Sobre Livrarias e Bibliotecas

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1ª Edição - Natal/RN - 2019



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© 2019 Marcelo Alves Dias de Souza



Sumรกrio



Prefácio Há alguns anos, na velha disputa entre brasileiros e argentinos somos rivais no futebol porque somos vizinhos, e a palavra rival, que vem do latim rivus, isto é, rio, aparece aí porque desde Roma os cursos d’água dividiam as propriedades dos agricultores confinantes, e isso, naturalmente, sempre deu azo a disputas pela água, o que levava a demandas, e, pois, a rivalidades... , os Hermanos, entre outras coisas, diziam que somente sua capital, Buenos Aires, tinha mais livrarias que o Brasil inteiro. Uma pesquisa não lembro o órgão ou instituto que a fez, recentemente, chegou a confirmar essa velha afirmativa, embora sob muita contestação. Não importa. Como diz Ariel Palacios em seu excelente livro Os Argentinos, o Brasil é o país que os argentinos odeiam amar, e a Argentina, o país que os brasileiros amam odiar. Coisas de irmãos. Buenos Aires é, em todos os levantamentos que se façam, a cidade, ou uma das cidades, que mais livrarias tem no mundo. E as cidades brasileiras, capitais ou não, são paupérrimas nesse quesito. E estão, se é que isso é possível, ficando ainda mais pobres nos últimos anos. Primeiro, as livrarias de rua migraram para os shoppings centers, para tentar atrair os fregueses ou em busca de segurança; depois as grandes redes de livrarias, como suas megastores só esse galicismo desnecessário já me embrulha o estômago foram acabando com as livrarias tradicionais, do centro ou dos bairros. Em seguida, os sebos para os não-iniciados, livrarias de livros usados onde os bibliófilos caçavam raridades, viraram meros revendedores de livros didáticos já utilizados, com as exceções que confirmam a regra; finalmente, mesmo as hiperlivrarias começaram a quebrar. Assim é que, no Brasil de hoje, chegamos ao cúmulo de não ter, em alguns dos mais movimentados aeroportos ou centros comerciais do país, uma livraria de vergonha para nos socorrer. E, para buscar obras raras o jeito é a utilíssima invenção da Estante Virtual. Por isso, este maravilhoso livro, de cujo conteúdo precioso estou 11


sendo obrigado a afastar você, leitor mas a culpa é inteiramente do autor, que insistiu para que eu o fizesse, escrevendo este dispensabilíssimo prefácio é tão importante. Porque ele fala de livrarias e bibliotecas do mundo inteiro, que ele conhece como grande andarilho, viajante de verdade não apenas turista que é, mas sobretudo de amante dos livros e de suas maternidades. Qual a diferença entre uma livraria e uma biblioteca? Sob muitos aspectos, nenhuma. Apenas a livraria abriga os livros ainda não comprados, enquanto a biblioteca acolhe os livros já comprados. Há outra diferença também importante, de que a livraria tem um caráter mais comercial, ela quer vender livros, enquanto a maioria das bibliotecas é inteiramente, ou quase, gratuita. Acontece que, como eu disse antes, ambas são maternidades de livros: é na livraria que eles nascem para o primeiro comprador, e vão para a casa dele, em geral definitivamente ou até que o tolo os empreste... Na biblioteca, nascem para o primeiro ou milésimo que pede o empréstimo, em geral temporariamente ou até que o sabido os esqueça de devolver... As livrarias me lembram a Terra do Futuro da belíssima O Pássaro Azul, peça de teatro do belga Maurice Maeterlinck (Nobel de literatura de 1911) onde ficavam, ansiosos, os meninos que ainda não nasceram, esperando o momento em que o fariam, vindo à terra, cada qual com sua missão. São os livros esperando ser comprados. Para serem lidos e, assim, completarem sua missão. Nas bibliotecas, eles esperam ser pedidos em empréstimo e lidos. É quase a mesma coisa. Pois a identidade entre livrarias e bibliotecas é tanta! O nome de ambas vem de livro: no caso da livraria isso é evidente e autoexplicativo; no de biblioteca, a mesma palavra está lá, escondida pelo grego βιβλίον, biblion. Variando a linguagem, a denominação entre uma e outra pode se confundir. Em inglês, por exemplo, biblioteca é library, um falso cognato que, no caso, não é tão falso assim. Até porque há livrarias tão belas, tão serenas, e com uma política de vendas tão amena, que é possível, nelas, ler e consultar livros calma e tranquilamente, sem a obrigação de ir ao caixa pagar. São verdadeiras bibliotecas. E há biblio12


tecas que têm uma seção, uma loja, em que é possível adquirir livros. São também livrarias. Em português, muitos dicionários dão livraria como sinônimo de biblioteca. E é possível achar, em alguns autores mais antigos, o uso indistinto dessas palavras, como se vê neste trecho do lusitano Eça de Queirós, onde fala obviamente de uma biblioteca, mas usando o termo livraria: “... a imagem de uma livraria silenciosa, com bustos de Platão e de Séneca, uma ampla poltrona almofadada, uma janela aberta sobre os aromas de um jardim: e neste retiro austero de paz estudiosa, um homem fino, erudito, saboreando linha a linha o seu livro, num recolhimento quase amoroso”. Se os livros contam muitas histórias, não menos contam as livrarias, e, principalmente, as bibliotecas, as quais, por não terem a finalidade comercial das primeiras, e se localizarem, ao menos as privadas, em sua maior parte, nas casas das pessoas, confundem-se com a vida delas. Confundem-se os livros, seus donos, seus escritores, seus leitores e as personagens. Que são os habitantes das bibliotecas (idem das livrarias, mutatis mutandis: no caso, os livros sus futuros donos, os escritores, os leitores e as personagens). Confundem-se, relacionam-se, brigam, fazem as pazes, procuram-se, afastam-se, num bailado literário e humano de rara beleza e de múltiplos níveis. O livro mais belo, mais completo, mais inspirador que eu já li sobre a matéria e desconfio que seja mesmo a obra-prima, ao menos do Brasil, a respeito de livros, leitores, autores e personagens, e que só não tem a fama e a difusão que merece por ter sido escrito por um potiguar e publicado apenas, me parece, no nosso pequenino Rio Grande do Norte, é o genial A Biblioteca e seus Habitantes, do macauense e meu querido professor, o gigante Américo de Oliveira Costa. Disse ali Américo que a biblioteca e eu tomo a liberdade de estender suas palavras para a livraria : “é arena, plataforma, torre, promontório, rosa dos ventos, ponte, estúdio, barco, fórum, centro de imantação e irradiação, dotado de poderes mágicos. Nela, como já se considerou, os seus habitantes tanto se entendem com se distanciam, em origens, naturezas, crenças, atitudes, 13


destinos, soluções. E não apenas uns em relação aos outros: também quanto a si próprios, no inexorável exercício das contradições humanas, através da vida.” O argentino tinha de ser Jorge Luis Borges, fascinado por bibliotecas (e livrarias), que ideou uma infinita no conto A Biblioteca de Babel (Ficções), chegou a dizer: “Sempre imaginei que o paraíso será uma espécie de biblioteca”. O italiano Umberto Eco, nessa linha celestial, foi mais longe, talvez um pouco longe demais, porém em o fazendo revela a grandiosidade das bibliotecas: “As bibliotecas podem tomar o lugar de Deus”. Pois bem: esse longo arrodeio substantivo (e o verbo que dela decorre, arrodear) tão caros aos nordestinos, mas que muitos oriundos de outras partes do país têm de ir a uma livraria comprar um dicionário para entender, ou ao menos passar numa biblioteca para consultar seu significado é para justificar por que chamei este livro de maravilhoso e seu conteúdo de precioso. Porque as livrarias e bibliotecas desaparecem, principalmente em nossa terra, e pouco se escreve sobre elas (além do livro que citei, de Américo, recordo uma continuação, também de sua autoria, O Comércio das Palavras, e, mais recentemente, para ficar apenas neste torrão de Poti, Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte, de Lívio Oliveira). Há obras estrangeiras (História das Bibliotecas, de Frédéric Barbier; Fantasmas na Biblioteca: A Arte de Viver entre Livros, de Jacques Bonnet, entre outros. O autor cita mais algumas nas crônicas deste livro), mas pouco ou nada no Brasil (lembro agora apenas Gabinetes de Leitura, de Ana Luíza Martins, e se restringe ao estado de São Paulo). A meu sentir, depois de Américo, quem escreveu melhor acerca dessa temática foi o argentino (de novo!) Alberto Manguel: Uma História da Leitura, O Leitor como Metáfora, A Biblioteca à Noite, A Cidade das Palavras... Todos os livros acima são diferentes entre si, como este também o é. Cada um tem uma abordagem diversa, mas são semelhantes porque celebram o livro, seus autores e personagens, os leitores, as livrarias e 14


bibliotecas. E porque são poucos. Este livro é uma dessas obras raras. Difíceis de achar. Mas facílimas de serem lidas. Nas crônicas e relatos que o compõem, há bibliotecas e livrarias do do mundo todo, por alguém que ama os livros, seus autores, a literatura, os personagens e que adora viajar. Não direi mais sobre os textos a seguir para não lhes retirar nem um pouquinho do sabor peculiar. Vale o registro de que o sabor (gosto) está ligado ao saber (juízo). Os portugueses no Brasil perdemos essa frase tão bonita dizem, de alguma coisa gostosa: isto sabe bem. Antigamente, ter paladar refinado, significava ter gostos cultivados. Saber das coisas. Enfim, são textos saborosos. E para que se perceba a vastidão que essas prateleiras textuais contêm, posso adiantar que falam das livrarias preferidas do autor em Londres, Paris, Madri, Buenos Aires, Nova Iorque, Roma; da Magna Carta, bibliotecas em Boston, na Inglaterra, Escócia Gales e Irlanda; da Bíblia do Rei James; de romances policiais; de livrarias jurídicas; do Inspetor Morse; de Lewis Carroll, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien; da rivalidade entre Oxford e Cambridge; de O Nome da Rosa, de Umberto Eco, sua biblioteca e daquela real, que a inspirou, na Abadia de Melk, na Áustria; do Le Procope de Paris e a literatura que o envolve; da British Library; da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Pública de Informação, ambas da França; da Casa do Brasil em Madri; da Biblioteca do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados da Universidade de Londres; dos museus, livrarias e biblioteca de Edimburgo; de livrarias e cafés em Lisboa, em especial da Fundação Calouste Gulbenkian; da Livraria Lello e de bibliotecas no Porto; de bibliotecas espanholas; da biblioteca do Trinity College em Dublin; da biblioteca pública de Nova Iorque; da biblioteca perdida de St. Gallen, na Suíça; da biblioteca Morgan em Nova Iorque; do bazar de Istambul e seus livros; de livros e sua venda na Índia; da maior livraria do mundo, a Books Knokiniya, de Dubai e da mais bela na opinião do escritor, a Maughan de Londres... É uma volta ao mundo dos livros! Sentiu falta do Brasil, das livrarias e bibliotecas brasileiras? Não 15


fique triste: é sinal que vem uma continuação por aí, dedicada a elas... Do ponto de vista pessoal, este Sobre Livrarias e Bibliotecas também me encanta por me trazer à memória a primeira livraria importante da minha vida a Livraria Universitária, de Walter Duarte Pereira, que ficava na Avenida Rio Branco, no centro de Natal, e que eu, menino, frequentava aos sábados de manhã com meu pai, amigo do dono. Ali estavam todos os profissionais do Direito, intelectuais, professores, escritores e poetas da cidade, em conversas e discussões deliciosas e intermináveis. E me traz à lembrança igualmente minha primeira biblioteca, a da minha casa, a biblioteca de papai, quando vivíamos na casa da Rua Apodi, na Cidade Alta, cheia de livros jurídicos mas também de literatura, filosofia e arte. Biblioteca e bibliotecário que, sem dúvida, me moldaram no que sou hoje. Por isso ele me fala ao coração e aos olhos, com suas imagens maravilhosas, feitas pelo autor amigo que, além de escrever magistralmente, também tem grande talento de fotógrafo e é um viajor incansável. Por tudo isso, ao autor eu digo: obrigado, xará, por ter me convidado para fazer este prefácio, em que viajei também, com as asas do coração e da saudade. E ao leitor eu lembro que um dos maiores autores de todos os tempos, Miguel de Cervantes Saavedra, o criador de Dom Quixote, disse: “Quem lê muito e anda muito, vai longe e sabe muito”. Parece que ele escreveu essa frase a respeito de Marcelo Alves Dias de Souza. Marcelo lê muito, anda muito, sabe muito e vai longe. Mais longe do que já foi. Menos do que ainda, com toda certeza, irá. Marcelo Navarro Ribeiro Dantas Da Academia Norte-rio-grandense de Letras

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A British Library, sua lojinha e a Magna Carta Ontem passei o dia na British Library. Não era minha primeira vez, é verdade. E confesso que fui lá com dois propósitos bem definidos: registrar-me formalmente na biblioteca, para ter um acesso mais amplo a seu acervo e, especialmente, ver a Magna Carta (também chamada de Magna Carta Libertatum ou Grande Carta das Liberdades), na sua versão original, de 1215, que a British Library possui em exposição no seu museu. Originalmente escrita em latim e conhecida, no Brasil e mesmo no mundo de língua inglesa, pelo seu nome latino, a Magna Carta, para quem não sabe, é um dos documentos mais importantes da história do direito e, por que não dizer, da Humanidade. Segundo a British Library, não há evidências de que apenas um único original da Magna Carta tenha sido produzido e oficialmente firmado em 1215 e, dos muitos “originais” da Magna Carta produzidos à época (sendo guardados em lugares supostamente seguros, como catedrais, abadias etc.), apenas quatro sobreviveram e dois desses estão no seu museu. Os outros dois exemplares acham-se nas cidades inglesas de Salibury e Lincoln. A Magna Carta, registre-se, teve como inspiração e modelo a anterior Charter of Liberties, de 1100, na qual o rei Henrique I voluntariamente reconheceu que seus poderes estavam limitados pela lei. Mas, quando falamos da Magna Carta, nos referimos, precisamente, ao documento de 1215, que foi várias vezes emendado nos anos subsequentes, por diferentes monarcas, sendo a versão de 1297, é verdade, a que restou assentada nos livros pertinentes à legislação da Inglaterra e do País de Gales. Na época, a Magna Carta foi uma solução prática para um contexto em que o rei inglês estava em conflito com a Igreja e com boa parte dos barões do Reino e enfraquecido por desastrosas campanhas militares na França. Por pressão dos barões, ela exigiu do rei João Sem Terra (que teve sempre sua legitimidade ao trono inglês contestada pela forma como a ele ascendeu após a morte do rei Ricardo Coração de Leão, 19


que havia partido para uma cruzada) e, por consequência, dos monarcas subsequentes que respeitassem certos direitos e procedimentos legais, deixando claro que a vontade do monarca não era absoluta, estando sujeita ao direito. Afirma-se, por exemplo, estar na Magna Carta a origem do instituto do habeas corpus. Ela, pelo menos implicitamente, garante a expedição dessa ordem para o caso de prisão ilegal. Não resta dúvida, entretanto, de que a Grande Carta foi um dos primeiros passos dados no caminho que levou ao surgimento do constitucionalismo moderno, sobretudo nos países de língua inglesa, como a Inglaterra e os Estados Unidos, bastando lembrar sua repercussão no Bill of Rights americano e na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Alguns de seus artigos e parte da introdução, inclusive, ainda estão tecnicamente em vigor no contemporâneo direito inglês. Mas o fato é que, confesso, mais uma vez, fiquei embasbacado logo ao entrar na British Library e ver sua “lojinha”. Ou seria melhor definir como livraria? Não resisti à tentação e ali entrei. Os que me conhecem sabem que eu adoro livrarias. E se adorasse apenas livrarias, haveria uma explicação plausível. Vai ver é porque gosto muito de livros. Mas também adoro andar por supermercados e shoppings centers, mesmo que, “econômico” que sou, não compre quase nada. Tenho achado que a razão para isso está nas cores. Sim, na profusão de cores que sempre há em livrarias, supermercados e shoppings centers que, não sei bem dizer o porquê, acalentam a minha alma. Entretanto, com as livrarias acontece algo mais. Certa “fúria” consumista me atinge, tenho sempre dito, e compro livros e mais livros. Não foi diferente dessa vez. Afinal, eram livros sobre a história da literatura, da linguagem, da escrita, da impressão, livros sobre a história do livro, enfim. Títulos sugestivos, como “1000 Years of English Literature”, “Literary Genius”, “A Book Addict’s Treasury”, “Libraries within the Library”, “Books as History”, “A Bibliography of Printing” e “Form and Meaning in the History of Books”. Infindáveis títulos, dos quais, alguns (ou muitos, depende do ponto de vista) comprei. E com isso, com essas aquisições, além da volta da velha dor no ombro por carregar livros (e vinhos também, confesso), o que ganhei? 20


Agradáveis momentos de leitura, claro. Mas, sobretudo, ganhei cores para eu enxergar em casa e acalentar a minha alma. Sim, da Magna Carta, pouco vi. Apenas o suficiente para colher as informações necessárias à redação desta crônica. Quanto ao registro na British Library, me esqueci. Ficará para outra vez; amanhã, talvez.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 29 de novembro de 2009.

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A primeira biblioteca Boston é, sob certo sentido, uma cidade universitária. Lá e ao seu derredor, estão sediadas mais de 50 instituições de ensino superior. Apenas para se ter uma ideia, essa metrópole do estado americano de Massachusetts é o lar da gigantesca Boston University e dos famosíssimos Massachusetts Institute of Technology – MIT e Harvard University, que dispensam qualquer apresentação. E a história desses centros de excelência é marcada pela presença de Presidentes da República (não só americanos), Primeiros-Ministros e bem mais do que uma centena de prêmios Nobel e Pulitzer (este, o mais importante prêmio literário americano). Como eu disse no artigo da semana passada, paguei, curioso, a matéria de visitar Harvard. E claro que adorei a visita. Pela beleza dos prédios e, mais ainda, pelo jovial ambiente da cidade de Cambridge/MA (onde, de fato, fica a Universidade), com a sua Harvard Square cheia de pequenos comércios, restaurantes e livrarias. Mas, para falar a verdade, nessa região metropolitana cheia de cultura, a coisa que mais me impressionou foi a Biblioteca Pública da Cidade de Boston. Propagando ser a primeira biblioteca pública municipal dos EUA (informação de que tenho o costume de duvidar, calejado com a multiplicidade, aqui, em Londres, de “primeiros” em todas as coisas), ela está situada no aprazível bairro de Back Bay, somente a duas quadras do hotel onde me hospedei. É a biblioteca central, na verdade, pois há 26 outras sedes espalhadas pela cidade. Tirei uma manhã inteira e parte da tarde para visitar essa biblioteca-museu e não me arrependi (até porque fugi, temporariamente, da fúria de compras que atingiu o grupo com o qual “turistava”; incluindo a mim, confesso). Primeiramente, o prédio é lindíssimo. A fachada que dá para a Copley Square, o hall de entrada e a escadaria principal, a grande sala de leitura e o pátio central em forma de claustro são impactantes. Mas, curiosamente, são, ao mesmo tempo, muito aconchegantes. Aliás, aconchegante é um termo bem apropriado para definir a Biblioteca Públi22


ca de Boston. Ao contrário do que se dá com várias outras bibliotecas (incluindo algumas que se dizem “públicas”), o acesso a ela é completamente livre, inclusive para um turista “maracatu” como eu, e não fui incomodado em nenhum momento ao perambular absorto por entre suas muitas salas e estantes. É verdade que não tive tempo para curtir tudo, arquitetura, recursos informatizados e livros (um motivo, quem sabe, para, um dia, passar um temporada em Boston?). E não tive tempo porque, felizmente, minha visita coincidiu com dois curiosíssimos eventos. Dei de cara, logo, com uma exposição comemorativa dos 150 anos da Guerra Civil americana (de 1861 para 2011), evento no qual a cidade de Boston e o estado de Massachusetts tiveram participação destacada. Chamou-me a atenção, sobretudo, a coleção de mapas da época, retratando a divisão do país (“Torn in Two”, era o mote da exposição), as campanhas dos dois lados e as decisivas batalhas. E impressionou-me o cuidado com que a coisa foi tratada, nessa grande biblioteca que, como tal, faz também as vezes de museu. Isso sem falar numa secção dedicada a crianças e adolescentes, visando instruí-los sobre esse momento decisivo da história do país. Em seguida, topei com algo inusitado. Naquele dia – era um sábado, dia 4 de junho – a biblioteca, através e para os seus “amigos”, estava fazendo uma “desova” de parte do seu acervo. É algo que está sendo feito bimestralmente este ano. Livros a preço de banana. Uma das promoções era: encha um saco – enorme, diga-se – com livros de ficção e pague apenas 10 dólares. E por aí vai. Confesso: minha fúria consumista voltou e só fui contido no último instante pela lembrança de que livros pesam pra burro. Balanço final: “apenas” três sacos. E estão esses livros marcados pelo tombo da Biblioteca de Boston. Mas quem doravante tomar emprestados meus livros, pode ter certeza: eu não os roubei (como podem ter feito, quem sabe, muitos dos prêmios Nobel que perambularam por aquelas estantes?). Comprei-os, asseguro, embora por quase nada. Ao fim do dia, apenas uma lamentação. Veio-me à mente a Biblioteca Câmara Cascudo. Ali na Petrópolis natalense de minha saudade, por onde passo quase todos os dias quando estou na terrinha, apenas 23


para ver o absurdo abandono a que ela tem sido relegada. Não seria bom que a Câmara Cascudo – que pode não ser a primeira biblioteca do país, mas é a “nossa” biblioteca – tivesse um tratamento cuidadoso semelhante? Nestes tempos de movimento pra lá e pra cá, por que não iniciamos mais um – exclusivamente propositivo, dos amigos da Câmara Cascudo – para revitalizarmos, juntamente com o poder público, a nossa esquecida biblioteca pública?

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 19 de junho de 2011.


Semear livros “Oh! Bendito o que semeia / Livros... livros à mão cheia... / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma / É germe - que faz a palma / É chuva - que faz o mar”. Sempre adorei esse trechinho do poema “O livro e a América”, do nosso Castro Alves (1847-1871). Compondo o livro “Espumas Flutuantes” (1870), o único publicado em vida pelo romântico baiano, houve um tempo em que esses versos eram declamados várias vezes ao dia na televisão brasileira em uma campanha para incentivar a leitura e o estudo. E esses versos aqui são o mote, em forma de homenagem ao “poeta dos escravos”, para eu voltar a cuidar da temática da leitura, dos livros e das bibliotecas (vide a crônica “A primeira biblioteca”, de duas semanas atrás), agora retratando uma interessante campanha, em prol da leitura, que vem sendo empreendida por um dos mais populares jornais londrinos, o “Evening Standard”. Esse jornal – que circula, de segunda a sexta, no finzinho da tarde para o começo da noite –, tem uma história bastante interessante. Durante quase dois séculos vendido na rua por pessoas postadas em um banquinho, passou, há cerca de dois anos, a ser dado gratuitamente. Essa mudança, por sinal, causou muito furor, sobretudo com reclamações dos antigos jornaleiros, que achavam que perderiam suas rendas. Mas a coisa deu certo. Basicamente, os jornaleiros agora são pagos para distribuir o jornal e, certamente, nunca se leu tanto o “Evening Standard” como agora. Sua proposta, claro, não é a de um jornal de altíssimo nível, mas ele também não é um daqueles escandalosos tabloides ingleses (apesar do seu formato editorial ser esse). O fato é que o “Evening Standard” atualmente comanda uma campanha, denominada “Get London Reading”, para incentivar o hábito da leitura entre aqueles que vivem na capital do Reino. A campanha apela diretamente ao leitor e aos potenciais apoiadores e, entre outras coisas, tenta arrecadar fundos (e já vai em vários milhares de libras), incentivar a doação de livros e engajar pessoas para trabalhar voluntariamente – em uma espécie de tutorial individual – com crianças e jovens com 25


dificuldade de leitura e aprendizado, sobretudo em escolas/áreas menos favorecidas. Além do apelo direto ao leitor, a cada dia o jornal publica uma historieta de sucesso, como a de um garotinho que, faz três anos, vindo de Singapura, chegou a Londres sem falar uma palavra de inglês (falava um rudimentar mandarim). Hoje, com seis anos, já “devorou” todos os livros da pequena biblioteca local, com um recorde de mais trezentos livros em menos de um ano. Agora, ele é um das estrelas da campanha com sua foto, rodeado de livros, estampada no jornal. Focada também no público adulto, em tempos de Ipad, Kindle e livros em formato eletrônico, a campanha do “Evening Standard” tem disponibilizado livros para “download” gratuito na Net. E o jornal conta o caso de uma senhora, hoje com setenta anos, mas que apreendeu a ler há apenas seis anos: com o acesso gratuito a livros em formato eletrônico mais simplificado, essa senhora e todos aqueles mais informatizados agora navegam também na onda (leia-se, campanha). Também ganharam espaço no jornal as empresas que têm contribuído com a campanha, como as enormes livrarias Foyles e Waterstones, que doaram livros (ou o resultado das vendas de seus livros), além de estamparem, nas suas gigantescas lojas de Charing Cross e Picadilly, respectivamente, cartazes propagando a campanha. E não só as grandes livrarias entraram na onda. Jornalistas, gente do show business e empresas dos mais inusitados ramos, como a cadeia de hotéis Radisson Edwardian e a de roupas French Connection (e aqui vai a moda a serviço da literatura), também embarcaram juntos. E nessa simbiose do jornal com os apoiadores, não só os potenciais leitores – sejam eles dois, dez ou milhares – ganham. Todos ganham. Afinal, quanto custa um espaço, com uma matéria deveras elogiosa, em um jornal de grande circulação? A verdade é que são tempos difíceis por aqui. O Reino Unido ainda não se recuperou – e acredito que levará muito tempo para tanto – da crise financeira mundial que teve seu pico faz alguns anos. O governo daqui, assim como os da Espanha, Irlanda, Portugal, Grécia etc., fala incessantemente em austeridade. O sistema de ensino como um todo 26


sofre tanto financeira como qualitativamente, o que é motivo de debates e protestos. E nessa guerra visando ao corte de gastos, vai junto a verba para a manutenção das utilíssimas, para fins de incentivo ao hábito da leitura, bibliotecas públicas (aliás, algo que, infelizmente, vem acontecendo também nos Estados Unidos). Mas, em tempos de “guerra”, a sociedade e o Estado, por aqui, procuram dar seus pulos. Além de campanhas, como a do “Evening Standard”, algumas das bibliotecas de bairro em risco de fechamento, por exemplo, já acharam a solução de fundirem os recursos humanos, a aquisição e o empréstimo de obras e outros gastos, economizando para sobreviver, enquanto passa esse período mais crítico. Para imitar (e que imitemos as coisas boas!), sob as bênçãos de Castro Alves, apenas digo: bendita a ideia de semear livros, “livros à mão cheia”, rogando à sociedade ajudar. O livro caindo na alma é “germe que faz a palma” nesta terra (chuvosa) rodeada de mar.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 03 de julho de 2011.

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Crimes de verão Por incrível que pareça, está um calor de rachar em Londres. Agorinha mesmo, quando tenho de escrever esta crônica, são 28 graus Celsius que estão fazendo minha cabeça quase explodir. Pode parecer pouco para os padrões da nossa terrinha, mas, para uma cidade onde a arquitetura é bem mais apropriada para o frio (e que frio!), a sensação é de semi-inferno. Acho que eles aqui – ou pelo menos os responsáveis pela biblioteca do Institute of Advanced Legal Studies (IALS), da University of London, de onde escrevo – não foram ainda apresentados ao ar-condicionado. Minha vontade é jogar tudo para o alto (incluindo esta crônica) e ficar vadiando, de pernas para o ar, à moda de Ascenso Ferreira (18951965), em um dos muitos parques da cidade ou mesmo na aprazível Russell Square, que ora invejo pela janela. Sempre à sombra, claro. Vai ver é por isso que, no verão, as coisas – sobretudo, escolas e universidades – param por aqui. A vida perde em seriedade e ganha um tom, se não mais alegre, certamente mais contemplativo. Às vezes, convidativo a uma leitura diletante; outras, a uma “lager” (como se chama a cerveja mais leve daqui) no pub da esquina. Não estou bem certo da ordem. Mas deixemos de lado, embora provisoriamente, as muitas “pints” e os pubs e nos concentremos, até para dar um falso tom de seriedade a este riscado, na tal da leitura diletante. Neste verão londrino (expressão que até ontem achava ser uma contradição entre termos), pelo que tenho visto nas vitrines das livrarias e nas resenhas literárias, a moda é a leitura de romances policiais. Por exemplo, a revista Short List, distribuída gratuitamente e muito popular por aqui, um dia desses, publicou um artigo no qual sugere para o verão duas coisas: assassinato e insolação à beira de uma piscina. Por mais que a ideia, na sua literalidade, pareça interessante para alguns, a revista falava metaforicamente, como mote para apresentar a sua seleção dos “20 best crime novels of the year” (para ver: www.shortlist.com). Segundo a Short List, vivemos o boom dos romances policiais e, portanto, aproveitemos. Afinal, o que haveria de melhor, 28


como programa de verão, do que a leitura de um sombrio e sanguinário thriller? Particularmente, eu posso pensar em várias outras coisas. Eu e a inglesinha no computador ao lado (lindinha, por sinal) que, pelo que vejo, acaba de reservar um voo para Ibiza. Mas deixemo-la para lá. Aos vinte títulos sugeridos, todos recém-lançados, Short List ainda junta, por sugestão de cinco autores de romances policiais (entre eles, o inglês Lee Child, muito conhecido por aqui e que tem o seu mais recente título, “The Affair”, entre os listados), mais cinco outros livros considerados clássicos (ou quase) que, relidos, farão e esfriarão a cabeça do leitor neste verão. Muitos dos títulos recém-lançados - eu acredito - ainda levarão um tempinho para chegar traduzidos ao Brasil. E é por isso - e também porque não conheço quem consiga ler 25 livros em dois meses - que vou pinçar e ligeiramente comentar, a título de pitaco, três desses títulos. Balanceando a coisa sob um ponto de vista bem pessoal, vou de dois clássicos e um recém-lançado. Primeiramente, “The Maltese Falcon” (1930), de Dashiell Hammett (1894-1961), que, famosíssimo policial noir, a bem da verdade, dispensa apresentações. Filmado em 1941 por John Huston (1906-1987), com Humphrey Bogart (1899-1957) no papel do detetive Sam Spade, independentemente da sugestão da Short List, ele já estava, na minha mesinha de cabeceira em Natal, esperando a sua vez de ser relido. O segundo na “minha” lista é “Stranges on a Train” (1950), de Patrícia Highsmith (1901-1995), também conhecida pelo seu “The Talent Mr. Ripley” (1955). Considerado como um exemplo de como se criar tensão em uma narrativa, o “pacto sinistro” para duplo assassinato de “Stranges on a Train” foi adaptado para o cinema em 1951 por Alfred Hitchcock (1899-1980). E desta feita, quem está na minha cabeceira, para ser visto, é o filme, parte de uma coleção de sete “crime films” do grande diretor inglês que acabo de comprar baratinho, por apenas 15 libras. Por último, “The Leopard” (2011), de Jo Nesbo, autor norueguês, que, descrito na capa do livro como “the next Stieg Larsson” (1954-2004), certamente surfa na onda da ficção criminal escandinava (e não na realidade monstruosa do compatriota Behring Breivik). Não conhecia Jo Nesbo e o seu detetive Harry Hole (que protagoniza quase 29


uma dezena de thrillers), mas, um dia desses, pela simpática atendente da livraria Waterstones de Piccadilly Circus (no meio de um papo mole que consegui começar, mas não soube como bem terminar), fui formalmente apresentado à dupla como sendo uma das melhores pedidas para o verão. Quem sou eu para duvidar. A seleção da Short List (e a minha, muito mais), como toda seleção, tem muito de pessoal e controverso, mas pode, pelo menos, nos dar uma ideia. Aliás, a mistura verão, livros e crimes pode dar ensejo a muitas ideias. E para quem está de cabeça “quente”, então. De minha parte, por exemplo, estou querendo matar o fdp do bibliotecário que não liga o ar- condicionado. Seria o meu crime de verão. Será que daria um livro?

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 07 de Agosto de 2011.


A Oxford do Inspector Morse Um dia desses, fui a Oxford visitar um amigo. O nome dele: Endeavour Morse ou, como ele prefere ser chamado, Detective Chief Inspector Morse. Criação literária do inglês Colin Dexter (1930), ex-aluno da Universidade de Oxford, o Inspector Morse é o protagonista de uma série de 13 romances, iniciada em 1975 com “Last Bus to Woodstock” e terminada em 1999 com “The Remorseful Day” (no qual o protagonista falece de diabetes), ambientados na famosa cidade universitária. Na companhia do Detective Sergeant Lewis, o irascível Morse – um grande bebedor de “ale” (um tipo de cerveja inglesa), aluno fracassado (teria abandonado os estudos antes de se formar) e amante de ópera, entre outras coisas – perambula por Oxford e seus arredores, com a autoridade de um oficial da Thames Valley Police, resolvendo os mais diversos crimes, mas também mostrando a arquitetura, a cultura e a vida dessa cidade-universidade quase milenar (oficialmente, o ano de 1167 é tido como o da fundação da Universidade de Oxford, mas a história acadêmica ali retroage ao século XI). Mas confesso que minha amizade com Morse e Lewis não vem dos livros e, sim, da série de TV, de 33 episódios, denominada, em homenagem à sua principal personagem, “Inspector Morse”. Tendo originalmente ido ao ar pela ITV (o segundo canal de TV aberta mais importante do Reino Unido, logo após a BBC) entre os anos de 1987 e 2000, ainda hoje, com a reapresentação dos episódios, é um dos programas mais populares desse excelente canal de televisão. Entre nós, a série é apresentada, na TV por assinatura, pelo canal People+Arts, e daí vem minha amizade com essas curiosas figuras. Para quem não sabe, na série, iniciada com o episódio “The Dead of Jericho” (de 1987, mas adaptado do livro homônimo de 1981), o Inspector Morse é interpretado pelo ator John Thaw (1942-2002), já falecido, mas, quando vivo, badaladíssimo nas terras da Rainha. Aliás, para os interessados em Direito, Thaw é o protagonista de outro seriado apresentado pela ITV, “Kavanagh QC”, cuja temática são as aventu31


ras judiciais do “Barrister” (um dos dois tipos de advogados existentes no Reino Unido, juntamente com os “Solicitors”) James Kavanagh QC (“Queen’s Counsel”, título que, pelo reconhecimento da Coroa, implica o mais alto status para o advogado). Já o Detective Sergeant Lewis - que, com o fim de “Inspector Morse”, ganhou a sua própria série, “Lewis”, que já vai com mais de uma quinzena de episódios - é interpretado por Kevin Whately (1951). A série ainda traz participações especiais de conhecidíssimas figuras. John Gielgud (1904-2000), por exemplo, é o malicioso chanceler da Universidade em “Twilight of the Gods” (de 1993). O próprio Colin Dexter, à moda de Hitchcock (18991980), faz breves aparições em diversos episódios. Foi seguindo o guia “Morse in Oxford” (publicado em 2009 pela Pitkin Guides), que faz a ligação dos pontos turísticos de Oxford com os episódios da série, que revi a Radcliffe Camera e a Radcliffe Square. Por ali está o principal prédio da Bodleian Library, a imensa biblioteca da Universidade de Oxford, que, no dia da minha visita, apresentava uma exibição comemorativa dos 400 anos da publicação da Bíblia do Rei James, um dos mais importantes documentos para a língua inglesa. Depois apreciei as fachadas e os pátios do Brasenose College e do Oriel College, alegadamente os colleges mais usados como locação para as filmagens de “Inspector Morse”. E ainda bati fotos tendo por pano de fundo o Sheldonian Theatre, projetado por Christopher Wren (16321723) , assim como embaixo da linda Ponte dos Suspiros (tipo a de Veneza), na verdade Hertford Bridge, que, suspensa sobre a rua, une os dois prédios do Hertford College. Foi aos pés da Carfax Tower, na esquina da Cornmarket Street, que fui autorizado a fazer umas comprinhas, com a proibição expressa de adquirir livros (que descumpri em parte, confesso). O jeito foi descer a St. Aldeate’s Street, onde está o prédio da Polícia no qual Morse trabalhava, e eu certa feita passei uma temporada (não no prédio da Polícia, mas em uma pensão situada na referida rua, que fique claro). Após comer no “Head of the River”, pitoresco pub à margem do Tâmisa, que corta tanto Londres como Oxford, ainda tentei entrar no Christ Church College, um dos mais antigos e o maior dos colleges da Universidade 32


de Oxford, locação de alguns episódios de “Inspector Morse” e de muitos filmes, como Harry Porter e outros menos votados. Mas já era tarde e ficou faltando pagar essa visita. Na verdade, ficou faltando muita coisa. Não tive como ir ao bairro residencial de Jericho, onde fica a sede da Oxford University Press, nem ao riquíssimo Ashmolean Museum ou ao University Museum of Natural History. Faltou também cruzar com o Jaguar Mark II, de um vermelho mais que chamativo, usado por Morse nas suas idas e vindas pelos 38 colleges e inúmeros pubs de sua Oxford, entre eles “The Eagle and Child”, pub literário outrora frequentado pelo grupo “Inklings”, de oxfordianos do top de J. R. R. Tolkien (1892-1973) e C. S. Lewis (1898-1963). Lá, como sempre fazia Morse, eu poderia ter dito: “I need a beer, L...”. Mas acabei indo ao Corpus Christi College (cenário do episódio “The Last Enemy”, de 1989), onde, bolsista do Conselho Britânico, há coisa de 10 anos, estudei. Revi algum outro amigo por ali? Não, até porque não os fiz. Aliás, por essa época, aficionado no Direito, nem o “Inspector Morse” eu conhecia.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 11 de setembro de 2011.

