Velhocaramujo

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Desenho de Guilherme Zamoner

Texto de Josely Vianna Baptista

A Concha das Mil Coisas Maravilhosas do


No topo de uma gruta, um olho d’água Límpida flui, à sombra de alguns choupos. Lá jogou-nos a onda, e um deus foi guia; Na noite cega não se via nada: Naus aportando, naquela escuridão A Lua encoberta, a terra oculta, Nem marola rolar nas praias vimos, Antes que as proas embicassem nelas. Velas dobradas, fomos e, na areia, Da madrugada à espera, adormecemos.

(Versos do Livro IX da Odisséia, de Homero). Tradução de Josely Vianna Baptista, a partir da clássica versão de Odorico Mendes.

Para o nonno José e o vovô Milton, contadores de histórias à beira do fogo, à luz de velas e de estrelas.


A Concha das Mil Coisas Maravilhosas do

Desenho de Guilherme Zamoner

Texto de Josely Vianna Baptista

“Coleção Broche de Rubis” Edições Mirabilia Brasil, ano 2000


Naus. Fac-símile do frontispício de um dos relatos da História trágico-marítima (1735), de Bernardo G. de Brito (Lisboa, Afrodite, 1971, v. 1).


C

ayo Iguana, Caribe. Fim de um dia de outubro do ano 2000. Praia deserta. Tempestade no mar. O céu de chumbo ameaça chuva. Nuvens passam velozes no azul-marinho. Segurando meu chapéu para que ele não voe com a ventania, levo um susto ao ver, embolado numa onda gigante, um Velho Caramujo. A onda vai dobrando devagar e vem quebrar na praia com estrondo, espalhando espumas. Sobre a areia úmida, com o casaco de madrepérola encharcado até os bolsos, um pobre Caramujo parece estar desmaiado. Corro para ajudá-lo, mas antes que consiga chegar até ele vejo duas crianças, em meio ao escarcéu, arrastarem-no às pressas para uma gruta escondida nos rochedos. Escurece de repente. Os três somem nas sombras. Naquela noite, um furacão arrasa toda a praia.



N

a gruta, sobre o rochedo

As crianças da praia, Julia e Jerônimo, estão acampadas numa gruta,1 passando as férias na ilha dos iguanas. Na hora do vendaval elas voltavam de um mergulho, e então puderam ver e salvar o infeliz molusco. Não foi fácil. Fogueira, roupa seca, cobertor, caldo de peixe. Cama de palha, cafuné, cuia de itã 2 cheinha d’água. Fogueira, roupa seca, cobertor, caldo de peixe... Nada fácil. Quando o Caramujo enfim volta a si e consegue abrir os olhos, as crianças lhe perguntam, em coro: – Mas raios, com mil trovões! O que fazia um Caramujo no mar num dia como este? Sou um velho marujo, um Velho Caramujo, e dos mares não fujo, mesmo quando a maré não está boa pra peixe. Viajo pra viver, ver e contar histórias. Mas com a minha idade (perdi a conta dos anos...), vai-se embora a memória. Para não me esquecer das coisas que vivi, comecei a gravar minhas mil aventuras em cascas de conchinhas. Tenho uma coleção: uma concha de ostra, um búzio dos recifes, um caracol dourado, uma vieira rosa. A cornetinha lusa, e um catassol da Índia, a concha do Ceilão, a pantera-rajada. Cada uma delas têm, nos desenhos e cores, uma história gravada. (De longe essas letras parecem ser desenhos, mas de perto os desenhos são letras bem pequenas.) Para escrever prefiro tinta preta de polvo, e como lápis uso a espinha de um peixe. Eu mesmo desenhei num canto de minha concha histórias que aprendi quando era menino. Vou contar pra vocês algumas maravilhas que já vi por aí, uma melhor que a outra. Só preciso da lupa, feita de escamas brancas, e da mala de areia onde guardo as histórias. O Velho Caramujo revira uma gaveta de sua concha em busca da mala, e no meio da bagunça encontra também a lupa. Enquanto isso, as crianças atiçam o fogo e espalham as brasas, onde assam batatas e bananas-da-terra. Acabado o jantar, o marujo abre a mala, mostra a concha da ostra e começa a história das...


