e sujeitos em formação: planejamento pedagógico coletivo como espaço de formação Raimunda Caldas e Danyelle Stropa
PARTE 4 – Diálogos com as práticas sociais Organização dos espaçotempos na perspectiva integradora Edson Luiz Mendes e Thais Carolina Branco Participação como direito: entre comissões, assembleias, comitês e conselhos Júlio Cesar Gomes e Suzi Mary Calixto Território: histórias, culturas e sujeitos Vilson Groh e Katia Regina Madeira
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INTRODUÇÃO Paulo Fioravante Giareta O debate sobre educação integral no sistema educacional brasileiro não é um movimento político e epistemológico novo. A busca por compreender sua expressão histórica nos remete ao início da década de 1930, quando o documento denominado “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” já propunha a necessidade de pensar uma escola que garantisse, além de um programa completo de leitura, escrita, aritmética e ciências físicas e sociais, um programa voltado ao desenho, música, dança e educação física, bem como os cuidados necessários com a saúde e alimentação das crianças.
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A primeira experiência de materialização dessa proposta se deu em 1950, com a criação do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, em Salvador, sobre a orientação de Anísio Teixeira, que propôs a organização das atividades tidas como escolares a partir da ideia de Escolas-Classe e um conjunto de outras atividades pela Escola-Parque. Essa proposta foi aprimorada e implementada também em Brasília a partir de 1960, quando Anísio Teixeira, agora na presidência do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), se une a Darcy Ribeiro, Cyro dos Anjos e outros educadores para dar forma ao chamado Plano Humano de Brasília, resultando na implementação de Escolas-Classe e Escola-Parque com capacidade de atendimento de até 30 mil pessoas.
Essas iniciativas vão desencadear, na década de 1980, a proposta organizada por Darcy Ribeiro, no estado do Rio de Janeiro, pela implementação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), que abrigava o que passou a ser denominada “Escola Integral em horário integral” e na própria experiência dos Centros Educacionais Unificados (CEUs), no município de São Paulo, entre os anos 2000 e 2004. As aludidas iniciativas passam a receber, progressivamente, contornos formais no disciplinamento legal do Estado brasileiro, especialmente no âmbito da legislação educacional. A Constituição Federal de 1988 inaugura esse disciplinamento garantindo em seu artigo 227 a educação como direito, reafirmado no artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, a partir do princípio da promoção do pleno desenvolvimento do educando e o seu preparo para o exercício da cidadania, bem como para a qualificação para o mundo do trabalho. A LDB, no artigo 34, § 2º, traz a prerrogativa da oferta do Ensino Fundamental – modalidade de ensino objeto deste trabalho – em tempo integral, ainda que de forma progressiva e a critério do sistema de ensino. Proposição assumida pelo PNE 2001-2010 (Lei nº 10.172/ 2001), que em sua meta II prevê um modelo de educação integral para a Educação Fundamental, inclusive indicando a ampliação da jornada escolar, que passa para sete horas diárias. O PNE 2014-2024 (Lei nº 13.005/2014) por sua vez, estabelece a modalidade de educação integral como meta a ser atingida em todo o país, prevendo, na meta 6, a oferta para no míni mo 50% das escolas públicas. Está no centro dessa proposta a articulação da escola com os mais diversos espaços educativos, culturais, esportivos e equipamentos públicos. Embora as referidas iniciativas e disciplinamentos legais bem caracterizem experiências e concepções de educação integral que vêm historicamente se firmando no contexto educacional brasileiro, convém reconhecer que esse não é um processo linear, mas fortemente marcado pela descontinuidade política e administrativa, emergindo a necessidade de
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contínua retomada e aprofundamento. É nesse contexto, e provocada pelas atuais exigências sociais, culturais e históricas demandadas à educação escolar, aqui representada pela oferta do Ensino Fundamental, que a Rede Marista de Solidariedade (RMS)1 se propõe a participar do debate e a sistematizar experiências a partir de leituras e práticas institucionalizadas. Não obstante, a pretensão aqui não repousa na intenção de apresentar experiências a serem transpostas formalmente em outras realidades, nem o esforço pela teorização sobre educação integral, e sim em fornecer um material com potencial de registro metodológico dos estudos em construção no âmbito da Rede sobre o alcance político e epistemológico de um projeto de formação integral, portanto que denote suas experiências práticas e sua concepção sobre o tema. Para tal propósito, a Rede assume o conceito de educação integral como processo que se dá ao longo de toda a vida e centrado na promoção das múltiplas dimensões do desenvolvimento humano, que no contexto educacional brasileiro deve afetar e conferir nova significação à estruturação modular e temporal do ensino escolar. Prerrogativa conceitual que demanda releitura das intencionalidades político-pedagógicas como aprofundamento dos processos colaborativos de gestão, ressignificação curricular, formação dos professores na perspectiva integradora, reinvenção formativa dos espaçotempos escolares e a integração da escola com o território.
A Rede Marista de Solidariedade (RMS) é responsável por um conjunto de iniciativas posicionadas à promoção e defesa de direitos das crianças e dos jovens, dentre eles o direito à educação de qualidade, pautada no desenvolvimento de um currículo com enfoque em direitos e no princípio da emancipação dos sujeitos e grupos. A RMS responde por um conjunto de 23 Unidades socioeducativas vinculadas aos Estados do Paraná, de São Paulo, de Santa Catarina, do Mato Grosso do Sul e ao Distrito Federal, a partir da oferta de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Serviço de Fortalecimento de Vínculos, atendendo diariamente em torno de 10 mil crianças. Responde, ainda, pela gestão de duas unidades de Proteção Social Especial: Estação Casa, com atendimento a crianças cujas mães estão em privação de liberdade; Propulsão, que acompanha adolescentes que fizeram uso abusivo de álcool e outras drogas; e o Projeto Trilhas, que incentiva a Economia Solidária.
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Assim, a Rede guarda a expectativa de incidir de forma qualificada sobre a política de ampliação do tempo de permanência dos estudantes no ambiente escolar – educação em tempo integral –, bem como sobre a expressão formativa do exercício escolar pela promoção cultural deles – educação integral. Essa expectativa é aqui traduzida a partir do registro meto dológico dos esforços de implementação prática de uma proposta de educação integral em duas Unidades Educacionais. A primeira, Unidade Educacional Marista Ecológica, acomodada oficialmente sob a nomenclatura de Escola Ecológica Marcelino Champagnat, centra suas atividades na Oferta do Ensino Fundamental II (6º ao 9º Ano). A Escola Ecológica está localizada no município de Almirante Tamandaré,2 precisamente na Rua Cinfrônio de Andrade, 200, Jardim do Norte. A Escola Ecológica Marcelino Champagnat, com 9.208 m2 de área construída, em um terreno de 83.146 m2, inaugurada no dia 12 de setembro de 1992, passa, a partir de 2007, a realizar suas atividades em tempo integral para todos os educandos na perspectiva de turno e contraturno, o que justifica, em 2010, a solicitação do reconhecimento de Escola de Educação Integral em Tempo Integral. Solicitação que, em 2011, motiva a incorporação da escola no GT – Grupo de Trabalho de Educação Integral da Rede Marista de Solidariedade, que já vinha desenvolvendo um estudo aprofundado acerca da temática. A incorporação da escola no GT implica sua indicação como projeto-piloto para o Estudo. Atualmente, caracteriza-se pelo atendimento de 300 educandos, com a ajuda de 60 colabo radores. O referido projeto-piloto passa a afetar outras unidades da RMS, aqui representadas pelo Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne, localizado na parte insular do Município de
Almirante Tamandaré, município da região metropolitana de Curitiba, com população de aproximadamente 103 mil habitantes, conforme dados do IBGE, dispõe de uma base econômica essencialmente agrícola e de extração mineral, via indústrias de cal e calcário.
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Florianópolis,3 em uma região da cidade denominada Maciço do Morro da Cruz, mais especificamente na Comunidade do Monte Serrat. O Centro Educacional está inserido em um contexto permeado por expressões das questões sociais que envolvem a comunidade, tais como desemprego, violência urbana, violência doméstica, famílias chefiadas por mulheres, envolvimento com o narcotráfico, questões estruturais de saneamento básico e precariedade nas condições de moradia. A aproximação mais efetiva do Centro Educacional Lucia Mayvorne à intencionalidade político-pedagógica da oferta de educação integral de tempo integral ocorreu no ano de 2013, quando passou a delinear a perspectiva de atender 250 educandos no Ensino Fundamental I, na modalidade integral, e mais 200 educandos no Ensino Fundamental II, mais 340 atendimentos na denominada Jornada Ampliada, com oferta de oficinas, tais como: robótica, iniciação científica, mídias e tecnologias, café com leitura, violão, percussão, e ainda o atendimento de 90 educandos do Ensino Médio. Vale destacar ainda que a proposta de educação integral em tempo integral centrada na oferta do Ensino Fundamental I acontece em dois prédios: Prédio I (localizado no Monte Serrat) e Prédio II (localizado no Alto da Caieira). A distância entre os dois espaços é de aproxi madamente 1 km, em um território cuja geografia é marcada por morros. Os educandos se deslocam diariamente em transporte financiado pela escola. A estrutura organizativa do Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne é constituída por uma Equipe Gestora, que compreende: direção institucional, direção, coordenador educacional, coordenadores pedagógicos, coordenador administrativo e assistentes sociais. Esses profissionais são responsáveis pelas equipes administrativa, pedagógica e social.
Segundo dados do IBGE/2010, Florianópolis possui população de 404.224 habitantes, distribuídos nos 433,317 km² de extensão da cidade, e sua economia é alicerçada principalmente no setor da tecnologia, responsável por mais de 45% do PIB no município. Outros setores importantes são o comércio, prestação de serviços, turismo e construção civil. O município, de acordo com a divisão territorial (IPUF/IBGE 2000), é dividido em área insular e área continental. A área insular é composta por 13 bairros e 11 distritos, e a área continental por 11 bairros.
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Esta obra, com o objetivo de registrar metodologicamente a experiência de imple mentação da educação integral em tempo integral no Ensino Fundamental da RMS, apresenta-se a partir da seguinte estruturação: inicialmente delineia os esforços quanto à construção dos espaços para o diálogo conceitual, buscando a definição e o aprofundamento da concepção assumida pela Rede sobre a oferta de educação integral; esforço que se materializa, na sequência, na explicitação do alcance dessa concepção em sua intencionalidade político-pedagógica (PPP), que implica a indicação dos processos de ressignificação curricular; a política de formação dos professores; as formas de gestão pedagógica dos espaçotempos educativos; e, por fim, a relação integradora entre a escola e o território. Vale indicar, ainda, a presença de alguns relatos de experiências desenvolvidos nas referidas escolas. Pontuando o alcance de genuína originalidade da obra, uma vez que se pauta no esforço de registro meto dológico/reflexivo da experiência em construção pela própria Rede, a partir da construção teórico-prática da oferta do Ensino Fundamental em suas unidades educacionais, indica-se oportuna a leitura.
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PARTe 1 D I Á LO G O S CO N C E I T UA I S
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Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico. Mikhail Bakhtin
Educação integral em tempo integral: pressupostos teórico-metodológicos
Marilusa Rossari Neuzita de Paula Soares O olhar sobre a educação integral vem ganhando espaço no atual contexto educacional brasileiro, quer na sua expressão como política pública, articulada pela prática de ampliação do tempo de permanência dos estudantes no ambiente/espaço escolar – educação em tempo integral –, que por sua expressão formativa, enquanto expectativa de qualificação da formação cultural dos educandos – educação integral. Este texto responde pela intencionalidade explícita da Rede Marista de Solidariedade (RMS) de participar e contribuir com o debate. Contudo, a contribuição não se traduz num esforço de teorização sobre educação integral, mas em fornecer um material que tenha potencial de registro metodológico/reflexivo dos estudos em construção no âmbito da Rede sobre o alcance político e epistemológico de um projeto de formação integral, bem como dos esforços de implementação prática de uma proposta de educação integral. É a partir desses objetivos que intencionamos traduzir os diálogos conceituais disparadores do posicionamento e práticas institucionais diante da consolidação de uma proposta de educação integral em tempo integral.
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Considerações conceituais A Rede parte do reconhecimento de que as discussões em torno do conceito de educação integral acompanham o processo de constituição social, política e histórica da educação brasileira. Contudo, antes de adentrar nessa expressão, contraditória e polissêmica, é importante clarificar alguns fundamentos e sobretudo situar, nesse campo conceitual complexo, a pers pectiva adotada pelo Projeto Educativo da Instituição Marista, amplamente disseminada em seus documentos institucionais. Essa perspectiva se traduz na compreensão de que uma educação se caracteriza como integral quando transpõe a ideia de modalidade educacional, e a mera adequação temporal, apresentando-se como processo ao longo de toda a vida e centrada na promoção das múlti plas dimensões do desenvolvimento humano. Assim, para entender a natureza e especificidade da educação, independentemente do espaço em que ocorra, faz-se necessário refletir sobre o próprio pressuposto de que o homem é um ser social, cuja natureza se define e se transforma à medida que as formas de produção e organização da vida vão se transformando. Assim, assumimos a leitura de que as transformações que ocorrem nas sociedades, em decorrência de um processo ininterrupto de criação de novas necessidades, impõem a tarefa de, a cada momento histórico, formar os homens para as novas possibilidades de viver. Esse esforço de formação dos indivíduos para um determinado modo de existir que a sociedade realiza constitui a educação.
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Nesse sentido, compreende-se que a educação consiste na apropriação social de toda a produção humana construída coletiva e historicamente no interior de determinadas relações sociais. Conforme define Brandão (2003, p. 11), a educação é um dos meios de que a humanidade se utiliza para criar um tipo de homem desejado, ou seja, “ajuda a pensar tipos de homens”. A educação é inerente às relações humanas e se dá em processos continuados de aprendizagem em todas as dimensões da vida, é um processo humanizante, social, político, ético, histórico e cultural.
A educação, como um processo de formação humana, pode ser vista de diferentes aspectos. Um deles se caracteriza pela vivência das experiências humanas, que se dá ao nível do conhecimento espontâneo; o outro se caracteriza pela intenção de ensinar por meio de um processo organizado sistematicamente. Então, a educação deve exercer a função social de levar os indivíduos à compreensão e possibilidade de intervenção na realidade, permitindo-lhes compreender sua própria existência e incorporar elementos que venham ao encontro da superação de suas necessidades. A educação ou a formação do homem, nessa perspectiva, é vista como um complexo e largo processo humano, prenhe de possibilidades contraditórias, posto que pode encaminhar comportamentos e/ou atitudes favoráveis à atualização das formas de trabalho, adjetivando esta atualização de progresso, sem levar em consideração que este progresso pode ser apenas o desenvolvimento natural da mesma ordem social. A educação, pois no interior de sua complexidade, nas mãos dos educadores tomados de forma genérica, pode concretizar tanto a possibilidade de alterar essa ordem social, pari passu com modificações estruturais no trabalho, como pode objetivar apenas uma prática otimizadora da economia, tomada, a moda burguesa, de modo independente das relações sociais (NAGEL, 2007, p. 100).
A escola é a instituição estruturada a partir de um conjunto de interesses para socializar os saberes sistematizados, julgados imprescindíveis para seu desenvolvimento. É possível afirmar que, historicamente, a partir de processos de exclusão, reprovação e abandono, o espaço escolar vem se prestando à manutenção de um projeto societário extremamente excludente, com sérias desigualdades econômicas, preconceitos étnico-raciais, desrespeito às identidades de gênero e outras violências, com o predomínio de valores e relações de poder homogeneizantes. A escola, historicamente, carrega o objetivo de “ratificar a lógica
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desse modelo, mudando, de vez em quando, a sua face em função dos processos de moder nização do próprio sistema, sem, contudo, perder de vista a essência de conservação que lhe é peculiar” (COSTA, 1998, p. 17). Dialeticamente, o papel da escola sempre será contraditório, pois, ao mesmo tempo que representa um modelo conservador, carrega em si uma força capaz de contribuir na supera ção desse modelo. A educação formal não é a força ideologicamente primária que cimenta o sistema; nem é capaz de fornecer, por si só, uma alternativa emancipadora radical (MÉSZÁROS, 2005). Assim, a condição para que a educação se realize a serviço da transformação social é que cumpra a função de desvelar o real, ou seja, possibilitar aos educandos a compreensão do processo real da produção da vida nos diferentes momentos da história humana. Compreendemos então que o termo “educação integral” é empregado em especificidades diversas que abrangem todas as possibilidades educativas do sujeito no decorrer da vida, sendo esse processo permanente e desorganizado. Isto posto, ao se posicionar na defesa de um projeto de educação integral em espaços escolares, é importante ter clareza dos princípios fundamentais a serem defendidos, qual sociedade se pretende construir e quais possibilidades formativas vão ao encontro desse projeto. Haja vista que esse conceito também é utilizado para propostas de manutenção e acomodação social, alinhado a inúmeros discursos e políticas educacionais que apregoam a educação integral como a solução para a precarização da escola. No entanto, é imprescindível não esquecer que uma das estratégias adotadas pelo modelo social vigente é revestir e se apropriar de terminologias e conceitos coletivos para fortalecer sua lógica, a qual jamais será de equidade.
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Esse modelo se caracteriza pelo individualismo, pela competitividade, pela exploração e pela dominação. Desenvolver projetos educacionais que contribuam para novas possibilidades, com arranjos sociais igualitários e relações humanas solidárias, requer persistência,
solidez e rompimentos com propostas que fortalecem as relações de poder vigente, mesmo que transvestidas de discursos humanitários. A educação é sim, determinada pela sociedade, mas essa determinação é na forma de ação recíproca – o que significa que o determinado também reage sobre o determinante. Consequentemente, a educação também interfere sobre a sociedade, podendo contribuir para a sua própria transformação (PARANÁ, 1997, p. 15).
Um projeto educativo que vise à formação integral deve possibilitar a seus atores a apro priação das práticas culturais, tornando-os efetivamente incluídos na sociedade, atuando sobre seus rumos; é a partir dessa formação que esses sujeitos conhecem e buscam fundamentos para melhor observar, compreender e agir de forma transformadora no mundo. A escola cumpre seu papel quando instrumentaliza os sujeitos, promove o desenvolvimento social e contribui para a superação da marginalização. Sob essa lógica de inclusão de uma parcela esquecida da população, que nem ao menos tem acesso à educação e, por consequência, a nenhum outro bem social, é que a Rede Marista de Solidariedade atua, pois entende que “a promoção de direitos contempla as ações que contribuem para a construção de cenários mais favoráveis, no futuro, para a prevalência de direitos humanos” (REDE MARISTA DE SOLIDARIEDADE, 2010, p. 35).
Aproximações teórico-metodológicas No campo de atuação Marista, a inclusão efetiva-se a partir de projetos voltados a uma formação dos educandos na sua totalidade, nas diferentes dimensões – social, afetiva, cognitiva, espiritual –, em que o aprender mobiliza os sujeitos a partir da construção de significados, significantes e sentidos que possibilitam ampliar saberes e construir culturas.
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Ao se produzir uma educação voltada à formação integral do sujeito, compreende-se que a integração dos conhecimentos a partir de abor dagens interdisciplinares, experiências e conhecimentos diversos, considerando que não existe somente um único espaço, nem um único modo de ensinar e de aprender. Nessa perspectiva, a educação integral “requer ampla visão da pessoa e de seu desenvolvimento, que aqui se traduz no processo formativo de subjetividades, nos modos de ser sujeitos, em sua integralidade e inteireza” (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010, p. 17).
Ao optar por um projeto emancipatório, a RMS fortalece sua ação e amplia a defesa por um projeto societário fundamentado na justiça social, por meio de processos educativos que favoreçam o desenvolvimento integral dos educandos. Sejam eles desenvolvidos em espaços de educação formal ou não formal, devem necessariamente envolver todos os sujeitos-atores desse cenário – educadores, educandos, famílias e comunidade – “na direção da aprendizagem significativa, em diálogo permanente, na perspectiva de emancipação e formação para o protagonismo” (REDE MARISTA DE SOLIDARIEDADE, 2010, p. 38), e oferecer uma educação que considere as diferenças e as relações de poder, de cultura, de representações e significados estabelecidos. Considerando as diferentes trajetórias das unidades educativas da RMS, e que o processo educativo é vivo, pulsante e se efetiva a partir de seus atores e territórios, iniciou-se em 2012 uma trajetória formativa para aprofundar e ressignificar o conceito de educação integral. Um grupo de trabalho, composto por coordenadores pedagógicos de unidades educacionais da Rede oriundos de diferentes segmentos, foi provocado a refletir sobre os desenhos curriculares em desenvolvimento e as perspectivas para superar dicotomias e propostas segmentadas de turno e contraturno, nas quais havia pouca ou nenhuma integração. 18
Defendendo a premissa de que educação integral é diferente de educação de tempo integral, e que a ênfase não se dá no tempo, e sim na concepção de educação, visto que apenas ocupar o tempo do educando com “mais do mesmo” ou promover atividades variadas desconexas não garante formação integral, a RMS buscou entender como estavam sendo efetivados os projetos educativos tidos como exitosos no país e, sobretudo, como se refletiam nas suas unidades educativas os ecos de tantos investimentos formativos acerca da educação integral. O grupo iniciou seus trabalhos a partir de estudos e aprofundamento acerca do Projeto Político-Pedagógico desenvolvido em uma de suas unidades, a Escola Ecológica Marcelino Champagnat, que até então ofertava Ensino Fundamental em um turno e Serviço de Apoio Socioeducativo no outro. Essas duas propostas pouco dialogavam, embora o público fosse o mesmo: educandos que permaneciam no espaço durante nove horas por dia e não viam relação entre os projetos e oficinas de um atendimento e a base curricular do Ensino Fundamental. Vale ressaltar que esse esforço de integração foi prioridade da instituição desde o momento da implantação dos atendimentos, mas sua efetividade esbarrava tanto em questões práticas como no fato de haver duas categorias de atuação profissional dividindo o mesmo espaço: docentes ministrando aulas de acordo com as matrizes institucionais em um turno e educadores sociais desenvolvendo projetos em artes, educação ambiental e educomunicação em outro; horários pouco flexíveis; questões de concepção de educação; e projetos de formação contínua descontextualizados e construídos verticalmente. O primeiro desafio do grupo foi conhecer o Projeto Político-Pedagógico da Unidade e buscar referenciais de educação integral, numa perspectiva integradora e que superasse a ideia de turno e contraturno. Paralelamente a isso, o grupo fez ensaios acerca dos impactos
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orçamentários e investimentos necessários para garantir algumas mudanças estruturais que viabilizariam uma proposta arrojada de currículo integrado e em tempo integral. Esses ensaios iniciais levaram a Rede, tempos depois, a construir um sistema4 de monitoramento de dados e mapear os investimentos e as condições de qualidade necessárias para a implementação de propostas com qualidade social.5 No âmbito conceitual, após leituras e reflexões acerca de referências bibliográficas, integrantes do grupo, acompanhados por assessores da Diretoria Executiva de Ação Social, viajaram para conhecer experiências de educação integral públicas – experiências bastante citadas em documentos oficiais do Ministério da Educação, e algumas que coincidiram com viagens para a participação em eventos internacionais. Foram visitadas as experiências de Belo Horizonte, MG; São Bernardo, SP; Diadema, SP; Silvânia, GO; São José dos Campos, SP; Nova Iguaçu, RJ; Palmas, TO; Apucarana; PR; Miravalle, DF; México; e Barcelona, Espanha. A socialização das experiências foi realizada por meio de dois seminários internos. À medida que o grupo discutia, os movimentos aconteciam na base da Unidade, sempre de forma coletiva e reflexiva, e aos poucos as mudanças estruturais foram surgindo – todos os profissionais foram contratados como docentes, o que permitia outra organização de horários e tempos para estudos e desenvolvimento de projetos, os espaçotempos foram sendo cons truídos sob outra dinâmica e até hoje estão se aprimorando com investimentos contínuos em formação. Nesse processo, outras Unidades foram desafiadas a repensar seus currículos, e cada uma delas, a seu tempo, vem construindo a própria trajetória, incluindo a Unidade que nasceria em O Sistema de Monitoramento de Indicadores (SMI) é um conjunto de indicadores educacionais utilizado pela Rede Marista de Solidariedade.
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O conceito de Qualidade Social foi constituído nos movimentos populares em oposição à lógica empresarial da qualidade total. Nessa perspectiva, a educação é entendida como instrumento de transformação social por meio da construção da emancipação dos indivíduos, os quais devem se tornar sujeitos ativos em suas comunidades e na sociedade como um todo.
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Florianópolis em 2013, o Centro Educacional Lucia Mayvorne, que com outros movimentos e cenários está buscando efetivar um currículo integrado e integrador. Os desafios não são poucos. Unidades que inicialmente previam ampliação e desenvolvimento de educação integral em tempo integral tiveram que rever projetos e reiniciar processos em outra modalidade de oferta, o que não as exime de desenvolver projetos emancipatórios, com formação integral, já que esse é um posicionamento ético-político da Rede. Os estudos continuam, com outras metodologias e movimentos formativos, mas com a mesma seriedade e responsabilidade de atores que acreditam no papel da educação. Em 2013, a União Marista do Brasil (UMBRASIL),6 buscando discutir perspectivas para a educação integral, estrutura um grupo de trabalho com representantes de todas as mantenedoras do país. O grupo concluiu seus trabalhos em 2015, com um documento em que sistematiza um posicionamento acerca de como a instituição revigora a formação integral como inerente à sua missão. Vale destacar que, além da importância de retroalimentar as discussões institucionais e produzir conhecimento, o cenário macropolítico brasileiro impunha essa necessidade – nas conferências municipais e estaduais de Educação, espaços de base para a construção do Plano Nacional de Educação, o grande eixo de discussão era a implantação de educação integral em tempo integral. Um dos elementos essenciais debatidos durante essa etapa foi a discussão sobre Currículo e Território, na perspectiva da Cidade Educadora:
UMBRASIL: União Marista do Brasil é a associação das Províncias, que são unidades administrativas do Brasil Marista, bem como suas mantenedoras. Representa um universo de 159 unidades e negócios complementares. <http://www.umbrasil.org.br/institucional/conheca-a-umbrasil>.
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A democratização dos espaços públicos, da vida pública, encontra um importante suporte no modelo das “cidades educadoras” formadas por cidadãos que voltam a se apropriar da cidade e a criar, planejar, gerir, avaliar [...] Nessa planificação comunitária de vida, as pessoas deixam de ser um número no censo para estar conscientes de seu papel decisivo como agentes ativos da transformação da vida na cidade; elas voltam a se comportar como cidadãos responsáveis, respeitosas e membros solidários em uma comunidade cada vez mais aberta, multicultural e democrática (SANTOMÉ, 2013, p. 320).
Entendendo que não há proposta educativa que se anuncie integral que se sustente com um trabalho realizado estritamente entre seus muros, a RMS, desde sua constituição, defende como princípio de atuação que as práticas pedagógicas desenvolvidas dialoguem com seus contextos territoriais e estruturem-se a partir de leituras de cenários, numa relação dialógica com as demandas sociais. Essa não é uma tarefa fácil, tendo em vista que a educação formal está historicamente assentada numa formação unidimensional, carregada de preceitos legais e culturais, que acabam por engessar possibilidades de movimento e dinamização e dificultar a possibilidade de construção de uma proposta educativa orgânica, desenvolvida a partir do diálogo comunitário, aberta aos apelos vindos do cotidiano, atenta aos movimentos e necessidades do território e que respeita os sujeitos desse processo – docentes, família e sobretudo educandos. Para construir um currículo vivo, a escola, além de sistematizar o conhecimento universalizado, torna-se um espaço articulador, que promove trocas de experiências com outras instâncias sociais. Uma proposta de Educação Integral precisa, portanto, articular-se com outras políticas públicas para a construção de espaçotempos que contribuam para a vivência de experiências inovadoras e sustentáveis. 22
Na concepção filosófica e sociológica, os projetos de educação integral encontram sólidos argumentos, sobretudo discursivos. No entanto, um dificultador para a sua efetivação situa-se na dimensão acadêmica e na articulação entre os componentes curriculares, de forma a dar sentido ao conjunto de conhecimentos que devem ser trabalhados na escola. É papel fundamental da escola instrumentalizar os sujeitos por meio da sistematização de conhecimentos, possibilitando aos educandos a apropriação de práticas culturais, visando a seu desenvolvimento social e à ampliação dos processos de socialização. Nesse sentido, Libâneo (2012) traz uma importante contribuição ao problematizar acerca de um “perverso dualismo” entre uma escola para ricos, que se preocupa com uma sólida formação e está fundamentada no conhecimento, e uma escola para os pobres, alicerçada no acolhimento social. O autor defende a ideia de que esse dualismo contribui para manter as desigualdades sociais e está vinculado a iniciativas e políticas excludentes previstas em acordos internacionais. Para a Rede Marista de Solidariedade, a articulação entre as demandas sociais dos educandos e seus territórios, o fortalecimento de vínculos e a acolhida são processos indissociáveis de uma oferta educativa que tenha como função primária a disseminação do conhecimento científico – compreendido como toda a produção historicamente acumulada pela sociedade. Portanto, “educar na e para a solidariedade”7 não significa abrir mão de uma sólida formação acadêmica. Para desenvolver um processo formativo que vislumbre a formação integral, parte-se do princípio de que os educandos são seres concretos, históricos e sociais, diretamente influenciados por sua época e seu meio social e geográfico, além de ser produtores de conhecimento e cultura. Não há cisão entre teoria (conhecimento) e prática (ação), o sujeito interpreta a reali dade (teoria) e transforma essa realidade (prática). A partir dessa compreensão, não cabe um processo de ensino fundamentado em concepções conservadoras, centrado na narrativa de fatos e temas isolados, na memorização, em atividades mecânicas que não levam em conta a 7
“Na e para” a Solidariedade é uma expressão que denota a Missão Institucional Marista.
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realidade, ou seja, desprovidos de consciência crítica e sem objeto definido. É aí que se encontra um grande desafio para a efetivação de um currículo integrado, em que o conhecimento a ser mediado e produzido não está particionado em disciplinas isoladas e descontextualizadas. Expandir o tempo requer ampliação de estruturas, e articular o currículo requer quebra de um modelo de pensamento. A educação integral aparece aqui vinculada a uma questão de formação abrangente de todos os aspectos humanos, não se referindo especificamente a tempo integral. Porém, seria impossível essa formação nos moldes da escola que foi universalizada no século XX, que chegou a ter até três horas de estudo. Uma educação integral implica o aluno permanecer mais tempo envolvido com a sua educação (FREITAS, 2006, p. 123).