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Três fantasias de Oxford Outro dia, resenhei aqui sobre a Oxford do “Inspector Morse”. Aproveitando o embalo, pensei em ampliar um pouco mais a fotografia e tratar da ligação de Oxford com outras figuras da literatura. O problema que surgiu foi: por onde começar? Um slogan em voga nos séculos XVIII e XIX dizia haver sido Oxford feita para as artes; Cambridge, para as ciências. Seja esse slogan realidade ou mito, o fato é que o rol de escritores consagrados, de alguma forma vinculados a Oxford e à sua universidade, é simplesmente interminável. E se ainda tentei preparar uma lista com as principais figuras, logo abandonei a ideia, sob pena de faltar espaço nesta crônica ou de cometer, pela ausência de alguns nomes, pecados imperdoáveis. De toda sorte, essa tentativa de elaborar uma lista me chamou a atenção para uma coisa: a marcante presença, para a cidade e para a Universidade de Oxford, de três escritores cujos universos fantásticos, aparentemente criados para crianças e adolescentes, têm encantado não só esse público, mas também – e, talvez principalmente – os adultos no mundo todo. E, assim, encafifado com essa coincidência, ganhei um norte para o nosso papo de hoje. O primeiro desses três sonhadores é Charles Dodgson (1832-1898), matemático do Christ Church College (o maior dos colleges da Universidade de Oxford), mais conhecido como Lewis Carroll, o autor do clássico “Alice no País das Maravilhas” (“Alice’s Adventures in Wonderland”, 1865). Escrito para entreter a menina Alice Liddell (filha de Henry George Liddell, vice-chanceler da Universidade e deão do Christ Church), “Alice no País das Maravilhas” tem, há quase um século e meio, entretido e intrigado – e quase na mesma proporção, acredito – crianças e adultos no mundo inteiro. Paradoxalmente, já que aparentemente se trata de um livro para crianças, “Alice”, desde o episódio da queda na toca do coelho até o julgamento do Valete de Copas (acusado de haver dado “um ganho” nas tortas da Rainha) perante o Rei de Copas e os doze animais-jurados, é uma obra de difícil interpretação, 34


com suas muitas referências matemáticas e linguísticas e sua “lógica nonsense” bem peculiar. Aliás, as derradeiras passagens da obra, com os depoimentos do Chapeleiro Louco e da própria Alice, a absurdez do julgamento e a famosa frase “Cortem-lhe a cabeça”, dão pano para um bom artigo jurídico (o que, definitivamente, não é o caso deste riscado). O segundo sonhador atende pelo nome de C. S. Lewis (1898-1963). Lewis, entre outras coisas, é o criador da série de sete romances denominada “As Crônicas de Nárnia” (“The Chronicles of Narnia”, 19501956). Clássico da literatura infantil, traduzida para dezenas de idiomas e, várias vezes, adaptada para a televisão e para o cinema (recentemente, os títulos “The Lion, the Witch and the Wardrobe”, “Prince Caspian” e “The Voyage of the Dawn Treader” foram adaptados para o cinema, com muito barulho, em 2005, 2008 e 2010, respectivamente), “As Crônicas de Nárnia”, assim como também se dá em “Alice no País das Maravilhas”, transportam crianças do “nosso mundo” para um “Reino” de mitos e fadas, onde a magia é a regra, e o Bem luta para, ao final, vencer o Mal. E se não bastasse a importância da sua obra, o nome de Lewis estará para sempre ligado ao Magdalen College e à vida intelectual de Oxford, já que ele foi figura proeminente no “Inklings”, grupo literário do qual também fazia parte o não menos conhecido escritor J. R. R. Tolkien (1892-1973). E é exatamente Tolkien o último nome dessa tríade de sonhadores. Católico engajado e filólogo apaixonado, Tolkien tem o seu lugar garantido entre os grandes vultos que fazem a história da Universidade de Oxford. Mas esse estudante do Exeter College e professor de línguas e literatura dos Pembroke e Merton Colleges é hoje, acima de tudo, um ícone da literatura mundial. A partir de “The Hobbit” e, sobretudo, com a trilogia “O Senhor dos Anéis” (“The Lord of the Rings”, 1954-55), o culto ao criador da “Terra Média”, de Frodo, Gandalf, Aragon, Éowyn, Sauron, Saruman e Gollum, de homens, bruxos e elfos, só tem crescido, com a fundação de inúmeras sociedades para o estudo do autor e de sua obra. Certamente, a adaptação da trilogia para a grande tela “The Fellowship of the Ring” em 2001, “The Two Towers” em 2002 e “The Return of the King” em 2003 - ajudou a popularizar ainda mais o 35


fantástico universo (de tão completo que é, prefiro sempre chamá-lo assim) escrito, em longos 17 anos em Oxford e durante a Segunda Guerra Mundial, com o “sangue de sua vida”, como o próprio escritor gostava de dizer. ­ Para mim, ainda encafifado, a pergunta que fica é: teria essa habilidade de criar mundos fantásticos, característica desses três escritores, sido inspirada pela atmosfera, quase tão fantástica, de Oxford? A verdade é que Oxford, sobretudo se comparada a Londres, é um mundo à parte. Com os seus prédios de um bege incrivelmente uniforme, com seus pátios e jardins perfeitamente arranjados, com seus fantasmas reais e imaginários, sua atmosfera, ao mesmo tempo, jovem e milenar, ela parece haver saído – como se, num contínuo passe de mágica, causa e efeito por séculos se confundissem – das cabeças e das estórias dos seus Carroll, Lewis e Tolkien.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 25 de setembro de 2011.


A biblioteca e a Bíblia Grandes bibliotecas geralmente são também ótimos museus. Possuidoras de um rico acervo, elas frequentemente exibem, em local próprio, suas obras mais raras ou realizam exposições temporárias dedicadas a essa ou aquela temática. Esse é o caso da Bodleian Library, em Oxford, que visitei não faz um mês. Biblioteca da Universidade de Oxford e depósito legal de livros para o Reino Unido e a República da Irlanda (juntamente com a British Library/London, a University Library/Cambridge, a National Library of Scotland/Edinburgh, a Library of Trinity College/Dublin e a National Library of Wales/Aberystwyth), a Bodleian Library foi (re)fundada em 1602 por Sir Thomas Bodley (1545-1613) que, restaurando e expandindo a biblioteca já existente, a ela emprestou o seu nome. O seu acervo, basicamente para consulta e não para empréstimo, é contado em milhões (fala-se em mais de seis) em suas 80 milhas de estantes (subterrâneas, evidentemente). Coroada pelo belíssimo prédio da Radcliffe Camera, a Bodleian Library é cantada em verso e prosa como “a árvore do conhecimento em meio ao paraíso das musas”. Essa minha visita à biblioteca da Universidade de Oxford coincidiu com uma exposição comemorativa dos 400 anos da publicação da famosa Bíblia do Rei Jaime (“King James Bible”), para a qual estudiosos de Oxford, assim como de Cambridge, contribuíram enormemente. Embora a “Wycliffite Bible”, de fins do século XIV, seja considerada a primeira tradução completa da Bíblia para o inglês (e outras tenham surgido nos séculos imediatamente seguintes), a “King James Bible”, de 1611, é reconhecida como um dos mais importantes documentos da língua inglesa. Primeiramente, porque essa famosa tradução veio em um momento muito especial na história da Igreja Anglicana, quando essa religião, devido às sucessões no trono entre monarcas anglicanos e católicos, não estava completamente sedimentada. Para se ter uma ideia, Jaime ou James I da Inglaterra (ou James VI da Escócia, 1566-1625) 37


é filho da Maria Stuart (ou “Mary, Queen of Scots”, 1542-1587), católica fervorosa e grande rival de Elisabeth I (1533-1606) pelo trono da Inglaterra. E ele sucede precisamente Elisabeth I, anglicana, que havia sucedido Maria I (1516-1558), católica, ambas filhas de Henrique VIII (1491-1547), que havia criado a Igreja Anglicana. Não resta dúvida de que a “King James Bible”, ao lado de outras medidas, teve um papel fundamental na consolidação do Anglicanismo como religião oficial do Reino. Em segundo lugar, porque a “King James Bible”, desde a sua primeira publicação em 1611, acabou por ganhar, do seu impressor, a marca de “versão autorizada”, muito embora, segundo informa Graham Stewart (em “Britannia: 100 Documents that Shaped a Nation”, Callisto and Atlantic Books, 2010), isso não haja sido legalmente sancionado. O certo é que, devido à escala da sua produção (da primeira edição, cerca de 200 exemplares ainda sobrevivem) e ao sucesso da sua aceitação, ela acabou por tornar-se, a despeito da falta de uma chancela legal, a versão “oficial” da Bíblia para o mundo de língua inglesa (teríamos aqui um perfeito exemplo de “direito costumeiro”?), com repercussão, inclusive nas colônias americanas. Em terceiro lugar, dada a importância que a “King James Bible” acabou por ter para o próprio desenvolvimento da língua inglesa. Pelo menos até fins do século XIX (ou seja, por mais de 250 anos), consolidando um estilo, praticamente a mesma tradução continuou sendo sucessivamente impressa e distribuída, com apenas poucas discrepâncias. Aliás, entre essas poucas discrepâncias, curiosamente, uma versão de 1631 suprimiu o “não” do mandamento “Não cometerás adultério”, da lei destinada por Deus ao povo de Israel por intermédio de Moisés (Êxodo, 20, 14), o que, acredito eu, à época, fez a alegria de muitos. Pondo de lado essas curiosidades e mesmo levando em consideração as versões de mais fácil leitura produzidas ao longo do século XX, é inegável o impacto que a “King James Bible” teve – ao lado de outros documentos como, por exemplo, “The Canterbury Tales” de Geoffrey Chaucer e as obras completas de Shakespeare – na forma como, para as futuras gerações, se desenvolveu o inglês falado e se padronizou o 38


inglês escrito. Na Bodleian Library, em Oxford, você poderá conhecer essas e outras histórias. A exposição, didaticamente, põe juntos livros e documentos que mostram como o processo de tradução – levada a cabo por equipes que trabalharam no Merton College (um dos dois mais antigos colleges da Universidade) e no Corpus Christi College (onde, há coisa de 10 anos, estudei) – progressivamente tomou forma. Ela foca o trabalho realizado na tradução dos Livros de Isaías ao de Malaquias do Velho Testamento e na tradução dos Evangelhos, dos Atos dos Apóstolos e do Livro das Revelações do Novo Testamento, realizadas pelos dois grupos de tradutores. Não preciso dizer quão importante e belo é o material exposto, sobretudo os livros e os exemplares da “King James Bible”, com suas caligrafias rebuscadas e suas iluminuras, quase sempre retratando episódios das sagradas escrituras. Interessado em ver os raros e, sobretudo, belíssimos exemplares da “King James Bible” do acervo Bodleian Library, caro leitor? Sugiro, então, que corra. Pelo que me lembro, a exposição não sobreviveria à entrada do outono europeu. Mas mesmo que, ao ler este riscado, já seja tarde demais, não desanime. Vá. A visita à Bodleian Library, de todo jeito, valerá a pena. Nela, em qualquer das estações, você irá encontrar algo para ver tão interessante quanto...

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 2 de outubro de 2011.

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Oxford e Cambridge: as grandes rivais (I) Partindo, respectivamente, das estações de Paddington e King’s Cross, Oxford e Cambridge estão a menos de uma hora de trem de Londres (o trajeto de ônibus, embora mais barato, é um pouco mais demorado). De certa forma dominadas pelos rios que as cortam – a meu ver, Cambridge, pelo rio Cam, mais do que Oxford pelos rios Thames e Cherwell – estas duas pitorescas cidades de cerca de 150 mil habitantes (Oxford um pouco mais; Cambridge, um pouco menos) estão, seguramente, entre os mais visitados destinos turísticos do Reino Unido. Com histórias que retroagem à Idade Média, seus edifícios, monumentos e ruas, além da rara beleza, são, embora pareçam muito uniformes, representativos de todos os estilos arquitetônicos ingleses dos últimos 500 anos. E aqui vai uma dica bem pessoal: para qualquer tipo de turista, no caso de Cambridge, um passeio ali deve começar pela King’s Parade, rua/praça defronte ao lindíssimo King’s College que, pela sua localização, domina a geografia de cidade. No caso de Oxford, peço desculpas aos mais austeros, mas sugiro começar - e, também, terminar - no cruzamento entre a High Street, a Queen Street e a Cornmarket Street, que, além de estar perto de tudo, é o centro comercial da cidade. Afinal, como ninguém é de ferro, vem sempre a calhar fazer umas comprinhas. Sugiro, sobretudo, os livros que abundam nas inúmeras livrarias das imediações. No mais, Oxford e Cambridge têm um apelo muito especial para aqueles que gostam do chamado “turismo cultural”. E isso, claro, tem tudo a ver com as suas famosíssimas e rivais universidades, que são as mais antigas do mundo anglófono e estão entre as mais antigas do mundo todo. De fato, oficialmente, a Universidade de Oxford foi fundada em 1167, em uma tentativa do Rei Henrique II de barrar a evasão de estudantes ingleses para a Universidade de Paris. A Universidade de Cambridge, por sua vez, a partir de uma dissidência de estudiosos de Oxford, foi fundada em 1209, já sob a batuta do Rei Henrique III. Oxford e Cambridge - que juntas são conhecidas pela alcunha de


“Oxbridge”- estão entre as melhores universidades do mundo. Nos rankings elaborados para tanto, elas estão sempre disputando os primeiros lugares com as mais prestigiosas universidades americanas, como Harvard, o Massachusetts Institute of Technology - MIT, Stanford, Princeton e mais duas ou três de igual quilate. O sonho - e para a grande maioria não passará de um sonho - de muitos estudantes do ensino médio no Reino Unido é conseguir uma vaga em uma das duas universidades. Atualmente, tanto a Universidade de Oxford como a de Cambridge têm cerca de 20 mil alunos. Oxford talvez tenha um pouco mais; Cambridge, um pouco menos. A maioria, claro, é de estudantes de graduação, embora o número de pós-graduandos gire em torno de 30 ou 40 por cento do total, tendo isso um forte e positivo impacto no montante de pesquisas realizadas. Na quantidade de estudantes, elas não diferem muito da maioria das universidades que conhecemos, inclusive as da nossa terrinha, como é o caso da querida UFRN. Entretanto, afora a questão do tamanho - e leia-se aqui, tão somente, o número de alunos e não, claro, orçamento, pesquisas, publicações etc. –, as universidades de Oxford e Cambridge são instituições bem peculiares. Antes de tudo, está a questão de como elas se estruturam. Além da governança central (liderada, formalmente, por um “Chancellor” e, na prática, pelo respectivo vice), constituída dos departamentos, das faculdades, das “schools” e dos grandes museus, laboratórios e bibliotecas, as Universidades de Oxford e Cambridge, em um modelo dual que tende a se sobrepor, se organizam também em torno de um sistema de instituições independentes e autogovernadas (lideradas geralmente por um “Master”, “Principal”, “President” ou algo que o valha), denominadas “colleges”. Isso tem sua explicação no fato de essas universidades terem sido historicamente criadas a partir da aglomeração de instituições de ensino independentes, fundadas nas respectivas cidades. Aos colleges, necessariamente, estão vinculados todos os docentes (normalmente chamados de “fellows”) e os estudantes. Os colleges de Oxford e Cambridge, particularmente, são um misto de residência (com prédios próprios para tanto) e centro de estudos, com as chamadas “su41


pervisões”, que complementam as aulas dadas pelos departamentos. A Universidade de Oxford possui hoje 38 colleges (além de sete “private halls”); Cambridge, 31. Alguns colleges – como o King’s, o Trinity e o St. Jonh’s em Cambridge e, em Oxford, o All Souls, o Christ Church e o St. Jonh’s, apenas para dar alguns exemplos – são especialmente prestigiados. Alguns poucos colleges admitem apenas mulheres ou pósgraduandos. A grande maioria, entretanto, não faz qualquer distinção. Aliás, tendo o vocábulo “college” mais de uma acepção em inglês, é muito importante não confundir os colleges de “Oxbridge” com outros colleges, como é o caso do King’s College London – KCL, onde eu estudo, que são verdadeiras universidades, com uma organização toda própria. Muito embora, é importante frisar, o King’s College London – KCL faça parte da chamada “University of London” que, na verdade, é uma federação de quase duas dezenas de universidades, incluindo, por exemplo, além do KCL, a London School of Economics – LSE e o University College London – UCL. Coisa complicada de se entender, eu devo reconhecer. Por derradeiro, o mais importante: mantidas basicamente com dinheiro público, apesar de administradas “privativamente”, como a maioria das instituições de ensino superior do Reino Unido, o conhecimento produzido pelas universidades de Oxford e Cambridge – nas artes, nas ciências, na filosofia, na política, no direito, enfim, nos mais diversos ramos do saber – é inestimável. Mas disso, infelizmente, por falta de espaço, trataremos na próxima semana.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 09 de outubro de 2011.


Oxford e Cambridge: as grandes rivais (II) Como disse aqui na semana passada, no finalzinho do meu artigo, a contribuição das Universidades de Oxford e Cambridge para o conhecimento humano, através dos séculos, nos mais diversos ramos do saber, inclusive no direito, é algo inestimável. E essa história – somando-se, claro, ao próprio fato da fundação da Universidade de Cambridge a partir de uma dissidência de Oxford – acabou por gerar, como explica Ross Reyburn (em “The Great Rivals: Oxford versus Cambridge”, Pitkin Guides), uma imensa e produtiva rivalidade entre essas duas instituições. Primeiramente, para se ter logo uma ideia, a Universidade de Oxford se orgulha de manter a maior editora universitária do mundo, a Oxford University Press (fundada em 1478), que tem hoje como grande rival a excelente Cambridge University Press. Ademais, além das bibliotecas dos colleges e de excelentes bibliotecas especializadas, tanto Oxford como Cambridge contam com gigantescas bibliotecas centrais, consideradas entre as maiores e melhores do mundo, com acervos contados em milhões: a Bodleian Library e a University Library/Cambridge, respectivamente. Essas bibliotecas são, nos moldes da Biblioteca Nacional no Brasil, depósitos legais de livros para o Reino Unido e a República da Irlanda. Se não bastasse isso, ambas universidades também mantêm maravilhosos museus. Oxford, por exemplo, se orgulha do acervo de arte em geral do Ashmolean Museum, fundado em 1683 e considerado o mais antigo do Reino Unido e um dos mais antigos museus universitários do mundo. E ela ainda possui outros excelentes museus, como o “Museum of Natural History”, com os seus impactantes esqueletos de dinossauros e o seu vizinho, o “Pitt Rivers Museum”, com uma grandiosa coleção dedicada à arqueologia e à antropologia. Isso sem falar no “Museum of the History of Science”, no “Botanic Garden”, entre outros. Museus também não faltam à Universidade de Cambridge, começando pelo maravilhoso “Fitzwilliam Museum”, dedicado à arte em geral e a antiguidades, que se soma a quase uma deze43


na de outros museus especificamente dedicados à arqueologia, à antropologia, à zoologia etc. Em segundo lugar, Oxford e Cambridge orgulham-se de haver “educado” figuras de enorme destaque nos mais diversos “métiers”. Na política, por exemplo, Cambridge deu o primeiro e o mais jovem dos primeiros ministros do Reino Unido, Robert Walpole e William Pitt “The Younger”, respectivamente. Mas é Oxford que detém, disparadamente, entre todas as universidades do Reino, a preferência nessa ciência ou arte (ou, para alguns, modo de vida, às vezes vergonhoso), já tendo oferecido ao país 26 Primeiros Ministros (contra “apenas” 15 nomes de Cambridge), incluindo o atual, David Cameron. E a coisa não fica por aí. Oxford também se orgulha de haver “educado” presidentes da República (como o ex-presidente dos EUA, Bill Clinton) e primeiros ministros de vários outros países como, por exemplo, da Austrália, Canadá, Índia, Paquistão e por aí vai. Isso sem falar em reis e rainhas, como Herald V da Noruega e Abdullah II da Jordânia. Essa lista de personalidades da política talvez só não seja maior que a lista de escritores vinculados à Universidade de Oxford: Jonathan Swift, Samuel Johnson, Lewis Carroll, Oscar Wilde, Aldous Huxley, C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, Evelyn Waugh, Graham Greene, John Donne, Percy Shelley, T. S. Eliot, W. H. Auden e Philip Larkin, entre muitos – e bote muitos nisso – outros. Lista de escritores que, para alguns, bate a de Cambridge, que tem Christopher Marlowe, John Milton, Samuel Pepys, Lawrence Sterne, W. M. Thackeray, Kingsley Amis, John Dryden, William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, Lord Byron e Lord Alfred Tennyson, entre outros. Tenho lá minhas dúvidas e acho melhor ficar fora dessa polêmica. Aliás, nas letras, “as grandes rivais” não só “disputam” em nomes da ficção e da poesia. Na filosofia, por exemplo, Oxford nos deu Thomas More, John Locke, Thomas Hobbes e Jeremy Bentham; na economia, basta citar o pai de todos os entendidos, Adam Smith. Mas, nesse ponto, Cambridge contra-ataca com filósofos, como Erasmus de Rotterdam, Francis Bacon, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein, e com economistas do top de John Maynard Keynes e Thomas Malthus. 44


Na verdade, não é que Cambridge seja alheia ou dê uma menor atenção às artes (ou, com se dizia tempos atrás: Oxford foi feita para as artes; Cambridge, para as ciências). Até porque, ali, estão maravilhas da arquitetura que são verdeiras obras de arte, como a “Mathematical Bridge” e, sobretudo, a “King’s College Chappel” que, com os seus vitrais, é um dos mais belos edifícios de todo o Reino Unido. Mas é fato que Cambridge desenvolveu, ao longo dos séculos, uma história muito ligada às ciências. Apenas para se ter uma ideia, Isaac Newton e Charles Darwin, dois dos mais importantes nomes da história da humanidade, passaram por Cambridge. Isso sem falar em James Clerk Maxwell que, juntamente, com Newton e Einstein, é considerado, por muitos, inclusive pelo pai das teorias da Relatividade Geral e Especial, um dos maiores físicos de todos os tempos. Ou em Charles Babbage e Alan Turing, pais da ciência da computação que hoje conhecemos. Aliás, pais e pioneiros não faltam em Cambridge. No que toca à física nuclear, por exemplo, foi em Cambridge, em 1932, seguindo os passos de pioneiros como J. J. Thomson e Ernest Rutherford, que Ernest Walton e John Cockcroft realizaram, pela primeira vez na história, a cisão do átomo de maneira controlada. Assim como foi em Cambridge que, em 1953, Francis Crick e James Watson descobriram a estrutura do DNA, o que lhes deu, juntamente com Maurice Wilkins (que trabalhava no Kings College London - KCL, onde eu estudo), o Prêmio Nobel de Medicina de 1962. E eles são apenas dois dos oitenta e tantos prêmios Nobel da Universidade de Cambridge, número que nenhuma outra universidade conseguiu bater. Ainda hoje, confirmando esse pendor para as ciências, é professor de Cambridge Stephen Hawking, talvez, a partir do seu livro “A Brief History of Time” (1988), o mais popular cientista do nosso tempo. É fato também que a rivalidade – no geral, uma boa rivalidade – entre Oxford e Cambridge faz hoje parte da “British Culture”. Nos esportes, por exemplo, a disputa de remo entre elas, iniciada em 1829 e que se dá anualmente no Rio Tâmisa em Londres, já virou uma instituição nacional. Eu mesmo já fui assistir a essa “corrida” mais de uma vez. De minha parte, parodiando o nosso Jorge de Altinho e sua canção “Petro45


lina-Juazeiro”, eu gosto de Oxford, mas adoro Cambridge. Confesso que, nos esportes, sou fã de Cambridge, já que ela nos deu, em 1863, as regras fundamentais do Futebol, o esporte favorito, não só meu, mas de bilhões, mundo afora. Por falar em futebol, peço perdão por deixar a parte “jurídica” de Oxford e Cambridge para outra oportunidade. Já está começando o jogo do meu ABC.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 16 de outubro de 2011.


Sobre “O nome da rosa” (I) “O nome da rosa” (de 1980 e, no original, “Il nome della rosa”) é o romance de estreia de Umberto Eco (1932), renomado filósofo, filólogo, semiólogo e bibliófilo italiano, cuja obra ensaística abarca várias temáticas, como literatura, cinema, televisão, artes plásticas, arquitetura e por aí vai. A ele se seguiram os romances “O Pêndulo de Foucault” (1988), “A ilha do dia anterior” (1994) e, mais recentemente, “O cemitério de Praga” (2011), entre outros. Isso sem nunca haver Eco abandonado sua obra ensaística que, por sinal, é vastíssima. Poucos livros me encantaram tanto quanto “O nome da rosa”. A temática do romance e a sua qualidade, certamente, tiveram um papel fundamental nisso. Mas, no meu “caso”, o romance de Eco tem um componente bem especial: por um acaso, após a leitura das primeiras páginas do livro, assisti a algumas cenas do filme homônimo, “O nome da rosa” (de 1986 e, no original em alemão, “Der Name Der Rose”), dirigido por Jean-Jacques Annaud e estrelado, entre outros, por Sean Connery, Christian Slater e F. Murray Abraham. Essa experiência visual, que recomendo a todos, me fez enxergar, de uma maneira toda especial, ao percorrer cada página do livro, o cenário onde se passam os sete dias de “crimes e castigos” tão bem imaginados na pena do famoso simbolista, sobretudo a antiquíssima abadia da Itália Medieval e sua labiríntica biblioteca. E é dessa mistura de livro e filme que eu gostaria de falar aqui. Em “O nome da rosa”, alegadamente, Eco reproduz um manuscrito de um frade chamado Adso de Melk que, quando jovem, teria presenciado os terríveis acontecimentos narrados no livro. Esse manuscrito teria ficado escondido por séculos no belíssimo mosteiro de Melk, localizado na Áustria (que, nas pegadas de “O nome da rosa”, já faz alguns anos, fui visitar na companhia dos meus pais). O manuscrito/enredo de “O nome da rosa”, todo ambientado na citada abadia medieval, está dividido em sete dias. Cada dia, por sua vez, está subdivido em períodos correspondentes às horas litúrgicas: matinas, laudes, primeira, 47


terceira, sexta, nona, vésperas, completas. Seguindo a veia dos romances policiais, o enredo gira em torno das mortes de sete monges nos sete dias seguidos, em circunstâncias as mais extraordinárias. Mortes que, a pedido do Abade (interpretado no filme por Michael Lonsdale), o protagonista Guilherme de Baskerville (interpretado por Sean Connery), ajudado pelo seu pupilo Adso de Melk (personagem de Christian Slate), nos moldes de uma relação Sherlock Holmes/Dr. Watson, tenta desvendar. E isso tudo coincide com um encontro para discussão de intricadas questões teológicas, cuidadosamente acertado para se dar na antiquíssima abadia, entre frades franciscanos e uma legação papal, da qual faz parte um dos maiores inquisidores da história (real) da Igreja, Bernardo Gui (personagem de F. Murray Abraham). Entretanto, de uma erudição ímpar e cheio de citações em latim, “O nome da rosa”, apesar dos acontecimentos narrados, não é simplesmente uma história de crimes. Se, de certa forma, pode parecer um romance policial, ele é também, no conteúdo, um maravilhoso estudo do período medieval, sobretudo da vida religiosa no século XIV e das ideologias – heréticas ou não – no seio da Igreja de então. Nas aventuras de Guilherme de Baskerville e Adso de Melk, com doses aproximadas de crueldade, malícia e humor, misturam-se sexualidade, poder, demagogia, mistificação e os conflitos envolvendo os movimentos religiosos do século XIV (como, por exemplo, entre os seguidores do santo Francisco e do controverso, para dizer o mínimo, Dulcino). Através de personagens fictícias, ouvimos as vozes de vultos que fizeram a história da cristandade, como São Tomás de Aquino (12251274, padre dominicano, filósofo, teólogo, expoente da Escolástica e o Doutor Angélico da Igreja Católica) e São Boaventura de Bagnoregio (1214-1274, Geral dos Franciscanos, filósofo, teólogo, o Doutor Seráfico da Igreja Católica). E dessas figuras históricas, algumas são feitas, com a permitida dose de ficção, personagens do romance, como são os casos de Michele de Cesena (1270-1342, frade franciscano e Geral da Ordem, deposto, excomungado e reabilitado post mortem pelo Papado), de Ubertino de Casale (1259-1329, também frade franciscano, místico, que se opôs à materialidade no seio da Igreja) e do temido inquisidor 48


Bernardo Gui (1261-1331, frade dominicano, bispo e escritor prolífico da Idade Média). A própria Inquisição do período medieval – que é tida por inaugurada em 1184 na França para combater a heresia dos chamados cátaros e é a mãe de todas as demais formas de Inquisição – também é um tema central na obra. Por fim, para mim, no sentimento, “O nome da rosa” é – diretamente e a partir de inúmeros simbolismos – uma estória sobre livros e uma história do Direito. Mas sobre isso nós conversaremos, bem “devagarzinho”, na semana que vem.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 23 de outubro de 2011.

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Sobre “O nome da rosa” (II) Na semana passada, ao tentar resumir a temática e o enredo de “O nome da rosa” (1980), eu disse que a obra-prima de Umberto Eco, além de ser um romance policial e um estudo sobre a religião no período medieval, era, no meu sentimento, diretamente e a partir de inúmeros simbolismos, uma estória sobre livros e uma história do Direito. Explico melhor. Primeiramente, no que toca a ser “O nome da rosa” uma estória sobre livros, basta lembrar que a expressão “o nome da rosa”, segundo registra a edição brasileira do livro que possuo (de 1983, com o selo da Nova Fronteira), era usada na Idade Média para significar o infinito poder das palavras. Sob esse sentido, a rosa do livro, palco dos acontecimentos narrados, é a grande biblioteca do convento da Ordem Beneditina, na qual estariam guardadas – e, sobretudo, escondidas – maravilhas da escrita e da arte das iluminuras, majoritariamente de origem grega e latina, heréticas ou não, em uma época em que, antes da invenção da imprensa por Gutenberg (1400-1468), a Igreja detinha, no Ocidente, o monopólio do conhecimento. A biblioteca é um labirinto, infinito e cheio de desvios, como se assim fosse –e verdadeiramente o é – a sabedoria da humanidade simbolizada nos livros (e essa biblioteca “borgeana”, descrita e desenhada no livro de 1980, é, para minha satisfação, maravilhosamente mostrada no filme de 1986). Na trama, entre as preciosidades guardadas nesse labirinto, estaria um último exemplar de um suposto segundo livro da poética de Aristóteles, desaparecido há séculos e que versaria, favoravelmente, sobre o riso. A descoberta dessa obra do grande filósofo grego (em voga à época a partir da sua releitura pela escolástica de São Tomás de Aquino) é exatamente o móvel para os muitos crimes praticados, já que o assassino - o venerável e cego frade Jorge, como se descobre ao final da trama - acredita que, a partir do riso, os homens deixariam de temer tanto ao demônio como a Deus. Em segundo lugar, em sendo Eco professor de semiótica, um simbolismo todo especial perpassa a obra, com referências e homenagens a 50


inúmeras figuras da literatura. O citado “venerável Jorge” é uma homenagem ao argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), escritor sem igual, bibliotecário, bibliófilo e cego no final da vida. Guilherme de Baskerville é uma mistura do frade franciscano, filósofo e teólogo escolástico inglês Guilherme Ockhan (1285-1347, o criador da famosa “navalha”, princípio que, sabiamente, afirma que a explicação mais simples é normalmente a melhor) com o Sherlock Holmes de “O Cão dos Baskervilles” (1902), de Arthur Conan Doyle (1859-1930). Aliás, já em uma das primeiras passagens do livro (às fls. 37-39 da edição a que já me referi), Guilherme de Baskerville desvenda o mistério do desaparecimento do famoso cavalo da abadia à maneira - elementar - de Holmes, cena que, curiosa e infelizmente, se não me engano, desaparece na versão cinematográfica de 1986. A personagem Adelmo de Otranto, o primeiro frade morto, é, certamente, uma referência à principal obra do escritor inglês Horace Walpole, “O Castelo de Otranto” (1764), que é considerada como fundadora do romance gótico. O narrador, Adso, além da rima com Watson, é de Melk, “coincidentemente” cidade e abadia da Áustria que possui uma das mais belas bibliotecas da humanidade. E por aí vai. E para os estudiosos do Direito, além do caráter de romance policial (que já tem tudo a ver com o Direito), chama logo a atenção o “injusto” julgamento que, dentro dos muros da abadia e com grande destaque para a narrativa, é levado a cabo pelo representante da Inquisição e do poder papal, o temido Bernardo Gui. Desse julgamento, anotei algumas coisas. Um dos frades acusados, apesar de mentalmente incapaz, é julgado e condenado. Outro religioso é condenado pelo que fez e, sobretudo, pelo que não fez. E a menina camponesa, a outra rosa do livro e do filme (neste, uma rosa sem nome), é levada à criminalidade e à danação pela miséria e pela fome, num caso clássico de crime famélico, tão bem definido e defendido por São Tomás de Aquino. Isso sem falar nos métodos utilizados, pelos agentes da Inquisição e do Estado papal, para obter a condenação que incluíam – como se muito natural isso fosse – os mais variados tipos de tortura. Como se vê em “O nome da rosa”, os tribunais da Inquisição não eram permanentes, sendo criados, numa clara ofensa ao que hoje chamamos de princípio do juiz na51


tural, para e quando surgisse um suposto caso de heresia. O condenado pela Inquisição, em regra, era entregue ao Estado (poder secular), que executava as penas, como o confisco de bens, a privação da liberdade e a pena de morte, muitas vezes na fogueira, como em “O nome da rosa”. A Inquisição, portanto, é o tema – central para a obra, frise-se – que faz de “O nome da rosa”, definitivamente, um romance que interessa também ao Direito, incluindo o direito brasileiro. Criada na França com fim de combater a heresia, ela dali foi para a Espanha, transformandose, com o reconhecimento do Estado, na cruel Inquisição espanhola (1478-1821). Sob o controle da casa real hispânica, ela veio bater na América. E a Inquisição portuguesa, que deságua no Brasil e muito interessa a nós, foi criada em 1536 e, oficialmente, existiu até 1821. Entidade jurídica de grande complexidade, com objetivos ideológicos, econômicos e sociais disfarçados, a Inquisição, para os padrões atuais, representa a antítese do Direito ou, mesmo se considerado o seu reconhecimento formal pelo Estado, um Direito sem Justiça. Ao longo do século XIX, os tribunais da Inquisição foram sendo suprimidos na Europa. Apenas a Inquisição romana ou “Congregação da Sacra, Romana e Universal Inquisição do Santo Ofício” sobreviveu à entrada do século XX. Em 1908, sendo Papa Pio X, a instituição foi rebatizada como “Sacra Congregação do Santo Ofício”. E, finalmente, em 1965, por ocasião do Concílio Vaticano II, já sob o pontificado de Paulo VI, mas sob o influxo das primeiras transformações na Igreja sob o papado de João XXIII, teve, segundo se reconhece, o seu fim. Em seu lugar, temos hoje a “Congregação para a doutrina da Fé”. Bom, “O nome da rosa” é um livro que, para os que amam ou não o Direito, eu recomendo sem titubear. Só não empresto o meu exemplar porque ele, de tanto manuseado, já não aguenta mais uma viagem. No mais, amigo leitor, quer um conselho? Leia uma pequena parte do livro e pare um instante. Assista a algumas cenas do filme, poucas e aleatoriamente. Não digo que as imagens valerão mais que mil palavras; mas, com certeza, enriquecerão as palavras a serem, a seguir, lidas. Aliás, não era assim que pensavam os monges de Eco e dos mosteiros de antanho, em mil e uma noites e dias de trabalho, desenhando as suas belíssimas iluminuras? 52

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 30 de outubro de 2011.


O primeiro café A minha ideia para o artigo desta semana era, continuando na toada de tratar dos “Founding Fathers” dos Estados Unidos da América, escrever sobre Benjamin Franklin (1706-1790), por muitos chamado de “o primeiro americano”, o que denota tanto o seu vanguardismo como a sua proeminência no movimento que levou à criação daquele imenso país. Figura de proa do iluminismo americano, Franklin foi, conta a história, o perfeito polímata: político, diplomata, filósofo, jurista, ativista, escritor, editor, cientista e inventor, entre muitas outras coisas. Um riquíssimo material que daria, se tivesse alguma sorte, mais de um artigo. Todavia, não calculei bem as coisas. Acabei viajando para a França, onde estou agorinha mesmo, em período de estudos, restando a sequência de artigos sobre a fundação dos Estados Unidos um pouco fora do meu contexto atual. Mudando de ares, devo mudar de temática, acredito. Ir do “novo” para o “velho mundo”. Mas farei isso suavemente, usando, para que ninguém fique magoado, o próprio Benjamin Franklin como mote para chegar a Paris. Para quem não sabe, Franklin – além de “Founding Father” dos Estados Unidos da América, inventor dos óculos bifocais e um dos “pais” da eletricidade (cuja figura segurando uma pipa com uma chave de metal em meio a uma tempestade de raios está consagrada no imaginário popular) –, foi também um diplomata de muito sucesso, representando, por muitos anos, de 1776 a 1785, o governo do seu país na França. De fato, prestamos (tenho uma cúmplice que serve também de testemunha), logo na nossa primeira parada em Paris, uma homenagem ao “primeiro americano”. Fomos, para uma refeição suave e um bom café (um dos objetivos mais lúdicos da nossa viagem), ao “Le Procope”, famosíssimo restaurante/café que fica no número 13 da Rue de l’Ancienne-Comédie, em Saint-Germain-de-Prés, perto de onde, outrora, fervilhava o teatro da Comédie-Française (que hoje está situado adjacente ao Palais Royal, na Place Colette 1, muito próximo do Louvre). 53


Benjamin Franklin, a história registra, foi um habitué do velho “Le Procope”. O tal “Le Procope” tem uma história riquíssima. Foi fundado em 1686 pelo siciliano Francesco Procopio dei Coltelli (1651-1727) como o primeiro “café-glacier” de Paris. Em grande parte pela proximidade com o teatro da Comédie-Française (sem tirar, claro, o mérito do seu bom café), ganhou o apreço da sociedade e da intelectualidade parisiense (para não dizer mundial). Virou moda entre ocupados e desocupados (a meu ver, dois públicos bem distintos dos cafés). O século XVIII “foi o período áureo do Café Procope”, como lembra Colin Jones em “Paris: uma biografia da cidade” (L&PM Editores, 2009). Vários filósofos iluministas, intelectuais e escritores – Voltaire, Rousseau, Mercier, Beaumarchais, Diderot, d’Alambert e por aí vai – eram “habitués” do local. Li num livro que possuo, “Literary Paris: A Guide”, de Jessica Powell, que a famosa “Encyclopédie”, dos citados Diderot e d’Alambert, foi “gerada” no “Le Procope” (acredito piamente ser verdade). Voltaire, talvez o seu cliente mais fiel, tem, até hoje, sua mesa habitual reservada para qualquer eventualidade. No período pré-revolucionário, Danton, Marat, Robespierre e Desmoulins e vários outros destacados membros da turminha “sans-culotte” (que era do barulho) andaram “tocando o terror” naquelas mesas. E o nosso Benjamin Franklin, à época apenas de passagem pela França, teria revisado ali – acredito que cuidadosamente – o texto da Constituição dos Estados Unidos da América. O século XIX foi ainda de grande movimento para o “Le Procope”. Intelectuais como Victor Hugo, Honoré de Balzac, Alfred de Musset, George Sand e, mais tarde, Paul Verlaine e Oscar Wilde, entre muitos outros grandes da intelligentsia francesa e europeia como um todo, baixavam por lá. O século XX, entretanto, assistiu ao declínio do “Le Procope”, chegando ele a ser fechado por certo período. Ressurge remodelado, em 1988, como restaurante/café, cheio de tesouros refletindo sua história (manuscritos, fotos muito antigas, velhos mapas etc.), entre eles um busto de Benjamin Franklin, o “primeiro americano”, do qual logo nos 54


aproximamos. É verdade que hoje o “Le Procope” está muito modificado se comparado com o tempo de Ben Franklin. É um restaurante/café que atende, sobretudo, ao turismo internacional. Mas adoramos a experiência. Estava a três minutos de caminhada do nosso pequenino hotel em Saint-Germain-de-Prés (o melhor bairro para se hospedar em Paris, estou cada vez mais certo disso). A comida é boa. O café é excelente. Os preços são justos. E foi assim que batemos um papo no “primeiro café” de Paris com o “primeiro americano” tomando os nossos “primeiros expressos”. Só achei o cidadão muito calado…

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 13 de abril de 2014.

