Africanidades Brasileiras e Educação

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Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola Coordenação editorial Rosa Helena Mendonça Diagramação e editoração Norma Cury Capa Daniel Barroca Preparação e revisão: Magda Frediani Martins Revisão Final Milena Campos Eich Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Africanidades brasileiras e educação [livro eletrônico] : Salto para o Futuro / organização Azoilda Loretto Trindade. Rio de Janeiro : ACERP ; Brasília : TV Escola, 2013. 1,58 Mb ; PDF

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Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-60792-06-1 1. África - História 2. Afro-brasileiros - Brasil 3. Diversidade cultural 4. Educação - Brasil 5. Multiculturalismo 6. Preconceitos 7. Professores - Formação 8. Programa Salto para o Futuro (TV Escola) I. Trindade, Azoilda Loretto. 13-11695.

CDD-370.117

Índices para catálogo sistemático: 1. Afro-brasileiros e africanos : Diversidade : Educação 370.117 Todos os direitos desta edição reservados à Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto (ACERP) e à TV Escola (MEC) Reprodução de textos permitida para fins educativos e desde que citada a fonte. E-mail: salto@mec.gov.br Rua da Relação, 18, 4º andar CEP.: 20231-110 – Rio de janeiro (RJ) 2013


Presidência da República Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica

AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO Salto para o Futuro 3

Organização Azoilda Loretto da Trindade

ACERP TV Escola/MEC Rio de Janeiro/ Brasília 2013


AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO Sumário Apresentação ............................................................................................................ 8 Introdução ...............................................................................................................10 Capítulo 1 – Abordagens gerais sobre multiculturalismo e diversidade cultural.................................................................................................................18 I. Multiculturalismo ou de como viver junto...........................................................21 Mary Del Priore II. Por um multiculturalismo democrático ......................................................... ...28 Sueli Carneiro III. Pluralidade e diversidade .................................................................................. 33 Carla Ramos IV. Saberes culturais e educação do futuro ............................................................. 39 Edgard de Assis Carvalho V. Redes de convivência e de enfrentamento das desigualdades............................. 47 Elizeu Clementino de Souza VI. Diversidade e currículo ..................................................................................... 55 Nilma Lino Gomes VII. Reinventando a roda: experiências multiculturais de uma educação para todos ....................................................................................................................... 58 Azoilda Loretto da Trindade Capítulo 2 – AFRICANIDADES................................................................................... 64


A. Aspectos gerais I. Africanidades, afrodescendências e educação..................................................... 68 Henrique Cunha Júnior II. Humilhação, encorajamento e construção da personalidade............................. 80 Azoilda Loretto da Trindade III. A lei n. 10.639/2003 altera a LDB e o olhar sobre a presença dos negros no Brasil e transforma a educação escolar............................................................................ 86 Bel Santos IV. África viva e transcendente! .............................................................................. 92 Narcimária Correia do Patrocínio Luz V. Diversidade étnico-racial no currículo escolar do ensino fundamental ............ 101 Véra Neusa Lopes VI. O legado africano e a formação docente .......................................................... 108 Marise de Santana VII. As relações étnico-raciais, a cultura afro-brasileira e o projeto político-pedagógico................................................................................................ 119 Lauro Cornélio da Rocha B. EDUCAÇÃO INFANTIL I. Valores civilizatórios afro-brasileiros na educação infantil................................ 131 Azoilda Loretto da Trindade II. As relações étnico-raciais, história e cultura afro-brasileiras na educação infantil ................................................................................................................... 139 Regina Conceição III. Tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras e a criança afro-brasileira (uma reflexão)........................................................................................................ 144 Azoilda Loretto da Trindade

