Arquitetura-urbana: Vivência na cidade como experiência de aprendizado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CAMPUS DE LARANJEIRAS

ARQUITETURA-URBANA

VIVÊNCIA NA CIDADE COMO EXPERIÊNCIA DE APRENDIZADO

HEITOR GABRIEL DE MORAIS SANTOS

2017



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ARQUITETURA URBANA

Vivência na Cidade como Experiência de Aprendizado

Trabalho de pesquisa apresentado ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Sergipe para obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo

Orientador: Prof. Dr. Fernando Antônio Santos de Souza

Laranjeiras, 2017.


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AGRADECIMENTOS

À Renato Rodriguez, professor de estética e de história da arquitetura contemporânea, pelo contato mais próximo com temas da arte; À Fernando Antônio pelas conversas instigantes, por compartilhar conhecimentos, e pela liberdade, confiança e colaboração dada à produção do trabalho; E, em especial, aos amigos e colegas errantes Pedro Queiroz, Gabriela Santana, Kaique Luan Varjão, Mariane Cardoso, Thyago Bonfim e Rafael Amorim pelos depoimentos concedidos, representando todos aqueles dispostos a caminhar e observar a cidade sob outras perspectivas.

À todos, o meu muito obrigado.


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RESUMO O arquiteto e urbanista, responsável pela facilitação da interação do ser com o espaço-tempo, é um profissional essencial para o desenvolvimento harmônico da sociedade. Porém, nota-se uma possível insuficiência na abordagem de sua formação, para que seja capacitado a lidar com temas contemporâneos e as realidades coexistentes da sociedade. Sob essa perspectiva, busca-se neste trabalho a realização de experiências urbanas errantes, como forma de experimentação de possibilidades de atingir reflexões críticas para uma prática arquitetônica e urbanística mais humana a partir do choque de alteridade proporcionado pela vivência na cidade, e do encontro com o Outro. O trabalho se desenvolve em três pistas principais: entender o fenômeno de expropriação da experiência nas escolas de arquitetura e urbanismo a partir da evolução do pensamento filosófico; buscar referências nas práticas artísticas caminhantes, a exemplo da deriva situacionista, assim como no cenário artístico brasileiro da década de 1960, a partir de manifestações como o neoconcretismo e o tropicalismo, as quais Hélio Oiticica fez parte; finalizando com a análise e cartografia das narrativas geradas a partir das práticas errantes realizadas no Centro de Aracaju com a participação de estudantes da Universidade Federal de Sergipe (UFS) de áreas diversas: Deriva Urbana e Estética da Embriaguez. A pesquisa não propõe uma conclusão por incorporar a experiência e a subjetividade como objeto da arquitetura e do urbanismo, trazendo então questionamentos reflexivos sobre o ensino da arquitetura e urbanismo.

Palavras-chave: Educação, Arte Contemporânea, Errância Urbana, Arquitetura e Urbanismo.


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LISTA DE FIGURAS 25 29 32 33

FIGURA 01: MEMBROS FUNDADORES DA INTERNACIONAL SITUACIONISTA. FIGURA 02: GUIA PSICOGEOGRÁFICO DE PARIS DE GUY DEBORD. FIGURA 03: A LINE MADE BY WALKING, DE RICHARD LONG. INGLATERRA, 1967. FIGURA 04: SOMETIMES MAKING SOMETHING LEADS TO NOTHING, DE FRANCIS ALYS. CIDADE DO MÉXICO, 1997.

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FIGURA 05: WHEN FAITH MOVES MOUNTAINS, DE FRANCIS ALYS. PERU, 2002. FIGURA 06: THE STORE FRONT FOR ART & ARCHITECTURE DE VITO ACCONCI EM NOVA YORK.

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FIGURA 07: BICHO “PANCUBISMO” DE LYGIA CLARK, 1960. FIGURA 08: PARANGOLÉ DE HÉLIO OITICICA, 1964. FIGURA 09: TROPICÁLIA DE HÉLIO OITICICA NO MAM-RIO, 1967. FIGURA 10: SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI DE HÉLIO OITICICA. FIGURA 11: CENTRO DE ARACAJU AO FIM DO HORÁRIO COMERCIAL. FIGURA 12: CALÇADÃO DO CENTRO DE ARACAJU À NOITE. FIGURA 13: BAR DO BECO DOS SALÕES NO CALÇADÃO DO CENTRO. FIGURA 14: PARTICIPANTES DA “ESTÉTICA DA EMBRIAGUEZ” NO CALÇADÃO DO CENTRO DE ARACAJU À NOITE.


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CONTEÚDO

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Introdução

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PISTA I. Expropriação da Experiência _relances contemporâneos

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PISTA II. Errâncias Urbanas _artistas caminhantes _pedra no caminho brasileiro

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PISTA III. Ensaios Errantes _deriva urbana _estética da embriaguez _cartografia da memória

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Percurso Contingente

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Referências


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INTRODUÇÃO

A educação em arquitetura e urbanismo é um conhecimento fundamental para o desenvolvimento das cidades e para harmonização da vida em sociedade, porém, tem sido notado um possível descompasso entre a abordagem da graduação nas universidades brasileiras com a realidade e as necessidades atuais. Vivenciamos um mundo em constante transformação, no qual as crenças, tradições e imposições sociais históricas vêm sendo desmistificadas de maneira gradativa, mas ainda presencia-se um atraso e resistência no ambiente educacional para lidar com essa evolução. Durante o curso, os estudantes geralmente são inseridos em um universo que os levam ao senso comum de pensar e produzir, estando quase sempre dentro do ambiente repetitivo da sala de aula. Dessa forma, são ensinadas estratégias pré-concebidas, fazendo com que os alunos sigam, na maioria das vezes, os mesmos caminhos, através de disciplinas com uma hierarquia marcada entre o professor e o aluno, e com uma crença da existência de verdades e de um conhecimento ideal que deve ser alcançado. Paola Berenstein Jacques, professora do programa de pós-graduação da UFBA, uma das autoras de maior referência para a construção deste trabalho, fala sobre a discrepância entre o que se via no caminho à faculdade, e o que lá era ensinado: A favela, ao lado, era exatamente o contrário de tudo o que aprendíamos na Escola, e o simples fato de passar por ela constituía um confronto cotidiano entre a racionalidade rígida da arquitetura erudita aprendida na Faculdade, e a espontaneidade original da autoconstrução popular. (JACQUES, 2013, p. 9)

As consequências desse modelo de educação nas escolas de arquitetura e urbanismo, oriundo de um pensamento racionalista que se desenvolveu desde a filosofia clássica do mundo ideal de Platão, que parecem se isolar em sua zona de conforto do conhecimento, estão na perda de autonomia dos alunos, afastando o corpo discente de uma reflexão crítica própria sobre os problemas sociais, a vida em sociedade e o cotidiano das cidades, através da falta de abertura para experiências flexíveis com os objetos de estudo.


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Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é algo que ainda nos seja dado fazer. Pois, assim como foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo. (AGAMBEN in JACQUES, 2012, p. 12)

Giorgio Agamben (1978), autor do texto “Ensaio sobre a destruição da experiência”, faz uma reflexão sobre a falta de experiências do homem contemporâneo, ou melhor, a expropriação desta no seu cotidiano, que passou a ser sistematizado a partir do ideal progressista do pensamento moderno, no qual os cidadãos devem ser sempre produtivos e ágeis dentro de uma rotina eficiente e otimizada. Assim, a educação passou a se desenvolver baseada na formação desse ser produtivoeficiente através de disciplinas objetivas, das fórmulas prontas, se distanciando das experimentações. Em contrapartida, a sociedade veio evoluindo de maneira exponencial trazendo inúmeros novos desafios. A ideia de verdade universal veio se moldando à noção da pluralidade dos conceitos, ou até mesmo, a uma não-conceituação das coisas em prol da diversidade. O pluralismo social, seja no âmbito cultural, ideológico, religioso, étnico, sexual-afetivo, etc, acaba revelando um mundo com realidades independentes e inter-relacionadas que devem ser respeitadas e consideradas, mas que têm passado despercebidas na atual configuração pedagógica das escolas de arquitetura e urbanismo do Brasil. Essa visibilidade crescente de contextos de coexistências diversas gera um impacto significativo no entendimento da dinâmica do curso de Arquitetura e Urbanismo, que deve estar condizente tanto com a pluralidade cada vez mais notória tanto no perfil do corpo discente, quanto com as necessidades dos cidadãos em geral, aceitando o conhecimento como uma construção contínua a partir da colaboração de repertórios distintos. Acredita-se que a base de algum desses problemas na formação do arquiteto-urbanista esteja ligada à limitação do estudante ao ambiente metódico da sala de aula, onde este, durante sua vida acadêmica, passa por poucas experiências práticas e de vivências no cotidiano. Em suas viagens à América do Sul, Francesco Careri, outro grande nome referência deste trabalho, fundador do grupo caminhante Stalker de Roma, acaba notando esse distanciamento dos alunos com as experiências diretas na cidade e uma falta de vivências essenciais para própria formação como cidadãos críticos: Percebi que, nas faculdades de arquitetura, os estudantes - ou seja, a futura classe dirigente - sabem tudo de teoria urbana e de filósofos franceses, acham-se especialistas em cidade e em espaço público, mas, na verdade, nunca tiveram a experiência de jogar bola na rua, de encontrar-se com os amigos na praça, de fazer amor em um parque, de entrar ilegalmente numa ruína industrial, de atravessar uma favela, de parar para pedir uma informação a um transeunte. Que tipo de cidade poderão produzir essas pessoas que têm medo de caminhar? (CARERI, 2013, p. 170)


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Percebe-se, então, que os estudantes sul-americanos são expostos a um método de educação racional com princípios ultrapassados e um caráter ponderador que limitam constantemente o seu aprendizado e o desenvolvimento pessoal, ignorando a particularidade criativa e cognitiva do ser humano, e o contexto social com o qual irão lidar posterior à graduação, criando uma barreira que se contrapõe ao desenvolvimento ativo do conhecimento. Inevitavelmente, levanta-se o questionamento se o modelo educacional vigente nos cursos de arquitetura e urbanismo seria a melhor maneira de ensinar, aprender e fazer arquitetura. Atenderia este modelo à inquietação para explorar novas possibilidades? No mundo da arte, práticas urbanas consideradas errantes surgiram como uma tentativa de ruptura com esse sistema que buscava a universalização das coisas, realizadas pelos dadaístas, surrealistas, e posteriormente, pelos situacionistas, cada um à sua maneira. O vocábulo “errante”, etimologicamente, significa ser ou agir de forma livre, um andar sem destino, viver vagueando, desviar do caminho da sensatez, ir em direção contrária ao sistema, ou melhor, sem rumo, ao acaso, abrindo-se à experiência da alteridade urbana e de viver a cidade sem regras ou padrões. Com isso, essas práticas artísticas surgem como uma possibilidade a serem analisadas para se pensar em um modo contemporâneo capaz de lidar com a educação em arquitetura e urbanismo, aproximando o cotidiano dos estudantes com ambiente urbano e diversificado. Entende-se que seja pertinente reavaliar o pensamento dicotômico presente atualmente na academia, desmistificar o certo e o errado, e esquivar-se do conforto da sala de aula, buscando respostas e questionamentos no dia-a-dia, na vivência sócio-urbana. Assim, este trabalho é uma investigação sobre a influência e importância das experiências urbanas para a formação pessoal, autônoma e crítica dos estudantes de arquitetura e urbanismo através da análise das práticas de artistas caminhantes, estudando obras e autores que se correlacionam com essa vertente que tende a des-sistematizar o tempo e o espaço, e a maneira de viver em sociedade. Foram realizados ensaios errantes com estudantes da Universidade Federal de Sergipe, cartografando sua possível contribuição para o entendimento de temas relacionados à atuação contemporânea de Arquitetos-Urbanistas, dando valor às experiências pessoais junto ao presente e aos elementos complexos que compõem a vida na cidade, ou mesmo, o próprio viver. A pesquisa foi sintetizada em três capítulos, considerados como uma organização de pistas que colaboram com a construção do debate proposto: inicia-se com reflexões acerca dos dilemas atuais do curso de arquitetura e urbanismo, relacionando as suas origens no pensamento filosófico racional e buscando encaminhamentos no pós-moderno; continua-se através da análise das possíveis colaborações de experiências urbanas errantes para uma arquitetura e urbanismo condizente com a contemporaneidade; e, enfim, compila-se o debate anterior com a descrição dos ensaios errantes realizados no Centro de Aracaju, acompanhada das narrativas desenvolvidas pelos participantes.


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PISTA I

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EXPROPRIAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NAS ESCOLAS DE ARQUITETURA E URBANISMO

Com a virada do século, as transformações na formação em arquitetura e urbanismo foram ficando cada vez mais evidentes e necessárias. A revolução digital, que inseriu novos meios de concepção e representação, e a urbanização global, são apenas alguns dos fatores para estas mudanças significativas. Para Châtelet (1994), se tratando da sociedade em geral, “não é só a tecnologia, é também a transformação dos costumes, as relações humanas, que subterraneamente, a cada geração, evoluem e acabam provocando modificações”. O autor considera que as estruturas institucionais da sociedade se tornaram arcaicas em relação à prática dos indivíduos, sendo esta uma causa de revolução das mais importantes. Salvatori (2015), em seu texto sobre o ensino de arquitetura, diz ainda que “a profissão do arquiteto está em crise, não porque a conjuntura econômica atual lhe seja desfavorável e, sim, porque o ensino não absorveu as grandes mudanças que vem ocorrendo há cinquenta anos em todos os setores, tecnológicos, econômicos, sociais”. O curso de arquitetura e urbanismo é regido atualmente, em geral, pelo pensamento racional, o qual vem ditando desde muito tempo o nosso modo de viver em sociedade. De acordo com Panet (2015), a postura docente dentro das universidades é de valorizar os ideais funcionalistas e racionalistas da arquitetura, com isso, “adotam caminhos deterministas, posturas prescritivas ou intuitivas na concepção e no ensino de projeto de arquitetura; utilizam sistemas de concepção formal baseados em princípios estéticos canônicos e universais”, que, segundo Sarfatti-Larson (2015), é uma adaptação de um modelo de aprendizagem antiquado herdado no século XIX, da École des Beaux-Arts, na França. Este método, como explica Elena Salvatori (2015), “trata-se de modelar comportamentos, inculcar valores, estratégias de projeto e esquemas mentais”, estabelecendo uma interação do tipo mestre-aprendiz, onde o professor é tido como dominador do conhecimento (SALVATORI in


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LARA & MARQUES, 2015, p. 118). Esse panorama atual pode ser entendido, a primórdio, como resultado das ideias da filosofia clássica de Platão, que vem trazer os conceitos da razão para a Grécia do século V a.C., e assim, para os dias de hoje através de sucessivas reinterpretações. O pensamento platônico é marcado pelo dualismo de mundos distintos: o das aparências e o das ideias. No mundo das aparências, as coisas “não cessam de mudar, à mercê do devir (do fluxo da temporalidade)”, tudo está sujeito a transformações, ao passo em que o mundo das ideias, permanentemente imutável, é representado pela “realidade essencial”, onde a estabilidade domina (CHÂTELET, 1994, p. 38). Guilherme Cardozo (2014), em seu texto sobre as influências do pós-estruturalismo nas práticas educacionais, traz as consequências das teorias de Platão, que segundo ele: (...) legitimaram o conhecimento humano como uma imitação imperfeita de algum conhecimento essencial, superior e perfeito, o qual se configuraria como “o conhecimento”, possuidor de uma verdade ontológica e epistemológica. (...) As teorias do currículo, não diferentemente, obedeciam a essa tradição metafísica, pois supunham a existência de uma coisa transcendental chamada “currículo”, existindo fora do sujeito e esperando para ser descoberta. (p. 121)

A noção de que “O mundo das aparências é confuso, o mundo das ideias é transparente”, acaba levando a uma rejeição desse mundo sensível, das incertezas e do acaso do cotidiano, no qual as indagações são pertinentes, prevalecendo então, a busca pelo mundo inteligível, da verdade absoluta, sem espaço para os questionamentos, no qual a razão impera. A filosofia platônica sobrevive e influencia cada novo século seguinte, até retornar com toda força na época chamada de Renascimento, quando se faz um retorno à antiguidade na busca por respostas. Mas é posteriormente, no Iluminismo, que a razão domina e cria as bases do mundo ocidental que conhecemos hoje, em nome de um positivismo que se desvencilha de fundamentos religiosos, através da demonstração racional, formalizando conceitos políticos, sociais e econômicos, que antes estavam sob o domínio da igreja. Assim, num processo que durou alguns séculos, temos a ascensão do que chamados de Modernidade, sendo René Descartes considerado o primeiro filósofo moderno, criador da máxima “Penso, logo sou” que era a base do que ficou conhecido como a ciência racional, onde acreditava-se que através da razão pura pudesse ser alcançado um cientificismo objetivo. A ideia de progresso e a busca pelo desenvolvimento das forças produtivas passou a influenciar todas as esferas da sociedade, que para Rouanet (1982), autor do livro “As Razões do Iluminismo”, significou um grande atraso para a humanidade, estimulando o individualismo e um estilo de vida baseado na acumulação, regrada por valores e normas (MATOS, 1992, p. 15). Em relação à influência desse paradigma racionalista da época, CARDOZO (2014, p. 122) vai colocar que: Esse modelo cartesiano também envolveu a prática educacional, onde se convencionava uma ontologia “real” – como o mundo real de Platão – porém inteligível; uma epistemologia dualista/objetivista, em busca das descobertas verdadeiras; uma metodologia experimental/manipuladora, onde vigora a


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verificação de hipóteses, por métodos, sobretudo, quantitativos, cujo objetivo investigativo seria a explicação por predição e controle; supõe-se a natureza do conhecimento como mera verificação de hipóteses estabelecidas como fatos ou leis, e seu acúmulo se dá por acréscimo, como “blocos de construção” que se somam ao “edifício do conhecimento”.

