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DESCONTOS DE FADAS
A CONTINUIDADE E DESCONTINUIDADE NOS CONTOS MARAVILHOSOS
Gustavo Santos Oliveira – PUC-Rio
“Embora os contos de fadas terminem logo depois da décima página, o mesmo não acontece com nossa vida. Somos coleções de vários volumes.” Clarissa Pinkola Estés Mulheres que correm com os Lobos.
RESUMO: Através do estudo de teóricos da psicanálise, folcloristas e narratologistas, comparados aos lançamentos cinematográficos e modelos televisivos, esse estudo busca traçar um elo comparativo entre os arquétipos dos Contos de Fadas e suas evidentes ou quase improváveis representações no cenário cultural.
PALAVRAS-CHAVE: Contos de Fadas, arquétipos, enredo, cinema, televisão.
Introdução: O mundo mágico em evidência Após o fenômeno literário de Harry Potter no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o mundo voltou-se para o universo mágico e encantado. Diversas obras e sagas foram lançadas cujo tema apresentava personagens fantásticos numa roupagem modernizada, cercada de descrições pitorescas e enredo de mistério e ação. O exemplo posterior ao sucesso das obras de J. K. Rowling foi a publicação da saga Artemis Fowl, do irlandês Eoin Colfer. O mercado dos livros infanto-juvenil só cresceu e vieram títulos como Desventuras em Série de Limony Snicket, publicados a partir de 1999, Percy Jackson e os Olimpianos de Rick Riordan, publicados a partir de 2005 e Crepúsculo de Stephenie Meyer, publicados também a partir de 2005. O
visível
sucesso
desses
livros
também
movimentou
o
mercado
cinematográfico, com adaptações milionárias das obras para o cinema, marcando recordes de bilheteria ao redor do mundo. Porém, não é somente às obras contemporâneas o legado de sucesso junto ao público. O Senhor dos Anéis, trilogia do britânico J. R. R. Tolkien, escrita entre 1937 e 1949, publicado entre 1954 e 1955, foi um sucesso de vendas e originou uma franquia cinematográfica que angariou, ao todo, 18 Oscar’s no início dos anos 2000. As Crônicas de Nárnia, publicado por volta de 1949 e 1954, é uma série de sete volumes do britânico C. S. Lewis e teve três dos livros adaptados para o cinema no início dos anos 2000. O que faz desses filmes e livros fenômenos de público pode ser entendido em sua gênese narrativa, isto é, essas histórias trazem personagens e motivos comuns às mitologias, antigas religiões místicas, mas principalmente aos eruditos Contos de Fadas. Foi a partir da segunda metade dos anos 2000, acompanhando o sucesso estrondoso da franquia Shrek, que os principais estúdios de cinema voltaram a realizar adaptações diretas dos Contos de Fadas.
Animações como Deu a Louca na Chapeuzinho (2005), Deu a Louca na Cinderela (2007), Deu a Louca na Branca de Neve (2009), A Princesa e o Sapo (2009), Enrolados (2010) e Frozen – Uma Aventura Congelante (2013) são exemplos de releituras desses Contos. Exemplos podem ser encontrados também em live-action como Encantada (2007), A garota da capa vermelha (2010), A Fera (2011), Espelho, Espelho Meu (2012), Branca de Neve e o Caçador (2012), Jack: Caçador de Gigantes (2013) e João e Maria: Caçadores de Bruxa (2013). Recentemente, filmes como A Bela e a Fera (fevereiro de 2014), Malévola (maio de 2014), Caminhos da Floresta (previsto para lançamento em janeiro de 2015) e Cinderela (previsto para lançamento em abril de 2015) vieram demonstrar o quanto a recriação dos Contos de Fadas está na moda. O seriado Once Upon a Time (atualmente na quarta temporada) e Grimm (atualmente na quarta temporada) são exemplos do que está acontecendo também nos veículos televisivos. Mas por que essas histórias são tão cativantes? Por que alimentam tanto a imaginação dos meios de criação audiovisual? Até onde vai o limite do erudito e do moderno na ficção atual? Esses elementos estariam identificáveis somente em obras cujo foco principal é o mundo fantástico? Para entender tais questionamentos é necessário que se volte ao estudo dos Contos de forma mais profunda e analítica.