A partir desses elementos, as unidades educacionais que ofertam Ensino Fundamental na RMS vêm estruturando seus projetos político-pedagógicos, visto que: O trabalho integrado interdisciplinar alarga as possibilidades de compreensão, construção e recontextualização dos conhecimentos, dos saberes e dos fazeres e flexibiliza o fazer pedagógico, explicitando as formas de relação, de reciprocidade e de aproximação em diferentes áreas (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010, p. 17).
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Assim, a RMS assume a definição apresentada por Veiga (2002, p. 13), de que a construção do Projeto Político-Pedagógico é uma ação intencional, pois “além de pedagógico é também político, no sentido de formação do cidadão para um tipo de sociedade, é pedagógico, no sentido de definir as ações educativas e as características necessárias às escolas de cumprirem seus propósitos e suas intencionalidades”.
O Projeto Político-Pedagógico assume aqui a função de estabelecer as inter-relações entre a escola e sua autonomia, expectativas, necessidades e condutas em relação ao território onde atua. Portanto, o projeto delineia a própria identidade, pois define claramente o tipo de ação educativa que quer realizar, imprimindo a dimensão política e social à ação pedagógica. Na perspectiva da educação integral, a RMS compreende que a proposta pedagógica é o grande alicerce para que a escola faça as conexões e articulações necessárias para compreender o sujeito em toda a sua complexidade. Para isso, o Projeto Político-Pedagógico, pensado sob a lógica da vivência democrática, produz diálogos, que são experiências indispensáveis a uma educação que se quer integral e integradora. Razão pela qual, no anunciado ideário de registro metodológico/reflexivo a que se anuncia este texto, passamos a conferir, na sequência, centralidade ao Projeto Político Pedagógico como catalizador e promotor das intencionalidades integradoras nas escolas.
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Referências BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 42. ed. São Paulo: Brasiliense, 2003. COSTA, Maria Cristina. Conservação ou transformação? Para onde vai a escola. Revista da Educação, Brasília, AEC, p. 17-30, jun. 1998. FREITAS, Cezar. A experiência da escola em tempo integral na rede pública municipal de Cascavel (2001-2005). 2006. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em História da Educação Brasileira) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2006. LIBÂNEO, José Carlos. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 13-28, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v38n1/aop323.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2016. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005. NAGEL, Lizia Helena. Avaliação: do Individual ao Coletivo. (Mimeo) 2007. PARANÁ. Currículo básico para a escola pública do Paraná. 3. impr. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação (SEED), 1997. REDE MARISTA DE SOLIDARIEDADE. Proposta Socioeducativa: referenciais teóricometodológicos. São Paulo: FTD, 2010. SANTOMÉ, Jurjo Torres. Currículo escolar e justiça social: o cavalo de troia da educação. Porto Alegre: Penso, 2013. SILVA, Gillys; CUNHA, Fráya. Texto produzido para o GT de Educação Integral, 2013. 26
UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Projeto Educativo do Brasil Marista: nosso jeito de conceber a Educação Básica. Brasília: UMBRASIL, 2010. VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org.). Projeto Político-Pedagógico da Escola: uma construção possível. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 2002.
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Projeto Político-Pedagógico Integrador
Gillys Vieira da Silva Marilusa Rossari Paulo Fioravante Giareta Iniciamos este ensaio assumindo a definição já apontada no texto anterior de que os processos formativos, na perspectiva da formação integral, pressupõem a experiência concreta dos educandos, seres histórica e socialmente produtores e produto de conhecimento e cultura. Definição que nos filia à abordagem crítica, que no âmbito da educação, portanto, dos processos de produção cultural, compreende que a realidade (o concreto) precede o pensado (o idealizado), implicando o reconhecimento do real como condição para o que projetamos. Essa abordagem potencializa a aproximação ao real pela busca das muitas determinações que o compõem, portanto, como exercício dialético que nos leva à abstração teórica na forma de organização desse real, um exercício teórico-metodológico que ajuda a compreender a formação, articulada pelo Projeto Político-Pedagógico (PPP), como expressão da práxis histórica, potencializada em sua função política e intencionalidade pedagógica, portanto, capaz de promover formação integral e integradora aos sujeitos envolvidos no projeto.
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A materialização dessa abordagem nas Unidades educativas da Rede Marista de Solidariedade (RMS), representada neste texto pela Escola Ecológica Marcelino Champagnat e Centro Educacional Lucia Mayvorne, localizadas, respectivamente, nos estados do Paraná e de Santa Catarina, expressa-se pela preocupação fundante de pensar seu projeto a partir do conjunto de características que compõem a prática educativa (ação), significada pela busca constante
da crítica metodológica (reflexão), e capaz de ressignificar a própria prática (ação). Movimento que integra a função política e pedagógica do projeto e potencializa sua finalidade formativa integradora.
Aproximações Um Projeto Político-Pedagógico, representativo da realidade educacional vivida, não pode ser concebido como uma construção individualizada e solitária, muito menos como um docu mento restrito à função de cumprir exigências legais, mas sim como elemento norteador da prática, dando vida aos desejos e às intenções por meio das aprendizagens significativas e da formação humana dos sujeitos, ou seja, deve se materializar na construção e revisitação constante da proposta da escola. É o PPP que oficializa nossas opções em relação ao posicionamento político, ideológico, filosófico e pedagógico da escola acerca da educação e da sociedade, o que demanda pensá-lo como movimento participativo na escola, provocando o cenário local para a necessidade de mudanças no pensar, sentir, agir e fazer educação a partir da realidade, dando novos significados para os espaçotempos da aprendizagem. Vasconcelos (2010, p. 15) afirma que: É praticamente impossível mudar a prática de sala de aula sem vinculá-la a uma proposta conjunta da escola, a uma leitura da realidade, à filosofia educacional, às concepções de pessoa, sociedade, currículo, planejamento, disciplina, a um leque de ações e intervenções e interações.
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Não obstante o reconhecimento da diversidade de metodologias disponíveis para a cons trução do projeto da escola, a Rede Marista de Solidariedade, indicando fidelidade à concepção teórico-metodológica que norteia sua proposta educativa e pela busca de um projeto integrador, tem fomentado o desenvolvimento do PPP a partir de abordagens colaborativas. Essa abordagem afeta e se sente afetada, inicialmente, pelo próprio desenho participativo do seu planejamento, expresso, por sua vez, por propostas coletivas de trabalho e orientada por princípios e concepções institucionais, caracterizadas pela natureza da incompletude e vocacionada à transformação como condição para acompanhar o presente e suas complexas mutações. Para tamanho e rico exercício, é necessário o efetivo envolvimento da comunidade educativa e a compreensão de que o diálogo entre teoria e prática precisa acontecer na escola, uma tarefa bastante desafiadora e central para o exercício da gestão participativa da escola.
A participação e a tessitura de um projeto integrador A discussão, entendida aqui como o exercício coletivo e participativo em torno da cons trução do Projeto Político-Pedagógico da escola, requer a delimitação clara dos posicionamentos assumidos pela gestão, haja vista que, após longo tempo de construção meramente formal desse documento, exercício altamente desconexo na relação teoria e prática, parece que passamos a assumir tal tarefa mais como uma inovação performática e exercício gerencial em busca de resultados eficientes do que como inovação emancipatória e exercício de promoção cultural e intelectual. Conforme sugere Vasconcelos (2010), mudar a prática educativa implica alterar concepções enraizadas e, sobretudo, enfrentar a “roda viva” já existente. Para tanto, considera-se 30
fundamental o envolvimento da comunidade educativa nos processos da escola, uma vez
que tanto proporciona um sentimento de pertença, cujo resultado se dá na melhoria da qualidade das ações pedagógicas e na consciência de que a educação é um direito e elemento fundamental na formação humana das crianças e jovens, quanto confere objetividade/ concretude ao Projeto Político-Pedagógico da escola. A Rede compreende que o posicionamento da escola por um processo de construção participativa é a grande tonalidade para a elaboração de um PPP integrador, uma vez que tanto promove o diálogo entre teoria e a prática quanto o claro posicionamento acerca das convicções políticas e pedagógicas. Partindo desse pressuposto, consideramos que a escola nunca é a mesma, pois seus sujeitos não são os mesmos, e o amadurecimento intelectual e a chegada de novos integrantes ao grupo trazem ao contexto novos desafios, desejos e sonhos, o que impõe uma necessidade de revisitar, continuamente, o projeto da escola. Esse movimento precisa estar na atenção da gestão e, de forma especial, em seu programa de formação. Assim, constituir uma prática educativa pautada no princípio da participação pressupõe mexer com as bases estruturais e conceituais da escola a partir do olhar da coletividade, ressignificando o real papel desse espaço de formação humana. A escola passa a se assumir em movimento, incompleta e como espaçotempo de cons trução/socialização de saberes, atitudes, sentimentos e práticas, articulados a outros espaços educativos orientados a favorecer processos de autonomia e emancipação pessoal, comunitária e coletiva, assim como a emergência de outros modelos de sociedade e escolas comprometidos com as múltiplas vozes e propostas que emergem da sociedade civil em toda sua riqueza e pluralidade (CANDAU, 2013). Todavia, a premissa de um espaço integrador, que envolva os sujeitos e considere o território, precisa se fazer presente e/ou se consolidar como proposta da escola, fortalecendo sua identidade. Razão pela qual reafirma-se que construir coletivamente um Projeto
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Político-Pedagógico da escola implica assumir o princípio da gestão democrática como central. De acordo com Veiga (2002), a construção do Projeto Político-Pedagógico exige a compreensão em profundidade dos problemas postos pela prática pedagógica, visando romper com a separação entre concepção e execução, entre o pensar e o fazer, entre teoria e prática. A gestão democrática é uma exigência do PPP que instiga uma mudança de paradigma na construção de uma proposta participativa e significativa para a escola. A Rede entende que a construção dessa proposta participativa e significativa da escola, articulada por um modelo de gestão colaborativa, potencializa, inclusive, a discussão, rediscussão e implementação, não menos coletiva e colaborativa, das demais intencionalidades pedagógicas, por isso políticas, de um projeto que se quer integrador. O compromisso com a própria orientação teórico-metodológica indicada pela legislação educacional brasileira motiva a RMS a conferir materialidade às referidas intencionalidades político-pedagógicas integradoras, a partir de princípios como: ressignificação curricular; formação de professores; reinvenção formativa dos espaçotempos escolares; e integração com o território. O documento elaborado no âmbito da Secretaria de Educação Básica do MEC, sob a organização de Jaqueline Moll, em 2011, e publicado com o título de Caminhos para elaborar uma proposta de educação integral em jornada ampliada, aponta que um currículo significativo demanda sentido aos estudantes e relevância social aos saberes, produzindo aprendizagens e gerando impacto na vida em comunidade. O que pressupõe que a proposta político-peda gógica, coletivamente construída, viabilize significado ao currículo vigente por uma relação de complementariedade entre os saberes escolares e seu impacto sociocultural.
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Isso pressupõe que “a organização de um currículo escolar flexível, evitando uma compartimentalização rígida, significa torná-lo mais eficaz na aprendizagem do conjunto de conhecimentos que estruturam os saberes escolares essenciais”, implicando “um currículo capaz de
relacionar a aprendizagem dos alunos à sua vida e à sua comunidade [...], dando concretude ao processo educativo” (MOLL, 2011, p. 15). A RMS viabiliza essa proposição pela construção colaborativa do Projeto Político-Peda gógico, e compreende que a ressignificação curricular não se dá e nem se encerra em si mesma, mas provoca os espaçotempos educativos a revisitar suas concepções e leituras formativas, demandando preocupação com a formação continuada dos professores a partir de novos e complementares modelos formativos. A ressignificação curricular no contexto de implementação de um PPP integrador demanda construir e gerir coletivamente um olhar para a formação do docente, ressignificando as próprias concepções e atuação nesses espaços educativos. Implica reconhecer, conforme também define Pimenta (2012), a formação como processo de autoformação, enquanto reelaboração dos saberes iniciais em confronto com suas experiências práticas. O documento elaborado pela Secretaria de Educação Básica do MEC aponta que se deseja: Profissionais da educação que se apaixonem pelo que descobrem ser possível fazer, reinventando continuamente sua relação com os alunos, com o mundo, com os conteúdos curriculares e com as possibilidades que existem além do espaço da sala de aula. Esse conjunto de elementos desafia a uma nova postura profissional que precisa ser construída pouco a pouco, em processos formativos permanentes (MOLL, 2011, p. 57).
É a preocupação com a significação curricular e com a formação docente que fundamenta, no âmbito do Projeto Político-Pedagógico integrador, a preocupação com a reinvenção da gestão dos espaçotempos escolares, que, em última instância, implica o próprio reconhecimento da natureza histórica da organização curricular e formativa; dos tempos e espaços
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escolares como lócus formativo; e da natureza indissociável e dialética das atividades curriculares e pedagógicas, que se fundem no cotidiano escolar. Portanto, de um cotidiano e um fazer escolar com identidade histórica e social, que possibilite reconhecer a escola como um lugar pertencente a uma comunidade, a um território, ou seja, um espaço em que se estabeleça “laços que definem as relações de trabalho, a convivência com outras pessoas”, e assim “cons truímos teias que envolvem elementos simbólicos de ética, de moral, de comportamento, de cultura, de conceitos estéticos, formando um conjunto que revela o sentido do que significa viver em sociedade” (MOLL, 2011, p. 35). Ao assumir o território como princípio norteador em seu PPP, a RMS acena para o desejo da territorialidade a partir da concepção da cidade educadora, expandindo e qualificando os espaçotempos da sua proposta de educação integral.
Caracterização a partir de um itinerário: a experiência da Escola Ecológica Ao iniciar, em 2011, um diálogo com a proposta existente, a Escola Ecológica Marcelino Champagnat permitiu a problematização das intencionalidades estabelecidas no documento e buscou uma aproximação entre a teoria e a prática em desenvolvimento. Nesse ensaio dialógico, o desafio de tornar o Projeto Político-Pedagógico uma vivência e romper com ideias cristalizadas acerca da sua elaboração provocaram a construção de itinerários formativos com os colaboradores, tendo como objetivo promover estudos aprofundados e interventivos no documento. Todavia, pela possibilidade de encontros dentro de uma rotina escolar e a pouca familiaridade com a produção, a gestão sentiu necessidade da construção de um plano estratégico com foco na formação, partindo do existente para a construção do novo. 34
Nesse redesenho, foi necessário ressignificar os espaçotempos para o diálogo e a cons trução coletiva, suscitando na rotina da escola momentos específicos que proporcionassem o encontro de todos e tivessem um cunho formativo e de estudo. Dessa forma, foram organizadas reuniões formativas, em que o PPP foi pauta durante quatro meses, sendo submetido às devidas intervenções, questionamentos e problematizações. Após esse período, a discussão acontecia o ano todo, mas o aprofundamento apenas em dois momentos, no início e na metade do ano, durante a semana de formação. É importante frisar que o processo de avaliar o PPP é um movimento bastante desafiador. Ler e pensar repetidas vezes exige envolvimento e dedicação do grupo de educadores, e isso pode ser, em grande medida, doloroso para os que não estão habituados a tais práticas. A resistência pode ser a dificuldade de sair da zona de conforto do não envolvimento. Assim, o ponto de partida para a (re)construção do Projeto Político-Pedagógico é o diagnóstico, que consistiu em um levantamento da situação da escola para análise conjunta dos processos que necessitam de mudança. Nesse contexto, os movimentos empreendidos para a efetivação de uma proposta integradora na Rede Marista de Solidariedade considera ram a participação de colaboradores, famílias e educandos. Esse movimento possibilitou escutas consideradas nos redirecionamentos da nova proposta de integralidade do currículo da Escola Ecológica. Vale destacar que a consolidação do grupo de educadores e o entendimento da proposta deu a grande tonalidade para o sentimento de pertença e o empenho na construção coletiva. Todavia, a rotatividade no quadro provocava sempre o revisitar da discussão, acolhendo assim os tempos de cada um, suas vivências e contribuições ao projeto. Dessa forma, a escola insistiu em um processo em que seria autora do próprio PPP, bem como no encontro de alternativas criativas para as situações do dia a dia. Esse movimento fortaleceu o interesse da comunidade em conhecer melhor a escola, e também o processo
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inverso, a articulação da escola com a comunidade, para verificar suas necessidades, tornando possíveis processos mais democráticos e participativos e, em especial, o aguçamento da crítica e da autocrítica, pautados no respeito às diferenças, em relação às práticas de gestão e à atuação dos órgãos colegiados, dentro e fora da escola. Na tessitura de uma proposta que parte de uma produção coletiva e integradora, compreende-se que o projeto precisa acompanhar o movimento da prática pedagógica. Para isso, seu estudo deve ser contínuo, bem como a socialização do poder político e pedagógico no ambiente escolar. Paro (2001) orienta que a descentralização da autoridade não destitui o poder dos agentes instituídos, mas empodera o conjunto dos sujeitos envolvidos com a dinâmica escolar, possibilitando a divisão de responsabilidades. Nessa divisão, quem ganha poder é a escola, pois, com a responsabilidade dividida, somam-se as forças para a transformação da instituição. No caso da Escola Ecológica, a gestão participativa se fez no coletivo, e assumiu um importante papel ao caracterizar seu trabalho a partir da descentralização dos processos decisórios da escola orientados pela sua proposta pedagógica. Sabemos que o conhecimento do contexto local e global está diretamente ligado à possibilidade de alteração da proposta pedagógica da escola, adequando o discurso científico, qualificando as atividades educativas e possibilitando a criação de situações desafiadoras para o desenvolvimento de uma proposta integradora do conhecimento. Nessa direção, Veiga (2002) nos faz perceber que o PPP deve ser visto como um processo permanente de reflexão e de discussão dos problemas da escola, tendo por base a construção de um processo democrático de decisões que visa superar as relações competitivas, corporativas e autoritárias, rompendo com a rotina burocrática no interior da escola. 36
Uma escola democrática só se constrói com participação (LIMA, 2002). Construir um
Projeto Político-Pedagógico que realmente responda aos significados dos próprios termos não se concebe sem a participação do coletivo, pois é na voz de toda a comunidade que são expressas as reais necessidades da instituição, a qualidade na educação e transformação social se tornam ideais a serem conquistadas por todos, em todo o processo. Convém destacar ainda que a proposta em construção na Escola Ecológica não se constitui sem as marcas dos desafios presentes em todas as escolas que se propõem a tal movimento. A luta por espaços que garantam a participação efetiva dos sujeitos tem sido bastante desafiadora, haja vista ser necessário romper com uma cultura escolar já existente e fortemente disseminada no grupo de educadores que, em sua maioria, atua também em outras institui ções de ensino com filosofias e práticas pedagógicas totalmente diferentes e distantes da concepção em construção, além da problemática da fragmentação e as fragilidades advindas da formação inicial desses sujeitos. Assim, garantir a participação dos sujeitos na construção e revisão do Projeto Político-Pedagógico requer investimento em formação, prevendo espaçotempos para leituras e estudos, revisão e escrita da proposta, reflexões entre teoria e prática, dentre outros processos. Um projeto de educação não nasce da noite para o dia, é construído com muitos movimentos de reflexão e discussão, sendo necessário que esteja pautado nas formações continuadas oferecidas pela escola.
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Referências CANDAU, Vera Maria. Currículo, didática e formação de professores: uma teia de ideias-força e perspectiva de futuro. In: OLIVEIRA, Maria Rita Neto Sales; PACHECO, José Augusto (Org.). Currículo, didática e formação de professores. Campinas, SP: Papirus, 2013. p. 7-20. LIMA, Licínio. Organização escolar e democracia radical: Paulo Freire e a governação democrática da escola pública. São Paulo: Cortez, 2002. MOLL, Jaqueline. Caminhos para elaborar uma proposta de educação integral em jornada ampliada: como ampliar tempos, espaços e oportunidades educativas para crianças, adolescentes e jovens aprenderem. Brasília: SEB/MEC, 2011. PARO, Vitor Henrique. Escritos sobre educação. São Paulo: Xamã, 2001. PIMENTA, Selma Garrido (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 2012. VASCONCELLOS, Celso dos S. Coordenação do trabalho pedagógico: do Projeto PolíticoPedagógico ao cotidiano da sala de aula. 11. ed. São Paulo: Libertad, 2010. VEIGA, Ilma Passos A. (Org.). Projeto Político-Pedagógico da escola: uma construção possível. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 2002.
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PARTe 2 40
D I Á LO G O S E I N T E R A ÇÕ E S N O C U R R Í C U LO
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O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo forja-se nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. Tomáz Tadeu da Silva
Integrar tempos, espaços, saberes, culturas: construindo sentidos, tecendo aprendizagens
Carla Cristina Tosatto Fráya da Cunha
Educação integral em tempo integral: que tempo é esse?
“Ainda assim acredito Ser possível reunirmo-nos Tempo, tempo, tempo, tempo Num outro nível de vínculo Tempo, tempo, tempo, tempo.” Caetano Veloso
Começar com essa epígrafe nos remete a uma questão essencial quando abordamos o tema da educação integral, pois sabemos que educação integral não é o mesmo que edu cação em tempo integral. No entanto, sabemos também que o tempo é uma condição importante para a efetivação de uma educação que busca desenvolver as pessoas em suas múltiplas dimensões: física, intelectual, emocional, estética, lúdica, social, cultural. Concordamos com Moll (2012, p. 2) quando a autora destaca que,
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A ampliação do tempo da criança na escola é uma exigência contemporânea. A educação integral em tempo integral é uma tendência irreversível da sociedade brasileira [...]. No entanto, o tempo integral sem a dimensão da educação integral é falha. Não podemos ampliar o tempo, fazendo o mesmo que fazíamos antes.
Nosso maior desafio ao lidar com a dimensão do tempo é, portanto, garantir que esse alargamento possibilite a criação de novos espaços de interação/mediação das crianças e adolescentes com o universo da cultura e do conhecimento. Um tempo ampliado, reinventado e qualificado. De acordo com o documento Provocações para o debate: educação integral em tempo integral Marista (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2015, p. 5, grifo nosso): 42
Nas instituições Maristas, o conceito de educação integral, para além da racionalidade ou cognição, encontra-se presente na concepção e no jeito de educar. Buscamos construir novas relações educacionais para garantia do direito a uma educação de qualidade às infâncias, adolescências e juventudes, por meio da participação de todos os envolvidos na comunidade educativa e de um olhar atento e aberto para as artes, a estética, a música, o corpo, envolvendo, nas ações peda gógicas, as dimensões afetivas, artísticas, sociais, espirituais, culturais, políticas.
Sendo assim, como compor esse tempo, como organizá-lo, como vivê-lo? Será possível reunirmo-nos num outro tipo de vínculo? Que vínculos seriam esses? Como construir novas relações educacionais? Como fazer com que o aumento da corda do tempo consiga redimensionar os espaços e sentidos da escola? Certamente, mais tempo na escola tem de significar outro tempo! E, ao compor esse tempo, primando por novas relações educacionais, a questão curricular emerge como o elo, o
liame, a ligação essencial. O desafio de construir novas relações educacionais, novos tempos e espaços de aprendizagem pressupõe a construção de novos arranjos/desenhos curriculares. Portanto, ampliar o tempo, sim, mas com qualidade e garantindo novas formas de vincular-se ao conhecimento, às culturas, às pessoas, ao bairro, à comunidade, à cidade. A grande questão que nos interpela não é, portanto, a validade ou a importância da formação integral como projeto educacional, mas a reconfiguração da escola e do currículo necessária para sua materialização. A educação integral que tem como horizonte a formação integral demanda um currículo que se vincule com a cultura, os saberes, a realidade dos educandos; com suas vozes, necessidades, linguagens, vivências; com a vida que pulsa dentro e fora dos muros escolares. De acordo com o documento Projeto Educativo do Brasil Marista (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010, p. 59), o currículo é: Um sistema complexo e aberto que articula, em uma dinâmica intera tiva, o posicionamento político da instituição, suas intencionalidades, contextos, valores, redes de conhecimentos e saberes, aprendizagens e os sujeitos da educação/aula/escola. No currículo, estabelecem-se os espaços de aprendizagem e os modos de orientar as políticas e práticas educativas, que se constroem nas tramas do cotidiano escolar. A cons trução do currículo é um processo coletivo. Ou seja, ele não é construído para, mas pelos diversos sujeitos que compõem o processo.
Portanto, estamos falando aqui de um currículo em constante movimento, construção, revisão e ressignificação. Temos horizontes e princípios claros e o desafio permanente de dar forma, cor, som, sabor e sentido a esses princípios. Estamos sempre nos refazendo! Diante desse movimento, um concerto polifônico de vozes anuncia novas possibilidades, novos desenhos, novas relações, novos vínculos. A seguir, destacaremos as relações que buscamos fortalecer e garantir num currículo que se pretende integral e integrador. 43
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Estabelecendo diálogos e interações no currículo: rompendo com fragmentações, oposições e hierarquias Estabelecer relações entre tempos, espaços, sujeitos, diferentes linguagens, saberes, conhecimentos e culturas deve ser a tônica de quem trabalha com educação integral. No entanto, dividir, separar, fragmentar e isolar foi, durante muito tempo, os imperativos ditantes de nossa educação, colocando em lados opostos o que precisa estar junto: cultura escolar x cultura infantojuvenil, educação formal x educação não formal, escola x bairro/cidade/ comunidade, etc.
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Sendo assim, de que forma um modelo de educação baseado na hierarquia dos conhecimentos, na compartimentalização das aprendizagens e disciplinas acadêmicas, e centrado exclusivamente na instituição escolar e no ensino, pode responder às múltiplas dimensões formativas dos seres humanos e ter como centro do processo os educandos, suas linguagens e aprendizagens? Certamente, esse modelo hierárquico e fragmentado responde a um projeto de escola, de aluno, de sociedade, de presente e de futuro que não é o nosso. Romper com esse modelo, favorecendo novos olhares e práticas é, sem dúvida, o que almejamos. Temos o desafio de repensar e romper com a hierarquia e a fragmentação dos conhecimentos, dos tempos, dos espaços e dos sujeitos, enfatizando cada vez mais que é no interior de uma teia de interações, sentidos e linguagens que nos constituímos e nos fazemos. Portanto, quais relações buscamos tecer ao darmos os diversos tons, cores, formas e sabores do nosso currículo na busca por um olhar e um fazer mais integrador?
Relações entre os saberes escolares e as práticas culturais dos educandos
“O mundo é, realmente, um arco-íris de cultura.” Boaventura de Souza Santos
É papel essencial da escola favorecer a ampliação do universo de cultura de nossas crianças e nossos adolescentes, garantindo que os conhecimentos social e historicamente produzidos possam ser apreendidos, criticados e reconstruídos por todos os educandos. Daí a importância de um processo educativo com foco no direito à aprendizagem.8 Mas, aprender o que, como, por que, em que contextos, diálogos e interações? Essa questão é essencial porque o currículo é palco de disputas, decisões, escolhas, conflitos e lutas. Um campo minado, comprometido com projetos societários, políticos, econômicos e sociais. O currículo nunca é neutro, tampouco desinteressado, pois está intimamente implicado em relações de poder. Concordamos com Silva (2013, p. 16), quando ele assevera que “selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma opera ção de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder.” Temos como premissa ensinar o que é relevante, o que emancipa, liberta, humaniza e, portanto, pode contribuir para garantir uma participação crítica, criativa, solidária e transformadora dos nossos educandos na sociedade em que vivem. Moreira e Candau (2007) entendem relevância como o potencial que o currículo possui de tornar as pessoas capazes de compreender o papel que devem ter na mudança de seus contextos imediatos e da sociedade em geral, bem como de ajudá-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades necessárias para que isso aconteça. 45 A ideia de aprendizagem que está em jogo aqui é aquela que vai além do aspecto meramente cognitivo, mas que entende e se compromete com a totalidade do ser, com nossa inteireza e com as dimensões mais amplas e potentes de nossa humanidade.
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Mas que saberes e conhecimentos garantem isso? Que processos, contextos e mediações favorecem essa apropriação? Que lugares outorgam, garantem aos sujeitos dessas aprendizagens? Que diálogos propõem, revelam, propiciam? Que direitos promovem, garantem, ampliam? Tradicionalmente, muitos conhecimentos vêm sendo desconsiderados, desvalorizados e até mesmo rejeitados no interior da escola. Somos herdeiros de um processo que imprimiu hierarquias, oposições e fragmentações, tornando invisíveis inúmeros conhecimentos e mani festações culturais. Destacamos aqui as palavras de Moreira e Candau (2007, p. 25) a esse respeito:
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A “hierarquia” que se encontra no currículo, com base na qual se valorizam diferentemente os conhecimentos escolares e se “justifica” a prioridade concedida à matemática em detrimento da língua estrangeira ou da geografia, deriva, certamente, de relações de poder. Porque nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas científicas, secundarizando-se os saberes referentes às artes e ao corpo. Nessa hierarquia, separam-se a razão da emoção, a teoria da prática, o conhecimento da cultura. Nessa hierarquia, legitimam-se saberes socialmente reconhecidos e estigmatizam-se saberes populares. Nessa hierarquia, silenciam-se as vozes de muitos indivíduos e grupos sociais e classificam-se seus saberes como indignos de entrar na sala de aula e de ser ensinados e aprendidos. Nessa hierarquia, reforçam-se relações de poder favoráveis à manutenção das desigualdades e das diferenças que caracterizam nossa estrutura social.
Não podemos mais empobrecer os currículos pela negação das experiências sociais dos nossos educandos e sua diversidade, sendo fundamental evidenciar a ancoragem social, histórica e cultural desses conhecimentos, bem como entretecer e colocar em diálogo diferentes culturas.
Vale realçar o que entendemos por cultura, e falarmos não em cultura, mas sim em culturas. Isso porque não há uma “Cultura”, com letra maiúscula, esperando para ser descoberta nas asas da história e apropriada pelos sujeitos. A cultura não pode ser pensada como algo pronto, um sistema estático ao qual os indivíduos se submetem, mas sim como uma espécie de “palco de negociações”, em que seus membros estão em um constante movimento de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados. Podemos aqui dialogar com Geertz (2008), que em sua obra A interpretação das culturas persegue incansavelmente os sentidos e a verdadeira abrangência que esse conceito tão importante deve ter. Para o autor, o conceito de cultura é essencialmente semiótico e, citando Max Weber, define o homem como “um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (p. 4). Geertz defende o conceito de cultura como sendo essas teias de significados e suas interpretações. A cultura, portanto, não é um fenômeno natural ou uma ciência experimental à procura de leis, mas sim um fenômeno social, cuja gênese, manutenção, transmissão, transformação e interpretação estão a cargo dos atores sociais, que, por meio de intensa troca, negociação e interação social produzem e constroem significados. Geertz enfatiza a centralidade da dimensão simbólica na experiência humana, ou seja, a ação humana como ação que significa. E o currículo não deixa de ser um território em que se travam ferozes competições em torno de significados, ou seja, não se trata de um documento que transporta algo a ser veicu lado e absorvido pelos sujeitos, mas sim um lugar, um cenário no qual, em meio a tensões, contradições e rupturas, se produz e reproduz cultura, se criam, reinventam e elaboram significados. Entender a cultura como dimensão constitutiva do ser humano, como resultado da prática social e das múltiplas relações materiais e humanas produzidas historicamente e, portanto, como algo em permanente construção e transformação é, pois, essencial. 47
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É necessário, também, conceber a cultura como dimensão constitutiva do currículo, e assumir isso implica o reconhecimento da diversidade dos sujeitos, dos territórios e das culturas, bem como o reconhecimento dos educandos como atores sociais, produtores de cultura e conhecimento.