S

ereias com asas

Sereias com rabo de peixe todo mundo conhece. Metade mulher, metade peixe, as sereias vivem nos mares quentes, tomam sol nos recifes, cantam de noite para os marinheiros que navegam solitários nos navios mercantes. Mas sereias com asas? Essa é uma outra história.3 Navegando nos rumos do Caribe na primavera de 1507 para passar o verão com os peixes-boi, vivi uma aventura misteriosa. Lá estava eu, numa noite de chuva em pleno século dezesseis, no tempo das galés, dos navios carregados de piratas, da invenção de novos mundos a oeste das ilhas Molucas, quando ouvi o farfalhar de grandes asas sobre mim. Pensei que fossem gaivotas gigantes, migrando rumo a terras distantes. Mas ouvi também um canto estranho, que falava de peixes-voadores perdidos bem ali, entre o céu e o mar: L’ire del mar, che tempestoso sona, dizia a voz, em italiano,4 e outro coro de vozes repetia: Livre-se vire-se, lire-se. Livre-se vire-se, lire-se. De madrugada, já exausto de nadar no mar agitado, senti alguma coisa, que parecia a mão quentinha de mamãe, aninhar-me entre seus dedos leves. Adormeci. E sonhei, boiando sobre as ondas, com uma sereia que me ninava em suas asas de escamas cor-de-rosa: O mundo tem maravilhas, mil ilhas desconhecidas. Alegrias e tristezas: vidrilhos de brasa acesa. Podem estar longe ou perto, no silêncio ou no afinado zunzum que ouvimos dentro de um búzio espiralado. Pequeninas ou imensas, podem estar adormecidas num sonho bom que lembramos, ou no que vem de surpresa.

Sereia. Em Ocaso de sirenas, esplendor de manatíes (José Durand, México, Fondo de Cultura Económica, 1983).

Quando acordei, meio tonto, estava jogado na areia de uma praia colorida por milhares de conchas. No começo fiquei um pouco assustado, pois não sabia bem o que estava acontecendo. Não me lembrava de ter chegado ali. Só da noite escura, do mar agitado, do cansaço e, depois, do abraço gostoso e do sono que me tomou. Tudo parecia um sonho. É bem verdade que eu já ouvira falar, nas tabernas escuras dos portos, de sereias que voavam sobre os navios perdidos nos temporais, entoando canções de ninar, como se o navio náufrago fosse um berço embalado pelas ondas enormes, e os marinheiros, crianças acordadas pelos trovões de uma tempestade. Mas pensei que estas histórias não passassem de lendas. Não podia imaginar que existissem sereias que, além da cauda de peixe, tivessem asas feitas de escamas. Até hoje eu não sei se isso realmente aconteceu, se foram as ondas que me levaram até aquela praia ou se tudo não passou de um sonho romântico. Pelo sim, pelo não, não me sai da cabeça uma frase que minha avó, a Caramuja Augusta, costumava dizer: Nunca diga: desta água não beberei!



Pra me deixar ainda mais confuso, encontrei em meus bolsos encharcados um búzio, com a concha recoberta de (adivinhem!) – escamas cor-de-rosa. Como sei que os búzios sempre guardam histórias em suas tortuosas curvas de corneta, encostei a concha ao ouvido, e qual não foi minha surpresa quando, lá de dentro da concha, misturada ao marulho do mar, fui ouvindo uma história que começava assim: “Numa noite de tempestade, num mar agitado a caminho da Flórida, um Velho Caramujo desmaiou de cansaço e foi salvo por uma sereia com asas feitas de escamas que pareciam lantejoulas rosadas...” Na gruta, as brasas da fogueira já estão se apagando. Julia e Jerônimo, pensativos, arrumam a caminha de folhas secas e vão se deitar. Nessa noite sonham com pássaros que nadam, flores que chovem, barracudas dentuças.


Acordam com o sol. Rindo muito, ficam vendo o Caramujo roncar, usando a mala de conchas como travesseiro. Seu pijama parece um espelho mágico, que reflete ao mesmo tempo coisas do céu, da terra e do mar. 5 Que astral! Mal podem esperar a noite voltar para ouvir outra história. Passam o dia mergulhando com os peixes-frade, e assim que o sol se esconde acendem outro braseiro, recostam-se nos travesseiros de paina e pedem ao Caramujo que leia os escritos minúsculos e esquisitos que viram de manhã num búzio da coleção de conchas. Com a lupa na mão, o Velho Caramujo se acomoda, acerta a voz e começa a contar os chiliques de...

