UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Este é o
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
de
ARQUITETURA E URBANISMO (ainda que à primeira vista possa não parecer)
da graduanda Daniela
Accorinte Lopes com seu Orientador Rodrigo Gonçalves dos Santos apresentado em
março de 2015
MULTIPLA CIDADE O EVIDENTE E O OCULTO NO ESPAÇO URBANO
SUMÁRIO
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.
EXPERIÊNCIAS (ou memória urbana).....................................1 FINS (ou por quê?)................................................................13 INÍCIO (ou sessão de terapia)...............................................15 MEIOS (ou a evolução das ideias)........................................19 DEVANEIOS (ou camadas da minha cidade)........................27 EPÍLOGO (ou que fim levou)................................................39 BIBLIOGRAFIA (ou inspirações)...........................................41
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EXPERIÊNCIAS
(ou memórias urbanas)
Não começarei do início, e já entenderão porquê. Já adianto algo que logo verão: esse trabalho é bastante particular, e começarei contando histórias. São simples, mas devem bastar para um começo. Tais histórias são experiências minhas, que lembrei durante o processo do meu trabalho de conclusão de curso, e acho que bastarão para começar a ilustrar todo pensamento que trago aqui. Não tenho uma memória muito boa. Mal posso lembrar dos primeiros semestres do curso de graduação, ainda que tenha sido há tão pouco tempo. Mas sempre me atentei aos detalhes ao passar por cidades desconhecidas, desde criança, quando viajava no banco de trás do carro de meu pai, a cabeça para fora da janela. Deve ser por isso que dificilmente me perco, ainda que adore me perder pela cidade. Acho que foi prender-me nos detalhes urbanos que me trouxe experiências como as que trago aqui. É o que me faz lembrar de situações e lugares onde andei, situações essas que marcaram esses lugares na minha memória, e os fazem únicos para mim. São memórias como essas, vividas na cidade, que constroem nosso imaginário urbano, e dão significado para esses lugares. 1
Rio de Janeiro. Calor típico da cidade, que conhecia pela primeira vez. Caminhamos a manhã toda, percorrendo o Aterro do Flamengo em direção ao centro, até que avistei os mastros flutuando ao longe, num balançar vagaroso, na Marina da Glória. Ao fundo, a brutalidade do concreto dos pilares prostrados à frente, e a delicada combinação de tijolo e vidro entre lajes aparentes. Um ciclista fazia manobras no chão de concreto. Minha primeira vez no Museu de Arte Moderna. Minha primeira vez (vi)vendo através dos olhos de Reidy. Relembro um sentimento de quietude, até prostração. Ali há silêncio, enquanto a cidade acontece do outro lado da avenida. Sentamo-nos no chão fresco. O museu já vai abrir, a fila já se forma sob os pilotis. Um ambulante vendendo guloseimas se abriga do sol, escutando o rádio baixinho. Apesar do calor, uma brisa fresca sopra para o norte, tremulando as quatro bandeiras em frente ao prédio. A negra, traz o símbolo em branco do museu. Uma mulher, ainda jovem, vestindo roupas velhas e nenhum calçado, anda inquieta pelos cantos, balbuciando qualquer coisa. Espia as guloseimas no carrinho, reclama com o ambulante. Vai até o fim da fila, volta para o começo. Ela fala cada vez mais alto. Entre frases que não consigo distinguir, vai morrer queimada que é para economizar no caixão, porque caixão anda muito caro. Parece que nós duas percebemos o eco doado pelo espaço, potencializando seus urros. Acho que gostou disso, ser ouvida. E assim ela falava cada vez mais alto e claro. Ninguém mais vai comer, porque se eu tenho que passar fome, todo mundo vai passar junto. Amém, virei-me e disse ao meu irmão. 2