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As crianças e os adolescentes realizam processos de significação genuínos e específicos, ainda que atrelados ao tecido social do qual são também atores e artesãos. Reconhecer, valo rizar e dialogar com as culturas infantojuvenis é condição essencial para garantirmos outros lugares para nossos educandos: o lugar da alteridade, da escuta, da participação, do respeito e do direito a ser criança/adolescente, a viver plenamente a infância/juventude e a aprender como criança/adolescente no interior da escola. Concordamos com Delgado (2015, p. 23) quando ela destaca a importância de conceber o currículo “como o conjunto de práticas que articulam as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, de modo que as propostas pedagógicas possibilitem a vivência da infância”. Precisamos nos abrir para as distintas manifestações culturais e colocar em cena vozes e culturas negadas e silenciadas nos currículos e romper, cada vez mais, com o “daltonismo cultural” que, segundo Moreira e Candau (2007), não nos deixa perceber, enxergar e valorizar o arco-íris de saberes e culturas que temos ao alcance de nossos olhos, pensamentos, afetos e nossas ações. Vale realçar aqui o que foi dito por esses autores: Elaborar currículos culturalmente orientados demanda uma nova postura, por parte da comunidade escolar, de abertura às distintas manifestações culturais. Faz-se indispensável superar o “daltonismo cultural”, ainda bastante presente nas escolas. O professor “daltônico cultural” é aquele que não valoriza o “arco-íris de culturas” que encontra nas salas de aula e com que precisa trabalhar, não tirando, portanto, proveito da riqueza que marca esse panorama (MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 31, grifo nosso).
Buscamos construir um currículo a muitas mãos e vozes, abrindo um precioso espaço para o encontro entre culturas e saberes diversos. Um currículo que acolhe, mas também problematiza; que reconhece, mas também amplia; que encara as contradições e diferenças, buscando articular de maneira crítica e reflexiva essas manifestações. Moreira e Candau (2003, p. 39) destacam que “a escola precisa acolher, criticar e colocar em contato diferentes saberes, diferentes manifestações culturais e diferentes óticas. A contemporaneidade requer culturas que se misturem e ressoem mutuamente, que convivam e se modifiquem”. É fundamental instigar nosso olhar, nossa sensibilidade, nossa escuta e verdadeiramente acolher as diferentes vozes e universos culturais que ressoam em nossas Unidades. Em especial, resgatar e valorizar manifestações culturais de determinados grupos cujas identidades se encontram ameaçadas, num esforço para tornar o mundo menos opressivo e reduzir cada vez mais discriminações e preconceitos. De acordo com Barbosa (2007, p. 1063): A escola é o espaço de confronto ou entretecimento de culturas pessoais – de crianças e adultos – e de culturas sociais – legítimas e não legítimas (LAHIRE, 2006). É preciso romper com o silêncio sobre as dife rentes culturas e dar-lhes visibilidade e reconhecimento. Fazer dialogar, interagir, comunicar as culturas, desmoronar atitudes etnocêntricas, criando um espaço intercultural.
Vale destacar que não se trata de substituir um conhecimento por outro, mas estabelecer pontes, ampliar olhares, ressignificar saberes e, sobretudo, favorecer a compreensão das relações de poder envolvidas na hierarquização das manifestações culturais, bem como das diversas leituras e imagens que podem resultar desse processo de hierarquização. Moreira e Candau (2007) enfatizam a importância de reescrever, no currículo, o conhecimento escolar levando em conta as diferentes raízes étnicas, as culturas, os saberes e os múltiplos pontos de vista, olhares e intenções envolvidas na produção desses saberes. 49
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É fundamental, portanto, criar, compor tempos e espaços nos quais as crianças e os jovens tenham direito a ter suas culturas reconhecidas, valorizadas, potencializadas. Sarmento (2004, p. 45) destaca que: A escola deve ser esse lugar onde as culturas se interceptam, na ação de apropriação pelas crianças das linguagens, dos saberes e das formas em que se materializa o conhecimento do mundo. O lugar de encontro das culturas é o lugar de afirmação das culturas da infância.
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Nesse processo dialógico e intercultural, é preciso compreender as dimensões do ser criança/adolescente e viver a infância/adolescência nos contextos em que atuamos (culturais, simbólicos, histórico, social, econômico, etc.), bem como conhecer a forma como as crianças ou os adolescentes produzem e manifestam suas culturas e conhecimentos. Precisamos aprender com os educandos, ouvindo suas vozes, olhando e valorizando suas produções, dialogando permanentemente com suas formas de inteligibilidade e manifestações culturais. Só assim, aprendendo ao ensinar, será possível construir novos tempos e espaços para uma educação inteira, potente e comprometida com a criança, o adolescente e o jovem. Uma escola que ofereça muito tempo e espaço para a magia, a criatividade, a invenção, o jogo, o olhar que pergunta, a voz que ecoa, o gesto que fala, o corpo que brinca, o ouvido que escuta, e o fazer que marca e promove interações, entrelaçando culturas, saberes e olhares! De acordo com o documento Provocações para o debate: educação integral em tempo integral Marista (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2015, p. 26):
Os projetos pedagógicos pautados pela problematização das culturas que atravessam a escola devem incorporar os saberes, os gostos, as linguagens, as ciências, os valores e as estratégias de conhecer dos coletivos. A escola vai se constituindo num espaçotempo de diálogo inter e intracultural, configurando-se como espaçotempo de articulação de cultura-educação-formação.
Trata-se, portanto, de uma escola em que as crianças e os jovens não são despossuídos de poder, mas envolvidos na construção do cotidiano escolar. Uma escola na qual eles são ouvidos, consultados, tidos como interlocutores válidos e capazes de contribuir constantemente com a eterna novidade do mundo. O respeito pela diferença, pela singularidade de cada ser humano e pela alteridade da condição geracional é central na configuração de uma escola que respeite os direitos das crianças/dos adolescentes/dos jovens e que, portanto, configure-se em um lugar construído para e com eles.
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Relações entre diversos espaçotempos de aprendizagem: articulação e atuação com o/ no/do território “É preciso toda uma aldeia para educar uma criança.” Provérbio africano
Articular e ampliar diversos atores, espaços e tempos de aprendizagem pressupõe olhar para dentro e fora da escola, num movimento de diálogo, participação e vivências com o território. A dimensão do território deve ser contemplada tanto na perspectiva da compreensão do pertencimento dos sujeitos e de suas raízes culturais quanto na apropriação dos espaços existentes no território, ou seja, como possibilidade de conversão do espaço em território educativo. 52
É fundamental conceber a escola, o bairro, a cidade como espaço de educação e produção cultural e favorecer aprendizagens com a/na/da cidade, reforçando a ideia de que o espaço para a educação integral precisa ser plural. De acordo com o documento Provocações para o debate: educação integral em tempo integral Marista (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2015, p. 20): A ampliação do tempo concorre para a possibilidade de um trabalho pedagógico que baixe os muros da escola e construa pontes com o mundo real, com os territórios e sujeitos que perpassam e produzem significação na vida dos estudantes. Aliam-se, então, as dimensões de cultura e território nesta perspectiva curricular, pois na relação real com o território será possível compreender as identidades que formam e conformam os estudantes.
Ampliar o olhar sobre as possibilidades de educação para além da escola não diminui nem restringe a importância e o papel dela; apenas aponta que as demandas de educação podem ser mais bem atendidas com a articulação entre o saber escolar e os saberes que se descobrem por meio de outras formas de educação. A ideia da articulação de saberes que vão além da escola aposta na potencialidade educativa dos espaços e territórios de circulação de crianças e adolescentes, que produzem uma matriz de convivência e de aprendizagem pouco reconhecida pelos currículos escolares. Madalena Godoy (2015), ao questionar os sentidos envoltos no uso do território como espaço educativo, destaca algumas razões fundamentais para nos abrirmos para as múltiplas aprendizagens que podemos tecer com o/no/do território:
»» Conhecer e se reconhecer no território Quem ousa escapar dos espaços físicos fechados por muros e portas e vai viver as cidades, as humanidades, as culturas? Quando falamos em educação integral, falamos em ampliar espaços, alargar horizontes, enriquecer o olhar, as leituras. Ao andar por uma praça, por exemplo, podemos nos perguntar: Que praça é esta, qual é o nome dela, por que tem esse nome, quem a projetou, implantou? E aí está a história, a vida do bairro, da cidade e da geografia dos espaços públicos. Que histórias as crianças estão tendo a oportunidade de contar? De ouvir? De aprender? De compartilhar? Que sentidos, pontes e diálogos estabelecemos com essas histórias e com as tantas histórias que a cidade oferece? É fundamental que os educandos circulem e vivam o bairro e a cidade, acessando seus bens culturais, conhecendo e se reconhecendo nessas produções. Isso fortalece o diálogo com vozes, saberes e culturas e auxilia na construção e valorização da identidade dos educandos. 53
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O território não é, portanto, um espaço definido metricamente pelos muros escolares, e sim um espaço de aprendizagem sem limites e fronteiras. Espaços envoltos em novas e inovadoras possibilidades de sociabilidade, de pertencimento, de intencionalidades, de partilha, de vida, de histórias compartilhadas.
»» Construção de sentido para a aprendizagem
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Favorecer uma aprendizagem inundada de sentido é um dos nossos objetivos primordiais, e uma das formas de conseguir isso é aliar aos propósitos didáticos, propósitos comunicativos e sociais, abrindo pontes e diálogos preciosos com situações e práticas sociais reais, ou seja, com o que acontece no território, na comunidade em que os educandos estão inseridos. Isso significa que os temas que mobilizam a comunidade transformam o currículo e tornam-se objeto de estudo na sala de aula. E as ações pedagógicas transformam o cotidiano e são incorporadas pela comunidade. Portanto, o ato de aprender envolve o ato de conhecer e de intervir em seu meio, por isso precisamos apostar cada vez mais nas riquezas que a comunidade nos oferece, fortalecendo o que já existe nesses espaços por meio de um constante processo investigativo de mapeamento e reconhecimento dessas oportunidades. Trata-se, como definiu Barbosa (2009, p. 48), de um “currículo constituído pelo encontro dos diversos mundos que marcam a existência dos sujeitos que pertencem a estas escolas, um currículo mediado pela intervenção docente que atenta à urgência em dialogar com o que emerge nas relações entre os sujeitos, constrói seu fazer pedagógico.” Vale destacar, portanto, que ir além dos muros da escola não significa simplesmente aprender os conteúdos curriculares em outro lugar, mas abrir possibilidades concretas para que os assuntos que interessam às crianças e aos jovens e aqueles assuntos que preocupam a comunidade sejam objeto do trabalho sistemático da escola.
»» Vivência da cidadania Nossas crianças e nossos adolescentes são atores sociais, produtores de cultura e conhecimento e sujeitos de direitos. Direitos totais e indivisíveis, entre os quais destacamos o do exercício da participação e da cidadania. Para tanto, é fundamental viver, experimentar as questões reais da vida em sociedade que emergem dentro e fora da escola, num diálogo contínuo de problematização, reflexão, intervenção e transformação. Na educação integral, a participação é essencial para que os diversos atores possam interagir e colaborar para um projeto de educação plural. Portanto, para que esse projeto se materialize, é necessário que todos deem opiniões, se envolvam e, efetivamente, participem das tomadas de decisão na escola e também na vida da comunidade e do território que a congrega.
»» Valorização da cultura e do conhecimento popular Aprender com e no território pressupõe que os diálogos interculturais e com os saberes das famílias e comunidades impregnem o currículo. A cultura e o conhecimento popular, o conhecimento científico, o acadêmico, o comunitário, o tradicional, o religioso, ou seja, todos os conhecimentos são valorizados e respeitados e crescem justamente no seu contato. Portanto, concordamos com Barbosa (2009, p. 34) quando ela destaca que “a organização curricular deve prever estratégias para se aproximar, identificar, mapear e conhecer as diversas crenças, as manifestações linguísticas, religiosas e culturais das famílias que constituem a comunidade escolar, bem como precisa também estar atenta ao contexto social no qual a escola está inserida”.
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»» Outros modos de aprender
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A integração e utilização de outros espaços para a realização de atividades educativas contribuem para romper com modos altamente impregnados e estereotipados de pensar, fazer e viver a educação, como, por exemplo: as cadeiras perfiladas; o professor à frente, tutorando e controlando as crianças; os sinais; as aulas de cinquenta minutos; etc. Tanto dentro quanto fora da sala de aula e da escola, o espaço precisa convidar para o encontro, o diálogo, a troca; deve favorecer a autonomia, o sentir, o ouvir e ser ouvido; deve estar recheado de intenções, marcas e signos reveladores das histórias que estão sendo descobertas e contadas. E deve instigar outros modos de aprender, nos quais as linguagens das crianças e dos jovens, seus interesses, gostos e necessidades sejam efetivamente acolhidos. Sendo assim, ações como correr, pular, fazer uma roda, dançar, brincar, olhar, fotografar, sentar no chão, caminhar por entre ruas, subir em árvores, contemplar, sonhar, conversar, etc., marcam os nossos espaçotempos educativos, contribuindo para a crença de que a aprendizagem se dá de múltiplas formas e em diferentes espaços.
»» Direito ao espaço Em íntima relação com todos os outros pontos aqui destacados está a questão do direito ao espaço público. Tal questão é fundamental porque, no que tange às camadas mais oprimi das e empobrecidas, esse direito vem sendo historicamente negado e negligenciado. Cada vez mais são criados nichos e espaços que afastam a possibilidade de acesso e contato com a diversidade, homogeneizando e padronizando formas de manifestação e consumo cultural. A escola precisa intencionalmente romper e inverter essa lógica e criar estratégias que garantam o direito que as crianças têm à cidade.
»» Transformação do território Uma praça depredada, a falta de calçamento, um sinal de trânsito que não funciona, um muro que precisa e pode ser revitalizado, um prédio que conta uma bela história do nosso povo, da nossa cultura, etc. Ao conhecer e se reconhecer no território, ao perceber as aprendizagens decorrentes dessa imersão, ao identificar potencialidades e necessidades nesses espaços, transformações podem ser impressas. A escola pode e deve contribuir para transformações no território. Portanto, ao conectar o processo de ensino e aprendizagem à vida do educando, possibilitamos que ele se beneficie dos recursos educativos de sua comunidade e produza conhecimentos relevantes para sua transformação. Vale realçar que os pontos destacados anteriormente estão intimamente ligados, um complementando o outro. E as dimensões do tempo e do espaço também são faces de uma mesma moeda, estando mutuamente imbricadas. Um tempo reinventado necessita de espaços reinventados. Como destaca Arroyo (2007a, p. 15), “é necessário mais tempo, mas não só mais tempo na escola. A escola tem que reconhecer e dialogar com os outros tempos e espaços de formação fora dela”.
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Interações/Relações entre os sujeitos do processo ensino e aprendizagem
“Conhecer é tarefa de sujeitos, e não de objetos. E é como sujeito, e somente enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer.” Paulo Freire
Talvez tenhamos aqui os personagens principais e centrais na dimensão do currículo, sem os quais qualquer outra discussão perde o sentido: os sujeitos inseridos no processo de ensino e aprendizagem. E é a partir do que acreditamos e defendemos como conceito de sujeito que o currículo ganha seu desenho inicial. 58
Tomemos como ponto de partida um sujeito que é diverso, que se produz com ele mesmo, com tudo e todos a sua volta; um sujeito potente, criativo, mutável e, por isso, complexo: O sujeito é, pois, concebido como uma pessoa que existe no tempo e no espaço, e que possui pensamentos, percepções, sentimentos, desejos e motivações, cuja existência encontra na convivência com o outro a sua plena realização. Trata-se de um ser complexo formado por diversas esferas (PEQUENO, 2010, p. 155).
A partir disso, é importante ir além, e olhar para a perspectiva do sujeito de direitos, que ao longo da história e da intervenção humana foi desenhando-se e fazendo-se presente, principalmente nas pautas das esferas educacionais e escolares:
A emergência do sujeito de direitos é uma das mais importantes conquistas da modernidade. Com esta noção também surgem alguns dos princípios fundamentais da vida social [...]. A pessoa humana é também o sujeito central dos direitos humanos. O sujeito, ao ser apresentado sob a forma pessoa humana, terá agora um instrumento privilegiado de defesa, promoção e realização de sua dignidade: os direitos humanos (PEQUENO, 2010, p. 155).
Nessa perspectiva, contemplar, em nossos currículos, um sujeito de direitos prevê, primeiramente, vê-lo, percebê-lo, reconhecê-lo, escutá-lo; sentir cada criança, jovem ou adulto como partícipes do processo; e dessa forma deixar emergir a diversidade de culturas, de olha res, de vozes, de histórias, de experiências e saberes, como apontam as Diretrizes da Educação Básica (BRASIL, 2013, p. 35): Em suas singularidades, os sujeitos da Educação Básica, em seus dife rentes ciclos de desenvolvimento, são ativos, social e culturalmente, porque aprendem e interagem; são cidadãos de direito e deveres em construção; coparticipes do processo de produção de cultura, ciência, esporte e arte, compartilhando saberes, ao longo do seu desenvolvimento físico, cognitivo, socioafetivo, emocional, tanto do ponto de vista ético, quanto político e estético, na sua relação com a escola, com a família e com a sociedade em movimento.
Essa diversidade compõe, com maior ou menor espaço e escuta – a depender das relações de poder ali estabelecidas –, o currículo das nossas escolas. Miguel Arroyo (2007b) aponta sua preocupação com os caminhos que vão na contramão dessa lógica, apresentando currículos pobres, porque pobres de sujeitos, sejam como produtores ou campo de estudo.
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Esses elementos estão presentes – de forma bastante explícita – no documento do Ministério da Educação e Cultura (BRASIL, 2013, p. 25): A educação destina-se a múltiplos sujeitos e tem como objetivo a troca de saberes, a socialização e o confronto do conhecimento, segundo dife rentes abordagens, exercidas por pessoas de diferentes condições físicas, sensoriais, intelectuais e emocionais, classes sociais, crenças, etnias, gêneros, origens, contextos socioculturais, e da cidade, do campo e das aldeias. Por isso, é preciso fazer da escola a instituição acolhedora, inclusiva, pois essa é uma opção “transgressora”, porque rompe com a ilusão da homogeneidade e provoca, quase sempre, uma espécie de crise de identidade institucional. 60
Estabelecer uma ponte entre toda a riqueza citada acima e o currículo escolar torna-se algo realmente transgressor. Essa ponte passa, obrigatoriamente, pelo trabalho e formação docente, pelo formato de gestão escolar adotada (que pode ser participativa ou não), pela relação com o território, e, principalmente, pela relação estabelecida entre educandos, educandas, educadores e educadoras no espaço escolar. Não há outra forma de transgredir se não nos sentimos desafiados a repensar tais relações e questionar quais as experiências entre os sujeitos, os espaçotempos e o processo de ensino-aprendizagem que devem estar presentes na escola. Ao encarar e estabelecer essas relações de forma mais horizontal, e tendo a criança e o jovem como os sujeitos centrais nessa discussão, damos vozes a falas antes caladas e colocamos os educandos e as educandas como produtores de conhecimentos e atores diretos do currículo. Diante disso, o currículo com foco nos sujeitos ali presentes ganha cores diversas, inúmeros traços, outras texturas, diferentes saberes, melodias antes não tocadas, experiências antes
guardadas, perguntas que não eram feitas e/ou respondidas. E vamos constituindo educandos e docentes como sujeitos atuantes diante do conhecimento, que não estão, e nunca devem estar, submissos diante das relações estabelecidas com os saberes, e sim vivenciando toda sua inteireza. Dessa forma, o que antes não era visto e compreendido como conhecimento e não recebia status de saber pode – e deve – passar a fazer parte do currículo da escola. Aí estão os questionamentos, as discordâncias e, principalmente, a certeza da incompletude; e, por sermos essencialmente incompletos, faz-se necessário o olhar do outro, a presença do outro, o saber do outro; numa perspectiva de trabalho coletivo, do grupo e com o grupo. Essa dimensão de grupo não diz respeito apenas ao trabalho do educador com seus educandos e educandas, mas, principalmente, ao grupo estabelecido entre docentes e ao formato político que essas pessoas optam, juntamente com os outros atores da gestão escolar, para materializar o currículo. Nesse contexto, ao perceber-se e compreender-se como corresponsável pelo Projeto Político-Pedagógico do espaço escolar, não é difícil que o docente entenda a importância da experiência da coletividade e, por isso, a necessidade do trabalho em parceria. Apesar de, por vezes, encontrarmos certa resistência em alguns docentes, acreditamos que não há outra forma de conceber uma proposta integrada, integradora e que contemple o sujeito na sua integralidade se não nos permitimos sonhar, aprender, pensar, planejar, executar e avaliar de forma conjunta. Estamos falando de diferentes saberes que se conectam, que estão emaranhados por uma teia de sentido e significados, saberes que não nasceram compartimentalizados, ciências que não foram desenvolvidas de forma aleatória. Por isso, o caminho apontado é o de empreender uma proposta educativa e de escola que tenha como foco a experiência da interdisciplinaridade. Para tanto, esse processo tem de estar acompanhado de um itinerário
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formativo consistente, articulado e sensível. Concordamos com Leite e Pacheco (2013, p. 204) quando destacam que: ‘“a concretização do processo de agência (dos professores) passa pela criação de ambientes de formação que propiciem uma sustentada compreensão da complexidade que atravessa o fenômeno educativo e um profundo conhecimento do modo de o organizar e desenvolver.” A abordagem interdisciplinar requer tempo e rigor, pois, conforme apontado no Projeto Educativo do Brasil Marista (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010, p. 85):
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Reúne diferentes componentes curriculares num contexto mais coletivo no tratamento dos fenômenos a serem estudados ou, ainda, das situações-problema em destaque. É uma abordagem que exige compro misso do/da professor/professora com a intercomunicação, ampliação e ressignificação de conteúdos, conceitos e terminologias.
É apenas a partir desses espaçotempos de formação que o docente pode aprofundar-se na compreensão do trabalho interdisciplinar, e isso pode se desenvolver e ganhar vida na sua práxis, estabelecendo outra relação com o conhecimento e os sujeitos do processo educativo.
Interações/relações entre diferentes linguagens e áreas do conhecimento Pensar uma proposta de educação integral em tempo integral requer, como apontado anteriormente, outra forma de organização curricular e outra postura diante do conhecimento, dos diferentes saberes e sujeitos. Com o rompimento de formações lineares e conteudistas, e exercitando cada vez mais nossa capacidade de profunda reflexão, ação e compreensão, podemos passar a valorizar outra nova forma de produzir conhecimento e contextualizá-lo.
É o trabalho integrado interdisciplinar que alarga nossas possibilidades e recontextualiza os conhecimentos, os saberes e flexibiliza o fazer pedagógico, explicitando as formas de relação, de reciprocidade e de aproximação entre as diferentes áreas (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010). De acordo com Gallo (2000, p. 27), o sentido geral da interdisciplinaridade é: A consciência da necessidade de um inter-relacionamento explícito e direto entre as disciplinas todas. Em outras palavras, a interdisciplinaridade é a tentativa de superação de um processo histórico de abstração do conhecimento que culmina com a total desarticulação do saber que nossos estudantes (e também nós, professores) têm o desprazer de experimentar.
Tem-se claro, a partir do que já propusemos anteriormente, qual a nossa concepção de sujeito, nossa proposta de formação para ele e nosso objetivo em atender a todas as suas dimensões, garantindo uma educação integral. No entanto, para que possamos tornar tudo isso possível, faz-se necessário lançar nossas flechas para outros horizontes. É necessário trabalhar com outras ferramentas, com diferentes conexões. Uma proposta de educação integral em tempo integral anseia por diferentes desenhos, e é alimentada pela inovação, mais ainda, pela ousadia, pois “a escola de tempo integral requer um projeto histórico, cultural e socialmente relevante caracterizado pela diversificação de conteúdos, de metodologias e oferta de atividades educativas que atendam às necessidades e potencialidades dos estudantes” (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010, p. 94). Quando falamos de inovação e ousadia não nos referimos a um significado massificado e estéril, mas sim a uma ponte com a capacidade de criação do humano, a organicidade da sua criatividade, a possibilidade de materializar sonhos, de fazer diferente, de fazer melhor – não de forma individual, mas coletiva, para o mundo, conduzindo ao aperfeiçoamento, que vem de um certo estranhamento, de uma indignação, de um incômodo pedagógico, que deve nos levar a, como escreveu Gallo (2002), educar com a fúria e a alegria de um cão que cava seu
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buraco. Educar escavando o presente, militando na miséria do mundo, de dentro do nosso próprio deserto. Nessa perspectiva, o significado, a compreensão e a relação de e entre linguagens e áreas do conhecimento ganham projeção importante enquanto possibilidades, conceitos e experiências para esse desejo de construção de um novo mapa/desenho de currículo escolar.
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Pensar as diferentes linguagens a partir da educação integral em tempo integral é quase que redundante, pois não há outra forma de contemplar a inteireza do sujeito se não pelas suas cem linguagens.9 As linguagens são produtoras de significados e de identidade, vão além de representar o mundo. Criam aquilo que passa por real. O mundo, a realidade, a vida, os sujeitos são produzidos nas práticas culturais e políticas de linguagem (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010). Os sujeitos presentes em nossos espaços escolares, sejam eles educandos ou educadores, são diversos, múltiplos, criam e recriam de diferentes formas e nos apelam, com ou sem nossa participação, por poder vivenciar tudo aquilo que desejam, sentem, pensam, veem. Vale aqui realçar as palavras de Chalhub (2003, p. 6), quando coloca que “o corpo fala, a fotografia flagra, a arquitetura recorta espaços, a pintura imprime, o teatro encena o verbal, o visual, o sonoro e a poesia – forma especialmente inédita de linguagem – surpreende, a música irradia sons, a escultura tateia, o cinema movimenta, etc.”. Essa profusão de sentidos, cores, conhecimentos e relações não pode ser compartimentalizada, dividida, segmentada, recortada. Temos que, com esse anseio por outros desenhos,
O termo “cem linguagens” faz referência à experiência do Programa para a Primeira Infância realizado em Reggio Emilia, na Itália. Essa abordagem inovadora incrementa o desenvolvimento intelectual das crianças através da focalização sistemática na representação simbólica. O educador e pedagogo Loris Malaguzzi, um dos idealizadores dessa proposta, é autor do poema que ficou mundialmente conhecido “Ao contrário, as cem existem” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999).
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propor uma escola com um currículo não disciplinar, em que as áreas do conhecimento10 sejam encaradas como uma possibilidade mais orgânica de acessar os saberes científicos do mundo. Ao exercitar a não disciplinarização do currículo, a conexão entre o conhecimento, entre os sujeitos e entre ambos ganha sentido e se fortalece. Pensar e fazer currículo através das áreas pode superar o isolamento, abrindo a possibilidade de diálogos e convivência (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2015). Além disso, esse formato contribui para o desmonte da hierarquização dos conteúdos, problematizando as relações de poder estabelecidas ao longo do tempo, e materializadas, também, através de algumas disciplinas. Estabelecer esses elos desafia todos os atores que estão no espaço escolar a envolver-se com o conhecimento em sua unicidade. E nesse cenário, o educador e a educadora têm ainda o grande desafio de articular distintas áreas do saber e, ao mesmo tempo, evidenciar as especificidades de cada área, uma vez que só se consegue integrar conceitos de distintas áreas quando se conhecem tais conceitos e se identificam suas propriedades, características e especificidades. Conforme descrevem Titton e Bruscatto (2015, p. 5): Distintos saberes precisam conviver sem perder as características que lhes tornam peculiares e, ao mesmo tempo, permitir interfaces entre si. É no conjunto, e não individualmente, que essas experiências e esses saberes fazem a diferença e vêm ao encontro da formação integral do sujeito.
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais, as áreas do conhecimento da base comum obrigatória são: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e suas Tecnologias. Cada uma dessas áreas é composta por diferentes linguagens; e outras formas de expressar, significar e produzir linguagem e conhecimento manifestam-se em nossas culturas e precisam compor nosso currículo. 10
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E então recaímos novamente no importante e necessário rigor dos itinerários formativos realizados na escola. É apenas por meio desse espaçotempo e do mergulho na reflexão sobre a sua práxis que o professor conseguirá compreender a natureza desse processo curricular e impactar na qualificação da aprendizagem. Esse itinerário deve ser marcado por discussões aprofundadas acerca de temáticas como: dialética e método, infâncias e juventudes, território, arte, cultura, tecnologia, educação integral, alfabetização, avaliação, etc. Abastecidos com essas discussões, leituras, trocas e sendo produtores do próprio conhecimento, educadores e educadoras, junto de todos os outros sujeitos envolvidos com a educação escolar, podem traçar um novo mapa para uma nova escola, e podem, portanto, percorrer um outro caminho:
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Não podemos perder de nosso horizonte que a utopia que nos guia é algo bem maior: a construção de uma concepção de saber que vislumbre a multiplicidade sem a fragmentação; um currículo e uma escola na qual as crianças possam aprender sobre o mundo em que vivem, um mundo múltiplo e cheio de surpresas, e possam dominar as diferentes ferramentas que permitam seu acesso aos saberes possibilitados por esse mundo, e possam aprender a relacionar-se com os outros e com o mundo em liberdade (GALLO, 2000, p. 39).
O trabalho com projetos como condição essencial para a efetivação de um currículo integrado e integrador.
“O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos.” Paulo Freire
Como vimos, estabelecer relações entre saberes, sujeitos, tempos, espaços e culturas é essencial para a efetivação de uma educação integral. No entanto, é necessário nos perguntar que caminhos e proposições metodológicas favorecem essas relações e interações. Paulo Freire (1996) já nos trazia algumas pistas bastante relevantes e propunha a necessidade de educadores e educandos descobrirem-se epistemologicamente curiosos. É a curiosidade que nos move, que nos interpela, que alimenta nossa caminhada, que nos faz questionar, que produz encantamento, evidenciando nosso desejo em saber e ser mais. Destacando aqui as palavras de Freire (1996, p. 86): Antes de qualquer tentativa de discussão técnica, de materiais, de métodos para uma aula dinâmica, é preciso, indispensável mesmo, que o professor se ache “repousado” no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano. É ela que me faz perguntar, conhecer, atuar, reconhecer.