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O futuro da biblioteca Segunda passada, na belíssima Gare Du Nord, em Paris, tomamos o Eurostar, o trem de alta velocidade que liga, através do Eurotúnel, o Continente Europeu à Grã-Bretanha. Destino: Estação de St. Pancras Internacional, em Londres. Mesmo por baixo da água, chegamos muito bem, registro. Fazia mais de um ano que não punha os pés na cidade que, por mais de quatro anos, quando do meu doutorado no King’s College London, me recebeu muito bem (e a ambos, cidade e universidade, mais uma vez agradeço). Londres, pelo que vi, não mudou muito. E isso inclui, no mês abril, infelizmente, o frio e a chuvinha de estilo. Mas, tirando de lado esses “pequenos” aborrecimentos que o turista há de transpor (se quer “passar além do Bojador”), tudo está “nos conformes”. Pontos turísticos, monumentos, museus, bibliotecas, pubs, metrô, avenidas e ruelas, tudo está lá. Sempre (ou quase sempre, pois nada é perfeito) organizado, limpo e, sobretudo, muitíssimo seguro, considerados os padrões da nossa terrinha (que, no quesito segurança, anda merecendo nota zero). Lá ainda está, por exemplo, a maravilhosa British Library (www. bl.uk), situada, precisamente, no número 96 da Euston Road, adjacente à estação de trem/metrô de St. Pancras Internacional, por onde, já disse, chegamos em Londres (vizinho também fica a estação de King’s Cross, mais antiga, que também vale uma visita). Um gigantesco prédio inaugurado, em 1988, pela Rainha Elizabeth II em pessoa. Tendo por mote nossa chegada a Londres via estação de trem/metrô de St. Pancras, recordo, saudoso, minhas visitas a British Library. No meu último ano de estudos em Londres, morava no bairro de Bloomsbury, a cerca de dez minutos de caminhada da biblioteca. E toda vez que podia, dava um pulo lá para estudar, visitar as exposições ou apenas para tomar um café vendo o tempo passar. 56


Depósito legal de livros para o Reino Unido e a República da Irlanda (juntamente com a Bodleian Library/Oxford, a University Library/ Cambridge, a National Library of Scotland/Edinburgh, a Library of Trinity College/Dublin e a National Library of Wales/Aberystwyth), a British Library recebe uma cópia de cada livro publicado por essas bandas. O acervo da British Library é gigantesco. Mais de 150 milhões de itens, em quase toda língua imaginável, incluindo livros (obviamente), manuscritos, mapas, jornais, revistas, desenhos, arquivos de música, selos e por aí vai. Cerca de três milhões de itens são adicionados a cada ano. Segundo propaga a própria biblioteca, atualmente, para hospedar a imensa coleção, são mais de 625 quilômetros de estantes, com previsão de crescimento de mais doze a cada ano. Espaços individuais de leitura são mais de 1.200. E se um leitor desejasse consultar cinco desses itens por dia, levaria mais de 80.000 anos para xeretar todo o acervo. A British Library, à semelhança de outras grandes bibliotecas, é também um riquíssimo museu (e gratuito!!!). A biblioteca exibe, em local preparado para tanto (a “Sir John Ritblat Gallery”), como exposição permanente, algumas de suas peças mais valiosas, chamadas de “Treasures of the British Library”. A lista inclui: os Evangelhos de Lindisfarne; o “Diamond Sutra” (segundo a Biblioteca, o mais antigo livro impresso inteiramente conservado); uma Bíblia de Gutemberg; partituras originais de Handel, Mozart e dos Beatles; manuscritos ou primeiras de edições das obras de Lewis Caroll, Charles Dickens, Jane Austen, James Joyce e muitos outros gênios da literatura; um belo exemplar do Primeiro Fólio de Shakespeare; a primeira edição do “The Times”; e por aí vai. Para os interessados no Direito, a British Library possui, como uma das joias da sua coleção, um dos “originais” da Magna Carta (também chamada de Magna Carta Libertatum ou Grande Carta das Liberdades). Originalmente escrita em latim, a Magna Carta é um dos documentos mais importantes da história do direito, não sendo exagero dizer, também, da Humanidade. Diz-se, por exemplo, estar na Magna Carta a origem do habeas corpus, já que ela garante, pelo menos implicitamente, a expedição dessa ordem para o caso de prisão ilegal. Sem dúvida, ela 57


foi um dos grandes dos passos dados em direção ao constitucionalismo moderno. Segundo a própria Biblioteca, aparentemente, não existiu um “original” da Magna Carta, formalmente assinado em 1215 (como seria de praxe hoje em dia). Foram muitos os “originais” da Magna Carta produzidos à época, sendo enviados para serem guardados em lugares supostamente seguros, como catedrais, abadias etc. Apenas quatro sobreviveram e dois desses estão na British Library. E, afora a sua coleção permanente, a British Library sempre nos presenteia com exposições temporárias fantásticas. Das que vi, a de que mais gostei foi uma sobre ficção científica (e aqui relembro ao leitor a crônica da semana passada, sobre Jules Verne), denominada “Out of this World – Science Fiction: but not as you know it”. A exposição, dividida em subáreas (“mundos alienígenas”, “universos paralelos”, “mundos futuros”, “mundos virtuais”, “mundos perfeitos” e “o fim do mundo”), contava a história da ficção científica nos últimos dois mil anos, prevendo, ainda, o que é maravilhoso, o “futuro” da ficção científica. Até hoje, folheio, sonhador, o belíssimo livro/catálogo da exposição, que comprei, encantado, na “lojinha” – melhor definida como uma livraria que vende livros sobre livros – da British Library. De minha parte, relembro, com uma saudade gostosa, os momentos passados na grande biblioteca. Outro dia, me disseram que saudade às vezes é bom. É mesmo. Já para você, caro leitor, se um dia for ou voltar a Londres, chegando ou não pela Estação de St. Pancras Internacional, recomendo dar um pulo na British Library. Pode ter certeza, tem futuro!!!

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 27 de abril de 2014.


Minhas livrarias em Londres (I) Seria exagero dizer que se trata de um turismo popular, mas é fato que, ultimamente, tem-se visto, sobretudo na Europa, um interesse cada vez maior da “indústria” do turismo para com a literatura. Chamemos de “turismo literário”, na falta de uma expressão mais justa, esse tipo de entretenimento. Não falo da literatura de viagem, à moda de Goethe (1749-1832) ou Stendhal (1783-1842), algo correlato e interessantíssimo, que, às vezes, modestamente, faço aqui, se é que não estou fazendo agora. Falo de um turismo cultural - com roteiros, guias, livros etc. -, voltado, especificamente, para aqueles que amam ou têm interesse na literatura. Eu mesmo já citei, aqui, inúmeros livros do gênero: “Literaty Paris: A Guide” (de Jessica Powel, publicado pela The Little Bookroom, 2006), “Writers in Paris: Literary Lives in the City of Light” (de David Burke, publicado pela Counterpoint, 2008) e “À luz de Paris: guia turístico e literário da capital francesa” (de João Correia, publicado pela LEYA, 2012). São apenas alguns exemplos, escolhidos porque estavam na prateleira mais próxima quando decidi escrever este riscado. Como esses, sobre Paris, Londres, Roma e outras paragens menos votadas, conheço dezenas. De minha parte, voltando de Londres esta semana, vou dar, nessa onda do “turismo literário”, algumas dicas para aqueles que, pensando em viajar ao Reino Unido, adoram livros. Escreverei, em três ou quatro crônicas, sobre “minhas livrarias em Londres” (e outras coisitas mais, porque “turistar” apenas em livrarias “ninguém merece”). Para dar uma sistemática à coisa, vou restringir minhas “sugestões” a duas ou três regiões de Londres, exatamente as que mais conheço. Outrora curioso da obra de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), mesmo sem saber até hoje se entendi algo da filosofia do cidadão, sou seguidor do lema: “sobre o que não se pode falar, melhor calar”. Começo pelo bairro que por último morei em Londres: Bloomsbury (estação de metrô Russell Square ou, um pouco mais ao sul, estação Holborn), bairro fantástico, imediatamente ao norte do badalado 59


Covent Garden, facilmente percorrível a pé, onde ficam, entre outras coisas, o Museu Britânico e a estrutura central da Universidade de Londres. Tradicionalmente ligado à intelectualidade, ali se reunia, por exemplo, na primeira metade do século XX, o “Grupo de Bloomsbury”, com Virginia Woolf (1882-1941), E. M. Forster (1879-1970), Lytton Strachey (1880-1932) e John Maynard Keynes (1883-1946), entre outros, escritores/pensadores cujos trabalhos muito influenciaram a literatura, a crítica literária e de arte, a filosofia e a economia ocidentais até os nossos dias. Algumas livrarias de Bloomsbury, aliás, eu até já mencionei aqui. Por exemplo, a “London Review of Books”, que fica a uma quadra do Museu Britânico (no número 14 da Bury Place). Charmosíssima, pequenina, composta de um pavimento térreo e de um subsolo, com um café que recomendo experimentar. Visita ao museu e um expresso na charmosa livraria. Quer algo melhor? Aqui já falei também sobre a “The Book Warehouse”, que fica no número 120 da Southampton Row, a duas ou três quadras do flat onde morei por quase um ano. Convenientemente, fica aberta até às 22 horas, o que é raro no comércio londrino. Pequenina, com apenas um pavimento térreo, vende livros novos a preços promocionais (mas não é um sebo). Para quem gosta de economizar como eu, é uma maravilha. Sempre se acha algo. Ou se acha muito, como dessa última vez, o que causou um sobrepeso nas nossas malas, apenas resolvido com a ajuda do serviço postal do Reino Unido, o “Royal Mail”, que é eficiente, mas dolorosamente caro. E não para por aí: à semelhança da “The Book Warehouse” (que é uma cadeia com várias lojas espalhadas pelo Reino Unido, faltou dizer), tem-se, ainda no mesmo bairro, bem em frente à Biblioteca Britânica, várias outras pequenas livrarias vendendo livros novos a preços especiais (por 2 ou 3 libras muitas vezes). Não recordo os seus nomes, mas são facílimas de encontrar na altura do número 96 da Euston Road, onde fica a famosa biblioteca (que, por óbvio, deve ser também turisticamente visitada). E por falar na British Library, não esqueçamos sua lojinha, melhor 60


definida, como eu disse aqui na crônica da semana passada (vide “O futuro da biblioteca”), como uma livraria que vende livros sobre livros. O “turista literário”, se procura por títulos como “1000 Years of English Literature”, “A Book Addict’s Treasury”, “Libraries within the Library”, “Books as History”, “Form and Meaning in the History of Books” e por aí vai, ali os encontra, como diria o nosso Castro Alves (1847-1871), “à mão cheia”. Mas não só de pequenas livrarias e lojinhas vive o bairro Bloomsbury. Tem-se a colossal livraria Waterstones (que serve aos professores e estudantes da Universidade de Londres) e os sebos, que são muitos, grandes e pequenos. Isso sem falar nas livrarias jurídicas, mais ao sul de Bloomsbury, nas cercanias das estações de metrô de Holborn e Chancery Lane. Mas isso é assunto para a nossa próxima conversa.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 4 de maio de 2014.

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Minhas livrarias em Londres (II) Dando sequência à crônica da semana passada, na toada do “turismo literário”, vou continuar falando do bairro de Bloomsbury e de suas livrarias. Como já disse aqui, Bloomsbury é um bairro tradicionalmente ligado à intelectualidade. Basta lembrar que ali estão os prédios principais da Universidade de Londres. E quem conhece bem a capital do Reino Unido sabe que essa região concentra um bom número de livrarias/sebos, sendo um dos polos a serem visitados por aqueles interessados nesse, até certo ponto bizarro (reconheço), “turismo de livrarias”. Por falar na Universidade de Londres, é bem pertinho da “Senate House”, – sede da administração central da Universidade, prédio de gosto duvidoso, mas que merece uma passada – que fica a gigantesca livraria Waterstones (na verdade, uma das lojas dessa rede de livrarias). Fica no número 82 da Gower Street (de metrô, sugiro descer exatamente na estação Gower Street), também muito pertinho da sede principal do University College London - UCL (uma das universidades da Universidade de Londres), prédio belíssimo que merece ser visitado tanto pela sua arquitetura como para prestar homenagem ao grande filósofo e jurista Jeremy Bentham (1748-1832) que, embalsamado e modelado em cera, ali dá as boas-vindas aos curiosos. Servindo a professores e estudantes da Universidade de Londres, a Waterstones de Bloomsbury vende de quase tudo: livros novos e de segunda mão (bastante em conta), revistas, periódicos, DVDs e por aí vai. Provavelmente a maior livraria de Londres, ali você gastará, com certeza satisfeito, algumas ou muitas libras. Mais a leste em Bloomsbury (metrô Russell Square), na vizinhança do “Brunswick Shopping Centre”, um misto de prédio de apartamentos e shopping center simpaticíssimo (com lojas, pequenos restaurantes, cinema de arte e um excelente supermercado, embora haja uma opinião em contrário), há um famoso polo de sebos da cidade. São muitos, grandes e pequenos, para todos os gostos. Há, por exemplo, o Judd Books (número 82 da Marchmont Street), que, além do grande acervo volta62


do às artes e às ciências sociais, comercializa livros acadêmicos novos ou de segunda mão a preços muito convidativos. Mas, nessa região, destaco, em primeiríssimo lugar, o Scoob Books. Gigantesco, talvez o maior sebo que já frequentei. Fica no subsolo do “Brunswick Shopping Centre” (loja 66), fazendo ainda uso, para fins de estoque e para atender clientes mais exigentes, de armazéns da região. Por sinal, lá levei o nosso conterrâneo Alex Medeiros, em passagem por Londres, para garimpar algo sobre futebol e os beatles; e ele, embora amigo meu, sobre a qualidade de um sebo, não me deixaria mentir. Já mais ao sul de Bloomsbury (já em direção à “City of London”), fica o que muitos chamam de “Legal London” (ou “Londres jurídica”, em razoável português), onde, além do majestoso prédio das “Royal Courts of Justice” (sede tanto da “High Court of Justice” como da “Court of Appeal”), se acham as quatro “Inns of Courts” de Londres: “Lincoln’s Inn”, “Inner Temple”, “Middle Temple” e “Gray’s Inn”. É exatamente entre o “Lincoln’s Inn” e o “Inner Temple” que ficam, pelo que eu conheço, as duas melhores livrarias jurídicas de Londres. A primeira delas é a Hammicks Legal Bookshop, que, muito fácil de achar, fica nos números 191-192 da famosíssima Fleet Street. A outra, a meu ver com acervo ainda maior, é a Wildy & Sons, que, pitorescamente escondida, tem sua entrada através da bela arcada do “Lincoln’s Inn” (Lincoln’s Inn Archway, Carey Street). Por fim, caro leitor, despedindo-me do bairro de Bloomsbury, vai uma recomendação e uma promessa: mesmo se você já estiver enfadado dessa coisa de livrarias, sobretudo de livrarias jurídicas, não deixe de visitar a “Legal London”. Não deixe, sobretudo, de conhecer as “Inns of Courts”. Enormes, belíssimas, construídas no decorrer de séculos, as “Inns of Courts”, fisicamente, são conjuntos de prédios, com jardins, igrejas, bibliotecas e escritórios, administrados em forma de sociedade/ condomínio, para fins de abrigar e congregar as atividades de várias centenas de profissionais do direito (basicamente, de “barristers”, que, ao lado dos “solicitors”, formam um dos dois grupos de advogados no Reino Unido). Vale mais que a pena, por exemplo, dar um pulo no “Inner Temple” para curtir a interessante arquitetura e visitar a badalada 63


Igreja dos Templários, retratada, romanceadamente, no “Código Da Vinci”, de Dan Brown (1964). Assim como vale a pena, como fizemos dia desses, aproveitando o pouquinho de sol da manhã, passear pelos jardins e praças do “Lincoln’s Inn”, que, para mim, é um dos mais belos sítios de Londres. Aliás, sobre as “Inns of Courts” e a “Legal London” como um todo, um dia, escreverei aqui. Contando com a bênção do Criador, isso eu legalmente prometo.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 11 de maio de 2014.


Minhas livrarias em Londres (III) Covent Garden é, na minha opinião, o mais charmoso lugar de Londres. Fantástico para morar, hospedar-se ou, simplesmente, vadiar em uma tarde de sol (o que, considerando os preços dos aluguéis e dos hotéis em Londres, sai bem mais em conta). Muito central, fica perto de tudo: da badalação de Leicester Square, de Piccadilly Circus e da Oxford Street, do Parlamento e da Abadia de Westminster, do rio Tâmisa e de inúmeros outros sítios famosos. Na sua mistura, tem de tudo: o famoso mercado, hotéis, teatros, lojas, restaurantes e muitos pubs. E tem, claro, nos seus limites e ao seu derredor (aqui incluo as regiões de Leicester Square e Piccadilly Circus), várias livrarias. Uma dessas livrarias é a Stanfords. Fica nos números 12-14 da Long Acre (estações de metrô Covent Garden e Leicester Square), uma badalada rua de comércio que, a leste, deságua na aprazível Great Queen Street, onde, recém-chegado a Londres, morei por mais de um ano. Interessantíssima, inaugurada em 1901 e considerada a maior do mundo no seu ramo, a Stanfords é uma livraria especializada em viagens e turismo. Ali você encontra o que imaginar de mapas, guias, variados utensílios para o viajante e, claro, livros, sobretudo do gênero “literatura de viagem”. Por falar em maior do mundo, duas das maiores livrarias de Londres, gigantescas e que merecem ser visitadas, acham-se naquela região (aqui expandida, como já disse, para incluir as áreas Piccadilly Circus e Leicester Square). A primeira delas é a Waterstones, que fica nos números 203-206 da (avenida) Piccadilly (estação de metrô Piccadilly Circus). Alegadamente a maior livraria da Europa, com oito andares de estantes, um café e um bar/restaurante, ainda disponibiliza gratuitamente banheiros e sofás para os leitores necessitados. E isso todo turista, literário ou não, sabe: faz uma diferença danada. A segunda é a famosíssima Foyles. Fundada em 1903, está, desde 1906, no endereço atual, 113-119 da Charing Cross Road (estações Tottenham Court Road e Leicester Square). Autoproclama possuir a maior quantidade de dife65


rentes livros em estoque da Europa: 200 mil títulos. Verdade ou não, é uma instituição na Charing Cross Road, avenida conhecida por abrigar inúmeras livrarias e sebos em Londres. Sobre a Charing Cross Road, aliás, já escrevi aqui. Foi na crônica “E não se vende uma amiga”, quando falei de Agatha Christie (18901976) e da minha busca, trabalhosa mas bem-sucedida, nos sebos daquela avenida, por uma edição de bolso usada de “Ten Little Niggers” (também publicado em inglês, para evitar o título politicamente incorreto, como “Ten Little Indians”, “The Nursery Rhyme Murders” e “And Then There Were None”). Infelizmente, tenho notado, talvez em razão do crescimento do mercado dos livros digitais, talvez simplesmente porque as coisas mudam com o tempo, algumas livrarias de Charing Cross Road têm fechado as portas. Uma delas, que ainda estava aberta quando da minha chegada a Londres para estudos em 2008, foi a famosa Murder One Bookshop, especializada, como o nome mesmo dá a entender, em estórias detetivescas e policiais. De fato, uma pena. De toda sorte, mais ao sul, de forma transversal ligando Charing Cross Road à St. Martin’s Lane, fica uma ruela de pedestres especializada em livros: a Cecil Court (estação de metrô Leicester Square). Lindinha, pitoresca, parecendo ter parado no tempo, é cheia de pequeninas livrarias e sebos especializados em livros antigos, primeiras edições, mapas, gravuras, ilustrações e em temas tão variados como línguas, automóveis, música, teologia, magia e por aí vai. E isso sem falar na sanduicheria da esquina, a Byron Hamburgers (uma das lojas dessa cadeia, na verdade), para mim, ao lado da recém-inaugurada Shake Shack (que fica dentro do mercado de Covent Garden), a melhor de Londres. Recomendadíssimas ambas. Por fim, ao dar por encerrado o nosso passeio turístico/literário, para superar o fato de que fui altamente seletivo nas minhas escolhas de livrarias em Londres (e, por motivo de espaço e de propósito, não poderia deixar de ser), vai uma dica para os apaixonados por livros (e pelo/a companheiro/a, por que não?): “Book Lover’s London”, de Lesley Reader, um excelente livro/guia sobre as livrarias de Londres. Aliás, um livro – ou uma porção deles – é sempre um bom presente. Para o próximo dia dos namorados, quem sabe? Como eu disse, vai a dica. 66

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 18 de maio de 2014.


Minhas livrarias em Paris (I) Não faz muito tempo, em três crônicas (“Minhas livrarias em Londres I, II e III”), escrevi sobre as livrarias da capital do Reino Unido. Chegou a vez de “passearmos”, dando continuidade ao que eu chamei, naquela ocasião, de “turismo literário”, pelas livrarias da capital da França, a agradabilíssima Paris, onde morei/estudei faz alguns anos. Novamente lá estive, em rápida passagem de estudos, em abril deste ano, com papel e caneta sempre à mão, tudo anotando, já imaginando escrever este riscado. Paris está repleta de livrarias. Bem mais do que Londres, pelo menos no que toca a pequenos estabelecimentos. Constatei isso já no entardecer do primeiro dia dessa última estada, ao subirmos, cansados, mas felizes, a rua Monsieur le Prince, em direção ao pequenino Hotel Saint-Paul Rive-Gauche, no bairro de Saint-Germain-des-Prés. Em razão disso, para dar um “norte” à coisa, vou restringir nosso “passeio”, basicamente, a duas regiões na margem esquerda do rio Sena (a “rive gauche”), o Quartier Latin e o referido bairro de Saint-Germain-des-Prés, as áreas da cidade a mim mais familiares, eu já confesso. Assim como em Londres, deixo outras regiões de Paris de lado repetindo a lição de Ludwig Wittgenstein (1889-1951): “sobre o que não se pode falar, melhor calar”. E levando em conta as minhas preferências, misturando livrarias com o turismo mais geral (porque “turistar” apenas em livrarias “ninguém merece”), faremos esse “tour” em duas ou três crônicas, não cansando muito o leitor, eu espero. Comecemos pela região de Saint-Germain-des-Prés. Por ali, tenho duas livrarias (e dois programinhas de turista, porque ninguém é de ferro) a sugerir. Uma delas é a Livraria La Procure (na verdade, uma das lojas dessa cadeia), que fica no número 3 da Rue Mézières (se for de metrô, recomendo descer na estação Saint-Sulpice). Ela é especializada em religião (especialmente no cristianismo), filosofia, política, história e nas ciências humanas e sociais como um todo. Mas possui também um bom 67


acervo de livros de arte, guias de viagens e de ficção em geral. Em termos de volume e qualidade de acervo, é a melhor pedida em Saint-Germain-des-Prés. De quebra, nas imediações da livraria, você pode fazer duas visitas maravilhosas. Primeiramente, à Église Saint-Sulpice, que fica a dois passos da La Procure. Da calçada da livraria dá para ver a imponente fachada dessa igreja que é muito referida na literatura como, por exemplo, recentemente, no balado “The Da Vinci Code” (2003), de Dan Brown (1964-). Sugiro, também, dar um pulo nos Jardins de Luxemburgo, que, com seu Palácio e suas fontes, ficam umas duas quadras mais para o sul. E ali, talvez, tomar um chocolate ou um café lendo um “Livre de Poche” comprado na La Procure. No mais, sinceramente, se você está interessado em livros, desaconselho ir à gigantesca FENAC da Rue de Rennes, que fica não muito longe da La Procure. Se outrora essa FENAC possuía um enorme acervo livros (era assim em 2006, quando estudei, bem pertinho dali, na Alliance Française Paris), isso foi substituído, certamente por motivos comerciais, por uma profusão de coisitas de som, imagem e informática em geral. Se você gosta de megalivrarias, tem coisa muito melhor, como veremos, lá para as bandas do Quartier Latin. Pode crer em mim. Já se você gosta de livrarias pequeninas, tenho um ótima dica em Saint-Germain-des-Prés: L’Ecume des Pages, que fica no número 174 boulevard Saint-Germain (metrô Saint-Germain-des-Prés). Ela é pequenina, basicamente um só ambiente, com um acervo diversificado (literatura em prosa e poesia, tanto francesa como estrangeira, crítica literária, filosofia, história, livros sobre arte e cinema e por aí vai), mas selecionadíssimo. Entretanto, o melhor da L’Ecume des Pages, devo dizer, é a sua vizinhança. Ele está colada ao Café de Flore (número 172 do Boulevard Saint-Germain), a dois passos do Café Les Deux Magots (que fica número 6 da Place de Saint-Germain-des-Prés) e defronte à Brasserie Lipp (número 151 do Boulevard Saint-Germain). Reza a lenda que por ali passaram - e sentaram, para um café ou para um porre - os surrealistas Andre Breton (1896-1966) e Raymond Queneau (1903-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), Ja68


mes Joyce (1882-1941), Ernest Hemingway (1899-1961), Jean Genet (1910-1986), Albert Camus (1913-1960) e um sem número mais de outros intelectuais. Com ou sem um livro na mão, pare por ali, escolha um dos três estabelecimentos e sente. Peça um café e veja a rua passar. Fizemos isso em uma manhã de primavera. Eu mais que recomendo: eu exijo, eu imploro. E após esse café, sugiro uma curta caminhada em direção ao Quartier Latin, percorrendo o Boulevard Saint-Germain. É isso que faremos, em busca de mais livrarias, na semana que vem.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 24 de agosto de 2014.

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Minhas livrarias em Paris (II) Como prometido semana passada em “Minhas livrarias em Paris (I)”, faremos, em busca de mais livrarias, uma caminhada pelo Boulevard Saint-Germain, sentido leste, em direção ao Quartier Latin. Não será uma longa jornada. O bairro de Saint-Germain-des-Prés e o Quartier Latin são vizinhos. Quase se misturam tanto física como espiritualmente. É verdade – pelo menos para mim – que Saint-Germain-des-Prés é um bairro mais “requintado” que o Quartier Latin. Historicamente o bairro da “Universidade” (falo aqui da Sorbonne, hoje formalmente chamada de “Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne”), portanto muito frequentado por estudantes, o Quartier Latin é mais popular e relaxado se comparado com o seu vizinho. De toda sorte, sendo o bairro da Sorbonne e dos estudantes, é o paraíso em Paris para os amantes de livrarias. No Quartier Latin, mais precisamente no conhecidíssimo Boulevard Saint-Michel, estão as duas maiores (segundo o meu conhecimento, pelo menos) e melhores livrarias de Paris. A primeira delas é Gibert Joseph, que ocupa os números 26-34 do referido Boulevard Saint-Michel (se tomar o metrô, sugiro descer na estação Cluny – La Sorbonne ou, embora seja um pouco mais distante, na estação Saint-Michel). A Gibert Joseph é gigantesca. Vários andares, no estilo das grandes livrarias americanas (tipo a Barnes & Noble) e inglesas (como a Waterstones). Tem de tudo. Livros novos. Livros em promoção. Livros seminovos em promoção maior ainda. Para um cidadão como eu, acusado de ser amarrado (injustamente, pois sou apenas econômico), é uma “meca” para aquisição de livros. Ainda recordo os livros sobre “direito e literatura” que ali comprei em abril passado. Todos novinhos, baratíssimos, por menos da metade do preço de tabela. Se for à Gibert Joseph, desde já vai uma dica: não deixe de visitar o “Musée de Cluny” (cujo nome oficial hoje é “Musée National du Moyen Age – Thermes de Cluny”). Está basicamente em frente à livra70


ria. Trata-se de um museu construído sobre ruínas galo-romanas (que foram adquiridas, em 1330, pelo abade do Mosteiro de Cluny, derivando daí o seu nome), com uma das mais fantásticas coleções de arte medieval do planeta. Ali estão esculturas, entalhes em madeira, trabalhos em metal, joias e, sobretudo, belíssimas tapeçarias como, por exemplo, o famosíssimo conjunto “A senhora e o Unicórnio”. Por ali também fica, mais precisamente ao derredor da Place Saint-Michel (recomendo descer na estação de metrô Saint-Michel), outra gigantesca livraria: a Gibert Jeune. Acho que os acervos dessas duas “rivais”, a Gibert Joseph e a Gibert Jeune, se equivalem, tanto em quantidade como em qualidade. Mas a organização da Gibert Jeune é diferente. Ela é distribuída em prédios menores (se comparado com o único prédio da Gibert Joseph), todos, em um total de oito, situados, como já disse, no entorno da Place Saint-Michel. Os livros de direito, por exemplo, ficam no número 6 Place Saint-Michel. Se você está interessado em um gênero específico de livros, até facilita o trabalho de garimpagem. Indo à Gibert Jeune, sugiro, lá para as tantas, dar uma pausa na garimpagem de livros e, partindo da Place Saint-Michel, emburacar na pequenina Rue da La Huchette e vizinhança. Ruas animadíssimas, cheias de bares e restaurantes. Gente jovem e bonita. Ali você pode comer bem e tomar uma ou todas, a depender do seu humor e dos seus compromissos no dia seguinte. Da Rue da La Huchette é um pulo para a mais famosa livraria do Quartier Latin, a pequena, desorganizada, mas aconchegante, Shakespeare & Company, especializada em livros em inglês. Ela fica no número 37 da Rue de la Bûcherie (estações Saint-Michel ou Cluny – La Sorbonne). Tudo bem pertinho. Caminhando, você não se perderá, a não ser que tenha tomado muito – mas muito mesmo – vinho. Embora os desavisados não saibam, essa é a “segunda” Shakespeare & Company de Paris, ali aberta por George Whitman (1913-2011) em 1951. A primeira, fundada por Sylvia Beach (1887-1962) em 1919, talvez ainda mais famosa – frequentada por Ford Madox Ford (18731939), Gertrude Stein (1874-1946), James Joyce (1882-1941), Erza Pound (1885-1972), Scott Fitzgerald (1896-1940), Ernest Hemingway 71


(1899-1961) e muitos outros expatriados bons de pena –, ficava em outro local da cidade. A velha Shakespeare & Company fechou as portas com a 2ª Guerra Mundial, em 1940, e nunca mais reabriu. Então, não perca a oportunidade de ir à nova. Até porque, mesmo que você ache sem sentido comprar livros em inglês em Paris, da calçada da nova Shakespeare & Company, outrora frequentada pelos poetas da geração “Beat”, você terá uma belíssima vista da fachada sul da Catedral de Notre-Dame, sobre a qual falaremos na semana que vem. Por fim, antes que alguém me pergunte – “e onde estão as livrarias jurídicas? Não se falará delas nesse lero-lero todo?”, respondo: falaremos, sim, na próxima semana, quando passearmos pelas imediações do Panthéon e da Sorbonne e, em seguida, dermos um pulo rápido na Ilé de la Cité.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 31 de agosto de 2014.


Minhas livrarias em Paris (III) Na semana passada, enquanto passeávamos pelo Quartier Latin, prometi escrever sobre as livrarias jurídicas de Paris. Promessa é dívida, e cumpro agora. Em busca dessas livrarias jurídicas, não precisamos ir muito longe. Em Paris, a maioria das que conheço fica ali mesmo, no Quartier Latin, nas imediações do Panthéon e da Sorbonne (falo da renomada “Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne”), mais precisamente na Rue Soufflot, por alguns chamada de “Rue du Droit”. De fácil acesso e muitíssimo frequentada, essa rua liga o Boulevard Saint-Michel, na altura dos Jardins de Luxemburgo, com o Panthéon (se for tomar o metrô, sugiro descer na estação Cluny - La Sorbonne; se for de RER, outra modalidade interligada de trem urbano de Paris, sugiro descer na estação Luxemburg). Na Rue Soufflot estão, todas juntinhas, três excelentes livrarias jurídicas (e por ali ainda existem outras, é bom frisar). No número 20, em uma esquina, está a “Librairie LGDJ”. Livraria de referência em língua francesa, trabalhando com inúmeras editoras, ela vende de tudo: direito constitucional, administrativo, penal e processual penal, civil e por aí vai. Tem até um tal de “droit du tourisme”, ramo no qual estou pensando, muito animadamente, em me especializar. Na esquina seguinte, em direção aos Jardins de Luxemburgo, no número 22, está “Librairie Juridique Dalloz”. Fundada em 1961, portanto há mais de meio século, é também uma livraria de referência. Assim como a LGDJ, também tem de tudo e de várias editoras, não só da famosa Editora Dalloz, ao que, pela confusão dos nomes (que não é mera coincidência), poderíamos ser levados a achar. A terceira livraria que recomendo por ali é a filial da antiquíssima “Ma Librairie de Droit”. Ela fica bem pertinho, no número 26 da Rue Soufflot (a primeira loja, mais antiga, que visitaremos mais tarde, fica na Place Dauphine, na Ilé de la Cité). Pelo que sei, está ali há mais de 60 73


anos. Também vende de tudo em livros jurídicos. Seus títulos e estoque contam-se aos milhares. Após adquiridos (ou não) os livros jurídicos, sugiro, para um “turisminho” básico, caminhar pela Rua Soufflot. Afinal, é subindo por ela que se avista, ao fundo, as colunatas e o imenso domo do Panthéon de Paris, mausoléu dedicado, pela pátria agradecida, “aux grands hommes” da França. Começando por Mirabeau, o primeiro ali sepultado, no Panteão estão os restos mortais de homens (e mulheres) que contribuíram não só com a França mas com toda a humanidade: Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Victor Hugo, Émile Zola, Jean Jaurès, Pierre Curie, Marie Curie, André Malraux, Alexandre Dumas (père) e muitos outros. Projetado por Jacques-Germain Soufflot (1713-1780), arquiteto que empresta seu nome à “rua das livrarias jurídicas”, para ser a “Église Sainte-Geneviève à Paris”, o Panthéon de Paris é belíssimo. Por fora e por dentro. Mesmo carregando os chatíssimos livros jurídicos, recomendo visitar. Saindo do Panteão, sugiro dar uma passada na “Ecole de Droit de la Sorbonne”. Fica em frente, no número 12 Place du Panthéon. Vale a pena pedir para alguém bater uma foto sua, pegando a fachada, embaixo do belo pórtico, que contém a inscrição “Université de Paris – Faculté de Droit”. Eu pedi. E ela, tenho certeza, lembra-se muito bem. A Sorbonne, aliás, não é a única instituição de ensino de grande prestígio por aquelas bandas. A dois passos dali, no número 11 da Place Marcelin Berthelot, está o Collège de France. Fundado em 1530 pelo Rei Francisco I (1494-1547), o Collège de France tornou-se uma instituição de ensino única no mundo. Sem a rigidez da organização universitária, está sempre na vanguarda da pesquisa e do ensino nos mais variados ramos do conhecimento. Seus professores sempre foram a fina flor da “inteligentia” francesa. As palestras ali, pelo que sei, são gratuitas e de acesso livre. Basta haver disponibilidade de lugar. Que tal, caro leitor, assistir a uma delas? No mais, antes de terminarmos, tenho um tour a sugerir um busca de mais uma livraria jurídica: vá da Rue Soufflot à Place Dauphine, na Ilé de la Cité. É muito fácil. Caminhando, sem paradas, leva uns 15 74


a 20 minutos, com direito a atravessar o Sena e dar uma boa olhada na Catedral de Notre-Dame, que dispensa apresentações. Com paradas, pode levar até dois dias (se tomar o metrô, sugiro descer na estação Pont Neuf ou, alternativamente, na estação Cité). É no número 27 da Place Dauphine (na Ilé de la Cité) que se encontra primeira loja da já referida “Ma Librairie de Droit”, loja que, segundo me foi dito, tem mais de 100 anos. Também chamada de “Libraire de la Cour de Cassation”, ela é, como as outras três livrarias já citadas, excelente. Já a Place Dauphine, triangular, pequenina, muito tranquila, toda cercada de prédios seculares (imóveis residenciais, galerias de arte, pequenos hotéis, restaurantes e prédios públicos), é um dos mais belos e aconchegantes sítios de Paris. Por fim, para os amantes do Direito, registro que a Place Dauphine fica precisamente nos fundos do belíssimo Palais de Justice, que pode ser considerado o “centro nervoso” do sistema judicial francês, já que ali estão sediados a Cour de Cassation da França, a Cour d’Appel de Paris e o Tribunal de Grande Instance de Paris (TGI de Paris). Mas essa famosa “casa” da Justiça é assunto para outro artigo.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 7 de setembro de 2014.

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Duas bibliotecas Grandes bibliotecas – que, invariavelmente, são também ótimos museus – já foram tema de nossas conversas neste espaço. Recordo-me, por exemplo, já ter escrito aqui, não faz muito tempo, sobre a British Library (www.bl.uk), que habita um gigantesco prédio (o número 96 da Euston Road), inaugurado em 1988, em Londres, capital do Reino Unido. Enfatizei o seu acervo assustador: mais de 150 milhões de itens, em quase toda língua imaginável, incluindo livros, manuscritos, mapas, jornais, revistas, desenhos, arquivos de música, selos etc. Tratando ainda da Terra da Rainha, também escrevi sobre Bodleian Library (www.bodleian.ox.ac.uk/bodley), a biblioteca da Universidade de Oxford, que é um dos depósitos legais de livros para o Reino Unido e a República da Irlanda. Referi-me à beleza dessa biblioteca, (re)fundada em 1602 por Sir Thomas Bodley (1545-1613), tida como “a árvore do conhecimento em meio ao paraíso das musas”. E já tratando do Novo Mundo, mais precisamente dos Estados Unidos da América, escrevi sobre a Biblioteca Pública da Cidade de Boston (www.bpl.org), que se afirma a primeira biblioteca pública municipal daquele imenso país. Verdade ou não, de minha parte atestei ser o prédio central da Biblioteca de Boston belíssimo. De acesso completamente livre, recomendo enormemente a visita, seja você estudante ou mero turista de ocasião. Aliás, sempre defendi que as grandes bibliotecas merecem ser visitadas pelo turista amante de livros (além de frequentadas, evidentemente, pelo pesquisador, professor, estudante etc.). Mesmo que não seja o caso de xeretar o acervo da biblioteca de um modo sistemático e com um propósito específico, vale a pena dar uma olhadela nas suas obras mais raras ou nas exposições, permanentes ou temporárias, dedicadas aos mais variados temas, que elas sempre disponibilizam para o público em geral. E já que, recentemente, escrevi três artigos sobre as livrarias de Paris, vou aproveitar a toada para dar duas dicas de bibliotecas para se 76


visitar na capital francesa. A primeira delas é a Bibliothèque nationale de France – BnF (www. bnf.fr). Na verdade, a BnF possui mais de uma sede, sendo que conheço, recomendando assim a visita, duas delas: a Biblioteca (edifício) Richelieu e a Biblioteca (edifício) François-Mitterrand, a última, hoje, a mais importante. A sede Richelieu, bastante central, fica no número 5 da Rue Vivienne (se for de metrô, recomenda-se descer em uma dessas três estações: Bourse, Palais-Royal ou Pyramides). Outrora palácio do Cardeal Mazarin (1602-1661), o prédio, que passa atualmente por meticulosa restauração, é belíssimo, sobretudo a “Salle Ovale” de leitura. Funcionando como excelente museu, abriga boa parte dos tesouros da BnF, sendo considerada ainda como o seu “berço histórico”. Está aberta ao publico, havendo até, para quem interessar, a possibilidade de se fazer uma visita guiada. Hoje, entretanto, a principal sede da Bibliothèque nationale de France é a (Biblioteca) François-Mitterrand, inaugurada em 1996, que fica no Quai François-Mauriac, já bem mais afastada do centro histórico de Paris (estação de metrô Quai de la gare; se preferir o RER, outro tipo de trem metropolitano, descer na estação Bibliothèque FrançoisMitterrand). Essa localização, aliás, é o seu (talvez) único defeito. A Biblioteca François-Mitterrand é gigantesca, em termos de estrutura e acervo, no estilo da já mencionada British Library. Além da “biblioteca de pesquisa”, reservada àqueles previamente credenciados, o bom é que ela possui uma “biblioteca de estudo”, de acesso geral, bastando o visitante ser maior de 16 anos. Nos múltiplos ambientes, você terá acesso a coleções dos mais variados ramos do conhecimento, em forma de livros, periódicos, jornais, meios audiovisuais ou eletrônicos. Pelo que me recordo, paga-se um valor simbólico, de entrada, mas isso é o de menos. Vale a pena ler por lá, eu garanto. A segunda biblioteca que recomendo em Paris, por sinal a minha preferida, é a Bibliothèque publique d’information – Bpi (www.bpi. fr). Ela fica no Centre Georges-Pompidou, o controverso edifício “às avessas”, com elevadores, escadas e tubulações tudo à mostra, que tam77


bém abriga o Musée National d’Art Moderne francês. A proposta da Bpi é sensacional: (i) acesso livre, gratuito, com espaços de leitura e de trabalho abertos a todos; (ii) coleções variadas em todos os tipos de mídias (livros, periódicos, jornais, filmes, mídias eletrônicas etc.); (iii) incentivo à autonomia do trabalho do leitor/pesquisador, que tem acesso direto às coleções; (iv) monitoramento e novação constante das coleções; e (v) realização, em conjunto com o Centre Pompidou, de diversas atividades culturais paralelas, como exposições, conferências, debates, exibições de filmes etc. Se não bastasse isso, a Bibliothèque publique d’information é bastante central (fica entre as estações de metrô Rambuteau e Hôtel de Ville), nas beiradas do maravilhoso bairro do Marais (quer região melhor?), ficando aberta, o que é raro na Europa, até às 22 horas, todos os dias, com exceção da terça-feira. De um bom livro a um excelente vinho é menos de uma “página”. Pessoalmente, no meu período de estudante em Paris, no já distante ano de 2006, frequentei quase todos os dias à Bpi. E, às vezes, recordome desse período – e de Paris – com imensa saudade. Ainda bem que, já dizia o nosso Peninha, ter saudade “é melhor do que caminhar vazio”.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 28 de setembro de 2014.