Noite chuvosa de uma quinta-feira. Fomos ver a Camerata tocar na Catedral. Saindo de lá, olhamos para trás uma última vez para ver a fachada iluminada, o pórtico servindo de abrigo da chuva para os espectadores. Ele disse que depois da aula de patrimônio em que o professor nos contou que aquele pórtico é uma adição posterior à fachada da igreja, ele nunca mais conseguiu olhar o pórtico como parte integrante do conjunto. Eu também não. 4
Durante um mês, morei na cidade de Santiago, no Chile. Fui a trabalho, e tinha uma bicicleta verde como meio de transporte. Num percurso agradável, ia e voltava do escritório todos os dias, aproveitando o clima ameno da cidade. Na esquina da Vicuña Mackenna, uma banda tocava Blues todas as tardes. O cantor, americano, tão velho quanto sua guitarra, era acompanhado de 3 jovens chilenos. O ritmo reverberava nos altos prédios ao redor. O trânsito caótico dava um nó na esquina, todos com os vidros abaixados, curtindo o som. A mulher do cantor revezava entre vender discos baratos da banda e cuidar da filha mais nova, que brincava perigosamente perto dos carros. Todas as tardes, a caminho de casa, eu parava para ouvir duas ou três músicas entre os vários espectadores. 6
Amo cores. Nem sempre amei, mas hoje não vivo sem elas. Cativam-me. Deve ser por isso que gosto tanto dessa construção. É inesperada, em meio aos apertados e antigos quarteirões de Paris. Ou talvez pelos contorcidos tubos na fachada, mostrando o que sempre se esconde. Não é exatamente bela. Não sei o que é. Ainda assim, parece que cativa não só a mim. A pequena inclinação da praça é perfeitamente confortável para sentar-se e fazer nada. Ou jogar conversa fora. Ou observar o sol batendo na fachada. A praça está sempre cheia, viva, com os vários cafés ao seu redor. Não deve ser pela beleza da construção. Não pode ser. Parece ser simplesmente um respiro para a densidade marrom de cidade. 8
Fazia muito frio naquele dia em Roma. Era véspera de ano novo, e passamos o dia andando pelo centro. A cidade estava cheia de turistas como nós. Todos andavam rapidamente entre uma parada histórica e outra, e nos direcionamos à Piazza. A rua parecia mais um beco. Cinco metros talvez, apertado entre mesas postas na rua em portas de restaurantes e grupos de turistas espiando as vitrines de lembranças. Depois de algumas dezenas de metros, a vista se abre para a Piazza, tão comprida que não se via o outro lado. Prédios antigos ditavam uniformemente seu formato; uma grande fonte, cuidadosamente esculpida, pontuava cada um dos cantos. Artistas, palhaços, barracas coloridas chamavam para brincadeiras. Acertando no alvo, leva um prêmio. Músicas de diferentes ritmos se confundiam com pipocas estourando. Balões de todas as cores davam vida ao fundo marrom das edificações Não posso descrever nenhuma dessas edificações que circundavam a praça. Apesar dos séculos de história que elas guardavam, não me atraíram a atenção. Não podiam competir com a vida imprevisível que ocorria entre suas fachadas com janelas ritmadas. 10
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FINS
(ou por quê?)