E, para instigar a pergunta e a curiosidade, é essencial concebermos a problematização como uma estratégia que orienta e provoca aprendizagens e favorece a integração de linguagens e conhecimentos. De acordo com o Projeto Educativo do Brasil Marista (2010, p. 85): 67
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A problematização colabora com a prática interdisciplinar, elenca co nhecimentos necessários e possíveis na integração e no/na enfretamento/solução das questões levantadas na busca por compreendê-las e significá-las e favorece a proposição de soluções para essas situações.
Nesse sentido, destacamos o trabalho com projetos, pois essa abordagem favorece o estabelecimento de elos entre as diferentes áreas do conhecimento numa situação contex tualizada e problematizadora de aprendizagem. Além disso, fortalece a comunicação entre os saberes, fazendo com que o ensino vá na contramão de um processo histórico que é conhecidamente fragmentado e desarticulado.
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Organizar a materialização curricular através do trabalho com projetos prevê fundamentar uma proposta de ensino permeada de acordos éticos baseados tanto nas propostas dos educandos, e naquilo que eles querem saber, como em suas necessidades formativas, e naquilo que os professores consideram importante para sua formação (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2015). Essa abordagem faz com que os arranjos curriculares, os mapas pedagógicos, a dinâmica escolar, o processo de avaliação e a forma de ensinar e aprender sofram influências diretas das relações estabelecidas entre educando e educador, necessitando que sejam muito mais horizontais, e que o professor atue como mediador e pesquisador na descoberta do conhecimento junto de seus educandos. Concordamos com Barbosa e Horn (2008, p. 33), quando destacam que “os projetos evocam a ideia de um percurso dinâmico, sensível aos ritmos comunicativos, e contêm dentro de si o sentido e o tempo da pergunta, da pesquisa, das crianças.” Nessa forma de organização, professores e estudantes constituem-se, portanto, coautores do conhecimento, dos processos de conhecer e, em especial, do próprio planejamento curricular. O planejamento deixa de ser domínio exclusivo do professor e legitima os saberes e as
representações dos educandos, provocando alterações nas relações de saber-poder, incorporando objetivos, necessidades e interesses das crianças e dos adolescentes (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010). O trabalho com projetos não se restringe ao estudo de um tema: o ponto central é a reso lução de problemas, que podem surgir do professor, do grupo de educandos ou do próprio contexto social. Portanto, trabalhar com projetos significa repensar o trabalho educativo, seus espaçotempos, sua forma de lidar com o conhecimento e com o mundo da informação. Significa pensar na aprendizagem como um processo global e complexo, no qual conhecer a realidade e intervir nela não são atitudes dissociadas. Quem aprende quando trabalhamos com projetos? Aprendem os educandos, os educadores, os funcionários, os pais, as instituições, a sociedade, isto é, toda a comunidade troca informações, cria conhecimentos comuns, formula perguntas e realiza ações. Trabalhar com projetos é criar uma instituição aberta, em que os sujeitos aprendem uns com os outros e as investigações sobre o cotidiano e a realidade têm um papel fundamental. É preciso transformar a escola em uma comunidade de investigação e de aprendizagem. Tais caminhos e experiências possibilitam a construção de outros espaços, outros tempos, outras relações, outra escola e outra educação. Disso decorre que a educação não tem um só caminho a seguir e que sua estruturação não deve priorizar o estritamente racional, mas, ao contrário, dar expressão às diferentes formas de atividades criadoras. O sujeito ético, aspiração do projeto pedagógico moderno, se constitui numa pluralidade de experiências e numa abertura ao mundo e ao outro para os quais a experiência estética, enquanto um horizonte aberto, assume um sentido eminentemente formativo (HERMANN, 2005, p. 75). 69
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Considerações finais Ao longo do que pudemos compartilhar neste texto, muitas foram as pistas e os possíveis caminhos nessa tentativa política, humana, teimosa e prazerosa de fazer uma educação integral em tempo integral e materializar seu currículo. Temos certeza de quais relações não queremos mais estabelecer; temos certeza de quais vozes queremos ouvir e elevar; temos certeza de quais tempos queremos garantir e ampliar nos nossos espaços escolares e quais não queremos; temos certeza de que a fragmentação não é nossa bandeira, e que nossa necessidade de articulação vai além das áreas do conhecimento.
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Mas muitos são os desafios para garantir essas interações e essas novas relações no processo de ensino-aprendizagem que se pretende integral e integrador. Por isso, no próximo capítulo poderemos saborear algumas ações, práticas e experiências vividas no interior de nossas Unidades Educativas, e o quanto elas revelam nossa busca pelo enfrentamento desses desafios.
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Quando áreas, eixos e linguagens se integram: Projeto Ora Bolas Gisele Maria Braciak Nádia Fernanda Borges
O circo chegou...
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“De onde vem esse cheiro novo, esse cheiro de aventura? E esse brilho, esse barulho embrulhando a manhã? Vem de onde, vem de onde essa vontade de dançar? Até as nuvens ansiosas, fazem fila no céu para ver o que que há. Foi o circo que chegou espalhando na cidade um ar de felicidade.” Roseana Murray, O Circo
“Fazer malabarismo na beira do abismo. Continha de bolinha jogando bola pra cima. Palhaço de bola na meia enrola. O circo florido fica colorido!” Produção coletiva, 2º Ano B – CEM Lucia Mayvorne11
11 O Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne está localizado no município de Florianópolis, SC, em uma região da cidade denominada Maciço do Morro da Cruz, mais especificamente na comunidade empobrecida do Monte Serrat. A Unidade atende, desde 2012, crianças e adolescentes dos segmentos Fundamental I e II na perspectiva da educação integral em tempo integral, e desde 2015 atende, também, o Ensino Médio. No Fundamental I, a educação integral é desenvolvida em dois espaços físicos distantes cerca de um quilômetro, os quais são chamados de prédio I e prédio II.
Quanto significado podemos vislumbrar nessa produção de texto realizada pelos educandos do 2º Ano B do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne, resultado de um trabalho no qual as crianças puderam transitar entre o universo do circo, das bolas (esse brinquedo milenar) e da cultura escrita, por meio do lúdico, da arte, da interação e da produção de conhecimentos inundados de sentidos. Tudo começou na oficina de Artes Circenses, ao pensarmos num projeto que tivesse como tema/problema as brincadeiras, os jogos e as práticas corporais feitas com bolas, cujo objetivo primordial era instigar e ampliar o desenvolvimento do repertório psicomotor dos alunos. Ao levar essa proposta para as crianças, inúmeras ideias, caminhos e possibilidades surgiram, e esse objeto tão familiar para todos – a bola – pôde ser reinventado e explorado de múltiplas formas, oferecendo contextos ricos e desafiadores para o trabalho com diversas linguagens, entre elas: o movimento, a arte circense, a leitura, a escrita e as artes visuais. Quando iniciamos um projeto com as crianças, priorizamos a construção de um planejamento participativo, por meio do qual as linguagens, ideias e saberes infantis entram em cena e são considerados. Começamos, portanto, ouvindo as crianças sobre o que elas conheciam acerca desse objeto – a bola – e instigando relações entre ele e outras formas semelhantes encontradas em seu entorno. Por meio desse diálogo inaugural, as crianças falaram sobre todos os tipos de bolas que conheciam (bola de meia, de gude, de futebol, vôlei, basquete, tênis, de plástico, de couro, etc.), e em seguida começaram a buscar em seu entorno objetos com formato semelhante ao de uma bola [“Prô, olha aqui no meu casaco, o botão também é uma ‘bola’!”; “Prô, quase todas as frutas são bolas!”; “Prô, os planetas também são bolas!”; “Prô, a gente nasce de dentro de uma bola, que é a barriga da nossa mãe!”] O ponto de partida para o desenvolvimento do projeto foi essa escuta, e para ampliar nossos olhares sobre as hipóteses, os saberes e as ideias que surgiram, saímos pelo bairro com uma câmera fotográfica em mãos e fomos registrando tudo o que identificávamos como 75
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bolas, formas arredondadas e círculos. Ao voltarmos para a sala, cada um desenhou os objetos de que iam se lembrando, e depois fizeram a tentativa de escrita dos desenhos representados. Seguem alguns registros desses momentos (Imagens 1 a 7):
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Imagem 1 – Alunos do 2º Ano B desenhando objetos de forma arredondada Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 3 – Alunos do 2º Ano B – produção coletiva Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 2 – Alunos do 2º Ano B – produção coletiva Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 4 – Produção de aluno do 2º Ano B Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 5 – Produção de aluno do 2º Ano B Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 7 – Produção de aluna do 2º Ano B Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne. Imagem 6 – Produção de aluno do 2º Ano B Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Com base nessa escuta, nas trocas e nas produções das crianças (fotos, desenhos, escritas, falas, etc.), muitas ideias surgiram, fortalecendo, com isso, o espaço do planejamento participativo e conferindo sentido a cada ação pensada no desenvolvimento do projeto. Começava, nesse momento, o Projeto Ora Bolas, o qual, por meio da participação ativa e criativa dos educandos e de outros atores que foram sendo envolvidos no processo (educadores, família) foi ganhando novos contornos, intencionalidades e possibilidades.
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Um dos cenários que favoreceu a troca, a interação e o vislumbre de novas possibilidades para esse projeto foi o conselho de classe. É que, em nossa unidade, participam do conselho de classe do Ensino Fundamental I todos os educadores que trabalham nesse segmento, representando, dessa forma, as diferentes linguagens nas quais os educandos expressam suas aprendizagens. E faz parte do conselho a socialização dos projetos de trabalho para pensarmos o planejamento estratégico diante dos desafios identificados em cada turma, no intuito de integrar saberes, pessoas e ações, tecendo elos entre objetivos e práticas presentes nos dois espaços físicos que compõem nosso Fundamental I Integral (prédio I e prédio II). A socialização do Projeto Ora Bolas, que começou no prédio II, abriu caminho para a articu lação entre a linguagem circense e o processo de alfabetização e letramento dos educandos do 2º Ano B, tendo em vista o desafio e a necessidade de integrar saberes e práticas e de enriquecer e ampliar o contato das crianças com a cultura escrita. Portanto, com o objetivo de favorecer a ampliação e o enriquecimento das linguagens simbólicas (movimento, desenho, escrita, leitura, corpo, arte, etc.), procuramos integrar os espaços de aprendizagem (prédio I e prédio II) e aproximar diferentes linguagens e áreas do conhecimento.
Vale destacar aqui que é por meio da imersão nas linguagens culturais e simbólicas que as crianças aprendem a ser e a comunicar-se com os demais, utilizando suas “centenas de linguagens”.12 Todas essas linguagens apresentam, de forma significativa, interlocuções com a linguagem escrita, favorecendo e enriquecendo o processo de alfabetização e letramento. Uma alfabetização no mundo, para o mundo e em muitas linguagens! É fundamental, portanto, construirmos uma escola que sabe ler, interpretar e significar as linguagens da infância: a brincadeira, a arte, a poesia, a música, a dança, o desenho, a escrita, as interações, a fantasia, o movimento, as histórias, a imaginação, etc. Esse projeto criou o contexto para essas tantas leituras, interpretações e construções de sentidos e significados! Portanto, a partir do estabelecimento dessa valiosa parceria, iniciamos um planejamento conjunto, procurando envolver os educandos por meio de uma abordagem lúdica, contextualizada e problematizadora. Nesse processo, o desafio maior foi a integração entre as ações desenvolvidas nos dois espaços (prédio I e prédio II), mas, ao mesmo tempo que esse foi o maior desafio, foi também uma grande oportunidade, pois, por meio dessa interação, foi possível conferir ainda mais sentido a algumas práticas, em especial àquelas voltadas aos atos de ler e escrever. Muitas foram as expressões, criações e aprendizagens que emergiram no desenvolvimento desse projeto. A seguir, contaremos um pouco desse percurso de vivências, experiências, produções e criações.
A expressão “as cem linguagens” tem origem em um poema escrito pelo educador italiano Loris Malaguzzi para expressar as múltiplas linguagens que as crianças possuem para expressar e significar o mundo, realçando a ideia da criança como ator social, produtora de conhecimento e cultura. Para conhecer mais sobre Loris Malaguzzi e suas ideias, pode-se consultar EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 1999. 12
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Experimentando ludicamente a linguagem do movimento
“Morango com chantilly, Ver mágico de cartola, O canto do bem-te-vi, Bola, bola, bola, bola.” Ruth Rocha
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Como destacado anteriormente, a criança comunica e expressa conhecimentos, emoções, sentimentos e desejos por meio de múltiplas linguagens. Nesse sentido, todo trabalho educativo que tem como perspectiva a formação integral da criança precisa considerar e valorizar as diferentes linguagens utilizadas por ela na expressão e interação com o outro e com o contexto em que está inserida. Dentre essas linguagens, destacamos o movimento, concebido aqui como uma importante dimensão do desenvolvimento e da cultura humana. Ao pensarmos a aprendizagem no contexto da educação integral, é necessário romper com concepções que privilegiam apenas o aspecto cognitivo nesse processo, apresentando o conhecimento de forma fragmentada e abstrata. Ao contrário, como destaca Freire (1989), é fundamental garantir uma educação de corpo inteiro, comprometida com todas as dimensões do nosso ser (intelectual, afetiva, social, física, simbólica). Freire (1989) destaca a importância de garantir uma educação na qual o educando seja visto em sua inteireza, evidenciando a relevância do corpo na escola, visto como uma estrutura a ser desenvolvida, e não como algo desprezível ou que atrapalha a aprendizagem. Para o autor,
Corpo e mente devem ser entendidos como componentes que integram um único organismo. Ambos devem ter assento na escola, não um (a mente) para aprender e o outro (o corpo) para transportar, mas ambos para se emancipar [...]. Fica difícil falar de Educação concreta na escola quando o corpo é considerado um intruso. A concretude do ensino depende, a meu ver, de ações práticas que deem significado ao “dois mais dois” ou ao “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil”. Sem viver concretamente, corporalmente, as relações espaciais e temporais de que a cultura infantil é repleta, fica difícil falar em educação concreta, em conhecimento significativo, em formação para a autonomia, em democracia e assim por diante. Sugiro que, a cada início de ano letivo, por ocasião das matrículas, também o corpo das crianças seja matriculado (FREIRE, 1989, p. 13).
Portanto, pensando no movimento como linguagem e na educação do e pelo movimento, foram realizadas diversas experiências corporais e sensoriais com as crianças: pintura de círculos segurando o pincel com diferentes partes do corpo (mão esquerda, boca, pés, etc.); pintura corporal, em si mesmo e nos colegas; formação de círculos representados com o corpo, individualmente, em duplas, em pequenos e grandes grupos; realização de movimentos que se assemelham ao movimento de uma bola (cambalhota para a frente, para trás, de lado, em duplas, etc.). A seguir, alguns registros desses momentos essencialmente lúdicos e brincantes (Imagens 8 a 17):
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Imagem 8 – Alunos do 2º Ano B: pintura de círculos segurando o pincel entre o braço e o antebraço Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 9 – Alunos do 2º Ano B: pintura de círculos segurando o pincel com a boca Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 10 – Alunos do 2º Ano B: pintura de círculos segurando o pincel com a perna dobrada Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 11 – Alunos do 2º Ano B: pintura de círculos segurando o pincel com os pés Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 12 – Alunos do 2º Ano B: pintura corporal representando círculos Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 13 – Alunos do 2º Ano B: pintura corporal representando círculos Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 14 – Alunos do 2º Ano B: pintura corporal representando círculos Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 15 – Alunos do 2º Ano B: formação de círculos representados com o corpo Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Imagem 16 – Alunos do 2º Ano B: formação de círculos representados com o corpo Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Imagem 17 – Alunos do 2º Ano B: formação de círculos representados com o corpo Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Dando continuidade a essas vivências, nas quais o corpo foi protagonista, realizamos experimentações com bolas de diferentes tamanhos, pesos e texturas (bolas de tênis, de papel, de gude, pilates, tênis de mesa, malabares, bolas de sabão, balões, bambolês, etc.), e os educandos puderam explorar as possibilidades de cada uma delas, lançando-as, chutando-as e quicando-as em diferentes direções e alturas, rolando-as no chão, no próprio corpo, no corpo dos colegas, criando brincadeiras, interagindo e aprendendo de forma lúdica (imagens 18 a 28).
Imagem 18 – Aluno do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 19 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 20 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 21 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Imagem 22 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 23 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 24 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne..
Imagem 25 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Imagem 26 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 27 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 28 – Alunos do 2º Ano B: experimentação com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Comunicando e aproximando...
“Alfabetizar é conhecer o mundo, comunicando-se e expressando-se, ou seja, a criança se alfabetiza quando ela descobre que o mundo é feito de coisas que pode pegar, cheirar, apertar, morder, coisas que podem ser representadas: na imitação, na dramatização, na música, na expressão corporal, na dança, no desenho, na palavra escrita.” Marta Moschetto e Ricardo Chiquito
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Pensando na necessidade de integrar ainda mais os espaços de aprendizagem (prédio I e prédio II), bem como na criação de contextos significativos de leitura e escrita, começamos a trocar recados e registros das experiências e práticas desenvolvidas. Para tanto, as crianças, com a ajuda das educadoras, escreviam textos contando um pouco do trabalho que havia sido feito. Tal situação instigou nos alunos o desejo e a necessidade de ler e escrever, ou seja, a leitura e a escrita com propósito comunicativo se fizeram presentes, possibilitando que aprendizagens importantes ao processo de alfabetização e letramento fossem vivenciadas. Portanto, as práticas de leitura e escrita invadiram os espaçotempos da unidade: começamos a escrever bilhetes para estabelecer uma comunicação entre os dois prédios, produzimos textos para registrar as descobertas que estávamos fazendo, bem como para compartilhá-las com outras pessoas. Sabemos que, para aprender a ler e a escrever, devemos valorizar e levar para a sala de aula a língua em uso, orientada para a interação social, longe, portanto, daquela língua abstrata, sem sujeito e sem propósito. Escrever para estabelecer uma comunicação entre as professoras dos dois prédios, para trocar ideias e informações sobre o projeto, para registrar desco-
bertas e conhecimentos, para integrar pessoas e processos é dotar de sentido essas práticas. Seguem algumas das produções realizadas com o grupo (Imagens 29 a 31):
Imagem 29 – Projeto Ora Bolas – bilhete elaborado por alunos e professora Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 30 – Projeto Ora Bolas – bilhete elaborado por alunos e professora Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 31 – Projeto Ora Bolas – bilhete elaborado por alunos e professora Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Alguns desses registros eram retomados pelas educadoras, para introduzir cada vez mais os educandos na leitura e escrita convencionais, auxiliando-os na revisão dos textos e incentivando-os a continuar realizando suas valiosas tentativas de escrita. Por meio dos textos lidos e produzidos, foram criados contextos significativos para favorecer a reflexão sobre as regras e regularidades do sistema de escrita (com que letra começa, qual a quantidade de letras, palavras que rimam, palavras que começam com a mesma letra, etc.). Também construímos pequenos textos, os quais expressavam as vivências de cada dia (Imagens 32 a 35).
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Imagem 32 – Projeto Ora Bolas – bilhete elaborado por aluno Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 33 – Projeto Ora Bolas – bilhete elaborado por aluno Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 34 – Projeto Ora Bolas – bilhete elaborado por aluno Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 35 – Projeto Ora Bolas – bilhete elaborado por aluna Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Lendo e contando histórias... A partir do livro O Circo de Roseana Murray, que traz de forma rica e instigante os temas circo e bola, foram realizadas leituras e contações de histórias para o grupo, com o objetivo de ampliar o contato deles com a leitura e a escrita, e incentivá-los a criar as próprias histórias, produzindo textos individual e coletivamente. Embalados pelos poemas da autora, e pensando no diálogo estabelecido entre os dois turnos através dos registros diários, os educandos se sentiram à vontade para criar e compor o texto que produzimos coletivamente. As leituras se tornaram instigantes, num ambiente de identificação com os poemas. Esses poemas traziam elementos da magia do circo, com riqueza de detalhes, os quais não passaram despercebidos pelos educandos, que se identificaram de pronto. O entusiasmo esteve presente na leitura e socialização das interpretações dos textos, e o grande protagonista (eleito pelos educandos) foi o poema “O comedor de fogo”, a partir do qual várias situações didáticas foram criadas: identificação e leitura de palavras, desenhos variados e possibilidades de escritas e reescritas. Seguem algumas imagens desses momentos (Imagens 36 a 42):
Imagem 36 – Projeto Ora Bolas: leituras Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 37 – Projeto Ora Bolas: contação de histórias Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Imagem 38 – Projeto Ora Bolas: registro de um poema feito por aluno Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
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Imagem 40 – Projeto Ora Bolas: desenho Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 39 – Poema “O comedor de fogo”, de Roseana Murray, registrado por aluno Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 41 – Projeto Ora Bolas: leitura e desenhos Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 42 – Projeto Ora Bolas: leitura e desenhos Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Unindo objetivos e práticas... O planejamento participativo e integrado entre os educandos e as educadoras foi essencial para o desenvolvimento do projeto. Valorizando esse momento de escuta, diálogo e construção coletiva, pudemos perceber como a proposta foi sendo recebida pelas crianças e quais eram os caminhos que elas gostariam de percorrer. Dessa forma, o planejamento foi ganhando sentido a partir do momento que elas viam suas propostas e ideias sendo colocadas em prática. Planejar a partir da escuta dos educandos foi essencial, bem como a realização de um planejamento conjunto entre nós, as educadoras responsáveis. Fez-se necessário então não apenas nossos encontros quinzenais para socialização das práticas realizadas e troca de ideias para o planejamento das ações seguintes do projeto, mas a articulação de um momento em que as duas educadoras pudessem estar juntas com o grupo no mesmo espaço. Para que essa ação pudesse acontecer, foram organizadas algumas oficinas/aulas, e cada educadora trouxe seu repertório e suas dinâmicas, então, junto com o grupo, foi possível praticar essa integração das linguagens, como, por exemplo, a partir de brincadeiras com as bolas de malabares na sala, um jogo foi criado: bolas na cesta! Os educandos foram divididos em grupos, as carteiras foram arredadas e a lixeira virou uma cesta! O desafio era acertar
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mais bolas na cesta. Cada grupo contava quantas bolas acertavam, e os educandos iam para o quadro registrar e somar os pontos obtidos. Outro exemplo foi um passeio ao Parque Ecológico Natural, que fica em frente ao prédio I, para brincar de acrobacias e bolas de sabão. No retorno para a sala, o grupo realizou uma produção de texto coletiva sobre as brincadeiras e atividades vivenciadas. Esses momentos foram prazerosos e significativos para todos os envolvidos (educadoras e educandos) e contribuíram para a aproximação das linguagens, proporcionando interações e muitas aprendizagens.
Encaixando as bolas... 94
Com o objetivo de registrar e avaliar o processo desenvolvido durante a realização do Projeto Ora Bolas, resolvemos elaborar um portfólio, que foi carinhosamente denominado “Encaixando as bolas”. Nele documentamos todas as etapas do projeto, por meio de diferentes linguagens (fotos, desenhos, pinturas, produções textuais), dando visibilidade às produções das crianças (Imagens 43 e 44).
Imagem 43 – Projeto Ora Bolas: portfólio “Encaixando as bolas” Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 44 – Projeto Ora Bolas: portfólio “Encaixando as bolas” Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Portanto, com o olhar voltado para a aprendizagem e para o percurso de cada educando, procuramos realizar um acompanhamento contínuo e reflexivo do desenvolvimento do projeto, valorizando as linguagens e os saberes infantis. Podemos destacar como aprendizagens decorrentes desse projeto: • Ampliação do conhecimento das crianças sobre o universo do circo, valorizando suas produções, manifestações e linguagens. • Avanço no desenvolvimento psicomotor, em especial no que tange à coordenação dinâmica global e ao equilíbrio. • Compreensão do movimento como linguagem e importante dimensão da cultura e desenvolvimento humano. • Desenvolvimento de comportamentos leitores e escritores. • Avanço na compreensão do sistema de escrita alfabética. • Ampliação da compreensão das funções sociais da leitura e da escrita. • Ampliação do diálogo e das relações entre os dois espaços que as crianças frequentam, garantindo e fortalecendo o desenvolvimento de um currículo mais integrado e integrador. E, para marcar o encerramento desse projeto, foi realizada uma atividade muito saborosa e divertida com as crianças: preparação de bolinhas de chocolate (os famosos brigadeiros), intervenções e passeios pelo bairro (Imagens 45, 46 e 47), apresentando e ensinando algumas das brincadeiras que aprendemos durante o desenvolvimento deste trabalho.
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Imagem 45 – Encerramento do Projeto Ora Bolas: passeio pelo bairro Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 46 – Encerramento do Projeto Ora Bolas: passeio pelo bairro Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
Imagem 47 – Encerramento do Projeto Ora Bolas: brincadeiras com bolas Fonte: Acervo CEM Lucia Mayvorne.
O Tempo e os Processos...
“O tempo pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas do coração.” Rubem Alves, As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer
Na Grécia antiga, o tempo era designado por meio de três termos: Kronos, Kairós e Aión. Kohan (2003) aborda essas diferentes acepções destacando o Kronos como o tempo do relógio, que designa a continuidade de um tempo sucessivo (passado, presente e futuro). Kairós significa momento crítico, temporada, oportunidade. E Aión, a intensidade do tempo, temporalidade não numerável nem sucessiva, mas intensiva. O autor destaca, ao fazer essa referência aos diferentes sentidos do tempo, que a dimensão Aión se conecta fortemente à potência da infância. Essa dimensão parece indicar, entre outras coisas, que o tempo da vida não é apenas questão de movimento numerado, e que esse outro modo de ser temporal parece com o que uma criança faz. Se uma lógica temporal segue os números, outra brinca com os números. Destacamos aqui as palavras de Kohan (2003, p. 45). O próprio da criança não é ser apenas uma etapa, uma fase numerável ou quantificável da vida humana, mas um reinado marcado por outra relação – intensiva – com o movimento. No reino infantil que é o tempo não há sucessão nem consecutividade, mas a intensidade da duração.
Certamente, não é fácil fazer essas três dimensões do tempo caminharem juntas. Rotinas, cronogramas a serem cumpridos, horários determinados, reuniões e tantas atividades para desenvolver. Essa organização não deixa de ser necessária, até para que possamos viver o tempo do Kairós e do Aión, ou seja, o tempo da oportunidade, do imprevisível, do novo
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que pode surgir no fazer, sentir e saber de cada um, um tempo vivido intensamente, ludicamente e criativamente. No desenvolvimento de um projeto, não podemos descuidar dessas dimensões do tempo, abrindo espaços valiosos para o novo, a invenção, a escuta e o diálogo. Muitos foram os educandos que nos demandavam o tempo do Kairós e do Aión, aprovei tando a oportunidade do momento presente, pedindo mais encontros e mais aulas com as educadoras juntas, sempre relembrando os momentos vividos, provando que a prática desenvolvida conjuntamente foi significativa e agradou o grupo.
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Gostaríamos de ter concluído melhor esta etapa de finalização das atividades, mas o tempo, ah, o tempo! Ele foi parceiro e se retirou de mansinho, deixando saudades. Ficamos com um gostinho de quero mais, uma vontade de romper com os desafios dos espaços, dos encontros e das aprendizagens para buscar novas possibilidades, pois nessas ações percebemos que é possível qualificar cada vez mais a interação entre os grupos, as linguagens e a forma de trabalho. O planejamento pensado em parceria pelas educadoras foi um passo essencial nos cami nhos que estamos percorrendo para garantir a qualidade no processo de ensino e aprendizagem que oferecemos. Pensando estratégias conjuntas, aproximando os saberes e valorizando a participação dos educandos na construção de sua trajetória escolar, estamos ajudando a construir uma educação integral em tempo integral que reconheça, valorize e amplie o direito de as crianças serem crianças e aprenderem como crianças no interior de nossas unidades.
O circo vai embora... “No meio da madrugada o circo partiu em segredo. Não convém fazer barulho quando um sonho se acaba. Virou saudade, virou lembrança, virou poeira no pensamento.” Roseana Murray, O Circo
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Referências ALVES, Rubem. As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer. Campinas: Papirus, 2001. FREIRE, João Batista. Educação de corpo inteiro. São Paulo: Scipione, 1989. KOHAN, Walter Omar. Infância: entre educação e filosofia. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2003. MOSCHETTO, Marta Debortoli; CHIQUITO, Ricardo Santos. Projeto Marista para a Educação Infantil. São Paulo: FTD, 2007. (Coleção Currículo em Movimento, v. 2). MURRAY, Roseana. O Circo. Ilustrações de Caó Cruz Alves. reedição. São Paulo: Paulus, 2011. 100
ROCHA, Ruth. Os direitos das crianças segundo Ruth Rocha. Ilustrações de Eduardo Rocha. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
Quando áreas, eixos e linguagens se integram: Projeto Despertar da Poesia Analuci Ferreira de Souza Baroni Andrea Zocateli Guebur Quando falamos em educação integral, pensamos em um intercâmbio constante de conhecimentos e saberes, bem como de experiências culturais, afetivas, linguísticas, entre outras. Segundo Paulo Freire (2011), o processo de ensino-aprendizagem deve promover o diálogo entre os conteúdos curriculares (formais) e os conteúdos únicos (vivências, histórias, individualidades) tanto dos educadores quanto dos educandos. Assim, constituir um espaçotempo educativo que possibilite a materialização dos sonhos, dos saberes, desejos e de tantas outras dimensões de nossa humanidade é um dos grandes desafios da prática escolar, ou seja, um olhar que vá além e se comprometa com a inovação no aprender. Aliado a isso, compreendemos que, ao fortalecer uma abordagem interdisciplinar, permitimos a interação entre diferentes áreas do conhecimento, com ênfase nas práticas sociais, relacionando saberes e desenvolvendo competências. O Despertar da Poesia é um projeto interdisciplinar que consegue dar asas à imaginação, integrando diferentes componentes curriculares: Língua Portuguesa, Arte, Língua Estrangeira, Expressão Corporal, Educomunicação e Música. A importância desse trabalho integrado e integrador tem sido vivenciada por todos aqueles que se permitem mergulhar no mundo poético, vendo nas artes uma possibilidade de transformação e formação humana e de construção de significados com os educandos e educadores, um movimento em que a produção mexe com as emoções e provoca nos sujeitos a apreensão de novos sentidos.