O mundo das ideias de Platão e o pensamento racional progressista são, evidentemente, os princípios adotados para construção dos métodos tradicionais de educação, que depois de um logo processo de adaptações, duram até hoje e dominam o ambiente acadêmico. Salvatori (2015) alerta que uma abordagem controladora dentro do curso de arquitetura e urbanismo acaba mantendo os estudantes numa espécie de status quo, limitados à uma educação formal, afastados do mundo real, e consequentemente, acabam mantendo as coisas sempre do jeito como estão. Assim, as bases das metodologias tradicionais acabam criando um impasse no desenvolvimento do conhecimento, e na conexão do aprendizado com o mundo rapidamente mutável em que vivemos. Panet (2015) afirma que essa “postura conservadora valoriza em demasia a solução projetual”, assim como os resultados objetivos e as avaliações, “em detrimento do processo de concepção e da ideia”, ou seja, do processo de aprendizado fluido, ativo, e contínuo como instrumento pedagógico. Esse processo de transmissão unilateral das informações (professor-aluno), guiado por uma concepção prévia da verdade, acaba formando alunos para atuarem num contexto homogêneo, à serviço do mercado, submissos dos poderes capitais, trabalhando e produzindo da mesma forma, persistindo “o ideal moderno progressista do profissional liberal” e a busca ilusória pela “realização da ‘verdadeira arquitetura’” (SALVATORI in LARA & MARQUES, 2015, p. 116). Paola Berenstein Jacques (2012), grande pesquisadora brasileira sobre as errâncias, afirma que: Com dicotomias pré-fabricadas, o lugar, o corpo, a ação e o movimento dos muitos outros são reconhecidos somente como alvos de políticas públicas ou como formas que contrariam diretrizes do urbanismo e da arquitetura. Nada têm a ensinar, já que a intenção é a de apenas controlar, disciplinar ou, pior, destruir o jogo jogado. (JACQUES, 2012, p. 3)

Nota-se que o modelo atual de educação não tem dado o suporte suficiente para preparar o aluno a entender e agir num contexto plural e metamórfico, como a Academia Brasileira de Ciências demonstra em seu documento “Subsídios para Reforma da Educação Superior” (2014) ao reivindicar uma revisão profunda nas metodologias tradicionais, cujo foco maior é a formação pessoal nas universidades. De acordo com o documento, o desenvolvimento da autonomia do aluno, do “aprender a aprender”, se mostra como um viés para a renovação constante do conhecimento e para o desenvolvimento do pensamento crítico. O esquema atual é falho na problematização de questões urgentes e pragmáticas da atuação do arquiteto-urbanista nas mais diversas situações que a sociedade contemporânea demanda, perpetuando a decadência de seus resultados para com as pessoas.


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Não é possível fazer uma reflexão sobre o que é a educação sem refletir sobre o próprio homem. O homem deve ser o sujeito de sua própria educação. Não pode ser o objeto dela. Sem dúvida, ninguém pode buscar na exclusividade, individualmente. Esta busca solitária poderia traduzir-se em um ter mais, que é uma forma de ser menos. Esta busca deve ser feita com outros seres que também procuram ser mais e em comunhão com outras consciências. (FREIRE, 1979, p. 27).

Neste trecho de Paulo Freire (1979), grande nome brasileiro nos estudos sobre a educação, fica evidente que para compreender as questões do ensino-aprendizagem, antes de mais nada, deve-se entender o próprio homem. Freire também evoca questões como a autonomia do ser humano sobre o seu processo particular de adquirir conhecimento, que deve ser dado de forma coletiva, através do contato e troca com outras mentes, e não de maneira exclusiva, individual. Magali Sarfatti-Larson (2015) completa que: (...) a arquitetura não pode ser inteiramente reduzida a um conhecimento codificado, porque, como em outras profissões práticas, ‘saber arquitetura’ depende não apenas da aquisição de habilidades formais e complexas mas, também, da experiência e da cultura da prática, as quais, ambas, transmitem conhecimento tácito, através de interações pessoais e desempenhos, em contextos particulares e redes sociais. (SARFATTI-LARSON in LARA & MARQUES, 2015, p. 54)

O conhecimento das áreas correlacionadas à arquitetura e ao urbanismo não possuem mais espaço para um pensamento estritamente racional cartesiano. As necessidades do mundo atual vão muito além das concepções que foram criadas ao longo dos séculos passados e mantidas como ideais. Afinal, diante de um contexto inconstante, como uma ideia pode representar um consenso universal? Assim, o próximo tópico, considerado como um compilado de pistas para construir este trabalho, trará uma reflexão nas ideias que tentaram abraçar o pensamento multicultural, com o objetivo de vislumbrar possibilidades coerentes com a contemporaneidade para o ensinoaprendizagem de Arquitetura e Urbanismo.


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RELANCES CONTEMPORÂNEOS O campo de atuação do arquiteto e do urbanista está diretamente ligado ao cotidiano da vida das pessoas, às problemáticas do espaço, e do mundo enquanto sociedade. O seu ofício é extremamente multidisciplinar, e assim devem ser as bases do entendimento de sua formação. Châtelet (1994) argumenta que “é preciso admitir a história contingente, lugar, talvez, das vontades humanas e, mais profundamente, dos desejos humanos”, resgatando a concepção clássica de não haver necessidade de se pensar num começo ou num fim, mas sim, no presente: no momento. E se, ao invés de dividir os mundos, adotando um “inteligível” a ser buscado, fossem aceitas as relações caóticas do mundo sensível, seguindo o fluxo dos acontecimentos constantes do mundo real em que se vive? O dualismo de Platão, apresentado no tópico anterior, começa a ser questionado desde a sua época por um antigo aprendiz de sua escola: Aristóteles, que irá propor que todos desenvolvam o conhecimento, a partir da construção de um discurso que “restaure ou expresse as articulações do próprio ser”, fazendo oposição à noção de um mundo inteligível das ideias. Châtelet (1994) diz que “enquanto Platão propõe uma espécie de revolução reacionária, uma volta às origens, Aristóteles quer salvar a cidade tal como ela é”, e explica mais claramente esse empirismo aristotélico no seguinte trecho (CHÂTELET, 1994, p. 47 e 49): O filósofo aristotélico parte da ideia de que se deve tomar o aprendiz de filósofo como ele é, no mundo sensível no qual ele crê, que desenvolve, a respeito desse mundo, suas opiniões e constrói suas certezas a partir de suas experiências. (...) O empirismo é a doutrina segundo a qual o conhecimento começa obrigatoriamente pela experiência. Nesse ponto, Aristóteles está de acordo com o pensamento popular: para aprender, é preciso fazer. (CHÂTELET, 1925, p. 43)

A importância da experiência relacionada ao conhecimento começa a ser introduzida no pensamento filosófico, que vai se fazer presente também na abordagem de outros filósofos, séculos mais tarde, a exemplo de Hume e Kant, que desencadearam uma crítica profunda à racionalidade clássica. De acordo com Châtelet (1925), Hume vai romper completamente com o problema cartesiano vigente do século XVIII, com a ideia de que “o mundo é como é, e devemos torna-lo inteligível com os meios de que dispomos, isto é, com a experiência”, ou seja, “não há uma ordem do mundo que corresponda a uma razão superior homogênea unificada”, mas sim, “há ordens do mundo que devemos tentar perceber, compreender”. A respeito de Kant, Châtelet (1925) diz que o que ainda é vivo dos seus pensamentos nos dias de hoje é a noção de que “só é conhecimento verdadeiro o conhecimento que podemos verificar. (...) só se pode verificar o que é dado na experiência criticada e controlada, isto é, na experimentação”. É no final do século XIX que a razão positivista entra em sua crise máxima, através dos pensamentos do filólogo alemão Friedrich Nietzsche, o homem que se auto proclamou como o


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primeiro imoralista. Em “Ecce Homo”, Nietzsche vai dizer que sua fórmula para a grandeza do homem é o que ele denomina de amor fati, um “não querer ter nada diferente, nem para frente, nem para trás, por toda a eternidade”, revelando uma satisfação profunda com o mundo presente, com as condições do momento, e diz ainda que “todo idealismo é falsidade diante daquilo que é necessário” (NIETZSCHE, 2012, p. 67 e 68). O filólogo vai criticar duramente tudo que se conhecia até então, falando sobre a moral como uma criação conveniente, um estabelecimento de condutas que suprimem a natureza humana. Uma vez que a razão é contestada na sua mais pura essência, como numa tentativa de aniquilar o pensamento racional, as obras de Nietzsche passam a ecoar fortemente nos anos seguintes, influenciando um novo rumo no pensamento filosófico, no qual agora, tudo que conhecemos no mundo é suscetível a ser contestado. O discurso desconstrutivista de Derrida é um desses exemplos pós-nietzsche, que, de acordo com Haddock-Lobo (2008), estudioso da filosofia francesa, é uma herança da tarefa de transvalorização dos valores, considerada por Nietzsche como o fim das dualidades metafísicas. O autor aponta que o desejo de Derrida é “de fazer justiça à alteridade mesma, a este outro que sempre escapa, mas que a tradição filosófica sempre procurou apreender, compreender, prender”, implodindo os binarismos positivistas tornando o campo filosófico mais politizado, considerando a subjetividade dentro da pesquisa científica (HADDOCK-LOBO, 2008, p. 23). Essas novas teorias geraram uma ampliação nas reflexões sobre as práticas educacionais, que deveriam buscar uma validade rizomática, teorizada pelos filósofos franceses pós-modernos Deleuze e Guatarri, no livro “Mil Platôs”. Para os autores, o rizoma se torna um método “obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimensões e outros registros” pois “uma língua não se fecha sobre si mesma senão em uma função de impotência” (DELEUZE e GUATARRI, 1995, p. 15). Os binarismos positivistas acabaram sendo fortemente abalados, como a divisão dicotômica entre sujeito/objeto, ciência/ideologia e verdadeiro/falso, incluindo questões de identidade/alteridade/diferença trazendo à tona o multiculturalismo: Derrida sugere que os elementos componentes dos pares binários se embaralhem um ao outro, fazendo com que experimentem uma alteridade violenta, a ponto de assumirem a perspectiva um do outro – passando a ser o mesmo: o mesmoutro – adiando, destarte, o ponto de parada das comparações paradigmáticas, diferindo o conceito do “ser” substancialmente, e ascendendo o “ser-com”, o “ser-para”, onde o significado da coisa não mais encontra um ponto pacífico de estabelecimento – eis aí a ideia de différance. (CARDOZO, 2014, p. 129)

Com base no pensamento contemporâneo, o ideal racionalista de um conhecimento prévio, pronto para ser alcançado e aplicado como verdade universal já não cabe mais nas práticas educacionais, que devem se moldar à sociedade heterogênea através de múltiplas aberturas. As decisões e atitudes consideradas “erradas”, passam a serem vistas não menos dignas do que as convencionalmente consideradas “certas”, como Nietzsche já defendia:


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Que a gente se torne o que a gente é pressupõe que a gente não saiba, nem de longe, o que a gente é. A partir desse ponto de vista, até mesmo as decisões erradas da vida – os desvios e descaminhos, os atrasos, as ‘modéstias’, a seriedade esbanjada em tarefas que não fazem parte da tarefa – têm seu valor e seu sentimento peculiar (...) o nosce te ipsum seria a receita para o naufrágio, se-esquecer, não secompreender, se-apequenar, se-estreitar, se-medianizar acabam se transformando na razão em si. (NIETZSCHE, 2012, p. 63)

Os desvios, descaminhos e atrasos, como citado, são entendidos por Nietzsche (2012) como agentes que também fazem parte da construção do ser, mesmo que estes não dialoguem com a ideal progressista e com o positivismo, ou seja, com o pensamento racional. Uma vez questionada a dicotomia entre o certo e o errado, imerge-se numa imensidão de possibilidades dentro de todos os patamares sociais, valorizando as particularidades individuais, as crenças e os costumes das incontáveis culturas que convivem em conjunto no mundo. Simplesmente, o que existe é fluxo natural da vida, das vontades e desejos dos seres humanos de uma sociedade multicultural.


PISTA II

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ERRÂNCIAS URBANAS

Ao longo da história da humanidade, o campo das artes veio trazendo questionamentos sobre o homem, a sociedade, o espaço, e a vida em geral, muitas vezes através da influência da filosofia ou da própria necessidade de se expressar livremente. Para este trabalho, as práticas artísticas de errância urbana surgem como uma referência, e ainda, como um artifício potencial para experimentações e análises das possíveis influências da cidade pulsante, das interações sócio espaciais, do viver-paracompreender, para a formação de arquitetos e urbanistas contemporâneos, fundamentadas pelo pensamento filosófico que aos poucos passou a compreender a sociedade de maneira heterogênea, plural e diversa, tendo o erro como um desvio natural da construção das sociedades, e as experiências individuais como parte fundamental da formação do ser humano, como visto no capítulo anterior. A experiência errática afirma-se como possibilidade de experiência urbana, uma possibilidade de crítica, resistência ou insurgência contra a ideia do empobrecimento, perda ou destruição da experiência a partir da modernidade (...). Mesmo vivendo um processo de esterilização da experiência hoje, esse processo, que, no caso das cidades contemporâneas, seria o processo de espetacularização urbana, não consegue destruir completamente a experiência – o que se aplica especialmente às cidades brasileiras –, embora busque cada vez mais sua captura, domesticação, anestesiamento. (JACQUES, 2012, p. 19 e 20)

Os primeiros indícios das práticas errantes escolhidas parem serem estudadas ao longo do trabalho têm origem nas obras de Baudelaire, filósofo e crítico de arte francês, através da figura do flâneur, um passante em busca de uma nova percepção da cidade ao caminhar tranquilamente por suas ruas apreendendo cada detalhe. O personagem descrito por Baudelaire surge como um contraponto à rotina da burguesia que se dedicava ao mundo do capital alimentando os interesses produtivos, que através de suas flanâncias, não devia satisfação ao tempo, sem trajetos marcados ou objetivos além da própria presença do corpo na cidade (PASSOS et al., 2003, p. 6).


