Almanaques_especial114

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ESPECIAL

DIA DO SACI

31/10

Texto: Bruno Hoffmann Arte: Guilherme Resende Ilustrações: Guazzelli

outros mitos que metem medo

Em outubro de 2007, este ALMANAQUE levou a julgamento seis personagens muito suspeitos, acusados de toda sorte de crime: Saci, Mula-Sem-Cabeça, Mboitatá, Homem do Saco, Lobisomem e Cuca. Livraram-se todos. Dispostos a esclarecer as supostas atrocidades cometidas pelos mitos que ainda preservam seu cantinho na imaginação dos brasileiros, encaminhamos cinco outros meliantes ao recém-constituído Supremo Tribunal do Folclore, presidido pelo patrono deste ALMANAQUE, Luís da Câmara Cascudo. Que ele acompanhe as acusações e depoimentos e profira sua sentença.

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m 31 de outubro, em várias partes do mundo, é comemorado o Halloween, ou Dia das Bruxas. Tradição norte-americana que, pouco a pouco, vem sendo importada pelo nosso País. Mas por que se vestir de bruxinha, cortar abóbora e sair por aí falando “travessuras ou gostosuras” se temos lendas capazes de apavorar os mais destemidos cidadãos? Pra começo de conversa, há tempos defendemos a data como Dia do Saci, e nisso temos bons companheiros, infiltrados nos mais diversos campos de atuação: de músicos a intelectuais; de executivos a profissionais liberais. Alguns reunidos em associações de criadores e observadores de sacis; outros agindo anonimamente a favor da causa. E quando se fala nessa criaturinha, podE experimentar, logo surge uma verdadeira organização criminosa de seres imaginários (ou serão reais?).

Pois então, se você quer mesmo entrar nessa, cativando estas figuras saídas das trevas da nossa memória coletiva, há que saber: eles são capazes de fazer você se perder pela floresta, provocam pesadelos, devoram órgãos internos e seduzem de marmanjos a donzelas. Há tempos atravessam fronteiras e séculos, botando medo em quem se dá conta de sua existência. Índios e escravos; colonizadores e imigrantes; monarquistas e republicanos; parnasianos e modernistas; gente da roça e da cidade. Cada qual com um mito pra chamar de seu. Por isso, para que não pairem dúvidas sobre as intenções desses meliantes, repetimos o julgamento realizado nestas mesmas páginas um ano atrás, agora com novos acusados. Que ocupem os seus lugares o Curupira, a Pisadeira, o Boto, a Alamoa e o Papa-Figo. Que se percam nas profundezas do esquecimento ou venham à tona na imaginação.


curupirA

gem que vive nas cie de duende selva pé es a um de e -s rata as e os animais. ra proteger as mat pa s ira ile as br s sta flore ue de Mboitatá, par da mesma gang ci rti pa e de o ad us É ac contra caçadores as próprias mãos m co , ça ho sti in ju ix z ba fa r um se pois também ntem tratar-se de ra ga s ha de un s m do ta ste je Te lenhadores. s azuis, olhos in rto de pêlos, unha os para trás. com o corpo cobe e, com os pés virad nt ie fic su e ss fo o tratando animais sangue e, nã flagrar alguém mal Ao is. ué cr o sã s i o dito-cujo para Suas investida a duas vezes. Atra ns pe o nã s, re vo ár e morra de fome, ou cortando eira que se perca an m l ta de s, to pi caçador abata lugares inós m permitir que um bé m ta a de Po o. aç sujeito vai buscar sede ou cans , mas quando o al im N a um s. e to ad com facilid r e os filhos mor seu lugar a mulhe que seus pés são presa, encontra em a Justiça, aproveita r ia br di lu ra pa io s na hora da fuga. Como artifíc dir os investigadore un nf co ra pa s trá para o lado contrá virados para pre acham que foi m se , s, es da ad ga tid pe en id as outras Aos checar Se vale também de . tá es te en m al re rio do que r. mbi e Caiçara. ça para sobrevive como Caapora, Zu persegue quem ca o nã s, e da el e en qu pr ga as gum Há quem di troca, claro, de al Em a. ud aj é at , rio Pelo contrá a e cachaça. como fumo, comid

t

pisAdeirA

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q

uer evitar pesadelos? Então não durma de barriga para cima. Este é o conselho de que m garante ter sido atacado pela Pisadeira. A melian te costuma agir em São Paulo e Minas Gerais. Suas vítimas preferidas são aquelas que comeram demais antes de dormir. Desce do telh ado – seu esconderijo mais usual – e pisa com muita força no pei to e na barriga do incauto adorme cido, provocando os pesadelos. Há controvérsias sobre a sua aparência. De acordo com algu ns, é uma mulher bem gorda. Já o escritor Cornélio Pires forn ece u a seguinte descrição da malfei tora: “Essa é ua muié muito ma gra, que tem os dedos cumprid o e seco cum cada unhão! Tem as perna curta, cabelo desgadeiad o, quexo revirado pra riba e nar i magro munto arcado; sombrance ia cerrado e zóio aceso... Quando a gente caba de ciá e vai durmi logo, deitado de costa, ele des ce do teiado e senta no peito da gente, arcano... arcano... a boc a do estámo... Purisso nunca se dev e dexá as criança durmi de cos ta”. Pelo sim, pelo não, caro amigo ... Barriga pra baixo e bons son hos.