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No desenvolvimento da proposta, percebemos o quão rico é a construção poética e artística no processo de formação intelectual e humana dos envolvidos, pois o contato com a poesia e com diferentes manifestações artísticas contribui para o aprendizado do educando. A interação e integração entre as áreas é uma forma de quebrar o “tabu” da individualidade, fazendo que essas disciplinas “conversem” entre si, o que torna possível construir um trabalho sem fragmentação. Portanto, a interdisciplinaridade propicia a construção de um conhecimento integrado, rompendo com os limites das disciplinas, alargando os pontos de contato e ampliando a compreensão das linguagens envolvidas. “O trabalho interdisciplinar amplia as relações entre os conhecimentos, os saberes e as pessoas. Assim é capaz de encarnar a ideia relacional, bem como provocar mudanças nas hierarquias e relações de poder que cons tituem os saberes” (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010, p. 85). 102
Assim, o Centro Educacional Marista Ecológica, na perspectiva de desenvolver um projeto para apoiar os alunos na compreensão das práticas de leitura e escrita, construiu, ao longo dos anos, uma proposta interdisciplinar partindo de uma metodologia brincante, poética e produtora de saberes. O Projeto surgiu em 1998, com foco na Língua Portuguesa e com a intenção de ampliar as possibilidades de aprendizagem da leitura e da escrita por meio do trabalho com o gênero literário – poesia. Geralmente, o trabalho com a poesia em sala de aula está atrelado às atividades e aos exercícios oferecidos pelos livros didáticos que, em geral, tratam esse gênero discursivo como pretexto para levar os educandos a discutir conteúdos gramaticais e ortográficos, deixando de lado o valor literário que, prioritariamente, tais textos possuem. No contexto atual, em que as crianças e os adolescentes precisam ser provocados e ins tigados a ler, o projeto busca levar diversos poemas para os espaços da escola, pois tem como pressuposto básico a ideia de que a formação de um leitor competente está vinculada à cons tante presença de textos em seu contexto. O importante é o educando ter acesso ao universo
literário mobilizado pela poesia, levando-o a construir uma relação diferenciada com a linguagem e contribuindo para a sua formação como leitor, declamador e produtor de textos poéticos através de um processo de imersão em um universo em que os poemas estão presentes, circulam, são lidos, ouvidos. A intenção maior com esse trabalho é promover a imersão em práticas significativas de leitura e escrita, ou seja, um mergulho na cultura escrita. Em sua história, a poesia já teve maior relevância em escolas tradicionais, marcada por um forte conservadorismo, utilizando temas referentes à exaltação da pátria e aos valores morais e familiares. Nascida em fins do século XIX e expandindo-se nos primeiros anos do século XX, a poesia infantil brasileira surge comprometida com a tarefa educativa da escola, no sentido de contribuir para formar no aluno o futuro cidadão e o indivíduo de bons sentimentos. Daí a importância dos recitativos nas festividades patrióticas ou familiares, e a exemplaridade ou sentimentalidade que caracterizavam tal poesia (COELHO, 2000, p. 224).
O foco do Projeto Despertar da Poesia não é esse, pois temos como objetivos principais: o estímulo à leitura, o desenvolvimento da escrita e a livre expressão artística. Isso porque acreditamos na construção do conhecimento a partir da motivação interna, do desejo provocado pelas memórias vividas e sonhadas. Desta forma, construir um processo educativo que extrapole as matrizes curriculares obrigatórias e dê real sentido ao aprender tem sido um propulsor das propostas pedagógicas construídas pelo Centro Social Marista Ecológica ao longo de sua trajetória. Destaca-se que o projeto foi se reconfigurando ao longo dos anos, buscando durante esse percurso conferir mais sentido às práticas vivenciadas. Participamos de um processo de metamorfose, em que desejos, sonhos e sentidos para as aprendizagens se modificavam a todo momento.
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Os primeiros anos foram marcados pela metodologia em forma de concurso, recebendo o nome de Despoex, realizado com os educandos do Ensino Fundamental I. Esses educandos eram instigados a produzir as próprias poesias, a partir de temas propostos, para recitá-las durante uma semana destinada apenas a apresentações, e estimulados com premiações, pois havia primeiro, segundo e terceiro lugares. Esse olhar para a produção a partir da meritocracia foi sendo desestimulado, dando espaço a uma construção pautada na garantia de direitos.
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No ano de 2006, o Centro Educacional Marista Ecológica reestruturou seu atendimento motivado por uma necessidade do território e passou a ofertar o Ensino Fundamental II. Com isso, o projeto Despoex, e seus objetivos até então pensados e construídos a partir de um contexto específico (crianças do Ensino Fundamental I), foi reavaliado quanto ao novo cenário. Todavia, o amadurecimento da proposta e o alinhamento pautado nos princípios institucionais incorporou ao projeto o trabalho com a linguagem artística como uma maneira de ilustrar as poesias criadas e desenvolver a poética nas Artes Visuais. Essa mudança provocou uma reformulação em seu tema, e passou a se chamar Despertar da Poesia. No decorrer dos anos seguintes, a configuração do projeto foi se alterando, haja vista que os sujeitos mudam, e com eles os significados envolvidos no ato de ensinar e aprender. Assim, a cada ano a proposta era revisitada, e uma das mudanças mais significativas foi a ampliação do diálogo entre a Língua Portuguesa e a Arte Visual com outras linguagens, como música, expressão corporal e línguas estrangeiras. Vale destacar que a proposta é instigada nos educandos com a participação ativa em todo o planejamento e desenvolvimento do projeto. Eles são responsáveis pela produção artística, pela escrita das poesias, pelas composições musicais e pela criação das coreografias. São os verdadeiros autores, tendo como mediadores os educadores da área de linguagens, para intervir, valorizando e enriquecendo suas ideias, aspirações e criações. Nesse desenho, a proposta busca ser formativa, produtora de novos saberes a partir de algo vivido de forma intensa, colaborativa e criativa.
Para a materialização do projeto, os educadores/mediadores buscam pistas e ideias tendo como base a escuta e a avaliação do trabalho desenvolvido no ano anterior. Educandos, família e educadores são ouvidos e contribuem para o delineamento da proposta. Tem-se início, portanto, o trabalho de escolha do tema/problema do projeto, que vai sendo apresentado e incorporado de forma gradativa ao cotidiano escolar dos alunos. O projeto também tem como objetivo homenagear alguns autores, e essa escolha é feita por meio de muitos diálogos e escutas envolvendo os alunos e os educadores. Ao longo da história do projeto, muitos temas forma abordados, entre eles: “A Paz”, “Memórias”, “Diversidade”, “ECA – Estatuto da criança e do Adolescente”, além de temas mais amplos, como: “O que os olhos não veem”, “Pra ser feliz é preciso...” e “O amanhã”. A partir dos temas, os professores/mediadores lançam pelo espaço escolar alguns cartazes, com imagens e escritas diferenciadas e atrativas, em que estão perguntas geradoras de reflexão, chamadas de “disparadoras”, para aguçar a curiosidade e fazê-los refletir sobre o tema. Os educandos sentem-se convidados a responder às perguntas, escrevendo nos cartazes expostos. Aliamos nessa ação Intervenção Artística, Escrita, Reflexão e Autoexpressão. As ações propostas, em todas as suas etapas, são provocadoras, aguçando a curiosidade e a criatividade dos educandos. Após a escolha do tema e dos autores que serão homenageados naquele ano, enfatiza-se o estudo dos poemas. Um movimento de muita riqueza é o incentivo à leitura de diferentes textos poéticos (poesia em prosa e verso), por meio da qual é realizado um estudo das carac terísticas dos textos quanto à estrutura (versos, estrofes, sonetos, tercetos, quartetos, versos concretos, etc.) e sonoridade (rimas, jogos de palavras, metáforas, conotações, que envolvem a emoção do leitor ou ouvinte). Ao longo das produções, os educadores/mediadores do processo fazem análise dos poemas, bem como leitura e interpretação. Nessas (re)construções poéticas, adentramos em um mundo bastante particular dos educandos, pois a autoexpressão, na maioria das vezes, tem 105
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sido a representação simbólica do vivido. Esse contato com as produções nos permite entender algumas situações cotidianas que se manifestam nessa expressão poética, contribuindo significativamente na formação do educador a partir de uma escuta sensível e qualificada. A arte tem sido uma das linhas norteadoras do projeto, pois, por meio da apresentação de vídeos, músicas, obras de arte, etc., propõe-se a produção de poemas individualmente, em duplas e de forma coletiva, bem como a criação de ilustrações para essas produções. Após essa fase, são realizados ensaios de oratória e interpretação vocal, expressões faciais e declamações para a apresentação final do projeto.
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Nas aulas de Artes Visuais, os alunos escolhem as técnicas nas quais querem expressar o tema proposto, desenvolvendo ao longo de dois meses seu projeto artístico. Como as linguagens conversam entre si, os alunos estão cercados de reflexões sobre o tema, que são de total importância para repertoriar essas produções. Técnicas como pintura com aquarela, confecção de máscaras, papietagem, poesia concreta, desenho, colagem, pintura em tela, estêncil e fotografia já apareceram em algumas das edições do Despertar da Poesia. A seguir, alguns exemplos dessas produções (Figuras 1 a 10):
Amanhã Será que o amanhã existirá? Cheio de alegria e repleto de tecnologia, Precisa achar forças para lutar Só assim água não irá faltar, por isso Tem que o meio ambiente cuidar Será que amanhã vai estar? Com seus amigos para festar Com sua família para abraçar Fazer sorrir, Como fazer se não existir?
Figura 1 – Projeto Despertar da Poesia Produção da aluna Alessandra Santos Morais, 8ºC Fonte: Acervo CEM Ecológica.
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Amanhã será um novo dia Será que amanhã você estará aqui? Será que amanhã você irá sorrir? Será? Realmente não sabemos o que acontecerá. Será que amanhã as pessoas estarão aqui para me abraçar? O amanhã é um pouco assustador Não saberemos se amanhã estaremos aqui Será que amanhã sua família estará lá? Esperando-te para te abraçar? 108
Será que amanhã você ainda será o mesmo? Com mesmo respeito, mesmo jeito, E seu amigo, estará a te espera? Será? Talvez amanhã não exista Talvez não dê mais tempo Pode ser tarde demais E nada adianta o arrependimento Então faça hoje Não deixe para amanhã Faça alguém feliz Valorize o que você sempre quis
Figura 2 – Projeto Despertar da Poesia Produção da aluna Camila Gabrielle, 8º C Fonte: Acervo CEM Ecológica.
Amanhã é diferente... O amanhã é diferente Põe medo em toda a gente. O amanhã é curioso e Muito espirituoso. O amanhã é incerto e Muito discreto. Porém o amanhã é duvidoso, Pois sem avisar a morte vem Nos buscar e o amanhã Fica a nos esperar.
Figura 3 – Projeto Despertar da Poesia Produção da aluna Nicoly Gabriely Moreira de Sousa, 11 anos, 7° A Fonte: Acervo CEM Ecológica.
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Futuro Futuramente Uma família unida Também quero que seja Uma alegria na minha vida Rezo e peço a Deus por tudo isso Onde tenha casa, carinho, comida e abrigo.
Figura 4 – Projeto Despertar da Poesia 110
Produção dos alunos: Weslei de Souza Meirelles, 11 anos, 7° A Octavio Henrique Gaspar de Oliveira, 12 anos, 7° A Fonte: Acervo CEM Ecológica.
Figura 5 – Produção do aluno Kevin Rodrigues Meirelles, 11 anos, 6º B Fonte: Acervo CEM Ecológica.
Figura 6 – Produção do aluno Gabriel da Luz Santos, 13 anos, 7º C Fonte: Acervo CEM Ecológica.
Figura 7 – Produção da aluna Camily Gabriely dos Santos Batista, 12 anos, 6º B Fonte: Acervo CEM Ecológica.
Figura 8 – Produção da aluna Echilei Fernanda de Lima, 12 anos, 7º C Fonte: Acervo CEM Ecológica.
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Figura 9 – Produção da aluna Luana Vitória do Nascimento, 13 anos, 8º A Fonte: Acervo CEM Ecológica.
Figura 10 – Produção da aluna Gabriele Paiva Faria, 11 anos, 6º B Fonte: Acervo CEM Ecológica.
Na Língua Inglesa, são trabalhados o cartão-postal e o acróstico – um gênero textual em que normalmente a primeira letra (às vezes, as do meio ou do fim) de cada frase ou verso forma uma palavra no sentido vertical. Também há, nesse trabalho, uma integração com a arte, pois os alunos ilustram suas produções com desenhos. O dicionário e a internet são usados como fonte de pesquisa para a tradução das palavras. O trabalho é feito individualmente, sendo estabelecida uma conexão com o pensar, o produzir, o ler e o falar. O educando vai percebendo que as situações do dia a dia ajudam na compreensão da leitura e na ampliação do vocabulário da língua estrangeira. Ler é uma das competências mais importantes a serem trabalhadas com o aluno, principalmente após recentes pesquisas que apontam ser esta uma das principais deficiências do estudante brasileiro. Não basta identificar as palavras, mas fazê-las ter sentido, compreender o contexto, interpretar o que querem transmitir, relacionar com a nossa realidade e reter o que for mais relevante (ROCCO, 1994, p. 37).
As obras produzidas nas disciplinas da área de Linguagem são constantemente revisadas. Os educadores/mediadores preocupam-se em dar feedbacks durante todo o processo. Ao final, essas produções são enviadas à equipe de marketing, que desenvolve um trabalho de revisão e finalização das produções, criando vários materiais com os temas e trabalhos desenvolvidos: bottons, banners, cartões-postais e o livro do projeto. Todos os anos, a equipe responsável pelo desenvolvimento desse trabalho se reúne com a equipe do marketing para pensar o que será realizado. Esse material é usado no evento de lançamento do livro e distribuído aos alunos, para que o dividam com sua família. Todos esperam ansiosamente encontrar as suas produções no livro do Despertar. Portanto, para a finalização do projeto, é organizado um evento, no qual será partilhado tudo o que foi produzido. As apresentações ocorrem em dois dias e, além das famílias e pessoas da comunidade, algumas escolas do território e alunos egressos são convidados a participar, fortalecendo o vínculo com a escola, e também como testemunhos de experiências anteriores no Projeto Despertar. São realizadas apresentações de música, teatro, dança e recitais de poesia, e há uma programação de horários e apresentações, para que todos possam usufruir desse momento tão especial. Após o evento, é feita uma avaliação de todo o processo, da qual participam os educandos e a equipe escolar, cujo objetivo é dar visibilidade às conquistas realizadas, bem como rever os processos na busca por melhorias constantes no desenvolvimento desse trabalho. Ao longo do projeto, as produções de textos, as músicas, a dança, as apresentações de teatro e as artes visuais dão vida ao tema e são avaliadas enquanto movimentos processuais. E, além das linguagens envolvidas, há também a participação da Biblioteca, que desenvolve algumas ações focadas nos autores e artistas homenageados. Nomes como Paulo Leminski, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Ruth Rocha, Sergio Capparelli e Dalton Trevisan já apareceram entre os homenageados, através de poesias, dramatizações, ilustrações e música. 113
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O Projeto Despertar está em constante movimento, adaptando-se e reinventando-se continuamente. Os educandos que entram no Centro Social passam a conhecer esse projeto e a perceber sua importância. Os demais educandos, já inseridos no processo, ajudam a disse minar a ideia do Despertar da Poesia, facilitando a integração dos educandos mais novos. Percebemos, ao longo dos anos, que os resultados são positivos e aparecem progressivamente. Há melhora na escrita, na leitura, na autoestima, na maneira de se expressar, na oralidade, na expressão artística, na criatividade, no vocabulário, entre outros.
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E, dessa forma, o Projeto Despertar da Poesia conquista cada um – equipe escolar, educandos, comunidade e famílias –, integrando e trazendo a arte e a poesia para o cotidiano, sem discriminação e elitização, tornando possível o acesso e a compreensão dessas linguagens. Assim, todos se sentem inseridos no mundo artístico e literário, como apreciadores e autores de saberes, cultura e conhecimento.
Referências COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 7. ed. São Paulo: Moderna, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 43. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. ROCCO, Maria Thereza Fraga. A importância da leitura e o papel da escola nesse contexto. São Paulo: FDE, 1994. UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Projeto Educativo do Brasil Marista: nosso jeito de conceber a Educação Básica. Brasília: UMBRASIL, 2010.
Quando áreas, eixos e linguagens se integram: Projeto Robótica Aline Mendes Vasco Bruno Ribeiro da Costa Gillys Vieira da Silva
Introdução
Estamos vivendo em uma sociedade em que a tecnologia se faz presente e se impõe como necessária nos diferentes hábitos diários dos indivíduos, exigindo um constante re pensar de nossas ações e práticas, inclusive no cenário educacional, em que o padrão tradicional de transmissão de conhecimento já não envolve, não desenvolve, tampouco desperta o interesse de nossas crianças e jovens. Assim, reconhecemos que a tecnologia passa a figurar como produto cultural com poder de interferência no dia a dia, sendo fundamental, portanto, que a educação se envolva com a democratização do acesso ao conhecimento, à produção e à interpretação e apropriação das tecnologias como direito social e cultural (SAMPAIO; LEITE, 1999, apud BRITO; PURIFICAÇÃO, 2011). Tendo em vista o referido contexto social e a busca pela aproximação crítica à sociedade informacional, a Rede Marista de Solidariedade tem fomentado propostas pedagógicas que dialoguem com o mundo dos jovens, trazendo para os espaços educativos ações mais próxi mas a sua realidade. A missão do Grupo Marista tem como premissa uma formação cidadã e
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humana, valorizando pessoas e criando vínculos, favorecendo o protagonismo social, a participação da família e da comunidade e a promoção da cidadania. Dessa forma, o Centro Educacional Marista Ecológica, que atende adolescentes e jovens do Ensino Fundamental II em uma proposta de educação integral em tempo integral, parte do reconhecimento de que um novo modo de ser adolescente e jovem está se configurando pelo protagonismo juvenil atual, que reproduz, na escola, os valores necessários à sobrevivência nas ruas, na família, na cidade e nos campos (ARROYO, 2011 apud VASCO; COSTA, 2014).
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Nessa perspectiva, somos convidados a pensar em uma educação significativa para nossos adolescentes e jovens, que tenha como ponto de partida a realidade deles e possibilite a construção de projetos e iniciativas que favoreçam seu protagonismo por meio de ações de gestão participativa em todos os processos da esfera escolar (VASCO; COSTA, 2014). Assim, o Centro Educacional Marista Ecológica tem se desafiado a pensar coletivamente movimentos pedagógicos que provoquem uma aprendizagem com novos sentidos, aguçando a descoberta, a inovação, a experiência, a produção de novos saberes e a conexão entre as diversas áreas do conhecimento. E é nesse cenário que a robótica ganha sentido e tonalidade na proposta curricular dos educandos. Para Azevedo, Aglaé e Pitta (2010), quando se pensa em robótica educativa, é normal ter em mente um alto valor para tal implantação, porém, é possível baratear esse investimento explorando diversos recursos, como materiais de sucata, para, a partir deles, criar materiais alternativos pelo reaproveitamento do lixo eletrônico, a confecção de objetos robóticos dos mais variados níveis de complexidade e o trabalho com softwares de uso irrestrito. A robótica livre se apresenta como uma solução viável e pedagogicamente criativa, caracterizada pelo baixo custo de material. Permeados por essa realidade, vale indicar a importância da conscientização em relação ao lixo eletrônico, o descarte inconsciente e incorreto de materiais e os danos ao meio ambiente (VASCO; COSTA; SILVA, 2014).
Robótica livre: aprendendo de forma integrada O Centro Educacional Marista Ecológica, desde o ano de 2010, tem em seu currículo o Projeto Robótica Livre, e através dele tem oferecido atividades que promovem o protagonismo dos educandos, favorecendo aprendizagens contextualizadas e significativas. Nessa trajetória participativa, a proposta desenvolvida parte da exploração dos conceitos, objetos e da ferramenta que consiste no trabalho com a robótica livre. Nesse processo informativo e formativo, alinhamos a discussão do uso e reaproveitamento de sucata eletrônica e materiais recicláveis, provocando e garantindo a participação criativa dos educandos na elaboração do projeto e nas atividades decorrentes dele. A construção pedagógica tem se apresentado como um movimento rico e instigante. Ela começa com uma discussão e reflexão com os educandos acerca da temática a ser trabalhada no projeto, e segue com a mediação dos educadores por meio de um bate-papo para elencar as expectativas dos educandos e suas ideias a respeito do que será desenvolvido (VASCO, 2013). A discussão realizada com os educandos se embasa na perspectiva de que, em um cenário de educação integral, o itinerário pedagógico se constitui a partir de atividades nas quais os educandos desenvolvam diferentes saberes e habilidades, e que nesse processo exerçam o direito de escolha daquilo de que realmente queiram participar, considerando as opções de um currículo integrado e intercultural, que considera todo o contexto da realidade do aluno e a bagagem que traz consigo para a escola. A aposta num currículo intercultural contribui para fundamentar e problematizar programas, projetos e ações que estimulem a realização, em diferentes espaçotempos, de diálogos entre diferentes saberes e culturas. Trata-se de educar e tentar superar dicotomias e favorecer relações. 117
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Partindo dessa realidade e do movimento de ressignificação do ambiente escolar, explorando as novas tecnologias da informação e comunicação (TICs), a robótica educacional configura-se uma proposta que oportuniza uma infinidade de possibilidades de construção e reconstrução, além de trabalhos interdisciplinares abordando importantes conteúdos curri culares e de cidadania, assim como movimentos de problematização e conscientização sobre os mais variados temas da atualidade, tais como: lixo eletrônico, materiais recicláveis, a tecnologia auxiliando a construção de brinquedos e artefatos, entre outros.
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Com essa perspectiva, o projeto de robótica livre visa instigar a criatividade dos educandos na invenção de objetos/artefatos, a partir do que é considerado sucata eletrônica, fortalecendo as responsabilidades dos educandos pelo exercício pleno da cidadania, bem como pelo desenvolvimento de suas potencialidades durante o trabalho prático e em grupo, pois ali se partilha um objetivo em comum, que gera a necessidade de os educandos se tornarem indivíduos pesquisadores, críticos, reflexivos, investigativos e capazes de alinhar teoria e prática (VASCO; COSTA; SILVA, 2014). Seguem os principais objetivos do projeto: • Fomentar práticas inovadoras de participação social e protagonismo de crianças e adolescentes; • Sensibilizar crianças e adolescentes a refletir acerca de sua participação e importância no projeto, embasando-se nos aprendizados adquiridos e nas oportunidades que essa participação poderá abrir para suas carreiras profissionais futuras; • Fortalecer a capacidade dos educandos de atuar na construção de um novo padrão de consumo, ambiental e socialmente responsável, reaproveitando a sucata eletrônica e os diversos materiais recicláveis da comunidade;
• Despertar nos educandos a lógica de compreensão de códigos de programação e possibilitar um ambiente que propicie projetos significativos e participativos, promovendo uma relação de ensino-aprendizagem cooperativa e colaborativa; • Estabelecer diálogo com outras áreas de conhecimento, correlacionando suas contribuições em um cenário interdisciplinar; • Despertar nos educandos habilidades e competências para situações que desafiam seu raciocínio lógico e sua criatividade, desenvolvendo suas potencialidades durante o trabalho prático e em grupo; • Construir linhas de raciocínio envolvendo a matemática como eixo articulador do conhecimento, em conformidade ao indicado nos Parâmetros Educacionais da Rede Marista de Solidariedade (2013, p. 21), afirmando que a matemática res ponde como “a lógica e a intuição, a análise e a construção, a generalidade e a particularidade”. Ainda, “a formulação de hipóteses, a consequente argumentação e a avaliação da situação investigada evidenciam a matemática como uma ciência dinâmica e em constante evolução”; • Auxiliar os educandos na descoberta de seus potenciais.
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Metodologia das oficinas de robótica livre Com a intenção de desenhar uma proposta significativa e atraente para os educandos, o Centro Educacional criou, em seu itinerário pedagógico, espaçotempos de aprendizagens que se constituíram a partir da adesão e afinidade dos educandos com a temática proposta. Foi dessa forma que o grupo da robótica foi construído. O planejamento da oficina nasce de um diálogo interdisciplinar entre as áreas que aderem à proposta e vai se constituindo a partir do perfil da turma e de seus interesses e necessidades formativas.
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O primeiro mês de atividades no Centro Educacional é sempre muito significativo, pois os educandos têm a oportunidade de experimentar todas as oficinas para terem subsídios no momento da escolha e, assim, optarem pelo que mais lhes agrada, baseando-se em suas aptidões, desejos, curiosidades e interesses. Esse movimento no qual os educandos escolhem suas oficinas e constituem seus grupos de trabalho garante uma participação efetiva ao longo do ano. A metodologia utilizada também possibilita maior adesão, pois os educandos são divididos em dois grupos, um com educandos do 6º e 7º anos, e outro grupo composto pelos educandos do 8º e 9º anos. Essa divisão se justifica por se compreender que os educandos dominam graus distintos de desenvolvimento cognitivo, e que a divisão em grupos menores possibilita uma relação de ensino-aprendizagem mais pessoal, significativa e voltada ao atendimento das particulari dades de cada faixa etária. Cada grupo é composto por 15 educandos. Um encontro mensal de 4 horas/aula é rea lizado sempre nas duas primeiras sextas-feiras de cada mês, ou seja, na primeira sexta-feira acontece a oficina com os educandos do 6º e 7º anos, e na segunda sexta-feira é a oficina dos educandos do 8º e 9º anos. Sendo assim, a oficina conta com 30 educandos no total.
As oficinas são mediadas pelos educadores de matemática e de robótica. Nos primeiros encontros da oficina, é realizada uma breve contextualização com uma apresentação que aborda questões de robótica, tais como: definição de robótica educativa, a história da robótica (como surgiu, contexto histórico), as leis da robótica, tipos de robôs, vantagens e desvantagens, principais características, aplicações robóticas, competição de robôs e curiosidades. Depois desse momento inicial, a proposta é realizar uma discussão com os educandos a partir dos vídeos e informações apresentadas. A partir dessa introdução à robótica é realizada a contextualização dos conhecimentos, tendo como base uma abordagem que explore exemplos do cotidiano, como, por exemplo, o ato de acender uma luz, para explanação de alguns conceitos como potência, corrente elétrica, tensão e lógica de programação, integrando aqui contextos da matemática e da física. Vale ressaltar que, no currículo do Ensino Fundamental, tais conceitos não são abordados normalmente, porém são extremamente significativos e indispensáveis para a compreensão de outros conceitos que englobam fundamentos de robótica e o funcionamento de diversos componentes. Sempre que possível e necessário, os professores questionam e observam os educandos durante as atividades, para verificar se estabeleceram correlação entre a atividade prática realizada e os conteúdos das disciplinas comuns do currículo básico. Durante todo o projeto, os educandos são incentivados pelos professores a pesquisar informações na internet, assim como a assistir vídeos que abordem temas de robótica e de experiências físicas ou químicas de interesse da turma, no intuito de desenvolver neles habi lidades de pesquisa e investigação. Em seguida, são apresentadas as peças que compõem o gabinete do computador, origi nando assim uma reflexão do que cada uma delas pode se tornar quando, em meio à ima ginação e a criatividade, exploramos conceitos relacionados à mecânica e às possibilidades
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de criação, ao unir mecânica, eletrônica e sucata. Utilizamos para essa atividade gabinetes de computadores doados como sucata eletrônica pela comunidade. Em 2014, o projeto incluiu em seu planejamento a utilização do Arduino, uma plataforma de computação física de fonte aberta, com base em uma placa simples composta por entradas e saídas, que pode ser utilizada para desenvolver objetos interativos independentes ou conectada a softwares de computador (BANZI, 2011). Esse novo elemento inserido nas oficinas de robótica livre possibilitou a criação e apresentou a possibilidade de interatividade nos objetos/artefatos construídos pelos educandos.
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A opção pelo Arduino foi feita considerando o baixo custo e a ampla possibilidade de criação de projetos interativos. Com o auxílio dessa plataforma, é possível criar diferentes interações de acordo com o tema definido pelos educandos e suas expectativas e escolhas, além de potencializar a criatividade nos objetos confeccionados, permitindo a experimentação e a transposição pela integração de experiências de física, matemática, química e diversas outras áreas que tornam os projetos mais significativos. Para iniciar o projeto são feitas atividades práticas introdutórias para os grupos de educandos, com o intuito de exemplificar a lógica básica do funcionamento do Arduino. Esse momento introdutório dá subsídios para a exploração dos kits em que os educandos farão diversos módulos/projetos, visando uma melhor compreensão de todos os componentes disponíveis nos kits, entre outros que serão reaproveitados da sucata eletrônica. A partir desse primeiro contato, são iniciadas as atividades de introdução à lógica de programação, com a exploração de sites, dentre os quais o <code.org>. A lógica de programação também é abordada com dinâmicas e resolução de problemas lógicos. Já ambientados com a proposta pedagógica, acontece então a apresentação do ambiente de desenvolvimento do Arduino, de modo a correlacioná-lo com situações simples vivenciadas cotidianamente pelos educandos, como a ação de ligar e desligar um rádio, por
exemplo. Nesse momento, é abordada a real complexidade de implementação de comandos encontrados em aparelhos eletrônicos considerados simples, e então são apresentadas novas áreas de estudos, despertando a curiosidade e reflexão nos educandos sobre como as coisas funcionam. Ao longo do processo, a equipe de educandos recebe feedback dos educadores, com a finalidade de esclarecer dúvidas e gerar reflexões, principalmente a partir de possíveis erros, para que os próprios educandos identifiquem o ponto em que houve o equívoco para posterior resolução. Essa postura na qual os alunos têm a possibilidade de fazer tentativas, analisar erros, levantar hipóteses e buscar soluções é essencial durante todo o desenvolvimento dos projetos, uma vez que permite aos educandos uma ação- reflexão-ação contínuas, de maneira prática e dialógica. Todo esse trabalho busca promover situações e exemplos para que os educandos entendam o funcionamento de determinadas peças e quais são as mudanças que ocorrem quando optamos por uma peça e não por outra, como, por exemplo, em que momento é melhor utilizar uma roldana maior em um sistema de engrenagem de um carrinho, e em qual situação convém utilizar uma menor. Nessas oportunidades, alguns conceitos matemáticos se tornam evidentes, surgindo a possibilidade de visualização e compreensão deles. Essas atividades práticas iniciais com o Arduino têm como objetivo estabelecer os primeiros passos do percurso de aproximação entre educandos e a plataforma de prototipagem (como acender leds com pushbutton, acionar um led e emitir som em um buzzer). Dessa maneira, os educandos passam para a etapa de experimentar, sistematizar e construir os objetos que escolheram, agregando o que aprenderam ao processo formativo, com a lógica adquirida e a criatividade individual e coletiva. 123
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Ao final do processo de construção de cada objeto, ocorre a partilha e a socialização entre educandos e educadores quanto aos resultados obtidos. Esse momento é de fundamental importância nas atividades da oficina, pois, a cada finalização de objetos, novas ideias e criações são pensadas em diálogo com os educandos e novos desafios e rumos são propostos. Como finalização das atividades, os educandos apresentam suas criações na Mostra de Projetos do Centro Educacional, e compartilham com a família e comunidade os resultados obtidos durante o ano através de sua participação na oficina de robótica livre.