Contos de Fadas, uma literatura Quando se usa o termo Contos de Fadas ou História de Fadas, tende-se a suscitar na mente das pessoas uma ideia equivocada do que seriam essas narrativas. Nas palavras da colunista crítica de cinema da revista VEJA, Isabela Boscov, “embora os Contos de Fadas sejam tratados de maneira rosa e infantil, eles são, quase todos, histórias terríveis”1. Para Vladimir Propp, estudioso das narrativas populares, o Conto de Fadas deve ser chamado também de Conto Maravilhoso, visto que são histórias que nem sempre apresentam fadas dentre suas personagens (PROPP, 2006).
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https://www.youtube.com/watch?v=5wQsFMtfXAc (vide Referências).
Segundo o psicanalista Bruno Bettelheim, o Conto de Fadas é uma forma de literatura singular. “Ele [o Conto] não poderia ter seu impacto psicológico sobre a criança se não fosse primeiro e antes de tudo uma obra de arte” (BETTELHEIM, 2007, p20). E tal como toda obra de arte, ele obedece a determinadas regras. Segundo os psicanalistas Mário Corso e Diana Lichtenstein Corso, são narrativas curtas que se abrem geralmente com um “Era uma vez” e se fecham com “Felizes para sempre”. O enredo se centraliza em problemáticas de cunho existencial, envolvendo um herói ou heroína que deve enfrentar adversidades antes de triunfarem, sempre com a presença de elementos sobrenaturais e mágicos (CORSO & CORSO, 2006). Com certeza Bruno Bettelheim foi um grande defensor do gênero Conto de Fadas, chegando a ser, muitas vezes radical em suas análises. Porém o que se observa, tanto em seu estudo, quanto no de posteriores psicólogos é um suplício pela valorização e reconhecimento dessas narrativas como algo dissociativo de outras formas literárias e por isso, com seu valor único. Assim como os mitos e as fábulas, os Contos de Fadas também vieram da narrativa oral, embora sua estrutura narrativa seja completamente diferente. Enquanto o primeiro traz um herói que é um deus ou uma semi-divindade em tramas de caráter religioso e místico (BULFINCH, 2000); o segundo se centraliza em temas proverbiais, cujos personagens são animais ou objetos personificados em situações caricaturais e de finalidade exclusivamente moralista (FONTAINE, 2006)2. Embora sejam obras de origem distinta, pode-se dizer que o mito e a fábula são o pai e a mãe do conto maravilhoso.
Contos de Fadas, uma religião No prefácio de Contos de Fadas – Edição Comentada e Ilustrada, traduzidos por Maria Tadar, há uma reunião de ilustrações datadas do século XIX, feitas por artistas como Gustave Doré e Arthur Rackman. Entre os desenhos pode-se observar quase o mesmo tema: uma mulher, geralmente uma senhora fiandeira, sentada ao lado de uma lareira, conta para uma plateia de crianças atentas, suas histórias de fantasia.
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Texto de Theófilo Braga no prefacio de FONTAINE, La, Fábulas. São Paulo: Martin Claret, 2006.
Esses contos passavam oralmente das mães aos filhos, ninguém sabia há quantas gerações, sem jamais haverem tido as formas de suas histórias fixadas pela escrita (GRIMM, L&PM Pocket, p8).3 Porém, antes de sua forma popular oral ser difundida, esses contos eram transmitidos como parábolas religiosas de um povo tribal que se concentrava no território que vai da Europa ocidental até a Ásia Menor – esse povo constituía a civilização Celta. Na coletânea Contos de Fadas Celtas, lançada em quatro volumes pela editora Martin Claret, o folclorista Joseph Jacobs reúne uma série de contos onde se pode distinguir as precursoras de Cinderela no conto Justa, Morena e Trêmula, Branca de Neve no conto Árvore de Ouro e Árvore de Prata, dentro outros (JACOBS, 2013)4. Embora o trabalho de Jacobs seja posterior ao trabalho dos irmãos Grimm, fica evidente que os contos germânicos tiveram seu gênesis numa cultura bem ancestral à formação do estado alemão, visto que a ocupação celta tem por volta do segundo milênio A. C.. Essa talvez seja a explicação mais simples para a repetição de semelhantes arquétipos em culturas distintas, bem como a variação de um mesmo conto em regiões diferentes do continente Europeu e Asiático.