Preciso deixar algumas coisas claras antes de prosseguirmos. Em primeiro lugar, como o próprio nome sugere, o trabalho de conclusão de curso é, para mim, o último passo tomado como aluna do curso de Arquitetura e Urbanismo. Note que isso difere bastante de ser o primeiro passo tomado como arquiteta. Na verdade, é quase o oposto. Não acredito que uma escola deva preparar para o que há lá fora. De fato, o que há lá fora, via de regra, não tem sido bom. Na verdade, acho que o papel da escola, ao contrário, é fazer enxergar de modo diferente. Fazer sonhar. E um TCC deveria atestar essa capacidade em cada futuro arquiteto, mais do que atestar sua capacidade de ‘ser um arquiteto’. É dessa maneira que eu encaro esse trabalho, e acho importante deixar isso claro antes mesmo de seguir com a leitura. Outra confissão a se fazer: o processo que o TCC exige é completamente diferente de qualquer outro que temos a oportunidade de fazer dentro da escola. É inteiramente nosso, da concepção à finalização. Angustiante. Por outro lado, libertador. Faz tomar cada caminho de forma independente, descobrir-se. Importante: independência não é isolamento. Toda a construção desse processo foi feita de forma coletiva. Há nessas páginas um pouco de cada um que tive a oportunidade de discutir durante esse processo. E foram muitos. Último aviso. As escolhas feitas nesse processo priorizam minha formação em primeiro lugar. Todas as palavras aqui contidas estão justamente dando voz à um pensamento meu. E ao fim, todas as angústias e descobertas causadas por todo esse processo, trago à tona para descobrir se elas são só minhas, ou atingem outros. Para causar um estranhamento e fazer pensar. Desestabilizar. Acho que 13
já posso adiantar que esse é meu maior objetivo em escrever tudo daqui para frente. Não poderia também deixar de contar um pequeno fato aqui. Sempre me incomodei um pouco nas aulas de projeto em início de semestre, a sala se dividia em grupos para percorrer aquela lista pronta dada pelos professores e chamada, com aquela pompa típica dos termos técnicos, de diagnóstico. Visita ao local. Mapas coloridos – amarelo é residencial, vermelho, comercial. Talvez algumas entrevistas com moradores locais. Assim já podemos passar, sem peso na consciência, para a parte boa de ser arquiteto, que é projetar. Pode parecer estranho que esteja contando esse fato agora, mas acho que encontrarão a importância dele ser exposto aqui mais à frente. Aliás, certamente já deu para notar que esse trabalho não se encontra em ordem cronológica. Os tempos se misturam durante todo o trabalho, e espero que isso cause a confusão que pretendo. Este trabalho é uma grande especulação, uma experiência para tentar ver e mostrar as coisas de um modo diferente do habitual. Utilizo palavra e imagem de forma a demonstrar a cidade além do racional, uma cidade mais interpretada que edificada.
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INÍCIO
(ou sessão de terapia)
Sempre tive um interesse pela mente humana. Claro que ao longo desses anos estudando a cidade, esse interesse se volta para a relação dessa mente humana com seu espaço; afinal, essa relação é princípio e fim de qualquer construção. É este interesse que me levou a estudar arquitetura em primeiro lugar; e o que me leva a percorrer esse caminho durante este último ano. Há algum tempo, tinha a certeza da influência psicológica do espaço em seu usuário acima de tudo. Acreditei na verdade absoluta da arquitetura, como se pudesse ser domada e entendida por completo. Era estática. Tudo que restava de minha vida como arquiteta era desvendar os meios para que a arquitetura servisse seu propósito maior: transformar a sociedade. Tarefa longa e extenuante, porém simples. A verdade é que o processo de desconstrução dessa ideia começou a cerca de três anos. Eu voltava de um intercâmbio na Inglaterra na época, o que já causou-me um certo deslocamento. Foi quando decidi começar a ler mais sobre a mente humana, talvez querendo iniciar a longa jornada para desvendar aqueles segredos da arquitetura, e algumas ideias que tomei contato pela primeira vez ali me tocaram profundamente, como por exemplo a psicanálise e seus inúmeros desdobramentos dentro da psicologia. Não por simplesmente me identificar com as teorias ali expostas, pelo contrário, muitas vezes as neguei categoricamente. Mas foi a forma diferenciada de pensar a mente humana que acabou me influenciando. Foi necessário o choque trazido por Freud em toda a sua obra para que eu enxergasse o ser humano além de seus comportamentos instintivos e previsíveis (ainda que, ao meu ver, o próprio psicanalista muitas vezes veja o ser humano somente por seus comportamentos instintivos e previsíveis, mas falaremos sobre isso mais adiante). Ali vi a infinidade da mente humana, de seus sonhos e desejos. E consequentemente, vi que entendê-la é tarefa impossível. Assim, construir a cidade para abrigar essa mente deixou de ser tarefa simples. Claro que esse entendimento não veio pacificamente. Causou grande 15