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Atualmente, a oficina de robótica é uma das mais procuradas pelos educandos, tanto que as vagas se esgotam com muita rapidez, e há até uma lista de espera, caso haja alguma desistência. A oficina não tem a intenção de formar programadores, mas sim despertar nos educandos a curiosidade e a construção de novos saberes a partir da interação entre teoria e prática. Nesses anos de trabalho com os educandos, a riqueza maior foi proporcionar a muitos deles a condição de reconhecer suas capacidades, contribuindo para o fortalecimento da autoestima e para a efetiva melhora da aprendizagem.
Considerações finais Um fator essencial que deve ser considerado como primordial para o sucesso e a produção de conhecimentos gerados na oficina é a liberdade de escolha dos educandos, já que todos os membros que compõem a oficina de robótica escolheram estar ali e tiveram a oportunidade de experimentá-la, com o direito de optar por outra coisa caso não lhes despertasse interesse. Outra característica positiva é o fato de que, nos dias das oficinas, os educandos não são obrigados a comparecer, já que não recebem falta pelas ausências. Mesmo assim, a frequência, bem como a participação deles, é ativa.
Muitos educandos procuram atividades da oficina nos espaços de convivência, que são espaços informais em que é possível optar pela atividade que se deseja realizar. E muitos optam por participar do grupo de robótica, que, nesse contexto, acaba possibilitando o ócio criativo dos educandos. A participação, a dedicação, a persistência e a criatividade são aspectos positivos desencadeados nos educandos em seus grupos de trabalho durante todo o desenvolvimento do projeto. Em seus grupos, os educandos partilham um objetivo em comum que tem por finalidade básica o desenvolvimento deles como indivíduos críticos, investigativos, capazes de alinhar a teoria com a prática e de negociar significados e percursos, já que diante de cada decisão tomada uma negociação prévia entre os membros se faz necessária para que a tomada de decisão seja realizada com o consenso de todo o grupo. Não podemos deixar de citar que a riqueza do projeto também se apresenta na vivência da prática, nas construções cotidianas, na superação de obstáculos, no levantamento de hipóteses e na busca pelas melhores soluções. Como afirma Fernández (2001, p. 45), “a aprendizagem dramatiza-se no corpo a partir da experiência de prazer pela autoria”. A satisfação é notada no olhar e no sorriso encantado dos educandos diante de suas criações, quando reconhecem o seu potencial e, a partir disso, são capazes de apresentar mudanças de atitude e alterações no cenário escolar, bem como em sua comunidade. Tais mudanças se articulam aos saberes científicos construídos, aprimorando as competências críticas e argumentativas dos educandos, e também o raciocínio lógico. Outra questão que merece ser destacada é a possibilidade que a oficina oferece de contextualização de diversos conteúdos, trabalhados por meio da problematização e da investigação. 125
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Os caminhos metodológicos propostos buscam, nas suas ações cotidianas, incentivar os educandos a se tornarem sujeitos pesquisadores e curiosos, aguçando, dessa forma, a criatividade na busca pela invenção e inovação e dando sustentação ao conhecimento e aos saberes construídos a partir da interação com novas tecnologias. De forma a buscar cada vez mais uma oficina que permita aos educandos desenvolver com excelência suas habilidades e lhes proporcionar um aprendizado significativo, divertido e prazeroso, realizamos em 2014, ao término das oficinas, uma pesquisa com os 30 educandos. Eles responderam a um formulário criado no Google Form pelos educadores e pela gestão pedagógica da escola, para que fosse possível identificar possíveis melhoras no processo da oficina, além de verificar o grau de satisfação dos alunos. Foi possível notar aspectos importantes a partir dessa pesquisa. 126
Figura 1 – Pesquisa para avaliação das oficinas Fonte: Dados da pesquisa.
Conforme pode ser observado na Figura 1, os educandos, na maioria das vezes, são motivados a participar das oficinas de robótica na sexta-feira porque preferem participar de atividades das quais exerçam a liberdade de escolha e porque se identificam com os educadores.
Figura 2 – Pesquisa para avaliação das oficinas Fonte: Dados da pesquisa.
Conforme a Figura 2, os educandos foram questionados sobre o(s) motivo(s) que os levou(levaram) a escolher a oficina de robótica. Na maioria dos casos, a escolha pela oficina foi o prazer de criar objetos, assim como a curiosidade para descobrir o que de fato é robótica e gosto por montar e desmontar coisas. 127
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Figura 3 – Pesquisa para avaliação das oficinas Fonte: Dados da pesquisa.
Na Figura 3 podem ser observados os resultados quanto à questão sobre a robótica como facilitadora do aprendizado na disciplina de matemática. A maioria dos educandos respondeu que, às vezes, os conhecimentos adquiridos na robótica facilitam o aprendizado na disciplina.
Figura 4 – Pesquisa para avaliação das oficinas Fonte: Dados da pesquisa.
Na Figura 4, notamos que os educandos assumiram posturas de pesquisadores e reco nheceram que as oficinas contribuíram para que descobrissem talentos que antes desconheciam, e conseguiram relacionar ao menos um conteúdo explorado na robótica com alguma disciplina da base comum. Além disso, alguns afirmaram que as oficinas e suas atividades os auxiliaram para que o processo de resolução de problemas fosse vivido com mais facilidade.
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Desafios É de consenso que a robótica apresenta um cenário interdisciplinar com a possibilidade de integração de diversas áreas do conhecimento. Entretanto, o projeto de Robótica Livre do Centro Educacional Marista Ecológica assume como desafio para a realização dos projetos dos anos futuros o envolvimento maior de outras disciplinas, tornando o espaçotempo da escola um local cada vez mais participativo e interdisciplinar. Ainda nesse contexto, o projeto pretende ampliar nesses espaçotempos participativos as possibilidades de exploração de ideias inovadoras e a aplicação de conceitos adquiridos em sala por meio de atividades práticas nas quais os alunos são instigados a investigar, criar estratégias, levantar e testar hipóteses, ou seja, resolver problemas ricos e desafiadores. 130
Outro objetivo do projeto é proporcionar aos educandos situações didáticas cada vez mais dinâmicas e diversificadas para a prática do desenvolvimento da programação.
Referências AZEVEDO, Samuel; AGLAÉ Akynara; PITTA, Renata. Minicurso: Introdução à Robótica Educacional. 2010. Disponível em: <http://www.sbpcnet.org.br/livro/62ra/minicursos/MC%20Samuel%20 Azevedo.pdf>. Acesso em: 01 set. 2016. BANZI, Massimo. Primeiros passos com Arduino. Tradução Rafael Zanolli. São Paulo: Novatec, 2011. BRITO, Glaucia da Silva; PURIFICAÇÃO, Ivonélia da. Educação e novas tecnologias: um (re)pensar. 3. ed. Curitiba: IBPEX, 2011. FERNÁNDEZ, Alicia. O saber em jogo: a psicopedagogia propiciando autorias de pensamento. Porto Alegre: Artmed, 2001. REDE MARISTA DE SOLIDARIEDADE. Parâmetros educacionais: Rede Marista de Solidariedade. Curitiba: RMS, 2013. VASCO, Aline Mendes. A Robótica livre no contexto da sociedade, consumo e sustentabilidade. In: SIMPÓSIO SOCIOEDUCATIVO MARISTA, 20., 2013, Florianópolis. VASCO, Aline Mendes; COSTA, Bruno Ribeiro; SILVA, Gillys Vieira da. Robótica livre com Arduino: conceitos matemáticos abordados de forma prática e significativa. In: COLÓQUIO WEB CURRÍCULO: contexto, aprendizado e conhecimento. 2014, São Paulo. Pôster... São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2014. Disponível em: <http://congressos.pucsp. br/index.php/CWebC/CWebC/paper/viewFile/896/60>. Acesso em: 02 set. 2016.
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D I Á LO G O S F O R M AT I V O S : P E LO D I R E I TO D E TO D O S À APRENDIZAGEM
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Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.
Paulo Freire
A formação continuada como princípio integrador Fráya da Cunha Gillys Vieira da Silva É importante não nos deixarmos enlevar por nossas positividades, fazendo delas uma cobertura, discreta ou não, para algumas debilidades, ou que tentemos transferir a causa de nossas debilidades a fatores inexistentes. [...] Devemos aprender esta coisa óbvia: ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo. O caminho, pois, para superar nossas fraquezas está em não escondê-las, mas em discuti-las em função do concreto onde elas se expressam, como o caminho de confirmar as nossas positividades jamais poderá ser o de guardá-las avidamente conosco. (FREIRE, 1979, p. 139)
O leitor que vem acompanhando o raciocínio externado nesta obra e que, portanto, se aproximou do posicionamento teórico-metodológico sobre educação integral, da propo sição político-pedagógica para o alcance dessa perspectiva integradora e das experiências que relatam a necessidade e importância da integração curricular deve estar, a esta altura, perguntando-se que tal propósito/projeto educativo demanda (re)pensar o próprio processo formativo do professor. A preocupação do leitor também passa a ser a nossa, razão pela qual abordaremos aqui tanto o esforço de indicar como compreendemos a formação continuada dos professores na perspectiva de um projeto formativo integrador quanto elucidar subsídios para compreender os relatos de experiência formativos apresentados nos textos seguintes. Assim, convém partirmos da afirmativa de que o atual cenário da educação brasileira (não só ela) tem provocado os espaçotempos educativos a revisitar suas concepções e leituras a fim de atentar para demandas efetivamente formativas, as quais, ao mesmo tempo, despertem
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tanto nos educadores quanto nas crianças, nos adolescentes e jovens o desejo pelo aprender. Para isto, impõe-se como grande desafio a materialização de uma proposta significativa para esses sujeitos, que leve em conta os diferentes olhares, saberes e fazeres dos educadores. Pensar a educação para além da escola, respondendo às necessidades atuais, requer um olhar para a formação docente, uma vez que sua atuação nesses espaços tem enorme signi ficado, pois seu jeito de agir, pensar e suas concepções são impressas no fazer pedagógico cotidiano, o que muitas vezes pode divergir do posicionamento institucional. Com isso, faz-se necessário construir um plano de formação politicamente alinhado, que incentive a mudança no pensar e no agir do educador, instigando-o a assumir o papel de mediador do conhecimento, superando concepções tecnicistas.
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Nesse contexto, Pimenta (2012) nos ajuda a compreender que a formação é, também, um processo de autoformação, uma vez que os professores reelaboram os saberes iniciais em confronto com suas experiências práticas, cotidianamente vivenciadas nos contextos escolares. Para a referida autora, a sociedade contemporânea tem buscado um perfil de educador que atue na mediação dos processos constitutivos da cidadania dos educandos, e assim provoque um diálogo acerca da superação do fracasso e das desigualdades escolares, sendo necessário e urgente repensar sua formação. Nessa conjuntura, a educação precisa ser vista como prática social, porque se faz em contextos situados (culturais, históricos, políticos, econômicos), sofrendo influências paradigmáticas a todo momento. E é por meio dela que vivenciamos o processo de aquisição de conhe cimento, seja ele adquirido na vivência de mundo ou pelo conhecimento científico. Os saberes pedagógicos podem colaborar com a prática. Sobretudo se forem mobilizados a partir dos problemas que a prática coloca, entendendo, pois, a dependência da teoria em relação à prática, pois esta lhe é anterior. Essa anterioridade, no entanto, longe de implicar uma contraposição absoluta em relação à teoria, pressupõe uma íntima vinculação com ela (PIMENTA, 2012, p. 30).
A escola precisa se constituir num espaço formativo para o educador, um verdadeiro solo epistemológico da prática pedagógica. Certamente, é um lugar de muita contradição devido às concepções que cada docente carrega e imprime em seu fazer pedagógico. Mas é também um lugar de muita produção e troca de saberes, de garantia de direitos, da prática libertadora, da formação humana, e é este o movimento que buscamos evidenciar nos espaçotempos de formação. Assim, somos provocados a pensar na formação docente como espaçotempo de aprendizagem, no qual o educador, a partir do entrelaçamento de ideias, do conhecimento de mundo partilhado, das experiências vividas, constitui o seu “eu” e se enriquece com o “ou tro”, lembrando aqui de um trecho da música de Arnaldo Antunes, que nos ensina que “o teu olhar melhora o meu”. Dessa forma, a troca e o diálogo possibilitam a construção de uma prática pedagógica que respeite a cultura, a história, a diversidade, entendendo a formação como ação integradora, que contribui para a construção do conhecimento em rede, promovendo assim uma reflexão-ação-reflexão sobre o currículo proposto. Esse movimento formativo nada mais é do que um espaço marcado pelas diferenças, diversidades e, sobretudo, pelos encontros, embates, conflitos e possibilidades de seus sujeitos. Nesse processo, o educador é peça chave, pois precisa compreender seu papel enquanto mediador, e deve ser entendido como tal por toda a equipe que compõe a comunidade escolar. A formação precisa ser entendida como um elemento de gestão, construtor de uma prática alinhada aos princípios institucionais, carregando fortemente o posicionamento político e ideológico do espaço educativo. Também é um movimento que possibilita a construção de uma teia de significados. Como já apontado anteriormente, concebemos a formação como uma dimensão que deve atender toda a comunidade escolar, abrangendo os gestores, professores, coordenadores, assessores, secretários, assistentes pedagógicos, administrativos e de serviços gerais, incluindo a equipe de planejamento, execução e avaliação (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010).
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No entanto, nesse momento nos propomos a voltar nossa atenção para um itinerário formativo que tenha o professor no centro dos processos, colocando-o como personagem principal de nossas problematizações e proposições. Nesse sentido, a escuta desse profissional, além da escuta dos educandos, surge como um elemento e uma prática essencial, fortalecendo a necessidade de que sejam criados mecanismos que possibilitem tornar evidente e contemplar a voz do docente. Para tanto, algumas estruturas, sejam temporais, administrativas ou de gestão, precisam ser repensadas e por vezes ampliadas. Para isso, é necessário que todos tenham clareza do objetivo escolar e institucional que se faz presente, pois isso significa rever os espaçotempos destinados à formação, problematizando a garantia, ou não, do tempo destinado para o estudo do docente e da equipe interdisciplinar.13 E, além disso, questionar-se quanto a que tempo é esse, e se é de qualidade, a fim de optar pela pesquisa e reflexão. 136
É necessário ter como foco a feitura de um projeto de formação que tenha como base um diagnóstico das necessidades evidenciadas a partir de uma escuta atenta dos professores, educandos e do cotidiano da escola, movimento este que requer um olhar hermético, holístico e dialético, exercitando a profundidade. Tal itinerário não pode e não deve ser restringido aos conhecimentos técnico-científicos, mas sim promover o fortalecimento com relação à missão institucional e às transformações da sociedade como um todo, já que o desenvolvimento pessoal e profissional do educador deve ser considerado sempre no contexto mais amplo da cultura do país e do mundo (BRUNO; ALMEIDA; CHRISTOV, 2011).
13 As equipes interdisciplinares das Unidades da Rede Marista de Solidariedade são formadas por coordenadores pedagógicos(as), coordenador(a) de pastoral, assistentes sociais, coordenador(a) administrativo e direção.
De acordo com o Projeto Educativo do Brasil Marista (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010), apenas um processo contínuo de atualização e aperfeiçoamento do conjunto de profissionais permitirá a concretização e atualização da nossa missão educativa. Esse processo contínuo deve ser dotado de diferentes espaçotempos formativos, entre eles: grupos de estudos, reuniões pedagógicas, atendimentos individuais ou em pequenos grupos, visitas, participação em congressos, encontros, seminários, trocas, etc. Tais experiências requerem avaliação constante, aberta e democrática, e podem ser facili tadas por meio da implantação de um trabalho mais colegiado, que proponha uma comissão de formação, com representantes dos professores. Dessa forma, o docente pode perceber-se como autogestor da própria formação e ter a possibilidade de ampliação de seu repertório cultural, científico, social e político. Um processo concreto de formação deve prever mudanças na forma de ensinar e na compreensão do como se ensina, além de problematizar o que deve ou não ser ensinado, impactando nas discussões acerca do currículo. Para isso, é preciso ter a clareza de que nos propomos a pensar um educando em suas múltiplas dimensões, garantindo uma formação humana na perspectiva da educação integral, e executar um trabalho que tenha essa preocupação enquanto premissa. Por isso, o olhar para o educador também deve contemplar uma preocupação com todas as dimensões desse sujeito, considerando os saberes, a história, a trajetória, as experiências e as práticas que o professor já traz, e não partindo do zero (HERNANDEZ, 1998). Paralelamente ao entendimento de como os docentes aprendem, segundo Hernandez (1998), devemos questionar quais condições eles têm, em sua escola, para integrar o aprendido às práticas cotidianas. Nesse contexto, pensar, desenvolver e avaliar, no âmbito acadêmico
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ou não, propostas de formação docente significa um compromisso com uma educação cujo projeto é a formação de profissionais capazes de articular competência técnico-científica, cidadania e ética (BRUNO; ALMEIDA; CHRISTOV, 2011) e uma escola que esteja disposta a vivenciar essas dimensões. Por isso mesmo, os saberes devem ser articulados, propondo outra lógica que não seja a do conhecimento isolado, compartimentalizado, e o professor deve compreender-se como um articulador do saber, e não um especialista em uma única e determinada área.
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Nossas experiências têm de ser reinventadas diariamente, sempre que necessário, para e com nossos educandos e educadores. Estagnação, conforto e comodidade não são palavras que devem existir no vocabulário do professor comprometido. O educador precisa carregar permanentemente “incômodos” e escutar a si mesmo nesses incômodos acadêmico, físico, político e ideológico. Um “incômodo” que deve mover ao estudo, à pesquisa, ao trabalho, à reflexão, ao diálogo. Tudo isso se torna base para o processo de reflexão crítica que constrói a proposta pedagógica nos nossos espaços: “é a reflexão crítica sobre a prática diária de vocês com os alfabetizandos e com os coordenadores que mais que outra coisa lhes irá abrindo caminhos para preencher ‘certas lacunas’” que você constata no trabalho ao nível em que se encontra hoje (FREIRE, 1979, p. 134). Diariamente, devemos convidar toda a comunidade escolar e, principalmente, os professores a responderem a algumas perguntas: Onde ficam os sonhos dos educandos, seu querer, suas perguntas, sua partilha, a cor, a plasticidade e a estética da infância e da juventude? O que fazemos com seus corpos, como compreendemos seus olhares, suas vontades, sua ener gia, a sua criação? Nós olhamos junto com os educandos ou olhamos de cima? Assumimos uma postura vertical diante deles, ou estamos em roda, aprendendo e ensinando ao mesmo tempo? Deixamos que seus olhares nos questionem e nos provoquem mudanças ou calamos suas vozes? Os ajudamos a ir além, a sonhar, a planejar ou os limitamos? Os ajudamos a ser crianças ou cobramos deles atitudes adultas? Convivemos com eles, facilitando essa
convivência, ou nos restringimos a mostrar como é ou deve ser o mundo dos adultos? Eles têm participação nas decisões ou são apenas figurantes? Isso requer uma postura de compreensão para com o mundo, como já nos inspirava de forma muito contundente Hannah Arendt (2011, p. 247): A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável, não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência, para a tarefa de renovar um mundo comum.
Em última instância, precisamos lembrar que somos os maiores responsáveis pela nossa formação, ou seja, cada educador ou educadora é responsável por seu processo de desenvolvimento pessoal e profissional; cabe a ele(a) o direcionamento, o discernimento e a decisão quanto a quais caminhos percorrer. Não há política ou programa de formação contínua que consiga aperfeiçoar um professor que não queira crescer, que não perceba o valor do processo individual-coletivo de aperfeiçoamento pessoal-profissional (BRUNO; ALMEIDA; CHRISTOV, 2011). Não se pode correr o risco de exercitar a omissão, que, segundo Madalena Freire (2008), pode ser a arma mais autoritária do educador. Temos de propor a autoavaliação e nos questionar: Quantas vezes já fomos omissos? Quantas vezes deixamos de nos posicionar e isso afetou nossos educandos? Quantas vezes deixamos de estudar e isso afetou nossa prática? Quantas vezes repetimos nossos planejamentos sem olhar para a diversidade presente em
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nossas crianças? Quantas vezes deixamos de trocar com os colegas por medo de mostrar nossas fragilidades? Educação exige rigor de metodologia, de observação, de escuta, de reflexão, de estudo; no entanto, esse rigor não deve ser estereotipado, não deve vir de um monólogo, e sim da troca, da pele, do cheiro, do som da infância. Por isso é necessário coragem, como escreveu João Guimarães Rosa (2001, pág. 334): “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
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Coragem para a autoavaliação, coragem para trabalhar com a nossa autonomia e a autonomia do outro, coragem para escutar, para fazer, para assumir ser educador para o mundo, para os sujeitos e a escola. Precisamos, com as diferentes vozes, compor um cenário escolar propício ao cuidado, que leve à renovação do mundo, e isso passa pela escola que construímos e fazemos diariamente, passa por uma concepção de infância e juventude libertadora e capaz e, acima de tudo, pela forma como nos constituímos educadores e educadoras.
Referências ARENDT, Hannah. A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. BRUNO, Eliane Bambini Gorgueira; ALMEIDA, Laurinda Ramalho de; CHRISTOV, Luiza Helena da Silva (Org.). O coordenador pedagógico e a formação docente. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2011. FREIRE, Madalena. Educador. São Paulo: Paz e Terra, 2008. FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1979. HERNÁNDEZ, Fernando. A importância de saber como os docentes aprendem. Pátio Revista Pedagógica, Porto Alegre, ano I, n. 4, p. 9-13, fev./abr., 1998. PIMENTA, Selma G. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2012. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Projeto Educativo do Brasil Marista: nosso jeito de conceber a Educação Básica. Brasília: UMBRASIL, 2010. VIÑAO-FRAGO, Antonio. El espacio y el tiempo escolares como objeto histórico. Contemporaneidade e educação (Temas de história da educação). Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Cultura da Educação, n. 7, ano 5, 2000, p. 93-110.
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Comunidade educativa e sujeitos em formação: planejamento pedagógico coletivo como espaço de formação Raimunda Caldas Danyelle Stropa
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Pensar uma proposta educativa que extrapole as “grades” de um currículo cuja base é bastante conteudista requer um diálogo formativo tendo em vista os embasamentos conceituais e o posicionamento institucional acerca do planejamento pedagógico. Visto como um instrumento que possibilita uma ressignificação da prática, garante uma leitura diária e diagnóstica do processo ensino-aprendizagem vivenciado nos espaçotempos educativos, um diálogo com as realidades locais que faça sentido para os sujeitos e, ainda, a inovação metodológica e a construção de boas práticas. Assim, compreendemos que, para o planejamento ser significativo, é necessário consi derar o olhar da comunidade educativa, os desejos e sonhos dos educandos, pois a educação nada mais é que o conjunto de experiências afetivas, estéticas, psicomotoras e cognitivas que contribuem para o engrandecimento dos indivíduos na construção de sua vida diária. Partindo desses aspectos, o Centro Educacional Marista Ecológica iniciou em 2011 uma discussão acerca da importância do planejamento como processo formativo e cuja materialização do aprender dependia do jeito de pensar e fazer. Como há múltiplas formas de aprender e, portanto, de ensinar, o planejamento passa a ser construído considerando essa diversidade. Com isso, valorizamos a criação de estratégias didáticas variadas, garantindo que os processos de ensino-aprendizagem sejam multilaterais, autônomos e multiespaciais.
A educação integral na perspectiva da formação humana pressupõe um diálogo entre teoria e prática, mas para que isso se consolide é imprescindível garantir espaçotempos de produção coletiva, elaboração de propostas inter e transdisciplinares, momento em que as áreas se convergem e se complementam, bem como aprofundam suas especificidades, ignorando a fragmentação do conhecimento estabelecido em algumas matrizes curriculares. Dessa forma, partindo de uma concepção acerca do papel do educador na atualidade e considerando uma nova concepção de Educação, o Centro Educacional identificou a necessidade de incluir esse diálogo em seu plano de formação, alinhando-o com os princípios e valores Maristas. Assim, discutir sobre práticas transdisciplinares e interdisciplinares e provocar a interação, integração e socialização de conhecimentos específicos entre as áreas foi uma das frentes formativas assumidas pela gestão a fim de conferir um novo significado para o espaço formativo e o grupo de educadores, haja vista que o fazer pedagógico destoava da proposta de uma educação emancipatória, dialógica e libertadora assumida pela instituição. Concomitante à configuração do plano de formação a partir da vivência no espaço educativo, o contexto sinalizava para a necessidade de um diálogo contínuo entre os educadores, com o intuito de construir um planejamento em rede coletivo, e não mais individualizado. Isso provocou um novo desenho estratégico, que estabelecia um espaçotempo específico para tal diálogo, em que todos os educadores pudessem planejar e trocar experiências. Em um primeiro momento, foi estabelecido um encontro semanal. Posteriormente, esses encontros foram expandidos com a criação de um grupo fechado nas redes sociais, consolidando-o como espaço virtual para uma prática de gestão pedagógica. Pensar um processo de produção de conhecimento em rede gera conflitos ideológicos, e isso implica em escolhas e posicionamentos que estejam em sintonia com a crença em uma educação que se constrói de forma partilhada. Sabemos que a formação universitária de professores não contribui para uma educação libertadora e emancipatória, assim é natural o
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“estranhamento”. Mas viver um processo de aprendizagem tecido em rede, de forma partilhada e integradora, certamente é uma vivência enriquecedora, que rompe barreiras e inova na aprendizagem. Podemos dizer que, apesar das dificuldades, o grupo acolheu esse processo e conseguiu estabelecer as pontes e os diálogos necessários.
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Todavia, pensar no planejamento que atenda às múltiplas aprendizagens tem sido um grande desafio, pois é um instrumento que precisa ser flexível e reflexivo para atender às necessidades dos educandos, e isso precisa ter a compreensão da escola, da gestão e, principalmente, dos educadores, sendo esse um aspecto importantíssimo a ser desenvolvido na formação dos colaboradores que atuam nos espaços educativos. Além disso, é notória a atual necessidade na sociedade em considerar as mudanças e a mobilidade do contexto buscando um sentido para as descobertas e os novos saberes. Para Moreira (2006, p. 109), “o processo de produção do conhecimento não é linear como sugere a descrição do ‘método científico’ encontrado em muitos livros de texto de ciências. O importante é a ideia de interação entre o pensar (domínio conceitual) e o fazer (domínio metodológico).” Diante desse cenário, o fazer pedagógico requer novas formas e metodologias para o desenvolvimento de uma prática que promova o ensino e a aprendizagem, tanto dos educadores quanto dos educandos. E, para isso, a escola necessita de momentos específicos para a construção coletiva, sendo necessário um itinerário formativo que possibilite o encontro entre esses sujeitos. “É num espaçotempo dinâmico e vivo, repleto de valores, saberes e linguagens que se constituem as identidades dos sujeitos” (REDE MARISTA DE SOLIDARIEDADE, 2010, p. 34). Vale ressaltar que o planejamento é uma previsão, pode ou não ser utilizado, mas precisa ser considerado em várias possibilidades, o que o torna flexível. O uso do livro, por exemplo, como qualquer outra ferramenta ou técnica que propicie a construção do conhecimento e do desenvolvimento dos sujeitos envolvidos, deve ser previsto na proposta, mas isso não significa que não poderá ser substituído por outras ferramentas acrescentadas ao processo.
Entretanto, é necessário um educador que seja mediador do processo de ensino-aprendizagem e que utilize a tecnologia como meio para isso. Nota-se uma necessidade emergencial de se discutir nos planejamentos o uso das tecnologias, haja vista que essa ferramenta faz parte do cotidiano dos educandos, está ao alcance deles e, se for bem utilizada, pode chegar a resultados surpreendentes. Em contrapartida, a utilização dessas tecnologias é uma dificuldade apresentada nos dias atuais pela maioria dos educadores que compreendem de forma restrita esse valioso recurso, visualizando apenas computadores, celulares, tablets e outros do gênero. Pensar a prática a partir do planejamento exige um educador que compreenda o seu papel de mediador do processo de aprendizagem e facilitador do entendimento e da produção de conhecimentos. O trabalho criativo e propositivo do educador é de suma importância para a concretização de propostas que garantam o direito de todos a aprender de forma rica e significativa. Ao planejar, o educador precisa levar em conta os diferentes estilos de aprendizagem de seus alunos, apresentando, portanto, diferentes caminhos e estratégias de ensino. É fundamental contemplar uma variabilidade didática no planejamento, ou seja, o desenvolvimento de estratégias e didáticas variadas que garantam processos de aprendizagens multilaterais, autônomos e multiespaciais. Pensar em várias maneiras de ensinar a mesma coisa, bem como no uso das tecnologias (ferramentas, técnicas, TICs) para alcançar a compreensão do seu edu cando é, pois, essencial. Um caminho para conseguir isso é desenvolver o trabalho por meio de projetos, pois essa metodologia favorece o estabelecimento de enlaces teóricos e práticos no tratamento dos conteúdos. Um projeto propicia a transformação do olhar do educador, assim como do educando, nessa construção e desconstrução da maneira de ver e viver o mundo em que ele está inserido, além de trabalhar a criatividade e a curiosidade através de propostas que não estão postas e fechadas para um resultado fixo e único.