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A flanância, mesmo que de forma indireta e não explícita, traz nela aquilo que já chamamos de crítica moderna da própria modernidade, e, sobretudo, uma crítica ao urbanismo, à transformação autoritária das cidades e à expulsão de seus habitantes, à segregação social, à divisão de trabalho, à imposição de uma uniformização de costumes, de vias para circulação bem orientadas e cada vez mais sinalizadas, de uma velocidade cada vez mais acelerada, e, em particular, ao empobrecimento, pela recente mecanização, da relação do corpo com a cidade. (JACQUES, 2012, p. 71)

Esse foi apenas o nascimento no final do século XIX do que viria a influenciar as teorias e práticas artísticas a partir da década de 1950, como os movimentos dadaísta e surrealistas. Para os dadaístas, as visitas descompromissadas nos espaços esquecidos do ambiente urbano representavam uma maneira de fundir a arte com a vida, e o sublime com o cotidiano, enquanto que para os surrealistas, as caminhadas serviam como uma ferramenta para que as zonas inconscientes da cidade fossem desveladas, fazendo surgir as “partes que escapam do projeto e que constituem o que não é expresso e o que não é traduzível nas representações tradicionais”, e assim, revelando as maravilhas escondidas do cotidiano (CARERI, 2013, p. 83). Porém, foi com o advento da Internacional Situacionista (IS), que as práticas urbanas e as questões que aproximavam a arte do cotidiano começaram a tomar uma conotação diferente, mais politizada e engajada, que de acordo com Jacopo Crivelli Visconti (2014), autor do livro Novas Derivas, este foi um dos movimentos mais influentes no debate sobre os caminhos da transformação da sociedade, e da resistência à expansão do domínio da Sociedade do espetáculo (2014, p. 129). Desta vez, Guy Debord é o nome que surge como grande pensador que guiava as práticas dos artistas situacionistas, que passaram a levar suas produções para fora dos museus e galerias, “a fim de reconquistar a experiência do espaço vivido e as grandes dimensões da paisagem” (CARERI, 2013, p. 112), vendo a cidade não apenas como um ambiente de inspirações e devaneios para que as obras surgissem posteriormente, como nos movimentos artísticos anteriores. Os situacionistas querem criar novos jogos na vida cotidiana; o jogo situacionista é um jogo concreto, construído. Eles insistem na importância da invenção e criação de condições favoráveis para o desenvolvimento dessa paixão pelo jogo urbano, no valor do jogo, que seria o da própria vida livremente construída, sendo que a liberdade seria garantida pelas práticas lúdicas. (CARERI, 2013, p. 223)

Assim, o intuito dos situacionistas era justamente a criação de situações em meio ao ambiente urbano, proporcionando novas formas de vivenciá-lo. São vivências que se relacionam com o fluxo natural do cotidiano, contestando “abertamente as tradicionais modalidades da intervenção urbana, campo de ação tradicionalmente pertencente apenas aos arquitetos e urbanistas” (CARERI, 2013, p. 75). Na visão desses artistas, o movimento modernista da arquitetura e urbanismo, bastante praticado na Europa do pós-guerra e liderados por Le Corbusier com seus princípios funcionalistas


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FIGURA 01: MEMBROS FUNDADORES DA INTERNACIONAL SITUACIONISTA.

FONTE: Colunas Tortas, 2014.¹

¹ Disponível em <http://colunastortas.com.br/2014/05/08/internacional-situacionista-uma-pequena-grandiosa-historia/>. Acesso em Set. 2017


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expostos na Carta de Atenas em 1933, construíam “conjuntos monótonos e repetitivos” provocando a “passividade e a alienação da sociedade diante da monotonia da vida cotidiana moderna” (JACQUES, 2012, p. 176). Enquanto os urbanistas modernos buscavam a orientação em mapas e planos, a preocupação do errante, esse praticante das cidades, estaria mais na desorientação, sobretudo para deixar de lado seus condicionamentos urbanos e, assim, se aproximar da alteridade urbana. Enquanto toda a educação do urbanismo está voltada para a questão do se orientar, os errantes buscavam se desorientar e, ao se perder, encontrar os vários outros das cidades. (JACQUES, 2012, p. 264)

As aspirações de artistas e arquitetos do modernismo eram de modificar a sociedade através de projetos universais e visionários, fazendo cortes radicais com o passado (VISCONTI, 2014 p. 121). Existia uma forte dominação do pensamento cartesiano na produção arquitetônica que reverbera firme até os dias de hoje, tendo o arquiteto e urbanista como uma figura detentora dos conhecimentos sobre a cidade, buscando a orientação através das linhas e ângulos retos em seus projetos, evitando a desordem e a criação de um ambiente urbano que é labiríntico, cortando a possibilidade do devir e das transformações por parte da sociedade deixando “a existência para mais tarde” (JACQUES, 2003, p. 92). Nessa perspectiva, a ideia de projeto seria o oposto da experiência, e os cidadãos que compõem os espaços diariamente seriam apenas espectadores do desenvolvimento da cidade, como argumenta Paola Berenstein Jacques (2003, p. 153): O projeto convencional, no caso de qualquer espaço-movimento, acaba com as potencialidades imanentes do já existente, fixa formas por antecipação, inibe ações imprevistas e, sobretudo, impede uma participação efetiva da sociedade.

Numa tentativa de superação dessas dicotomias racionalistas presentes no pensamento sobre a cidade, os artistas caminhantes defendiam as intervenções mínimas e participativas no ambiente urbano. Essas ações passam a questionar de maneira precisa a real pertinência do projeto arquitetônico e urbanístico, praticado e amplamente ensinado durante a formação dos arquitetos e urbanistas, visto como a base da educação e fundamental para o aprendizado dos estudantes. Sobre uma nova perspectiva do ensino da arquitetura, Amélia Panet (2015) diz que: A transformação do ensino de projeto de arquitetura possui relação com a aceitação de uma condição em construção, em devir, e com a compreensão de um contexto de coexistências diversas que só poderá ser apreendido, no contexto acadêmico e profissional, por posturas que acolham a democracia cognitiva como princípio, que possibilite reflexões coletivas e que demonstre disposição para incorporar as problemáticas urbanas nos estudos projetuais por meio de diversos caminhos metodológicos que possam dar conta da dinâmica contemporânea, na esperança de que o arquiteto possa, realmente, contribuir com transformações profícuas. (PANET in LARA & MARQUES, 2015, p. 191)


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Com isso, estariam as necessidades de transformações do ensino da arquitetura e urbanismo relacionadas ao entendimento da cidade como um ambiente que está sob uma construção dinâmica constante? Essa ideia é apresentada pelos errantes urbanos ao propor a participação conjunta da sociedade, cujos cidadãos vivem em contextos diversos e coexistentes, um conceito considerado bastante pertinente pelo olhar pós-moderno atual sobre os novos métodos educativos pois “não há mais como negar a participação do sujeito, da sociedade, da cultura e da história na elaboração de metodologias suficientemente aplicáveis à educação”, para que finalmente haja um rompimento com o modelo de universalidade nascido desde a Antiguidade Clássica presente nas academias (CARDOZO, 2014, p. 123). De acordo com VISCONTI (2014, p. 131), do ponto de vista conceitual das propostas artísticas dos caminhantes urbanos, as práticas e as situações criadas visam primeiramente estimular a participação do observador, valorizando as experiências, não deixando de enfatizar a possibilidade de criação de uma obra de arte sem valor econômico, mas ao invés disso, que carregue um valor filosófico ou social. Cardozo (2014, p. 131), argumenta que “uma educação que não almeje à mudança social e individual, que assuma a existência de um acabamento e que não conceba o sujeito e suas relações como parte da pesquisa, não pode mais vigorar com supremacia”, reforçando a pertinência das práticas errantes politizadas, que não planejam resultados, não possuem autoria, e se preocupam com o bem estar social abraçando a diversidade das cidades, sendo estas um dos tipos de “obras formalmente pós-modernas, [que] visam estimular uma real mudança na sociedade, através de uma transformação profunda das relações interpessoais” (VISCONTI, 2014 p. 120). Mesmo que de maneira apenas passageira, pode valer a pena ressaltar como essa fricção entre o conteúdo e as ambições de obras de grande porte, por um lado, e outras menores, quase programaticamente fragmentadas e até imperceptíveis, por outro, ecoe e sintetize, nem que seja superficialmente, uma das mudanças de paradigmas mais características da passagem da modernidade para a pósmodernidade (VISCONTI, 2014 p. 120).

Assim, a produção errante recusa o controle disciplinar dos planos modernos, se tornando um instrumento crítico que possa vir atualizar os antigos métodos urbanísticos, e consequentemente, educacionais, que ainda se encontram dominados por especialistas sedentários (JACQUES, 2012, p. 25 e 26). Para VISCONTI (2014), fazendo uma analogia com a educação, a atitude criativa seria um passo para libertar o indivíduo da espetacularização da sociedade, transformando-o em ator de sua própria vida, e nesse caso, dando-lhe autonomia para ser ator de sua própria educação, ou seja, as experiências realmente reveladoras precisam ser vivenciadas em primeira pessoa, diretamente por parte dos estudantes na diversidade das cidades, enquanto o registro, o projeto, reforça a passividade do observador, do aluno.


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ARTISTAS CAMINHANTES Para a realização de suas errâncias, os situacionistas passaram a utilizar a deriva como um de seus procedimentos, uma prática estético-política que significava uma forma alternativa de habitar a cidade, chegando a ser teorizada por Guy Debord, num tratado onde explica-se técnicas, objetivos e sugestões de como derivar na cidade, intitulado Teoria da Deriva. De acordo com a teoria, idealizada também pelo situacionista Constant, a deriva é uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas, no qual seu conceito estaria indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo. Consistia em perambular, sobretudo à pé, sem rumo predefinido, escolhendo ao acaso, ou com base em sensações e impressões extemporâneas, a direção a ser tomada a cada momento (DEBORD in VISCONTI, 2014, p. I). Os artistas se lançavam a caminhar como numa tentativa de contornar as normas capitalistas que prescrevem a otimização do tempo e dos esforços, “uma ação fugaz, um instante imediato a ser vivido no momento presente, sem a preocupação com a sua representação e com a sua conservação no tempo”, fora e contra as regras da sociedade burguesa (CARERI, 2013, p. 86). Os anseios eram de transformar a vida numa sequência de surpresas e emoções, com o objetivo de libertar o sujeito que abre mão de viver a cidade por uma condição passiva de espectador, a partir da criação de situações para serem vividas intensamente, tendo resultados à níveis mentais e particulares que constituíam seu polo mais fundamental (VISCONTI, 2014 p. 49 e 67). Algumas das ações dos situacionistas, algumas consideradas de mal gosto na época, foram realizadas em Paris durante uma greve de transporte público piorando a confusão enquanto se transportavam para qualquer lugar; entrar em andares de casas em demolição à noite; passar um dia inteiro sem sair de uma das estações de Paris; e passear com uma tartaruga pelas ruas da cidade. Numa tentativa de fazer o outro também se perder, produziam mapas da cidade explodidos e reconectados de maneira aleatória, proporcionando uma experiência subjetiva do lugar. No âmbito da arquitetura e urbanismo, as práticas caminhantes, seguindo o fundamento psicogeográfico, observador e crítico das derivas, serviriam como uma aula local em tempo real das dinâmicas urbanas, um material rico vivenciado pelo próprio sujeito, que analisa as situações diretas sem imposições de referências ou modelos, expandindo as possibilidades de intervenção e interação com a cidade: O caminhar revela-se útil à arquitetura como instrumento cognitivo e projetual, como meio para reconhecer dentro do caos das periferias uma geografia e como meio através do qual inventar novas modalidades de intervenção nos espaços públicos metropolitanos, para pesquisa-los, para torna-los visíveis. (CARERI, 2013, p. 32)


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FIGURA 02: GUIA PSICOGEOGRÁFICO DE PARIS DE GUY DEBORD.

FONTE: Dwell, 2014.²

² Disponível em <https://www.dwell.com/collection/diagrams-that-changed-city-planning-d9b37e40#9>. Acesso em Set. 2017


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Segundo Careri (2013, p. 32), o caminhar para a arquitetura se torna um instrumento estético capaz de “descrever e modificar o ambiente urbano das metrópoles”, que possuem espaços com uma natureza ainda incompreendida que precisam ser preenchidos de significados antes de serem projetados e preenchidos de coisas julgadas como pertinentes na visão de uma parcela pequena da população, dos detentores do poder, que são incapazes de representar os anseios da sociedade em totalidade. Os caminhantes encontrariam então o que Constant chamou de Nova Babilônia, uma cidade nômade aberta às experiências urbanas infinitas e sem fronteiras, que não poderia ser planejada por já existir e sempre ter existido nas cidades, bastando “estar atento para encontrá-la nas margens, sombras e sobras” (CARERI, 2013, p. 10 e 11). Assim, na utopia situacionista, eles lançaram a proposta do urbanismo unitário, um novo tipo de urbanismo altamente participativo, feito pelos praticantes da cidade, antifuncionalistas e revolucionários, através da construção de situações sem projeto convencional ou modelo formal (JACQUES, 2003, p. 152). No urbanismo unitário, o conjunto das artes contribuirá com a construção do espaço do homem. Os habitantes voltarão a apropriar-se da atitude primordial à autodeterminação do próprio ambiente e da recuperação do instinto pela construção da própria casa e, por isso, da própria vida. O arquiteto, como o artista, deverá mudar de ofício: não será mais construtor de normas isoladas, mas construtor de ambientes completos, de cenários de um sonho com os olhos abertos. Assim, a arquitetura fará parte de uma atividade mais extensa e, como as outras artes, desaparecerá em prol de uma atividade unitária que considera o ambiente urbano como terreno de um jogo participativo. (DEBORD in CARERI, 2013, p. 101 e 104)

Desde a décade de 1960, Debord, segundo Jacques (2012), já trazia o debate sobre uma revolução no campo da arquitetura, que partiria de uma consciência da multiplicidade através das caminhadas urbanas, focando na importância da participação e da experiência direta. Os arquitetosurbanistas se tornariam então facilitadores, rompendo com a racionalidade da representação dos espaços através de intervenções mínimas, conscientes da superficialidade e da incapacidade de soluções pontualmente pertinentes por meio do projeto convencional, deixando que o jogo do desenvolvimento urbano siga sem amarras, no qual todo cidadão seria construtor diário das cidades: Os praticantes das cidades atualizam os projetos urbanos – e o próprio urbanismo – com a prática dos espaços urbanos. Os urbanistas indicam usos possíveis para o espaço projetado, mas são aqueles que o experimentam no cotidiano que o atualizam. São as apropriações e improvisações dos espaços que legitimam ou não aquilo que foi projetado; ou seja, são essas experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam esses espaços no seu cotidiano. (JACQUES, 2012, p. 272)


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Nessa conjuntura, o mundo da arte em geral veio gradativamente “incorporando a mobilidade como sua característica elementar” (VISCONTI, 2014 p. 18), abertos aos desvios, rumo às jornadas pessoais e, de acordo com Jacques, ao “estado de corpo errante”, no qual os arquitetos e urbanistas não acompanharam. As caminhadas passaram a se tornar significativas além do que a teoria das derivas propunha, se transformando numa verdadeira manifestação artística autônoma, surgindo inclusive como prática estética em vários países diferentes ao mesmo tempo sob contextos diversos, revelando seu caráter natural e potente como um questionamento crítico e político das conjunturas opressoras. A Line Made By Walking (Uma linha feita caminhando), uma das obras mais conhecidas do artista britânico Richard Long, realizada na Inglaterra em 1967, consistia no ato de pisotear continuamente em linha reta a grama de um campo aberto até que ficassem as marcas da ação do corpo no espaço. Em Snowball Track (Trilha da bola de neve, 1964), a obra consiste simplesmente numa linha feita através do contato de uma bola de neve rolando pelo chão guiada pelo artista. O objetivo de Long era fazer uma intervenção conceitual a partir de ações mínimas e transitórias, na qual a obra de arte em si seria o ato de caminhar, a própria realização da experiência. O único registro dessas obras foi através da fotografia, que se confunde com a própria obra, passando do objeto à ausência do objeto (CARERI, 2013, p. 113). Para VISCONTI (2014), o que norteia a produção contemporânea é um maior pragmatismo, e uma capacidade em lidar com as mudanças que vem ocorrendo na sociedade, dando ênfase ao sentido vivo do presente e ao ato, que seria compreendido através da presença do próprio sujeito. Artistas caminhantes contemporâneos evoluíram suas práticas, numa tendência de produção total no ambiente da cidade dando mais valor ao ato criador que ao registro, no qual muitas vezes chega até mesmo a desaparecer, revelando uma preocupação maior em caminhar do que deixar rastros e no próprio movimento do corpo na cidade. (...) nenhuma fotografia, nenhum relato, nenhum vídeo poderia reproduzir os cheiros, o cansaço, as descobertas e as decepções de uma caminhada, (...) se a deriva é um ato exclusivamente físico e pessoal, o único registro que pode ser considerado legítimo é o da memória, isto é, tanto mental quanto física, mas sempre circunscrita ao âmbito do próprio corpo. (VISCONTI, 2014 p. 140)

O artista belga Francis Alys, fascinado pelo contexto latino americano firmou suas raízes na Cidade do México, não tinha a pretensão de deixar qualquer marca permanente na paisagem através de suas obras com a criação de eventos efêmeros, como em Sometimes Making Something Leads to Nothing (Às vezes fazer alguma coisa não leva a nada, 1997) quando o artista arrastava um bloco de gelo nas ruas da Cidade do México até ele desaparecer por completo, após nove horas de caminhada. A ação de Alys tende objetivamente ao nada, “à criação de um vazio” (VISCONTI, 2014 p. 38), deixando apenas por alguns instantes os rastros de água do gelo derretido, atuando apenas no imaginário de quem por ventura vir a se deparar com a cena, proporcionando a criação de narrativas particulares.