Outubro Agosto 2008 2007

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AlAmoA

BOTO

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nalha, boêmio e Juan brasileiro. Ca m verdadeiro Don er em festas de tor, costuma aparec extremamente sedu música e eis que s. Basta começar a vilarejos ribeirinho cia de boto, mas o mais com aparên surge o cidadão, nã pre de chapéu (com alinhada e está sem é a eup ro a Su . em r melhor). É mist de hom cima para respira de or rte m pa hu na m bo co um bura dor. Tem um profundo e desafia uito, rioso, com olhar ida certa. Bebe m m malandro na ed de ião ar as oc um e na l r, íve irresist que fala . Sempre sabe o do ba bê a fic a nc mas nu to exato. oça certa e no momen acio e sedutor. A m com um Toque m , m ite ué no ng a ni o um m a co Dança ixar levar pronta para se de , ca m bo alu m do a to fic o a m id escolh tecer. Co que costuma acon o é da E an o. m ixã m pa Ne a . id de tórr dia seguinte o Boto não liga no cafajeste, porém, gravida. en quando a donzela em e-mail. Ainda mais o se deve confiar Nã . ito ecisa ser fe pr to , m Bo l ré ta po o , e ta qu er Um al garanta vítimas. Há quem s ez sta id po av su gr s a na ar ia fic justi demas uma desculpa para só é Só e . qu ãe , am iu m ist ex ir, nunca foi o Jurand s. “Juro que não de moças solteira to!” pode ter sido o Bo O suposto pai to de paternidade. en im ec nh co re o Nã ou contestará mirá a paternidade su as e , do ca tifi no será e DNA para será necessário exam so ca ste Ne . ão aç a mentícia, pode o pague a pensão ali nã so Ca . ão aç rm meses. confi clusão de até três cumprir pena de re

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bandidagem está à solta pelo País. Até regiões distantes e pacatas andam envolvidas em crim es misteriosos. É o caso do arquipélago de Fernando de Noronha, conhecido por suas praias maravilhosas e quase desabitadas. Porém, entre os poucos moradores, há algu ns marginais. A mais famosa é a Alamoa, ou Alemoa, uma mulher que vive no alto do morro do Pico, a mil metros de altura. Ela surge como uma loiraça de para r o trânsito, completamente sem roupa. Seduz os moradores locais e viajantes. Quando o cidadão já está com corações de desenho animado nos olhos, ela se transforma numa horripilant e caveira, capaz de matar (literalmente, em alguns casos) o cidadão de susto. Outra tática da acusada é convenc er a vítima a acompanhá-la até sua casa, em cima da montanh a. No caminho, joga uma conversinha que induz o acompanha nte ao suicídio. De acordo com historiadores, ela não tem nad a de alemã, como sugere o nome. É, sim, holandesa, vinda nas embarcações que rumaram a Pernambuco com Maurício de Nas sau. Induzir ou instigar alguém a suic idar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Reclusã o de dois a seis anos, caso o suicídio se consume. A pen a é duplicada se o crime é praticado por motivo ego ístico. Morte devido a aplicação de um susto se enquad ra em homicídio culposo. Detenção de um a três anos. Com o estrangeira, pode cumprir pena no País ou sofrer extr adição sumária.


pApA-Figo

Oiapoo Grande do Sul – do le age do Amapá ao Ri o bradiz. Não há um rincã que ao Chuí, como se É um . livre de seus ataques sileiro onde se esteja a que o faça nenhuma característic velhinho comum, sem a um saco te. Mas sempre carreg en ilm fac o id ec nh co ser re Saco, mas não é o avô do Homem do às costas (dizem que rável mofre de uma rara e incu so o ciã an O ). os im garant dientes) com a (pra variar, as desobe léstia. Rapta crianças sUa doença. fígado e assim aplacar o r ra vo de de o çã inten parceiros para da, costuma contratar Por sua idade avança o a escolas pangas agem próxim ca Os . ão iss m na -lo ajudá gostosas para os, doces e comidas e distribuem brinqued o Papalevam as vítimas para tão En . da ça ian cr a atrair ica, abandona periência antropofág Figo, que, depois da ex o, que é para ande soma de dinheir gr a um a o nt ju o rp o co mente a família. compensar financeira

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Pena de do (execução cruel). Homicídio qualifica rmação fo r po pode responder 12 a 30 anos. Ainda se a da va ndo. A pena é agra de quadrilha ou ba ha ec na lei: ça do criminoso. Br vítima tem a confian em caso de considerado crime canibalismo não é ia. extrema sobrevivênc

A SENTEN ÇA

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juiz do Supremo Tribunal do Folclore, Câmara Cascudo, entra na corte e pede que todos os acusados fiquem de pé. Ele é o maior conhecedor das crenças e costumes brasileiros, e passou as últimas horas ouvindo promotores, testemunhas e réus. Após analisar o caso, está pronto para proferir a sentença. Todos estão apreensivos. “Quando comecei meu trabalho de catalogar esses seres, não havia no Brasil qualquer associação que reunisse malucos que amassem o folclore. Fiz o possível para incomodar intensamente amigos e desconhecidos. Mendiguei histórias de bichos e homens assombrosos em todos os Estados”, justifica, para, em seguida, declarar que o trabalhão valeu a pena. “Reuni uma bicharia fantástica. Prendi todos nos meus livros.” A palavra “prendi” faz os cinco acusados tremerem. Mas, com um leve sorriso, Cascudo encerra o suspense: “Estão todos absolvidos. Essas figuras fantásticas devem estar sempre livres no imaginário popular”. Comemoração no tribunal. A bicharada respira aliviada, certa de ter ganhado sobrevida na memória dos brasileiros. Ou, ao menos, na dos leitores deste ALMANAQUE.

saiba mais • Geografia dos Mitos Brasileiros, de Luís da Câmara Cascudo (Global, 2002). • Site da Sociedade dos Observadores de Saci: www.sosaci.org

Outubro 2008

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