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Esse processo de formação precisa ser construído de forma ampla, com a participação coletiva e o entendimento da importância desse espaço por parte de todos os envolvidos, desde a gestão até os educadores, para, dessa forma, garantir o processo de desenvolvimento dos sujeitos. Pensar na construção desse espaço coletivamente é materializar a possibilidade de uma proposta interdisciplinar em que haja o envolvimento e o comprometimento da comunidade educativa. Enquanto espaçotempo de formação, é imprescindível haver um entendimento por parte da equipe gestora quanto à importância desse movimento para o desenvolvimento dos sujeitos, garantindo momentos na dinâmica do itinerário pedagógico que proporcione um olhar formativo. O foco deve ser no diálogo entre as áreas do conhecimento e na interdisciplinaridade através da construção de projetos que dinamizem a práxis e facilitem a troca e a integração da proposta pedagógica. 146
Nesse contexto de formação, é salutar ratificar que a formação acadêmica dos educadores não prepara para o trabalho interdisciplinar e coletivo da construção do saber, então é necessário haver sensibilidade da gestão para tornar isso possível, muitas vezes lançando mão de recursos tecnológicos disponíveis para facilitar o processo coletivo, a exemplo das redes sociais. Essa dificuldade precisa ser trabalhada nos processos de formação ofertados pela instituição, de forma a garantir a qualidade do processo de ensino-aprendizagem. Conforme está destacado no Projeto Educativo do Brasil Marista (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010, p. 35): “se faz necessário esclarecer a qual qualidade nos referimos, pois a busca da qualidade está diretamente relacionada com a concepção que temos dos processos educativos e dos sujeitos neles envolvidos”. Falar em formação de educadores é ter clareza do quanto se precisa investir para que o processo educativo ocorra de forma significativa. Dentro do contexto da educação integral que busca compreender o indivíduo em sua complexidade e preocupa-se com sua formação
integral, dependemos de uma gestão participativa e transparente que prepare a equipe para interagir e integrar uma proposta pedagógica que possibilite a construção do conhecimento coletivamente e a transformação do indivíduo. A escola precisará ter no seu bojo o viés da inovação educacional, em que a formação e o preparo técnico-político dos atores envolvidos seja uma premissa. Nesse modelo educacional, garantir um espaço privilegiado destinado à formação torna-se fundamental para garantir uma educação para a cidadania e o desenvolvimento dos sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Segundo Gadotti (2009), o que se propõe à educação integral é a integralidade, isto é, um princípio pedagógico em que o ensino das disciplinas não está separado da educação emocional e da formação para a cidadania. Ela está fundada no diálogo, na escuta qualificada, na participação e na prática da democracia ativa nos espaçotempos da escola. Dessa forma, falar em planejamento pedagógico coletivo como espaço formativo pressupõe uma gestão participativa e mobilizadora, em que as tomadas de decisão envolvam toda a comunidade educativa de forma colegiada, exercendo os seus direitos e deveres em prol da coletividade. “A maior ambição da Escola Cidadã é contribuir na criação das condições para o surgimento de uma nova cidadania, como espaço de organização da sociedade, para a defesa de direitos conquistados e a conquista de novos direitos” (GADOTTI, 2009, p. 58). Esse cenário é desafiador, posto que lidar com os anseios da coletividade dentro das relações de trabalho exige do próprio grupo um amadurecimento de questões históricas e culturais que constituem a relação de governança dentro de uma instituição, e requer a compreensão dos problemas que envolvem as relações de poder na contemporaneidade e a busca por superá-los através de relações mais éticas e transparentes por parte dos gestores e comprometidas com o processo de emancipação humana.
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Referências GADOTTI, Moacir. Educação integral no Brasil: inovações em processo. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2009. MOREIRA, Marco Antônio. A teoria da aprendizagem significativa e sua implementação em sala de aula. Brasília: Editora da UnB, 2006. REDE MARISTA DE SOLIDARIEDADE. Proposta socioeducativa: referenciais teóricometodológicos. São Paulo: FTD, 2010. UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Projeto Educativo do Brasil Marista: nosso jeito de conceber a Educação Básica. Brasília: UMBRASIL, 2010. 148
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PARTe 4 D I Á LO G O S C O M A S P R ÁT I C A S S O C I A I S
Alargar a função da escola, da docência e dos currículos para dar conta de um projeto de formação integral em tempo integral que articule o direito ao conhecimento, às ciências e tecnologias com o direito às culturas, aos valores, ao universo simbólico, ao corpo e suas linguagens, expressões, ritmos, vivências, emoções, memórias e identidades diversas.
l Miguel Arroyo
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Organização dos espaçotempos na perspectiva integradora
Edson Luiz Mendes Thais Carolina Branco Depois que os Maristas pegaram, a gente só vê coisa boa. A educação melhorou, as crianças já estão participando mais. Crianças que tinham se ausentado estão voltando; as famílias estão vendo que manter os filhos aqui na escola é bom, o tratamento. Nós aqui só temos que agradecer muito essa parceria, essa foi uma das parcerias boas que a gente teve, desde o começo, com o irmão Hermes. Nós desejamos que “teje” o Segundo Grau aqui também, pelo menos as nossas crianças não saem para outro lugar, já tem aqui perto de casa. Se vai pro centro tem mais dificuldades, aqui a gente já tem mais facilidade de estar olhando as crianças, como eles procedem. (Morador da comunidade do Monte Serrat, Florianópolis)14
O relato de Seu Teco, líder comunitário no bairro do Monte Serrat, município de Florianópolis, parece expressar situações bem pontuais dessa comunidade. Situações caracterizadas pela mudança estrutural e organizacional que se estende a partir do nascimento de uma escola de Ensino Fundamental no ano de 2012 e de uma concepção e proposta específicas, indicando ser grato pelo referido movimento e demonstrando o anseio de que as mudanças continuem sendo traduzidas na expansão da oferta, agora caracterizada pelo Ensino Médio. 14 Seu Teco é líder comunitário do Monte Serrat e atua como parceiro nas atividades desenvolvidas pelo centro educacional.
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Um projeto de educação que dialoga com os anseios e práticas sociais, portanto, com o território onde a experiência escolar se dá, constitui um dos pressupostos básicos e fundantes para a educação integral. O diálogo com as práticas sociais e a busca por elucidar como isso provoca e afeta a própria organização dos espaçotempos escolares numa perspectiva integradora constitui-se o desafio deste texto. O espaço escolar objeto do relato de Seu Teco já existia desde 1962 na comunidade, porém, nos últimos anos, a oferta de atendimento havia se tornado precária e com forte redução no número de educandos. Após a implementação da unidade escolar, a partir da proposta de educação integral articulada pela Rede Marista de Solidariedade, alguns desafios se dese nham nesse cenário. De um lado emerge a necessária provocação de pensar a promoção de uma educação de qualidade na perspectiva integradora, por outro, não menos necessária, mas até mesmo condicionante, a forma de articular a comunidade escolar, educandos, docentes, famílias e território de modo a construir significação, agora provocados pelo novo projeto. Desafios que compreendemos repousar na matriz básica do diálogo capacitado à promoção da integração, que considere essencialmente que “o espaço e o tempo escolar não são neutros, e sim definidos pelos determinantes dos modos de ensino-aprendizagem. Eles também educam e fazem parte da cultura das instituições educativas” (MARQUES, 2007, p. 6).
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Os debates atuais, conforme aponta Thiesen (2011), sinalizam quatro pontos em comum quanto à organização dos espaçotempos dos currículos escolares: primeiro, a dinâmica da organização curricular da escola contemporânea reflete uma trajetória histórica; segundo, as categorias tempo e espaço estão na base da organização curricular da escola; terceiro, a edefinição dos processos de organização das atividades curriculares e pedagógicas podem favorecer significativamente as oportunidades de aprendizagem; e quarto, as atividades curriculares e pedagógicas aparecem de maneira indissociável e fazendo parte de um processo dialético que se funde no cotidiano escolar.
A caracterização de moldagem dos espaçotempos da rotina escolar no contexto brasileiro responde muito pelas experiências estruturadas no contexto da escolástica medieval, com forte apego a métodos formais com rígida organização de classe, horários, disciplinas, movimentos e atitudes, centrado na preocupação com o controle e manutenção da ordem vigente (THIESEN, 2011). Os espaçotempos foram caracterizados pela fragmentação e padronização de métodos pedagógicos, de currículo, de estrutura física com uma rotina escolar que reproduz e confere sustentação comportamental adequada à lógica social capitalista, que será imperativa na composição da experiência social brasileira. Cenário e disciplinamento, também a partir da prática escolar, que imprime e molda um modelo de ser e estar no mundo. Constatação que fundamenta as indagações de como produzir uma educação que possibilite refletir sobre a própria lógica vigente tendo em vista sua superação. Como dialogar com educandos, famílias e comunidade de modo a promover a garantia de acesso a uma educação de qualidade em um território com tantos resquícios de não garantia de direitos? Em nossa história, essas respostas vão se configurando através de algumas dimensões, dentre elas a escuta qualificada das crianças, dos adolescentes, da família e da comunidade, bem como o investimento material e humano na formação docente para um trabalho voltado à perspectiva da Pedagogia de Projetos e pelo desenvolvimento de uma pedagogia que não se encerra em sistemas de ensino predefinidos e formatados, mas pela ampliação desse repertório. Porém, não podemos deixar de ressaltar os inúmeros desafios que emergem do repensar os espaçotempos em uma nova perspectiva. Há um disciplinamento histórico a ser superado, que demarca, por exemplo, uma experiência comum e incorporada de que o espaço físico escolar passa a ser delimitado segundo princípios que buscam induzir comportamentos, através da definição das funções dos locais: corredores, salas de aula, pátio, administração, sala de professores, biblioteca, muros que delimitam duas realidades diferentes, o interno e o externo a escola.
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Os espaçotempos a partir desse disciplinamento estão relacionados a uma certa organização, inclusive cunha na própria expressão de modernização da escola, que demarca e recla ma como necessária a fragmentação, com séries, níveis, ciclos dentro de um período com doze meses, bimestres/trimestres, horas-aula. A escola foi dividida em tempos e espaços determinados e estruturados, e as crianças foram hierarquizadas dentro deles. Os espaços e tempos fixos que a Modernidade buscou levaram à homogeneização das turmas, afinal, era preciso que todos estivessem em um mesmo ponto do desenvolvimento para ocupar um determinado lugar em um determinado tempo. É a espacialização do tempo, onde o tempo passou a ser redutível ao espaço e pensado em função do espaço (VEIGA-NETO, 2002 apud MARQUES, 2007, p. 5).
O contexto atual parece indicar maior liberdade para a reestruturação da rotina escolar voltada à garantia do acesso aos conhecimentos acumulados pela sociedade. A legislação é mais flexível a práticas inovadoras que provoquem, a cada instante, a contradição da reprodução do velho e a possibilidade de construção do novo, permitindo aprender com os processos cotidianos que acontecem no espaçotempo escolar com a participação ativa dos sujeitos. Sujeitos esses que possuem experiências prévias e paralelas à escola, com relações sociais que contribuíram para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e social, com toda a sua diversidade, desigual ou não. A educação integral vem se configurando na relação com o espaçotempo de permanência dos educandos na escola, efetivando-se mais numa escola de tempo integral do que numa educação integral em que se busca pensar a educação do ser humano em sua totalidade. Para Marques (2007), o foco está em vivenciar a escola no tempo presente, sem quantificar as aprendizagens construídas, mas prazerosamente significar coletivamente os tempos de 154
ensino e aprendizagem, indiferente do tempo de permanência na unidade escolar e sem preocupar-se com quem está fora ou dentro dos padrões estabelecidos como normais, pois cada “indivíduo” tem seu tempo e ritmo de aprendizagem. Os debates contemporâneos também apontam perspectivas para a rotina escolar, com ênfase para a interdisciplinaridade focada na autonomia da escola, a qual tem condições de refletir e efetivar diferentes formas de organização pedagógica do espaçotempo escolar em toda a sua estrutura. Ensinar, então, segundo uma perspectiva interdisciplinar e, portanto, tendo em vista trabalhar com objetos complexos, envolve, no mínimo, sair dos limites fixos da previsibilidade disciplinares e lançar-se nas zonas de movediças incertezas; pois é aí que reside o múltiplo e com ele o poder criador do não previsível ou, no dizer de Gilles Deleuze e Felix Guattari (2006, p. 33), de “todos os tipos de devires” (SILVA; PINTO, 2009, p. 3).
Considerando que a educação é um processo que vai além da transmissão de informação e passa pela construção dialética de saberes voltados à formação do sujeito, que transforma mentes e corações de todos no espaçotempo oportunizado, vivenciado e refletido nas instituições educativas; considerando a multiplicidade de possibilidades de espaçotempos existente no Brasil, devido à pluralidade cultural regionalizada que implica uma significação contextualizada, com grande evidência na organização pelos próprios sujeitos, o Projeto Educativo do Brasil Marista concebe a educação sinalizando a operacionalização e dinâmica pedagógica de princípios e valores, na busca pela efetivação do compromisso social da escola com as percepções de espaçotempos: de pastoral que articula fé, cultura e vida; de investigação e produção de conhecimentos; de criação; de aprendizado político e ético; espaçotempos de construção de projeto de vida; de formação continuada dos profissionais da educação; espaçotempos da avaliação contínua (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2010).
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Que espaços educacionais nos permitiriam viver o tempo como “tempo de criação”? Certamente os espaços expandidos, interativos, ilimitados, flexíveis. Uma outra configuração espacial ainda por se fazer nas escolas, que rompam as barreiras das salas de aula que homogeneízam os tempos das crianças de acordo com o tempo da escola. Uma organização tal que pense o espaço para todos, onde as diferenças sejam conside radas. Onde o tempo pedagógico envolva todas as formas de conhecimento para além do conteudismo. Um espaço onde se viva a alegria de aprender a cada momento (MARQUES, 2007, p. 10).
Investimentos necessários à qualificação dos espaçotempos Todos os níveis de ensino necessitam de investimentos para efetivar a transformação necessária à educação em seus mais diferenciados espaçotempos existentes, seja em infraestrutura, formação de educadores ou salários. Os benefícios traduzidos para a sociedade ultrapassam os benefícios individuais, confirmando sua importância para o desenvolvimento de uma educação de qualidade, que terá como consequência a existência de uma sociedade mais culta, conhecedora de seus direitos e deveres, e ainda que possibilita uma participação ativa e ciente na vida social. Buscamos uma escola de educação verdadeiramente integral, que não fragmente os espaçotempos dos educandos na busca de sua homogeneização e controle, mas viabilize a organização dos espaçotempos com estímulos e possibilidades à criatividade, à coletividade, à produção de saberes, ao protagonismo, à vivência sociocultural, em que todos os sujeitos, educandos, educadores, a gestão, as famílias e a comunidade participem intensamente o tempo todo. 156
Nesse sentido, considerando que o contexto sociocultural é elemento condicionante para a viabilização da educação integral, temos em nossa estrutura um desafio educativo que dialoga intimamente com o currículo aplicado, e com o formato de um prédio pensado na esfera da educação pública. Isso quer dizer que apresenta “desconexões” oriundas dos órgãos públicos que não maturaram ainda um diálogo entre arquitetura e educação. Acreditamos que a escola não é a única detentora da “hegemonia educativa”, conforme menciona Faria (2012), não apenas pela reconhecida crise da educação, mas também por esta não poder se fazer significativa e eficaz sem o diálogo concreto com seu entorno. A escola sozinha não produz significado ao educando, pois ele vem com seu mundo, e a escola, com seu território. “A educação integral precisa da escola, mas também de seu entorno, da comunidade, do bairro, de toda a cidade. Isso se dá mediante novas pactuações entre o Estado e as organizações da sociedade, coordenadas pela escola (FARIA, 2012, p. 105). Gadotti (2007, p. 13) nos ajuda a perceber que, atualmente, a sociedade possibilita múltiplas oportunidades de aprendizagens, sendo essencial aprender a pensar autonomamente, “saber comunicar-se, saber pesquisar, saber fazer, ter raciocínio lógico, aprender a trabalhar colaborativamente, fazer sínteses e elaboração teórica, saber organizar o próprio trabalho, ter disciplina, ser sujeito da construção do conhecimento...”, o que se aprende depende do ambiente e de suas condições de aprendizagem. O primeiro ambiente é a família no contexto em que vive, e o segundo é a escola, que precisa levar em consideração seu ambiente externo, sabendo que não conseguirá realizar transformações sozinha, mas sim trabalhando em rede, no conjunto das relações, e sendo acima de tudo um modo de ser e viver. A qualidade na rotina escolar é de essencial importância nessa organização. O calendário escolar, por ser uma construção histórico-social, precisa estar em sintonia com o contexto local e regional, relacionando, no campo da aprendizagem, o tempo do educando e o tempo escolar. A organização do espaçotempo pode estar repleta de experiências, pesquisas,
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descobertas, parques, florestas, museus, teatros, músicas, jogos cooperativos, esportes, debates, assembleias, socializações, registros, avaliações, escutas, festas, comemorações, etc. Para isso, faz-se necessária a realização do calendário escolar voltado ao processo dialético de aprendizagem na perspectiva da construção de saberes com sentidos e significados. O Projeto Político-Pedagógico (PPP) tem seus investimentos voltados ao processo dialético de desenvolvimento da proposta institucional, com a participação de toda a comunidade escolar: educandos, educadores, colaboradores, famílias e comunidades. Na organização da rotina escolar, consta os encontros de avaliação, alteração e aperfeiçoamento do PPP, conforme alerta Coelho (apud MARQUES, 2007), o “tempo é continuidade”, utilizado para reduzir ao máximo o tradicionalismo escolar e suas fragmentações. As atividades de sala têm seus investimentos focados na construção de saberes, sem a preocupação com a carga horária e quantidade de conteúdo a ser aplicado, mas sim em oportunizar que as atividades pedagógicas estimulem a curiosidade, o interesse pela descoberta, a busca do conhecimento, da novidade, da ampliação do saber. A metodologia utilizada possibilita a construção coletiva de saberes a partir das necessidades e anseios dos educandos através de ferramentas que garantam uma dinâmica de pesquisa-ação que incentive a curiosidade, a discussão e a socialização coletiva. A estrutura física garante o suporte necessário ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem dos educandos, com mobília que privilegia atividades em grupos, acompanhadas da tecnologia com internet e projeção audiovisual. A biblioteca de sala faz parte da rotina, e em cada sala de aula, temática ou não, há um local para armazenar as atividades que continuam no dia seguinte. É indispensável, numa educação com perspectiva integradora, ter tempo para estudo, reflexão, planejamento e autoavaliação coletiva, acompanhando as mudanças estruturais 158
contemporâneas, incluídas na jornada de trabalho dos docentes. É de essencial importância haver investimentos em horas formação/planejamento dos educadores, com encontros semanais entre os pares para discussão sobre as experiências vivenciadas, com seus dificultadores e potencializadores, ou seja, para refletir sobre a prática pedagógica na relação íntima com todos os componentes curriculares em suas áreas do conhecimento. Reconhecendo a escola como fruto de sua história e seus agentes, que não consegue transformar-se sem estar intimamente ligada à sociedade que a mantém, tanto a comunidade quanto as famílias anseiam por seus momentos de participação que influenciem e interfiram no cotidiano escolar. Investimentos em projetos e ações que viabilizem a organização de uma comissão de familiares e comunidade por meio de entidades locais são o que validam o Projeto Político-Pedagógico e o plano de ação da unidade com investimento estrutural, pedagógico e de recursos humanos. “A escola não é apenas um lugar para estudar, mas para se encontrar, conversar, confrontar-se com o outro, discutir, fazer política”, contribuindo com toda a rotina escolar e seus espaçotempos (GADOTTI, 2007, p. 12). Considerado um investimento essencial à reflexão e construção dos espaçotempos, os planejamentos são abertos, flexíveis e contextualizados na busca do protagonismo dos educandos, pela escuta qualificada nas mais diversas oportunidades, como: planejamentos cons truídos a partir das necessidades pedagógicas dos educandos, com sua participação; organização de assembleias estudantis mensais; organização de grupo de representantes de turmas para o exercício da cidadania através da participação nos espaços decisórios da unidade escolar. “A educação não muda, mecanicamente, a sociedade, mas muda os seres humanos que podem mudar suas vidas e suas estruturas políticas, sociais e econômicas” (GADOTTI, 2007, p. 70).
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Qualificando os espaçotempos a partir da escuta Considerando as necessidades e os interesses atuais, temas transversais como ética, pluralidade cultural, meio ambiente, sustentabilidade, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo, diversidade religiosa, juventudes, mídias, igualdade de direitos e deveres, relações interpessoais, etc. contribuem para uma proposta interdisciplinar de reorganização do processo de construção de conhecimentos, pautado numa metodologia participativa. Não é de hoje que o fazer científico divide em partes todo o processo de ensino/aprendizagem, partindo da parte para o todo, desconsiderando que a totalidade pode não ser reconquistada, impossibilitando o acesso ao conhecimento na sua complexidade. A fragmentação contribui com a manutenção do status quo do poder vigente. A divisão do conhecimento em disciplinas estanques não garante a relação entre os diversos modos de saber oferecidos pelos componentes curriculares. É necessário sair dos limites fixos da falsa certeza e permitir a imprevisibilidade das “zonas movediças das incertezas”, com vista a trabalhar com objetos complexos, através da interdisciplinaridade, que mesmo estando “presente como orientação e princípios nos documentos oficiais”, ainda está distante de ser efetivada cotidianamente (SILVA; PINTO, 2009). Costuma-se definir nossa era como a era do conhecimento. Se for pela importância dada hoje ao conhecimento, em todos os setores, pode-se dizer que se vive mesmo na era do conhecimento, na sociedade do conhecimento, sobretudo em consequência da informatização e do processo de globalização das telecomunicações a ela associado. Pode ser que, de fato, já se tenha ingressado na era do conhecimento, mesmo admitindo que grandes massas da população estejam excluídas dele (GADOTI, 2000, p. 7).
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O Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne vem realizando desde seu início, em 2012, uma busca incessante pela efetivação de uma escola integral em que educandos, educadores, colaboradores, famílias e território sejam sujeitos protagonistas de todo o processo, na sua dialética, com a organização dos espaçotempos da rotina escolar da unidade, com vivências como: pensamento criativo, assembleia estudantil, representantes de turma, comitês, momento de convivência, mediação de conflitos, jornada ampliada, educação integral.
Pensamento criativo A vivência do pensamento criativo possibilita identificar e solucionar problemas relacionados ao desenvolvimento sustentável, visando estimular a criatividade e a inovação nos educandos, com os seguintes passos: identificar, aprofundar, definir, experimentar e implantar. Para isso, criou-se o tempo da Iniciação Científica, com dois encontros semanais no espaço, que dispõe de uma sala de criação e uma sala de prototipação. A sala de criação é equipada com internet Wi-Fi, notebooks, oito tabletes, duas máquinas fotográficas, uma tela digital interativa, mobília para 30 participantes e cinco quadros dispostos nas paredes. A sala de prototipação tem uma impressora digital, cinco bancadas de marceneiro, com ferramentas para confecção de pequenos objetos, e um kit Atto para montagem do protótipo desejado.
Assembleia estudantil 161
A vivência da assembleia estudantil possibilita a participação dos educandos no processo de gestão da rotina escolar através do exercício da cidadania, percebendo-se e envolvendo-se nesse contexto, de maneira democrática e igualitária, na busca do bem comum e da convivência respeitosa e estudantil. Criou-se o tempo de encontros mensais, com a participação do educador regente, que leva os encaminhamentos para os espaçotempos das assembleias
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dos educadores. As definições são validadas na assembleia entre educandos, educadores e famílias. Nesse espaçotempo acontece a reflexão sobre o código de convivência.
Representantes de turma Com a vivência dos representantes de turma foram criados os encontros mensais, buscando proporcionar espaçotempos formativos que propiciassem a reflexão sobre os papéis dos representantes, bem como a escuta de temas pertinentes ao contexto escolar dos educandos. Essa escuta oferece valiosos subsídios para as assembleias e discussões futuras, e é um momento de vital importância para aprendizagem e protagonismo dos educandos, permitindo o olhar pedagógico para uma atuação significativa na comunidade, na busca pela garantia de direitos das crianças e adolescentes.
Momento de convivência A vivência no espaçotempo desse momento – Convivência – proporciona experiências lúdicas e agradáveis durante os intervalos de aula e horário de almoço, minimizando e direcionando os conflitos existentes, através de atividades artísticas, culturais, jogos e brincadeiras, cantinho da leitura, rádio estudantil e cinema. Com base no tempo do intervalo de aulas e horário de almoço, organiza-se o espaço com materiais que viabilizem espontaneamente a relação interpessoal entre educandos e educadores.
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Comissões A vivência com as comissões busca fortalecer, cada vez mais, a gestão participativa com participação dos colaboradores. As comissões são de: formação, eventos, alimentação, uso evangélico dos bens e espiritualidade. Cada comissão tem um representante, que socializa as propostas na colegiada com todos os representantes (equipe pedagógica, administrativa e direção) e então são validadas as propostas apresentadas.
Mediação de conflitos Os desafios de um espaço político pedagógico são numerosos e constantes na direção da consolidação de uma educação de qualidade; nesse sentido, entre o fim de 2012 e início de 2013 foram se fortalecendo, implementando e implantando projetos advindos da leitura da realidade social e político-pedagógica apreendida no cotidiano escolar e territorial. Buscando maior conhecimento e intimidade acerca das variadas situações de conflitos, com a intenção de provocar discussões sobre esse tema, “mediação de conflitos”, tanto na escola como na comunidade, bem como mediar com maior entendimento e segurança os conflitos internos na unidade escolar, em especial aqueles mais gritantes, que podem desen cadear conflitos no território, criou-se o espaçotempo quinzenal com representantes de todos os seguimentos da escola e das entidades que trabalham com a educação na comunidade: educação infantil (1 a 5 anos), projeto contraturno (12 a 18 anos) e casa de acolhimento a crianças violentadas (02 a 18 anos).
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Jornada ampliada A vivência da jornada ampliada tem a intenção de motivar os educandos a recuperar a cultura do estudo do, no e com o território, potencializando sua autoestima e valorizando a cultura local, para haver maior curiosidade e interesse pelo conhecimento. Busca-se desenvolver competências e habilidades de maneira interdisciplinar com o conteúdo curricular, fomentando o exercício da cidadania e convivência social. Criou-se o espaço de oficinas (iniciação científica, robótica, música, quebra-cabeça de saberes) evidenciadas pelos educandos durante seu processo de ensino-aprendizagem, com tempos de dois encontros semanais para os educandos do Ensino Fundamental II.
Educação integral A vivência da educação integral na perspectiva inovadora, sustentável e integradora busca articular outras políticas e instâncias sociais no papel central da escola na construção e sistematização de conhecimentos, através de investimentos no Projeto Político-Pedagógico, na formação dos colaboradores e no compromisso com a construção processual dos espaçotempos da rotina escolar. Com o Ensino Fundamental I criou-se espaços com atividades diversificadas, entre elas: oficinas de expressão corporal, circo, educomunicação, musicalidade, meio ambiente, jogos cooperativos e aquelas em que, de um ano para o outro, vão sendo alteradas para atender aos desejos e interesses dos educandos. Para elaboração e execução dos projetos, há reuniões semanais, quinzenais e mensais com a equipe docente e coordenação. Essa rotina imprime qualidade no aproveitamento do espaçotempo de planejamento coletivo e interdisciplinar e se configura como elemento formativo para a equipe. 164
Tais experiências proporcionam à equipe pedagógica e administrativa um direcionamento coletivo, mais maduro na perspectiva do trabalho interdisciplinar e uma opção por fortalecer o itinerário formativo com viés de elaboração de projetos através da Pedagogia de Projetos. O contato com uma metodologia que prioriza, para além do viés das tecnologias e sustentabili dade, o educando e seu contexto como elemento central para o processo de ensino-aprendizagem, articulada com os valores humanos, oportuniza a caminhada na contramão de uma educação fragmentada e excludente, pois, segundo Frago (1998 apud MARQUES, 2007, p. 6): [...] qualifica o tempo escolar simultaneamente como algo institucional, pessoal, cultural e individual. Afirma que o tempo é, do ponto de vista individual, plural e diverso, percebido e vivido distintamente por cada um dos participantes da escola: aluno, professor, direção. Ressalta ainda que o tempo é uma construção social em constante mudança, e não é vivido apenas por aqueles que compartilham o espaço escolar, mas também pelas famílias e por toda a comunidade.
A educação integral passa pelo aproveitamento das oportunidades de aprendizagens realizadas em estreita articulação com os educandos, educadores, famílias, comunidade e território, acompanhado das novas tecnologias. A educação integral reconhece e assume a importância dos saberes proporcionados por essa articulação, integrando-os aos conhecimentos sistematizados dos conteúdos nucleares, considerando que esse resultado é capaz de responder às exigências de uma formação voltada para o mundo contemporâneo, cada vez mais complexo, dinâmico e inter-relacionado. O espaçotempo pode ser concebido de maneira diferenciada do tradicional, e simplesmente permitir-se ter tempo para criar, recriar, construir, reconstruir, inventar, reinventar e dar tempo para que novos tempos pedagógicos sejam construídos em sua totalidade.
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Referências FARIA, Ana Beatriz Goulart. Por outras referências no diálogo arquitetura e educação: na pesquisa, no ensino e na produção de espaços educativos escolares e urbanos. Em aberto, Brasília, v. 25, n. 88, p. 99-111, jul./dez.2012. GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. São Paulo em Perspectiva, v. 14, n. 2, p. 3-11, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392000000200002& script=sci_abstract>. Acesso em: 02 set. 2016. GADOTTI, Moacir. A escola e o professor: Paulo Freire e a paixão de ensinar. São Paulo: Publisher Brasil, 2007. MARQUES, Luciana Pacheco et al. Questões sobre o tempo no espaço escolar. In: SIMPÓSIO ESPAÇO E EDUCAÇÃO, 1., 2007, Juiz de Fora. Anais... Juiz de Fora: UFJF, 2007. SILVA, Luiza Helena Oliveira da; PINTO, Francisco Neto Pereira. Interdisciplinaridade: as práticas possíveis. Revista Querubim, ano 5, 2009. THIESEN, Juares da Silva. Tempos e Espaços na Organização Curricular: uma reflexão sobre a dinâmica dos processos escolares. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-260, abr. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010246982011000100011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 3 de set. 2016. UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Projeto Educativo do Brasil Marista: nosso jeito de conceber a Educação Básica. Brasília: UMBRASIL, 2010.
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Participação como direito: entre comissões, assembleias, comitês e conselhos Júlio Cesar Gomes Suzi Mary Calixto A construção de um projeto de educação que se quer integral, proposta capaz de possibilitar a formação integral/integradora das expressões humanas, materializa-se a partir da potencialização, também no ambiente educativo, das condições concretas e objetivas para o diálogo dos sujeitos com as práticas sociais e históricas. Proposição que na prática caracteriza a própria formação cidadã dos sujeitos, radicada na possibilidade de seu empoderamento cultural. A busca pela efetiva construção das condições para o referido empoderamento demarca nossa própria concepção de participação, que afirmamos aqui, a partir do debate em torno do projeto de educação integral em construção na Rede, constituir-se em direito. A participação é um direito dos sujeitos em formação, e não um recurso, ou estratégia didático-metodológica, de que se toma posse vez ou outra na prática educativa, geralmente figurando como ferramenta de disciplinamento. A forma e o contorno, bem como os esforços que vêm sendo dispendidos para dar vazão à concepção da participação como direito, a partir da experiência em curso no Centro Educacional Marista Ecológica, caracteriza este ensaio, que metodologicamente se estrutura como relato de experiência.