5


C. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA I. Os quilombos e a educação ................................................................................ 153 Maria de Lourdes Siqueira II - Quilombo: conceito........................................................................................... 158 Gloria Moura III. Saberes tradicionais de saúde .......................................................................... 162 Bárbara Oliveira IV. Organização social e festas como veículos de educação não-formal................ 168 Verônica Gomes V. Kalunga, escola e identidade – experiências inovadoras de educação nos quilombos .............................................................................................................. 172 Ana Lucia Lopes VI. Lei nº 10.639/2003 e educação quilombola – inclusão educacional e população negra brasileira ..................................................................................................... 178 Denise Botelho D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS Documentário: “Africanidades Brasileiras e Educação”......................................... 184 Capítulo 3 – ENTRECRUZAMENTOS TEMÁTICOS – MULTICULTURALIDADES, DISCIPLINARIDADES E AFRICANIDADES ................................................................. 199 I. Ciência multicultural .........................................................................................202 Ubiratan D’Ambrosio II. Afroetnomatemática, áfrica e afrodescendência ..............................................208 Henrique Cunha Junior III. A multiculturalidade na educação estética ......................................................220 Ana Mae Barbosa

6


IV. A Construção estético-cultural de um espaço ..................................................226 Laura Maria Coutinho V. O espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão de mensagens sobre afro-brasileiros ......................................................................................................232 Heloisa Pires Lima VI. O significado da oralidade em uma sociedade multicultural ...........................237 Maria Elisa Ladeira VII. No tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores ...............245 Narcimária Correia do Patrocínio Luz VIII. Os versos sagrados de ifá: base da tradição civilizatória iorubá ....................253 Juarez Tadeu de Paula Xavier IX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e afro-brasileiras ..................................257 Andréia Lisboa de Sousa e Ana Lúcia Silva Souza X. Conto popular, literatura e formação de leitores...............................................272 Ricardo Azevedo XI. Literatura e pluralidade cultural.......................................................................280 Marisa Borba XII. Novas bases para o ensino da história da África no Brasil ..............................288 Carlos Moore XIII.. Enfrentando os desafios: a história da África e dos africanos no Brasil na nossa sala de aula............................................................................................................. 301 Mônica Lima XIV. Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e afro-brasileira ........................................................................................................307 Mônica Lima

7


APRESENTAÇÃO

Africanidades Brasileiras e Educação Rosa Helena Mendonça1

A coletânea Africanidades brasileiras e educa-

fundamenta o trabalho e

ção, organizada por Azoilda Loretto Trinda-

dos capítulos, de acordo com as temáticas

de, é composta de textos que foram produzi-

subjacentes aos textos. Ela foi além, empre-

dos para o programa Salto para o Futuro, da

endendo uma busca que excedeu às séries

TV Escola, ao longo da última década2.

realizadas especificamente para subsidiar a

a organização

implementação da Lei n. 10.639/03. Nessa O projeto surgiu e ganhou força durante a

perspectiva, a obra traz infinitas possibili-

produção do documentário Africanidades

dades de leitura e combinações temáticas

brasileiras e educação, exibido em outubro

desafiadoras. O capítulo 1 trata de Abor-

de 2008, pela TV Escola.

dagens multiculturais amplas; o capítulo 2, que inclui o texto complementar ao do-

Para a realização do documentário foi ne-

cumentário, enfoca as Africanidades; e o

cessário realizar uma pesquisa que envolveu

capítulo 3 aponta para Entrecruzamentos

uma seleção de textos sobre a temática nas

temáticos, ao destacar as contribuições da

publicações eletrônicas, além do visiona-

ciência e da literatura nas abordagens mul-

mento de séries e transcrição de entrevistas

ticulturais.

que compõem o acervo do programa. Daí para esta coletânea, estava dado o primeiro

Este livro é mais uma iniciativa da Secretaria

passo.

de Educação Básica (SEB), do Ministério da Educação, que, por meio do programa Sal-

Caberia à organizadora explicitar, a partir

to para o Futuro, da TV Escola, tem buscado

da linha editorial, a concepção teórica que

contribuir para a formação continuada de

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED-UERJ. 2 Os créditos dos autores correspondem à época em que os textos foram escritos. Considerando que um dos objetivos da publicação é refletir o pensamento sobre a temática ao longo desse tempo, optamos também em não solicitar aos autores a atualização dos textos, preservando, assim, a perspectiva histórica dos mesmos.