U

m búzio macambúzio no Paraíso

Numa de minhas temporadas de mergulho, conheci um búzio meio maluco. Era cheio de luxos, achava tudo um lixo. Se o sol não saía, ele se enrolava num xale e resmungava: “mas era só o que me faltava!” Se a chuva caía, ele ficava fulo, e era um deus-nos-acuda: “Vou passar o dia de pantufa!” Um dia ouviu falar de uma terra sem males, onde ninguém usava guarda-chuva nem xale. Nuvens negras de chuva nunca chegavam lá, e o sol se esbraseava, no fundo azul do céu. O búzio fez as malas, pegou seu mapa-múndi e alguns dias depois chegava ao Paraíso. Lá tudo era tranqüilo, não existia chuva, mosquito nem saúva. As frutas sempre estavam tinindo de maduras. O sol nunca se punha. Tudo caía bem, leve como uma pluma. E o búzio mal-humorado ficou todo sorrisos, feliz da vida em meio a um jardim de narcisos! Algum tempo depois começou a enjoar. Não havia pôr-do-sol, pois o sol não se punha. A noite fora embora, e com ela os cometas. Sem noite não havia mais nenhum canto escuro, nem sustos, vaga-lumes, ou luz no olho do gato. Tudo era tão igual que foi perdendo a graça. O búzio foi ficando um tanto macambúzio, passava o dia inteiro na cama, sem assunto. Chorava, com saudade de seus banhos de chuva, das noites estreladas proseando com os grilos, de um café da manhã com a baleia migrante, do frouxo plic-ploc de pingos sobre folhas. E sentiu-se um estranho naquele Paraíso. “Um Caramujo Velho que nada adivinha não vale uma sardinha”, dizia vovó Augusta. Só que eu já adivinhara o final desta história, e dera o meu conselho ao búzio macambúzio: “Sossegue, meu bichinho! Mais vale magro no mato que gordo no papo do gato”... Pois foi dito e bem feito. Algum tempo depois o búzio macambúzio voltava de carona pra sua antiga ilha, louco pra ver de novo as estações mudarem, os temporais de outono alvoroçarem as árvores, os raios faiscantes em noites de tormenta, a ressaca do mar, o chuvisco na mata, e a chuva acabar com o sol, e o sol acabar com a noite, e a noite acabar com a lua, e a lua acabar com a tarde, e a tarde acabar com o dia, e o dia acabar com a noite, e a noite acabar com o sol, e o sol acabar com a chuva, e a chuva...


sobre a corola um caracol pressente o rolar das horas (haicai encontrado numa garrafa à beira-mar)

Quando o Caramujo acaba de contar a história do búzio macambúzio já é dia. As brasas da fogueira ainda estalam. Julinha e Jero estão sem sono, e lá fora chove a cântaros. Então o Caramujo se lembra de uma pequena história, que não está escrita em nenhuma concha. Conta que há muito tempo, quando as viagens marítimas estavam em alta, aportou a uma terra desconhecida e lá viu um navegador ficar assombrado com umas misteriosas pedras pretas. Essas pedras, ao serem jogadas no fogo, ardiam como lenha. – Se fossem “acesas” de tardezinha – lembra ele, abrindo os olhos de espanto – ficavam brilhando até o amanhecer! – As brasas da nossa fogueira também não eram pretas, antes de serem acesas? – pergunta Jero. – Não estou vendo nenhum mistério nisso... – pensa Julia, em voz alta. Pensativo, o Caramujo conta que naquela época tudo era diferente: – “As pedras pareciam preciosas. Na cidade de Cambaluc, povoada de viajantes, víamos os pequenos montes cintilando no fundo escuro das noites. As pessoas sentavam-se em volta dos broches de rubis acesos para contar e ouvir as novidades. Quando estive lá, por sinal, só se falava numas aves gigantescas, chamadas ruch, que agarravam elefantes, voavam com eles bem alto e os soltavam lá das alturas...” – Broches de rubis acesos – imagina Jero.6 Diante do braseiro, agora, tudo é silêncio. Pegam no sono sem sentir, e quando acordam está anoitecendo. O vento sul sopra lãs de carneiro sobre a água turva. Inspirado no dia chuvoso, o Velho Caramujo tira da mala a concha do Ceilão e começa a decifrar a história d...