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FIGURA 03: A LINE MADE BY WALKING, DE RICHARD LONG. INGLATERRA, 1967. FONTE: Richard Long Webside <www.richardlong.org/Sculptures/2011sculptures/linewalking>

FIGURA 04: SOMETIMES MAKING SOMETHING LEADS TO NOTHING, DE FRANCIS ALYS. CIDADE DO MÉXICO, 1997. FONTE: Francis Alys Website <www. francisalys.com/sometimes-making-somethingleads-to-nothing/>


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Porém, é na obra When Faith Moves Mountains (Quando a fé move montanhas, 2002) que encontramos a ação mais significativa de Francis Alys para a cartografia desenvolvida neste trabalho, mesmo que estas experiências tenham sido criticada por seu caráter de espetacularização. Alys foi ao Peru onde recrutou quinhentas pessoas na cidade de Lima com o intuito de mover em dez centímetros uma duna de quinhentos metros de diâmetro do seu local original, equipados cada um com uma pá lado a lado formando uma grande linha humana. A prática foi realizada durante um período político delicado do país, e o intuito do artista era justamente de proporcionar esse momento de alegoria social para demonstrar a força da união da população por uma causa, escapando da passividade generalizada. De acordo com VISCONTI (2014, p. 135), essa foi uma “obra que não visa à produção de um objeto artístico, mas à criação de vínculos entre pessoas e das pessoas com um determinado lugar, mesmo que esse lugar seja inóspito e degradado”. Essa possibilidade de criação de vínculo entre as pessoas que participam das práticas errantes, e destas com o ambiente, representa uma das grandes potencialidades dessas realizações. Uma ação conjunta, realizada com um mesmo objetivo, ou a falta dele, por todos, acaba gerando uma empatia entre os praticantes da cidade, que passam a respeitar de maneira mais ampla o próprio lugar, o lugar do outro, e fazendo o reconhecimento do lugar em comum. O artista começa a perder a imagem de criador, passando a ser aquele que propõe a criação coletiva (JACQUES, 2013, p. 84) dando pistas e indícios possíveis, visando a criação de uma atmosfera que situa-se no limiar entre ação artística e ação social. “O artista e seu público tornam-se uma coisa só” (VISCONTI, 2014 p. 156). Do happening de Allan Kaprow que com um giz desenhava uma linha no chão, enquanto outra pessoa ia apagando logo em seguida, ao uso dos mapas de Lucy Lippard, que acreditava que com a fotografia estes se tornavam instrumentos privilegiados de interagir com o espaço, até às longas jornadas de Samuel Wagstaff na estrada e a sua tomada de consciência sobre o fim da arte e a necessidade da vivência, enfim, todas representam práticas errantes que possuem muito a ensinar ao campo da arquitetura e urbanismo de alguma forma, o que aconteceu naturalmente para Vito Acconci, que após anos de errâncias pelas ruas de Nova York, decide se tornar arquiteto e urbanista, com “projetos [que] exploram a importância e influência da arquitetura na construção das relações sociais” (VISCONTI, 2014 p. 3). (...) o uso do tempo e o uso do espaço escapariam às regras do sistema e chagariam a autoconstruir novos espaços de liberdade, ter-se-ia feito realidade o slogan situacionista “morar é estar em qualquer lugar como na própria casa”. A construção de situações era o modo mais direto de realizar na cidade novos comportamentos e de experimentar na realidade urbana os momentos do que teria podido ser a vida numa sociedade mais livre. (CARERI, 2013, p. 98)


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FIGURA 05: WHEN FAITH MOVES MOUNTAINS, DE FRANCIS ALYS. PERU, 2002.

FONTE: Francis Alys Website <www. francisalys.com/when-faith-moves-mountains/>


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FIGURA 06: THE STORE FRONT FOR ART & ARCHITECTURE DE VITO ACCONCI EM NOVA YORK.

FONTE: The Daily Beast, 2012.³

³ Disponível em <http://www.thedailybeast.com/the-storefront-for-art-and-architecture-by-acconci-and-holl-is-the-daily-pic-by-blake-gopnik>. Acesso em Set. 2017.


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PEDRAS NO CAMINHO BRASILEIRO Assim como em vários outros países, o Brasil também passou por um período em que as vanguardas artísticas propunham ideias bastante similares às dos situacionistas num âmbito conceitual, mas que infelizmente, o contexto político da época inviabilizou a sua continuação, na perspectiva de que suas reflexões e colaborações evoluíssem até os dias de hoje. No final dos anos 50, Ferreira Gullar escrevia para o Jornal do Brasil sobre um outro caminho que a arte brasileira tomava, principalmente na poesia, pintura e escultura, com análises a partir das obras de artistas como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica. A transição da década de 50 para a década de 60 foi marcada pelo surgimento do movimento neoconcretista a partir das experiências pessoais de alguns artistas, que anteriormente participavam do concretismo, que passaram a encontrar uma afinidade entre suas soluções, impulsionados pela consequente percepção e análise teórica de Gullar, como numa evolução conjunta entre teoria e prática. O neoconcretismo nasceu de uma necessidade de exprimir a realidade complexa do mundo moderno, indo em contraponto ao concretismo e seu caráter cientificista e positivista influenciados pelas novas concepções da Física e da Mecânica, de acordo com Gullar. No Manifesto Neoconcreto, publicado no Jornal do Brasil em 1958, Gullar dizia que “o racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica”, e assim, considerava que os concretistas viam o ser humano como uma máquina, “limitando a arte à expressão dessa realidade teórica” e a esquemas perceptivos (GULLAR, 1999, p. 285). A influência da ciência sobre a arte, na primeira metade deste século não se fez apenas sobre a realização das obras mas, sobretudo, sobre as teorias e a crítica de arte que, à falta de uma terminologia nova e precisa, adotou a linguagem e o ponto de vista científicos colocando-se muitas vezes numa posição que traía a complexidade do trabalho criador. Daí resultou uma orientação limitada da experiência, em alguns casos, e noutros a simplificação dos problemas colocados por alguns grandes artistas e a incompreensão das ideias e propósitos contidos em suas obras. (GULLAR, 1999, p. 245)

Assim, a arte neoconcreta tinha o objetivo de reabrir questões fundamentais da arte contemporânea, como “a questão de uma linguagem visual autônoma e não representativa” preferindo “mergulhar na natural ambiguidade do mundo para descobrir, nele, pela experiência direta, novas significações” (GULLAR, 1999, p. 246), rejeitando então as formulações que consideravam a obra de arte como um objeto, e a razão acima da subjetividade. A partir desse conceito foi lançada a teoria do não-objeto, na qual o quadro e seu suporte já não estavam mais desassociados, almejando a criação de obras como uma realidade material existente.


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FIGURA 07: BICHO “PANCUBISMO” DE LYGIA CLARK, 1960.

FONTE: Natalie Seroussi, 2017.4

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Disponível em <http://www.natalieseroussi.com/en/artistes/oeuvres/15/lygia-clark#oeuv-3>. Acesso em Set. 2017


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O espectador – que já então não é apenas o espectador imóvel – é chamado a participar ativamente da obra, que não se esgota, que não se entrega totalmente, no mero ato contemplativo: a obra precisa dele para se revelar em toda a sua extensão. (...) Ela exige do espectador uma participação integral, uma vontade de conhecimento e apreensão. (GULLAR, 1999, p. 256) A questão do movimento, da participação, e da ligação entre artista e espectador passou a fazer parte do cenário artístico brasileiro com uma carga conceitual sólida, diretamente relacionada aos ideais situacionistas. Aos poucos, Lygia Clark, e os demais artistas neoconcretos, foram rompendo com o quadro e construindo diretamente no espaço (GULLAR, 1999, p. 259), progredindo da pintura, à escultura, chegando até a arquitetura com a construção de maquetes flexíveis, na qual o espectador poderia readaptá-la, tornando-se também um autor das obras. Já Hélio Oiticica chegou a ir mais além no conceito da participação, amadurecendo sua concepção artística rapidamente através da experiência diária na favela da Mangueira, no Rio de Janeiro. Em “Estética da Ginga”, Paola Berenstein Jacques (2003) faz uma relação entre as características arquitetônicas e urbanísticas das favelas e a subjetividade artística de Hélio Oiticica refletida em suas práticas. As favelas são formadas sob uma ótica da (des)organização dos espaços oposta ao que espera-se de uma cidade formal e ao que é ensinado como urbanismo, construídas a partir de uma intervenção espaço-temporal a qual os arquitetos não dominam e não tem contato. Elas possuem uma estética própria, sem projeto preliminar, dependendo do acaso e dos materiais descartados encontrados, se transformando continuamente através da junção desses fragmentos, sem término previsto, que de acordo com Jacques (2003, p. 24) “quando não há projeto, a construção não tem uma forma final preestabelecida e, por isso, nunca termina”, criando espaços que tendem ao infinito, entregues ao devir e as eventualidades, resultando num processo chamado de bricolagem: “uma arquitetura sem projeto”. (...) nos projetos arquiteturais, a finitude da forma já é predefinida e fixa, ao passo que, nas favelas, os abrigos quase nunca estão terminados nem têm forma fixa. O projetar implica também, na maioria dos casos, um planejamento, uma racionalização, em outros termos, uma repetição do mesmo. No caso da favela, isso é impossível, pois não se pode bricolar duas vezes do mesmo jeito. (JACQUES, 2003, p 55 e 56)

Foi nesse ambiente de construção cotidiana e participativa que Oiticica encontrou meios de produzir uma obra de arte mais autônoma e colaborativa. Uma dessas experimentações do artista foram os Parangolés, capas ou bandeiras que deveriam ser “in-corporadas”, revelando, através do movimento dos corpos de quem as vestiam, seus vários panos e cores diferentes, uma multiexperiência sensitiva, como diria o artista. Dessa forma, as pessoas, podendo agir livremente sem orientações, tornavam-se participantes da concepção da obra, e não mais apenas espectadores. Para Jacques (2003, p. 31) “os movimentos do corpo que dança se transformam continuamente, como as fachadas dos abrigos das favelas. Encontramos a mesma ideia do estar temporário, do estar


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em transformação, do tornar-se”, proporcionando uma obra sempre aberta e inacabada, dependendo da interação direta com o outro para que aconteça, assim como acredita-se que seja o processo diário de formação das cidades e da atmosfera sociocultural. [Hélio Oiticica] sugere usos possíveis dos espaços criados deixando-os abertos a todas as propostas por parte dos utilizadores ou, simplesmente, dos passantes. Espera do público performances, deixa espaços vazios para que elas aconteçam. Ao contrário do que faz um arquiteto convencional, Oiticica, em vez de criar um espaço para determinado programa de usos e funções, propõe o espaço para, em seguida, deixar que sejam descobertos os usos e funções possíveis. Propõe uma experiência do espaço, de diferentes tipos de espaços possíveis, incomuns, espaços labirínticos. (JACQUES, 2003, p. 83)

Dessa forma, vemos através das obras propostas por Oiticica uma maneira diferente de perceber, entender e interagir com os espaços, que se transformavam numa atmosfera harmoniosa e colaborativa, intensificando as relações pessoas e ressignificando a maneira de utilizar os próprios espaços com a demonstração dessas outras formas mais humanas, menos segregacionistas e elitizadas. A ideia de uma arte erudita e intelectualizada, formalista e estetizante, não agradava ao artista. Suas práticas aproximavam as pessoas, interviam diretamente no ócio social, criando novas experiências e situações que, ao serem realizadas coletivamente, tinha o poder de conectar seus participantes, que se libertavam de uma rotina massiva e tediosa. Não existia mais a separação entre autor e espectador, ou entre a arte e a vida. Essa concepção acaba abalando fortemente a ideia sobre o papel do arquiteto e urbanista em suas intervenções e projetos na cidade. Foi através do contato direto com a favela, dessa experiência extrema de alteridade urbana, de conviver com o diferente e observar outras possibilidades de convívio e as mais variadas narrativas cotidianas que Hélio Oiticica pode alcançar esse estado de “consciência” sobre a necessidade de desviar-se da espetacularização da vida, de ver nas experiências cotidianas coletivas um exercício de liberdade, intensificando a criação de espaços de convívio mútuo, onde, para Jacques (2003, p. 84) se perdem “os condicionamentos sociais, os preconceitos, as imagens estereotipadas”, colaborando para uma sociedade mais igualitária e aberta à multiplicidade. Essas vivências de artistas como Oiticica se tornaram influentes na produção artística brasileira dos anos 60, colaborando inclusive com o surgimento do Tropocalismo. A “Tropicália era um tipo de postura crítica, artística, um desejo, uma forma de incorporar, de apreender a cultura popular e a ‘arte’ das ruas” (JACQUES, 2012, p. 184), rejeitando as imposições estéticas e o domínio da cultura estrangeira, voltando-se à própria experiência de brasilidade, que para eles, seria uma identidade em transformação contínua. Os artistas tropicalistas acreditavam que “a mistura entre a vanguarda artística e a cultura popular tinha de passar pela vivência direta” (JACQUES, 2012, p. 183).


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(...) o que continuava sendo valorizado era de fato “a arte das ruas”, a arte anônima realizada pelo Outro, pelos vários outros urbanos, que ele procura provocar ao sugerir uma arte coletiva total com vários artistas propondo atividades criativas ao público. (JACQUES, 2012, p. 174)

Foi através do contato com essa vanguarda artística que surgia no Brasil, num clima de resistência ao governo militar, que a arquiteta moderna Lina Bo Bardi também passou a ser influenciada pela questão da participação e das vivências urbanas, fazendo algumas experimentações no campo da arquitetura. Lina, originalmente italiana, possuía um interesse intenso sobre a cultura popular brasileira, trabalhando particularmente com a cultura nordestina, a partir do seu contato com os baianos tropicalistas. Não chegou a participar efetivamente do movimento, mas passou a adotar uma postura mais antropológica em seus projetos, incorporando práticas e saberes popular no desenvolvimento da obra arquitetônica, muitas vezes concebendo as “soluções projetuais” no próprio canteiro em comunhão com mestre de obras, pedreiros, etc, fazendo um tipo de “arquitetura participativa ao fundir o desenho do projeto ao canteiro de obra” na tentativa de “aproximar experimentação e participação” (JACQUES, 2012, p. 198). A arquiteta moderna, formada na Itália, ao chegar à Bahia se aproxima cada vez mais da antropologia e da etnografia, passa a pesquisar de forma sistemática a cultura popular e, sobretudo, o artesanato local. Ela pratica no nordeste do país o mesmo tipo de etnografia dos antropófagos e surrealistas, deixa-se fascinar pelo Outro, pela alteridade, e busca compreendê-la in loco. Faz expedições etnográficas ao interior, pelo Recôncavo Baiano, pelo Polígono das Secas e por algumas grandes cidades nordestinas, sempre em busca de feiras populares. Assim, ela também deambula pela primeira capital do país, Salvador. Lina Bo Bardi frequentava as feiras de artesanato popular das cidades nordestinas como os trapeiros surrealistas frequentavam os mercados das pulgas parisienses: a busca do acaso objetivo e da iluminação profana. (JACQUES, 2012, p. 196 e 197)

Através do trabalho da arquiteta ítalo-brasileira, vemos o exemplo de uma profissional que busca experiências urbanas e, indissoluvelmente, antropológicas, em primeira pessoa, visitando lugares que seja possível vivenciar o cotidiano popular. Talvez por não ser naturalizada nem formada no Brasil, Lina sentia a necessidade de buscar essa experiência cultural o máximo possível, tentando entender cada vez mais o país, a relações sociais dos brasileiros, e assim, compreender melhor o seu próprio trabalho. É evidente a aproximação entre o modo de pensar dos artistas neoconcretos e tropicalistas, e dos situacionistas, revelando ainda possíveis reflexos na atuação de arquitetos e urbanistas, como no caso de Lina Bo Bardi, aguçando o imaginário de uma arquitetura com comprometimento social firmado. Podemos chamar o pensamento de Oiticica, bem como o tropicalista, de pensamento ambulante, que faz uma apologia do movimento, do transitório, da não fixidez. As vivências tropicalistas, seus delírios concretos, assim como as situações construídas dos situacionistas são contra a fixação das ideias, dos tempos e dos corpos (JACQUES, 2012, p. 227).