Arquétipos difundidos e variações na estrutura Ainda que os contos tenham se formado a partir dos rituais Celtas, houve uma saliente quebra de seus temas comuns com a publicação dos contos de Hans Christian Andersen. Segundo Luciano Mariano Jr, responsável pela tradução de Hans, “Dos 156 contos que compõem sua obra completa nesse gênero, 144 - isto é, 92% - são virtualmente de sua autoria, ainda que alguns tenham se baseado em temas populares e clássicos” (ANDERSEN, 1996, p11)5. Ou seja, Hans era antes de tudo, escritor e não folclorista ou copista como foram Grimm, Jacobs e Perrault.
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Texto de Edgar Taylor em Contos de Grimm. São Paulo: L&PM Pocket, 2008. De acordo com os texto de Lilian Cristina Corrêa publicados na apresentação de cada volume. 5 Texto de Lucílio Mariano Jr. em ANDERSEN, Hans Christian. Histórias e contos de fadas – Obra Completa. Belo Horizonte: Villa Rica Itatiaia, 1996. 4
Seus contos mais difundidos, como O Patinho feio e A Pequena Sereia são obras de cunho autoral e trouxeram uma novidade para a literatura dos Contos de Fadas, despertando polêmicas e dividindo opiniões. Bruno Bettelheim aponta que o protagonista de O Patinho Feio não se submete a testes de provações como são os verdadeiros heróis de Contos de Fadas, “As coisas estão simplesmente predestinadas a se desenrolarem de acordo, quer o herói empreenda ou não alguma ação” (BETTELHEIM, 2007, p54). P. L. Travers, autora de Mary Poppins, chegou a declarar que preferiria ver madrastas fervidas no óleo, do que ter que suportar a agonia prolongada da Pequena Sereia em busca de seu amor (TADAR, 2002)6. Mesmo que os Contos de Hans tenham suscitado opiniões depreciativas é inegável que suas histórias se tornaram indeléveis para os leitores, elevando sua obra a um patamar de genuína História de Fada. É possível dizer que ele foi o precursor, ou mesmo criador, do gênero infanto-juvenil. O que Hans fez foi antecipar uma tendência que viria a se tornar predominante para o gênero literário para qual ele servia. Tendência que se concretizou com maior afinco no final do século XIX e início do século XX, com histórias com estruturas semelhantes aos Contos Maravilhosos, porém sem a roupagem de um enredo curto, mas as complexidades da escrita de um romance. A crueldade e a violência física, vistas como marcas dos contos clássicos alemães e franceses, perderam espaço para o sofrimento psicológico e espiritual, em livros como Peter Pan de J. M. Barrie, Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, O Mágico de Oz de L. Frank Baum e Pinóquio de Carlo Collodi. Na segunda parte do estudo psicanalítico de Fadas no Divã, Mário e Diana Corso descrevem os bastidores psíquicos dos ditos modernos contos de fadas. “O herói de Barrie é diferente dos outros pequenos dos contos clássicos [...] Peter testa seu poder principalmente contra a irremissível passagem de tempo, é criança por escolha e não como percalço [...] Peter Pan e Pinocchio são os primeiros personagens que vêm questionar o valor de ser adulto.” (CORSO & CORSO, 2007, p230). Mesmo sob temas revolucionários, essas obras nunca perderam sua essência de Contos Maravilhosos. 6
Texto de Maria Tatar na introdução de A Pequena Sereia, em TATAR, Maria. Contos de Fadas – Edição Comentada e Ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
Ainda em Mário e Diana Corso, O Mágico de Oz coloca sua heroína numa situação de desolação, fazendo com que, através da construção de sua autonomia, ela consiga retornar ao lar – tema que remete invariavelmente às narrativas clássicas. “Considerando os contos de fadas como variações sobre estruturas básicas, esse clássico norte-americano poderia ser um bom exemplo da sobrevivência do gênero dos contos maravilhosos” (CORSO & CORSO, 2007, p243). Possivelmente por se tratarem de histórias mais extensas e fornecerem mais detalhes – visto que os clássicos eram narrativas curtas, que apelavam para a imaginação do leitor – essas obras modernas ganharam sua versão em filme, ainda na era do cinema mudo. Na Edição Especial de Colecionador de O Mágico de Oz em DVD, lançada em 2005, o disco 3 vem com 5 adaptações do livro, datadas entre as décadas de 1910 e 1930.