turbulência em minha mente, fez-me sair do conforto de minhas verdades e vagar na penumbra por longo tempo, até achar-me novamente. Aí, tudo já estava diferente. As coisas deixaram de ser estáticas, assim que a mente deixou de ser estática. A arquitetura não é algo simplesmente físico, evoluiu. Agora, o papel do arquiteto não é mais mero balanço entre técnica e estética, mas diz respeito também às relações, tantas vezes invisíveis, que o desenho traz. Ela deixou de ser o olhar e passa a ser o ver, trabalho conjunto entre olhos e mente. Aí nasce meu interesse pela dimensão humana no espaço construído. Nasce primeiro como uma autocrítica, e depois, de forma mais abrangente, uma crítica ao modo como lidamos com essa dimensão nas cidades. A sensibilidade humana e a influência psicológica do espaço no usuário não costuma ser parte do processo de ensino ou de trabalho do urbanista, por isso me deixei levar por esse complexo universo de forma muito própria. A penumbra me fez ir longe, voltar por caminhos diferentes, escolher desvios ás cegas. Ainda acredito que o ambiente influencie seu usuário, mas agora seu papel é outro. A relação não é dual, mas cíclica. É o corpo que produz cidade que produz o corpo. E no que diz respeito ao ambiente físico construído, cada vez mais presente na vida de um mundo já majoritariamente urbano, o ofício do arquiteto e urbanista se torna mais evidente. Meu objetivo maior é experimentar essa relação entre espaço e a mente humana; quero saber mais sobre as influências do espaço construído e de nossas decisões projetuais na psique humana. Afinal, acredito que essa influência exista, mas minha falta de conhecimento sobre ela vem deixando uma lacuna no meu ato de projetar para alguém. Mais que a construção física em si, minha preocupação é na interpretação da cidade e da relação dos cidadãos com ela, é sua construção perceptiva. Penso que é primordial o entendimento dessa relação para qualquer construtor do 16
espaço, já que é nela que reside o significado urbano, e uma cidade que não trata dessa relação acima de tudo, não cumpre seu papel principal. A observação e experimentação da cidade é, para mim, o principal instrumento para a interpretação dela, como espaço tanto pessoal quanto social. É assim que, primeiro, criamos nossa própria relação com ela, e depois, com aqueles à nossa volta, cada um com sua própria relação. Assim criamos a sensibilidade necessária para entender melhor o papel psicológico do ambiente urbano no usuário, e adquirimos um repertório de sentimentos e situações. É claro que nesse processo a penumbra sempre vai existir, é parte integrante da vida do arquiteto. E assim como a mente é infinita, também são os desdobramentos desse trabalho. Apresento aqui meu próprio caminho, que é apenas mais um. No fim, há mais perguntas que respostas (afinal, não há resposta alguma). E ao menos até o momento, me parece que Louis Kahn estava certo, uma boa pergunta realmente é mais valiosa que uma resposta brilhante.
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MEIOS
(ou a evolução das ideias)
A evolução desse trabalho de conclusão de curso está se dando lentamente. Demora mais que um ano. Mas veremos o que cabe nele. O fato é que o processo foi (e está sendo) uma exploração infinita. Li tudo o que quis, no tempo que quis. E esse vai e volta dentro da teoria acabou me levando por um caminho bastante peculiar, e me fez interpretá-la de maneira muito pessoal – provavelmente até bem diferente do que os próprios autores queriam dizer. Paciência, o mundo é uma interpretação. Aqui vai um pouco da minha. As grandes Revoluções Industriais que ocorreram a partir de 1760, na Inglaterra, trouxeram grandes contingentes de força de trabalho dos campos para as grandes cidades, todos em busca de ocupação nas mais novas plantas fabris do que viria a se tornar burguesia. Explorando a força de trabalho, essa burguesia acumula capital através da mais-valia, criando um abismo cada vez maior entre ela e a classe trabalhadora. Ao longo dos últimos séculos, a institucionalização dessa divisão social do trabalho e a formação das classes constitui, como colocado por Marx, uma imposição de uma ordem mítica ao inconsciente social. Essa ordem mítica só poderia ser fruto da alienação humana, fenômeno pelo qual os homens criam alguma coisa, dão independência a essa coisa como se ela existisse por si e em si mesma, deixam-se governar por ela. Para Marx, os homens ignoram que são os criadores da sociedade, da política, da cultura e agentes da História. Essa alienação mantém o inconsciente social através dessas míticas separações da sociedade capitalista. Em paralelo ao inconsciente ideológico colocado por Marx, a teoria de inconsciente de Freud surge posteriormente, e assemelha-se com o primeiro por colocar o fato de que o ser humano é suscetível a ideias inconscientes. 19