A Casa do Brasil Madrid é uma cidade maravilhosa. Capital do Reino da Espanha, com uma população de mais de 3 milhões de habitantes, tem de tudo: praças animadas e belíssimas (como a Mayor ou a Puerta del Sol), grandes ruas de comércio (como a Gran Via ou a Calle Serrano), Museus (como o Prado, o Reina Sofia ou o Thyssen-Bornemisza), o Palácio Real, teatros, muitas livrarias, restaurantes e bares de tapas (tanto no centro como em bairros mais afastados, cada um mais pitoresco que o outro) e por aí vai. E tudo funcionando, vibrantemente, com as ruas cheias de um povo festeiro, até tarde da noite (o que não é comum na Europa). Madrid, tive essa sensação quando lá estive não faz um mês, está cada vez melhor. Mas isso, acho, quase todo turista brasileiro já sabe. O que talvez ele não saiba é que há em Madrid, em meio a essa profusão de atrações, uma “Casa do Brasil”. Explico melhor. A Casa do Brasil é o que os espanhóis chamam de “Colegio Mayor Universitario”, um misto de residência universitária e centro de ensino. Segundo os estatutos da célebre e gigantesca Universidade Complutense, á qual está agregada a Casa do Brasil, “os Colégios Maiores são centros universitários que proporcionam residência a estudantes ou a professores e promovem a formação cultural e científica, assim como a prática de esporte aos que neles residem, ampliando assim sua atividade ao serviço da comunidade universitária”. Pelo que sei, a Espanha conta hoje com cerca de trezentos colégios maiores, sendo que mais da metade deles acha-se em Madrid. Só a Universidade Complutense conta com mais de quarenta. A Casa do Brasil é, segundo ela mesmo informa, “um dos quatro adscritos à Universidade Complutense, cuja finalidade é a divulgação da língua, da cultura e da civilização de outros países”, sendo que os outros são “o Colégio Maior Colombiano Antonio Caro, hoje, fundação universitária; o Colégio Maior Nossa Sra. de África e o Colégio Maior Argentino 79


Nossa Sra. de Luján”. A nossa Casa é um dos colégios mais antigos da Complutense, registre-se. A Casa do Brasil está localizada dentro do campus da Universidade Complutense, confortavelmente vizinho à Reitoria da Instituição. O endereço preciso é Avda. Arco de la Victoria, 28040, Madrid (Tel.: +34914551560 – Site na Internet: www.casadobrasil.es). A estação de metrô mais conveniente, muito pertinho e bem conectada, é Moncloa. Acho a localização da Casa do Brasil excelente. Para quem gosta de caminhar, tomando a Calle Princesa, direto, chega-se rapidinho à Plaza de Espanha, à Gran via e à Plaza del Callao. Aí, quem conhece Madrid sabe, é só quebrar à direita que se está no burburinho da Calle de Preciados, da Plaza del Sol e da Plaza Mayor. A Casa do Brasil foi concebida na Presidência de Juscelino Kubitschek (1956-1961), após uma visita do Presidente Bossa-Nova à capital espanhola e assinatura de um acordo cultural Brasil-Espanha. O projeto do edifício da Casa do Brasil é do arquiteto brasileiro Luis Afonso d’Esgragnolle Filho que, juntamente com o professor Leónidas Sobrinho Porto, também dirigiu/supervisionou a sua construção. Em 1962, o professor Joaquim da Costa Pinto Netto assumiu o cargo de primeiro diretor da Casa do Brasil, sendo ela inaugurada em junho do mesmo ano. O prédio da Casa do Brasil está encravado, ocupando cerca de um terço do terreno, em uma área verde de quase um hectare. Sua fachada principal dá para a Avenida de Arco de la Vitoria. O prédio possui áreas de recepção e descanso (com TV e DVD), de administração, jardim coberto, refeitório, salas de exposição, de música, de leitura, auditório, biblioteca e algumas outras amenidades. No mais, são 125 quartos muito iluminados, todos com banheiro, água quente, ar-condicionado e calefação. A decoração, como seria de se esperar de uma residência desse estilo, é espartana: cama, guarda-roupa, mesa de estudo, telefone e pouco mais. O residente/hóspede ali tem direito a serviço de quarto de segunda a sexta, serviço de lavanderia (ou seja, roupa pessoal lavada) e pensão completa de segunda a sábado (aqui enfatizo: excelentes café 80


da manhã, almoço e jantar). O mensalista paga 1160 euros por apartamento individual ou 900 euros por pessoa em apartamento duplo. Mas há também o serviço de hotelaria, com as diárias variando de 45 euros (apartamento individual com café da manhã) a 80 euros (apartamento duplo com pensão completa). Em todos os casos, somem-se uns 10% referentes ao imposto devido. Por fim, o mensalista brasileiro – e somos brasileiros, graça a Deus – ainda se habilita a um desconto de 20%, preenchidas determinadas condições. No mais, a Casa do Brasil é um verdadeiro centro cultural, uma “embaixada cultural brasileira” em Madrid ou para a Espanha como um todo, pode-se dizer. Ali são realizadas exposições de artistas brasileiros. Eu mesmo, quando morei lá, frequentei algumas. Ali são dadas aulas de português, de capoeira, de história do Brasil etc. E o governo do nosso país também presta por lá inúmeros serviços culturais/educacionais ao brasileiro residente na Espanha. Por exemplo, sei que o brasileiro residente na Espanha pode, na Casa do Brasil, realizar os exames do “supletivo” (acho tanto do primeiro como do segundo grau), recebendo do nosso Ministério da Educação a titulação que almeja e, com a prova, faz jus (e não são poucos os brasileiros que foram tentar a sorte na Espanha sem completar os seus estudos no Brasil). Por sinal, outro dia, quem esteve por lá, para fomentar e testemunhar o excelente trabalho realizado pela Casa do Brasil, foi o nosso Vice-Presidente, Michel Temer, o que diz muito da importância que tem a Instituição. Por fim, vai talvez o melhor da Casa do Brasil (pelo menos para nós potiguares): ela é administrada por um conterrâneo nosso, o querido Cássio Romano, que, há algumas décadas, pousando na terra de Cervantes (1547-1616) e de Lope de Vega (1562-1635), não quis mais voltar. Foi como estudante e morador da Casa do Brasil, mas enfronhou-se na administração da Instituição, foi o substituto e é, já há um bocado de anos, o diretor da Casa. Lá, como pude testemunhar quando ali morei/estudei em 2007 e agora quando voltei para matar a saudade, somos muito bem recebidos por ele, sua esposa Chris (que conheceu, também residente, lá) e os filhos Luis Felipe e Ana. Ali, de fato, é a nossa casa. Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 3 de maio de 2015.

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Minhas livrarias em Madrid (I) Na semana passada, escrevi aqui sobre a “Casa do Brasil” em Madrid. Pois vou aproveitar a deixa para continuar escrevendo sobre a capital do Reino da Espanha (onde morei/estudei faz alguns anos), desta feita, assim como já fiz com Londres e Paris, tratando das livrarias (de algumas delas, evidentemente) daquela maravilhosa cidade. Como de estilo, serão três crônicas sobre “minhas livrarias em Madrid” e outras coisitas mais, porque, já disse outras vezes, “turistar” apenas em sebos e livrarias “ninguém merece”. Com uma população de mais de 3 milhões de habitantes, Madrid possui muitas livrarias (não tanto quanto Paris, entretanto), como conferi quando lá estive, em rápida passagem de estudos, faz pouco mais de um mês, sempre com papel e caneta à mão, tudo anotando para escrever este “roteiro” de turismo cultural, direcionado para os que amam ou têm interesse em livros. Aliás, é bom que se diga: sobre livros e livrarias em Madrid, há muitos guias e mesmo livros disponíveis no mercado. Eu mesmo adquiri alguns títulos que, para escrever este texto, diletantemente consultei: “Um mundo de libros” (organizado/editado por Yolanda Morató, publicado pelo Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 2010), “Libros, buquinistas y Bibliotecas. Crónicas de transeúnte: Madrid-París” (de José Martínez Ruiz, dito “Azorín”, publicado pela Fórcola Ediciones, 2014) e “La Cripta de Los Libros: Libreros de Viejo de Madrid” (de Peter Besas, publicado por Ediciones La Librería, 2012). Para tornar nosso roteiro literário exequível, vou restringir minhas “dicas” de livrarias a duas ou três regiões de Madrid, propositalmente as mais turísticas da cidade, facilitando ainda mais as coisas tanto para mim como para o leitor. Começo pela região que fica nas imediações das estações de metrô Callao e Puerta del Sol, nas beiradas da Gran Vía e muito próximo da Plaza Mayor. É talvez a região mais turística da cidade, muito animada, onde tudo funciona, com as ruas cheias de gente, até tarde da noite (o 82


que, como sabemos, não é comum no resto da Europa). Ali estão duas lojas da mais famosa rede de livrarias da Espanha, a “Casa del Libro”. Pelo que sei, essa rede tem 34 livrarias espalhadas pela Espanha. Em Madrid, conheço bem duas lojas: a da Calle Maestro Victoria (no número 3) e a da Gran Vía (número 29), as mais centrais, pelo menos para nós turistas (para ambas as lojas, se for usar o metrô, recomendo descer na estação de metrô Callao). A Casa del Libro da Gran Vía, que recomendo em primeiro lugar, até porque é facílima de achar, funciona os sete dias da semana, até tarde da noite, para além das 21 horas, se não estou enganado. Em estilo tradicional, enorme, com alguns andares, vende de tudo, incluindo livros de direito (se é que alguém, passeando em Madrid, está interessado em assunto tão enfadonho). É excelente, palavra de escoteiro. Nessa mesmíssima área, fica a livraria “La Central”, mais precisamente no número 8 da Calle del Postigo de San Martín, logo na primeira quadra dessa rua, quando se vem da estação de metrô Callao (que, portanto, é a estação de metrô recomendada no caso). Trata-se, também, de uma rede de livrarias, com origem em Barcelona. Essa loja é charmosíssima. Tem um ambiente para eventos (lançamentos de livros, palestras etc.), chamado “El Garito”. Tem uma papelaria excelente, sobretudo para quem gosta de utensílios para leitura e estudo. Tem até um restaurante, que serve também um bom cafezinho: o aconchegante “El Bistró de La Central”, que fica no andar térreo do edifício. Isso sem falar no maravilhoso acervo de livros, distribuído nos andares de cima, que, para quem frequenta livrarias, às vezes é o menos importante. E não só de livrarias tradicionais e charmosas vive a região da Gran Via/Callao/Puerta del Sol: ali estão também alguns estabelecimentos que misturam a venda de livros com outros produtos de interesse do consumidor/turista típico. Tem-se a gigantesca FENAC, a livraria do (ainda mais gigantesco) “El Corte Inglés” e a “Vips”, embora convivendo juntas, cada qual com a sua proposta. Mas sobre elas conversaremos na próxima semana. Antes tomemos um café. Ou, melhor ainda, muitas “copas de vino con tapas”. E pode até ser no “El Bistró de La Central”. Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 10 de maio de 2015.

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Minhas livrarias em Madrid (II) Como eu disse aqui na semana passada, na primeira parte desta nossa conversa sobre as livrarias de Madrid, não só de livrarias tradicionais vive a região da Gran Vía/Callao/Puerta del Sol, a mais turística da capital espanhola. Ali estão também alguns estabelecimentos, como a enorme FENAC, a livraria do (ainda maior) “El Corte Inglés” e a “Vips”, que misturam a venda de livros com outros produtos de interesse do consumidor/turista típico. Comecemos falando da FENAC que, também estabelecida no Brasil (em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e outras importantes cidades do Sul/Sudeste do país), muita gente já conhece. De origem francesa, a proposta da FENAC, em termos gerais, é misturar, em uma só “megastore”, eletrônicos (produtos de som, imagem e informática), “games”, filmes, livros e outras coisitas mais. A FENAC que conheço em Madrid está localizada na famosa Calle Preciados, no número 28 (bem pertinho da estação de metrô Callao). Por sinal, em termos de livros, essa loja da FENAC em Madrid é bem melhor que sua congênere da Rue de Renne, em Paris, que, embora gigantesca, eu já critiquei aqui pela pobreza do acervo de livros em comparação com a seção de coisas de som, imagem e informática em geral. A FENAC da Calle Preciados é um ótimo programa, tanto para os antenados em “gadgets” como para os amantes de livros em especial. Ela fica aberta, de segunda a sábado, até às 22 horas. Bem pertinho da FENAC, na mesma rua (Calle Preciados), só que já para as bandas da Puerta del Sol, fica a livraria do “El Corte Inglés”. Para quem não sabe, “El Corte Inglés” é uma enorme cadeia de lojas de departamento de origem espanhola. Vende de tudo, como se fosse uma mistura de Galerias Lafayette, C&A, Lojas Americanas e Carrefour. Tem bem mais de uma centena de lojas espalhadas pelas maiores cidades da Espanha (possuindo também, pelo que sei, lojas em Lisboa e no Porto, em Portugal). Para se ter uma ideia, seu faturamento é contado em bilhões de euros, e ela conta com algo em torno de 100 mil empregados. A livraria a que me refiro faz parte do complexo do “El Corte 84


Inglés” chamado “Centro Comercial Preciados-Callao”, que vai até a Puerta del Sol. É formado por cinco edifícios enormes. Embora se vendam livros também no edifício localizado na Plaza de Callao, a livraria mais interessante, com acervo bem variado, fica no térreo do edifício do número 2 da Calle Preciados, já em frente à Puerta del Sol (portanto, se usar o metrô, descer na estação de mesmo nome). Facílima de achar, ela fica aberta até 22 horas, com a vantagem de que sua companheira, se não gostar de livros, passará o dia todo entretida, sem reclamar, nas inúmeras outras “atrações”, culturais ou nem tanto, do “El Corte Inglés”. Já no número 43 da conhecidíssima Gran Vía, não muito longe da Plaza de Callao em direção à Plaza de España, fica uma loja do restaurante/lanchonete/papelaria/livraria “Vips”. De fato, a “livraria” Vips é isso tudo que falei aí, talvez um pouco mais, junto e misturado. A proposta é ter um “point” aberto madrugada adentro, como local de convergência de notívagos em busca de alimentação ou entretenimento saudável (“Ler faz bem à saúde”, o Ministério do Bom Senso adverte). Suas lojas - e são dezenas em Madrid, por toda parte da cidade - ficam abertas o dia todo até coisa de três horas da manhã. Além da loja da Gran Vía, eu mesmo frequentei (ou melhor, frequentamos), nessa última estada em Madrid (em fins de março passado), duas outras ótimas lojas. De dia, uma loja no chique bairro de Salamanca, que fomos conhecer sem tirar a carteira do bolso, localizada, mais precisamente, no número 29 da Calle J. Ortega y Gasset (Metrô Velázquez ou Núñes de Balboa). De madrugada, fomos mais de uma vez, à Vips da Calle Fuencarral, número 101 (Metrô Bilbao), bem pertinho do Hotel Ibis em que nos hospedamos quando chegamos à capital espanhola. Era sempre o nosso último suspiro nos “comes” e compras, depois de um dia todo de exaustivas caminhadas. A Vips, basicamente, vende um sortimento (bastante) limitado de livros novos a preços promocionais (não é um sebo). Mas para quem gosta de perambular até tarde da noite e de economizar como eu, é um achado. Por fim, antes de sairmos da região da Gran Vía/Callao/Puerta del Sol em busca de outras paragens de Madrid, vou dar uma informação. Mas só para os “profissionais”. Indo em direção sul, para além da Plaza 85


Mayor, fica o chamado “Bairro das Letras” ou “Bairro dos Literatos”, um dos lugares mais agradáveis de Madrid para uma caminhada, onde viveram alguns dos grandes nomes no “Século de Ouro” da literatura espanhola, como Miguel de Cervantes (1547-1616), Lope de Vega (1562-1635), Luis de Góngora (1561-1627), Francisco de Quevedo (1580-1645) e por aí vai. O “Bairro das Letras” está cheio de livrarias e, sobretudo, de sebos, que ali são chamados, carinhosamente, de “librerías de viejo”. Uma das livrarias (de livros novos), por exemplo, é a interessantíssima “Librería Desnivel”, que fica no número 6 da Plaza Matute (metrô Antón Martín) e é especializada em viagens e aventura, onde podemos encontrar livros, guias, mapas, acessórios e tudo mais que um viajante/aventureiro quer ter na algibeira. Entretanto, o forte no “Bairro dos Literatos” são as “librerías de viejo” que, verdade seja dita, estão mais para “antiquários” de livros, voltados para os “bibliófilos”, do que para sebos do tipo que nós estamos acostumados aqui no Brasil. E é aí que o bicho pega. Comprar/colecionar livros antigos é um hobby ou uma “ciência” complicada e, sobretudo, cara, como descobri tanto lendo “La Cripta de Los Libros: Libreros de Viejo de Madrid” (de Peter Besas, publicado por Ediciones La Librería, 2012) como investigando in loco. E como somos “amadores” nessa arte, deixemos o “Bairro das Letras” para trás e vamos, antes que alguém me acuse de haver esquecido o Direito, em busca das livrarias jurídicas. Na nossa próxima conversa, sem falta.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 17 de maio de 2015


Minhas livrarias em Madrid (III) Na semana passada, no finalzinho da nossa conversa aqui, eu prometi escrever sobre as livrarias jurídicas de Madrid. Embora o Direito, via de regra, seja assunto “chatíssimo”, pago agora minha promessa. Na capital da Espanha, conheço três livrarias jurídicas, todas situadas na chamada “Madrid dos Bourbon”, região da cidade assim denominada para se contrapor a chamada “Madrid Antiga” (região por onde perambulamos nos nossos dois artigos anteriores). É na “Madrid dos Bourbon” que estão sediados os principais órgãos do aparelho “judicial” espanhol, tais como o “Consejo General del Poder Judicial”, o “Tribunal Supremo”, a “Fiscalia General del Estado” (nome dado ao Ministério Público espanhol), o “Tribunal Superior de Justicia de Madrid”, a “Audiencia Nacional” e o “Colegio de Abogados de Madrid”, todos muitos próximos quando não vizinhos. Pelo que sei, dos órgãos importantes para o amante do Direito, apenas o “Tribunal Constitucional” fica em outra região de Madrid, lá para as bandas da Universidade Complutense (sobre essa famosa universidade, vide o artigo “A Casa do Brasil”). Na “Madrid dos Bourbon”, registre-se, também estão situadas muitas das melhores atrações de Madrid: os famosos museus do Prado, Reina Sofia e Thyssen-Bornemisza, avenidas como o Paseo del Prado, o Paseo de Recoletos e a Calle de Serrano, as praças de Colón e de Cibeles, a Puerta de Alcalá, o Parque del Retiro e por aí vai. A “Madrid dos Bourbon”, portanto, merece uma ou muitas visitas, com ou sem livrarias jurídicas, podem ter certeza. Bom, a primeira das três livrarias jurídicas que posso sugerir é a “Librería Jurídica Intercodex”, que fica no número 4 da Calle Gil de Santivañes (se for tomar o metrô, sugiro descer na estação Colón ou na estação Retiro). Trata-se de uma livraria pequena, mas com um acervo variado entre clássicos e assuntos mais recentes do Direito (bioética, comércio eletrônico, direito da internet, globalização e outras coisas mais). Fica aberta durante a semana até às 20 horas, funcionando tam87


bém aos sábados pela manhã. Como ponto de referência, fica quase ao lado da maravilhosa “Biblioteca Nacional de España”, sobre a qual falaremos mais adiante. A segunda livraria é a “Librería Jurídica Lex Nova”, que fica na Calle Marqués de la Ensenada, número 4 (as estações de metrô Colón e Alonso Martínez servem bem a esse endereço). Para o profissional do Direito, sua localização é fantástica, bem no miolo da “Madrid Jurídica”, a dois passos do “Tribunal Supremo”, do “Consejo General del Poder Judicial”, do “Tribunal Superior de Justicia de Madrid” e da “Audiencia Nacional”, como vocês poderão constatar indo lá. Com dois andares, seu acervo, de livros nacionais (falo aqui de livros espanhóis, obviamente) e estrangeiros, na minha opinião, é excelente. Está aberta durante a semana até às 20 horas e aos sábados pela manhã. Recomendo uma ida lá, seguramente. Na mesmíssima área, está a mais badalada das livrarias jurídicas espanholas, a “Martial Pons”, muito conhecida dos estudantes de Direito no mundo todo, incluindo o Brasil. Pelo que sei, a “Martial Pons”, que também é uma editora de livros jurídicos (ver o catálogo brasileiro em www.marcialpons.com.br), possui quatro lojas na Espanha, duas em Madrid e duas em Barcelona (na capital da Catalunha, a loja que fica na Calle Provença, 242, bem pertinho do belíssimo Passeig de Gràcia, é excelente). Em Madrid, a livraria jurídica tem um novo endereço: está hoje situada na Calle Bárbara de Braganza, número 11, pertinho de tudo (que diz respeito ao mundo jurídico) e muito bem atendida pela estação de metrô Colón. Com um acervo maravilhoso, aberta durante a semana até às 20 horas e aos sábados pela manhã, é uma programação nota 9,87 para qualquer amante do Direito. Mas antes de encerramos esse nosso papo, tenho mais duas sugestões “livrescas” na “Madrid dos Bourbon”. Por lá, não deixe de visitar a sede principal da tricentenária “Biblioteca Nacional de España”, que fica no Paseo de Recoletos, 20-22, sendo muito bem servida pelas estações de metrô Colón e Serrano. É depósito legal de todos os livros publicados na Espanha, além possuir riquíssima coleção de livros raros, manuscritos, jornais, desenhos, fotografias, partituras, gravações sono88


ras etc. O museu da Biblioteca Nacional, antigo “Museo del Libro”, à semelhança dos museus de outras grandes bibliotecas (o exemplo que logo me vem à memória é o da British Library), é fantástico. Vale a pena passear, vagarosamente, por cada uma de suas salas, sobretudo as denominadas “La Biblioteca a través de la historia”, “La escritura y sus soportes” e “La memoria del saber”. A BNE está aberta de segunda a sábado até às 20 horas e também aos domingos pela manhã. E o melhor: a entrada é gratuita. Por fim, se ainda sobrar alguma energia, sugiro uma caminhada (partindo da “Biblioteca Nacional de España”) pelo Paseo de Recoletos e pelo Paseo del Prado (passando, portanto, pelos museus Thyssen-Bornemisz e do Prado) em direção a Calle Claudio Moyano, que, margeando o Real Jardim Botânico, liga o Paseo del Prado ao Parque do Retiro. Essa rua/ladeira, também conhecida como “La Cuesta de Moyano”, está cheia de bancas vendendo livros novos e, sobretudo, usados, à semelhança daquelas que encontramos às margens do Sena em Paris. Quem sabe ali você não faça uma última extravagância e encha sua sacola com muitos “libros de viejo”?

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 24 de maio de 2015.

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A mais bela biblioteca Já escrevi aqui, em mais de uma oportunidade, sobre algumas bibliotecas que, mundo à fora, visitei ou mesmo frequentei, vasculhando seus acervos, na qualidade de estudante curioso. Recordo-me haver tratado da Biblioteca Pública da Cidade de Boston (www.bpl.org), da Bodleian Library (www.bodleian.ox.ac.uk/bodley), a biblioteca da Universidade de Oxford, das parisienses Bibliothèque nationale de France – BnF (www.bnf.fr) e Bibliothèque publique d’information – Bpi (www. bpi.fr) e, em mais de uma oportunidade, da gigantesca British Library (www.bl.uk), que fica em Londres, onde fiz o meu PhD em direito. Hoje, em especial, vou escrever sobre aquela que considero a mais bela biblioteca da capital do Reino Unido: a queridíssima – pelo menos para mim – Maughan Library (www.kcl.ac.uk/library/visiting/ maughan.aspx), localizada na Chancery Lane, rua bastante conhecida da “Central London” (estação de metrô Chancery Lane). Antes de mais nada, devo registrar que a Maughan Library é uma das nove bibliotecas do King’s College London – KCL (no qual fiz o meu doutorado), “university college” londrino fundado em 1828/29 por iniciativa do Duque de Wellington (1769-1852), a quarta mais antiga universidade da Inglaterra e hoje ranqueada como uma das vinte melhores instituições de ensino superior do mundo. A mais tradicional e bela dessas bibliotecas, certamente, vocacionada às ciências humanas e sociais, incluindo aí línguas, literatura, cinema, história, geografia, filosofia, teologia, política, direito e muito – muitíssimo – mais. E nisso está, muito naturalmente, a razão do meu bem-querer pela Maughan Library. Nos meus quatro anos de doutorado no King’s College London – KCL, foram noites e mais noites caminhando entre aquelas estantes, muitas vezes perdido naquele labirinto de salas e corredores, lendo e escrevendo, sempre na boa companhia dos autores, de livros jurídicos ou não, de minha predileção. A história da Maughan Library como biblioteca é curiosa. A ocupação do sítio onde ela se acha retroage ao período medieval (sécu90


lo XIII, segundo se registra). A área foi adquirida pela Coroa em 1837. O imenso prédio atual (a estrutura principal, refiro-me), projeto de Sir James Pennethorne (1801-1871), foi edificado nos anos 1850, especialmente para abrigar o “Public Record Office” (“arquivo público”, em português) do Reino Unido. Nas décadas seguintes, foi várias vezes reformado e atualizado. O edifício foi adquirido pelo King’s College London – KCL em 2001. Ao custo de algumas dezenas de milhões de libras esterlinas, devidamente reformado e adaptado (é um edifício tombado, obviamente), foi reinaugurado em 2002, com a presença da própria Rainha Elizabeth II (1926), agora como a Maughan Library (em homenagem a Sir Deryck Maughan, homem de negócios e filantropo, ex-aluno do KCL, que fez uma doação substancial à universidade). Para se ter uma ideia da “majestade” da Maughan Library, ela é muitas vezes tida erroneamente como o edifício principal do King’s College London – KCL (que, na verdade, fica no campus da Strand, outra famosa rua londrina). Sua fachada é lindíssima, com torres e detalhes vitorianos quase indescritíveis. Os jardins externos, usados para descanso ou para uma refeição rápida, são bastante agradáveis. A entrada principal é pela bela torre do relógio, que se destaca da fachada como principal atrativo para as fotografias dos estudantes e dos turistas. Seu gigantesco interior, antigo e austero, apesar das orientações afixadas em todo lugar, é labiríntico, embora não ao ponto, graças a Deus, da “biblioteca borgeana” de “O nome da rosa” (1980) de Umberto Eco (19322016). Imensas portas de madeira antiga ou de ferro fundido separam um ambiente do outro. E só as janelas enormes, algumas preenchidas com coloridos vitrais, nos roubam a sensação de isolamento. Nesse “labirinto”, entre outras coisas, sugiro dar uma espiada nas preciosidades da “Foyle Special Collections Library”, espécie de museu da biblioteca (a exemplo do que se dá com todas as grandes bibliotecas), que ocupa uma das partes mais antigas do prédio, a “Rolls Chapel/Weston Room”, cuja estrutura retroage ao Medievo. E imperdível é uma visita ao “Round Room”, sala de leitura circular (na verdade, dodecagonal), no estilo da pertencente ao British Museum, com a qual certamente rivaliza em atmosfera e beleza. Que tal realizar alguma pesquisa por ali, como fize91


ram Robert Langdon e Sophie Neveu, em “O código Da Vinci” (2003), de Dan Brown (1964)? No mais, a região onde está a Maughan Library, conhecida como a “Legal London” (“Londres jurídica”, em português), é cheia de outros pontos de interesse tanto para o “turista jurídico” como para o amante de livros em geral. Por exemplo, quase em frente ao portão de entrada da Maughan Library fica a mais bela das “Inns of Courts” de Londres, a Lincoln’s Inn. Já sob uma das arcadas de entrada da Lincoln’s Inn (a da Carey Street), fica a livraria jurídica de maior acervo em Londres, a excelente Wildy & Sons. Mais ao sul, caminhando pela Chancery Lane e chegando à famosa Fleet Street (que outrora foi a rua dos grandes jornais londrinos), ficam mais duas outras “Inns”, o Inner Temple e o Middle Temple, que valem também muito a pena ser visitadas. Na mesma Fleet Street, bem pertinho, fica o belíssimo edifício das Royal Courts of Justice (sede tanto da High Court of Justice como da Court of Appeal). Aliás, sobre a “Legal London” e as “Inns of Courts” já escrevi aqui, com bem mais detalhes, em um conjunto de artigos intitulados “Minhas livrarias em Londres I, II e III”. Por fim, caro leitor, dali é muito fácil dar uma esticada pela Fleet Street em direção (leste) à gigantesca e lindíssima St. Paul Catedral, a obra-prima de Sir Christopher Wren (1632-1723), edificada entre os anos de 1675 e 1710, e que desde então domina a paisagem da “City” londrina. Coisa de cinco ou dez minutinhos caminhando. Mas, para ser sincero, recomendo – quase exijo – “pit stop” no caminho, para o devido abastecimento, no antiquíssimo Ye Olde Cheshire Cheese (número 145 da Fleet Street), talvez o mais famoso dos pubs Londrinos, construído em 1538 e reconstruído em 1667 (após destruído pelo grande incêndio de 1666), do qual, dizem, Samuel Johnson (1709-1784) e Charles Dickens (1812-1870) foram conhecidos “regulars”. E sem pressa, porque, ali, querendo ou não, o tempo de pesquisa é contado em “pints” de cerveja.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 21 de agosto de 2016.


A biblioteca jurídica Na semana passada, escrevi aqui sobre a Maughan Library, a belíssima biblioteca do King’s College London – KCL (uma das nove bibliotecas desse “university college”), que está convenientemente localizada na Chancery Lane, afamada rua da “Legal London”. Hoje vou tratar da maior e mais importante biblioteca de direito do Reino Unido: a Biblioteca do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados (“Institute of Advanced Legal Studies Library”, é o nome oficial) da Universidade de Londres (http://ials.sas.ac.uk/library/ library.asp), que também se acha convenientemente situada, tanto para quem dela faz uso constante (o pesquisador, o estudante ou o “prático” do direito) como para o turista interessado nesse tido de “atração”, no número 17 da Russell Square (Charles Clore House), no charmoso bairro de Bloomsbury, no centro de Londres. Mas, antes de tratar da biblioteca propriamente dita, vão duas observações sobre a Universidade de Londres e o seu Instituto de Estudos Jurídicos Avançados. Em primeiro lugar, ao contrário do que muitos pensam, a denominada “University of London”, fundada em 1836, não é uma universidade nos mesmos moldes das que temos no Brasil, mas, sim, uma “federação de universidades”, composta por dezessete “colleges” autogovernados e mais nove institutos de pesquisa especializados, que se “uniram”, para determinados fins, no afã de melhor desempenhar seus misteres. Dentre as “universidades/colleges” que compõem a Universidade de Londres estão, por exemplo, gigantes do ensino acadêmico, como o University College London – UCL e o King’s College London – KCL, que são as universidades fundadoras da “University of London”, e a respeitadíssima London School of Economics and Political Science – LSE. Já o Instituto de Estudos Jurídicos Avançados (“Institute of Advanced Legal Studies”), fundado em 1947, é um dos institutos da “School of Advanced Study” da Universidade de Londres (também, por sua vez, uma “federação” de institutos de pesquisa fundada, dentro da Universidade, em 1994), todos vocacionados 93


às ciências humanas, que têm como objetivo promover, nacional e internacionalmente, em apoio a diversas outras instituições (por exemplo, os “colleges” da Universidade de Londres, as demais universidades do Reino Unido e por aí vai), com fundos especialmente designados para tanto, o estudo e a pesquisa (com mestrados e doutorados de reconhecida qualidade) nas suas respectivas áreas de concentração. A Biblioteca do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados da Universidade de Londres é – e isso é muito importante – depósito legal para livros jurídicos no Reino Unido. Segundo o seu próprio site informa, ela tem em acervo bem mais de 300 mil volumes autônomos, relacionados aos inúmeros ramos do direito e às ciências afins (transdisciplinarmente), que se juntam a alguns milhares de títulos de revistas e periódicos dos mais diversos tipos. Em muitos ramos do direito, notadamente em direito internacional e em direito comparado, suas coleções são as maiores do Reino Unido, com obras que, nas terras da Rainha, apenas ali são encontradas. Some-se a isso o acesso (com cursos especialmente designados para tanto) que os membros/usuários da Biblioteca do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados têm, gratuitamente, às mais badaladas ferramentas de informática da atualidade, como é o caso do Westlaw e do LexisNexis, que em regra são pagos e bem caros, para consulta do “case law” e da legislação do Reino Unido e de outros países, de revistas jurídicas com artigos e comentários, de notícias do mundo jurídico, entre outras coisitas mais. Para dar cabo dessa empresa, o prédio da Biblioteca do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados, de concreto aparente, mais largo do que alto, é enorme. Se não estou enganado, além dos (andares) destinados à administração e às demais funções do Instituto, são pelo menos cinco andares, em forma retangular, cada qual com muitíssimos metros quadrados de área, tomados quase exclusivamente por estantes e mais estantes, com livros e periódicos nas mais diversas línguas, além, claro, do inglês, ao mesmo tempo idioma oficial e língua franca por ali. E tudo é muito amplo, funcional e agradável. Em alguns andares (os que não estão no subsolo, evidentemente), chamam a atenção as janelas de vidro, enormes, que dão uma sensação gostosa de liberdade e, sobretudo, 94


de comunhão com a vida que passa, sem nos dar muita trela, pela cidade. Auditórios, grandes e pequenos, assim como salas de aulas, não faltam por ali. Também há laboratórios com computadores para atividades específicas. As salas de estudo estão espalhadas pelo prédio, assim com há, em meio às estantes dos livros, vários nichos, alguns com computadores, para pesquisa e elaboração imediata dos textos desenvolvidos. Os melhores nichos, claro, são os que ficam bem próximos às janelas, já que iluminados pela luz colorida de Londres. Toda essa estrutura, voltada para a pesquisa de alta qualidade, tem servido preferencialmente à comunidade acadêmica, sobretudo à do Reino Unido e dos países de língua inglesa. Mas está aberta também a outros setores da inteligência jurídica, incluindo aqueles que lidam com o dia a dia do direito, como é o caso de juízes, promotores e advogados praticantes. Que tal, caro leitor, tornar-se membro do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados para uma temporada de estudos? Os formulários de aplicação estão disponíveis no sítio do Instituto. É ir lá, preencher e pleitear. Mas se, como turista de ocasião em Londres, não for esse o seu objetivo, também vale a pena dar só uma espiadela na “Biblioteca Jurídica” da Russell Square, já que aquela região londrina é interessantíssima. Ora, a Russell Square, em si, é uma praça belíssima. Os principais prédios da Universidade de Londres, como a Senate House e o campus do University College London - UCL, ficam por ali. Há inúmeras livrarias/sebos nas redondezas, como London Review of Books (charmosíssima), a Waterstones da Gower Street (uma gigante servindo aos professores e estudantes da Universidade de Londres) e o Scoob Books (pelo que sei, o maior sebo de Londres). A British Library fica a algumas quadras ao norte; o British Museum, a poucas quadras ao sul. Então, vale ou não vale pena?

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 28 de agosto de 2016.

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A British Library, sua lojinha e a Magna Carta

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A biblioteca e a Bíblia

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Minhas livrarias em Londres

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Minhas livrarias em Londres

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A biblioteca da Big Apple

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A biblioteca da Big Apple

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A biblioteca do banqueiro

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A biblioteca jurĂ­dica

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A biblioteca perdida

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A cidade de Shakespeare

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A mais bela biblioteca

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A maior do mundo

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A noite dos museus

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As livrarias de Oxbridge

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Bibliotecas espanholas

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Minhas livrarias em Madrid

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Avenida Corrientes

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Duas bibliotecas

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Livrarias, cafés e uma fundação

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O primeiro cafĂŠ

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Minhas livrarias em Buenos Aires

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Minhas livrarias em Buenos Aires

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Minhas livrarias em Nova York

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Minhas livrarias em Nova York

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Minhas livrarias em Paris

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Minhas livrarias em Paris

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O museu e a biblioteca

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Os livros da Ă?ndia

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Oxford e Cambridge - as grandes rivais

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Oxford e Cambridge - as grandes rivais

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Perdidos no mercado

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Sobre O nome da rosa

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Minhas livrarias em Buenos Aires (I) Já escrevi aqui, em mais de uma ocasião, sobre livrarias e sebos de capitais do mundo que, como estudante ou simplesmente “turistando”, visitei ou mesmo frequentei. Estabelecimentos em Londres, Paris, Madrid e por aí vai. Hoje vou dar meus pitacos sobre os “comércios de livros” da capital da Argentina, a belíssima e querida Buenos Aires (e a rivalidade no futebol está longe de diminuir esse meu bem-querer), onde estive faz bem pouco tempo, mais uma vez com caneta e papel na mão, tudo anotando, já pensando em escrever este “roteiro” para os que “sofrem” do amor pelos livros. Mas Buenos Aires, com sabemos, é enorme. A cidade propriamente dita tem cerca de 3 milhões de habitantes. Na sua região metropolitana, a terceira maior da América Latina (logo depois da Cidade do México e de São Paulo), moram algo em torno de 13 milhões de pessoas. E Buenos Aires, bem mais do que as grandes cidades brasileiras, proporcionalmente mais do que qualquer outra metrópole do mundo (li isso dia desses, embora não me lembre onde), conta com muitíssimos comércios de livros (mais um ponto para a capital portenha). Em razão disso, tanto para tornar o nosso roteiro livresco minimamente exequível, como para não falar sobre o que desconheço – como, por exemplo, os muitos comércios de livros antigos/usados da extensa Av. Corrientes –, vou restringir meus pitacos, tomando por base os meus achados “in loco”, a quatro ou cinco regiões da cidade, todas de fácil acesso para o turista interessado na coisa. Despretensiosamente, comecemos pela talvez mais turística região/ rua de Buenos Aires, que alguns adoram (sobretudo, os que vão “às compras”), outros odeiam (porque a acham, com certa razão, muito tumultuada ou mesmo decadente): a Calle Florida, no microcentro da cidade (de metrô, para a chegar a essa área do centro, as estações recomendáveis são Florida ou Lavalle). Particularmente, acho que a região da Calle Florida tem seus atrativos, sendo especialmente do meu agrado 130


as merecidamente afamadas Galerias Pacífico (que ficam na esquina da Florida com a Av. Córdoba). Nessa famosa rua de comércio, na minha busca por livrarias e sebos, topei (e adorei esse “acidente”) com duas lojas da cadeia de livrarias El Ateneo, localizadas nos números 340 e 629, não muito distantes, portanto, uma da outra. As duas lojas são muito boas, com acervos diversificados (juntando as duas, tem de tudo, podem ficar certos), sendo a do número 629 particularmente bela. Aliás, para quem não sabe, a associação do grupo El Ateneo com a rede livrarias Yenny formou um gigante do comércio de livros na Argentina, com dezenas lojas espalhadas país afora. Por ali também se encontram duas lojas da rede Cúspide Libros (outra gigante desse comércio, com dezenas de “tiendas” distribuídas pelo país), uma delas nas já citadas Galerias Pacífico e a outra no número 628 da Calle Florida. Também vendem de tudo um pouco, e estão por mim aqui devidamente recomendadas. Outra região importante do meu/nosso roteiro livresco é a Recoleta. E sobre a Recoleta, tenho certeza, ninguém vai falar mal. Melhor lugar para ficar não há. Central, chique, gastronômica, animada, bizarra (vide a visita de praxe que se faz ao cemitério local) e relativamente barata. Hospedado na Recoleta nessa minha última estada em Buenos Aires, tenho três livrarias para recomendar por aquelas bandas (todas elas acessíveis de metrô pela estação Callao). Em relação a duas delas, o faço não tanto pelos seus acervos, mas, sobretudo, pelo fato de elas serem, a meu ver, muito mais restaurantes/bistrôs que vendem bons livros de que outra coisa, numa mistura que achei interessantíssima. A primeira delas, cuja história remonta ao começo do século XX, chama-se Clásica y Moderna e fica no número 892 da Av. Callao. Recomendo demais, pela comida, pela programação cultural, pela beleza e pelos livros. A segunda, pequenina, minimalista, “cool”, com livros bem em conta, é a Distal Libros, que fica no número 1725 da Calle Junín, bem em frente ao famoso Cemitério. Um bistrô/livraria, com programação cultural constante, que descobrimos, para nossa felicidade (a minha, principalmente), vizinho, parede a parede, ao nosso hotel. E de quebra também há, nos fundos do Cemitério, no Recoleta Mall, no número 2036 da 131


Calle Vicente López, uma loja da cadeia Cúspide Libros, enorme, vendendo de tudo, com um Starbucks conjugado, cafeteria que, confesso, é muito do meu agrado. No mais, bem próximo do burburinho da Recoleta, no número 1860 da Av. Santa Fé (estação de metrô Callao), fica a mais famosa livraria de Buenos Aires, imperdível: El Ateneu Grand Splendid. O seu acervo, para ser sincero, embora tenha de tudo (filosofia, política, história, livros de arte, guias de viagens, ficção e por aí vai), levando em consideração a sua (enorme) fama e tamanho, deixa um pouco a desejar. Mas, ocupando o prédio de um antigo teatro (o Teatro Grand Splendid), ela é belíssima. Seu teto, suas bancadas, seus antigos camarotes, a cortina ainda presente, a iluminação, tudo isso impressiona e faz dela, certamente, uma das mais belas livrarias do mundo. O seu café, que fica no fundo da livraria, onde outrora foi o palco do teatro, é muitíssimo agradável, o que, sabemos muito bem, é deveras importante para o “turista literato”. E foi ali, recordo-me perfeitamente, que comprei um livro sobre Jorge Luis Borges (1899-1986, o meu escritor argentino preferido, que me desculpem os admiradores de Cortázar, Bioy Casarès, Ernesto Sabato e outros menos votados) e a literatura policial, interessantíssimo, sobre o qual prometo, um dia, aqui resenhar. Bom, agora, por falta de espaço hoje, paro aqui. Mas prometo voltar na próxima semana, apresentando mais alguns dos meus “achados livrescos” em Buenos Aires. E, como vocês terão a oportunidade de conferir domingo que vem, esses foram, porque inusitados, os meus melhores “achados”.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 4 de setembro de 2016.