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FIGURA 08: PARANGOLÉ DE HÉLIO OITICICA, 1964.

FONTE: Revista Clichê, 2014.5

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Disponível em <http://www.revistacliche.com.br/2014/11/elefante/>. Acesso em Set. 2017


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FIGURA 09: TROPICÁLIA DE HÉLIO OITICICA NO MAM-RIO, 1967.

FONTE: Olhares Sobre Arte, 2015.6

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Disponível em <https://olharessobreaarte.wordpress.com/2015/12/16/tropicalia/>. Acesso em Set. 2017


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Porém, no caso brasileiro, os artistas estavam lidando com um contexto político desfavorável: o regime militar. Essa liberdade que as vanguardas clamavam representava uma grande ameaça à estabilidade do governo ditador, que ao lançar o Ato Institucional número 5 (AI-5) no ano de 1968, intensificaram a repressão a esse tipo de manifestação, inviabilizando a continuação das práticas artísticas errantes brasileiras. Revolucionários já não eram mais bem-vindos no país, onde toda produção que não fosse condizente com o ideário político vigente era censurada, construindo uma sociedade alienada e de poucos favorecidos. No âmbito educacional, Darcy Ribeiro, antropólogo e pedagogista brasileiro, lutava pela renovação das universidades e por um salto qualitativo na educação e na produção de conhecimento, com destaque para a fundação da Universidade de Brasília (UnB), um projeto que também foi interrompido pelo governo ditador. A censura interrompeu a temporada que Caetano, Gil e os Mutantes faziam com casa lotada na boate Sucata, onde a bandeira de Hélio Oticica “Seja marginal, seja herói” – homenagem ao marginal morto Cara de Cavalo –, ficava no palco. Os que ficaram no país sofreram a truculência do regime militar. Em 1970, Torquato Neto, de volta ao Brasil, é internado num hospital psiquiátrico e, em 1972, ele se suicida. Era a madrugada seguinte a seu aniversário de 28 anos; era o final trágico da alegre Tropicália. (JACQUES, 2012, p. 202)

Assim, com a permanência da ditadura militar, o Brasil imerge num período de bloqueio à democracia e os avanços sociais, interrompendo um processo em desenvolvimento dos possíveis encaminhamentos para que nos tornássemos um país mais justo e igualitário. A intervenção militar na produção artística e na educação deixam marcas até hoje, consequentemente, a instiga de como resgatar as colaborações que esses grandes brasileiros militantes tentavam introduzir na sociedade. Ambos os movimentos apresentados tinham a intenção de agir contra a alienação social e a monotonia do cotidiano da sociedade, resistir à repressão sobre a liberdade de expressão, e ao controle do sistema político. “Tanto tropicalistas quanto situacionistas acreditavam que a revolução precisaria passar pela vida cotidiana, e não poderia ser programada” (JACQUES, 2012, p. 208). O discurso desses grupos, e suas críticas ao funcionalismo moderno e a passividade da população, estão relacionados diretamente com o campo da arquitetura e urbanismo, abordando questões espaciais, urbanas e antropológicas, que por serem tão complexas, não se restringem a uma única disciplina e sujeito, mas sim, a todos aqueles que vivenciam diariamente as cidades, construindo aos poucos essas atmosferas urbano-culturais, tendo, na verdade, muito o que ensinar a arquitetos e urbanistas, para que assim, possam desenvolver ações e propostas que sejam pertinentes e dialoguem com a realidade da sociedade.


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FIGURA 10: SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI DE HÉLIO OITICICA.

FONTE: Ensaios Fragmentados, 2012.7

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Disponível em <http://ensaiosfragmentados.blogspot.com.br/2012/03/arte-fragmentada.html>. Acesso em Set. 2017


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PISTA III

Laranjeiras, 2017 | Heitor


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ENSAIOS ERRANTES E A VIVÊNCIA EM ARQUITETURA-URBANA

É justo aqui que se tem de começar a reaprender. Aquilo que a humanidade ponderou seriamente até o presente momento nem sequer são realidades, são puras ilusões, ou, para dizê-lo de um modo mais duro, mentiras advindas dos instintos ruins de naturezas enfermas, prejudiciais no mais profundo dos sentidos (...) – todas as questões relativas à política, à ordem social, à educação são, por isso, falsificadas até a raiz, de modo que foram tomados por grandes os homens mais perniciosos... De modo que se ensinou a desprezar as “pequenas” coisas, quero dizer, as questões fundamentais da vida... (NIETZSCHE, 2012, P. 65)

A crise na abordagem do curso de arquitetura e urbanismo fica cada vez mais evidente após toda a discussão anterior, passando pela história da razão e suas influências no modo de vida da sociedade, e consequentemente, na maneira que concebemos a educação atualmente. Nietzsche já alertava sobre o fato de que organização social ocidental foi construída a partir de uma realidade ilusória, fazendo-se necessário “começar a reaprender”, dando margem ao erro, às experiências diversas, direcionando olhares à essas pequenas coisas da vida que ao longo da história se foi ensinado a ignorar. O pensamento de Nietzsche abriu caminho para diversos outros filósofos que colaboraram para o desenvolvimento de novas interpretações pedagógicas que reverberam na prática arquitetônica, como explica Montaner, teórico e crítico catalão que escreve reflexões sobre o campo da arquitetura e do urbanismo há mais de 25 anos: (...) diversas vertentes pós-modernas ajudaram a abrir espaço para a experiência como contraponto ao despotismo da razão e do olhar único, em favor de um tipo de projeto inclusivo que incorpore a perspectiva de gênero, o olhar de e para o “outro” e o objetivo da arquitetura participativa (MONTANER, 2017, p. 13).


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As palavras de Montaner se relacionam diretamente com as manifestações analisadas no campo das artes, no caso dos situacionistas, neoconcretistas e tropicalistas, nos quais os artistas tentavam escapar da racionalização e espetacularização da vida. Suas práticas eram realizadas no cotidiano das cidades em busca desse choque com o “outro”, do que escapa das nossas percepções diárias, e da concepção de uma obra de arte participativa, proporcionando vivências em busca da liberdade. O cotidiano é o lugar das ações mínimas. (...) É mais complexo ainda tentar entender o que e que torna extraordinário o próprio cotidiano, o que é que nos faz saber, no fundo da alma, que é exatamente nas pequenas ações corriqueiras e monótonas, ou até tediosas, que a vida pulsa com mais força, e que é para isso que vivemos, disso que sentiremos falta, algum dia (VISCONTI, 2014 p. 69 e 70).

Com isso, entende-se o cotidiano das cidades como um rico campo de experiências diversas, e as caminhadas urbanas como uma exercício potencial da busca pela alteridade. De acordo com Careri, o “caminhar é um instrumento insubstituível para formar não só alunos como também cidadãos” (2013, p. 171), porém é uma ação pouco incentivada e realizada pelos estudantes de arquitetura e urbanismo, que acabam tomando como verdades para si os relatos midiáticos de insegurança, afastando-se cada vez mais da vivência nos espaços públicos. Na América do Sul, caminhar significa enfrentar muitos medos: medo da cidade, medo do espaço público, medo de infringir as regras, medo de apropriar-se do espaço, medo de ultrapassar barreiras muitas vezes inexistentes e medo dos outros cidadãos, quase sempre percebidos como inimigos potenciais. Simplesmente, o caminhar dá medo e, por isso, não se caminha mais; quem caminha é o sem-teto, um mendigo, um marginal. (CARERI, 2013, p. 170)

Como forma de resistência e ação contra essa passividade acadêmica em relação às vivências urbanas, e com o intuito de proporcionar uma experiência diferente em Aracaju, algumas práticas de exploração urbana foram realizadas no centro da cidade, que acabaram servindo como amostra de análises para este trabalho. A região do Centro de Aracaju é uma área rica em possibilidades para experimentações por ser o lugar do estado onde um grande número de pessoas se misturam, construindo uma atmosfera de diversidade social, étnica, sexual, religiosa, e a possibilidade de vivenciar diferentes contextos, com um comercio agitado, atividades culturais, edifícios de diferentes momentos da história, resultando em um ambiente de coexistências. Ao mesmo tempo, no imaginário popular, é um local inseguro e inabitável durante a noite, tornando-o um bairro revestido de preconceitos, e consequentemente, “abandonado”. Para Careri, a experiência de se deslocar em locais carregados de pré-conceitos resulta na “libertação de convicções postiças e começa-se a recordar que o espaço é uma fantástica invenção com a qual se pode brincar” (2013, p. 171), e ainda, como completa Jacques, pode “nos ajudar a repensar nossas próprias definições de cidade, de urbanidade, de formas contemporâneas de vidas em sociedade” (2003, p. 153). Assim, as caminhadas urbanas podem representar uma construção


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significativa no repertório dos estudantes, ao experimentar e analisar diversos contextos da cidade, que colaboram para o aprimoramento espontâneo de uma reflexão crítica sobre o urbanismo. Introduzir a experiência na arquitetura é fundamental para incluir o subjetivo, o perceptual, o sensorial e o corporal, ao mesmo tempo em que se reforça o fenômeno da arquitetura contemporânea enquanto construção social. Por conseguinte, a experiência coloca a imaginação, as vivências e as intenções dos criadores em sintonia com as experiências, as necessidades, os desejos e as aspirações dos usuários (MONTANER, 2017, p. 13 e 14).

A primeira reunião descompromissada, marcada para debater e trocar percepções sobre as experiências urbanas em Aracaju e possibilidades de ação, foi realizada na Praça Fausto Cardoso, localizada no centro da cidade, em frente à Ponte do Imperador, famosa por ser uma não-ponte que não leva a lugar algum. A ponte serviria como representação simbólica da passagem de um estado de espectador para participador do desenvolvimento da cidade, dando-lhe então um verdadeiro significado de ponte no imaginário dos participantes. Entre estudantes de arquitetura e urbanismo, jornalismo, design, audiovisual, relações internacionais e astronomia, compôs-se um grupo de abordagens diversificadas, engrandecendo ainda mais as discussões com perspectivas diferentes sobre a cidade. O intuito inicial era produzir algo diferente na cidade, da cidade, e pela cidade, tendo as ruas como protagonistas, para desconstruir, redescobrir e renovar os espaços públicos através da projeção dos corpos no ambiente urbano. Posteriormente, duas práticas se desenvolveram no Centro de Aracaju que serão relatadas a seguir, finalizando com as narrativas de alguns dos participantes para evidenciar a colaboração das experimentação de vivências na formação dos estudantes de arquitetura e urbanismo.


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DERIVA URBANA: CENTRO DE ARACAJU O errante busca estar disponível para a desorientação, busca conseguir se perder mesmo na cidade que mais conhece, ao errar o caminho voluntariamente e, através do erro – e da errância que esse erro provoca –, realizar uma apreensão ou percepção espacial diferenciada da sua própria memória local. Perder-se no lugar conhecido é uma experiência mais difícil, porém bem mais rica, do que a desorientação no espaço totalmente desconhecido (JACQUES, 2012, p. 276 e 277).

A primeira prática errante, decorrente das sugestões coletivas da reunião inicial, aconteceu no dia 31 de março de 2017, numa sexta-feira, no próprio centro da cidade. O lugar escolhido foi justamente o que todos os participantes já conheciam e possuíam alguma relação, mas que ainda mantinham a sensação de espaço pouco explorado, resultando numa experiência de se perder diante do conhecido, que segundo Jacques, é “mais difícil, porém bem mais rica” do que a exploração de um local desconhecido. Essa é uma possibilidade de presenciar o cotidiano da cidade de uma forma diferente à da memória e da rotina habitual, a partir dessas novas intenções do caminhar, observando atentamente os detalhes e essas diferentes “realidades” que coexistem no ambiente urbano que passam despercebidas. Com início marcado para às 17:30h, o intuito era observar a transitoriedade da dinâmica do bairro ao passo em que o horário comercial termina e a noite vai chegando, um instante já configurado como perigoso e inabitável na mente de boa parte dos habitantes de Aracaju e dos estudantes que participaram da prática. Nessa concepção, a deriva urbana foi proposta como a ferramenta de exploração dos acontecimentos da vida prática, caminhando lentamente por essas áreas “marginalizadas”, e seus espaços públicos cada vez mais subutilizados, com objetivos incertos, impulsionados pelo desejo de estar e viver a cidade, criando uma relação mais próxima com o lugar em comum do cidadão aracajuano e entre os mesmos. Alguns questionamentos levantados na primeira reunião serviram de direcionamento para a prática: o que acontece no centro depois das 18h? Quem o ocupa? As pessoas abandonam o centro e se deslocam até lá somente para fins comerciais? Quem visita ou quem convive diariamente no centro à noite que são os vulneráveis e inseguros? Os participantes seguiram livres para caminhar em grupos ou sozinhos, e para decidir de que forma a prática poderia ser documentada, seja através de fotografias, vídeos, rabiscos, notas, textos, entre outros, ou até mesmo, registrar a ação apenas no debate e na troca de percepções de cada um. Muitos caminharam em duplas ou individualmente, ora encontrando-se com outros participantes, se juntando, desviando e separando continuamente. O medo de passar pelas ruas sem iluminação foi amenizado pela presença de outras pessoas, e muitos foram além do que imaginaram, realmente se entregando à prática e às solicitações do ambiente sem pré-julgamentos. Ao final, nos


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encontramos novamente na praça, por volta de 19:30h, para compartilhar os trajetos e o que foi visto, sentido ou percebido através da caminhada, e ainda, para debater possíveis temas pertinentes para serem levados adiante como produto ou como uma nova prática posteriormente. Várias narrativas e problematizações foram levantadas na discussão do que foi observado, sentados em círculo nos bancos e no chão da praça escura. As percepções pessoais do autor encontram-se no apêndice A deste trabalho, documentadas ao estilo de escrita que segue o fluxo do pensamento presencial, inspirado no livro “Tentativas de esgotamento de um local parisiense”, do escritor errante francês George Perec. Em geral, acabou chamando atenção alguns locais que começavam a abrir, ou que se aqueciam, enquanto as lojas iam se fechando. O exemplo mais vivo, foram os bares que surgiam em estacionamentos, nos becos, nas ruas, se intensificando no mercado, aglomerando vários grupos de pessoas em um espaço que de comercial se tornava lazer. Assim, a partir dessa percepção que se teve, surgiu a proposta da próxima prática: Estética da Embriaguez.

FIGURA 11: CENTRO DE ARACAJU AO FIM DO HORÁRIO COMERCIAL. FONTE: Próprio Autor, 2017.