Apesar de não haver sido Freud o primeiro a discutir com seriedade a mente humana inconsciente, o psiquiatra alegava ser ele o descobridor da forma científica para o estudo do inconsciente, devido ao fato de ter sido o primeiro a aplicar esses conceitos de forma mais prática. “Denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor — devido a algum motivo tal que o inferimos a partir de seus efeitos —, mas do qual nada sabemos. Nesse caso, temos para tal processo a mesma relação que temos com um processo psíquico de uma outra pessoa, exceto que, de fato, se trata de um processo nosso, mesmo. Se quisermos ser ainda mais corretos, modificaremos nossa assertiva dizendo que denominamos inconsciente um processo se somos obrigados a supor que ele está sendo ativado no momento, embora no momento não saibamos nada a seu respeito. Essa restrição faz-nos raciocinar que a maioria dos processos conscientes são conscientes apenas num curto espaço de tempo; muito em breve se tornam latentes, podendo, contudo, facilmente tornar-se de novo conscientes. Também poderíamos dizer que se tornaram inconscientes, se fosse absolutamente certo que, na condição de latência, ainda constituem algo de psíquico. “ (FREUD, 1932, p. 90). A partir das teorias de Freud, começamos a discutir as relações entre consciente e inconsciente. Suas ideias colocam o ser humano de forma diferente aos olhos das ciências, e de certa forma as revolucionam. A partir delas, houve uma revisão daquilo que rege a mente humana, colocando-a suscetível ao seu próprio inconsciente. Aquela divisão social trazida pela alienação inconsciente, como explorado 20
por Marx, é a base, segundo Guy Debord em Sociedade do Espetáculo (1967), da nova ordem que se coloca desde lá no mundo. A alienação acaba tornando a sociedade passiva aos acontecimentos e fenômenos externos, e é com essa passividade inconsciente que se dá a espetacularização das cidades. Para ele, a manutenção desse estado inconsciente é o que conserva a sociedade do espetáculo. Esse mundo moderno espetacular traz uma enxurrada de estímulos, de meios em constante e rápida modificação. Segundo Simmel (1903), os estímulos externos são de grande valia para o ser humano, porém a cidade contemporânea coloca cada vez mais estímulos extremos que podem ser danosos à saúde mental, causando um afastamento psicológico dos cidadãos com seu meio e com outros cidadãos. Para se proteger, o homem metropolitano torna-se blasé, afastando-se da experiência, tão primordial para a formação de sua essência. No urbanismo, é o movimento moderno que de certa forma instaura um modo espetacular de fazer cidade, ainda que não intencionalmente. A crise ocasionada na Europa pelas guerras no início do século XX criou uma necessidade de se construir cidades inteiras rapidamente. Essa rapidez necessária é alcançada através de alguns preceitos, desde a prancheta dos arquitetos e urbanistas até o modo de produção da construção civil. A racionalização dos projetos é um desses preceitos, que permitiu a reconstrução rápida e em grande parte industrializada das cidades dizimadas pelas guerras. Com algum tempo de atraso, esse modo de projetar também acaba acontecendo nos países latino-americanos, por influência dos países europeus e pela intensa industrialização que começou a ocorrer aqui. Com uma visão iluminista do mundo, o homem moderno via uma única resposta para qualquer pergunta. Assim, esse mundo poderia ser organizado de forma racional, exatamente como faziam os urbanistas modernos. A extrema funcionalização e a grande fé depositada na linha reta é vista desde o plano Voisin de Le Corbusier para Paris até os eixos monumentais da Brasília de Lúcio Costa. 21