8


professores da Educação Básica na implan-

dos empenhados em fazer chegar às escolas

tação da Lei 10639/03.

brasileiras mais esta obra de referência para a implementação da Lei nº 10.639/03 e da Lei

A realização desta obra não teria sido possí-

nº 11.645/08.

vel sem a colaboração de Ana Maria Miguel e de Carla Ramos, analistas educacionais do

Vale destacar que a maior parte dos textos

programa, que participaram da seleção ini-

que compõem esta publicação foi produzida

cial do material, e de Magda Frediani Mar-

para séries que foram realizadas pelo Salto

tins, revisora, que foi responsável pela pre-

para o Futuro/TV Escola por demandas fei-

paração e revisão do livro, contribuindo na

tas pela Secretaria de Educação Continuada,

edição com sua experiência e sensibilidade.

Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECA-

Devemos, ainda, a Fernanda Braga, analista

DI), do Ministério da Educação. O objetivo

educacional, a formatação inicial dos textos,

comum é o de colocar em pauta a questão

a organização de notas, títulos e outros as-

da diversidade, tão significativa para a cons-

pectos gráfico-editorais, o que possibilitou a

trução de uma escola mais equânime, numa

primeira versão dos originais. Também par-

sociedade que precisa, cada vez mais, se

ticiparam deste projeto a analista educacio-

assumir como multicultural e pluriétnica,

nal Mônica Mufarrej, que organizou um CD

ultrapassando exclusões e preconceitos de

com os textos, e Amanda Souza, estagiária

todas as ordens.

do Salto para o Futuro, que fez a transcrição das fitas com entrevistas.

É com prazer que fazemos chegar aos professores e professoras esta obra, no ano em

De minha parte, sinto especial satisfação em

se comemoram os 10 anos da promulgação

ter idealizado esta publicação e supervisio-

da Lei 10639/03. Desejamos uma excelente

nado todo o processo de edição. Ao longo

leitura, que possa se desdobrar em traba-

de vários meses, tive o privilégio de fazer a

lhos e em outros textos, criando e alimen-

interlocução entre a organizadora da coletâ-

tando essa rede de educação que constitui o

nea e os demais profissionais envolvidos, to-

programa Salto para o Futuro.

9


INTRODUÇÃO Azoilda Loretto da Trindade 13

A todas as pessoas irmãs da pátria (mátria) amada que não fogem à luta, nem temem segurar a clava forte da justiça quando isto se faz necessário.

A tarefa de organizar um livro sobre Africani-

s, docentes ou ativistas, atravessando gover-

dades Brasileiras e educação, a partir do ma-

nos e gestores diversos, sem perder o com-

terial produzido pelo programa Salto para o

promisso com a Educação de qualidade neste

Futuro, foi, sem dúvida, muito desafiadora,

país.

tendo em vista que a produção de saberes e fazeres no campo da educação é um dos

O contato com todo este material escrito,

compromissos que assumimos no enfrenta-

disponível na página do programa, também

mento do racismo e na construção de uma

nos coloca diante de reflexões sobre a diver-

sociedade que respeite os direitos humanos,

sidade de visões, contradições e paradoxos.

sociais, civis e, em especial, o direito à vida

São produções que nos inspiram e, a partir

– em todas as suas manifestações. Uma so-

delas, temos ideias que podem gerar, tanto

ciedade em que a deusa Justiça, entidade

projetos para a ação pedagógica cotidiana,

mitológica cultuada desde a Antiguidade

quanto outras produções escritas e novos

clássica, seja, efetivamente, para todos e to-

documentários... Sentimo-nos como o me-

das.

nino do conto A função da arte, de Eduardo Galeano4:

O acervo do programa Salto para o Futuro representa um patrimônio para a história da

Diego não conhecia o mar. O pai, San-

educação do Brasil. São mais de vinte anos

tiago Kovadloff, levou-o para que desco-

de programa, com a presença de educadores

brisse o mar.

e educadoras compartilhando suas reflexões e ações educativas, seja como acadêmico(a)

Viajaram para o Sul.