Minhas livrarias em Buenos Aires (II) Como prometido na semana passada, quando iniciei este nosso “tour” por livrarias e sebos de Buenos Aires, hoje apresento mais alguns dos meus “achados livrescos” – penso que os melhores – na capital argentina. E se, na semana passada, comecei partindo do microcentro da cidade em direção ao bairro da Recoleta, hoje faço o caminho inverso, partindo da região mais afastada de Palermo (Soho e Hollywood), para, ao final, como vocês verão, retornar ao centro da cidade. Palermo (especialmente suas subáreas apelidadas de “Soho” e “Hollywood”) fica a nordeste do centro de Buenos Aires. Assim como a Recoleta, embora não tão central, é “cool”, chique e, ao mesmo tempo, descolada, com comércio e vida noturna animadíssimos. Seus bares e restaurantes (gostei demais do La Cabrera) são do balacobaco. Para chegar lá, além da opção do táxi, sugiro tomar um metrô até a estação Plaza Italia e caminhar sentido norte, pela Calle Thames, perdendo-se aqui e acolá – como animadamente fizemos, finzinho de tarde, por sugestão minha – até a Praça Cortázar, em torno da qual a coisa ferve. Foi nessa caminhada que, sem intenção alguma, topamos com várias livrarias, algumas misturas de bistrô (com bons vinhos e comida), cafeteria e comércio de livros, todas agradabilíssimas. Eis as de que mais gostei: Libros del Pasaje (Calle Thames, 1762), Dain Usina Cultural (Calle Nicaragua, 4899) e Eterna Cadencia (Calle Honduras, 5582). Mas são muitas as opões de livrarias, quase todas nesse mesmo estilo, por esse bairro da moda. Caminhe sem neura, escolha a(s) do seu agrado e, sem pressa, desfrute a coisa. Encerrada a perambulação por Palermo, minha sugestão é que retornemos ao centro da cidade, de preferência na manhã do dia seguinte, para uma visita à livraria mais interessante – essa é minha opinião – de Buenos Aires: a Librería de Ávila, que fica no número 500 da Calle Adolfo Alsina, no tradicional bairro de Montserrat (estações de metrô Bolivar, Peru ou Plaza de Mayo). Antes de mais nada, a Librería de 133


Ávila é cheia de história. Ocupa o local onde outrora funcionou a famosa Librería del Colegio (assim denominada em homenagem ao Colegio Nacional de Buenos Aires, a instituição de ensino mais antiga da Argentina, fundada pelos jesuítas), oficialmente aberta em 1830 e tida como a primeira livraria de Buenos Aires (entretanto, registre-se que, antes mesmo de 1830, funcionou no local um estabelecimento comercial, chamado “La Botica”, que vendia de tudo, inclusive livros). Políticos (incluindo Presidentes da República), cientistas, intelectuais e, sobretudo, os grandes escritores argentinos de outrora foram habitués da Librería del Colegio. O prédio original foi demolido em 1926 e outro, mais pomposo, foi no seu lugar erguido. De toda sorte, o local restou relacionado às letras. Na década de 1990, o livreiro Miguel Ávila (que dá nome à “nova” livraria) comprou o negócio. Recuperou o prédio com um trabalho minucioso. Comercializando livros novos, seminovos e usados, o acervo da Librería de Ávila é grande e variado. Há toda uma sessão de livros raros e esgotados (mas isso fica para os entendidos nessa arte). E há muita coisa de história (sobretudo argentina e latino -americana), filosofia, antropologia, linguística, literatura, cinema, nas ciências humanas em geral, pode-se dizer. “Declarada Lugar Histórico Nacional por decreto de la Presidencia de La Nación y Sitio de interés cultural por el Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires” (como consta da sacola que ela disponibiliza para carregar os livros adquiridos), a Librería del Colegio/de Ávila é realmente imperdível para os amantes de livros. E isso sem falar que, na sua vizinhança, estão algumas das mais famosas atrações da cidade, como o lindo Cabildo de Buenos Aires, a Catedral Metropolitana, Plaza de Mayo, a Casa Rosada, o Manzana de las Luces, o Mercado de San Telmo, o já citado Colegio Nacional de Buenos Aires e por aí vai. Por fim, antes de encerramos o dia, devemos ir em busca das livrarias jurídicas, muito embora seja a contragosto, eu logo confesso, que deixo Librería de Ávila e os seus arredores em busca de livros tão enfadonhos. A vantagem é que, para tanto, não precisamos sair do centro de Buenos Aires. As livrarias jurídicas se concentram ali, perto do Obelisco, quase por detrás do Teatro Colón, mais precisamente ao derredor 134


do Palácio de Tribunales. É muito fácil chegar lá a pé (estando ali pelo centro, é claro) ou tomando o metrô para a estação Tribunales. De logo, posso sugerir pelo menos três ótimas livrarias jurídicas nessa região (mas por ali há outras, é certo), quase vizinhas uma da outra, que, para nossa felicidade, aceitam pesos, dólares e reais (nos dois últimos casos com uma conversão muito boa para nós). A primeira delas é a Cathedra Jurídica, que está no número 1280 da Calle Lavalle. Não é grande nem pequena. Mas tem um acervo de livros técnicos muito bom, em vários ramos do direito, notadamente os ramos mais novos dessa ciência. Foi ali que comprei, não sei bem o porquê (suspeito que, inconscientemente, com saudade do meu cão querido, o grande Capote), os livros “El derecho de los animales” e “Los animales no humanos”, que, qualquer dia desses, leio e comento para vocês. Esse novo ramo do direito, sem dúvida, é promissor. No número 427 da Calle Talcahuano, fica a Librería del Jurista, que, além de livros de direito, vende também, embora em menor quantidade, títulos de economia, história e outras ciências mais. É pequenina, mas contém coisas interessantes a um preço muito bom. Acho que foi ali, mas posso estar enganado, que comprei o livro “Tres jueces”, que contém o conto/novela, “El juez Surra”, do grande Andrea Camilleri (1925-). Na interdisciplinariedade entre direito e literatura, onde hoje milito, isso foi um achado. E na mesma Calle Talcahuano, no número 485, fica a livraria/editorial IBDEF. Também não é grande. Mas é excelente. Tão boa que ali acabei comprando um livro em português, publicado no Brasil por Ricardo Lenz Editor, “Os Criminosos na Arte e na Literatura”, do penalista e criminologista italiano Enrico Ferri (1856-1929), que, há muito tempo, desejava. Curiosíssimo o livro de Ferri, para dizer o mínimo. Entretanto, o melhor mesmo na região são as bancas (tipo bancas de jornal) que, levando em consideração a histórica desvalorização do peso argentino, vendem livros jurídicos, novos e usados, a preços (quase) de banana. Foi ali que adquiri, novinho em folha e muito barato, uma verdadeira preciosidade (que sequer tinha ouvido falar): o livro “Imaginar la ley: El derecho en la literatura”, organização de Antoine Garapon y Denis Salas e publicado pela Editorial Jusbaires com o apoio 135


do Poder Judicial de la Ciudad de Buenos Aires/Consejo de la Magistratura. E se existe uma coisa de que me arrependo na minha estada em Buenos Aires foi não ter reservado mais tempo para garimpar preciosidades naquelas maravilhosas bancas. E dito isso, já exausto, paro por aqui. É hora de um bife de chorizo e umas (muitas, talvez) “copas” de vinho. Ponto final.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 11 de setembro de 2016.


O museu e a biblioteca Dividida em cidade nova e cidade velha, (sendo esta, dominada pelo seu castelo e pela Royal Mile, certamente a parte mais interessante), Edimburgo, capital da Escócia, é uma urbe belíssima, com poucas rivais, nesse quesito, na Europa. A depender da época do ano em que você a visite, é um pouco escura, é verdade. E é também um pouco triste – pelo menos essa foi a minha sensação –, sobretudo se você prestar demasiada atenção (foi o meu caso na última vez que estive por lá) na história do pequeno Greyfriars Bobby, um cãozinho terrier local, que, por quatorze anos, tomou conta do túmulo do seu amado dono. Mas, reitero, Edimburgo é belíssima. E como se isso não bastasse, para nós, amantes dos livros, Edimburgo tem, embora pequenino, um “Museu dos Escritores”. Mais precisamente, um museu dedicado à vida e à obra de três grandes literatos escoceses: Robert Burns (1759-1796), Walter Scott (1771-1832) e Robert Louis Stevenson (1850-1894, sobre quem, já faz alguns anos, escrevi aqui). Hospedado numa casa que data de 1622 (renovada algumas vezes, por óbvio), sita na rua/praça denominada “Lady Stair’s Close”, o museu está caprichosamente decorado com primeiras edições, mobília e inúmeros objetos que pertenceram aos três grandes escritores, além, claro, de contar a vida e explicar um pouco da obra dos homenageados. E há, também, de vez em quando, pequenas exposições temporárias que dão ao museu, como ele mesmo afirma, “a oportunidade de celebrar a vida e obra de outros escritores que contribuíram para o desenvolvimento e para diversidade da literatura escocesa”. Isso sem falar na lojinha que vende artigos e livros sobre livros, onde você pode sempre encontrar algo do seu agrado. Por exemplo, foi lá que, por precisas 12,99 libras, adquiri algo que procurava desde o início da minha peregrinação pelas terras de David Hume (1711-1776) e Adam Smith (1723-1790): “The Literary Traveller in Scotland: a Book Lover’s Guide”, de Allan Foster, Mainstream Publishing, 2007. Um livro/guia que, confesso, deveria ter usado mais em minha estada na Escócia, mas que, de toda sorte, me está 137


sendo útil para elaborar este riscado. E mais: Edimburgo sedia uma maravilhosa Biblioteca Nacional da Escócia (“National Library of Scotland - NLS”, no original), cujo prédio principal, de fachada belíssima, fica na George IV Bridge, bem pertinho da Royal Mile, na cidade velha. Curiosamente, a NLS foi formalmente criada em 1925, por ato do Parlamento do Reino Unido, a partir de doação feita à nação, pela “Faculty of Advocates” (uma espécie de OAB escocesa), de todo o seu acervo de livros não jurídicos. É a maior biblioteca da Escócia e um dos seis depósitos legais de livros para o Reino Unido e a República da Irlanda (juntamente com a British Library/London, a Bodleian Library/Oxford, a University Library/ Cambridge, a Library of Trinity College/Dublin e a National Library of Wales/Aberystwyth). Seu acervo é contado em milhões: quinze milhões de livros impressos; dois milhões de mapas, que datam de mais de setecentos anos; sete milhões de manuscritos; dois milhões de documentos públicos originados no Reino Unido, na Escócia, nos EUA e em muitos países da Commonwealth; dezenas de milhares de periódicos; muitos milhares de gravações musicais, de filmes e de fotografia; e por aí vai. Tudo isso aberto ao público, in loco e on-line, da forma menos burocrática possível, gratuitamente. No mais, como toda grande biblioteca, a Biblioteca Nacional da Escócia é, também, um excelente museu. Parte do seu rico acervo, com suas obras raras, é exibido, em local próprio, para nós pobres mortais. Sua coleção de mapas é orgulhosamente propagandeada como uma das maiores do mundo. Isso sem falar nos eventos e nas exibições temporárias. Por exemplo, quando estive por lá no ano passado, uma dessas exibições – “Playing Shakespeare: 400 years of great acting” – era comemorativa dos quatrocentos anos da morte de Shakespeare (15641616) e tratava dos muitos atores que, nesses quatro séculos de história e estórias, interpretaram as personagens desse grande conhecedor da alma humana. Outra exibição acontecendo por aquela época chamavase “Praga! Uma história cultural das doenças contagiosas na Escócia” (“Plague! A Cultural History of Contagious Dideases in Scotland”), so138


bre a peste negra, a cólera, o tifo e outras mazelas, muito interessante por sinal, mas que dei apenas uma espiada, já ressabiado e triste que vinha com outras histórias ou lendas (quem sou eu para decidir) de bruxas, espíritos, cães e túmulos nessa cidade milenar. Bom, minha sugestão final para Edimburgo: visite o Museu dos Escritores, dê uma passada na Biblioteca Nacional da Escócia e, principalmente, tente não pensar muito na história do fiel Greyfriars Bobby, sobretudo se você já estiver na terceira ou quarta dose do uísque nacional.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 8 de janeiro de 2017.

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Minhas livrarias em Nova York (I) Estive em Nova York no final do ano passado. Coisa de uma semana, no mês de outubro, andando para cima e para baixo na ilha de Manhattan, o mais antigo, densamente povoado (para lá de um milhão e meio de habitantes ali apertados) e badalado dos cinco grandes “distritos” (ou “boroughs”, como eles chamam por lá) da cidade. Apesar de composta de outros quatro distritos (Bronx, Brooklyn, Queens e Staten Island), com uma população total estimada de cerca de nove milhões habitantes (e vinte milhões na sua região metropolitana), definitivamente Nova York é, para o turista, Manhattan. Mais uma vez, fiz a minha peregrinação de turista com caneta, papel e celular na mão visitando, propositadamente, a partir de um estudo prévio, mas sem a ajuda de qualquer guia especializado (que procurei, mas estranhamente não achei), os comércios de livros da cidade (leia-se: da ilha Manhattan). E em Nova York são muitos os comércios de livros, embora não tanto como em Paris ou mesmo em Londres, ou, pelo menos, não no mesmo estilo de pequenas e antigas livrarias quase uma a cada esquina. Tudo em Nova York parecer ser (ou pretende ser) grande. E aqui vai o meu “roteiro livresco” de Nova York, misturado com umas dicas de turismo geral, uma vez que ninguém merece ir a “Big Apple” para ficar enfurnado apenas em sebos e livrarias. Para facilitar a nossa vida, organizei as coisas partindo do sul para o norte, de “downtown” para “uptown” ou, trocando em miúdos, de baixo para cima, levando em conta os já conhecidos mapas de Manhattan. Assim, a minha primeira sugestão de livraria fica no bairro/região de Tribeca, ao sul, em Downtown, perto da City Hall, do World Trade Center, de Wall Street e mesmo da Ponte do Brooklyn e do Seaport Historic District, atrações que valem muito a pena, todas elas, visitar. Chama-se “The Mysterious Bookshop” e fica no número 58 da Warren Street (usando o metrô, sugiro descer nas estações Chambers Street ou City Hall). Seu forte é a literatura policial ou detetivesca. 140


Afirma-se uma das mais antigas livrarias especializadas do EUA, com mais de três décadas no mercado. Deve ser mesmo. Vendendo livros novos e usados, capas duras e livros de bolso, edições raras, ficção e ensaios, para quem gosta do gênero policial/detetivesco (o meu caso), é um verdadeiro achado. Para ser ter uma ideia, ali comprei três tesouros: “Murder Ink: the Mistery Reader’s Companion” (Workman Publishing, 1977), de Dilys Winn; “Novel Verdicts: a Guide to Courtroon Fiction” (The Scarecrow Press, 1999), de Jon L. Breen; e “The Detective as Historian: History and Art in Historical Crime Fiction” (Bowling Green State University Popular Press, 2000), editado por Ray B. Browne e Lawrence A. Kreiser Jr.. De quebra, bem pertinho, na mesma Warren Street, no número 97, tem-se uma loja da “Barnes & Noble”, gigante cadeia de livros, espalhada por todos os Estados Unidos da América, sobre a qual vou falar mais detidamente quando tratar das livrarias de Midtown (mas já adianto que há uma enorme “Barnes & Noble” por ali, bem na quinta avenida). Por enquanto, informo que a “Barnes & Noble” da Warren Street fica colada em uma “Bed, Bath & Beyond”, excelente loja de produtos de casa onde as mulheres podem ficar (se não estão interessadas em livros, evidentemente), enquanto se exploram a(s) livraria(s). Mas sem cartões de crédito, claro. Já um pouco mais ao norte (mas ainda em Downtown), na região de Greenwich Village (que, girando em torno da Washington Square, é cheia de história e agradabilíssima para se andar a pé), sugiro dar uma passada, embora rápida, na “New York University – NYU Bookstore”, que fica no número 726 da Broadway Avenue (metrô 8ª Street – NYU ou Astor Place). Digo rápida porque ela é direcionada apenas para cursos, apostilas e livros didáticos para os estudantes da NYU, além dos souvenires de estilo (moletons, camisetas, canetas, canecos etc.), o que, confesso, me decepcionou deveras. Mas pode ser que você se interesse por algo. Entretanto, ali bem pertinho, dei de cara com uma livraria/sebo que achei uma joia: a “Mercer Street Books and Records”, que fica no número 206 da tal Mercer Street (metrô Broadway-Lafayette Stre141


et ou Bleecker Street). É pequenina, mas bem variada. Os preços são excelentes. Foi ali que eu comprei, por um dólar e algo, uma edição de 1960, da Bantam Books, da peça “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”), de Jerome Lawrence (1915-2004) e Robert E. Lee (19181994), que, inclusive, já usei e citei por aqui. Por fim, antes de terminar este nosso primeiro dia de peregrinação pela livrarias de Nova York, já que a fome bateu, tenho duas sugestões de livrarias que misturam livros com comidas e bebidas. Tudo ainda muito próximo, na região de NoLita (North of Little Italy), que fica ao sul do East Village. Uma delas é a “McNally Jackson Books”, misto de livraria e bistrô muito interessante, que fica no número 52 da Prince Street (metrô Prince Street, Spring Street ou Broadway-Lafayette Street). Ótima livraria independente, com dois andares e um café. Foi um achado. Procurávamos uma tal “Delicatessen” (54 Prince Street). Achamos os dois. A outra é a “Housing Works Bookstore Café”, que fica no número 126 da Crosby Street (metrô Prince Street ou Broadway-Lafayette Street) e é até mais badalada que “McNally Jackson”. Na verdade, pelo que vi, a “Housing Works”, em Downtown, já virou até ponto turístico. Bom, por enquanto, dito isso, encerro apenas dizendo: leiam e comam bem.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 12 de março de 2017.


Minhas livrarias em Nova York (II) Na semana passada, conversamos aqui sobre algumas livrarias e sebos da região mais ao sul da ilha de Manhattan, também chamada de “downtown” Nova York. Hoje, partindo do coração do Greenwich Village, iremos um pouquinho mais para o norte, mas ainda em “downtown”, para tratarmos de livrarias que se acham ao derredor da animada Union Square. Por aquelas bandas, que é uma região agradabilíssima, bastante central e movimentada, cheia de restaurantes e de lojas, por onde passam várias linhas de metrô, tenho pelo menos quatro dicas de comércios de livros. A primeira delas é a pequenina “Alabaster Bookshop”. Fica ao sul da Praça da União, no número 122 da 4ª Avenue, entre as 12ª e 13ª Streets (metrô Union Square), precisamente onde outrora existiu o histórico “book row” de Nova York, que chegou a ter quarenta e oito comércios de livros em pleno funcionamento. Vende livros usados e raros. É, portanto, basicamente, um sebo. Mas é muito bom. Foi lá que encontrei um livro que procurava em inglês fazia tempo (claro que poderia tê-lo comprado pela Internet, via Amazon, mas não teria a mesma graça): “Animal Liberation”, do filósofo australiano Peter Singer (1946-), uma obra que, publicada em 1975, foi seminal no que toca ao tratamento que devemos dar aos nossos amigos não-humanos. Minha edição é de 1977, da Avon Books, em papel-jornal, mas está novinha. Bem pertinho dali, no mesmo quarteirão, no número 828 da Broadway Avenue, esquina com 12ª Street (metrô Union Square), fica o que eu considero o melhor e maior comércio de livros novos e usados de Nova York: a “Strand Bookstore”. Gigante. Quatro andares de livros ou, como a própria livraria define em suas sacolas de compras, “18 miles of books”. Foi fundada em 1927 por Benjamin Bass, no já desaparecido “book row” da 4ª Avenue, do qual é a última sobrevivente, para vender livros usados. Mudou para o atual endereço em 1957. Em 1988 passou a vender também livros novos. Em 2000 começou a vender livros pela Internet. Possui ainda alguns pequenos quiosques espalhados

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pela cidade. Pelo que sei, ela continua sendo uma empresa familiar, gerida por Fred e Nancy Bass, respectivamente, filho e neta do fundador. Como certa vez disse Katia Zero, no seu “Guia de New York” (edição de 1998 da Makron Books), que me foi muito útil nas primeiras vezes em que estive na “Big Apple”: “Escolha o livro onde for e venha comprá-lo aqui. O maior depósito de livros de segunda mão dos Estados Unidos. Dezoito milhas de prateleiras abrigam mais de dois milhões de volumes usados, review copies, os tais volumes dados aos jornalistas que escrevem críticas etc. Dos enormes volumes de arte e decoração até brochuras encontram-se aqui com 30 a 50% de desconto. Até mapas e guias do ano têm descontos. Preciosos volumes da biblioteca de Delfim Neto foram, em parte, comprados aqui”. Desta última vez em Nova York, estivemos várias vezes na “Strand”. Nem dá para precisar aqui o que comprei. Mas, só na minha frente, agora tenho títulos como “A History of American Law” (de Lawrence M. Friedman, Simon & Schuster Inc., 1985), “Great Decisions of the U.S. Supreme Court” (editado por Maureen Harrison e Steve Gilbert, Barnes & Noble Books, 2003), “American on Trial: Inside the Legal Battles that Transformed our Nation” (de Alan M. Dershowitz, Warner Books, 2004), “The American Judicial Tradition: Profiles of Leading American Judges” (de G. Edward White, Oxford University Press, 2007) e “The Handy Supreme Court Answer Book” (de David L. Hudson Jr., Visible Ink Press, 2008). Todos grandões e novinhos, o mais barato custando seis dólares, o mais caro, treze. Voltaria lá, na “Strand”, tanto quanto possível. Do lado oposto da praça (refiro-me à Union Square), ao norte, vizinho a um grande pet shop (“Petco Animal Supplies”), fica mais uma loja da “Barnes & Noble”. O endereço preciso é 33 East 17ª Street (metrô Union Square). Como de estilo com as “B&N”, ela é enorme. E, se você procura por livros novos, (num ambiente superorganizado, tudo o que a “Strand” não é), e por um bom café, esse é o lugar. Por fim, mais para cima, já nas abas da “midtown”, a dois passos do Madison Square Park e do curioso Flatiron Building (o “ferro de engomar”), no número 1133 da Broadway Avenue (metrô 28ª Street Broadway ou 23ª Street), temos a famosa “Rizzoli Bookstore”, que – 144


especializada em arte, arquitetura, design, fotografia, culinária, línguas e literatura –, por mais de cinquenta anos, tem estado na vanguarda das livrarias independentes de Nova York. É verdade que esta é uma nova loja, que substitui a saudosa loja da 57ª Street. Mas esta nova “Rizzoli”, ainda chique e sofisticada, tem o seu charme. Isso sem falar que a “Rizzoli” fica muito pertinho do “Eataly NYC Flatiron”, onde podemos dar uma parada para uma boa massa e, sobretudo, alguns bons vinhos.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 19 de março de 2017.

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Minhas livrarias em Nova York (III) Completando nossa série de artigos sobre os comércios de livros da ilha de Manhattan, hoje trataremos de alguns estabelecimentos localizados nas regiões apelidadas de “midtown” e “uptown” Nova York. Vou começar suavemente, por “midtown”, com duas dicas de livrarias “especiais” que ficam muito próximas do hotel onde nos hospedamos, o “The Tuscany – A St Giles Signature Hotel” (120 East 39th Street), bem pertinho do Grand Central Terminal, hotel que, por sinal, recomendo deveras. A primeira delas é a pequenina livraria da “New York Public Library”, que fica no número 476 da 5ª Avenue (metrô 5ª Avenue ou 42ª Street/Bryant Park). A segunda é também a pequenina livraria da “Morgan Library & Museum”, que se acha no número 225 da Madison Avenue (metrô 33ª Street ou 34ª Street/Herald Square). Para além da visita às duas famosas bibliotecas, sobre as quais escreverei qualquer dia desses, a ida a essas pequenas livrarias vale muito a pena para quem se interessa por coisas e livros sobre livros. Muito próximo dessas duas “dicas” fica a livraria, que muito provavelmente é a maior de Manhattan (tirando, claro, a “Strand Bookstore”, que, além de ser livraria e sebo ao mesmo tempo, é “hors concours”): a badalada “Barnes & Noble” do número 555 da 5ª Avenida (metrô Grand Central 42ª Street ou 47-50ª Streets Rockefeller Center). A “Barnes & Noble”, como muitos devem saber, é a maior rede varejista de livrarias nos Estados Unidos da América, com mais de seiscentas lojas espalhadas por cinquenta estados da Federação. Vende, além de livros dos mais variados temas e estilos, revistas, jornais, DVDs, “e-books”, jogos eletrônicos, utensílios de leitura (entre eles, o NOOK, seu “e-reader”), brinquedos e mil e uma outras coisas do gênero. De praxe, em cada loja da “Barnes & Noble”, há uma cafeteria com produtos “Starbucks”, o que, digo logo, é “mais do que bom”. A loja da 5ª Avenida, com seus vários andares, aberta de domingo a domingo, até as 21 horas, tem tudo isso de sobra. Várias poltronas e cadeiras estão es146


palhadas pela loja, e você pode, confortavelmente, sem que ninguém o incomode, ler a vontade, não importa o quê. Se você vai comprar algo, embora acabe sempre comprando, isso é outra história. Bem pertinho dessa gigante “Barnes & Noble”, vou sugerir para vocês o que considerei um tesouro achado inesperadamente: a livraria do “The Center for Fiction”, que fica no número 17 East da 47ª Street, precisamente entre a 5ª e a Madison Avenues (metrô Grand Central 42ª Street ou 47-50ª Streets Rockefeller Center). “The Center for Fiction” é uma instituição, talvez a única nos Estados Unidos, dedicada exclusivamente à arte da ficção. O mais interessante é que ela é uma sucessora da outrora importantíssima “Mercantile Library”, fundada em 1821, e que, por volta de 1870, antes da criação da “New York Public Library”, era a quarta maior biblioteca dos EUA, atrás somente da “Library of Congress”, da “Boston Public Library” e da “Harvard University Library”. Nessa pequena e simpática “bookshop”, que é também um sebo, comprei livros usados baratíssimos, capas dura e mole, por coisa de três e dois dólares, respectivamente. De graça mesmo. No mais, ainda naquele “miolão turístico e de business, cheio de tudo, lojas, escritórios, teatros, cinemas e restaurantes”, como define Nelson Mota (em “Nova York é aqui: Manhattan de cabo a rabo”, editora Objetiva, 1997) o burburinho de “midtown”, há uma loja da “Midtown Comics”, livraria especializada em quadrinhos que, embora não seja esse tema minha praia, acho que vale a pena visitar. Fica no número 200 West da 40ª Street, na “confusão” do Times Square, sendo facílimo de chegar por qualquer das várias estações de metrô da 42ª Street. Por derradeiro, já em “uptown”, para além do Central Park, numa pitoresca região da cidade, chamada “Morningside Heigths”, onde fica a prestigiada e belíssima Columbia University, tenho duas livrarias para recomendar. Uma delas é a própria “Columbia University Bookstore”, também uma “Barnes & Noble” (aqui cultura e capitalismo andam juntos), que fica no número 2922 da Broadway Avenue (metrô 116 Street – Columbia University). Embora seja uma livraria voltada para fins acadêmicos, ela, ao contrário da livraria da New York University (sobre a qual falamos no artigo da semana passada), tem um bom 147


acervo de livros técnicos em geral, incluindo de direito. Recordo-me de haver ali comprado dois livros sobre legislação e interpretação, “Legislation and Statutory Interpretation” (de William N. Eskridge Jr., Philip P. Frickey e Elizabeth Garret, Fundation Press, 2006) e “Legislation: Statutory Interpretation 20 Questions” (de Kent Greenawalt, Fundation Press, 1999), sendo que, para meu desgosto, o último deles, quando cheguei em casa, descobri, eu já possuía. A outra livraria fica bem pertinho, na mesma Broadway Avenue, no número 2915 (metrô 116 St – Columbia University), e chama-se “Book Culture”. Pequenina, charmosa e “pet friendly” (tenho até uma foto com um enorme cão branco que “decorava” o local). Soube depois, pelo Facebook, que é uma livraria de famosos, incluindo astros do cinema. Não encontramos ninguém badalado, confesso, e olhem que ficamos um bom tempo vagando, abasbacados, pelas redondezas.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 26 de março de 2017.


Minhas livrarias em Roma (I) Faz alguns anos, acho que foi em 2013, pela época da Páscoa, passei uma temporada em Roma, coisa de dois meses, tendo aulas de italiano na ótima Dilit International House (Via Marghera, 22). Além de estudar, diletantemente, o idioma do meu querido Umberto Eco (19322016), preparava-me para participar, logo em seguida, com um mínimo de proficiência linguística, do 1º Encontro Internacional da Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR, que teria lugar ali, com aulas na celebrada “Accademia Nazionale dei Lincei”, no Palazzo Corsini (Via della Lungara, 10), na Cidade Eterna. Na maior parte da minha estada em Roma, fiquei hospedado num pequeno hotel (Yes Hotel Rome – Via Magenta, 15), nas imediações da Estação Termini, a principal estação de trens e metrô da urbe, no Rione Esquilino (que é um dos “bairros” ou subdivisões do centro de Roma), onde ficam, diga-se de passagem, duas das minhas igrejas romanas preferidas, Santa Maria Maggiore e San Pietro in Vincoli. Tendo sempre na sacola um livro/guia que adquiri assim que cheguei por lá, o “Guida alle librerie indipedente di Roma: 105 librerie dela capitale com la mappa ai rioni storici e al quartieri della Città Eterna” (NdA Press, 2011), de Roberta Barbi, Sara Regimenti e Egilde Verì, era dali que eu partia, quase todos os dias, como gosto de fazer nas cidades que visito ou passo uma temporada de estudos, em busca dos comércios de livros. Esse guia me foi muito útil, já que Roma, outrora “caput mundi”, é uma cidade enorme. As descobertas de livrarias e sebos, que ora repasso para vocês, foram muitas, a começar por aquelas na própria região do Esquilino e arredores, especialmente pelas abas do Quirinale (outro famoso Rione de Roma). Logo no primeiro dia, bem pertinho do hotel, dei de cara com as muitas barracas de livros seminovos e usados que ficam nas imediações da Piazza della Repubblica (que é de facílimo acesso pela estação de metrô de mesmo nome), sobretudo na Via delle Terme di Diocleziano (Termas cujas ruínas foram utilizadas para a construção da igreja 149


de Santa Maria degli Angeli, obra de Michelangelo), tipo de comércio tão comum nas cidades europeias, a exemplo de Paris (à margem de uma grande parte do rio Sena), Londres (na margem sul do Tâmisa, em frente ao BFI) e Madrid (na ladeira conhecida como “La Cuesta de Moyano”, que margeia o Real Jardim Botânico). Foi ali que eu adquiri, lembro-me muito bem, uma edição de “Il nome della rosa” (Editora Bompiani, 1987), do meu amigo Umberto Eco, que, tendo começado já algumas vezes, não tenho tido persistência para continuar a ler em italiano. Ali voltei várias vezes, sempre em busca de algo não achado. Também não foi muito difícil dar de cara com a “Borri Books”: ela fica dentro da Estação Termini, por onde eu passava quase todo santo dia, saindo ou voltando de “casa” (pelo que sei, embora apenas de ouvir dizer, há uma outra “Borri Books” na Estação Tiburtina, que é a segunda maior estação ferroviária de Roma). A “Borri Books” se diz um “oásis cultural” na Estação Termini, que é certamente uma das mais movimentadas da Europa, se não a mais movimentada. Concordo. Antes de tudo, é um ponto de encontro e calmaria para quem circula naquela loucura. É muito bonita e funcional. É moderna, posso dizer. E seu acervo é grande, bem diversificado, internacional, em várias línguas, para atender a todas as tribos e credos. Ainda por ali, muito pertinho, quase na confluência dos Riones Esquilino e Quirinale, nos números 254/255 da famosa Via Nazionale (estações de metrô Repubblica ou Termini), fica a “Libreria IBS+Libraccio Roma”, o comércio de livros que mais frequentei em Roma. E para mim, portanto, de um ponto de vista bem pessoal, o melhor. É uma loja física da livraria virtual “Ibs.it”. É gigante, com vários andares e ambientes. Nela, visualmente, no teto e nas paredes, predomina o branco, o que, com a mistura das cores dos livros, a torna belíssima. Seu acervo é enorme e variado: livros acadêmicos (novos e seminovos), ensaios variados em história, filosofia, política etc., ficção, poesia, livros para crianças e adolescentes, muitos livros em promoção, músicas e filmes em CD e DVD (pelo menos na minha época, já que isso é produto comercialmente em extinção) e por aí vai. Em resumo, tem de tudo. Um único problema é que fecha cedo, coisa de 20 horas, o que, de resto, 150


infelizmente, parece ser algo comum com os comércios de livros de Roma. E antes de terminar com as minhas andanças pela região dos riones Esquilino e Quirinale, vai uma última “dica livresca”: a “Biblioteca Nazionale Centrale di Roma”. Localizada no número 105 da Viale Castro Pretorio (estação de metrô Castro Pretorio), ela é, de par com a “Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze”, uma das duas mais importantes bibliotecas públicas da Itália. É depósito legal de livros, tendo como missão recolher e salvaguardar exemplares de todos os livros publicados na Itália, além da maioria daqueles publicados no estrangeiro sobre o país, tornando-os disponíveis para o grande público. Seu acervo é contado em alguns milhões, além dos muitos milhares de obras raras, como manuscritos e incunábulos. Foi fundada ainda no século XIX (cerca de 1875/1876). O prédio atual, gigante, modernista, é de 1975. À semelhança de outras grandes bibliotecas (tipo a “British Library”, a “Biblioteca Nacional de España”, a “New York Public Library” e por aí vai), ela é também um grande museu dedicado aos livros e ao conhecimento. Com certeza vale a pena passear, desavisadamente, por seus “labirintos”. No mais, fiquem atentos, pois volto a esse tema – dos comércios de livros em Roma – nos nossos encontros das duas próximas semanas.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 18 de junho de 2017.

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Minhas livrarias em Roma (II) Encerrei o meu artigo da semana passada – sobre alguns comércios de livros nos bairros romanos do Esquilino e do Quirinale – tratando da imponente “Biblioteca Nazionale Centrale di Roma”. Pegando isso como um gancho, no texto de hoje, darei logo um salto do Rione Esquilino, onde fica a dita “Biblioteca Nazionale Centrale di Roma”, para o Rione Parione, onde fica outro “templo” dedicado aos livros: a “Chiesa di Santa Barbara dei Librai” (“Igreja de Santa Bárbara dos Livreiros”), assim conhecida porque concedida, lá pelos anos 1600, a uma tal “Confraria dos Livreiros”, que abarcaria, além destes, os editores e os escritores. Ela fica, para que vocês tenham uma ideia mais precisa, nas cercanias da muito visitada “Piazza Campo de’ Fiori” (onde, já adianto, não dá para chegar próximo via metrô). Muito antiga (consta que foi consagrada em 1306, embora a igreja ali já datasse de bem antes), foi reformada, abandonada, desconsagrada e reformada novamente mais de uma vez. É pequenina, mas bela, como quase todas as igrejas romanas. Está aí um local onde nós, amantes dos livros, podemos rezar para ter nossos pecados, passados e futuros, perdoados. Topei com ela (quase) sem querer e foi isso que eu, cheio de pecados, fiz. Naquela mesma região, fica a livraria “Fahrenheit 451”, precisamente no número 44 do Campo de’ Fiori, praça há muito tempo famosa por ter sido o local onde Giordano Bruno (1548-1600), acusado de heresia, foi impiedosamente queimado vivo (em 1600). Uma estátua do dito cujo está no centro da praça, até para que não nos esqueçamos desse triste episódio na história da Igreja Católica Apostólica Romana. Livraria generalista, fundada em 1989, a “Fahrenheit 451” é uma instituição cultural italiana. Tem muita coisa: livros sobre arte, cinema, teatro, fotografia, livros de história, política, filosofia, livros de viagem, obras de ficção, sem falar nas promoções que estão sempre ali. O nome, claro, nos remete a Ray Bradbury (1920-2012) e o seu “Fahrenheit 451” (1953), por sua vez um livro – um romance distópico, mais precisamente – sobre livros. Uma vantagem imensa: como uma exceção à regra 152


romana, ela fecha tarde, quase sempre à meia-noite ou até mesmo madrugada adentro. E, tirando o olhar sinistro do Giordano, gostando você de vinhos ou livros, é sempre prazeroso passear, boemiamente, pelo Campo de’ Fiori. Quem também ficava por ali, só um pouquinho mais ao norte, era a famosa “Libreria Croce”, no número 156 do Corso Vittorio Emanuele II, outrora frequentada por gente como Alberto Moravia (19071990) e Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Eu não era frequentador da “Croce”, muito menos sou da estirpe de um Moravia ou de um Pasolini, mas cheguei a ir lá. E é de fato uma pena que a crise pela qual passa o setor (de livrarias, quero dizer) tenha levado ao fechamento desse clássico comércio de livros. E, segundo me consta, o mesmo destino teve a “Libreria Croce” da Via Solferino, número 7a/b, que, aliás, esqueci de dizer no primeiro artigo desta série, ficava muitíssimo perto do hotel que habitei em Roma. Também pertinho dali, caminhando para o leste pelo Corso Vittorio Emanuele II, no número 11 do Largo di Torre Argentina (onde estão, à nossa vista, as ruínas de vários monumentos da época romana, entre elas as do Teatro de Pompeu), fica a excelente livraria romana “La Feltrinelli”. No estilo da inglesa “Waterstones” ou da americana “Barnes & Noble”, é uma livraria enorme e moderna. Servindo a um público bem amplo, “La Feltrinelli” vende de quase tudo: livros de vários assuntos em várias línguas, revistas, DVDs, coisitas para leitura, eletrônicos e por aí vai. Sem falar na cafeteria, que não podia faltar. Ali você gastará, com certeza satisfeito, alguns ou muitos euros. Ademais, essa não é a única “La Feltrinelli” romana. Posso apontar pelo menos outras três nos seguintes endereços: Viale Giulio Cesare 88, Via Vittorio Emanuele Orlando 84 e Via Appia Nuova 427. Não muito longe, apenas um pouco mais ao norte, mas ainda no Rione Parione, nas beiradas da Piazza Navona, no número 10 da Via dei Sediari, fica a “Libreria Editrice ASEQ”. Vale muito a pena dar um pulo lá. Primeiramente, porque a Piazza Navona – com sua igreja de “Sant’Agne in Agone”, de Francesco Borromini (1599-1667), e sua “Fontana dei Quattro Fiumi”, de Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) – é 153


belíssima. Como também belíssimo, dominando boa parte da praça, é o “Palazzo Pamphili”, sede da nossa embaixada na Itália, onde, recordome bem, fomos formalmente recebidos pela Missão brasileira, quando do 1º Encontro Internacional da Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR. Em segundo lugar, porque a “Libreria Editrice ASEQ” é charmosíssima, embora, com seu catálogo de livros de filosofias heréticas, ciências ocultas, alquimia, pura magia e por aí vai, seja um tanto exotérica. Mas o que não é exotérico na Roma dos césares e dos papas? No mais, é uma livraria à moda antiga, que vende livros novos e usados, com a simpatia dos velhos livreiros. Por fim, nos arredores da Piazza Navona ainda ficam duas outras excelentes livrarias: a “Altroquando” (especializada em cinema) e a “Librairie Francaise”. Entretanto, como são comércios especializados, sobre elas conversaremos no artigo da semana que vem. Afinal, preciso dar uma mínima ordem ao nosso “roteiro livresco” romano.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 25 de junho de 2017.