A racionalidade, para estes urbanistas, seria o meio libertador do cidadão, que poderia ter pleno conhecimento da cidade e racionalmente recorrer à ela para cada passo de sua vida. Porém, aos poucos essa ideia de que havia somente um modo de representação começou a ruir. Foi-se perdendo a fé na invencibilidade do progresso. As divergências começaram a surgir no século XIX, ainda que de forma tímida, na literatura e nas artes. Um dos grandes filósofos a explorar uma ideia mais ampla de verdade foi Friedrich Nietzsche. Segundo ele, a noção tradicional de verdade se trata de um preconceito moralista inventado para legitimar a superioridade de determinados valores metafísicos em detrimento de outros. Para ele, a verdade absoluta não existe. Assim, não existiriam os fatos, mas apenas interpretações deles. Pois bem, se cada ser possui sua própria interpretação da verdade, uma cidade é feita das infinitas interpretações que ela recebe. Essas verdades são formadoras da essência humana individualmente segundo Jean-Paul Sartre, filósofo existencialista. O conceito filosófico existencialista prega que a existência precede a essência, e assim o homem antes existe, e depois vai formando sua essência. Para os existencialistas, não existe uma natureza humana pré-estabelecida. “Consideremos um objeto fabricado, por exemplo, um livro ou um corta-papel; esse objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou num conceito; tinha, como referencias, o conceito de cortapapel assim como determinada técnica de produção, que faz parte do conceito e que, no fundo, é uma receita. Desse modo, o corta-papel é, simultaneamente, um objeto que é produzido de certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida: seria impossível imaginarmos um homem que produzisse um corta-papel sem saber 22
para que tal objeto iria servir. Podemos assim afirmar que, no caso do corta-papel, a essência – ou seja, o conjunto das técnicas e qualidades que permitem a sua produção e definição - precede a existência; e desse modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada. “ (SARTRE, 1970, p. 3) Tal pensamento filosófico começa com o sujeito humano, não meramente o sujeito pensante, mas as suas ações, sentimentos e a vivência de um ser humano individual. Assim, reconhece-se uma importância crucial à experiência. É ela que forma a essência humana ao longo do tempo. Fica bastante clara a influência da teoria fenomenológica em Sartre, que trata os fenômenos que aparecem à consciência como aqueles formadores do ser humano. Fenomenologia é o estudo dos fenômenos que aparecem à consciência. Essa filosofia aborda o sentido dado aos fenômenos, e foi primeiramente proposta pelo alemão Edmund Husserl, cuja teoria rompia com a orientação positivista da ciência. A vivência do mundo não está nas coisas em si, nos fatos, mas nos fenômenos que esses fatos representam para aquele que está vivenciando. Pois, aquele homem blasé, que pouco experimenta a cidade, tem uma formação empobrecida de sua essência. A cidade moderna, onde tudo é racional e previsto, também não dá espaço para novas experiências. Faz-se necessário uma cidade aberta à experiência de seus usuários para que tenham uma formação plena. Tais experiências aumentam a consciência de corpo e mente, aguçam a percepção do ser. Elas são uma interação entre o mundo físico e nossas memórias corporificadas – memórias de experiências passadas. Assim se dá a formação humana. Se colocamos a cidade como um meio fenomenológico, podemos afirmar que ela é riquíssima para a formação humana. Se nos abrirmos para esses fenômenos, podemos explorar tantas possibilidades de relações quanto 23
nossa consciência nos permite. Mas para isso, faz-se necessário um processo de desalienação, tanto na vivência quanto na construção da cidade. É preciso que se esteja aberto ao fenômeno, para captura-lo com toda sua significação. Não se pode afastá-los, numa atitude blasé, ou seria impossível entender, mesmo que minimamente, a cidade e seus significados. Tentando entender um pouco daquilo que é inconsciente em mim, comecei a experimentar a cidade sem preconceitos, abrindo-me a experiências novas e observando tudo à minha volta. Somente assim, pude ver melhor o que a cidade representava para mim. Vejo-a com mais clareza, como descreveu Renzo Piano na Potsdamer Platz, “muito mais que um conjunto de prédios, de instituições, de avenidas ou de praças. (...) A cidade é um modo de ser, um estado de ânimo, uma atmosfera do espírito, uma sensação. A cidade é emoção.” Durante as várias derivas literárias do meu processo, conheci algumas ideias do filósofo americano Charles Peirce, que trabalhou conceitos sobre a mente humana a partir da fenomenologia. Ele colocava essa mente humana como receptora dos fenômenos externos, e a consciência seria formada por várias camadas em constante movimento, e