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ESTÉTICA DA EMBRIAGUEZ “Estética da Embriaguez” foi uma prática proposta com base nas observações, descobertas e questionamentos que surgiram a partir da primeira deriva desenvolvida nesta prática, acontecendo novamente no Centro de Aracaju, agora, com o intuito de passar a noite no bairro, parando nos pontos de movimentação e de atração de pessoas, ou simplesmente, formando novos aglomerados em locais vazios, em busca de conhecer o que de fato acontece no centro a noite através da experiência própria do caminhar na cidade, e de narrativas que se escondem através do contato com esses “outros” urbanos desconhecidos. O filósofo Heidegger diz que para Nietzsche “o estado estético fundamental é a embriaguez”, por trazer “a sensação de força intensificada e plenitude” (2003, p. 86), acreditando no potencial estético e de liberdade de uma noite no bar, onde as pessoas vão por escolha, muitas vezes para se desligar do cotidiano e permitir-se entrar num estado errante. Como descreve Jacques: A embriaguez é, portanto, uma condição fisiológica, uma sensação. Isso implica um corpo que sente, um estado físico peculiar. A arte do labirinto está na ebriedade, no próprio êxtase, na perda de si e do estado corporal normal (BATAILLE in JACQUES, 2003, p. 86)

Assim, a proposta desse novo encontro era de vivenciar esses lugares mais de perto, parando, se “embriagando”, conversando, com amigos e desconhecidos: interagindo com a realidade já existente. A ideia era sair explorando esses locais, e, de alguma maneira, conectá-los, seja com o deslocamento contínuo do corpo físico pelas ruas que os separam, ou mesmo que momentaneamente, num plano conceitual através das intenções intrínsecas da prática. Interligar o que é vivo com o que está decadente, com as ruas escuras e desertas, através do caminhar coletivo, e ainda, perceber e conhecer o que se esconde por de baixo das luzes apagadas do calçadão, que certamente carrega uma abordagem mais profunda, e quem sabe assim, gerar outras discussões e propostas, com o objetivo de ser contínuo e provocar cada vez mais experiências. Para quebrar os espaços monótonos encontrados, foi sugerido o suporte de sons, lanternas e luzes, ou qualquer outro aparato pertinente, e que dessa vez todos caminhassem juntos formando um grande grupo, intensificando a sensação de segurança para que ninguém se sentisse limitado em interagir com o ambiente. Novamente, essa era apenas a proposta inicial da prática, que tomaria seu rumo verdadeiro no local, no espaço-momento, desenvolvendo-se conforme os acontecidos. O horário de encontro marcado foi às 18:00h nos coretos da Praça Fausto Cardoso, que já havia se tornado o ponto de encontros e debates do grupo. Logo no início da noite, antes mesmo que todos estivessem reunidos, deparamo-nos com o bloco percussivo sergipano “Burundanga” desfilando no meio do asfalto da rua Pacatuba em direção ao Cantinho Cultural, que estaria sendo inaugurado naquela noite, o que só descobrimos por estar lá no momento exato. Acompanhamos


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o cortejo até a porta do local, e retornamos à praça para encontrar os outros, de onde saímos em direção a esses novos flagrantes inesperados de movimento no centro à noite. Passamos por um dos bares localizados no beco dos salões, que conecta o calçadão das ruas Laranjeiras e São Cristóvão, que estava prestes a fechar com apenas um cliente na mesa, à quem nos juntamos, acrescentando mais mesas, recebendo todas as outras pessoas que chegavam, como numa grande confraternização entre conhecidos. Seguimos pelo calçadão, encontrando pontos de venda de alimentos nas esquinas já pouco movimentadas e vendedores ambulantes à beira da Praça General Valadão, onde também fizemos uma parada, ocupando a praça vazia. Continuamos caminhando mais adentro, sempre cantando acompanhado de palmas ou entre conversas afobadas, chegando até o Mercado Municipal, onde acontecia uma festa, inesperada por todos. Finalizamos no bar que durante o horário comercial é um estacionamento, ao lado da Praça Fausto Cardoso, local que também finalizamos as primeiras reuniões, em tentativas extasiadas de conseguir transmitir a adrenalina e a satisfação dos acontecimentos.

FIGURA 12: CALÇADÃO DO CENTRO DE ARACAJU À NOITE. FONTE: Próprio Autor, 2017.


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FIGURA 13: BAR DO BECO DOS SALÕES NO CALÇADÃO DO CENTRO.

FONTE: Próprio Autor, 2017.


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FIGURA 14: PARTICIPANTES DA “ESTÉTICA DA EMBRIAGUEZ” NO CALÇADÃO DO CENTRO DE ARACAJU À NOITE.

FONTE: Próprio Autor, 2017.


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CARTOGRAFIA DA MEMÓRIA Chegou o momento de conhecer o centro de Aracaju a partir das práticas narradas pelos participantes da vivência. São casos que cartografam o que ficou de concreto, as relações estabelecidas entre os participantes e os lugares percorridos resultados das derivas. São explicações que envolvem questões a cerca de uma arquitetura e urbanismo mais humanizados. Foram recolhidos ao total seis relatos que podem ser lidos na íntegra no anexo A. Pedro Queiroz, estudante de arquitetura e urbanismo da Universidade Tiradentes (Unit), relata sobre a sua falta de contato com a cidade, especificamente com o Centro de Aracaju, a partir dos relatos populares de lugar mal habitado e perigoso, que o afastavam do simples ato de caminhar pelo bairro: Desde que moro em Aracaju (há três anos), sempre me foi relatada a mesma história sobre o Centro em horário extracomercial: ruas desertas tomadas pelo tráfico, prostituição e violência. Paralelamente, durante esses anos, recentemente percebi que estava perdendo meu contato direto com a cidade. Fazia todos os meus trajetos de carro durante o dia e à noite, por comodidade e também por certo medo internalizado da crescente violência urbana.

Para ele, praticar a deriva foi importante para desmistificar os conceitos formados sobre o bairro, resgatando sua vontade de vivenciar mais os espaços públicos e estar na cidade. A experiência teve um impacto similar para Gabriela Santana, estudante de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que passou a ver o centro da cidade como um lugar vivo, e a deriva como uma prática potencial para uma exploração urbana contínua: Quando as ruas estão mais vazias e o céu escurece, as luzes das casas surgem e é impossível não andar buscando os edifícios residenciais, que durante o dia passam despercebidos, e imaginar como deve ser morar no centro da cidade. Derivando sozinha no centro, a sensação de medo e insegurança surgia em alguns momentos, mas a curiosidade conseguia controlar muito melhor minhas ações. As experiências da deriva urbana desmistificaram de vez, para mim, a ideia de que o centro «morre» a noite: ele não morre, é vivido de outra forma. E precisa ser ocupado para que se perca a imagem de lugar violento. Só é possível conhecer um lugar explorando-o várias vezes e em diferentes momentos e a deriva é uma ferramenta extremamente instigante para fazer isso.

Em seu depoimento, Gabriela relata sobre suas novas percepções do bairro, como as residências que não podem ser notadas durante o dia agitado, e como essa descoberta atuou no seu imaginário, pondo-se no lugar de um morador da região. Esse sentimento foi despertado não só nos estudantes de arquitetura e urbanismo, como relata Kaique Luan, estudante de Física com habilitação em Astronomia na UFS, que passou a ter um olhar mais atento para o que o circunda na cidade:


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A proposta do «derivas urbanas» me fez ter uma percepção diferente dos lugares onde eu passava, digo, ao longo das idas ao centro, nunca reparei no quanto que o bairro é rico em cultura urbana e pessoas com uma energia contagiante. Fomos num bar de beco onde a energia contagiante da galera explodiu, fora uma das poucas vezes ou se não, a única vez que estive num lugar, onde presenciei tal espírito espontâneo. Fora uma experiência incrível de impacto cultural, conseguia ter uma percepção diferente dos lugares, (...) era uma visão totalmente nova aos meus olhos. (...) hoje consigo ter uma percepção diferente das coisas ao meu redor.

Kaique narra também sobre a espontaneidade dos espaços visitados, um sentimento importante para conceber o lado natural das pessoas e seu modo de se relacionar com os lugares, uma realidade pura e necessária para revisarmos concepções formadas. Essa questão levantada de maneira bastante lúcida e pontual pelo estudante de Relações Internacionais da UFS Thyago Joaquim, que discorre ainda sobre a segregação social que nos colocou nesse status de afastamento com realidades necessárias para nossa formação como cidadão: Participar dessa experiência me fez entrar em contato com a realidade, e, consequentemente desmistificar várias coisas que ainda perduravam em cantos do meu cérebro, também me ajudou as reconstruir certas percepções com a adoção de representações – agora – fidedignas deixando a “fundamentação” de pensamentos que se alimentam do maniqueísmo, da distorção e do ódio para trás. Depois de vinte e um anos vividos na mesma cidade (re)descobri um novo espaço que antes não existia para mim, vivenciei e experimentei sensações e não como um cientista ao estudar um objeto de estudo, mas como uma pessoa no meio de outras pessoas, como parte de um todo cuja unidade foi relegada ao segregacionismo social através dos anos.

A diferença entre o olhar científico e o descompromissado de pessoas abertas a experiências e ao acaso também é relatado no depoimento de Mariane Cardoso, arquiteta e urbanista formada pela UFS, pesquisadora das possibilidades de ressignificação dos espaços residuais na cidade através das manifestações artísticas, que fala sobre as diferentes intenções entre uma visita de campo, recorrente nas disciplinas de projeto de arquitetura e urbanismo, e as experiências urbanas espontâneas, e consequentemente, concebendo a cidade como um ambiente complexo e dinâmico, para ser vivida. (...) diferente do caminhar preconceituoso da visita em campo, onde já direcionamos o olhar para as informações necessárias a serem anotadas na prancheta (...) Derivar era uma completa falta de expectativas, era um estar aberto a todas as sensações do lugar. Estávamos ali para sentir, para aproveitar tudo aquilo que a cidade tivesse a nos oferecer, sem nenhuma pretensão. É nesse sentido que considero a deriva uma atitude política, pois ela ilustra o entendimento de que a cidade não existe apenas para cumprir sua função econômica, a noção de possuir e conectar áreas comerciais, institucionais e habitacionais para possibilitar o fluxo de recursos.


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Essas percepções mais diretas sobre questões urbanas não surgem apenas daqueles que as estudam, mas também, de estudantes de outras áreas, como Thyago, na continuação de seu relato sobre a experiência e sua importância, desmitificando a falsa hegemonia, ou mesmo superioridade, do conhecimento do arquiteto e urbanista sobre os temas, que são, por outro lado, de domínio de todos aqueles que convivem nas cidades, construindo-a cada um à sua maneira, possibilidades e dificuldades. (...) é importante evidenciar a ocupação de espaços denominados como “perigosos” como um ato político que contrarie isso também. Acredito que não seja possível pensar na cidade sem pensar nas pessoas que vivem nelas, é preciso tomar muito cuidado com a construção e o pensar que estão atrelados aos espaços físicos, dificilmente pode-se desassociar um do outro. Também é necessário “colorir” esses espaços acinzentados na nossa mente, não podemos deixar com que eles sejam fadados a essa categorização sem antes buscar conhecer a realidade e a construção histórica desses lugares

Ambos consideram as visitas descompromissadas como uma atitude política, no tocante à ocupação e ressignificação da imagem dos espaços obsoletos, sendo também uma reinvindicação do direito à cidade. A interseção entre o conhecimento de áreas distintas – transdisciplinaridade – é reconhecível também, de maneira empírica, no depoimento de Rafael Amorim, estudante de Jornalismo da UFS, membro fundador do Coletivo Sala de Reboco, adeptos ao jornalismo sensível, que buscam as estórias e narrativas mais genuínas do estado de Sergipe, dando voz e visibilidade aos invisibilizados. Seu discurso traz uma semelhança entre a exploração jornalística e a busca de referências para os arquitetos e urbanistas, que devem estar abertos aos detalhes da sociedade, às necessidades e modo de vida das pessoas, entendendo a fundo o público alvo do seu trabalho. Caminhar pelo Centro e acompanhar a transição das cores, barulhos e movimentos pelas ruas, abriu também caminhos inesperados na leitura que faço da cidade. Na busca por histórias, por vezes, acabo me condicionando aos lugares-comuns. Hábitos da rotina, vícios da profissão, prazos curtos e produções médias. Nesse sentido, a experiência de descobrir uma história é quase a mesma de se descobrir um lugar. Às vezes, você já passou por ele. Em outras, precisa passar. As derivas me fizeram transitar por mim mesmo nesse percurso, num processo onde eu descobria as narrativas e me descobria dentro delas. Era eu, a cidade e o outro, todos elementos fundamentais dentro da prática jornalística sensível que sempre acreditei. Vi as luzes, as fachadas, os prédios e as casinhas resistentes ao vertical das ruas. Dancei com desconhecidos, conversei com desconhecidos, conheci desconhecidos. E, nesse percurso, contestei todos os valores que nos desconhecem e nos desumanizam, distanciando-nos uns dos outros. De quebra, trouxe para casa fotos com os mesmos desconhecidos. A prática me fez enxergar o outro, distinto, cheio de complexidade, distante e, ainda assim, próximo pelo mesmo chão compartilhado e (re)descoberto.


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Rafael fala sobre o condicionamento aos “lugares-comuns”, e a constante desatenção aos detalhes e às outras possibilidades que o cotidiano oferece, o que praticar a deriva conseguiu reverter, proporcionando o contato direto e atencioso a diversas narrativas e realidades. Essa reflexão se relaciona diretamente, por exemplo, à submissão do corpo discente à sala de aula e aos mesmo temas repetitivos debatidos dentro da academia, limitando a abordagem dos estudantes de áreas que deveriam estar conectadas ao máximo com a realidade das pessoas e da cidade. Como arquiteta e urbanista recém-formada, Mariane traz um relatado consistente sobre a diferença entre o que foi praticado na universidade, e o que a deriva lhe acrescentou: Durante os anos na faculdade de arquitetura enxerguei aquela região com todos os estereótipos possíveis que me foram dados em sala de aula, sem saber que perpetuava a falsa ideia de um local unifuncional, vazio e morto durante as noites. Derivar pelo centro no horário noturno me fez mudar, com grande surpresa, a ideia, o discurso e a crítica. Não sei se seria possível afirmar que se conhece um lugar através da deriva (ou de qualquer outro método), mas pelas experiências que tive enquanto estudante de arquitetura, essa foi a tática que mais me aproximou de um território, física e sentimentalmente. Durante a deriva no Centro, conversamos em bancos de praças, vimos as reformas noturnas dos estabelecimentos comerciais, divagamos sobre a vida com as pessoas dos salões de beleza e os trabalhadores cansados, bebemos em estacionamentos que se transformaram em bares, conversamos com ambulantes e dançamos no baile do Mercado Municipal. Definitivamente foi uma noite muito mais viva do que os dias que já vivi no Centro, uma caminhada que me conectou com o lugar, com as pessoas e comigo mesma: uma agente que constrói a cidade ao passo em que a vivencia.

Assim, ao cartografar os sentimentos e questionamentos que afloraram a partir das explorações, revela-se não só o potencial da realização de práticas urbanas, mas também, ao mesmo tempo, a insuficiencia dos métodos pedagógicos cartesianos presentes no curso de arquitetura e urbanismo, que deixam escapar a possibilidade de se esquivar do pensamento engessados e das reinvenções constantes. Para os que participaram, a experiência de estar na cidade acabou sendo transformadora de alguma forma, fazendo-os refletir de maneira pessoal e crítica, através desse olhar para o desconhecido, e assim, para si mesmo e para suas crenças sobre o mundo. São exemplos esperançosos para aqueles que sentem a necessidade de subverter sua situação acadêmica passiva e sedentária em conhecimento e empatia social, visando uma abordagem mais humanizada da prática arquitetônica. Espera-se que seja um estímulo positivo para que mais pessoas se entreguem paulatinamente às experiências diversas, e então, quem sabe, resgatar sua autonomia.