Os padrões da imagem É inegável que os Contos de Fadas elucidem imagens estilizadas e tenham provocado a imaginação de ilustradores renomados, como Gustave Doré e Arthur Rackman. Nos apêndices de Contos de Perrault lançados pela editora Villa Rica, há um conjunto de ilustrações que vieram a inspirar os leitores e os futuros produtores de cinema. Parte do poder dessas histórias deriva não só das palavras como das imagens que as acompanham. No exemplar dos contos de fadas dos Grimm de minha própria infância [...] há uma imagem que vale mais que mil palavras (TADAR, 2013, p8). A partir dos anos 1930, os Contos de Fadas se difundiram em maior proporção ao redor do mundo com as adaptações em desenhos dos estúdios Walt Disney. Em 1937, foi lançado Branca de Neve e os Sete Anões; o primeiro longa-metragem de animação da história do cinema, dando início a uma série de novos filmes lançados nas décadas posteriores, como Cinderella em 1950 e A Bela Adormecida em 1959. Esses filmes trouxeram a representação das heroínas num formato que alcançou tamanha repercussão que vieram a cristalizar as imagens das princesas. Bruno Bettelheim vê nessas adaptações uma má apropriação dos Contos. “‘Branca de Neve e os Sete Anões’, o título pelo qual o conto é hoje amplamente conhecido, é um expurgo
que, infelizmente enfatiza dos anões [...] e servem apenas de fundo para realçar os desenvolvimentos importantes que estão ocorrendo com Branca de Neve” (BETTELHEIM, 2007, p277). Os modelos radicais de Bettelheim impõe uma limitação na apreciação dos Contos em suas múltiplas formas. Ele repete o julgamento depreciativo, tal como já o havia feito ao criticar Charles Perraul e Hans Christian Andersen. O cinema e as artes plásticas foram responsáveis pela elevação das narrativas a um novo patamar. O que antes era só oralidade, se condensou num formato palpável, visível. E o que antes era um conto de aproximadamente três páginas, teve que ser acrescido de outros personagens e sub-tramas, buscando obedecer a lógica de um longametragem de mais de 60 minutos. E para preencher esse enredo, os roteiristas possivelmente tiveram que voltar ao texto para entender o percurso percorrido pelo protagonista.
Trajetória do Herói ou Heroína Para Bruno Bettelheim, o Conto de Fadas genuíno é aquele cujo herói ou heroína passa por quatro facetas que se distinguem e se complementam: fantasia, recuperação, escape e consolo – “recuperação de um desespero profundo, escape de algum grande perigo, mas, acima de tudo, consolo” (BETTELHEIM, 2007, p203). Sheldon Cashdan propõe algo mais profundo em seu estudo sobre o conto maravilhoso. Para ele, o Conto de Fadas é “uma jornada em quatro etapas, sendo cada etapa da jornada uma estação no caminho da auto-descoberta [do herói]” (CASHDAN, 2000, p48). Essas etapas são: travessia – para um mundo fantasioso; encontro – com um vilão; conquista – luta do vilão e do herói e celebração – casamento ou união familiar (CASHDAN, 2000). Trajetória observada também em várias temáticas da Tragédia clássica. Joseph Campbell, em O Poder do Mito, analisa como os sentimentos de Morte, Vida, Renascimento, Sacrifício e Felicidade são abordados no desenvolvimento da Tragédia. Segundo ele, o herói deve atingir um estado de responsabilidade e autonomia,
para que possa se libertar e alcançar o amadurecimento. Essa transição pode ser encarada como uma jornada de morte e ressurreição (CAMPBELL, 2009) – tema principal da jornada do protagonista das histórias de fada. Quando se pensa na figura do herói nos Contos de Fada e sua jornada tão semelhante à Tragédia, torna-se fácil a associação a um meio cultural muito difundido e apreciado pela cultura popular brasileira: a telenovela.