é nesse movimento que se dão as formas de pensamento, as experiências, a formação humana. E também o meio urbano poderia ser pensado como um conjunto de camadas, situações efêmeras sendo interpretadas pelos cidadãos. Mais que um conjunto de espaços construídos, a cidade é um conjunto dessas camadas, algumas físicas e tantas efêmeras, que se somam e se subtraem, são colocadas e retiradas ao longo do tempo. Essa movimentação entre todas essas camadas é que traz a complexidade e riqueza do meio urbano. Aí ocorreu-me, durante esse processo, a ideia da cidade democrática. Sendo ela feita por camadas efêmeras, acaba por servir como cenário, como palco, como plateia. Assim se dá maior condição para a participação de todos os cidadãos, em suas devidas camadas. 24
E acho que não há lugar mais democrático na cidade que o centro. Democrático aqui não no seu sentido idealista, sonhador, mas aquilo que dá espaço para a construção conjunta de sentido. Nenhum outro lugar da cidade se encontra tanta gente diferente convivendo em um mesmo espaço. É claro que essa diversidade de pessoas é o que traz maior diversidade de percepções, de camadas, e me parece o local ideal para se investigar. E claro, deixando formalismos de lado, o centro da cidade de Florianópolis sempre me despertou um sentimento de urbanidade. Ele me cativa sob qualquer circunstância. Não poderia escolher qualquer outro recorte urbano para estudar que não fosse ali. Já carrego dentro de mim um acúmulo de sentimentos, histórias, personagens e percepções desse local. Costumo sentar-me ao pé da porta da Alfândega e assistir a vida passar. E acabei percebendo, durante o processo, que essa é uma ótima maneira de conhecer a cidade: assistindo toda a sua vida passar. Dessa maneira é que crio minhas memórias do local, leio suas camadas. Interpreto-a a cada nova visita, colocando e retirando experiências latentes no meu imaginário. E a cada nova visita, ela se torna diferente da última vez. Há muito do movimento situacionista aqui. Para a Internacional Situacionista, através da prática psicogeográfica e das derivas se experimenta a cidade. E como uma apologia aos situacionistas, meu trabalho acabou não por criar as situações, como idealizavam alguns dos pensadores do movimento, mas por senti-las, mapeá-las, num processo psicogeográfico muito próprio. Mas como explorar esse estado mental, quase inconsciente? Não há como representar o espaço perceptivo, que é pertencente do mundo das ideais, onde nada se encaixa no modo cartesiano como estamos tão acostumados. A melhor maneira de mostrar um espaço perceptivo não pode ser outra que não fazer perceber, numa tentativa de instaurar um estado de entrega às situações no observador. Imagens, movimentos, palavras, sentidos e sentimentos, e principalmente fazer imaginar. 25
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DEVANEIOS
(ou camadas da minha cidade)
A dinâmica urbana é infinita. A cada dia, cada ser reinventa sua cidade, introduzindo novas formas de viver e perceber seu espaço. Cada evento, cada pessoa que entra em minha memória, adiciona uma camada diferente para a minha cidade, resignificando o espaço. Voltando meus olhos e memória às situações do centro da cidade, vi algumas que não deixaram meu imaginário jamais. E apesar de aprender tanto sobre a arquitetura a cada momento que volto meus olhos para o alto dos prédios ali ao redor, o que realmente povoa minha mente acerca desse espaço são as situações efêmeras que vivi. Pessoas que me chamaram a atenção, conversas alheias, sons agradáveis ou não, o cheiro forte do salame. Tantas cores à venda. Como será que tudo isso é percebido pelo outro? Será que é percebido afinal? Como o faço perceber? Toda essa riqueza que a cidade guarda não pode ser representada com escala e um par de esquadros. A abstração de uma planta baixa não mostra mais do que seria uma representação daquilo que veríamos se convenientemente cortássemos tudo horizontalmente, à 1,5m de altura a partir da base. Então, fui buscar maneiras um pouco menos usuais de representar essa cidade que eu vivo, misturando realidade e fantasia, de modo a mostrar um pouco além do que linhas ortogonais em uma folha de papel podem mostrar. 27
Ele nunca pula. Passa o dia todo falando, e só. Todo mundo sabe disso, mas tem sempre tanta gente ali. Será só por curiosidade? Uma vaga esperança de vê-lo pular? Fala de suas origens. De honestidade. Da família. De capoeira. De pomada de arnica. Com a conversa tendendo ao infinito, é difícil manter aquela esperança. E quando pula, é tão rápido que a mínima distração faz perder o tão esperado ato.