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Partimos do reconhecimento de que a discussão sobre a participação não é nova no contexto educacional brasileiro, mas fortemente articulada, ainda, às incipientes conquistas democráticas. Mas, assim como a experiência da democracia, a participação também se cons titui um movimento desafiador, especialmente para as escolas, demandando posicionamento político pedagógico claro e paciente, e investimento em formação tanto dos educandos quanto dos educadores. A garantia da participação como direito se constitui, em última análise, na própria experiência construtiva da proposta pedagógica da escola, que não pode ser pensada senão de forma dialógica, elucidada a várias mãos, sendo capaz de conferir significado coletivo ao fazer cotidiano, às aprendizagens e para a formação humana dos sujeitos que constituem a escola. Princípio que radicaliza a própria função cidadã – formação para a cidadania – da prática educativa, conforme resguarda o art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), ao definir como finalidade da educação o pleno desenvolvimento do educando, sua qualificação para o trabalho e seu preparo para o exercício da cidadania. O conceito de educação transpassa aqui a expectativa da aquisição de conhecimentos e repousa na concepção formativa e de desenvolvimento pessoal e social do educando, na sua formação para o bem comum e seu desenvolvimento profissional, encontrando na escola, instituição social e espaço de experiência cultural as condições adequadas, pautadas pelo princípio da participação, para o fazer-se cidadão.
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Convém pontuar as inúmeras dificuldades das escolas e demais espaços de representatividade juvenil quanto à garantia da participação, muitas vezes diluídas em experiências meramente performáticas, aqui caracterizadas como experiências manipuladas, simbólicas ou decorativas. A experiência de participação manipulada se expressa muito pelas ações de adolescentes e jovens a partir do disciplinamento totalmente centrado no adulto; a simbólica é a participação em eventos desprovidos de aderência/interesse juvenil; e a decorativa, por sua vez, de participações figurativas, numéricas, desprovidas de intencionalidade pedagógica mais específica.
A participação não se constitui ou se possibilita como privilégio, mas como direito humano básico, garantido, inclusive, pela constituição democrática de 1988 (BRASIL, 1988). Expectativa sobre esse que repousa na experiência escolar enquanto espaço de formação para a democracia e a responsabilidade coletiva, pressupostos básicos para o protagonismo juvenil. A palavra “protagonismo” vem da junção de duas palavras gregas: protos, que significa o principal, o primeiro, e agonistes, que significa lutador, competidor, contendor. Quando falamos de protagonismo juvenil, estamos falando, objetivamente, da ocupação pelos jovens num papel central nos esforços por mudança social (COSTA; VIEIRA, 2006, p. 150).
A construção do empoderamento, do protagonismo e da autonomia, para indicar conceitos já utilizados no texto, dos adolescentes e jovens não se restringe a uma conquista teórica, mas pressupõe o exercício efetivo da participação, fazendo-se absolutamente pertinente à constituição de espaços para que eles possam criar, planejar, executar, analisar, avaliar, eleger valores e, por fim, apropriar-se de resultados. É um processo que precisa ser consciente e livre, e exige acompanhamento facilitador do educador, para auxiliar e promover o potencial participativo. Considerações que nos motivam na construção de educação que dialogue com a realidade dos alunos, que desconstrua o formato adultocêntrico de escutas figurativas, que motive os educandos a se posicionar de forma mais atuante na sociedade e propicie repensar as estruturas de gestão, acenando para construções mais democráticas. Ao longo de sua história, a Rede tem fomentado suas Unidades para o desenvolvimento de práticas que promovam a participação de crianças e jovens. Desde 2012, o Centro Educacional Marista Ecológica tem incluído em sua proposta pedagógica a participação como princípio educativo, o que fomentou a criação de espaçotempos denominados assembleias,
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comissões, comitê de responsáveis e de gestão ampliada, todos com a intenção de consolidar espaços de escuta e participação, tornando assim a escola um espaço construído por todos, principalmente pelos educandos. Um dos grandes desafios do Centro foi a constituição das assembleias, uma vez que respondia como uma iniciativa nova, não habitual, no contexto da gestão da escola, gerando muita apreensão e aprendizagens. Contudo, a materialização dessa experiência impulsionou a criação de outros movimentos de participação. As assembleias surgiram na perspectiva de fomentar um espaço de escuta com os educandos. Tal espaço foi incluído no itinerário pedagógico semanal, com reuniões ordinária ou extraordinariamente mediadas pelos educadores representantes de turma. Nesse encontro semanal, os educandos levantavam as demandas emergenciais, que, para a surpresa do grupo, eram muitas, principalmente as de ordem individual. Assim, a experiência vivida indicou a necessidade de repensar a organização e o planejamento, já que elucidou uma demanda de formação sobre cidadania e espaços de discussões coletivas. No ano seguinte, além das assembleias, foi constituído o espaçotempo denominado gestão ampliada, uma reunião mensal com a gestão da escola, com a presença de representantes dos educandos e colaboradores por área. Assim, com o intuito de consolidar a participação, cada turma deveria escolher seus representantes, os quais seriam membros da gestão ampliada e tomariam nota das demandas levantadas por suas turmas durante as assembleias. Para a discussão dos pontos, os que envolvessem questões rotineiras da turma, as sugestões seriam apresentadas no próprio grupo, e os que envolvessem o restante da escola seriam levados para discussão na reunião da gestão ampliada. Posteriormente, os pontos discutidos e as sugestões retornavam para as assembleias. Motivados por essas discussões, e na intenção de superar a individualidade, foram perce170
bidos na rotina escolar cinco grandes eixos que mereciam atenção e envolviam toda a escola: i) limpeza; ii) desperdício; iii) violência; iv) saúde e sexualidade; e v) meio ambiente. A partir de debates quanto aos eixos temáticos e apresentação de propostas, foram criadas comissões de trabalho compostas por educandos e educadores:
a. C omunicação: responsável pela divulgação de ações da escola, tanto interna quanto externamente. b. E cocriações: responsável por pensar um ambiente otimizado, acessível, visualmente agradável e mais ligado aos educandos. c. I ntegração + Cultura: responsável por articular eventos que promovam a integração entre educandos dos diferentes anos, por meio de eventos que promovam e divulguem a cultura através da arte. d. D iversidade: responsável por articular ações que promovam discussões sobre gênero e diversidades na escola e na sociedade. e. E cológica: responsável por fomentar ações que visem construir um sentido ambiental para a escola, pensando em práticas ecológicas e sustentáveis que possam ser multiplicadas dentro e fora do espaço escolar. f. Conselho de representantes de turma: responsável pela formação política dos educandos representantes de turma, contribui para a ampliação de noções sobre ética, cidadania e representatividade. g. P ense o bem, faça o bem: responsável pela articulação de ações que contribuam para a desnaturalização e desconstrução de práticas de violência no espaço escolar e na sociedade. h. O timização do tempo: responsável por construir práticas que contribuam para uma melhor organização das rotinas que envolvem o espaço escolar.
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i. Parceria: responsável por propiciar ações que permitam a visitação e a troca de experiências entre instituições que promovam práticas educacionais e demais unidades que compõem o Grupo Marista. j. Tecmundo: visa ao uso consciente e significativo de ferramentas tecnológicas que auxiliem educandos e educadores em sua prática cotidiana, para esse fim, aplicativos são pesquisados, analisados e divulgados entre os integrantes da comunidade escolar. k. A rticulação com o território: tem como objetivo articular e integrar as ações entre a escola e o território local, atuando em ações que contribuam para o estreitamento da relação escola-comunidade e escola-instituições parceiras. Nossos educandos também estão participando de um programa em parceria com a Pontifícia Universidade Católica (PUCPR) para desenvolver jovens lideranças que atuem em sua comunidade, tentando conseguir com os órgãos públicos os direitos para todos os cidadãos. Esses movimentos têm contribuído de forma significativa para a ressignificação de práticas na comunidade escolar (educandos, colaboradores e família), gerando um trabalho efetivo, cuja intenção é atuar nos focos de fragilidade e criar uma cultura de gestão participativa e democrática. Além de ampliar o leque de possibilidades de protagonismo juvenil, os movimentos produzem vozes e vezes para os sujeitos que dão sentido ao universo escolar, criando, com isso, um currículo que extrapola as matrizes curriculares nacionais e atua na formação humana, reconhecendo os educandos enquanto sujeitos de direitos e construtores da sociedade.
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Referências BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. p. 27833. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 03 set. 2016. COSTA, Antônio Carlos Gomes da; VIEIRA, Maria Adenil. Protagonismo juvenil: adolescência, educação e participação democrática. São Paulo: FTD, 2006.
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Território: histórias, culturas e sujeitos
Vilson Groh Katia Regina Madeira O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. (MILTON SANTOS, 2006, p. 8)
Neste texto, que também caracteriza o exercício final da presente obra, pretendemos apontar algumas reflexões que acenam como pistas acerca da construção de uma escola de educação integral. Partimos da afirmação de que tal construção só é possível na medida em que a escola se apropria e deixa apropriar-se do território no qual está inserida. Para tanto, duas questões se fazem imperativas para nossa reflexão. De qual concepção de território estamos falando? Como nasce uma escola de educação integral que esteja intimamente rela cionada com o território? Para compreender a concepção de território que defendemos e o tempo presente permeado pela mercantilização das cidades e da vida, é necessário fazer uma estreita aproximação com a lei geral de acumulação capitalista e seu modo de produção.
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Esta lei transmuta o seguinte: quanto maior a produtividade do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre os meios de emprego, tanto mais precária, portanto, sua condição de existência, a saber, a venda da própria força para aumentar a riqueza alheia ou a expansão do capital (MARX, 2003, p. 748).
De acordo com Abreu (2011), a compreensão da categoria Território a partir da teoria marxista é possível na medida em que se compreende a própria dinâmica do capital, de que, segundo Harvey (2003, p. 43): A acumulação é o motor cuja potência aumenta no modo de produção capitalista. O sistema capitalista é, portanto, muito dinâmico e inviavelmente expansível; esse sistema cria uma força permanentemente revo lucionária, que, incessantemente, reforma o mundo em que vivemos.
Nessa perspectiva, reinventando-se, o modo de produção capitalista vai criando e recriando as mais variadas formas de valorização do capital e produção do lucro e, por consequência, a precarização do trabalho e da vida humana, traduzida na diminuição do trabalho formal, aumento do trabalho informal e do desemprego, nas perdas dos direitos trabalhistas, na privatização de políticas sociais de educação, saúde, previdência. Como afirma Granemann (2009, p. 229), Estabelecida a relação entre comprador e vendedor da força de trabalho abre-se um novo período da história social humana, na qual os bens necessários à vida humana também serão produzidos como mercadorias. Mercadejar com a força de trabalho é o ato inaugural da sociedade capitalista que deve se produzir e reproduzir constantemente, em escalas cada vez maiores, com pretensão de estender-se para o conjunto da vida social e de todas as suas expressões.
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É nesse sentido que afirmamos que compreender o território e suas nuances é compreender a forma perversa como o capital se apropria da força de trabalho e, por consequência, da sociabilidade humana, pois sua premissa é o lucro, e não a necessidade humana. É no território, entendido como espaço das relações sociais, que se traduz o resultado do desenvolvimento das forças produtivas, das relações de produção e da necessidade de circulação e distribuição globalizada. Como traduziu Milton Santos (2006, p. 259) a chamada “democracia de mercado”: Quando se fala em Mundo, está se falando, sobretudo, em Mercado que hoje, ao contrário de ontem, atravessa tudo, inclusive a consciência das pessoas. Mercado das coisas, inclusive a natureza; mercado das ideais, inclusive a ciência e a informação; mercado político. Justamente, a versão política dessa globalização perversa é a democracia de mercado. O neoliberalismo é o outro braço dessa globalização perversa, e ambos esses braços – democracia de mercado e neoliberalismo – são necessários para reduzir as possibilidades de afirmação das formas de viver cuja soli dariedade é baseada na contiguidade, na vizinhança solidária, isto é, no território compartilhado. Se essa convivência conhece uma regulação exterior, esta se combina com formas nacionais e locais de regulação. O conflito entre essas normas deve, hoje, ser um dado fundamental de análise geográfica.
Compreender território, a nosso ver, pressupõe um olhar de totalidade15 para a realidade social, ir além do visível, sair da aparência, penetrar na essência do vivido, conhecer o real em sua profundidade, significa perceber que as cidades, dentre elas os espaços urbanos
15 “Entendemos totalidade pelo pressuposto de que qualquer fenômeno só pode ser entendido no conjunto das relações sociais, observando as determinações recíprocas que emanam da própria situação em sua dimensão singular e da vida social, em seu processo mais amplo de produção e reprodução” (SANTOS, 2015, p. 84).
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onde atuamos, caracterizam-se por profundas desigualdades econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais, marcadas pelo processo de acumulação capitalista, e perceber, como afirma Milton Santos (2006), que a história de um “lugar” não ocorre isoladamente do resto da história. É no território que presenciamos cotidianamente a barbárie do capital, como afirma Tonet (2009, p.111-112): Miséria, pobreza, fome, desnutrição, subnutrição e todo o cortejo de horrores – gerado pela falta de acesso (em quantidade e qualidade adequadas) aos bens materiais necessários à manutenção de uma vida digna – acompanham essa situação. Populações inteiras são submetidas às condições de vida mais degradantes e praticamente descartadas como supérfluas, pois o capital não pode incluí-las no seu processo de reprodução. Milhões de pessoas são obrigadas a viver em condições subumanas porque não têm acesso ou têm um acesso precaríssimo à alimentação, à saúde, à habitação, ao vestuário, ao saneamento, ao transporte, etc. Outros milhões de pessoas se deslocam de regiões e países mais pobres para outros lugares onde se concentram melhores possibilidades de ganhos e de vida, com todas as consequências – econômicas, sociais, políticas e ideológicas – que este deslocamento traz consigo.
Da mesma forma que o território é palco e cenário dos desmandos da sociabilidade do capital, que refletem as situações concretas de violações e regressões dos direitos como vimos até aqui, também é o lugar de lutas. De acordo com Milton Santos (2006), esse mesmo lugar é também o espaço da existência e da coexistência. No lugar, portanto, reside a possi bilidade de resistência:
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Por enquanto, o lugar – não importa sua dimensão – é a sede dessa resistência da sociedade civil, mas nada impede que aprendamos as formas de estender essa resistência às escalas mais altas. Para isso, é indispensável insistir na necessidade de conhecimento sistemático da realidade, mediante o tratamento analítico desse seu aspecto fundamental que é o território (o território usado, o uso do território). Antes, é essencial rever a realidade de dentro, isto é, interrogar a sua própria constituição neste momento histórico (SANTOS, 2005, p. 259-260).
Não se faz intervenção no território sem aprofundar o conhecimento dele, e conhecer o território vai desde a dimensão espacial até a das relações existentes nesse espaço, sua história de luta ou não, suas relações de poder internas e externas, seus interesses, formas de organização, as relações de trabalho, como constrói suas alianças. Outro ponto paralelo de enfoque é conhecer as relações do Estado, suas intervenções no território, de que forma se utiliza desse território, como se organiza e como a população se organiza nos casos de intervenções estatais. É necessário fazer leitura crítica desse processo, saber quais políticas públicas existem e como se estabelecem no espaço urbano, se atendem à demanda de saúde, assistência social, educação, moradia, lazer e cultura e transporte, e entender profundamente o intenso processo de mercantilização e desvalorização a que o capitalismo tem submetido a humanidade.
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Olhar para o território requer perceber as relações e jogos de poder existentes e muitas vezes estabelecidos, espaços de disputas internas e externas, se é usado como estratégia e manobra política dos governos. Nessa direção, não é receptáculo neutro em que surgem espontaneamente estratégias de ação conjunta entre os segmentos sociais, são espaços políticos de disputa, de interesses das mais diversas ordens, de debate, de luta, de resistência e construção coletiva, em que as posições e a estrutura de interação são delimitadas cons tantemente pelas próprias posições dos sujeitos sociais envolvidos, e constituem elemento chave para o entendimento da dinâmica territorial.
Ao sinalizarmos que os territórios são permeados e regulados pela força do capital, estamos apontando a vida real de milhares de trabalhadores e trabalhadoras que gritam todos os dias e expressam na imediaticidade da vida cotidiana as inúmeras formas de opressão e que, muitas vezes sem se dar conta, estão gritando, nas palavras de Lefebvre, “o direito à cidade”. Quando David Harvey (2013) afirma que o direito à cidade não é um presente, e sim um grito de retomada do espaço público, ele nos coloca a tarefa, enquanto sujeitos coletivos, de reclamar a cidade, de lutar por ela. Nas palavras do autor: O direito inalienável à cidade repousa sobre a capacidade de forçar a abertura, de modo que o caldeirão da vida urbana possa se tornar o lugar catalítico de onde novas concepções e configurações da vida urbana podem ser pensadas e da qual novas e menos danosas concepções de direitos possam ser construídas. O direito à cidade não é um presente. Ele tem que ser tomado pelo movimento político. A luta pelo direito à cidade merece ser realizada. Deve ser considerada inalienável. A liberdade da cidade precisa ser todavia alcançada. A tarefa é difícil e pode tomar muitos anos de luta. Mas, como escreveu Bertolt Brecht: Muitas coisas são necessárias para mudar o mundo: raiva e tenacidade, ciência e indignação, a iniciativa rápida, a reflexão longa, a paciência fria e a infinita perseverança, a compreensão do caso particular e a compreensão do conjunto, apenas as lições da realidade podem nos ensinar como transformar a realidade (HARVEY, 2013, p. 11).
Dito isso, podemos nos perguntar o que todo esse processo e as demandas, as feridas abertas pelo modo de acumulação capitalista desumano e desigual colocadas e impregnadas no território têm a ver com a construção de uma escola de educação integral? Poderíamos responder a essa questão nos fazendo outras tantas perguntas, tais como: Quem são os sujeitos com quem trabalhamos e atuamos todos os dias em nosso ofício de
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educadores? De onde eles vêm? Como são estabelecidas as suas relações sociais? Quais as condições objetivas de sociabilidade? Como se configuram as possibilidades da infância num contexto em que o centro e a periferia estabelecem relações de poder injustas e desiguais? É importante trazer para a cena cotidiana da escola temas que afetam a realidade de educandos e famílias, considerar os aspectos que impactam na vida dos educandos, como saúde, educação, saneamento, trabalho, cultura, meio ambiente, assistência social e transportes, e as expressões de violação de direitos advindos do acirramento da desigualdade social. É preciso ter sensibilidade para identificar e lidar com questões políticas e sociais inerentes ao território. O território exige da escola mais do que vagas e matrícula, exige uma escola que interaja e perceba esse espaço urbano como algo que está em constante movimento, como o lugar que fortalece o cotidiano escolar, o lugar da diversidade de culturas e saberes. Esse lugar quer reconhecimento, quer que a escola assimile e interaja com suas “experiências e saberes” com sua identidade, impregnadas de significados políticos pedagógicos, quer ter vez no currículo, e também, nas sábias palavras de Arroyo (2011), “reconhecimento nos conhecimentos”. Na construção espacial do espaço escola, de acordo com Arroyo (2011, p. 13), “o currículo é o núcleo e o espaço central mais estruturante da função da escola.16 Por causa disso, é o território mais cercado, mais normatizado. Mas também o mais politizado, inovado, ressignificado”.
16 Quanto à função da escola, compartilhamos da ideia do pensador marxista István Mészáros, que em um ensaio produzido para a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, RS, em julho de 2004, que resultou no livro “A educação para além do capital”, defendeu a existência de práticas educacionais que permitam trabalhar as mudanças necessárias para a construção de uma sociedade que liberte o ser humano da dominação do capital, e propôs que a função da Educação seria contribuir para transformar o/a trabalhador/a em um sujeito político capaz de modificar a realidade.
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Nesse sentido, é possível afirmar primeiramente que, para nascer uma escola de educação integral, é necessário lançar um olhar cuidadoso e criterioso ao currículo, que é espaço de disputas políticas traduzidas, por um lado, por setores conservadores da sociedade, muitos deles ligados às bancadas religiosas do congresso nacional,17 ainda do mesmo lado, orga nismos internacionais que ditam as regras de mercado e, por consequência, da educação no Brasil; do outro lado desse campo em disputa, os movimentos e organizações,18 que lutam e pressionam o currículo para que a educação não sirva a interesses individuais, mas sim às necessidades humanas. Conforme aponta o “Programa Mais Educação”, no caderno que trata sobre “Territórios Educativos para Educação Integral”, a educação não pode ficar restrita a currículos engessados que não dialogam com a dinâmica da realidade social. É importante, conforme afirmado no documento: Romper esses limites, pensar na elaboração de uma proposta de edu cação integral como política pública das escolas brasileiras é refletir sobre a transformação do currículo escolar ainda tão impregnado das práticas disciplinares da modernidade. O processo educativo, que se dinamiza na vida social contemporânea, não pode continuar sustentando a certeza de que a educação é uma tarefa restrita ao espaço físico, ao tempo escolar e aos saberes sistematizados do conhecimento universal. Também não é mais possível acreditar que o sucesso da educação está em uma proposta curricular homogênea e descontextualizada da vida do estudante (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2010, p. 5).
17 Nos últimos meses de 2015, nos deparamos com tentativas de retrocesso por parte de grupos religiosos, que têm sistematicamente ignorado o princípio da laicidade do Estado, censurando qualquer menção às categorias “gênero” ou “orientação sexual”, especialmente nos planos locais de educação. <http://www.cartacapital.com.br/ sociedade/genero-e-diversidade-sexual-nas-escolas-uma-questao-de-direitos-humanos-6727.html>. 18 Os movimentos sociais têm cada vez mais se inserido nas pautas da educação, pressionando para que haja urgência em debates étnicos raciais, de gênero e diversidade, de questões urbanas, de direito à cidade e toda gama de questões que tem violado os direitos da população.
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O currículo tem que vir na nascente da realidade que a torna conteúdo programático, que une e que é capaz de fazer a interface da vida dos educandos com o conteúdo sistematizado da escola, não é mais possível que a escola ignore o grito dos sujeitos que clamam por justiça e direitos, direito à diversidade humana e igualdade de gênero, direito à cidade. Veja, esse grito vem de fora para dentro da escola, pressionando através das diversidades de lutas dos sujeitos coletivos que repudiam o conservadorismo, a barbárie, o retrocesso de algumas conquistas da classe trabalhadora e toda a sorte de desigualdade enfrentada cotidianamente. Nas palavras de Arroyo (2011, p. 13), “essa diversidade de lutas postas na sociedade em tantas fronteiras e territórios por direitos, por ações afirmativas, terminam afetando e reconfigurando a cultura e as identidades docentes”. E nessa direção exigem que a escola rompa muros e grades e se reconheça também nesses sujeitos e, mais ainda, que seja parte integrante e visível do lugar, o lugar da luta. Olhar e reconhecimento para a realidade dos educandos – sujeitos com contextos sociais que carregam as marcas da injustiça social – é urgente nos processos de trabalho dos educadores. Dar visibilidade às expressões de violação de direitos é uma das formas de sensibilizar e pautar no cotidiano o que muitas vezes nos é invisível. Já apontamos aqui que, para constituir-se enquanto escola de educação integral, é preciso ter olhar crítico e atento para a realidade social a que milhares de trabalhadores e trabalhadoras, dentre eles, nós, estão submetidos nessa sociabilidade capitalista. O olhar para a diversidade de histórias, culturas e valores que estão permeados no território necessita ser traduzido no currículo. Torna-se ainda importante acrescentar, para nossa reflexão, que a escola se constitui em rede e, como tal, não é só o espaço de reconhecimento interno do que acontece no externo. É estar presente nas lutas coletivas desbravadas pelo território ao qual pertence.
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Construir um olhar em rede por dentro dos territórios labirínticos, numa geografia espacial e humana, requer entendimentos de interfaces na complexidade dos mecanismos de visi bilidade e invisibilidade da opressão na relação com o concreto armado verticalizado com o centro. Essas relações e articulações requerem a construção de novos espaços públicos, não estatais, mas de controle social. Espaços públicos não estatais construídos pelo protagonismo dos empobrecidos desses territórios, que vão construindo uma cultura participativa e de base, rompendo com a democracia representativa, cujo exercício da cidadania, na relação escola e território, é uma condição indispensável na materialização do direito à cidade. Por isso, o espaço escolar se torna por excelência um espaço de aprender a pensar a partir das mediações com o território, em que o olhar pensante leva a entender a história e a cultura dos sujeitos como conteúdo programático na relação com o acúmulo sistematizado existente na escola, conectando a história dos educandos no diálogo de interfaces com as fissuras da escola. Esse movimento vai construindo o Projeto Político-Pedagógico em que o ato educativo se torna um ato político. Esses novos espaços onde se entrelaçam o Estado e sociedade civil, numa relação de composição e transgressão pelo caminho do trabalho em rede, possibilita criar mecanismos de controle na direção da construção de políticas públicas. Fazer a relação de trabalhos em rede, que se articula, se entrelaça e tem direção política. As políticas educativas precisam dialogar com as demais políticas, dialogar com o espaço urbano em que está inserido. Por fim, atuar articulado com o território requer dos profissionais e/ou sujeitos envolvidos: 1. C onhecer e defender estratégias que possibilitem o atendimento das necessidades e interesses dessa população;
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2. R econhecer, valorizar, fortalecer e construir alianças com fóruns e movimentos da população, respeitando a autonomia deles; 3. A rticulação e apoio às lutas dos movimentos da população por seus direitos (moradia digna, educação, saúde, transporte, acessibilidade, questões ambientais, etc.); 4. P articipar dos conselhos e fóruns de políticas públicas, articulando para que haja acesso da população às políticas sociais; 5. Respeitar e defender a diversidade humana, combatendo as desigualdades sociais. Por último, nesse contexto sócio-histórico, que exige capacidade reflexiva para análises profundas da realidade e definição de ações críticas, mais do que nunca é tempo de organizar a resistência e avançar na luta em defesa de uma sociedade fundada na emancipação humana. É tempo de afirmar que a luta coletiva permanece com imenso sentido. É tempo de dizer que podemos construir alternativas à barbárie. É tempo de construir escolas que estejam diretamente ligadas às necessidades humanas, e não às necessidades do capital. É preciso estar na luta sempre. Enquanto houver exploração, opressão e violação de direi tos, é essa a perspectiva de atuação no território. É preciso estar articulado com os processos de organização política do espaço urbano local, tendo como premissa a concepção de que a questão urbana assume um lugar de destaque na chamada questão social, e demanda estratégias de articulação política com vistas à construção de alianças para uma sociedade mais justa e igualitária.
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Referências ABREU, Maria Helena Elpidio. O viés do (neo)desenvolvimentismo no debate sobre a categoria território no serviço social. In: CIRCUITO DE DEBATES ACADÊMICOS, 1., 2011, Brasília. Anais... Brasília: IPEA-CODE, 2011. ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. GRANEMANN, Sara. O processo de produção e reprodução social: trabalho e sociabilidade. In: Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. p. 223-238. HARVEY, David. Condição pós-moderna. 12. ed. São Paulo: Loyola, 2003. ______. O Direito à Cidade. Revista Piauí: Tribuna Livre da Luta de Classes, n. 82, jul. 2013. LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2009. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 19. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. livro I, v. II. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Plano de Desenvolvimento da Escola – PDE. Territórios Educativos para Educação Integral. Textos e cadernos pedagógicos, Série Mais Educação, n. 12. SANTOS, Milton. A natureza do espaço. 4. ed., 2. reimpr. São Paulo: USP, 2006. SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. Direitos Humanos: necessidades e limites da sociabilidade do capital. In: PAIVA, Ilana Lemos et al. (Org.). Direitos humanos e práxis: experiências do CRDHRN. Natal, RN: EDUFRN, 2015. TONET, Ivo. Expressões socioculturais da crise capitalista na atualidade. In: Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.
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Sobre os autores Aline Mendes Vasco (avasco@solmarista.org.br) Especialista em Informática na Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), graduada em Sistemas de Informação pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), atua como docente na Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. Analuci Ferreira de Souza Baroni (afsouza@solmarista.org.br) Graduada em Artes Plásticas pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), atua como professora na Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. Andrea Zocateli Guebur (aguebur@solmarista.org.br) Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Uninter, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), atua como professora na Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. 186
Bruno Ribeiro da Costa (brcosta@solmarista.org.br) Licenciado em Matemática pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), atua como professor na Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. Carla Cristina Tosatto (ctosatto@solmarista.org.br) Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), atua como assessora educacional na Rede Marista de Solidariedade (RMS).
Danyelle Stropa (danyelle.vallin@solmarista.org.br) Graduada em Pedagogia pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (CESUMAR), especialista em Psicopedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), atua na coordenação pedagógica da Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. Edson Luiz Mendes (emendes@solmarista.org.br) Licenciado em Educação Física Escolar pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em Educação Física Escolar pela UFSC, atua como coordenador pedagógico do Ensino Médio no Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne, em Florianópolis. Fráya da Cunha (fcunha@solmarista.org.br) Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atua na coor denação educacional do Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne, em Florianópolis. Gillys Vieira da Silva (gvsilva@solmarista.org.br) Mestranda em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) (2006) e especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional (2011), atua na função de diretora na Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. Gisele Maria Braciak (gbraciak13@gmail.com) Graduada em Educação Física pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), atua como professora no Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne, em Florianópolis. 187
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Júlio Cesar Gomes (josantos@solmarista.org.br) Licenciado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Sociologia Política pela UFPR, atua como professor na Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. Katia Regina Madeira (kmadeira@solmarista.org.br) Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e graduada em Serviço Social pela UFSC, atua na área de Serviço Social no Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne, em Florianópolis. Marilusa Rossari (rossari@solmarista.gov.br) Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e graduada em Pedagogia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), atua como assessora educacional na Rede Marista de Solidariedade (RMS). 188
Nádia Fernanda Borges (nborges@solmarista.org.br) Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), atua como professora no Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne, em Florianópolis. Neuzita de Paula Soares (nsoares@solmarista.org.br) Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Organização do Trabalho Pedagógico pela UFPR, atua como assessora educacional da Rede Marista de Solidariedade (RMS).
Paulo Fioravante Giareta (pfgiareta27@yahoo.com.br) Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), atua na área de Fundamentos da Educação. Vinculado ao grupo de pesquisa do Laboratório Multidisciplinar de Ensino e Aprendizagem (LEA/UFMS), coordena o projeto de pesquisa Pedagogia Universitária para Formação de Pedagogos e a Qualidade da Educação Básica. Raimunda Caldas (rabarbosa@solmarista.org.br) Especialista em Psicologia Conjugal e Familiar pela Faculdade Ruy Barbosa e em Gestão e Desenvolvimento de Pessoas pela Faculdade Visconde de Cairu (FVC), graduada em Assistência Social pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), cursando Pedagogia no Centro Universitário Leonardo Da Vinci (UNIASSELVI), atua como coordenadora educacional na Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. Suzi Mary Calixto (scalixto@solmarista.org.br) Licenciada em Educação Física pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil), graduada em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), atua como professora na Escola Marista Ecológica Marcelino Champagnat. Thais Carolina Branco (tbranco@solmarista.org.br) Licenciada em Sociologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atua como coordenadora pedagógica no Centro Educacional Marista Lucia Mayvorne, em Florianópolis. 189
Vilson Groh Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Instituto Pe. Vilson Groh (IVG), em Florianópolis.
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