Reinoceros. Em Joan Nieuhof, Bilder aus China. 1655-1657 (Delphi. Editado por Franz Greno, Nördlingen, 1985).


O

rinoceronte punk de Dürer

Rinoceronte Xilogravura de 1515 de Albrecht Dürer.

Há 484 anos, numa terra distante, onde no inverno um chuvisco molha a floresta negra noite e dia, fiquei sabendo da história de um artista, Dürer, que inventou um rinoceronte punk. Como ele não conhecia pessoalmente o bicho, resolveu desenhá-lo a partir da história contada por um viajante que tinha estado na terra dos rinocerontes. Na história o viajante dizia que o bicho tinha um couro bem duro, cor de chumbo escuro. O artista pintou uma couraça de prata, cheia de tachas. Que na pele o bicho tinha umas pontas chatas. O artista pintou parafusos de lata. Que no couro o bicho tinha umas dobras de odre. O artista recortou toda a prata em quadrados. Um chifre bem na testa virou um saca-rolha. Rabo normal, que nada!: bem ali no lugar, uma brenha espetada de metal. O bicho de Dürer era todo esquisito, parecia mestiço de máquina e animal. Se minha vovó Augusta ouvisse esta história, na certa ia tirar do bolso do avental outra de suas frases: “Quem conta um conto sempre sempre aumenta um ponto!” A vovó não é fantástica?7 Eu mesmo, nesta história, inventei outro bicho, e o artista Dürer ia morrer de rir se lesse o que escrevi. Tentando descrever o seu rinoceronte, inventei outro bicho que é igual só no nome! Rinoceronte mesmo, nem o meu nem o dele. Parece que é o destino desse peso pesado: ser mais imaginado do que bem desenhado. Outro artista, Nieuhof, fez um desenho bárbaro de outro rinoceronte, com pregas de cortina caindo pelas costas, uma dura couraça de aço na



garupa e dois chifres pontudos, um no focinho, outro na nuca. 8 Nada a ver com Dürer... Tem também uma lenda que fala no unicórnio, um bicho fabuloso, com corpo de cavalo e um chifre na testa, sempre deitado ao pé de uma linda donzela. Ou com pêlo de búfalo, coco de javali e patas de elefante. Ou com a língua espinhenta, um corno todo torto e a fuça enlameada. Certa vez avistei, nas geleiras do Ártico, o chifre em espiral do unicórnio-marinho, todinho prateado... E se quem conta um conto aumenta mesmo um ponto, de pontinho em pontinho eu fiz o meu desenho (inventem agora o seu, que eu lhes conto um segredo...). Traço daqui, traço dali, as crianças vão fazendo os desenhos, animadas. Um ou dois rinocerontes depois... – Esta pança não ficou boa, parece uma mochila velha! – E este chifre, mais parece um parafuso enferrujado!! Sentado em posição de lótus, o Caramujo tenta se acalmar: – Vamos, crianças, vamos logo com isso... – Nossa, este rinoceronte ficou muito verde, até parece doente! O Caramujo, plantando bananeira, começa a contar as formiguinhas do chão para que o tempo passe mais rápido: – E então, posso contar o segredo já? – Pinte o rino com a cinza da fogueira que a cor deve ficar boa. Subindo pelas paredes da gruta, o Caramujo recomeça: – Vou contar um segredo pra quem acabar mais cedo! – Deixe o segredo pra lá, Caramujo, está bom ficar só desenhando. – Vou contar um segredo pra quem acabar mais ceeedo!! – insiste o carapaça dura. Julia vai guardando seus lápis numa caixinha de madeira, bem devagar: – Já dizia a titia que o segredo guardado é o que a ninguém nunca é revelado – espeta. E o pequeno Jero, acabando de fazer o laço no sapato de um de seus rinocerontes, tenta espantar as nuvenzinhas negras que vão se formando sobre suas cabeças: – Ligue as antenas, Caramujo, é melhor perder a rima do que o clima! Mas depois disso o clima na gruta é de nenhuma conversa. Vão dormir chateados, e logo cedo cada um vai para um lado, cuidar do seu riscado. chuva na praia: na água salgada mergulha a lágrima