Ele dificilmente falta. Costuma ir trabalhar uniformizado, estilo estrela do rock. Não abre mão da jaqueta enquanto o verão deixar. Parece de poucas palavras, mas canta em horário comercial. Pausa, só para o cigarro. Ou afinar as cordas. Por alguma razão, me conforta escutá-lo, nem que seja por um breve momento, todas as vezes que passo.
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A trupe de artistas, todos vestidos de super-heróis, pegou o pequeno da plateia, como se o salvassem de um perigo. Acho difícil que ele (ou eu) esqueça esse gesto sempre quando passar por ali. É uma memória marcante essa que a cidade nos ofereceu.
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Quando a feira se instala, faz do largo um outro lugar. Faz a vida mais leve, acalma os movimentos. Aquele que passava rรกpido pelas ruas, o olhar fixo no nada, agora passa calmamente, entre barracas coloridas e ofertas de bolachas.
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EPÍLOGO
(ou que fim levou)
Deve-se perceber a essa altura que realmente não há respostas (espero que não haja desapontamentos, afinal já havia avisado desde o começo). Olhando daqui, diria que o trabalho todo é quase uma apologia à experiência da cidade, uma maneira de apreendê-la, alternativa ao “diagnóstico”. Afinal, não me sinto como uma médica urbana, nem vejo a cidade como se fosse um paciente sem saúde. Trouxe alguns pensamentos, alguns ensaios de como eu vejo essa cidade e seus cidadãos, baseados em experiências que tive tanto no curso quanto no meio urbano. É certo que para mim, esses pensamentos representaram um grande amadurecimento, e espero poder levar comigo essa visão da cidade para minha vida profissional. E espero ter contribuído com a visão de outros, durante todas as inúmeras discussões no pavilhinho, nas mesas dos bares, ou através do - talvez burocrático demais – processo do trabalho de conclusão de curso. Sempre com aquele porquê disso tudo em mente: desestabilizar. Espero que tenha trazido um momento de reflexão, por mais breve que tenha sido. 39
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BIBLIOGRAFIA
(ou inspirações)
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ÍNDICE DE IMAGENS POR PÁGINA 3 - Museu de Arte Moderna, Affonso Eduardo Reidy, Rio de Janeiro. Foto própria. 5 - Catedral Metropolitana de Florianópolis. Foto própria. 7 - Catedral de Santiago, Chile. Foto própria. 9 - Centre Georges Pompidou, Paris. Foto própria. 11 - Piazza Navona, Roma. Foto própria. 28/29 - INFINITO, ou o cara da faca. Montagem sobre foto própria. 31 - COMPOSITOR, ou labuta. Montagem sobre foto de Yuri Pinto. 32/33 - PINO DE BOLICHE, ou diversão. Montagem sobre foto própria. 34 - GEOGRAFIA INÚTIL, ou os malucos. Montagem sobre foto própria. 36/37 - PRETEXTO, ou a feira. Montagem sobre foto de Yuri Pinto.
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