Minhas livrarias em Roma (III) Como prometido na semana passada, hoje, dando um fim à nossa série de artigos sobre a temática, vou tratar de alguns comércios de livros especializados da Cidade Eterna. Começo logo por uma livraria que conheci meio sem querer, ao caminhar, pela Via Merulana, da Basílica Santa Maria Maggiore à Basílica di San Giovanni in Laterano, duas das minhas igrejas preferidas em Roma. Trata-se da “Libreria Rotondi”, que fica no número 82 da citada Via Merulana (metrô Vittorio Emanuele), ainda na região do Esquilino. Ela foi fundada por Amedeo Rotondi (1908-1999), escritor e filósofo versado nessas tais “ciências ocultas”, mas também editor e livreiro. A “Rotondi” se diz a livraria esotérica e espiritual mais antiga e tradicional da capital italiana. Não posso confirmar essa assertiva porque, além de ser meio desconfiado dessas afirmações de “mais antigo” comércio disso ou daquilo, tão comum nas cidades europeias, não estava lá para atestar o inusitado evento (da sua fundação). Mas uma coisa posso garantir: é um comércio sério, com livros novos e, sobretudo, usados e antigos, alguns deles consideravelmente raros. É um ambiente místico e espiritual, mas austero, à moda antiga, que vale a pena visitar. Também espirituais, mas de uma forma bem mais próxima de nós, são as muitas livrarias católicas (essencialmente) do Vaticano, situadas na famosa Via della Conciliazione ou nas imediações desta, muito próximas umas das outras (metrô Ottaviano). Vão algumas: “Libreria Coletti” (Via Della Conciliazione, número 3), “Belardetti Libreria” (Via Della Conciliazione, 4), “Libreria San Paolo della Diffusione San Paolo” (Via Della Conciliazione, 16/20), “Libreria Ancora” (Via Della Conciliazione, 63), “Libreria Elledici” (Via Conciliazione, 26/28), “Libreria Internazionale Benedetto XVI” (já na Piazza Pio XII, número 4), “Libreria Leonina” (na paralela Via dei Corridori, número 16) e por aí vai. Peregrinei por elas a pedido do meu amigo Renan Pinheiro (autor do belo livro “Fátima e Pontmain: Aparições de paz em tempo de guerra”, editora Ecclesiae, 2015), à procura de uma biografia de Pio XII, 155


que, segundo determinação enfática dele, tinha de ser “imparcial”. E voltei lá outras vezes, sempre aos domingos, já que, nesse dia, quase invariavelmente, almoçava pela cidade do Vaticano com o cônego José Mário, outro amigo de Natal, que, à época, também estudava por aquelas bandas. Mas não só de livrarias místicas ou religiosas vive Roma. Há, por exemplo, muitas livrarias especializadas em línguas estrangeiras, que não o italiano, partindo do pressuposto de que este, o italiano, é idioma da Cidade Santa. Uma delas é a “Librairie Francaise”, que fica no número 23 da Piazza San Luigi de’ Francesi, pela qual passava – e dava uma xeretada – quase todos os dias, já que adorava matar o tempo ao derredor da Piazza Navona, muito próxima dali. Aliás, nessa mesma região, apenas um pouco mais ao norte, no número 60 da Via di Monte Brianzo, fica outra livraria de língua estrangeira, a “Libreria Spagnola”, que é excelente. E não muito longe, em direção ao leste, no número 120 da Piazza di Monte Citorio, ficava a “Herder”, livraria especializada em alemão, que, segundo andei pesquisando, fechou as portas (bom, de minha parte, eu não falo alemão mesmo). Já no que toca ao inglês, posso indicar, com a ajuda de Roberta Barbi, Sara Regimenti e Egilde Verì, autoras do “Guida alle librerie indipedente di Roma: 105 librerie dela capitale com la mappa ai rioni storici e al quartieri della Città Eterna” (NdA Press, 2011), pelo menos três estabelecimentos: a “Anglo American Book Co”, que fica na Via della Vite, 120 (metrô Spagna); a “Almost Corner Bookshop”, Via del Moro, 45 (no gostoso Trastevere); e a “Open Door Bookshop”, Via della Lungaretta, 24 (também no Trastevere). Para o fim a que se destinam, todas são muito boas. No mais, embora seja “Roma Caput Mundi”, não achei nenhuma livraria especializada em nosso bom e querido português. Paciência! Recomendo, também, e até com bastante ênfase, duas livrarias especializadas em viagens. Uma é a “Libreria del Viaggiatore”, que fica no número 78 da Via del Pellegrino, nas beiradas do Corso Vittorio Emanuele II. A outra é “L’Argonauta”, que se acha na Via Reggio Emilia, número 89, não muito distante da Universidade de Roma “La Sapienza” (metrô Castro Pretorio). Nelas você vai encontrar muitos li156


vros, sobretudo do gênero “literatura de viagem”, guias de turismo e de línguas, mapas, utensílios para o viajante e outras coisitas mais. Para quem gosta de viajar – o que é, tirando o avião, muitíssimo o meu caso –, elas são interessantíssimas. Já para os amantes do cinema – que é também o meu fraco – tenho uma sugestão de primeira linha: a “Altroquando”, que fica no número 80 da Via del Governo Vecchio, quase por detrás da Embaixada do Brasil na Itália na Piazza Navova. Tinha até uma segunda, a “Libreria del Cinema”, que ficava na Via dei Fienaroli, 31d, no miolo do Trasteve, mas, pelo que vi, ela, infelizmente, fechou as portas. O cinema era, aliás, quando da minha estada em Roma, um dos meus temas de interesse. De lá, cheguei a escrever sobre o “neorrealismo italiano” e, especificamente, sobre o filme “Ladri di Bicicletti” (de 1948, dirigido por Vittorio de Sica). Fiz até algumas “visitas turísticas” baseadas nas locações dessa película, coisa que, desde já, para Roma ou qualquer outra cidade cenário de um grande filme, recomendo. Também não poderia deixar de mencionar a livraria que mais problemas me causou em Roma: a “Suspense”, que fica na Via Ceresio, número 87 (metrô S. Agnese/Annibaliano), especializada em “gialllo”, que é como eles, os italianos, chamam a literatura policial ou detetivesca. Os que me acompanham aqui já devem saber, essa literatura, policial ou detetivesca, é uma das minhas grandes paixões. Fica no “cafundó do Judas”, já no chamado “Roma Municipio II”. A livraria é muito boa na sua especialidade. Por lá, muito pertinho, ainda conheci o agradável parque da Villa Ada Savoia, que fica na Via Salaria. Mas caí na besteira de visitar a Catacombe di Priscilla, onde teriam sido enterrados os Papas Marcelino (pontificado 296-304) e Marcelo I (308-309). Ganhei uma noite de pesadelos. No mais, termino aqui com a única livraria essencialmente jurídica que visitei em Roma: “Libreria Forense”, que fica no número 26 da Via Marianna Dionigi (metrô Lepanto), muito pertinho do Castelo de Sant’Angelo e no que posso chamar de “o setor jurídico de Roma”. Misto de livraria, sebo e antiquário de obras de direito, ela é, para Roma, “uma instituição em matéria jurídica”, como lembram as autoras do já 157


citado “Guida alle librerie indipedente di Roma: 105 librerie dela capitale com la mappa ai rioni storici e al quartieri della Città Eterna”, onde profissionais e estudantes do direito encontram livros de direito e de ciências afins, novos e usados, desde o ano de 1940. Bom, de todas as livrarias aqui sugeridas, talvez seja esta a menos interessante, já que o direito é um tema deveras chatinho.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 2 de julho de 2017.


A biblioteca de Melk Na autoestrada que liga Innsbruck, passando por Salzburgo, a Viena, muito provavelmente a rota turística mais badalada da Áustria, apenas 60 km a oeste da capital do país, fica um dos mais interessantes templos dedicados aos livros que já visitei: a “Biblioteca da Abadia de Melk”. A pequenina cidade de Melk, que hoje tem pouco mais de cinco mil habitantes, fica também na margem do Danúbio, sendo considerada uma das “joias” desse famoso rio. É uma bela “cidadezinha”, não posso negar, mas, com certeza, sua “preciosidade” reside na Abadia beneditina que, do alto de um promontório, domina sua paisagem. Para quem não sabe, Melk foi a sede original da casa Babenberg, dinastia que, com seus condes e duques (chamados, em verdade, de “margraves”), originalmente dominou, entre os séculos X e XIII (9761246, aproximadamente), boa parte do que hoje chamamos de Áustria. A história da Abadia de Melk está relacionada aos Babenbergs. Como consta do “Guia Visual Folha de São Paulo – Áustria” (PubliFolha, 2010), que consultei para produzir este riscado, “no século 11, Leopoldo 2º [1050-1095] convidou os beneditinos da abadia de Lambach para se instalarem em Melk, e deu aos religiosos terra e um castelo, que os monges transformaram em uma abadia fortificada”. Vítima de várias vicissitudes em seu um milênio de história, “quase destruída por um incêndio em 1297, [a abadia] foi reerguida várias vezes e, no século 16, precisou resistir aos ataques turcos. Em 1702, o abade Berthold Dietmayr [1670-1739] começou a remodelar o local. Jakob Prandauer [1660-1726], von Erlach [1656-1723], Joseph Munggenast [16801741] e outros nomes famosos ajudaram a dar à construção a magnífica forma barroca atual”. No final do século passado, já entrando para os 2000, a Abadia de Melk passou por uma grande restauração. Foi dotada de um bom museu contando sua história. Tem recebido exposições de arte e sido local de apresentações teatrais e de música. As atividades religiosas e docentes, é claro, continuam de vento em popa. Patrimônio 159


da humanidade pela UNESCO, ela é belíssima. E ponham belo nisso! Os pontos altos da Abadia de Melk – para além da quase perfeita harmonia do seu conjunto – são sua igreja e sua biblioteca. A igreja – caracterizadamente barroca – é um esplendor em “glória de Deus”. Dedicada a São Pedro e São Paulo, sua composição atual decorre das intervenções realizadas, no século XVIII, pelo já referido abade Berthold Dietmayr. Ali trabalharam arquitetos e artistas como o já citado Jakob Prandauer, Antonio Beduzzi (1675-135), Johann Michael Rottmayr (1656-1730), Paul Troger (1698-1762), Giuseppe GalliBibiena (1696-1757), Lorenzo Mattielli (1687-1748) e Peter Widerin (1684-1760), entre outros. O resultado é belo, exuberante e dramático, como sói acontecer com as grandes obras do barroco. Já a tal biblioteca de Melk, também em estilo barroco, tem seu interior marcado por uma madeira clara perfeitamente trabalhada, afrescos do já citado Paul Troger e por uma magnífica escada em espiral que a liga à Igreja dedicada aos apóstolos Pedro e Paulo. Em uma dúzia de ambientes belíssimos, ela abriga mais de 100 mil volumes, entre os quais cerca de 2000 manuscritos e outro tanto de incunábulos. O acervo é variado: além das Bíblias, muitas obras de teologia, filosofia, astronomia, história, geografia, línguas e até do enfadonho direito. Por sinal, eu já me referi aqui à Abadia de Melk e à sua biblioteca, quando escrevi, faz alguns anos, sobre o romance “O nome da rosa” (de 1980 e, no original, “Il nome della rosa”), do meu querido Umberto Eco (1932-2016), assim como sobre o filme homônimo (de 1986 e, no original em alemão, “Der Name Der Rose”), adaptação do livro, dirigido por Jean-Jacques Annaud (1973-) e estrelado, entre outros, por Sean Connery, Christian Slater e F. Murray Abraham. Em “O nome da rosa”, alegadamente, Eco reproduz um manuscrito de um frade chamado Adso de Melk que, quando jovem, teria presenciado os terríveis acontecimentos narrados no livro. Esse manuscrito teria ficado escondido, por séculos, no mosteiro de Melk. E quem já leu o livro ou assistiu ao filme sabe que o enredo de “O nome da rosa”, ambientado em uma “sinistra” abadia medieval e na sua ainda “mais sinistra” biblioteca, gira em torno das mortes de sete monges nos sete dias seguidos, em circunstâncias 160


para lá de extraordinárias. Mortes que, a pedido do Abade, o protagonista Guilherme de Baskerville, ajudado pelo seu pupilo Adso de Melk, tenta desvendar. E isso tudo coincide com um encontro para discussão de intricadas questões teológicas, cuidadosamente acertado para se dar na antiquíssima abadia, entre frades franciscanos e uma legação papal, da qual faz parte um dos maiores inquisidores da história (real) da Igreja, Bernardo Gui (1261-1331). Foi propositadamente nas pegadas de “O nome da rosa” – essencialmente uma estória sobre livros – que, na companhia dos meus pais, fui visitar, faz muitos anos, pela primeira vez, a Abadia de Melk. Mas é claro que a biblioteca da Abadia de Melk não é – nem mesmo se parece com – a grande biblioteca do convento da Ordem Beneditina, palco dos acontecimentos narrados no romance de Eco, onde estariam guardadas – ou, melhor, escondidas – maravilhas da escrita e da arte das iluminuras, majoritariamente de origem grega e latina, algumas delas heréticas, numa época em que, antes da invenção da imprensa por Gutenberg (1400-1468), a Igreja detinha, no Ocidente, o monopólio do conhecimento. A biblioteca da Abadia de Melk não é o labirinto “borgeano”, infinito e cheio de desvios, descrito e desenhado no livro de 1980 e maravilhosamente mostrado no filme de 1986. Na biblioteca da Abadia de Melk, não está guardado o último exemplar de um suposto segundo livro da poética de Aristóteles, desaparecido há séculos e que versaria, favoravelmente, sobre o riso, o móvel dos muitos crimes praticados (pelo venerável e cego monge Jorge) no meu romance preferido. O que foi para mim, sonhador, quando da nossa visita à biblioteca de Melk, confesso, um pouquinho decepcionante. Mas só um pouquinho mesmo.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 9 de julho de 2017.

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Livrarias, cafés e uma fundação Para nós do Nordeste, incluindo os natalenses, a melhor forma de chegar à (ou voltar da) Europa é via TAP (Transportes Aéreos Portugueses, para quem não sabe), num voo direto a Lisboa, que costuma durar não mais do que sete horas. Pela própria TAP, na capital portuguesa, há sempre conexões imediatas indo e vindo das outras capitais europeias. Mas, se for o caso de ter de esperar por uma conexão mais demorada em Lisboa, para matar esse tempo, eu tenho uma dica – livresca, claro – para quem topa, saindo do Aeroporto da Portela, fazer um batevolta ao centro da cidade. É muito fácil, rápido e até barato (uma ótima exceção nas metrópoles europeias). Tomem simplesmente o metrô e, após uma baldeação, desçam na estação de Baixa/Chiado. O bilhete simples custa 1,45 euro. Já um bilhete de viagens ilimitadas por 24 horas custa 6,15 euros. Outra boa opção, que até prefiro, já que se vai admirando a cidade no trajeto, é o “Aerobus”, um ônibus especial que liga o aeroporto de Lisboa ao centro turístico. Desça na parada Rossio. Também é baratinho: coisa de 4 euros uma perna; 6 euros, ida e volta. É ali pertinho, no número 73 da Rua Garrett, a principal rua comercial do Chiado/Bairro Alto – e vale a pena a “subida”, pois essa parte de Lisboa, também boêmia e cultural, é agradabilíssima –, que fica a livraria “Bertrand”, que, fundada em 1732, se diz “a mais antiga livraria em atividade do mundo”. E parece que isso foi mesmo reconhecido pelo Guinness Book. Ela faz parte de uma cadeia, a “Bertrand Livreiros”, que é a maior de Portugal. A livraria é muito bonita, com ambientes harmoniosos, onde predomina o teto curvado e as muitas estantes de madeira finamente trabalhadas. O acervo é para lá de bom. Grande e diversificado, tem de tudo. Fecha até tarde, coisa de 22 horas, o que é muitíssimo conveniente. Casa portuguesa, que já faz parte do itinerário cultural da cidade, com certeza. Mas a livraria “Bertrand” não é a única livraria por ali. Muito pertinho, no número 100 da mesma Rua Garrett, fica a “Livraria Sá da Cos162


ta”, que foi outrora também editora de renome. Centenária, sofreu com a modernidade virtual e, no ano de 2013, faliu e fechou. Mas reabriu, embora com roupagem diversa. Hoje mais um sebo/antiquário de livros – acho que eles lá chamam de “alfarrabista” – do que propriamente uma livraria, nem pequena nem grande, ela tem o charme da sobriedade. É programa nota 10 para o amante de livros antigos e raros, que ali se deleitará contemplando as palavras e o tempo. E some a isso que as livrarias ficam bem próximas do “Café A Brasileira” (Rua Garrett, 120), que é considerado por Antonio Bonet Correa (no seu maravilhoso livro “Los Cafés Históricos”, Ediciones Cátedra, 2014), “o rei dos cafés da capital portuguesa”. Muito bem postado no coração comercial do bairro do Chiado, o “Café A Brasileira” é, como registra o citado autor, “sem dúvida alguma um dos pontos de gravitação da vida turística de Lisboa. Fundado em 1905, como loja para venda de grãos e café moído importados do Brasil, de logo passaria a ser um concorrido café de caráter literário e artístico”. Como de praxe com a turistada, você ainda pode tirar uma foto com Fernando Pessoa – ali homenageado, no terraço do café, em bronze –, que era, reza a história, junto com seus heterônimos, um frequentador assossegado do local. Tomamos um café por lá. Não sei ela; eu gostei bastante. No mais, embora fora do miolo turístico, outra visita cultural/livresca que recomendo em Lisboa é à “Fundação Calouste Gulbenkian”, que é, segundo consta do seu sítio na Internet, uma instituição portuguesa “destinada a fomentar o conhecimento e a melhorar a qualidade de vida das pessoas através das artes, da beneficência, da ciência e da educação”. Foi criada em 1956 pelo testamento de Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955), empreendedor, colecionador de arte e livros e filantropo de origem armênia, nascido sob o Império Otomano, mas que, em vida, adquiriu a nacionalidade britânica e viveu seus últimos anos na capital portuguesa. A despeito de delegações em outras terras (Paris e Londres, por exemplo), sua sede, um complexo modernista de edifícios e jardim, fica na Av. De Berna, 45A, em Lisboa. Junto ao museu (ou aos museus, já que ele é divido em duas coleções), o complexo dos edifícios (da sede da Fundação) dispõe de cafe163


terias, lojas e – sendo isso melhor para nós – uma livraria com edições da maravilhosa editora da “Fundação Calouste Gulbenkian”. Pena que elas, as cafeterias e a livraria, funcionam, pelo que me recordo, somente até as 18 horas. De toda sorte, conheço poucas editoras tão interessantes quanto essa da “Fundação Calouste Gulbenkian”, em especial para os estudantes e profissionais do direito que falam português. Um dos seus objetivos é publicar, de modo amplo e sistemático, originais e traduções, de mestres portugueses e estrangeiros, a um preço acessível, se não barato mesmo (levando em consideração a absurdez do preço dos livros jurídicos no Brasil). Nessa toada, os livros de direito abundam. Eu mesmo, dando uma olhadela na minha biblioteca, pude identificar, da “Fundação Calouste Gulbenkian”, entre outros: “História do direito português” (1991), de Nuno. J. Espinosa Gomes da Silva; “História do direito privado moderno” (1993), de Franz Wieacker; “O conceito de direito” (1986), de Herbert L. A. Hart; “Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas” (2002), organizado por A. Kaufmann e W. Hassemer; “Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito” (1989), de Claus-Wilhelm Canaris; “Metodologia da ciência do direito” (1989); “Filosofia do direito” (2004), de Arthur Kaufmann; “Introdução ao pensamento jurídico” (1988), de Karl Engisch; “Introdução histórica ao direito” (2016), de John Gilissen. Livros estes que, todos, recomendo sem pestanejar. Está decidido: na minha próxima conexão em Lisboa irei à livraria da “Fundação Calouste Gulbenkian”. Topo até correr o risco de perder o voo de volta para o meu querido Brasil.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 16 de julho de 2017.


Uma livraria, duas bibliotecas (I) Conheci a cidade do Porto quando lá fiz uma pós-graduação na Universidade Lusíada, que tem uma de suas sedes nessa famosa cidade portuguesa. Era um curso intermediado pela Associação Nacional dos Procuradores da República/ANPR e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil/AJUFE. O ano era 2000, se não estou enganado. Tudo era muito bom na rica cidade comercial, a segunda maior de Portugal, em especial o vinho fortificado local. E entre uma taça e outra, visitei, algumas vezes, aquele que é frequentemente considerado (leia-se pela rede de TV “CNN”, pelas revistas “Time” e “Travel + Leisure”, pelo jornal “The Guardian”, pelo guia de viagens “Lonely Planet” e por aí vai) um dos mais bonitos – quiçá o mais – comércios de livros do mundo: a “Livraria Lello”, que fica no número 144 da Rua das Carmelitas, no centro histórico do Porto. Muito embora a empresa seja uma sucessora da antiga “Livraria Chardron” (fundada em 1869), adquirida pelos irmãos José e Antônio Lello (em 1894), a história da “Livraria Lello” do Porto, o estabelecimento ali especificamente dedicado ao comércio de livros, remonta a 1906, que é o ano da inauguração da inconfundível loja da Rua da Carmelitas. O projeto e a construção do edifício foram obras do engenheiro Francisco Xavier Esteves (1864-1944), profissional das ciências exatas que tinha um gosto diletante pela literatura. E ele (o edifício) é belo desde a sua fachada, em estilo neogótico, que a qualquer um impressiona. Entretanto, é o interior da livraria que, de tão belo, mais nos “assusta”. Há os baixos-relevos em homenagem aos fundadores da livraria, irmãos José e Antônio Lello. Há bustos e mais bustos de grandes escritores portugueses, Eça de Queirós (1845-1900), Camilo Castelo Branco (1825-1890), Antero de Quental (1842-1891) e Guerra Junqueiro (1850-1923), entre eles. A madeira escura trabalhada é belíssima. Os detalhes das estantes e das paredes chamam nossa atenção. Isso sem falar nas colunas e nos corrimões também em madeira finamente burilada. O teto em gesso pintado (que imita perfeitamente madeira) e o enor165


me vitral com o monograma dos irmãos fundadores desse “templo” são quase insuperáveis. Digo quase porque, como afirma o próprio sítio (na Internet) da casa, eles têm “a tarefa pouco invejável de competir pelas atenções com a famosa [e dominante, no ambiente da livraria] escadaria carmim”, cuja aparência de leveza, que “encobre a audácia da sua concepção”, nos proporciona o desejo de subi-la (a escada) até o infinito. O acervo da “Livraria Lello” – embora isso seja o “de menos” aqui – é grande e variado (leia-se muito bom), constando também uma seção protegida (no piso inferior, se não estou enganado), com os livros mais antigos da livraria, assim como os livros raros e as primeiras edições, alguns datando da época ou mesmo de antes da fundação da loja. De fato, a “Lello” é uma casa diferente, que mais parece uma biblioteca que uma livraria. E por falar em bibliotecas, foi também nessa temporada de pósgraduação em Portugal que conheci melhor a belíssima biblioteca da Universidade de Coimbra, chamada de “Biblioteca Joanina” em homenagem ao seu benfeitor, dom João V (1689-1750), sem dúvida o mais extravagante monarca que a casa de Bragança legou a Portugal. A história da fundação da Universidade de Coimbra – que procurou reproduzir o exemplo e o modelo de estrutura acadêmica da Universidade de Bolonha, fundada em 1088 e considerada a primeira instituição do tipo no mundo ocidental – é muito interessante. Como andei checando no livro “La universidad: una historia ilustrada” (Edición Turner, 2010, publicado sob a direção de Fernando Tejerina), sua origem remonta a 1308, quando foi trasladado a essa comuna (Coimbra), em razão, sobretudo, dos tumultos causados pelos estudantes na capital, o “Estúdio Geral de Lisboa”, que havia sido fundado, pelo rei dom Dinis (1261-1325), em 1290. E de “Estúdio Geral” a universidade, foram algumas idas e vindas entre Lisboa e Coimbra, até que ela se quedasse definitivamente, em 1537, nesta última. Dominando a colina que encima a cidade, a Universidade de Coimbra ocupa, desde os anos 1530, o antigo Palácio Real de Alcáçova, hoje a sede principal da instituição. Dentro dos muros da Universidade de Coimbra/Palácio de Alcáçova, passando pelo seu enorme portão de ferro do século XVII, dá-se 166


com um pátio interno do século XVI, chamado de “Paço das Escolas”, que, por sua vez, proporciona acesso direto ao prédio principal do complexo, em cujo centro está a tal “Biblioteca Joanina”, que é considerada uma das mais belas bibliotecas barrocas do mundo. Edificada, entre os anos 1717 e 1728, pelo arquiteto Gaspar Ferreira, a “Biblioteca Joanina”, apontam Jean Serroy (texto) e Guillaume de Laubier (fotografias), em “The Most Beautiful Universities in the World” (Abrams Books, 2015), “é organizada em três sucessivas salas conectadas por arcos romanos [solução arquitetônica que impressiona, além de criar espaço extra para mais estantes e livros]. Os tetos mostram afrescos alegóricos pintados por Vicente Nunes e António Simões Ribeiro. Em cada uma das salas, há imponentes estantes de madeira decoradas que são trabalhos de Manuel da Silva. Elas contêm inestimáveis coleções de livros datando do século XVI ao século XVIII, incluindo mais de 200 mil volumes organizados em estantes de carvalho (uma madeira conhecida por suas propriedades para repelir insetos), salvaguardados por um clima estável, assim como por uma cuidadosamente protegida colônia de morcegos, que vagam pela biblioteca à noite e se alimentam dos insetos que poderiam destruir todo esse tesouro”. Na verdade – e isso aqui interessa muito a nós –, o tal dom João V, como registram os autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotografias), “tinha recursos para construções de luxo graças às enormes reservas de ouro encontradas no Brasil. (…) O resultado foi uma biblioteca barroca de opulência extraordinária, coberta por dentro com folhas de ouro e decorada com caras pinturas, trabalhos em gesso e esculturas”. E por falar em “ouro do Brasil”, também foi ele (falo do vil metal, por favor) o “responsável”, ao menos em parte, por outra maravilhosa casa de livros portuguesa (com certeza?), a “Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra”, sobre a qual, por falta de espaço hoje aqui, conversaremos na semana que vem.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 23 de julho de 2017.

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Uma livraria, duas bibliotecas (II) Na semana passada, conversamos aqui sobre a “Livraria Lello” do Porto e a “Biblioteca Joanina” da Universidade de Coimbra. Ao tratar desta belíssima biblioteca barroca e, especialmente, do ouro brasileiro gasto pelo rei dom João V de Portugal (1689-1750) para a sua edificação, prometi, para hoje, falarmos de outra joia produzida pela coroa portuguesa (fazendo uso do nosso ouro, claro): a “Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra”. Antes de mais nada, Mafra fica bem distante do Porto ou mesmo de Coimbra. Na verdade, a pequena vila de Mafra (e, por conseguinte, seu palácio), na qual vivem menos de 12 mil habitantes, fica próxima a Lisboa, ao norte desta, coisa de 40 km de estrada, se escolhida a rota mais curta, ponto a ponto. Mas há, não contem a ninguém, um caminho alternativo Lisboa-Mafra, quebrando primeiramente para o oeste e só depois para o norte, com pequenos desvios e paradas, que assim incluem os também belíssimos “Palácio Nacional de Sintra”, “Palácio Nacional da Pena” e “Palácio Nacional de Queluz”. Não sei quantas horas, ou dias, essa rota alternativa durará. Fica a seu critério. Mas que vale a pena fazer, vale. No mais, como registram os autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotografias), a história do hoje “Palácio Nacional de Mafra” começa em 1711, quando o já referido “João V prometeu que se sua esposa, Maria Ana de Áustria [1683-1754], tivesse filhos, ele construiria um monastério. Sua filha Bárbara nasceu no mesmo ano, e escolheu-se um local [cerca de 40 km de estrada de Lisboa, como já dito] para o novo monastério em 1713. Foi projetado para ser não apenas um monastério, mas também um palácio”. Iniciado em 1717, o Palácio/Monastério de Mafra levou mais de 30 anos para ser considerado concluído/habitável. A biblioteca, aliás, diz-se, só ficou pronta em 1771. O destino do Palácio/Monastério de Mafra (e de sua Biblioteca, 168


consequentemente), edificado no decorrer do século XVIII, está ligado às vicissitudes da história de Portugal. Como apontam Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, em “Bibliothèeques du monde” (Éditions de La Martinière, 2014), “o país já tinha efetivamente entrado em seu declínio no momento da sua construção, mesmo que a dinastia reinante dos Braganças não quisesse ter consciência disso”. Uma vez convento agostiniano, depois franciscano, o hoje “Palácio Nacional de Mafra”, por mais incrível que pareça, jamais recebeu a luxuosa decoração prevista pelos seus arquitetos. Bom, eu acho a coisa enorme e suntuosa, afinal são mais de mil ambientes, entre salas e celas para monges, uma basílica e outros mimos mais, tudo à custa dos diamantes e do ouro do Brasil. A maior joia do Palácio/Mosteiro de Mafra é, sem dúvida, sua biblioteca. Diz-se que seu projeto foi inspirado na “Biblioteca Imperial de Viena”. Tem-se uma única e gigantesca sala de teto branco desenhado, composta por duas alas unidas ao centro por uma cúpula, que, segundo os autores de “Bibliothèques du monde”, livro acima citado, mede “87,4 metros de comprimento, 9,5 metros de largura e 13 metros de altura. Uma abundante luz penetra pelas janelas direcionadas ao sul, enquanto as outras janelas, que lhes fazem face, são fechadas por espelhos”. Segundo os autores do também já referido “A biblioteca: uma história mundial” isso faz dela a “biblioteca mais comprida do estilo rococó no mundo”. Embora tenham sido abandonados os planos originais de uma decoração ainda mais ricamente trabalhada (pelos motivos acima já apontados: leia-se a progressiva quebradeira de Portugal), seu piso de mármore detalhado (uma mistura de pedras de mármores rosa, verde e branco) e suas estantes de madeira clara trabalhada em estilo rococó são de rara beleza. Ponha rara nisso. Em dois lances (quase andares) separados por uma sacada que circula toda a sala, o acervo passa dos 40 mil tomos, muitos encadernados em couro com detalhes em ouro (de nossas Minas Gerais, posso apostar), incluindo, segundo li não sei onde, uma primeira edição dos “Lusíadas” (1572), do grande Luís de Camões (1524-1580). Uma pena é que, tal como se dá geralmente com essas bibliotecas muito antigas e 169


valiosas, que são mais para conversação e visualização de coisas raras do que para trabalho propriamente dito, não podemos (ou não devemos) ler ou tocar em nada. Talvez por isso, fazendo um balanço dos três “templos” dedicados aos livros mencionados nestes meus dois riscados – a “Livraria Lello” do Porto, a “Biblioteca Joanina” da Universidade de Coimbra e a “Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra”– , eu prefira matar mesmo o meu tempo no primeiro estabelecimento. Afinal, numa livraria, podemos - gratuitamente, frise-se – tocar, manusear, ler e até cheirar os livros. Muito embora eu tenha lido que a “Livraria Lello”, de tão concorrida, andou, tempo desses, até cobrando pela entrada (valor esse que era depois compensado na compra de algum livro), o que, se verdade for, recebe, desde já, por aqui, formalmente, o meu assertivo protesto.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 30 de julho de 2017.


Bibliotecas espanholas (I) Na semana passada, conversamos aqui sobre a “Livraria Lello” do Porto e a “Biblioteca Joanina” da Universidade de Coimbra. Ao tratar desta belíssima biblioteca barroca e, especialmente, do ouro brasileiro gasto pelo rei dom João V de Portugal (1689-1750) para a sua edificação, prometi, para hoje, falarmos de outra joia produzida pela coroa portuguesa (fazendo uso do nosso ouro, claro): a “Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra”. Antes de mais nada, Mafra fica bem distante do Porto ou mesmo de Coimbra. Na verdade, a pequena vila de Mafra (e, por conseguinte, seu palácio), na qual vivem menos de 12 mil habitantes, fica próxima a Lisboa, ao norte desta, coisa de 40 km de estrada, se escolhida a rota mais curta, ponto a ponto. Mas há, não contem a ninguém, um caminho alternativo Lisboa-Mafra, quebrando primeiramente para o oeste e só depois para o norte, com pequenos desvios e paradas, que assim incluem os também belíssimos “Palácio Nacional de Sintra”, “Palácio Nacional da Pena” e “Palácio Nacional de Queluz”. Não sei quantas horas, ou dias, essa rota alternativa durará. Fica a seu critério. Mas que vale a pena fazer, vale. No mais, como registram os autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotografias), a história do hoje “Palácio Nacional de Mafra” começa em 1711, quando o já referido “João V prometeu que se sua esposa, Maria Ana de Áustria [1683-1754], tivesse filhos, ele construiria um monastério. Sua filha Bárbara nasceu no mesmo ano, e escolheu-se um local [cerca de 40 km de estrada de Lisboa, como já dito] para o novo monastério em 1713. Foi projetado para ser não apenas um monastério, mas também um palácio”. Iniciado em 1717, o Palácio/Monastério de Mafra levou mais de 30 anos para ser considerado concluído/habitável. A biblioteca, aliás, diz-se, só ficou pronta em 1771. O destino do Palácio/Monastério de Mafra (e de sua Biblioteca, 171


consequentemente), edificado no decorrer do século XVIII, está ligado às vicissitudes da história de Portugal. Como apontam Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, em “Bibliothèeques du monde” (Éditions de La Martinière, 2014), “o país já tinha efetivamente entrado em seu declínio no momento da sua construção, mesmo que a dinastia reinante dos Braganças não quisesse ter consciência disso”. Uma vez convento agostiniano, depois franciscano, o hoje “Palácio Nacional de Mafra”, por mais incrível que pareça, jamais recebeu a luxuosa decoração prevista pelos seus arquitetos. Bom, eu acho a coisa enorme e suntuosa, afinal são mais de mil ambientes, entre salas e celas para monges, uma basílica e outros mimos mais, tudo à custa dos diamantes e do ouro do Brasil. A maior joia do Palácio/Mosteiro de Mafra é, sem dúvida, sua biblioteca. Diz-se que seu projeto foi inspirado na “Biblioteca Imperial de Viena”. Tem-se uma única e gigantesca sala de teto branco desenhado, composta por duas alas unidas ao centro por uma cúpula, que, segundo os autores de “Bibliothèques du monde”, livro acima citado, mede “87,4 metros de comprimento, 9,5 metros de largura e 13 metros de altura. Uma abundante luz penetra pelas janelas direcionadas ao sul, enquanto as outras janelas, que lhes fazem face, são fechadas por espelhos”. Segundo os autores do também já referido “A biblioteca: uma história mundial” isso faz dela a “biblioteca mais comprida do estilo rococó no mundo”. Embora tenham sido abandonados os planos originais de uma decoração ainda mais ricamente trabalhada (pelos motivos acima já apontados: leia-se a progressiva quebradeira de Portugal), seu piso de mármore detalhado (uma mistura de pedras de mármores rosa, verde e branco) e suas estantes de madeira clara trabalhada em estilo rococó são de rara beleza. Ponha rara nisso. Em dois lances (quase andares) separados por uma sacada que circula toda a sala, o acervo passa dos 40 mil tomos, muitos encadernados em couro com detalhes em ouro (de nossas Minas Gerais, posso apostar), incluindo, segundo li não sei onde, uma primeira edição dos “Lusíadas” (1572), do grande Luís de Camões (1524-1580). Uma pena é que, tal como se dá geralmente com essas bibliotecas muito antigas e 172


valiosas, que são mais para conversação e visualização de coisas raras do que para trabalho propriamente dito, não podemos (ou não devemos) ler ou tocar em nada. Talvez por isso, fazendo um balanço dos três “templos” dedicados aos livros mencionados nestes meus dois riscados – a “Livraria Lello” do Porto, a “Biblioteca Joanina” da Universidade de Coimbra e a “Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra”– , eu prefira matar mesmo o meu tempo no primeiro estabelecimento. Afinal, numa livraria, podemos - gratuitamente, frise-se – tocar, manusear, ler e até cheirar os livros. Muito embora eu tenha lido que a “Livraria Lello”, de tão concorrida, andou, tempo desses, até cobrando pela entrada (valor esse que era depois compensado na compra de algum livro), o que, se verdade for, recebe, desde já, por aqui, formalmente, o meu assertivo protesto.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 6 de agosto de 2017.

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Bibliotecas espanholas (II) Na semana passada, conversamos aqui sobre a “Biblioteca Nacional de España”, cuja sede principal fica em Madrid (no Paseo de Recoletos, 20-22) e, principalmente, sobre a “Biblioteca do Monastério Real de San Lorenzo del Escorial”, que fica a noroeste da capital do país (cerca de uma hora de carro), na cidadezinha de San Lorenzo del Escorial, que, afirmei (e ora reitero), não tem muitos atrativos, mundanos quase nenhum, afora o seu palácio/monastério, “El Escorial”, para muitos espanhóis, a oitava maravilha do mundo. Já agora eu afirmo – e reiterarei mil vezes, se necessário for – que a cidade onde está localizada a nossa atração livresca de hoje tem atrativos de se perder a conta; e para todos os gostos, espirituais e mundanos, não importa. Falo da cidade de Salamanca (para depois, seguindo uma certa “lógica”, falar da biblioteca da sua Universidade). Com uma história que retroage ao período pré-romano, às margens do rio Tormes, Salamanca é uma belíssima cidade universitária – e, por isso mesmo, muito cultural, movimentada, animada, vibrante – de cerca de 150 mil habitantes. Exemplo mais fulgurante do renascimento e do estilo arquitetônico “plateresco” espanhol (dominante por volta dos séculos XV a XVII), especialmente embelezada pelas obras barrocas dos irmãos/artistas Churriguera, José Benito (1665-1725), Joaquim (16741724) e Alberto (1676-1750), a cidade nos foi muito recomendada. Foram dois ou três dias lá. E ela não nos decepcionou. As Catedrais Velha (românica, edificada entre os séculos XII e XIII) e Nova (“apenas” do século XVI) de Salamanca, que são vizinhas, são de tirar o fôlego. Foi ali pertinho, aliás, no número 9 da Plaza de Anaya, que topei com a excelente “Librería Nueva Plaza Universitaria” e adquiri, lembro-me bem, maravilhosos livros que ensinam o idioma espanhol através da literatura, da história, da arquitetura e das artes em geral. A Igreja de Santo Estevão, com sua fachada plateresca entalhada, é também de rara beleza. A Casa das Conchas, hoje uma biblioteca, é curiosíssima. E adoramos a “Plaza Mayor” (mantive o nome no origi174


nal, que é mais chique), projetada pelos onipresentes (em Salamanca) irmãos Churriguera. Afinal, adoro praças do tipo, quase simetricamente quadradas, delimitadas pelos prédios à volta, com seus restaurantes, cafés e comércios variados, perfeitas para passear e se quedar sem destino certo. Entretanto, pondo tudo na balança, o ponto alto da cidade, em torno do qual gira toda sua vida, é a sua Universidade. A denominada “Universidade de Salamanca”, ainda como “Estúdio Geral”, foi oficialmente fundada em 1218 pelo rei Afonso IX de Leão (1171-1230), mas, reconhecidamente, aulas já eram ministradas por ali, desde pelo menos 1130, por patrocínio e nas dependências da Catedral/diocese local. E foi já o rei Afonso X de Leão e Castela, o Sábio (1221-1284), alguns anos depois, que transformou (ou renomeou) o “Estúdio Geral” ligado à catedral em “Universidade”, sendo ela, portanto, de toda sorte, uma das primeiras na Europa (curiosamente, ela é posterior à pouco conhecida “Universidade de Palencia”, fundada, entre os anos de 1208 e 1212, na cidade próxima em homenagem à qual foi batizada, pelo Rei Afonso XIII de Castela, mas que teve vida breve após o falecimento deste). E no que toca à “Biblioteca da Universidade de Salamanca”, como bem registram Jean Serroy (texto) e Guillaume de Laubier (fotografias), em “The Most Beautiful Universities in the World” (Abrams Books, 2015), “o orgulho espanhol é exemplificado na arquitetura e na decoração de uma universidade cujos edifícios, incluindo a velha biblioteca, são tesouros nacionais. Aberta em 1465, expandida em 1471 e reconstruída em 1749, a biblioteca não só possui uma coleção de 160.000 documentos e livros de valores inestimáveis, incluindo cerca de 3.000 manuscritos e 500 incunábulos, mas também é ela mesma um extraordinário trabalho de madeira esculpida, prateleiras cheias, marcadores indicando a classificação dos seus livros, móveis enormes e impressionantes globos representando a história e a geografia do mundo e, mais especificamente, de um país de conquistadores que foram transportados pelos ventos oceânicos em direção a novos horizontes”. Chamou-me particularmente a atenção, recordo bem, a pequena “sala dos manuscritos” da famosa biblioteca, um dos seus mais preciosos ambientes, que, 175


segundo registra “La universidad: una historia ilustrada” (Edición Turner, 2010), livro publicado sob a direção de Fernando Tejerina, guarda mais de três mil peças, parte delas (a maioria, para ser mais preciso) adquiridas onerosamente pela Universidade, outra parte fruto de doações de outras instituições ou mesmo de particulares. No mais, se é a estátua do Frei Luís de León (1527-1591), ilustre professor de teologia da Universidade, que domina a entrada do famoso “Pátio das Escolas”, e se temos em Miguel de Unamuno (1864-1936) o seu mais badalado reitor, não esqueçamos, nós estudantes do direito, que a Universidade de Salamanca também foi a casa dos frades Francisco de Vitória (1483-1546) e Francisco Suárez (1548-1617), dois dos mais importantes juristas de todos os tempos, sobretudo para os fins do direito natural e direito internacional, sobre os quais, se Deus permitir, um dia ainda conversaremos aqui. Muito embora eu já confesse que, rodando pelas ruas da cidade, com tantas maravilhas para se ver atualmente em Salamanca, com tanta gente jovem, bonita e animada para prestar a atenção, dessa feita eu quase não pensei nesses dois “Franciscos” de tantos séculos atrás.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 13 de agosto de 2017.