Laranjeiras, 2013 | Desconhecido


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PERCURSO CONTINGENTE

O desdobramento das pistas levantadas até aqui aponta para a contingência do conhecimento e da vida, fato que impede a finalização deste trabalho com uma conclusão fechada, ao incorporar a experimentação e a vivência como objetos da arquitetura e do urbanismo. Um percurso com origem incerta, que se modifica rizomaticamente através do contato constante, objetivo ou casual, com cada nova experiência, leitura ou debate relacionados à filosofia, artes, antropologia, educação, arquitetura ou urbanismo. Uma pesquisa que não termina, mas que se desenvolve junto ao fluxo inconstante da vida. Assim, nesse devir da arquitetura, trago aqui alguns questionamentos para pensarmos, juntos, a questão da educação contemporânea em arquitetura e urbanismo, a partir de acontecimentos recentes e das pistas apresentadas. Para quê e para quem o ensino de arquitetura e urbanismo tem se desenvolvido? Tratar a educação como uma preparação para o mercado de trabalho, ou mesmo, como a própria mercadoria, parece ter sido um dos caminhos mais danosos tomados ao longo de nossa história. Criou-se um sistema, embasado num pensamento positivista, do progresso pelo progresso financeiro, que pouco colabora para uma reflexão pessoal acerca das atribuições profissionais e do comprometimento com o desenvolvimento social, mantido através das metodologias educacionais que afastam os estudantes de realidades coexistentes. Considerando a diversidade de seus repertórios e a sua atuação numa sociedade multicultural e em movimento, como estes, de dentro de suas bolhas acadêmicas, enxergariam suas próprias possibilidades e o outro a sua volta? Um ambiente de aprendizado monótono é suficiente? A passividade educacional colabora para que os estudantes apenas concebam e reproduzam aquilo que lhes é ensinado, caracterizando uma alienação, bastante criticada pelos artistas caminhantes, a exemplo dos situacionistas, em todas as esferas do conhecimento, acreditando na atitude criativa e na vivência urbana como um viés para resgatar a autonomia crítica das pessoas. Na 11ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, que acontece durante o mês de setembro de 2017, o arquiteto alemão Martin Kohler, com quem tive a


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oportunidade de trabalhar em conjunto no projeto Frontier Zones de exploração urbana organizado pelo grupo Nomads da USP, vem realizando a prática “Grande Caminhada Urbana ao redor de São Paulo” com 120 quilômetros de extensão, percorrendo ruas e levantando reflexões sobre a produção cultural e formas de construção coletiva da cidade. Qual o poder de uma atmosfera aberta e diversificada, que permite a troca de conhecimento e conceitos tanto entre as pessoas, quanto com a comunidade? Estar em sala de aula é como abdicar de vivências para que os estudantes possam direcionar seus interesses através de suas particularidades. Não estaríamos limitando nossas interpretações, e assim, a evolução constante do curso? Qual a colaboração da subjetividade dentro da própria grade curricular e das pesquisas científicas? Há um temor pela experimentação e pela falha, ou pelo avanço da diversidade? Paulatinamente o pensamento e a construção social vêm sendo entendidos como um rizoma, em que todas as suas ramificações possuem uma essência, um motivo e uma colaboração, existindo em si. Devido a nossa condição plural, a racionalização, que não segue o mesmo caminho, atinge um momento em que não se consegue mais classificar e ordenar todas as coisas, as quais tendem muitas vezes para a arte como busca pela (re)existência. Como vimos, os artistas tropicalistas sofreram dessa repressão incompreensível pela maneira de se expressar e experimentar a vida, uma lição que a década de 1960 da ditadura militar ainda nos impede de libertar, ao passo em que presenciamos, também em setembro de 2017, a interrupção guiada pela intolerância da exposição “Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira” no espaço do Santander Cultural em Porto Alegre. Sendo assim, muitas realidades ainda vêm sendo ignoradas, invisibilizadas e existindo sob forma de fantasmas no Brasil. Ainda podemos considerar verdades e acertos? Toda experiência, mesmo que intuitiva, não estaria relacionada a construção pessoal, de quem somos e que deva ser respeitada? Como ensinar um arquiteto-urbanista a ser arquiteto-urbanista, sob essa condição explicitada? Existe um papel a ser cumprido? Facilitar a interação do ser com o espaço¬-tempo pode ser um conceito amplamente aplicado. O arquiteto que sabe lidar com a complexidade, abraçando e entendendo as particularidades que se envolvem ao contexto do problema, talvez tenda a conceber narrativas mais pertinentes à vida em sociedade com soluções cada vez mais humanas, buscando incentivar a perpetuação da troca de experiências positivas com o meio e entre as pessoas. Essa é uma ideia já levantada por Paola Berenstein Jacques em Estética da Ginga, a primeira leitura, lá em 2014 já sugerida por Fernando Antônio, que me trouxe a esses questionamentos, no qual a autora sugere a faceta de um profissional renovado: o arquiteto-urbano, “menos comprometido com a forma perfeita e mais aberto para a experimentação da cidade, do tempo-espaço, da vida vivida, do movimento e da ação” (JACQUES, 2003, p. 4). O arquiteto-urbano atuaria a partir da apreensão da cidade em primeira pessoa através de experiências sucessivas de interação e intervenção com o ambiente urbano, com o cotidiano das pessoas, e em constante colaboração com a diversidade do conhecimento – transdisciplinaridade –, conectando saberes que se relacionam para evolução harmônica da sociedade.


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As soluções arquiteto-urbanas partiriam do princípio intuitivo mais óbvio que é o de estar no espaço e no tempo. Vivenciar a cidade em primeira pessoa, onde podemos ver, escutar e sentir a experiência de alteridade com o próprio corpo. O que seria, afinal, uma escola de arquitetosurbanos?

...


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O estrangeiro, de Charles Baudelaire: – Diga-me, homem enigmático, a quem você mais ama? Seu pai, sua mãe, sua irmã ou seu irmão? – Nem pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão eu tenho. – Amigos? – O senhor se vale de uma palavra cujo sentido até hoje me é desconhecido. – Sua pátria? – Não sei em que latitude ela se situaria. – A beleza? – De boa vontade eu a amava, deusa e imortal. – O ouro? – Eu o odeio tanto quanto o senhor odeia Deus. – Estrangeiro fora do comum! Afinal, você não gosta de nada? – Gosto das nuvens... das nuvens que passam longe... Das nuvens inacreditáveis!


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REFERÊNCIAS CARDOZO, G. L. O pós-estruturalismo e suas influências nas práticas educacionais: a pesquisa, o currículo e a “desconstrução” – Pensares em Revista, São Gonçalo-RJ, n. 4, pág. 118 – 134, jan./jul. 2014; CARERI, F. Walkscapes: o caminhar como prática estética / Francesco Careri; prefácio Paola Berenstein Jacques; [tradução Frederico Bonaldo] – I. ed. – São Paulo: Editora G. Gili, 2013; CHÂTELET, F. Uma história da razão: entrevistas com Émile Noel / François Châtelet – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994; DELEUZE, G. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 1 / Gilles Deleuze, Félix Guattari; Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. — Rio de janeiro: Ed. 34, 1995 (Coleção TRANS); FREIRE, P. Alfabetização de adultos e conscientização. In Educação e Mudança. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1979; HADDOCK-LOBO, R. Derrida e o labirinto de inscrições / Rafael Haddock-Lobo; Porto Alegre, RS: Zouk, 2008; JACQUES, P. B. Estética da Ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica / Paola Berenstein Jacques. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003 (3ª edição); JACQUES, P. B. Elogio aos Errantes / Paola Berenstein Jacques. – Salvador: EDUFBA, 2012; LARSON, M.; Formação e prática na arquitetura do século XXI: uma perspectiva sociológica. Lara, Fernando and Marques, Sonia (editors). Quid Novi? Architectural Education Dilemnas in the 21st Century / Lara & Marques – Austin, nhamerica press, 2015; MATOS, J. A Filosofia na Crise da Modernidade – SYMPOSIUM, Volume 34, Número 1 – Janeiro/ Junho 1992; MONTANER, J. M. Do diagrama às experiências, rumo a uma arquitetura de ação / Josep Maria Montaner; tradução Maria Luisa de Abreu Lima Paz. – São Paulo: Gustavo Gili, 2017; NIETZSCHE, F. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é / Friedrich Wilhelm Nietzsche; tradução, organização e notas de Marcelo Backers. – Porto Alegre: L&PM, 2012; PANET, A.; A que será que se destina: O ensino de projeto no Brasil. Lara, Fernando and Marques, Sonia (editors). Quid Novi? Architectural Education Dilemnas in the 21st Century / Lara & Marques – Austin, nhamerica press, 2015; SALVATORI, E. O ensino de projeto, digo, de arquitetura. Lara, Fernando and Marques, Sonia (editors). Quid Novi? Architectural Education Dilemnas in the 21st Century / Lara & Marques – Austin, nhamerica press, 2015; VISCONTI, J. C. Novas Derivas / Jacopo Criveli Visconti. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.


APÊNDICE A: RELATO DO AUTOR SOBRE A PRÁTICA DA DERIVA URBANA NO CENTRO DE ARACAJU

DERIVAS URBANAS CENTRO DE ARACAJU

31 DE MARÇO, 2017


PRAÇA FAUSTO CARDOSO ARACAJU, 31/03/2017 APROXIMADAMENTE 16:45H O VÁCUA CHEIO DA ESPERA “Cadê a ponte?” “aqui a ponte” “não, isso é o ancoradouro, quero saber da ponte, aquela lá” “é aqui! A ponte do Imperador!” “não, essa eu já conheço, quero saber da ponte de verdade” Contexto: Sentando em um dos bancos exatamente em frente à entrada de um dos coretos, na grande abertura que leva até à estátua de Fausto Cardoso que diz “o povo (me levando para ler o restante) vou morrer defendendo a honra da minha terra”. O sol começava a se por mas ainda brilhava em frestas na praça e em meu rosto Um cara de moto com uma pipoqueira acoplada na garupa passa cortando a praça, o caminho Outro pipoqueiro em uma das esquinas da praça vai embora levando toda a sua família. Sua filha, provavelmente, de uns oito anos, cabelos longos, shorts curto e sandália gladiadora Um homem de camisa vermelha está sentado em um dos bancos próximo às lixeiras “recicláveis” desde que cheguei (há pouco tempo). A bicicleta ao lado talvez seja sua Um pacote vazio de bono voa pela praça guiado por um vento repentino O vento, um senhor com uma pasta de baixo do braço, e o pacote de bono (e a minha mão) eram as únicas coisas que se moviam Homem falando ao celular cruza a praça No perímetro da praça os “manobristas” ajudam os carros para ganhar umas moedas Um cara com camisa semiaberta caminha gingando segurando uma revista atravessando a praça na diagonal Pela visão periférica vejo coisas se mover ao meu redor, não capto tudo Duas mulheres em passos lentos Um bicicleta com uma cadeirinha na garupa mas que não carrega ninguém Me viro para trás Um bicicleta com uma cadeirinha na garupa mas que não carrega ninguém Me viro para trás


Carros parados no sinal, motos à frente Seis homens, metade sentados, outra metade em pé ao redor da mesa, aparentemente jogando dominó, ou baralho, por estarem atrás do muro da banca fugindo do vento Algumas mulheres estão sentadas ao meu lado, mas que não vejo nada além de suas pernas. Uma palmeira imperial nos separa Mais duas mulheres andando em dupla Uma menina, cabelos curtos, farda de trabalho, senta no banco de costas pro meu, bem próximo. Cruza as pernas, segura um copo d’água pela metade Bandeiras de Sergipe, Brasil e Mercosul esvoaçam em frente à Assembleia Quatro pessoas e um ciclista cruzam a praça Três homens se aproximam da mesa de xadrez e um deles caça duas pedras no chão e coloca sobre a mesa Um deles vai embora, começam a jogar baralho Volto meu corpo para frente Alguém troca mensagens no celular dentro do coreto Dois homens imóveis sentados numa lanchonete da praça parecem se olhar e conversar, cotovelos na mesa Uma criança é colocada aos pés de uma estátua e é fotografada A criança agora é fotografada no coreto Não sei que horas são Muita gente atravessando a praça Muita gente atravessando a praça Um senhor está sentado no mesmo lugar, do mesmo jeito, desde que cheguei (há algum tempo). Vejo ele através de uma estátua. A estátua O homem de camisa vermelha não está mais lá. A bicicleta também não A menina atrás de mim se levanta e vai embora Alguém chega.


17:30 AS LOJAS DO CENTRO QUE SE FECHAM E QUE ME GUIAM PARA O QUE SOBRA, OU PARA O QUE COMEÇA




Supero a câmera Homem sentado segurando bebê Carro de lixo, envolto de lixo, no meio do calçadão que começa a se esvaziar Vários sons ligados ao mesmo tempo tocando pop em lojas diferentes Lojas abertas, lanchonetes vazias Obstáculos no caminhar. Pedras Limite do calçadão Carros, penumbra, pessoas mais apressadas Primeira loja fechando, ao lado de uma já fechada Rua pouco movimentada, a não ser por um bebê dançando até o chão, balançando corrente no pescoço, pulseiras e anéis Lojas vazias, vendedores entediados Vendedores conversam concentrados uns com os outros, encerram o ciclo, falam da vida Vendas de frutas nas esquinas, rodoviária velha se aproxima Três pessoas empurram um carrinho de macaxeira para fora da pista Caminhos incertos, paro e olho ao redor Atravesso a faixa de pedestre, ônibus que cruzam e cortam o caminho me levam segurando pela mão Coorpertalse Lagarto. Não tenho dinheiro Um terminal na frente, no meio, no fundo, e nas laterais. Possibilidades e itinerários Feira Feirantes fora da lona guardam seus produtos, do carrinho de mão Nas bancas, as frutas ainda são frescas Encontro uma brecha entre uma e outra e volto Sento na porta de uma farmácia. Caminhos diversos


Música brega em harmonia 704 Osvaldo Aranha – Conj Jardins Continuo Três pessoas espalham cadeiras e mesas na rua, num espaço cercado por barracas, churrasquinho e cerveja Ao redor, não mais lojas: calçadas são estantes Barata no pé de uma mulher Lojas na rua que liga a rua da frente à rodoviária fechadas. Escuridão, continuo Praça General Valadão vazia, calçadas cheias capinhas de celulares e quem as compre De volta ao calçadão Todos os bancos agora estão ocupados, muita gente caminhando, muitas fardas de comerciantes Lojas menores fechadas, maiores abertas O piso tátil me chama atenção


PISO TÁTIL OBSTÁCULOS QUE ME IMPEDEM DE SEGUIR AONDE ELE VAI ME LEVAR Poste Senhor Uma conversa Outro poste Poste Cachorro Carrinho de macaxeira Encontro: Juliana Caixotes e poste Cruzo a conversa de um casal Um senhor e um poste Outro poste Senhor num carrinho de vendas Fim do calçadão e do piso tátil. Faixa de pedestre a frente, motoqueiro me manda seguir Atravesso Reencontro o piso tátil na Fausto Cardoso Continuo Mulher carregando sacolas Carrinho de lixo Piso me leva à direita, ao fim do caminho, outro homem segue na minha direção, também caminhando sobre o piso tátil Aproximação Ele desvia, eu continuo Piso me leva à direita mais um vez Vejo um bar à esquerda, quero terminar lá, mas ainda não acabou Homem volta a caminhar, agora à minha frente Para Encontro outra faixa de pedestre Supero o piso tátil


Atravesso a avenida, e continuo pelas quadras do lado de lá da praça. As lojas aparentavam estar fechadas há um bom tempo, a iluminação era pouca, e o único barulho eram os meus passos calmos. Na esquina, observo três caras, ao redor de um isopor levado por um carrinho, bebendo cerveja e conversando alto. Já que era em cerveja que eu queria terminar, porque não começar ali, então, onde o acaso me levou. Perguntei se ainda estavam vendendo, e se a cerveja estava gelada. Me garantiram ser a melhor do centro, e com o dorso da mão me trouxeram uma pra avaliar. Gelada. Gelada de um dia inteiro mergulhada sob o gelo. Questionei o que faziam ali àquela hora, sem ninguém por perto, e se aquele era o ponto de vendas. “Ah, não! Esse aqui, esse aqui é o bar andante, cada hora tá em um lugar diferente aí pelo centro”. Pois bem, comprei minha cerveja de 3,00 reais do bar andante, brindamos, gargalhamos, e continuamos nossas andanças, cada um para uma direção sem rumo, esperando que alguém nos para em outras esquinas. Caminhar segurando uma cerveja na mão me deu mais confiança. Mais à frente encontro Juliana, mais uma vez, agora com Elisa. Minha missão havia acabado, e comecei a segui-las, até, passos depois, encontrarmos Luli, que em quarteto cortamos o calçadão agora já bem vazio, em busca dos becos e do que restou. Ou do que tomava vida. Salões funcionando a todo vapor, e as mesas dos bares começam a surgir em qualquer lugar. Algumas lojas ainda estão vendendo, porém com suas portas semiabertas. Nos separamos em duplas, mas nos encontramos mais uma vez. Retornamos à Praça Fausto Cardoso onde os grupos se reencontravam aos montes, trocando experiências, relatando o que se passou sob os olhos, e que ficou registrado, primordialmente, na mente. Questionamentos, possibilidades, vozes que tinham muito pra dizer. Do banco da praça, ao coreto, à mesa do bar dentro de um estacionamento às margens da Fausto Cardoso. Vislumbres de um futuro em que diremos que saíamos de casa para perambular pelas ruas, sem rumo, sem pressa, sem fins. Guiados pelo desejo de estar e viver a nossa cidade. Vivemos.