Fadas no horário nobre No prefácio de Contos de Mamãe Gansa, Ivone C. Benedetti descreve como os contos populares eram desprezados pela Academia, tendo sua maior reverberação entre pessoas leigas, camponeses e povos pouco letrados. Mais adiante, quando discorre sobre a moralidade presente na literatura de Perrault, ela enfatiza que “As morais têm um alvo certo: o público feminino de seu tempo” (PERRAULT, 2012, p19)7. Embora muito se tenha mudado de algumas décadas para cá, a telenovela brasileira, foi um produto cultural também destinado a entreter as classes menos favorecidas. Com seus enredos românticos, seu alvo inequívoco também era o público adulto feminino. Além disso, teledramaturgia brasileira contava com o merchandising social, de forte caráter educativo, e também de cunho moralista. A telenovela é uma obra aberta, cujo enredo pode ser alterado para ir de encontro às reações da plateia que a consome (ZAHAR, 2000), característica também comparável aos Contos de Fadas. Segundo Bruno Bettelheim, a narrativa em voz alta de Contos de Fadas é a única forma que conduz a história diretamente a seu público, pois promove a ação conjunta daquilo que foi escrito, com aquilo que está sendo processado pelo ouvinte. Para atingir integralmente suas propensões consoladoras, seus significados simbólicos e, acima de tudo, seus significados interpessoais, um conto de fadas deveria ser narrado em vez de ser lido (BETTELHEIM, 2011, p213).
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Texto presente na introdução de PERRAULT, Charles, Contos da Mamãe Gansa – Tesouros da cultura francesa. São Paulo: L&PM Pocket, 2012.
Essa ativa participação do leitor ou ouvinte dos Contos de Fadas pode ser comparada com a constante participação do público junto ao enredo das telenovelas. “O sentido geral da trama é previsto inicialmente, mas o desenrolar e o desenlace não” (SADEK, 2008, p33). Assim como observado anteriormente por Vladimir Propp, Sheldon Cashdan e outros narratologistas, os contos maravilhosos terminam geralmente com uma celebração de união familiar ou, com mais frequencia, um casamento – final recorrente em praticamente todo último capítulo de telenovela. Em Por Amor (1997), Laços de Família (2000), Senhora do Destino (2003), Amor à Vida (2013) dentre outras, o tema da mãe/pai que perde o filho/filha e durante a trama irá reencontrá-lo ou retomá-lo encontra semelhanças com contos altamente difundidos como A História de uma mãe, Ela não presta!, Rumpelstilski, Rapunzel, O ladrão-mestre etc. Os romances entre duas pessoas de mundos diferentes, como abordados em O Cravo e a Rosa (2001), O Clone (2001), Alma Gêmea (2005), dentre outros, se aproxima muito ao motivo dos Contos de Fadas em que um dos cônjuges é abatido por algum encanto e deve voltar a sua forma humana através do amor, como A Bela e a Fera, O rei Sapo, O príncipe querido, A Cotovia Cantante e Saltitante etc. No estudo junguiano de Verena Kast, a psicanalista analisa inúmeros Contos cujo enfoque é o amor unificador e restaurador. Em seu livro, ela aborda diversas histórias, comparando sua simbologia com casos reais de pacientes (KAST, 2009). Pode-se