3 Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ. Organizadora desta coletânea 4 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Ed. LP&M, 2005.

10


Ele, o mar, estava do outro lado das du-

cia e a escolha foram mediadas pela menta-

nas altas, esperando.

lidade inclusiva e antirracista dos educadores e educadoras presentes nas instituições

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: Me ajuda a olhar!

de ensino e por sua força de convencimento, argumentação e luta. Destaco, assim, que se trata de compromisso político, de desafio e de pacto com a justiça e com uma proposta de escola feliz, inclusiva, capaz de mudanças de mentalidade e comportamentos. Essa perspectiva também atende às questões políticas, dentre elas a da compreensão de que currículo é um documento de identidade. Se o currículo é o documento de identidade da escola, da sociedade e/

São muitas informações, muitos conheci-

ou de um grupo, imaginem o desafio que

mentos, muitos conteúdos, muitos saberes,

é mudá-lo. Porque, historicamente, a insti-

quer no acervo das produções do Salto, quer

tuição escola vive processos contraditórios,

nos espaços instituídos de produção de co-

dialéticos, complexos. É, muitas vezes, uma

nhecimento, como as escolas, as universi-

escola que tem uma identidade negadora

dades, as instituições da sociedade civil, or-

da sua população, da sua imagem, da sua

ganizada ou não. Os textos são muito ricos

riqueza cultural e que precisa, por isso, se

e inspiradores, os minidocumentários gera-

modificar.

dores dos debates são igualmente ricos, sobretudo em possibilidades pedagógicas. Por

Ao pensarmos qual é o papel da escola, fica-

tudo isto, fica difícil escolher, decidir e sele-

mos de frente com a necessidade de mudar

cionar, inclusive pela atualidade dos temas

essa sua identidade, mudar esse documento

e dos textos a eles relacionados e pelo valor

de identidade, “trocar” este documento por

que este material constitui para a educação

outro que olhe e que diga da riqueza que

no Brasil.Com relação à organização do li-

é o Brasil, da riqueza que é um país plural

vro, convém destacar dois pontos:

como o nosso. A nossa escola frequentemente nega isso, hierarquiza as diferenças

O primeiro relacionou-se à seleção dos tex-

humanas, frontalmente. O que acontece se

tos e dos conteúdos a serem privilegiados

formos, em qualquer dia, numa sala de aula,

com sua presença nos currículos escolares

e observarmos o que mostram os murais e

e no dia a dia propriamente dito. A relevân-

quem são as crianças e os adolescentes que

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estão naquela escola? Observar é um exer-

aos pretos e pardos (negros), mas a vários

cício simples, não só na nossa escola espe-

grupos: mulheres, indígenas, pessoas com

cificamente, mas também se ampliarmos

deficiências, com necessidades especiais...

a observação para outros espaços. Que

A escola e a sociedade estão marcadas por

identidade é essa? Que escola é essa? Que

essa problemática que afeta, não só os afro-

imaginário é esse que atravessa e perpassa

-brasileiros(as), mas a outros grupos hu-

a nossa prática e a nossa ação docente? A

manos. Estamos marcados pelo machismo,

escola e os currículos podem ter um papel

pelo patrimonialismo, pelo elitismo... Lidar

importante, na medida em que eles se pro-

com isso é, portanto, uma escolha política,

ponham a se transformar, a se olharem no

uma vez que também sabemos o quanto de

espelho e a não ter vergonha do que veem. É

invisibilização, de desconhecimento e de es-

um grande desafio docente, este que se co-

tereotipias existem com relação às histórias

loca para todos nós, educadores e educado-

e culturas africanas e afro-brasileiras. Quem

ras, que queremos transformar essa escola,

sabe podemos ter, em breve, e o acervo do

transformá-la na sua imagem, na sua estru-

programa indica isso, coletâneas sobre os

tura, nas suas ações, na sua eficácia e nos

povos indígenas (Lei n. 11.645/2008), sobre as

seus conteúdos.