Vem a noite e, mais calmos, o calor da fogueira entre amigos traz uma outra história. Era uma vez, agora, a


H

istória maravilhosa do coro de corais

O sol estava de lascar. Nada se movia na beira da praia, nenhum ventinho assobiava nos rochedos, nenhum pio, nem um só movimento. Alguma coisa estranha pairava no ar. Vi o fóssil de um peixe enterrado na areia. A estátua de um siri em pose de sereia. No céu de celofane, um vôo congelado. De repente – zás-trás! –, um caracol de giz apareceu no mar. Veio à tona, mergulhou, foi ao fundo, retornou, mas não parecia estar brincando de esconde-esconde. – Eu nunca tinha visto um caracol de giz! – disse a ele, furando uma onda. – Fale baixo, carapaça de caramujo! E eu não sou de giz, seu linguado linguarudo, eu só estou de giz para não dar na vista! – Mas que mistério é esse? Pra que falar mais baixo? O silêncio dessa ilha já parece de pedra... E que história é essa de você estar de giz? – Primeiro que o silêncio não parece de pedra, ele é mesmo de pedra. Segundo: estou de giz apenas pra iludir a Medusa, a cabelos-de-cobra! Pois tudo o que ela olha se transforma em pedra! Veja o peixe, o siri, a pobre da gaivota! Até o silêncio aqui virou um som de pedra. Fantasiado de giz, eu engano a #&@@*& e as cobronas fominhas que ela tem na cachola! Ssssssssiiiiiiiiihhhh... ouvimos de repente, e o susto foi tão grande que ficamos gelados! Neste ponto, o Velho Caramujo afasta sua lupa da concha de vieira. Não sabe se continua contando as coisas escabrosas que viu na ilha. Passa horas cismando, os olhos fixos nas brasas ruivas da fogueira. Julia e Jerônimo, cansados de esperar, acabam dormindo. Mas como sabemos que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, na noite seguinte o Caramujo, atendendo aos pedidos teimosos das crianças, lustra as escamas transparentes da lupa, tira a concha da mala e continua a hissssss Ssssssssiiiiiiiiihhhh... – Que som esquisito é esse? – perguntei ao caracol. – Ui, ui, ui, é o silvo das serpentes que ela tem na cabeça! – disse baixinho o Giz, branco de medo. Senti o bafo pestilento das serpentes, ouvi os silvos, os sibilos, os assovios desses ofídios que já estavam a um passinho de nossas carapaças! Uh, uh, uh!!! Era a Meduuuuuusa!!!! Nesse momento, pensei que tudo estivesse perdido. Como é dobrado o perigo pra quem foge do inimigo, respirei fundo e disse: – Avante, caracol! Vamos em frente que atrás vem... serpente! Mas de repente surgiu do céu um jovem forte, com os pés bem calçados em sandálias com asas. Numa das mãos segurava um alforje, na outra um elmo encantado. Sem perder tempo, vestiu o elmo de prata pra ficar invisível, pegou a Medusa de surpresa e, quando ela menos esperava, tchum – cortou sua cabeça.