Caio César Carol Déda Danilo Pereira Elisa Lemos Gabriela Santana Heitor Gabriel Juliana Teixera Laise Olivera Luli Morante Mariane Cardoso Pedro Queiroz Rafael Amorim Yolanda Bomfim



ANEXO A: DEPOIMENTOS NA ÍNTEGRA DOS PARTICIPANTES DAS EXPERIÊNCIAS NO CENTRO DE ARACAJU Depoimento I - Pedro Queiroz Derivas Urbanas - Centro de Aracaju Desde que moro em Aracaju (há três anos), sempre me foi relatada a mesma história sobre o Centro em horário extracomercial: ruas desertas tomadas pelo tráfico, prostituição e violência. Paralelamente, durante esses anos, recentemente percebi que estava perdendo meu contato direto com a cidade. Fazia todos os meus trajetos de carro durante o dia e à noite, por comodidade e também por certo medo internalizado da crescente violência urbana. A experiência da deriva foi muito importante tanto para desmistificar a extrema insegurança que me foi alertada e para devolver a vontade de apropriação da cidade. Encontramos pessoas caminhando, policiais, alguns bares em funcionamento, pessoas buscando entretenimento, ou seja, pontos vivos no Centro. Terminamos a noite no Mercado Antônio Franco, onde acontecia um pequeno show, com banda ao vivo e muita gente dançando. A princípio, imaginei que a população local se sentiria invadida com a nossa presença, mas aconteceu exatamente o contrário, fomos muito bem recebidos, interagimos com todos e recebemos convite para retornar mais vezes.

Depoimento II – Gabriela Santana “deriva n1 fim de tarde de uma sexta feira A intenção desde a primeira reunião era que a deriva não tivesse um objetivo além de caminhar e observar. Nada de pensar em intervenção antes de vivenciar o lugar e de saber se ele realmente precisava de intervenção. O centro foi escolhido para ser o primeiro lugar por assumir diferentes perfis durante um único dia. O horário escolhido, 17:00 horas, foi com a intenção de acompanhar o fechamento das lojas e conhecer esse espaço sem o movimento comum do horário comercial. E foi diferente! O centro se torna um bairro silencioso, os largos calçadões que de dia são palco de passos apressados e esbarrões agora abrem espaço para circulação de mercadorias, as obras e reformas podem finalmente acontecer sem transtornos. O que chama atenção é a pressa dos trabalhadores e consumidores para irem embora do bairro nesse horário, os pontos de ônibus lotam e os olhares para quem caminha com paciência são de estranheza. Quando as ruas estão mais vazias e o céu escurece, as luzes das casas surgem e é impossível não andar buscando os edifícios residenciais, que durante o dia passam despercebidos, e imaginar como deve ser morar no centro da cidade. Derivando sozinha no centro, a sensação de medo e insegurança surgia em alguns momentos, mas a curiosidade conseguia controlar muito melhor minhas ações.


deriva n2 de bar em bar do centro numa noite de sexta feira A segunda deriva no centro foi depois do comércio encerrar as atividades. A ideia era encontrar os bares do bairro e vendedores ambulantes que continuavam por lá mesmo durante a noite. Encontramos vidas e histórias pulsando em pequenos botecos ao longo do caminho. A surpresa da noite foi a movimentação em frente ao mercado da cidade, onde os moradores de bairros próximos e do centro aproveitavam a noite de sexta-feira para beber e dançar. As experiências da deriva urbana desmistificaram de vez, para mim, a ideia de que o centro “morre” a noite: ele não morre, é vivido de outra forma. E precisa ser ocupado para que se perca a imagem de lugar violento. Só é possível conhecer um lugar explorando-o várias vezes e em diferentes momentos e a deriva é uma ferramenta extremamente instigante para fazer isso.”

Depoimento III – Kaique Luan Varjão Foi numa quinta-feira, março de 2017. Fui convidado para um “rolê” cujo nome fora “derivas urbanas”. Cheguei no ponto de encontro do evento, onde encontrei alguns amigos e logo senti o espírito receptivo e mágico que teria ao longo da noite. O evento tivera a proposta de andar pelo bairro (centro) e assim, ficar completamente à derivas do lugar, no momento, sentia uma leveza ao qual surgira um conforto ao quadrado do conforto já empolgante que estava logo antes de sair de casa, por estar no meio de pessoas que sentiam o mesmo sentimento, fui logo me jogando ao espírito. A proposta do “derivas urbanas” me fez ter uma percepção diferente dos lugares onde eu passava, digo, ao longo das idas ao centro, nunca reparei no quanto que o bairro é rico em cultura urbana e pessoas com uma energia contagiante. Fomos num bar de beco onde a energia contagiante da galera explodiu, fora uma das poucas vezes ou se não, a única vez que estive num lugar, onde presenciei tal espírito espontâneo; todo mundo acabou sendo contagiado pela música do lugar, não há palavras para descrever o quanto arrepiante foram os minutos de música e a “galera” dançando ao ritmo de todos os estilos que ali tocavam. Fora uma experiência incrível de impacto cultural, conseguia ter uma percepção diferente dos lugares, digo, o debate que tínhamos à cada percepção de calçada mau estruturada, ou uma casa incrivel que encontrávamos ao longo do caminho, era uma visão totalmente nova aos meus olhos. Estive em mais dois derivas pós este, o espirito do “rolê” ao qual presenciei desde o primeiro, continuou e graças a este projeto, hoje consigo ter uma percepção diferente das coisas ao meu redor.


Depoimento IV – Thyago Joaquim Relato/////Derivas Urbanas

Ninguém é imune ao pré-julgamento, ainda que não seja vocalizado, mas só pensado é impossível que novas experiências não causem no mínimo um estranhamento e façam surgir alguns questionamentos dentro de nós mesmos ao entrarmos em contato com algo que a princípio não temos certa compreensão. O pensamento de ir ao centro da cidade de Aracaju à noite para participar de algo que não se mostrava de forma tão explícita pra mim foi algo que me causou muita inquietação e indecisão: por um lado, havia uma extrema curiosidade de participar de algo que pudesse ser interessante, por outro, havia o medo tanto da experiência e das pessoas em si, como o do local e o turno escolhido: o centro, à noite. O Centro é bastante frequentado da manhã ao fim da tarde e geralmente as pessoas se deslocam até lá em busca de coisas bem específicas como o comércio pelas mais variadas lojas ou para um passeio turístico pelo Mercado Municipal, por exemplo. Ir até lá à noite não é algo que as pessoas costumam fazer a não ser pra frequentar algumas adjacências específicas em eventos culturais específicos; a maioria das pessoas ao imaginar uma pessoa que frequenta o centro da cidade à noite não tem uma das construções mais positivas: estereótipos negativos surgiriam com facilidade no imaginário popular. Na minha percepção, frequentar o Centro no período noturno era inconcebível, era como se ao anoitecer aquela parte da cidade se acinzentasse e não pudesse ser acessada por mim e isso se devia principalmente as questões de segurança, mas também por causa da construção de uma série de pré-conceitos que foram construídos ao longo da minha formação. Participar dessa experiência me fez entrar em contato com a realidade, e, consequentemente desmistificar várias coisas que ainda perduravam em cantos do meu cérebro, também me ajudou as reconstruir certas percepções com a adoção de representações – agora – fidedignas deixando a “fundamentação” de pensamentos que se alimentam do maniqueísmo, da distorção e do ódio para trás. Depois de vinte e um anos vividos na mesma cidade (re)descobri um novo espaço que antes não existia para mim, vivenciei e experimentei sensações e não como um cientista ao estudar um objeto de estudo, mas como uma pessoa no meio de outras pessoas, como parte de um todo cuja unidade foi relegada ao segregacionismo social através dos anos. Eu me diverti como não havia me divertido em muito tempo e apesar de todo o receio que carregava comigo eu não tive nenhum problema, claro que há acontecimentos que são circunstanciais e dependem de uma série de variáveis, mas é importante evidenciar a ocupação de espaços denominados como “perigosos” como um ato político que contrarie isso também. Acredito que não seja possível pensar na cidade sem pensar nas pessoas que vivem nelas, é preciso tomar muito cuidado com a construção e o pensar que estão atrelados aos espaços físicos, dificilmente pode-se desassociar um do outro. Também é necessário “colorir” esses espaços acinzentados na nossa mente, não podemos deixar com que eles sejam fadados a essa categorização sem antes buscar conhecer a realidade e a construção histórica desses lugares (qual a história desse local? questões de segurança existem, mas em que contexto elas surgiram? onde estão as políticas públicas? a ação policial é realmente legítima em alguns casos?).


Depoimento V – Mariane Cardoso A deriva e eu (Centro de Aracaju) Minha participação na primeira deriva no Centro de Aracaju foi uma experiência transformadora. Durante os anos na faculdade de arquitetura enxerguei aquela região com todos os estereótipos possíveis que me foram dados em sala de aula, sem saber que perpetuava a falsa ideia de um local unifuncional, vazio e morto durante as noites. Derivar pelo centro no horário noturno me fez mudar, com grande surpresa, a ideia, o discurso e a crítica. Aparentemente, uma atitude tão simples quanto caminhar transformou minha visão de muitas maneiras, mas esse caminhar era diferente das andanças desatentas que fazíamos no dia-a-dia na cidade, era diferente também do caminhar guiado que aponta os pontos turísticos a um visitante, diferente do caminhar preconceituoso da visita em campo, onde já direcionamos o olhar para as informações necessárias a serem anotadas na prancheta. Derivar, não. Derivar era uma completa falta de expectativas, era um estar aberto a todas as sensações do lugar. Estávamos ali para sentir, para aproveitar tudo aquilo que a cidade tivesse a nos oferecer, sem nenhuma pretensão. É nesse sentido que considero a deriva uma atitude política, pois ela ilustra o entendimento de que a cidade não existe apenas para cumprir sua função econômica, a noção de possuir e conectar áreas comerciais, institucionais e habitacionais para possibilitar o fluxo de recursos. Derivar é um comportamento que vai na contramão da lógica do capital, é um convite para desperdiçar o tempo, para ir a algum lugar com a finalidade de fazer nada: nem comprar, nem estudar, nem trabalhar, nem visitar, nem habitar. Ao mesmo tempo, a sensação de vazio abre a possibilidade de um universo gigantesco de usos da cidade e do espaço público onde geralmente não nos colocamos, por estarmos ocupados em habitar a cidade de modo funcionalista. Falta o acaso, a desconstrução do automático, essa liberdade de ser quem a gente é quando não existe a necessidade de fazer algo. Não sei se seria possível afirmar que se conhece um lugar através da deriva (ou de qualquer outro método), mas pelas experiências que tive enquanto estudante de arquitetura, essa foi a tática que mais me aproximou de um território, física e sentimentalmente. Durante a deriva no Centro, conversamos em bancos de praças, vimos as reformas noturnas dos estabelecimentos comerciais, divagamos sobre a vida com as pessoas dos salões de beleza e os trabalhadores cansados, bebemos em estacionamentos que se transformaram em bares, conversamos com ambulantes e dançamos no baile do Mercado Municipal. Definitivamente foi uma noite muito mais viva do que os dias que já vivi no Centro, uma caminhada que me conectou com o lugar, com as pessoas e comigo mesma: uma agente que constrói a cidade ao passo em que a vivencia.


Depoimento VI – Rafael Amorim Os chãos, os olhos e outros De que forma a prática das Derivas Urbanas constituem novas leituras nas rotinas jornalísticas, construindo narrativas humanizadas responsáveis, nesse percurso, por humanizar. Toda história começa em algum ponto. O início, delimitado pelos prólogos e introduções, é guiado por um fator que os antecede: o desconhecido. A história do próprio jornalismo é marcada por isso. Existe o fato, o contexto do fato e o motivo de registrá-lo. Primeiro, partimos do que não sabemos. Depois, pensamos de que forma o não saber se constitui em nossa prática diária – cheia de rotinas, processos e métodos. Se o desconhecido delimita nosso ponto de partida, o jornalismo encontra na verdade, o ponto de chegada. Contamos histórias que são guiadas pelo valor imprescindível de serem reais. Realidade e verdade, por outro lado, estão longe de ter definições absolutas. Aqui, é preciso elencar duas constatações distintas: a realidade parte de onde nossos pés estão fincados, a verdade, de onde nossos olhos alcançam quando os fincamos. A matemática simples, entretanto, não resolve os problemas que surgem de sua aplicabilidade. Os diversos processos de produção que constituem nosso sistema econômico também interferem na construção dessas narrativas. Os salários delimitam o tempo. O tempo, por sua vez, determina os prazos. O diário se torna o urgente e, por descuido ou inevitabilidade, o contar se torna mecânico. Nesse processo, nós, os responsáveis por isso, também mecanizamos. A importância de fugir desse ciclo vicioso que, por vezes, torna superficial nossa leitura do mundo, encontra nas derivas urbanas um ponto de escoamento. Primeiro, pela despretensão: caminhar por lugares desconhecidos sem a necessidade de retirar deles alguma coisa. Conhecer, e pelo próprio desconhecimento, encontrar o novo que reside nesses espaços. Sem roteiros ou preconceitos, o novo se constitui no diferente. E é o diferente o desconhecido. Contá-lo, longe das pressões ou exigências de mercado, torna-se casual, embora permaneça importante. É o ponto de partida – o desconhecido – proporcionado pela deriva que nos mostra a necessidade da descoberta ou, reconhecendo as construções sociais que nos limita, do desconforto diante do novo. O choque que surge do contato nos leva a outro ponto de análise: o real. Nossos contextos e convívios, guiados por uma série de fatores sociais, culturais e econômicos, também nos dividem em gêneros, sexualidades, classes e raças. O confronto entre esses determinantes também encontram nas derivas urbanas, propósito. Somos diferentes e, o caminhar por essa diferença nos conecta, desvincula nossos preconceitos – pelo contato com o objeto direto deles – e nos permite enxergar o real que parte de outros lugares e visões. As derivas nos mostram que existem realidades diversas e o reconhecimento do plural, na construção das narrativas jornalísticas, é tão fundamental para fundamentá-las.


Somos muitos e, separados por muitos motivos, conhecemo-nos muito pouco. O contato muda isso e o exercício, gerado pelo caminhar e o descobrir, também nos aproxima – atribuindo outros valores que nos mostram que além de profissionais, somos humanos, pressuposto máximo de identificação. A descoberta nos leva à outra constatação: o jornalismo precisa ser humano. E, a partir disso, humanizar. A informação, desde sua construção, precisa visar o que existe de humano em nós e no outro – coisas que, a partir das derivas, tornam-se nítidas: existem outros mundos, repletos de outras pessoas que, embora distintas, também são semelhantes. Adelmo Genro Filho, jornalista e teórico na área, na busca precisa por uma prática marxista no jornalismo, definiu esse reconhecimento em três esferas: o singular, marcado pelo que há de único em cada um de nós; o particular, marcado pelos contextos que nos aproximam; e, por fim, o universal, marcado pela conclusão de que somos todos humanos – e é isso que nos aproxima. Entender o singular, o particular e o universal nos remete a necessidade de sair do chão que delimita nosso olhar único. Encontrar esses contextos é fruto da busca por novos caminhos, percursos diferentes e diversos locais de partida. A chegada, embora permaneça no mesmo ponto, é definida por outros determinantes. A verdade ainda está lá, mas ela é produto de outras milhares de verdades, construídas historicamente – e, por que não, territorialmente? – dentro de realidades que nossos olhos não alcançam. Por isso a necessidade de movimentar nossos pés. Fincados, nossa visão é curta. É o movimento que torna dinâmica a existência. Nós, jornalistas e contadores de histórias, na busca pela verdade que as legitimam, precisamos existir em diferentes esferas. As derivas urbanas propiciam isso: existir despretensiosamente e, diante das realidades encontradas pelo caminho, registrar propositalmente outras existências.



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