questões de gênero e orientação afetivo-sexual, como já temos sobre Cultura popular

Outro ponto relevante nesta introdução é

e outros temas? E quem sabe, um dia, não

o fato de estarmos focados na história e

precisemos mais nos ocupar com inclusão,

cultura africana e afro-brasileira, na im-

com preconceito e racismo? Por ora, como

plementação da Lei n. 10.639, de janeiro

poderemos ver na primeira parte desta cole-

de 2003, que neste ano completa dez anos,

tânea, temos ainda um longo caminho a ser

num tema que faz parte de um dos mais

trilhado.

graves, viscerais e emblemáticos problemas brasileiros: as desigualdades étnico-raciais. Sabemos e reconhecemos como importante

Por que trabalhar as africanidades nas escolas brasileiras?

aspecto de análise e intervenção a questão das desigualdades, dos preconceitos, dos es-

Embora a pergunta feita seja única, ela tem

tigmas e do racismo na escola. E sabemos

múltiplas e inúmeras respostas. Vamos a al-

também que esses processos não se limitam

guns pontos de vista:

12


Provérbio africano

é justo, não é bom. O patrimônio cultural produzido pelos africanos tem muito mais

“Até que os leões tenham seus próprios

do que 500 anos. E tudo que a África pro-

historiadores, as histórias de caçadas

duziu e espalhou pelo mundo em termos

continuarão glorificando o caçador” 5.

de conhecimentos, de sentimentos, de saberes, de arquiteturas, de engenharia? Isso

Para Elisa Larkin6 (intelectual, pesquisado-

foi como que subtraído da nossa memória

ra):

social. Assim, nossa escola hoje tem esse desafio, a educação formal tem esse desafio, Eu acho que em primeiro lugar a gen-

os educadores e as educadoras têm esse de-

te não pode falar em humanidade sem

safio, de aprender o que a África produziu,

falar nos africanos. Inclusive porque a

que patrimônio é esse que foi tirado da nos-

África, hoje existe um consenso na an-

sa formação. E há um outro desafio maior

tropologia, na arqueologia, a África foi

ainda: que nós, educadores, educadoras, ao

o berço realmente do nascedouro da

aprendermos sobre isso, transformemos a

própria espécie humana. Então, há esse

nossa prática docente, de modo a incorpo-

aspecto que, na verdade, o próprio ser

rar todo este conhecimento no cotidiano. E

humano nasce na África e vai desenvol-

incorporar não só na “cabeça”, no campo

vendo na África sua cultura, em épocas

da racionalidade, mas incorporar também

muito remotas, vai povoando o mundo.

nas entranhas, no campo da corporeidade, do ser humano na sua completude. Porque

Se a escola é um campo, um espaço de pro-

não basta, por exemplo, trabalharmos com

dução e de apropriação de conhecimentos,

a história africana, afro-brasileira e indíge-

então é fundamental, justo e função da es-

na, isso só não dá conta. É preciso incorpo-

cola que os saberes africanos, que são um

rar esses saberes no cotidiano da escola. É

patrimônio da humanidade, sejam compar-

possível, a partir desse patrimônio africano

tilhados, aprendidos, conhecidos. A escola

ou indígena, ou de outros patrimônios cul-

não deve negar à população este patrimô-

turais, transformar o cotidiano da escola?

nio, não pode subtrair um direito, que é de

Isso, sem dúvida, é bastante desafiador! E

todos, de conhecer o repertório cultural dos

fantástico! Imaginem o que de revolucioná-

povos africanos. Se a escola não veicula es-

rio pode acontecer quando incorporarmos

tes saberes, está tirando o direito das pes-

na escola os valores civilizatórios afro-bra-

soas de se informarem sobre isso. Isso não

sileiros, que levem em conta, por exemplo,

5

Provérbio africano citado por Eduardo Galeano em “O livro dos abraços”.