Batráquio!!, gritei com meus botões. Que cena! – Que ventanias o terão trazido até estas areias esquecidas, rude cavalheiro? –perguntei ao forasteiro. – Mui venerável Caramujo, o meu nome é Perseu. As sereias com asas foram me avisar que a bárbara Medusa estava transformando esta ilha em pedreira. Resolvi enfrentá-la. Enquanto conversávamos o Giz observava, petrificado, um cavalo com enormes asas brancas nascer do sangue da Medusa que borbulhava no chão. – Vou chamá-lo de Pégaso – disse Perseu, tranqüilo, como se já soubesse que isso iria acontecer. Ao montar no cavalo, Perseu me convidou para ir junto. Demos um abraço no caracol de giz, Perseu apanhou a cabeça da Medusa, colocou-a no alforje e saímos voando pra jogá-la bem longe. Passamos por mil terras, mares e ares, e paramos, assombrados, sobre um grande rochedo. Lá estava Andrômeda, coitada, presa por correntes a uma rocha, perto do monstro marinho (com as costas recobertas de cracas) que ameaçava devorá-la. Perseu, caindo de amores assim que viu a moça, num instante acabou com o monstro e salvou Andrômeda. Ao lavar suas mãos para limpar o sangue, colocou o alforje virado sobre um monte de algas. E ali, à beira-mar, aconteceu o milagre. Assim que tocaram o sangue da Medusa 9 as algas ficaram duras, foram se retorcendo suas folhas e nervuras, e elas viraram corais. Felizes, os corais se reuniram e cantaram, e dançaram sem parar sob as ondas azuis. Quando as ninfas do mar viram tal maravilha, foram buscar mais algas pra fazer mais corais, e lançaram ao mar milhares de corais. E foi tanta a alegria que lágrimas de sal floriram de seus olhos. É por isso que eles, lá no fundo do mar, são corais dançarinos, mas fora d’água, tristes, ficam duros de pedra, ressecam, perdem a cor, se esfarelam no ar. Para não me esquecer dessa longa aventura, escrevi estas linhas na pequena vieira. Mas já chegou a hora. Tenho que ir embora, em busca de uma concha que, dizem por aí, guarda milhões de histórias.

Enquanto o Caramujo arruma sua malinha, outro som começa a rolar lá na praia. Sob o luar um coro de corais, com o Giz de maestro, faz a maior festa pro Velho Caramujo:


Como pode um Caramujo viver fora da água fria? Como pode um Caramujo viver fora da água fria? Como poderei viver, como poderei viver, sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia? Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia! 10

No dia seguinte, ele madruga. Toma um café da manhã bem leve – salada de algas crespas com papaia, suco de manga e um naco de pão integral –, pois está de partida. Apanha a mala, o casaco de madrepérola e vai acordar as crianças para se despedir. – Mas Caramujo, você ainda não contou pra gente todas as aventuras! – estrila Julia. – Pra que tanta pressa em voltar pra casa? – reclama Jero, esfregando os olhinhos de sono. No caminho até a praia, o Velho Caramujo promete a eles que um dia vai voltar, mas diz que agora quer partir em busca da Concha que, conforme os relatos que ele ouvira em suas viagens marítimas, guarda todas as histórias. Com mil abraços, lenços brancos e acenos dá-se...

Peixe-voador. “Fliegende Fische verfolgten uns” Em Joan Nieuhof, Bilder aus China. 1655-1657 (Delphi. Editado por Franz Greno, Nördlingen, 1985).

cama de areia: o Velho sonha ser po eira de estrelas ca indo na ampulheta



A

partida do Velho Caramujo em busca da Concha das Conchas (o mais antigo catassol da Índia)

E antes de ir, ele disse:

Isso não é incrível? Numa só Concha, estranha, um outro Caramujo guarda muitos mistérios e as histórias do mundo, uma escrita sobre a outra, histórias e histórias sobre outras histórias. Dizem que essa Concha se parece com os templos da mais antiga Índia: tem letras e desenhos, conchinhas incrustadas e mini-esculturas que contam aventuras. Já serviu de morada pra muito caramujo, só que quem mora nela tem que cruzar os mares, pra viver e escrever as histórias do mundo. Soube que o Caramujo que cuida dela agora já está meio cansado para longas jornadas. Quero me oferecer para seguir viagem. O meu sonho é encontrar o meu xará marujo, que leva nessa Concha maravilhas sem fim. Imaginem as fogueiras, quanto rubi aceso, para ouvir tanta prosa! Mas prometo voltar. pios selvagens de pintassilgos espiando abraços (as promessas) lampejos de relâmpago na floresta E não volto pra casa porque sou minha casa, nem existe lugar para onde voltar. Conchas são meu lugar, meu lugar sou eu mesmo, onde vou estou em casa. Se sou um velho marujo, um Velho Caramujo, dos mares não, não fujo!