A famosa biblioteca de Dublin No já distante ano de 2011 – vide as crônicas “Em Dublin” e “Pubsday” –, eu escrevi aqui sobre a capital da República da Irlanda, terra natal ou adotada de George Bernard Shaw (1856-1950), William Butler Yeats (1865-1939) e Samuel Becket (1906-1989), os outrora famosos três prêmios Nobel locais, hoje acompanhados de Seamus Heaney (1939-), o ganhador do prêmio em 1995. Isso sem falar em outros ícones das letras, como Jonathan Swif (1667-1745), Laurence Sterne (1713-1768), Bram Stoker (1847-1912), Oscar Wilde (1854-1900), James Joyce (1882-1941) e por aí vai, que se fizeram por lá. Com pouco mais de 500 mil habitantes, Dublin é, de fato, uma terra de escritores e livros. E também de muitos pubs (são para lá de 800, segundo eu sei) e bebedeira (no que já fui muito bom!). Aliás, na Irlanda, como disse certa vez Samuel Johnson (1709-1784), “ninguém vai aonde não se pode beber”. Entretanto, hoje, de volta à capital da Irlanda (em pensamento), foquemos apenas nos livros e, especialmente, num dos mais famosos templos a eles (os livros) dedicado: a “Biblioteca do Trinity College” (de Dublin). Dominando a geografia e a vida cultural da cidade (concorrendo com os muitos pubs, claro), o “Trinity College” de Dublin, como informam Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, em “Bibliothèeques du monde” (Éditions de La Martinière, 2014), foi fundado, em 1592, pela Rainha da Inglaterra Elizabeth I (1533-1603), “com o claro objetivo de propagar a ‘boa’ religião, a saber a anglicana, num país profundamente católico [a Irlanda, pondo de fora, claro, a anglicana Irlanda do Norte]”. Certamente por isso, por dois séculos, até pelo menos 1793, não eram formalmente aceitos ali estudantes católicos. E, até por oposição da própria Igreja Católica, essa arenga só foi amainar mais dois séculos depois, por volta dos anos 1970. De toda sorte, de intelectuais e escritores, a história do “Trinity College” é farta. De uma tacada, com a ajuda de Jean Serroy (texto) e Guillaume de Laubier (fotografias), os autores 177


de “The Most Beautiful Universities in the World” (Abrams Books, 2015), posso citar Jonathan Swift (1667-1745), Edmund Burke (17291797), Bram Stoker (1847-1912), Oscar Wilde (1854-1900) e Samuel Beckett (1906-1989) como ex-alunos da universidade. A “Biblioteca do Trinity College” é seguramente uma das mais famosas e belas do mundo. Mas nem sempre essa biblioteca foi como hoje ela é. Projetada por Thomas Burgh, ela foi em princípio finalizada em 1732. Todavia, como anotam os já citados Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, a vida da biblioteca “muda radicalmente a partir de 1801. Neste ano, o Parlamento de Londres institui um depósito legal de livros para todas as ilhas britânicas, e ao Trinity College foi outorgado o direito de receber um exemplar em nome da Irlanda. Ao final dos anos 1840, a grande sala, guarnecida com 90 mil volumes, estava em vias de saturação, já que recebia entre 1 e 2 mil livros a cada ano”. Na verdade, conforme explicam os autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotografias), a biblioteca “como hoje se apresenta não é um reflexo do pensamento do século XVIII, mas o resultado de uma massiva reconstrução do escritório de arquitetura Deanne and Woodward, finalizada em 1856”. No total, a “Biblioteca do Trinity College” salvaguarda em torno de 6 milhões de volumes. Entretanto, como anotam os autores de “The Most Beautiful Universities in the World”, “200 mil livros são mantidos na sala central de 65 metros de comprimento, merecidamente chamada de a ‘Grande Sala’”. De fato, pelo que pesquisei, na “Grande Sala” são 63,78m de comprimento, por 2,27m de largura e 15m de altura, superfície e volume mais que ambiciosos para uma instituição à época ainda modesta. A “Grande Sala” – outrora de leitura, hoje só de conservação – é a joia da “Biblioteca do Trinity College”. Na verdade, para fins de excelência estética, ela, a “Grande Sala”, é “a Biblioteca” da Universidade. E, sem dúvida alguma, toda em madeira escura trabalhada, do chão ao teto, ela é belíssima. O seu acervo – refiro-me especialmente à “Grande Sala” – também é riquíssimo. É verdade que grande parte dos 200 mil visitantes anu178


ais da “Biblioteca do Trinity College” lá vão para admirar o “Book of Kells”, que é considerado um dos mais suntuosos livros a ter sobrevivido da Alta Idade Média. Mas ali, na “Grande Sala”, também estão “protegidos”, segundo informam os autores de “Bibliothèeques du monde”, além do “Book of Kells”, papiros egípcios, documentos da história da Irlanda, manuscritos de Synge, Yeats, e Beckett, e outros livros datando dos séculos VI a IX, tais como o “Book of Darrow”, o “Book of Molling”, o “Book of Armagh”, o “Book of Dimma”, o “Usserianus Primus”, o “Usserianus Secundus” e por aí vai. Certamente por isso, a “Grande sala” (outrora) de leitura é hoje interditada aos leitores, servindo fundamentalmente para conservar os livros antigos da biblioteca, que “são consultados raramente, quiçá jamais”. E, curiosamente, como se estivessem em estado de alerta contra possíveis infratores, dezenas de bustos em mármore guardam as alcovas cheias de estantes escuras e livros. Eles homenageiam filósofos, historiadores, poetas, cientistas etc., a exemplo de Sócrates, Platão, Aristóteles, Demóstenes, Francis Bacon, Jonh Locke, Shakespeare e Isaac Newton, entre muitos outros, assim como alguns antigos professores do Trinity College. Por derradeiro, registre-se que Dublin, “City of Literature”, possui outras maravilhosas bibliotecas, como a “National Library of Ireland” (que fica nos números 2/3 da Kildare Street), a “Marsh’s Library” (localizada na St. Patrick´s Close) e a “Chester Beatty Library” (que fica no próprio Castelo de Dublin), todas muito pertinho uma da outra. Quem sabe, um dia, não conversaremos sobre elas por aqui. Pensando bem, isso é um bom motivo para eu voltar lá, à terra dos muitos pubs, com ou sem bebedeira.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 20 de agosto de 2017.

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A Biblioteca da Big Apple (I) Faz já um bocado de anos – acho que foi em 2006 –, eu resolvi passar um carnaval em Nova York. Até aí, tudo bem. Embora não fosse uma Olinda ou uma Salvador, era uma decisão razoável. O problema é que eu também decidi – e agora, retrospectivamente, vejo a insensatez dessa minha segunda decisão – passar boa parte desses meus dias na “Big Apple” realizando estudos para um projeto de doutorado que eu estava à época preparando. Bom, de toda sorte, foi aí que eu conheci – no que toca aos seus recursos e à sua funcionalidade – a famosa “New York Public Library”, que, para nossa sorte, tem seu edifício principal muitíssimo bem localizado, sob o ponto de vista do turista nova-iorquino, no número 476 da famosa 5ª Avenue (metrô 5ª Avenue ou 42ª Street/Bryant Park). Para quem não sabe, a complexa história da “New York Public Library”, como explicam Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, em “Bibliothèeques du monde” (Éditions de La Martinière, 2014), tem “início em 1848, com uma doação – considerável para a época – de 400 mil dólares por John Jacob Astor [1763-1848], o americano mais rico do seu tempo, que visava criar uma biblioteca de referência aberta ao público [nova-iorquino]”. Lembremos que o desenvolvimento das instituições culturais de Nova York ainda não havia acompanhado o crescimento econômico daquela que se tornou a mais populosa e importante cidade norte-americana. Já em 1870, segundo os mesmos autores, “um rico negociante e empreendedor imobiliário, James Lenox [18001880], decidiu criar uma biblioteca a partir da sua rica considerável coleção de obras raras, manuscritos e documentos da história dos Estados Unidos da América”. Entretanto, essas duas bibliotecas, além de elitistas, sofriam com a falta de financiamento permanente. E foi nesse contexto que, por volta de 1892, surge uma terceira personagem, Samuel J. Tilden (18141886). Ex-governador do estado de Nova York, candidato democrata vencedor no voto popular à presidência do país em 1876 (mas que não 180


levou o “prêmio” por espúrias manobras da época), ele havia destinado sua considerável fortuna a uma fundação encarregada de criar uma grande biblioteca pública e gratuita para a cidade. Após complexas negociações, como lembram os já citados Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, “a Fundação Tilden e as bibliotecas Astor e Lenox findam por se fundir sob o nome de New York Public Library, uma sociedade privada sem fins lucrativos”. A ideia, basicamente, era utilizar a dinheirama para juntar as duas coleções preexistentes e colocá-las em novo e belo edifício apto a futuras expansões. À frente da instituição é alçado John Shaw Billings (1838-1913), célebre bibliotecário, que imediatamente se dedica a “unificar as coleções, a recrutar os profissionais especializados, a criar um catálogo e [o mais importante para nós] a lançar a construção de um novo edifício à altura do desafio”. O local dessa primeira e principal sede, que hoje se chama “Edifício Stephen A. Schwarzman”, nós já conhecemos: a badalada 5ª Avenida. O projeto, desenvolvido a partir de “layout” básico idealizado por seu bibliotecário, John Shaw Billings, é de responsabilidade da “Carrère & Hastings”, à época uma pouco conhecida firma de arquitetura (registre-se que outra firma de arquitetura, até mais famosa, a “McKim, Mead & White”, é responsável por mais de uma dezena de outras sedes da “New York Public Library”). De 1895, ele (o projeto) combina, com rara maestria, o velho e o novo (para a época, sobretudo em termos de engenharia e funcionalidade). Segundo andei pesquisando, do ano da apresentação do projeto (1895) até a inauguração da Biblioteca em 1911, com um custo estimado de 29 milhões de dólares (em valores da época, claro), incluindo a aquisição do terreno, foram 16 anos. E, para ser mais preciso, as obras duraram de 1902 a 1911, sendo que os últimos cinco anos, a partir de 1906, foram basicamente dedicados ao embelezamento do seu interior. De fato, como registram os autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotogra181


fias): “Uma vez definido o leiaute, o arquiteto foi indicado e escolhido por concorrência, com plantas enviadas por todas as grandes empresas de Nova York, embora a ganhadora, Carrère & Hastings, fosse pouco conhecida na época. A pedra fundamental foi colocada em maio de 1902, o teto ficou pronto em 1906, e o prédio finalmente foi inaugurado em 23 de maio de 1911. A biblioteca já possuía 1 milhão de livros, contando com 120 km de estantes. Declarou-se naquela época que a sala de leitura principal [hoje batizada de ‘Rose Main Reading Room’] era a maior de seu tipo em todo o mundo, com 23,5 m de largura, 90,5 m de comprimento e 15,5 m de altura. Várias salas de leitura subsidiárias foram construídas para as coleções especializadas”. Hoje chama a atenção de quem passa pela 5ª Avenida aquele gigante de mármore, clássico e conservador, embelezado por uma esparramada escadaria, colunas que não sei agora precisar o estilo e muitas e enormes janelas de metal e vidro. O interior segue o mesmo estilo clássico. As paredes de pedra, como se pode sentir desde o salão principal de entrada (o “Astor Hall”), parecem desumanamente maciças, como se estivessem lá há séculos. Afora os elevadores, muitas e grandes escadas, com muitos lances, levam às salas de leitura posicionadas acima. A “DeWitt Wallace Periodical Room” (no primeiro andar) e a “McGraw Rotunda” (no terceiro) são espaços de beleza ímpar. No geral, o ambiente – e aqui me refiro especialmente à grande sala de leitura –, é arejado e bem iluminado (através das já mencionadas janelas), sendo dominado por um teto finamente trabalhado, por mármore e outras pedras e, sobretudo, por muita madeira (mais clara que escura), ferro e aço. O resultado de toda essa saga – em estilo que se convencionou chamar de “beaux-arts” – é um dos mais marcantes monumentos nova-iorquinos, hoje (na verdade, desde 1965) tombado pelo governo dos Estados Unidos da América como “National Historic Landmark”. E tudo isso pode ser visto e revisto: metodicamente, a partir de filme exibido na própria “NYPL” e em passeios guiados; ou diletantemente, como queiras, sem eira nem beira. Entretanto, a “New York Public Library” – com seus quase 150 km 182


de estantes, espalhadas em oito andares abaixo da icônica sala de leitura principal, apenas no edifício da 5ª Avenida – não é só belezura. E isso veremos no nosso papo da semana que vem.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 27 de agosto de 2017.


A Biblioteca da Big Apple (II) No artigo da semana passada, ressaltei aqui a história e as qualidades estéticas da sede principal da “New York Public Library”, batizada de “Edifício Stephen A. Schwarzman”, que fica, como sabemos, no número 476 da granfina 5ª Avenue (metrô 5ª Avenue ou 42ª Street/Bryant Park). No estilo “beaux-arts”, tombado pelo governo dos Estados Unidos da América como “National Historic Landmark”, o garboso edifício é um dos mais representativos marcos arquitetônicos nova-iorquinos. Entretanto, a “New York Public Library” não é só história e belezura. Ela é uma instituição viva que funciona muitíssimo bem. Antes de mais nada, a “New York Public Library”, a exemplo de outras grandes livrarias mundo afora (como a “British Library” e a “Biblioteca Nacional de España”, em Londres e Madrid, respectivamente), funciona como um excelente museu. Estão lá, para a nossa apreciação, desde belíssimas iluminuras com mais de mil anos ao original do discurso de despedida do Presidente George Washington (1732-1799), passando pela primeira Bíblia de Gutemberg (1398-1468) que chegou aos Estados Unidos da América, entre outras preciosidades. Do balacobaco é a coleção de mapas da “NYPL”, que se afirma, e não tenho porque duvidar disso, uma das maiores do mundo. E isso sem falar nas amostras e exposições temporárias, como uma sobre Alexander Hamilton (1757-1804), nela chamado de “Striver, Statesman, Scoundrel”, que coincidiu com a minha última estada por lá, coisa de outubro do ano passado. Essa exposição, aliás, até me interessava. Mas como ela era, tirando pelo título, depreciativa ao heroico “founding father”, morto em duelo, confesso que, de birra, a boicotei. Em segundo lugar, embora gigante (seu acervo é contado em mais de uma dúzia de milhões de títulos, percorrendo os mais variados temas) e visitada por mais de 10 milhões de leitores anualmente (profissionais e diletantes, ilustres e anônimos), a “New York Public Library” é muito funcional. 184


Nesse ponto, talvez a grande sacada dos seus idealizadores tenha sido projetar a sala de leitura principal no último andar e os seus muitos quilômetros de estantes espalhados pelos andares mais abaixo. Como registram os autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotografias): “do ponto de vista de um bibliotecário, isso era ideal”. Já à época, os “livros eram movidos utilizando elevadores e esteiras elétricos diretamente das estantes para as mesas na sala”, registram os mesmos autores. No mais, a sala de leitura foi posta no topo do edifício “porque seu teto podia ser alto e possuir janelas amplas que permitissem a entrada da maior quantidade de luz possível”. Hoje essa grande sala de leitura é chamada “Rose Main Reading Room” (em homenagem a Sandra Priest Rose e Frederick Phineas Rose, que financiaram sua restauração em 1998). Dividida em duas pelas escrivaninhas dos bibliotecários, originalmente na grande sala cabiam 490 leitores; hoje, 624. Coincidentemente, em outubro do ano passado (quando lá estive), a “New York Public Library” e a cidade de Nova York como um todo estavam comemorando, após mais de dois anos de uma nova reforma, ao custo de uma dúzia de milhões de dólares, a reabertura da “Rose Main Reading Room”. Precavido, até guardei uma reportagem de jornal sobre o evento, sabendo que um dia faria uso dela aqui. Lembremos, por fim, que essa é apenas uma das várias salas de leitura da “NYPY”. Existem outras, dedicadas às coleções especializadas, que, por óbvio, são mais modestas. Na verdade, a “New York Public Library” foi idealizada, nas palavras dos autores de “A biblioteca: uma história mundial”, como “uma máquina eficiente para o armazenamento, recolhimento e reorganização dos livros”. E isso eu pude constatar pessoalmente, no que toca aos seus recursos e à sua funcionalidade quando daquele meu fatídico carnaval de 2006 em Nova York, de tristíssima figura, em que eu resolvi passar boa parte dos meus dias na “Big Apple” enfurnado, pesquisando na “New York Public Library” para o tal projeto de doutorado que eu estava então entabulando. Pelo que me lembro, trabalhei/pesquisei bastante na “Mid-Manhattan Library”, que fica no número 455 da 5ª Avenue 185


(mais ou menos na altura da 40ª Street) e é uma das subsedes “New York Public Library”. Aberta até mais tarde se comparada com a sede principal (até coisa de 23 horas, acho), tive acesso livre, com um mínimo de burocracia (hoje é fundamental requerer um cartão temporário para pesquisador visitante). Paguei por um cartão de cópias e mandei brasa. Ainda hoje tenho umas tais “Letters” do “Chief Justice” John Marshall (1755-1835), contemporâneas ao caso “Marbury v. Madison” (1803), que não usei para coisíssima alguma. Aqui surge um terceiro ponto que eu quero destacar: a “New York Public Library” não é só o “Edifício Stephen A. Schwarzman” da badalada 5ª Avenida. Como mão longa da instituição, são quase uma centena de pequenas sub(sedes) espalhadas pela cidade (noventa e duas, mais precisamente, quando da minha última estada por lá), a exemplo da “New Amsterdam Library” (Murray Street, nº 9), que visitei e achei bastante dedicada, com cursos e eventos literários, à comunidade local de leitores, tanto adultos como crianças. Algumas dessas “filiais”, entretanto, não são tão pequenas assim – na verdade, são enormes –, como a já referida subsede do número 455 da 5ª Avenue (que mantém interessante programação com filmes e palestras sobre livros e literatura) ou a do número 188 da Madison Avenue (esta dedicada às ciências, à indústria e aos negócios), que também visitei para poder escrever este riscado para vocês. E isso tudo sem falar nos recursos online disponibilizados pela “New York Public Library”, para que o leitor/pesquisador possa trabalhar “fora da biblioteca”. Tive a oportunidade de xeretar o catálogo da subsede “Science, Industry and Business Library” (referida acima) e ele é fantástico. Um outro – e admirável – mundo novo. Bom, se é para botar um único defeito na “New York Public Library”, aponto a sua lojinha do prédio principal. Achei fraca, sobretudo se comparada com a lojinha da “British Library”, sobre a qual, recordome bem, já tratei aqui. Mas isso pode ser só mais uma birra minha com a “NYPL”, que é realmente única, como única é a cidade que a hospeda.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 3 de setembro de 2017.


A biblioteca perdida Há coisa de vinte dias, partindo em férias para um périplo pela Alemanha e Suíça, falaram-me muito bem de St. Gallen (“São Galo”, em bom português), cidade de médio porte, com cerca de 70 mil habitantes, capital de cantão homônimo (isto é, de uma espécie de estado da Confederação Helvética), localizada na chamada “Suíça Oriental”. Falaram-me da cidade em si, da sua origem que retroage aos anos 600, quando ali estabeleceu o monge irlandês Galo (550-646), mais tarde santo, sua ermida. Falaram-me da Universidade local, da Casa do Peso (uma tal “Waaghaus”), da bela Praça do Mercado (a “Markplatz”) e por aí vai. Mas me falaram, principalmente e muitíssimo bem, da célebre Abadia de St. Gallen, fundada em 747, beneditina, com a sua Catedral (já que hoje não é mais um monastério, mas, sim, a sede de um bispado) e a sua biblioteca (a “Stiftsbibliothek”), que, pela UNESCO, foi merecidamente chancelada como Patrimônio da Humanidade. De minha parte, fiquei doido para visitar a tal “Stiftsbibliothek”. Afinal, como lembram Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, autores de “Bibliothèeques du monde” (Éditions de La Martinière, 2014), “a história das grandes bibliotecas conventuais é também a história da cultura europeia”. Antes mesmo de partir, claro, procurei me informar sobre a tal Abadia, a Biblioteca e tudo mais. Soube que a coleção de livros no local inicia-se ainda no século VIII, sob a supervisão de um tal abade Waldo (740-814). Uma biblioteca ali existe desde o século IX, pelo menos. E desde 820-830, é célebre “Plan de Saint-Gall”, uma espécie de projeto de cidade religiosa ideal que, embora jamais executado em sua totalidade onde quer que seja, exerceu grande influência sobre as construções beneditinas da Idade Média. Soube, precisamente pelos autores de “A biblioteca: uma história mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce (fotografias), que “a planta de St. Gallen, desenhada em 820-30, é a mais antiga 187


planta de um monastério que existe”. Está preservada na própria biblioteca da Abadia. “Historiadores já discutiram longamente se representa um monastério real, mas o consenso geral é de que se trata da planta de um monastério ideal”, afirmam ainda os citados autores. Na tal planta, claro, há uma biblioteca. E ela (a planta) “provavelmente inspirou as estranhas localização e forma da biblioteca de O nome da rosa” (1980). Não deixa de ser uma especulação (ou mesmo fofoca) interessante, muito embora a biblioteca da planta de St. Gallen seja bem menor que a biblioteca imaginada por Umberto Eco (1932-2016), que, segundo também especulam os estudiosos da obra do grande escritor italiano, pode ter contido cerca de 85 mil volumes. E não podia ser diferente no mundo real: as abadias medievais, sobretudo pelo custo que os livros representavam à época, não tinham tantos volumes assim. Em “Bibliothèeques du monde”, li ainda que, já importante centro produtor de livros, a Biblioteca de St. Gallen, em torno do ano 850, “é objeto de um primeiro catálogo que já mostra que os interesses dos monges iam bem além das temáticas teológicas. Mais de 400 dos manuscritos citados nesse catálogo chegaram até os nossos dias”. Ela teve, por aquela época, o seu apogeu; e talvez tenha sido a mais famosa de todas as bibliotecas medievais. St. Gallen, claro, também conheceu dias sombrios, a começar pela invasão dos Hunos em torno de 930. Ele também sofreu bastante, no começo do século XVI, nas mãos dos reformistas calvinistas. E o monastério e a igreja românica originais não existem mais, à exceção da cripta onde descansam os restos mortais dos antigos abades. Na verdade, segundo me informaram os autores de “Bibliothèeques du monde”, é em torno de 1750 que “o abade Célistin II Gugger von Staudach lança os trabalhos de reconstrução da Abadia em direção ao que conhecemos hoje. Ele os confia ao arquiteto austríaco Peter Thumb (1681-1766) e a seu filho Michael Peter (1725-1769), adeptos de um estilo barroco simples e vigoroso, sem qualquer afetação”. E, nesses planos, claro, a Biblioteca terá um papel de destaque. Finalmente, entre 1755 e 1765, a Abadia é reconstruída no belíssimo estilo barroco que podemos apreciar hoje. 188


No que toca à Biblioteca, como registram os autores de “A biblioteca: uma história mundial”, ela “tem muitas formas de decoração [já mais próximas do rococó que do barroco], incluindo putti (meninos nus representados frequentemente com asas) em nichos acima das estantes, simbolizando as disciplinas mecânicas e as belas-artes. (…). A ala da biblioteca foi adicionada pelo arquiteto Peter Thumb entre 1758 e 1760. A decoração ficou pronta entre 1762 e 1763. A biblioteca está no segundo andar e tem 9,95m de largura, 28,4 de comprimento e 7,3 de altura. A baia final contém a escada de acesso à galeria. A porta do nível superior leva à sala dos manuscritos. Os [belíssimos] afrescos do teto [separados por trabalhos em gesso] foram feitos por Josef Wannenmacher [1722-1780], fornecendo um guia para os aspectos acadêmicos, pastorais e pedagógicos da vida monástica”. As estantes trabalhadas em madeira e as colunas mármore, mais escuras do que claras, são também belíssimas; o raro chão de madeira, com fina obra de marchetaria, idem. Hoje, também segundo fui informado, o acervo de St. Gallen, funcionando como biblioteca de pesquisa e coleção histórica, conta com mais de 150 mil obras, entre elas mais de 2 mil manuscritos e 1500 incunábulos. Nesse meio, além dos manuscritos citados no seu primeiro catálogo (boa parte deles irlandeses, do século VIII), estão outros tesouros, como uma “Vie de Charlemagne” escrita logo após a morte do grande imperador, o “Evangelium Longum” (finamente coberto de marfim por obra de um dos monges da Abadia), a “Mirabilia Romana” (o primeiro guia turístico de Roma, escrito em pergaminho) e até um sombrio manuscrito que relata os atos de crueldade do verdadeiro conde Drácula (Vlad III, o Empalador, 1431-1476). Para vocês terem uma ideia de como eu estava empolgado com St. Gallen, cheguei até a comprar um livrão em alemão sobre a temática (das bibliotecas): “Die Weisheit baut sich ein Haus: Architektur und Geschichte von Bibliotheken” (Editora Prestel, 2011), organizado por Winfried Nerdinger. Péssimo negócio. Escrito na língua de Schiller (1759-1805) e Goethe (1749-1832), até hoje peno para entender algo mais que as fotografias. Bom, eu me programei, como vocês podem ver, para a tão desejada 189


visita. Dormimos na noite anterior em Füssen, no extremo sul da Baviera alemã. E seria fácil, portanto, dando uma volta no lago de Constança (também chamado “Bodensee”), via Áustria, chegar no começo da tarde a St. Gallen. Tudo ali é muito perto. Mas havia algumas pedras no meio do caminho. Primeiro, uma subida ao castelo de Neuschwanstein (pensem numa pedra “enorme”). Depois uma parada estratégica no Principado de Liechtenstein. Por fim, e mais grave, minutos preciosos perdidos no comércio da “Markplatz” de St. Gallen e arredores. Chegamos a tempo de contemplar o entardecer no complexo da Abadia de St. Gallen. Muito mais do que belo. Mas do interior da Biblioteca, por minutos perdidos, nada. Já fechada. Ainda bati às pressas na porta. Pensei em gritar que escrevia para a Tribuna do Norte, mas achei que seria em vão. E tudo que sei sobre a Biblioteca de St. Gallen, meus amigos, foi por delação. Me desculpem.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 17 de setembro de 2017.


A biblioteca do banqueiro Já referi-me a ela aqui, embora “en passant”, quando escrevi sobre “Minhas livrarias em Nova York”: a “Morgan Library & Museum”, que se acha no número 225 da Madison Avenue, na altura da 36ª Street, no bairro nova-iorquino de Murray Hill (a estação de metrô mais próxima é a 33ª Street; mas a estação 34ª Street/Herald Square também serve bem). Muito pertinho do hotel em que nos hospedamos na Big Apple (o “The Tuscany – A St Giles Signature Hotel”, 120 East 39th Street, que não canso de recomendar), em outubro do ano passado, desfrutamos parte de uma tarde de outono por lá. Para quem não sabe, a história da “Morgan Library & Museum” está indissociavelmente ligada à figura do banqueiro e multimilionário John Pierpont Morgan (1837-1913). Lendário homem de negócios, J. P. Morgan também foi um grande colecionador de quase tudo (que tivesse certo valor estético-artístico, claro). “Manuscritos originais e livros raros eram sua paixão e a inclusão em sua coleção era considerada uma honra”, ressalta o “Guia Visual Folha de São Paulo – Nova York” (PubliFolha, 2007), que consultei já desconfiado da minha cansada memória. Verdade ou lenda, registra ainda o mui útil guia: “Em 1909, quando Morgan pediu a doação do manuscrito de Pudd’nhead Wilson, Mark Twain [1935-1910] respondeu: ‘Realiza-se uma das minhas maiores ambições’”. O nome Morgan hoje, claro, está até associado a gigantes do mundo financeiro, a exemplo dos “super bancos” J. P. Morgan Chase e Morgan Stanley. O que hoje chamamos de “Morgan Library & Museum” foi originalmente concebido – e inaugurado em 1906 – para abrigar a biblioteca particular do tal J. P. Morgan (além dos desenhos e gravuras também colecionadas pelo banqueiro). O projeto é da famosa firma de arquitetura McKim, Mead e White (responsável por mais de uma dezena de sedes da gigante “New York Public Library”), precisamente de Charles McKim (1847-1909), e custou, à época, mais de um milhão de dólares, o que era, podem ter certeza, uma fortuna. O prédio original tem o estilo 191


neoclássico, mais especificamente “palladiano”, estilo este criado e associado ao grande arquiteto italiano Andrea Palladio (1508-1580), mas que se fez sentir também nos EUA. O prédio é tombado, desde 1966, tanto como patrimônio histórico da cidade de Nova York quanto nacional (“National Historic Landmark”). E foi o filho do grande colecionador, John Pierpont Morgan Jr. (1867-1946), que, cumprindo o desejo do pai manifestado em testamento, tornou pública a Biblioteca em 1924. Como o prospecto da própria Biblioteca informa, “a uma curta distância a pé da Grand Central e da Penn Station, Morgan Library & Museum começou como biblioteca privada do banqueiro John Pierpont Morgan, um dos mais proeminentes colecionadores e benfeitores culturais dos Estados Unidos da América”. Já hoje, “mais de um século após sua fundação em 1906, a Morgan é um consagrado local para exibição de arte, literatura e música, um dos mais importantes prédios históricos de Nova York, e um lugar maravilhoso para se jantar, comprar e assistir a um concerto ou filme”. Pelo que verifiquei, abre todos os dias da semana, com exceção da segunda-feira. Em regra, desde a manhã até umas 17 ou 18 horas; no sábado, vai até mais tarde, coisa de 21 horas. A “Morgan Library & Museum”, realmente, impressiona. Hoje é um complexo de prédios com três pisos. Há jardins, um café e um “dinning room”. A entrada atual é mais moderna (de 2006, segundo li). Mas há os ambientes originais de rara beleza. A “Rotunda”, que é a entrada da biblioteca principal, é muito bela e sofisticada. O chamado “Salão Oeste”, (e ainda está preservado) onde estava o escritório do J. P. Morgan, idem. O “Salão Leste”, onde fica a biblioteca propriamente dita (“The Original Library”, eles chamam), com suas paredes em três estágios cobertas de alto a baixo com livros, consegue ser mais belo e refinado ainda. Lindíssimo mesmo. E este é o ponto alto para nós amantes de livros. Mas a “Morgan Library & Museum” não é só belezura arquitetônica. Seu acervo é único. Perde-se a conta dos esboços, desenhos e gravuras de gente como Dürer, Mantegna, Da Vinci, Rafael, Michelangelo, Rembrandt, Tiepolo, Watteau, William Blake e por aí vai. Entre os belíssimos manuscritos medievais e renascentistas da enorme coleção, 192


estão joias como os “Evangelhos de Lindau”, a “Bíblia Morgan ou dos Cruzados”, o “Morgan Beatus”, as “Horas de Catherine of Cleves” e as “Horas do Cardeal Alessandro Farnese”. Entre os livros raros, estão pelo menos três bíblias de Gutemberg, finíssimas encadernações e inúmeras primeiras edições de obras famosas da literatura universal. Por falar em literatura, são incontáveis os manuscritos de autores clássicos, do “Paraíso Perdido” de John Milton até os “Contos de Natal” de Charles Dickens, passando, como informa a website da instituição, por Walter Scott, Honoré de Balzac, Jane Austen, Charlotte Brontë, Lord Byron, Wilkie Collins, Edgar Allan Poe, John Keats e John Steinbeck. Isso sem falar em coisas de música, de gênios como Beethoven, Brahms, Chopin, Liszt, Debussy, Mozart, Schubert, Mahler e Richard Strauss. E ela é também instituição dinâmica, com mostras e exposições temporárias para além do seu acervo permanente. E aqui abro até um parêntesis: quando estivemos na “Morgan Library & Museum”, em outubro passado, estava em cartaz a exposição “Word and Image”, sobre os 500 anos das 95 teses de Martinho Lutero (1483-1546), que me chamou a atenção deveras. Coincidentemente, tendo estado agora na Alemanha, vi algo semelhante em muitas cidades deste país. Em Augsburgo, pelo que me lembro, era propaganda em todo canto. Fiquei novamente impressionado. Acho que esse Lutero me persegue. Agora vai a minha impressão mais pessoal. A “Morgan Library & Museum” não é grande. Nada no estilo “gigantesco” da “New York Public Library”. É algo mais intimista. Não é para trabalho e pesquisas acadêmicas em geral. Longe disso. Ali toma-se um bom café, come-se razoavelmente bem. Visita-se uma exposição. Ouve-se boa música. É mais um museu de livros e coisitas mais, super refinado, cult, para se frequentar e curtir vagarosamente (se você é um “local”, claro). É possível associar-se, com contribuições anuais que vão desde 75 a 1000 dólares (neste caso, tornando-se um “conservador” da instituição”). Por fim, uma observação: à semelhança da lojinha da “New York Public Library”, também não gostei da lojinha de livros (e coisas sobre livros) da “Morgan Library & Museum”. Embora tenha comprado algo 193


lá (um interessante “Libraries in the Ancient World”, de Lionel Casson, Yale Universtity Press, 2002), esperava mais. Mas seria isso apenas mais uma birra minha? Será que sou exigente demais?

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 24 de setembro de 2017.


Perdidos no mercado Um dos principais programas turísticos em Istambul é a visita aos seus mercados cobertos. Esses bazares – é assim que normalmente eles são chamados em nossa língua –, que variam bastante em tamanho, são formados por algumas ou muitíssimas ruas cobertas, apinhadas, de lado a lado, de um sem-número de lojas. Ali mesmo, em Sultanahmet, onde andamos flanando na crônica da semana passada, estivemos em um, o Arasta Bazar, que, embora pequenino, é bem agradável. Outro excelente bazar de Istambul que conhecemos, certamente um dos mais famosos para o turista, é o Bazar Egípcio ou das Especiarias (“Misir Çarsisi”), edificado, originalmente, entre os anos de 1663 e 1664, como parte do complexo da chamada Mesquita Nova (outra atração de Istambul que merece ser visitada). Boa parte do dinheiro para a sua edificação veio do comércio de produtos do Egito, o que, certamente, explica o seu nome. O prédio pegou fogo algumas vezes, mas foi reconstruído e reinaugurado outras tantas (em 1691, 1940 e 1994, segundo li), o que não me espanta de forma alguma. Por lá se vendem ervas e especiarias, claro. Mas eu testemunhei um comércio muito mais diversificado: variedades de carne, frutas frescas e cristalizadas, mel, doces (sobretudo as “delícias turcas”) e mil e uma outras guloseimas. Roupas e utensílios domésticos também vi em profusão. Do lado de fora, vi até animais de estimação, o que, para mim, é sempre motivo de distração. No mais, em formato de L, o Bazar das Especiarias é, estruturalmente, muito bonito. As belas entradas e o teto de pedra trabalhado chamam, de logo, a nossa atenção. Só não gostei da ostensividade da segurança. Homens fortemente armados e detector de metais em todas as entradas me deixaram um pouco apreensivo. Mas faz parte. Mais antigo e badalado ainda (que o Bazar Egípcio) é o denominado Grande Bazar de Istambul (“Capali Çarsi”). Antes de mais nada, o apelido “grande” é pequeno para definir as suas proporções e a sua dinâmica própria. Formado por várias sessões que se acumulam ao derredor da sua parte mais interior e antiga (chamada “Iç Bedesten”), 195


ele é muito mais do que grande. Na verdade, como explica o “Guia Visual Folha de São Paulo – Turquia” (PubliFolha, 2014), o Grande Bazar “é uma revelação. Trata-se de um labirinto de ruelas cobertas por abóbadas pintadas e ladeadas por milhares de lojas. As mercadorias avançam pela calçada para conquistar compradores e os lojistas fazem de tudo para vender. O bazar foi criado por Mehmet II, logo depois de conquistar a cidade em 1453. Ele dispõe de diversas entradas, e as duas mais práticas são a da Porta Çarsikapi (da parada de bonde Beyazit) e a da Porta Nuruosmaniye (da Mesquita de Nuruosmaniye). Apesar das placas, é fácil se perder no bazar. Muitas das mercadorias do bazar são fabricadas em oficinas escondidas por trás das lojas”. Para proporcionar um mínimo conforto à multidão de todos os dias, lá tem de quase tudo: restaurantes, cafés, agências bancárias, correios, salão de beleza, toaletes e locais para banho, posto policial e por aí vai. É uma babel de cores e sons onde se vende de tudo. Tudo mesmo. E muito barato, se comparado com os preços aqui no Brasil. Basta pechinchar, o que é quase uma obrigação por ali. Logo apartados da nossa excursão – afinal, andar com um grupo de jovens senhoras nesse labirinto de lojas seria pior que excursionar no Inferno de Dante –, nós compramos algumas bugigangas (xícaras, bolsinhas, lenços, já nem me lembro mais), entre elas uma cafeteira turca que, por estes dias, tem feito a minha vigília mental prazeirosamente aumentar (e a minha pressão arterial também, infelizmente). Ademais, para quem não sabe, Istambul tem até um Bazar dos Livros (“Sahaflar Çarsisi”). Como não podia deixar de ser, decidimos ir lá. Mas foi aí que começaram os nossos – mais meus, é verdade – problemas. Nos perdemos bisonhamente. Devíamos ir para o oeste e fomos, sei lá o porquê, para o leste. Isso não é comum, registro logo. Sou muito bem localizado com ruas e mapas. Li não sei onde que isso é uma caraterística masculina, em razão do maior nível de testosterona no homem. “Estava acontecendo algo comigo em termos hormonais?”, foi o que, assustado, indaguei para mim mesmo. Após essa perdição (quase) desesperadora, graças a Deus (e aos mapas, agora lidos corretamente) nos achamos e topamos com o tal Ba196


zar dos Livros, que pode ser considerado, a bem da verdade, como mais um dos anexos do Grande Bazar. Trata-se essencialmente de um grande pátio, em parte coberto, rodeado de muitos comércios de livros usados. No mesmo local, segundo li, funcionou um antiquíssimo mercado bizantino de livros. Hoje, o maior homenageado ali, com uma estátua, é Ibrahim Müteferrika (1674-1745), o grande polímata de origem húngara, mas feito otomano, que é considerado o primeiro editor de livros do mundo otomano-árabe. Bom, sem saber uma palavra de turco e novamente “perdido”, acabei saindo do Bazar dos Livros sem comprar quase nada – a não ser um guia de viagens em inglês, “All Istambul: City of Civilizations” (Editora Anadolu, 2010), de um tal Erdem Yücel, que consultei para escrever esta crônica –, o que, registro, não é algo comum para mim quando se trata de visitas a sebos e assemelhados. Mas essa nova perdição, quero acreditar, nada tem a ver com testosterona alta ou baixa.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 28 de janeiro de 2018.