observar a importância simbólica do amor sexual proposta tanto pelos Contos, quanto pelas telenovelas. O tema que mais aproxima essas duas expressões culturais é a gritante rivalidade feminina presentes no antagonismo de heroínas e suas vilãs. Quem mais ousou com essas estruturas foi João Emanuel Carneiro com seus dois maiores sucessos: A Favorita (2008) e Avenida Brasil (2012). “Para antropóloga Esther Hamburger, o segredo de A Favorita é inaugurar um novo ritmo de teledramaturgia, ao mesmo tempo que resgata o maniqueísmo deixado de lado nas últimas décadas”8. 8
http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,ERT19838-15565,00.html
Exibia entre 2008 e 2009, A Favorita começa não revelando qual das personagens protagonistas é a vilã e a mocinha. Para manter o mistério, a trama jogou com os arquétipos, mostrando de um lado, Flora (Patrícia Pillar) uma mulher sofrida, batalhadora e humilde, podendo ser comparada a uma verdadeira heroína aos moldes de Contos de Fadas; e de outro lado Donatela (Cláudia Raia), uma perua fútil, vaidosa e de trejeitos grosseiros, exatamente o oposto do observado pelas genuínas princesas. A identidade das duas personagens estava intimamente ligada à revelação de quem haveria assassinado o marido de Donatela. Tal foi o susto para público, quando no capítulo 56, Flora se declara a verdadeira assassina, dando início a uma série de maldades que vieram a se tornar marca registrada da personagem9. Tal dicotomia é observada repetidamente nos contos, principalmente dos Irmãos Grimm. Um exemplo é Mãe Hilda: “Era uma vez uma viúva que tinha duas filhas, uma das quais era bonita e trabalhadora, e a outra feia e preguiçosa. [...] a pobre da filha boazinha era obrigada a trabalhar muito, comer pouco e andar mal vestida.” (GRIMM, 2013, p213). Ao seguir o esquema estipulado por Cashdan, pode-se notar vários elementos de Contos de Fadas em Avenida Brasil, novela mais exportada da TV Globo10: Na primeira fase, Rita (Mel Maia) é uma astuta garotinha que é abandonada por sua madrasta Carminha (Adriana Esteves) num lixão: Travessia da heroína para um universo aquém ao seu. No lixão, ela se depara com Nilo (José de Abreu), um explorador de crianças, isto é, Encontro com um antagonista. Mas logo escapa e é amparada por Lucinda (Vera Holtz), ou seja, Conquista, a heroína lutou para escapar das garras do vilão e termina encontrando seu verdadeiro amor, Batata ou Jorginho, isto é, Celebração ou união amorosa. A segunda fase da novela, Rita volta como Nina (Débora Falabella) disposta a elaborar um plano de vingança contra Carminha. Para tal, ela se emprega como cozinheira e empregada na atual mansão da madrasta. Tal formato pode ser comparado ao motivo de Cinderella dos Irmãos Grimm ou A Gata Borralheira de Charles Perrault. 9
No fórum de debates da editora Abril, os internautas comentam a súbita mudança na trama da telenovela: <http://www.abril.com.br/forum/98692_comentarios1.shtml> acesso em 22 de novembro de 2014. 10 Segundo divulgação do G1.com: <http://redeglobo.globo.com/novelas/noticia/2013/07/avenida-brasile-novela-mais-vendida-da-globo-no-exterior.html> acesso em 22 de novembro de 2014.