(para ver/ler com lupa11)


N

otas: (conchas soltas)

1 Ufa!, ainda bem que você me esperou aqui. Acabei indo atrás deles mesmo debaixo de chuva, escorregando naqueles rochedos negros e tudo. Mas quando topei com a entrada da gruta voltei correndo, assustado com umas palavras que pareciam estar gravadas ali na pedra há séculos: “Às vezes sinto medo da memória. / Em suas côncavas grutas e palácios / (Disse Santo Agostinho) há tantas coisas (Jorge Luis Borges, História da noite).” Naquele escuro cheio de relâmpagos cheguei a pensar, juro, que fossem um feitiço dos espíritos da caverna, qualquer coisa assim. 2 Certa vez uns índios também me “salvaram”. Um dia tive a infeliz idéia de ir a nado até uma ilha que ficava a uns 5 km da costa. Ao chegar lá, com os lábios rachados de tanto sol e sal, os índios me ofereceram água doce numa itã. Foi aí que matei a sede e conheci esta palavra da língua tupi-guarani. A “itã” é um molusco, como o caramujo, só que da espécie que tem duas conchas que se fecham, assim, como uma ostra. Usar conchas para fazer cuias e copos, por sinal, é costume antigo no Brasil. Por volta do ano 1590, um padre português chamado Fernão Cardim visitou nosso país e escreveu, em seu livro Do Clima e Terra do Brasil: “Há nos rios dagoa doce muytos generos de conchas grandes e piquenas, algumas saõ taõ grandes como boas cuyas...” 3 Malvadas ou bondosas? Lindas ou horrorosas? Ninguém sabe ao certo. Nos tempos antigos, dizem, as sereias tinham cabeça de mulher, corpo revestido de penas, patas de pássaro, e quase todas eram malvadíssimas. Depois, no Liber monstrorum (Livro dos monstros), escrito antes do século X, elas surgem com cabeça e busto de mulher e, da cintura para baixo, rabo de peixe. Assim que perderam as asas e ganharam escamas, as sereias passaram a ser imaginadas como “princesas” do mar, que viviam sentadas nos rochedos, cantando e penteando os longos cabelos verdes, sempre com um espelhinho na mão. Tantas histórias se contaram sobre elas que já se ouviu falar de sereias que misturam cabeça e busto de mulher com asas de pássaro e rabo de peixe, e até de uma sereia marinha com asas de libélula. De tanto ouvir estas histórias, no ano de 1493 um navegador viu um sereno peixe-boi no Mar do Caribe e pensou que fosse uma sereia. Mirabilia, miragem, maravilha... 4 É estranho o Caramujo ter ouvido isso, ainda mais no Caribe. Este verso foi escrito por Luigi Tansillo, um poeta italiano, durante uma de suas viagens pelo Mar Egeu, que fica bem longe do Caribe. Mas o mais esquisito é o seguinte: Luigi nasceu em 1590, e a viagem do Caramujo foi em 1507... Pense comigo: ou o Caramujo se enganou com as datas, ou para ele o tempo corre em círculos, como sua concha. Bem, mistérios à parte, acho que posso arriscar uma tradução do verso pra você: “A ira do mar, que ruge tempestuoso”. 5 Prestando mais atenção, estou vendo que a estampa do pijama mostra pedaços de um antigo mapa do céu. Enquanto o Caramujo está dormindo, podemos dar uma olhada em meus livros para ver se descobrimos que mapa é este. Aquelas parecem ser as constelações de Caranguejo, Aquário, Balança... Ali estão Peixes e Carneiro!... Ah, aqui está: “O firmamento”: mapa do céu desenhado em 1840 por Durgasankara