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Os livros da Índia Quando surgiu a oportunidade de viajarmos à Índia, num pacote em que praticamente pagaríamos um e iríamos dois, eu fiquei ressabiado. Embora muito barato e eu jamais estivesse estado lá, a Índia é um país para nós muito distante e, para dizer o mínimo, exótico. Acabamos indo, tentados, em grande parte, pela oportunidade de viajarmos bem e barato, eu confesso. Simplesmente adoramos. “É outra civilização”, eu diria imitando o nosso Manuel Bandeira (1886-1968), embora a Índia não seja bem a “Pasárgada” do poeta. A Índia que conhecemos, basicamente o chamado “Triângulo Dourado” (que tem como cidades de referência Nova Déli, Agra e Jaipur), nos surpreendeu, quase sempre positivamente, em muitíssimos aspectos. Ela é aquilo que lhe contaram, ou você viu em filmes, e muito mais, pode ter certeza. Uma das coisas que me surpreendeu positivamente na Índia, talvez a mais prosaica delas, foi a “facilidade” que tive para comprar livros ali, coisa que não esperava de maneira alguma. Não que eu compreenda híndi, urdu, sânscrito ou qualquer outra das mais de vinte línguas oficiais daquele país. Mas o fato é que lá se fala também, oficial e corriqueiramente, o bom e jovem (sobretudo se comparado com o ancestral sânscrito) inglês, um legado deixado pelo “Raj” (reinado) britânico, de 1858 a 1947, quando do domínio colonial do grande Império (britânico) sobre o continente indiano. A consequência disso é que lá também se publica muito em inglês. E o mais interessante: livros que são dificilmente encontrados no Reino Unido ou nos Estados Unidos da América. Descobri isso logo que chegamos a Nova Déli, uma cidade, pelo seu tamanho e pelo seu trânsito, quase inviável para o turista apressado. O nosso hotel, certamente para que o turista não precise se aventurar pela loucura da cidade, possuía, no que parecia ser a mistura do seu térreo e subsolo, um pequeno shopping e um supermercado. Esse supermercado, surpreendentemente, numa seção até grande, vendia livros. 198


Comprei coisas interessantíssimas. Entre elas um “Agatha Christie: Shocking Real Muders behind her Classic Mysteries”, publicado pela HarperCollins Publishers da Índia, agora em 2017. Parte da uma série (“Real Crime Casebooks”), realizado com base nos arquivos do jornal Daily Mirror, ele, entre outras coisas, revela a inspiração da Rainha do Crime em fatos reais para a elaboração dos seus adoráveis mistérios. Mesmo nos meus anos em Londres, não me lembro de ter topado com algo parecido. Outro livro que comprei foi “A Brief History of India” (publicado pela Inner Traditions em 2003, a partir do original em francês “L’Historie de l’Inde”), do renomado historiador, musicólogo e indiologista francês Alain Deniélou (1907-1994). Se eu desejava conhecer um pouco da história da Índia pela perspectiva de um ocidental, não haveria coisa melhor. E tudo foi muito barato. Coisa de 500 rúpias indianas cada livro, e ainda tinha um desconto no caixa de 25%. No final, paguei algo entre 15 e 20 reais por cada belezinha. Algo parecido também se deu em Agra, para onde fomos em seguida a Déli. O hotel em que lá ficamos também possuía um pequeno shopping, onde o turista menos corajoso poderia se distrair – e comprar, claro –, sem ter de enfrentar o trânsito, a visível sujeira e a confusão desta cidade que, embora abrigue o Taj Mahal e o Forte de Agra, às vezes ainda lembra um vilarejo dos tempos do Império Mugal. Havia uma pequena livraria escondida entre as lojas de sedas e assemelhados. E lá comprei “The Discovery of India” (Peguin Books, 2004), livro escrito por ninguém menos que Jawaharlal Nehru (1889-1964), o PrimeiroMinistro da independência da Índia e por mais dezessete anos, até o seu falecimento, no cargo, em 1964. Um tijolão de mais de 600 folhas, por uns 25 reais, que me foi e me tem sido útil para entender, nem que seja minimamente, aquele surpreendente país. Concebido enquanto Nehru estava preso no Ahmednagar Fort, publicado pela primeira vez em 1946, é um clássico, formando, juntamente com “Autobiography” e “Glimpes of World History”, a tríade dos mais famosos livros do “pandit” (professor) indiano. Mas foi em Jaipur – uma cidade indiana “viável” para o turista, de tamanho humanamente explorável e, sobretudo, muito bela e agradá199


vel – que fiz minha festa. Antes de mais nada, adoramos Jaipur. Os seus palácios e fortes. Os seus monumentos. Os seus tuc-tucs. O seu gigante mercado. Sobre Jaipur, especificamente, nós conversaremos aqui um dia, eu prometo. E Jaipur, descobri quase sem querer, tem um mercado de livros. Na verdade, um lado quase inteiro de uma rua do seu grande mercado/ bazar, a Chaura Rasta Road, dedicado ao comércio de livros. Um tanto caótico, como não poderia deixar de ser, o que me deixou no começo, confesso, quase doidinho. Mas achei o meu “fornecedor” em Jaipur num tal “Shiv Book Depot” (Chaura Rasta, nº 167), um dos muitos comércios de livros (misto de livraria com sebo) encarrilhados no mercado da cidade, mas afortunadamente especializado também em direito. O meu “fornecedor” está ali desde 1953, imaginem. Eu me dei muitíssimo bem. Adquiri uma “Introduction to the Constitution of India”, do grande jurista indiano Durga Das Basu. Um clássico, cuja edição que comprei, novinha em folha, da LexisNexis, de 2015, é a sua vigésima segunda. Devo ter pago umas 300 e poucas rúpias nessa joiazinha. Coisa de 15 reais. Ou seja, baratíssimo. Também pus na sacola alguns livros de filosofia geral e filosofia do direito, de editoras e autores indianos, entre os quais destaco: “Jurisprudence (Legal Theory)”, do professor Nomita Aggarwal, publicado por uma tal Central Law Publications em 2016; e “Studies in Jurisprudence and Legal Theory”, do professor N. V. Paranjape, este publicado por uma tal Central Law Agency, também em 2016. São livros novinhos, registre-se. Cada um, coisa de 300 a 400 rúpias ou 15 reais. De graça para tijolões de quinhentas e tantas páginas. Tão diferente dos caríssimos livros de direito aqui no Brasil. É quase revoltante. Arrependi-me apenas de não ter comprado mais. Ando consultando pela Internet os catálogos das editoras jurídicas indianas. Mas talvez isso sirva de pretexto para voltar àquela terra, sei lá. Bom, uma coisa é quase certa, esses livros são inéditos aqui por Natal. E se vocês me virem citando filosofias diferentes por aqui, não se preocupem, eu não perdi o juízo. Tá tudo nos livros.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 4 de fevereiro de 2018.


A maior do mundo Tudo na cidade de Dubai é gigante: a ilha artificial em forma de palmeira, um hotel que se diz sete estrelas e por aí vai. Quase tudo que é – ou se diz – o “maior do mundo” está em Dubai: o mais alto edifício do mundo (o Burj Khalifa), o maior shopping center do mundo (o Dubai Mall) e por aí também vai. E olhem que, dos Emirados Árabes Unidos, federação/país do qual também fazem parte Abu Dhabi, Sharjah, Ajman, Umm al-Quwain, Ras al-Khaimah e Fujairah, o emirado de Dubai não é nem o maior, nem o mais rico e nem o mais importante. Essa posição, para quem não sabe, cabe a Abu Dhabi, cujo território corresponde a mais de 85% do que são os Emirados Árabes Unidos. E é nesse território que está o petróleo. O dinheiro, portanto. E muito. Comparada à capital (dos Emirados Árabes Unidos) Abu Dhabi e mais ainda se comparada a Istambul e às cidades da Índia, de onde tínhamos acabado de chegar, achei Dubai “fake”. É essa a palavra mesmo. Tudo muito grande, tudo muito limpo, tudo muito organizado, mas artificial. Uma mistura de Miami e Las Vegas, só que muito mais cara. Excetuo aqui os bairros de Deira e Bur Dubai, nos quais você pode encontrar a Dubai histórica, do comércio com a Pérsia/Irã, com seu Creek (uma espécie de canal/rio que separa os dois bairros antigos) e seus barcos e seus velhos bazares, por onde deliciosamente nos perdemos. Em Deira, entre outras coisas, visitamos o Gold Souq (ou Mercado do Ouro). Atravessamos o Creek num minúsculo barquinho, chamado de “abra”, que faz as vezes de táxi aquático. Já em Bur Dubai, antes de passearmos pelo microbairro histórico “Bastakia Quarter”, jantamos no também histórico restaurante Bait al Wankeel, às margens do Creek, cujo prédio, informa o meu guia “Lonely planet: Dubai e Abu Dhabi”, “de 1935, foi escritório da marinha mercante e é um dos mais antigos de Dubai (...)”. Um achado. Mas parece que o turista médio não se perde por ali. Infelizmente. Como não poderia deixar de ser, Dubai também tem – ou diz ter, 201


já que desconfio sobremaneira dessas afirmações – a “maior livraria do mundo”. Localizada no Dubai Mall (não esqueçam: “o maior shopping center do mundo”), chama-se “Books Kinokuniya Dubai” e faz parte de uma rede de livrarias japonesas de mesmo nome. A maior rede de livrarias do Japão, por sinal, com mais de oitenta lojas espalhadas por aquele país e pelo mundo. Segundo o site “Visite o Dubai”, do Departamento de Turismo desse emirado, versão português de Portugal, “com uma coleção de mais de um milhão de livros, a Kinokuniya é uma gigantesca livraria que ocupa 6317 metros quadrados no The Dubai Mall. Prateleiras e prateleiras oferecem preciosidades de todos os gêneros, com obras em seis línguas diferentes. Trabalhos impressos em Inglês, Árabe, Japonês, Alemão, Francês e Chinês que proporcionam iluminação cultural à Baixa do Dubai. Para além disto, existem eventos e workshops para os mais pequenos”. Bom, estive lá e confirmo: muitíssimo bem localizada, em frente à entrada da estação de metrô que fica dentro do Dubai Mall, a tal Books Kinokuniya é realmente gigante (embora tenha sido ainda maior na sua antiga localização no mesmo shopping). É muito bonita, naquela profusão de cores que sempre me acalma (para não perder o costume, tirei um bocado de fotos). É mais organizada ainda, com quase tudo no lugar. Os vendedores são muito prestativos, talvez até demais, já que nada melhor do que garimpar livros, sem ajuda, por prateleiras sem fim. O acervo, já dá para intuir, é enorme, variado e excelente. Tem de quase tudo, entre livros, revistas e outras bugigangas relacionadas ao estudo e à leitura. Eu mesmo comprei duas preciosidades livrescas: uma intitulada “Novel Destinations: Literaty Landmarks from Jane Austen’s Bath to Ernest Hemingway’s Key West” (escrito por Shannon Mckenna Schmidt e Joni Rendon e publicado pela National Geographic Society, 2009); a outra, “Modern Book Collecting” (autoria de Robert A. Wilson e publicado pela Skyhorse Publishing, 2010). Mas vai aqui o grande defeito dessa excelente livraria: tudo lá é muito caro, como de praxe em Dubai. E não estou aqui comparando com a Índia, de onde tínhamos acabado de chegar. Comparo com os 202


livros novos em dólar ou euro, que achamos nos comércios de livros americanos ou europeus. Para se ter uma ideia, na Books Kinokuniya Dubai, nos livros editados no EUA e na Europa, por cima do tradicional preço da contracapa, é sempre posta uma nova etiqueta, com novo código de barras e preço, desta vez em Dirham, a moeda dos Emirados Árabes Unidos. E convertendo de volta para o dólar, o euro ou mesmo para o real, fica sempre muito mais caro. Injustamente tido por amarrado – me reconheço econômico, apenas –, eu comprei aqueles livros com dó. Somente porque eles eram muito do meu agrado – afinal, tem coisa melhor do que fazer turismo literário e colecionar livros? – e não os tinha jamais visto ou mesmo deles ouvido falar. Não me arrependo, claro. Mas que doeu na alma do bolso, doeu.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 11 de março de 2018.

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As livrarias de Oxbridge “Oxbridge” é uma palavra amálgama que serve para designar conjuntamente as cidades e, mais especificamente, as universidades de Oxford e Cambridge. Pertinho de Londres, menos de uma hora de trem, essas duas cidades universitárias são belíssimas e, assim, indicadas tanto para o estudo sério como para o mero turismo diletante. Eu mesmo, antes de fazer doutorado no King’s College London, mais de uma vez prestei exames (o IELTS e o ILEC, se não estou enganado) e estudei em Oxford e em Cambridge. Direito no Corpus Christi College da Universidade de Oxford (lembro-me bem) e língua inglesa em mais de uma das muitas escolinhas de línguas que essas duas cidades oferecem. Para quem for ao Reino Unido a passeio, enfaticamente recomendo dar um pulo nelas. Se não nas duas, numa ou noutra (e desde já adianto que tanto faz qual delas). Sobre “Oxbridge”, aliás, eu já escrevi aqui algumas vezes, como, por exemplo, em “Oxford e Cambridge: as grandes rivais (I) e (II)”. Entretanto, não me recordo de haver tratado das livrarias e sebos dessas duas cidades, tipos de comércios que, em razão da natural demanda de seus milhares de estudantes e professores, ali são achados, tanto grandes como pequenos, em abundância. Faço agora, selecionando, na profusão das dezenas de comércios de livros novos e usados existentes, os quatro – dois em Cambridge e dois em Oxford – que, por motivos diversos, mais me encantaram, tanto que ainda guardo, na algibeira da memória, as boas horas ali passadas. Começo pela “Heffer’s Bookshop”, que pode ser considerada “a livraria” de Cambridge. Mais que centenária, fundada em 1876 e administrada pela própria família Heffer até a década de 1990, ela foi adquirida e é hoje gerida pela rede de livrarias “Blackwell’s”. Muito bem localizada, no número 20 da Trinity Street, é uma livraria gigante, a maior de Cambridge, que, para além de livros, vende de quase tudo 204


em se tratando de produtos relacionados a leitura e à vida acadêmica da cidade. O seu acervo é “especializado” em tudo, “de arqueologia a zoologia”, para atender aos professores e estudantes da Universidade e, de quebra, aos turistas/pesquisadores de ocasião. Se livros acadêmicos não faltam, a Heffer’s também se gaba do seu acervo mais diletante, a exemplo das seções de ficção, em especial a da ficção policial, que ela afirma ser a maior no Reino Unido. Quanto a mim, e olhem que já faz algum tempo que estive lá, ainda recordo as tardes passadas na seção de livros de segunda mão, garimpando exemplares bem conversados e com preço bastante em conta. Adoro promoção. Mas se tem uma livraria em Cambridge que me traz as melhores recordações, essa é a “Cambridge University Press Bookshop”, que fica no número 1 da Trinity Street. Não é uma livraria grande. Pelo contrário, são dois andares de um prédio até modesto. O seu acervo, entretanto, que gira em torno das publicações da Cambridge University Press, é, por esse motivo, especial. Livros técnicos de todos os ramos do saber ali são encontrados em abundância. Isso inclui direito e filosofia, ou a mistura deles, que é a minha preferência. A loja atual data de 1992. Em 2009, foi inaugurada uma extensão especializada no aprendizado da língua inglesa. Embora essas instalações sejam recentes, elas estão exatamente no local/região onde historicamente – e ponha alguns séculos nisso – o comércio de livros era realizado em Cambridge. Por sinal, turisticamente falando, a localização é fantástica, justo na praça central que dá para a fachada leste do King’s College da Universidade de Cambridge. Tenho guardada na memória a visita que lá fizemos, a família toda, no comecinho do meu doutorado. E até hoje uso as sacolas de pano, com a logomarca da livraria, que compramos, num tempo, tão gostoso, em que ainda viajava com os meus pais. Já em Oxford, a primeira livraria que tenho para sugerir é a “Oxfam Bookshop”, localizada no número 56 da St. Giles Street. Para quem não sabe, a Oxfam (por extenso: “Oxford Committee for Famine Relief”), como organização não governamental, foi fundada em 1942. Hoje é famosíssima para muito além do Reino Unido, estando oficialmente presente, através da “Oxfam International Confederation”, em ao 205


menos vinte países, incluindo o Brasil. Indo à Terra da Rainha (a Londres, especialmente), é quase certo topar com uma das lojas da Oxfam, quase sempre misto de livraria, sebo e brechó. A Oxfam Bookshop aqui sugerida é a livraria original dessa badalada organização, em funcionamento há mais de trinta anos, e essa rica história já basta para ela merecer a nossa visita. De toda sorte, o seu acervo também é muito bom, indo de obras de ficção e outras “diletantices” a livros acadêmicos, para atender às necessidades do ambiente estudantil da cidade. Esse acervo, pela própria dinâmica do comércio de livros usados, muda frequentemente, o que é bom. E o preço é bastante em conta, o que é ainda melhor. Por derradeiro, ainda em Oxford, vai aquela que é considerada por muitos “a melhor livraria do mundo” (com o que tendo a concordar): a “Blackwell’s Bookshop”. Falo da loja gigantesca que fica nos números 48-50 da Broad Street, bem pertinho de algumas das melhores atrações turísticas de Oxford, como a “Bodleian Library”, a “Radcliffe Camera”, o “Sheldonian Theatre” e a “Bridge of Sighs”. Na verdade, inaugurada em 1879 (por um tal Benjamin Blackwell), com seus alegados mais de 250 mil livros, a Blackwell’s é, por si só, uma atração turística nesta cidade onde o cotidiano se confunde com o ensino e o aprendizado. Excetuando as coleções especializadas (que ficam em outras lojas da rede Blackwell’s na cidade), em termos de livros, ali se acha de tudo, tudo mesmo, para fins acadêmicos (no que é imbatível no Reino Unido) ou não. O ambiente colorido, para quem gosta da coisa, é de tirar o fôlego, sobretudo a enorme “Norrington Room”, a sala subterrânea que, com seus cinco quilômetros de estantes, em mais de um nível, é considerada, pelo “Guinness Book of Records”, o maior espaço contínuo e permanente para venda de livros do mundo. Para mim, quando penso em uma livraria descomunal, que contenha de tudo, numa paródia imperfeita da Biblioteca de Borges (1899-1986), é a Blackwell’s de Oxford, mais do que qualquer outra, que me vem à cabeça. Bom, caro leitor, em “Oxbridge”, recomendo que você visite essas quatro livrarias. Se possível com a família toda, como eu fiz um dia, num tempo em que ainda viajava com os meus pais. 206

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 18 de março de 2018.


Avenida Corrientes Já escrevi aqui, em dois artigos, sobre as livrarias de Buenos Aires. Mas me lembro muito bem de haver evitado tratar dos comércios de livros – antigos ou simplesmente usados – da famosa Avenida Corrientes. Achava que era coisa de “profissional”, esse comércio de livros antigos e valiosos. E, conhecedor diletante da obra de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), sempre achei que, “sobre o que não se pode falar, deve-se calar”. Continuo achando. As duas coisas. Mas de volta a Buenos Aires bateu mais forte a minha paixão pelos livros. E, apesar das advertências do clima e da minha mulher, corri, literalmente, para a Avenida Corrientes. Afinal, segundo constava do meu “Guia Visual Folha de São Paulo – Top 10 – Buenos Aires” (PubliFolha, 2010), “centro do bairro dos teatros, esta lendária avenida foi chamada ‘a avenida que nunca dorme’ nos anos 1940, quando abrigava muitos teatros e cinemas. Hoje, está um tanto decadente, mas os teatros continuam aqui. Também está repleta de cafés e livrarias, entre elas excelentes sebos”. Passaria uma tarde inteira, entrando na noite, por aquelas bandas. Foi bom e foi ruim. Os teatros e os cinemas, pelo menos boa parte deles, ainda estão mesmo lá. O Teatro Metropolitan (no número 1343), o Teatro San Martin (número 1530), o Teatro Gran Rex (número 557) e o Opera Allianz (número 860), ao menos, pelo que me recordo agora. Entrei nos que pude. Assisti a uma ou duas pequenas apresentações gratuitas no foyer dessas casas. Saquei muitas fotos. Dentro e fora deles. E desfrutei de uma beleza ostensivamente decadente, sabedor, mas conformado, que os dias de glória nunca mais voltarão. Fucei, sobretudo, um sem-número de sebos e livrarias (quase todas as redes de livrarias argentinas têm filiais ali, registre-se) daquela avenida larga e extensa. Muitos mesmo, às vezes colados uns nos outros, e perdi as contas dos nomes e dos endereços. A gente, que ama 207


livros, fica doidinho, correndo deste para aquele comércio. Alguns são excelentes, tudo limpo e organizado; outros, bem longe disso. E olhem que gosto do cheiro (e do mofo, segundo minha mulher) dos livros. Mas não importa. Para quem busca por algo interessante e barato, o sebo bom é o sebo ruim. Comprei uma penca de livros. Muitos mesmo. Dentre eles, se não o melhor, pelo menos o mais divertido, foi um tal “El mundo de Borges”, que foi publicado, numa edição especial, dividida em fascículos, pelo diário argentino Âmbito Financeiro. E já xeretei esses fascículos – “Borges e a política”, “Borges e seus mestres”, “Borges e o romance policial”, “Borges e as viagens” e por aí vai – uma porrada de vezes. De toda sorte, o que mais comprei foram livros de filosofia, geral e até do direito, todos baratíssimos, sobre os quais, alguns deles, nunca tinha ouvido falar. Coisa de 10 ou 15 reais cada. Em ótimo estado, quase sempre. Por exemplo, num tal Edipo Libros (número 1686 da Corrientes), um dos maiores e melhores sebos que visitei ali, comprei, por apenas 150 pesos, o curioso “Los filósofos españoles de ayer y de hoy: épocas y autores” (Editorial Losada, 1966), de Alain Guy. Comprei até, mas não me lembro do nome daquele pequeno sebo, uma “Historia de la filosofía inglesa” (Editorial Losada, 1951), de W. R. Sorley, filosofia que, em razão dos 100 pesos gastos, vou ter de estudar em espanhol (aqui a minha mulher apenas riu. De mim? Será?). E foram tantos outros livros – todos excelentes e úteis, vou logo avisando, sem brincadeirinhas – que não ouso aqui sequer imaginar relacioná-los. O grande problema da minha aventura na Avenida Corrientes chegou no final. Caiu um dilúvio em Buenos Aires, que até impediu, naquele dia, a grande final da Libertadores da América entre River e Boca (quem gosta de futebol, deve estar lembrado). A Corrientes estava em obras e, de uma hora para a outra (pelo menos para mim, que estava concentrado pulando de sebo em sebo), virou uma lama só. Fui pego em cheio na hora de ir embora, com sacos de livros nas mãos, que protegi bravamente, em detrimento de mim mesmo e do casaco (não tão novo) que usava. Chamo isso de resiliência. Minha mulher, que presenciou parte do acontecido, chama de maluquice. Eu tenho sempre razão, acho. 208


Bom, voltei para Natal cheio de livros. Mais uma vez, foi bom e foi ruim. Coloquei-os (há quem diga que “rebolei-os” nas prateleiras e em cima do sofá) em um quarto/biblioteca que estou montando vizinho à nossa suíte de casal. Chamo-a de biblioteca colorida. Minha mulher deu para chamá-la de Avenida Corrientes. Ela está me irritando deveras. E eu tenho sempre razão. Acho.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 7 de abril de 2019.

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A cidade dos livros No ano de 2002, acho que era fins de março, passei uma temporada no Corpus Christi College, na Oxford University. Fui bolsista do British Council (bendito Conselho!), como representante brasileiro, para participar do curso “Tackling Corruption and Establishing Standards in Public Life”. Nesses dias, assistimos a muitas palestras do tipo: “Por que os sistemas produzem corrupção?”, “Por que o financiamento eleitoral é uma grande fonte de corrupção?” e “Como nós podemos expor a corrupção – ideias de um informante”. E participamos de vários outros seminários e de trabalhos em grupo. Já faz tanto tempo, agora me dou conta. Estou ficando (…) experiente. De toda sorte, como passei coisa de dois meses nessa temporada de estudos e pesquisas no Reino Unido – matriculei-me também numa escola de inglês em Oxford e ainda dei umas palestras como professor visitante na University of Northumbria at Newcastle (mas isso é outra história) –, tive tempo e oportunidade de viajar, nos finais de semana, pelo interior da Ilha Britânica. Uma das viagens mais interessantes que fiz, partindo de Oxford, de carro, dirigindo na mão inglesa (Deus nos protege!), foi até a cidadezinha de Hay-on-Wye, a “cidade dos livros” (“The Town of Books”, no idioma da Ilha), já no País de Gales. No caminho, recordo-me, passei uma tarde inteira na belíssima Stratford-upon-Avon, a cidade natal de Shakespeare (1564-1616). Mas isso, em se tratando da vida do autor do Hamlet, merece uma outra – e exclusiva – crônica. E pernoitei em Ross-on-Wye, uma pequena cidade mercado das “midlands” inglesas, postada em um penhasco sobre o tal rio Wye, que reivindica ter sido o berço, em meados do século 18, da indústria turística na Ilha Britânica. Não sei se é verdade. Mas topei com um “bed and breakfeast” bom e barato e ali pernoitei. Como eu gosto. Valeu a pena: Ross-on-Wye é também belíssima. Cheguei a Hay-on-Wye – a “cidade dos livros” – no dia seguin210


te. Ela é simplesmente minúscula. Coisa de menos de 2 mil habitantes permanentes. E sua relação com os livros retroage à década de 1960, quando uma livraria foi aberta ali por um tal Richard Booth (1938-), que, vivendo no Hay Castle, uma mansão construída no terreno do antigo castelo local, ainda hoje detém o título honorífico de “Rei da Hay Independente”. Portanto, para os padrões britânicos, essa relação da cidadezinha com os livros nem é tão antiga assim. Mas, como constava do meu já muito usado “Guia Visual Folha de São Paulo – Inglaterra Escócia e País de Gales” (PubliFolha, 1998), essa “belíssima cidade fronteiriça nas Black Mountains [precisamente nos limites do Brecon Beacons National Park] recebe amantes da literatura do mundo todo. Hay-on-Wye tem mais de 25 lojas de livros usados com milhões de títulos. No começo do verão, a cidade promove um festival de literatura de muito prestígio [o ‘Hay Festival of Literature and the Art’]”. É isso mesmo. De minha parte, adorei Hay-on-Wye. Pelo que me recordo, cheguei um pouquinho antes do tal “Hay Festival of Literature and the Art”, que, de fins de maio para o começo de junho, por dez dias, reúne, na minúscula cidade, coisa de 100 mil amantes de livros (e a cada ano, desde 1988, vem crescendo mais). A coisa já estava bem movimentada. Livros, livreiros e leitores por todo canto. Em prédios, casas, carros e na rua. Muito colorido e divertido. Tudo fervilhando. Mas limpo e organizado (na medida do possível, em se tratando de livros). Um mundo à parte. Quase um parque temático (de livros!). Lindo. E confirmei que Hay-on-Wye faz mesmo jus ao seu posto de mais famoso centro literário/livresco britânico, em virtude do seu festival e desses seus muitos (para lá de três dezenas, hoje, com certeza) comércios de livros, tanto novos como usados, alguns até, para os cultores da bibliofilia (o que não é bem o meu caso), raros e muito valiosos. Tempos depois, ao adquirir o meu precioso “The Oxford Guide to Literary Britain & Ireland” (Oxford University Press, 2008), descobri que não estou só nessa minha ótima impressão de Hay-on-Wye. Li nesse livrão – quase quatrocentas páginas, em formato grande, com muitos textos e fotos – que o ex-Presidente dos Estados Unidos da América, 211


Bill Clinton (1946-), considerou o “Hay Festival of Literature and the Art” como o “Woodstock da mente”. Dizem que ele entende dessas coisas. E me lembro, por fim, que essa minha visita a Hay-on-Wye foi, também, muito útil. Comprei ali o que, para mim, foi um achado: “Public Law and Public Administration” (F. E. Peacock Publishers, 2000), de Phillip J. Cooper. Um livro do qual, embora sobre direito público, retirei, reinterpretando-o, boa parte de um capítulo, versando sobre filosofia do direito, da minha dissertação de mestrado. Foi no dia 5 de maio de 2002. Ele custou 22.50 libras. E agora registro, com certeza, a data da minha visita a Hay-on-Wye, pois está anotado na folha de rosto do dito cujo. Bom, um dia eu ainda volto lá (morar já seria demais). À cidade dos livros.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 14 de abril de 2019.


A noite dos museus Em 2007, quando passei uma temporada de estudos na Espanha (Madrid e Barcelona, sobretudo), como bolsista do programa “Aula Iberoamericana del Consejo General del Poder Judicial Español”, tive a oportunidade de curtir, na capital do país, uma “Noche em Blanco”. Esclareço logo: é um evento cultural que ocorre anualmente em cidades da Europa (primeiramente em Paris, desde 2002) em que museus, casas de cultura e outras instituições locais importantes, espaços públicos ou privados, abrem suas portas, gratuitamente, durante toda a noite, para o público em geral. Paralelamente, outras atividades culturais e artísticas – shows, concertos, essas coisas – são realizadas dentro e ao derredor dos prédios mui iluminados. E você sai a pé, pulando de local em local, de show em show, mui amimadamente. Se não me engano, aquele ano, 2007, era o primeiro ou o segundo em Madrid. E foi tudo excelente. Passados tantos anos, tive a oportunidade de repetir a experiência, agora em Buenos Aires, no que eles chamam, os portenhos, de “La Noche de los Museos”. Foi no dia 10 de novembro de 2018. Nesse dia, a partir das 20 horas, segundo informava o próprio Chefe de Governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires, 280 espaços culturais abririam “suas portas à noite e gratuitamente para que os moradores [e os turistas, como era o meu caso] desfrutassem da arte que se respira em cada bairro da Cidade”. Haveria “atividades e exposições para todas as idades e gostos”. E, nessa edição, “as obras falariam do futuro, incorporando as novas tecnologias e abordando debates centrais para os anos vindouros, como o papel da mulher, o cuidado com o meio ambiente e a integração entre os povos”. E já tem quinze anos que esse tipo de evento é realizado na capital argentina, segundo registra a brochura que guardei comigo (cronista precavido é assim!). Eu não sabia. Foi bom (muito) e foi ruim (um pouquinho). E, quem leu a minha crônica da semana retrasada, já deve intuir o porquê. Nesse fatídico 10 de novembro, choveu aos cântaros em Buenos Aires. Não tanto à noite 213


como choveu de dia, é verdade. Mas chuva é chuva. De toda sorte, aproveitamos bastante. Começamos nossa perambulação coisa de 21 horas. Concentramos a aventura numa tal Área 1 (a cidade estava dividida em cinco regiões), em torno dos bairros de Monserrat, de San Telmo e do Microcentro, tudo muito perto do pequenino Two Hotel Buenos Aires (Calle Moreno, 785), onde estávamos hospedados. Fizemos tudo a pé. Mui animadamente, quase sempre. Voltamos pela enésima vez ao interessantíssimo “Museo Histórico Nacional del Cabido de Buenos Aires e de la Revolución de Mayo” (Boliviar, 65). Minha mulher já não aguenta mais. Visitamos a gigantesca sede do “Banco de la Nación Argentina”, onde funciona um museu histórico e numismático. Belíssima. E uma apresentação de coral de música sacra me encantou deveras. Fomos a um tal “Museo de Minerales” (Julio A. Roca, 651). O show de rock na porta, regado a uma cervejinha, nos interessou mais do que o acervo. Fomos ao prédio da “Legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires” (Julio A. Roca, 575). Também belíssimo. Talvez mais do que isso. E visitamos a sede e a editora do “Consejo de la Magistratura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires”. Ganhei um bocado de livros. Gostei mais do que muito. E esses são apenas alguns dos prédios públicos dos quais lembro termos visitado. Tivemos algumas frustrações, claro. A “Casa Rosada” (Calle Balcarce 50, dominando a Plaza de Mayo) foi uma delas. Não me lembro de já haver visitado o badalado palácio presidencial. Era uma ótima oportunidade. Entramos na fila, ainda pequena. Mas choveu. Minha mulher desistiu. Falou algo do cabelo, acho. Mais uma vez ela não acompanhou o que eu chamo de minha resiliência (na ocasião, ela chamou de outra coisa, iradamente). Teremos outra oportunidade, seguramente. Mas a maior das decepções foi nos ter sido vedado o acesso a certas áreas de uma tal “Manzana de las Luces” (Calle Perú, 272), ao belo claustro jesuítico e aos famosos túneis, em especial. Segundo retrata o meu “Guia Visual Folha de São Paulo – Top 10 – Buenos Aires” (PubliFolha, 2010), no “coração histórico da cidade, a Manzana de las Luces é um complexo de edifícios governamentais e jesuíticos que datam de meados do século 17. Entre eles, está a Igreja de San Ignacio, a mais 214


antiga da cidade, construída em 1668, o claustro do antigo Colégio dos Jesuítas, a Sala de Representantes e o Colégio de Buenos Aires. Sob os prédios correm os túneis construídos na década de 1690 para ligar o local à Plaza de Mayo”. Já é bem a terceira vez que vamos a Buenos Aires, e eu me programo, tento, mas não consigo conhecer certas partes da velha “manzana”. Simplesmente, virou uma questão de honra. Tomamos mais chuva. E nada. Fomos barrados a certa altura. Não sei se foi o cabelo ou se não gostaram do meu – digamos, impuro – castelhano de Salamanca. Por sorte, terminamos a noite, já entrando pela madrugada, ali pertinho, na “Librería de Ávila” (Calle Adolfo Alsina, 500), sobre a qual eu já escrevi nas crônicas “Minhas livrarias em Buenos Aires (I) e (II)”. Um comércio de livros cheio de história, que ocupa o local onde outrora funcionou a famosa “Librería del Colegio”, oficialmente aberta em 1830 e tida como a primeira livraria da cidade. Com a sua atmosfera propositadamente decadente, declarada “Lugar Histórico Nacional”, a “Librería del Colegio/de Ávila” é realmente imperdível. E ali enfrentei, com a minha velha resiliência, uma certa frustração, a chuva e, sobretudo, o cabelo e a ira da minha mulher.

Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 21 de abril de 2019.

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A cidade de Shakespeare Há teses – algumas verdadeiras “teorias da conspiração”, posso até dizer – sobre quem teria sido William Shakespeare (1564-1616). Ou melhor, sobre quem teria sido o verdadeiro autor das maravilhosas obras que atribuímos a um tal Shakespeare. Como já disse certa vez aqui (vide a crônica “Shakespeare anônimo”), antes de mais nada, algumas pessoas simplesmente não conseguem acreditar que um filho de artesão, comerciante de luvas, pudesse ter o conhecimento – do mundo clássico, da filosofia e do direito, apenas para ficar em algumas temáticas principais – que, naquelas obras, é transformado no mais puro ouro literário. Como teria um homem de origem simples adquirido todo esse conhecimento? Outras circunstâncias, como os chamados “lost years” (para os quais não se tem registro do paradeiro de Shakespeare) e a ausência de manuscritos autênticos, têm contribuído para a famosa controvérsia autoral. E, como alternativa, outros nomes têm sido apontados como o verdadeiro autor de “Othello” e de “Macbeth”. O grande filósofo e homem público Francis Bacon (1561-1626) é um dos mais fortes candidatos. Bagagem, a este, não faltava. Outro candidato badalado é William Stanley (1561-1642), o 6º Earl de Derby. E até mesmo o escritor Christopher Marlowe (1564-1593), contemporâneo de Shakespeare, é sugerido ao posto. Talento, não resta dúvida, ele tinha. E por aí vai. De minha parte, seguidor da “Navalha” de Guilherme de Ockham (1285-1347), fico com a explicação mais simples. A oficial. Shakespeare foi William Shakespeare mesmo. Aquele cidadão nascido sob o reinado de Elizabeth I (que foi de 1558 a 1603) na aprazível Stratford -upon-Avon. Por isso, todas as vezes que pude, fui visitar essa comuna das “Midlands”, do coração da Inglaterra, distante cerca de 170 km (de automóvel) de Londres, que, já no tempo de Shakespeare, como registra “The Altlas of Literature” (editor geral Malcolm Bradbury, Greenwich Editions, 2001), era uma “market town” bem estabelecida e próspera. Hoje, para vocês terem uma ideia, Stratford-upon-Avon tem em torno de 30 mil habitantes. Mas recebe coisa de quase 3 milhões de turistas 216


ao ano (bendito turismo!). Shakespeare nasceu ali, afirmo, em 1564, na famosa casa da Henley Street. Foi depois trabalhar em Londres. Foi ator. Foi poeta e dramaturgo. Foi produtor e empresário. Gozou seu auge, por assim dizer, na grande capital do Reino. Mas Shakespeare voltou à sua terra natal. Em 1611, segundo se registra, já rico e famoso e com o seu brasão de armas. E foi viver em “New Place” até a sua morte. Atualmente, a cidade Stratford-upon-Avon, claro, gira em torno da vida do grande poeta e dramaturgo que escreveu como nenhum outro – sobre amor e sexo, farsa e violência, direito e filosofia – na língua que costumamos chamar de sua, a inglesa. A única e honrosa exceção talvez seja a “Harvard House”, que foi o lar de uma tal Katherine Rogers, mãe de John Harvard (1607-1638), o instituidor da Harvard University, que, por razões plausíveis, é hoje a proprietária da casa. O ponto mais alto de qualquer visita a Stratford-upon-Avon é, seguramente, o local de nascimento de Shakespeare (“Shakespeare’s Birthplace”), na Henley Street. A casa de Shakespeare foi adquirida pelo poder público em 1847 e devidamente reformada para retornar ao estilo elisabetano original. Deu muito certo. E, como bem descreve o meu “The GreenGuide – Great Britain” (da famosa Michelin, 2014), hoje ela é “em parte museu (incluindo a exibição dos objetos mais valiosos da família do dramaturgo e uma edição do Primeiro Fólio de suas peças) e em parte santuário, outrora visitado por [gente como] Dickens, Keats, Scott e Hardy. As peças do poeta são encenadas pela própria trupe de atores profissionais da casa, com performances ao vivo todos os dias”. Mas a romaria por Shakespeare não para por aí. Lembro-me muito bem da “Mary Arden’s Farm”, a casa da mãe de Shakespeare, da “Anne Hathaway’s Cottage”, a casa da família da mulher de Shakespeare, onde este, jovem, cortejou a amada e de “New Place & Nash’s House”, conjunto formado pela casa onde o poeta gozou seus anos de aposentadoria e pela casa de uma neta sua, hoje belamente restaurada. De Stratford, recordo-me, também, com saudades, do passeio às margens do Avon, que empresta seu nome à cidade. Da travessia do rio através da bela e antiga “Clopton Bridge” (de 1497), o que, imagino, 217


também deve ter sido feito pelo Bardo, muitas vezes, naquele seu tempo. Do moderno “Royal Shakespeare Theatre”, também às margens do rio. Da visita à “Holy Trinity Church”, ali pertinho, onde foi batizado e está enterrado o próprio William Shakespeare (muito embora essa bela Igreja mereça uma visita por si só). Da caminhada pela Henley Street, com suas muitas lojinhas de souvenires, indo e voltando da Brigde Street. Finalmente, não sei o porquê, toda vez que penso em Stratford-upon-Avon, lembro-me insistentemente de dois estacionamentos (de carros) da cidade. Um fica (ficava, pelo menos, quando da minha última visita) perto de um cinema; o outro, da estação de trens. Eles não têm nada de especial. Mas são recorrentes, num tipo de associação qualquer, na minha lembrança da cidade de Shakespeare. E o que isso quer dizer? Algum mistério entre o céu e a terra com que devo gastar a minha vã filosofia? Teria ele, Shakespeare, estado ali no passado? Deles – falo dos tais estacionamentos – emana alguma intuição sobre a verdadeira identidade do autor do “Hamlet” e do “King Lear”? Alguma outra teoria conspiratória qualquer? Não. Nada disso. Talvez tenha sido apenas o esforço feito para guardar o local onde havia estacionado o carro recém-alugado. Talvez seja, inconscientemente, a lembrança da bela moça que estacionou ao meu lado, seguramente nem megera nem domada. Sei lá. Simplesmente a memória nos prega muitas peças. E, portanto, não façamos “muito barulho por nada”, como diria aquele que foi o maior conhecedor da alma humana.

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Tribuna do Norte (Natal/RN) – em 28 de abril de 2019.



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Fichca Técnica



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