Nina alimenta sua amargura de servir Carminha em prol da busca pela justiça de seu passado. Essa ligação com o que já se foi, é observada também em Cinderela. “Talvez a dedicação de Cinderela no túmulo da mãe, assim como a força mágica proveniente dela, possa ser um eco de suas antigas crenças” (CORSO & CORSO, 2007, p115). Tal como Cinderela se disfarça e a princípio foge de seu amor, Nina também reluta a se revelar para Jorginho (Cauã Reymond). A figura da Madrasta vilã se repete também nas cenas em que Carminha, desconfiada de Nina, tortura a emprega obrigando-a a trabalhar durante a madrugada e apimentando a refeição que a cozinheira preparava. No capítulo 102, Carminha, depois de descobrir que Nina é Rita, pede encarecidamente que a emprega prove de um suco na taça em que ela escondida havia derramado um sonífero. Um fato curioso é que antes de derramar o calmante, Carminha finge provar da bebida, para que Nina não perceba as reais intenções da patroa. Essa cena se repete em Branca de Neve dos Irmãos Grimm: a madrasta envenena uma parte da maçã, levando-a a boca para que a princesa não desconfie e oferece em seguida, o fruto a vitima. Obviamente, as duas personagens caem desfalecidas. Em Branca de Neve e os Sete Anões, a madrasta vangloriada do seu feitiço, caçoa do destino terrível que aguarda Branca de Neve, dizendo repetidas vezes que ela será “sepultada viva”. Em Avenida Brasil, é Carminha quem enterra Nina numa cova e vangloria-se diante de seu feito soltando uma gargalhada digna de bruxa malvada. É possível que João Emanuel Carneiro, bem como outros autores consagrados de telenovelas, não tenha feito associações diretas com os Contos de Fadas na hora de elaborar suas tramas. Tal elo comparativo não busca desmerecer a teledramaturgia brasileira, mas apenas procura demonstrar que os elementos advindos do Conto Maravilhoso podem ser encontrados em inúmeros veículos culturais, independente do público que busquem servir ou mesmo de que nacionalidade, etnia ou nicho cultural tenham brotado. O Conto de Fadas é de todos, pois está em todos.
Conclusão
A cultura promove de maneira constante a construção e desconstrução dos Contos de Fadas através dos meios culturais. Muitas vezes essas construções são inconscientes por partes dos seus criadores. Essas estruturas trágicas foram repetidas pelo cinema e podem ter seus ecos identificados nas minúcias das telenovelas brasileiras. Referências ANDERSEN, Hans Christian. Histórias e contos de fadas – Obra Completa. Belo Horizonte: Villa Rica Itatiaia, 1996. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2011. BOSCOV, Isabela. Crítica: Branca de Neve e O Caçador. VEJA.COM. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5wQsFMtfXAc>. Acesso em: 22 de novembro de 2014. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da Mitologia. São Paulo: Nova Fronteira, 1998. CASHDAN, Sheldon. Os sete pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas. Rio de Janeiro: Campus, 2000. CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena 2009. CORSO & CORSO. Diana Lichtenstein & Mário. Fadas no Divã: Psicanálise nas Histórias Infantis. São Paulo: Artme, 2007. ESOPO. Fábulas. São Paulo: Martin Claret, 2004. ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. FONTAINE, La, Fábulas. São Paulo: Martin Claret, 2006. GRIMM, Irmãos. Contos de Grimm. São Paulo: L&PM Pocket, 2008. ______________. Contos de Fadas – Obra Completa. Belo Horizonte: Villa Rica Itatiaia, 2013.
______________. Contos de Grimm – Dra. Clarissa Pinkola Estés. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. JACOBS, Joseph. Princesas e Damas Encantadas. São Paulo: Martin Claret, 2013. ______________. Bruxas, Bruxos e Os Feitiços Mais Cruéis Que Se Podem Imaginar. São Paulo: Martin Claret, 2013. ______________. Heróis muito espertos. São Paulo: Martin Claret, 2013. ______________. Duendes, Gigantes e Outros Seres Fantásticos. São Paulo: Martin Claret, 2013. KAST, Verena. O amor nos contos de fadas. Petrópolis: Vozes, 2011. MÁGICO de Oz, O – Edição de Colecionador. Direção e produção: Victor Fleming. Elenco: Judy Garland e outros. Warner Bros, 2005. 3 DVD’s (101 minutos). Título Original: The Wizard of Oz, Som, Cor. MENDONÇA,
Martha.
O
favorito.
Revista
Crescer.
Disponível
em:
<http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,ERT19838-15565,00.html>. Acesso em 22 de novembro de 2014. PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Villa Rica, 1989. __________________. Contos da Mamãe Gansa – Tesouros da cultura francesa. São Paulo: L&PM Pocket, 2012. PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. SADEK, José Roberto. Telenovela: um olhar do cinema. São Paulo: Summus, 2008. TATAR, Maria. Contos de Fadas – Edição Comentada e Ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. ZAHAR, Jorge. Guia Ilustrado TV Globo Novelas e Minisséries. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.