Pathaka... Presente que o Príncipe da Índia, Navanihalno, ganhou de seu pai... Criado para fazer parte de um horóscopo astrológico, não serviu para indicar o rumo aos navegantes...” Ei, vamos voltar rápido, que ele acaba de acordar. 6 Mas esse viajante assombrado só pode ser o italiano Marco Polo!! Pelas minhas contas, ele e o Caramujo devem ter se conhecido quando Marco fez sua primeira grande viagem, em 1271, em companhia do pai e do tio Mateo. Marco tinha 17 anos e estava indo para o País da Seda (que ele chamava de Cathay e que hoje se chama China) quando viu pela primeira vez a “pedra preta acesa”. Ele conta direitinho essa história em seu livro Milione, também conhecido como Livro das coisas maravilhosas, O livro do milhão de coisas maravilhosas, Livro das diversidades e maravilhas do mundo etc. 7 Como seguro morreu de velho, vovó Augusta guarda cópias de suas “frases” (que alguns chamam de anexins, adágios ou provérbios) em um baú celta, feito com cascas de ostras do Mar do Norte. Aqui nesta foto dá pra ver melhor. Tome. Nesta divisão aqui do baú ela guarda umas histórias estranhas de feitiçaria, que costumava contar ao neto Caramujo em noites de tempestade. Acho que foi nessa época que o Bebê Caramujo começou a se interessar por mares, viagens, conchas e histórias, pois veja como hoje ele fala na avó o tempo todo... 8 Não sei qual dos rinocerontes é mais bárbaro. Nesta gravura do artista alemão Albrech Dürer, feita em 1515, gosto deste “ar” de ferro-velho, das placas cor de chumbo e das emendas com parafuso. No desenho de Joan Nieuhof, que ele fez quando viajou para a China com uma Missão holandesa, em mil seiscentos e tantos, veja que incrível esta garupa espinhuda, e este couro drapeado no lombo do bicho! 9 Conheço mais histórias da Medusa do que as serpentes que ela tem na cabeça. Ela é uma das “monstras” mais famosas da mitologia grega. Uns dizem que era uma divindade do começo do mundo, com cabelos de serpentes, mãos de bronze e asas de ouro, e que morava perto do reino dos mortos (cruzes!). Outros contam que era uma jovem bonita, de cabelos lindíssimos, e que por isso a deusa Atena, roxa de ciúme, transformou seus cabelos em cobras. Existem outras versões, mas em todas a Medusa tem serpentes no lugar dos cabelos, e em todas seu olhar é de lascar. Veja aquele cantinho da mala do Caramujo, aquele com uma placa transparente que diz: Mater perlarum: a fábula é um mito. Está vendo? Pois é ali que ele guarda outras histórias muito antigas, que ele não viveu, mas que ouviu em suas viagens e escreveu em pequenas conchas rajadas. 10 Essa música que o coro de corais está apresentando na festa de despedida do Velho Caramujo é uma variação de “Peixe vivo”, canção do folclore brasileiro que mais cedo ou mais tarde a gente acaba ouvindo por aí. 11 Não consigo enxergar direito...: “Mini-poema para ler/ver com lupa, feito com tinta de polvo sobre papel-pergaminho por umas meninas chamadas Jose e Maria Angela”. Que idéia!


Concepção e pesquisa iconográfica: Josely Vianna Baptista Projeto gráfico e capa: Guilherme Zamoner Fotolitos: New Laser Impressão e acabamento: Gráfica Mikito Agradecimentos: Julia e Pedro Jerônimo, Maria Angela Biscaia e Francisco Faria As ilustrações deste livro foram produzidas em computador utilizando o programa Photoshop e um sistema de arte eletrônico Wacom.

Edições Mirabilia Caixa postal 14 86140-000 Primeiro de Maio, PR, Brasil e-mail: mirabilia@onda.com.br

Copyright dos desenhos: © 2000 by Guilherme Zamoner Copyright dos textos: © 2000 by Josely Vianna Baptista Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Biblioteca Pública do Paraná) Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira Baptista, Josely Vianna, 1957 A Concha das Mil Coisas Maravilhosas do Velho Caramujo / texto de Josely Vianna Baptista; desenho de Guilherme Zamoner. Curitiba : Mirabilia, 2000. 20p. : il. col. ; 20 x 32 cm. - (Broche de Rubis)

I. Zamoner, Guilherme, 1951- . II. Série (Broche de Rubis). CDD (20ª ed.) 808.899282


Edições Mirabilia apresentam

A Concha das Mil Coisas Maravilhosas do

Velho Caramujo

Neste volume o Velho Caramujo conta 4 de suas histórias

Sereias com asas Um búzio macambúzio no Paraíso O rinoceronte punk de Dürer História maravilhosa do coro de corais e fala de sua partida em busca do Catassol da Índia


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