6 Série Currículo, Relações Raciais e Cultura afro-brasileira (2006).

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a questão do comunitarismo? Juntos com-

cio, era um negro, grande compositor e

partilharemos os conhecimentos, a alegria,

grande maestro da corte, e que estadis-

a ludicidade e a ciência, para fazerem parte,

tas, deputados, parlamentares do Im-

não apenas de uma grade curricular, mas

pério também eram negros e mulatos.

também da vida e do dia a dia da escola,

Há um livro que recomendo muito para

com potência, riqueza, garra.

as escolas A mão negra brasileira, que foi editado por Emanuel Araújo, artista

Para Muniz Sodré (intelectual e escritor):

plástico, que foi diretor do museu de Arte Moderna de São Paulo, livro edita-

Não há como negar a presença da cultu-

do por Valter Brest, onde se faz um rela-

ra europeia e das ciências nas escolas do

to dessas figuras que integraram a cha-

Brasil. Mas em relação à cultura negra,

mada cultura erudita. O maior escritor

dá pra negar e é por isso que demorou

brasileiro de todos os tempos, Machado

tanto, porque se esqueceu deliberada-

de Assis, se diz que era mulato escuro.

mente de colocar nos livros escolares,

Machado de Assis era crioulão mesmo.

nas mentalidades dos professores das

Lima Barreto era negro, ninguém diz

escolas, a contribuição que o negro deu

que o Brasil teve um presidente negro,

para a formação da sociedade brasilei-

não se conta essa história, todo mundo

ra, da cultura, historicamente, ao longo

pensa que só houve presidente branco

dos tempos. Essa contribuição não foi só

no Brasil! Tivemos um presidente qua-

de trabalho. (...) Foi principalmente cul-

se negro chamado Nilo Peçanha, que é

tural (...). É ai que se dá o esquecimento,

retocado nos retratos para parecer que

a contribuição foi também na cultura

não é negro. Assim como se retoca o

erudita, porque não se diz ao estudan-

senhor Rui Barbosa, grande intelectu-

te na escola e não se fazem manuais

al baiano, mulato escuro, se retoca no

para dizer que até a abolição os gran-

retrato para parecer que era branco.

des escultores e pintores da Academia

Nilo Peçanha era negro, mulato escuro,

Imperial fundada pelo imperador, eram

negro. Agora a família dele não era, era

negros, nas igrejas da Bahia, nas igrejas

mais clara. Então, o que eu quero dizer

de Minas, nas igrejas do Rio de Janeiro,

é que a presença dos negros na cultu-

os pintores e escultores eram negros e

ra erudita foi forte com a abolição. E

mulatos. Não se diz que os músicos da

o século XX foi esquecer isso, começou

corte do Império eram negros e mula-

a deixar de lado e, a partir daí, toda a

tos, não se diz que o maior compositor

inserção do negro na cultura brasileira

da corte no Império, o padre José Mauri-

foi só através da chamada cultura popu-

14


lar, através da música, que foi gloriosa:

Entre fundamentos, argumentos e informa-

Pixinguinha, os grandes compositores,

ções sobre Africanidades, organizamos esta

o samba vem daí, o futebol, o carna-

coletânea.

val, os folguedos. (...) Por isso que digo que houve uma denegação histórica da contribuição do negro, da sua presença. É importante que o negro atue em novelas, apareça em publicidade, mas eu acho mais importante começar a dizer às pessoas, aos meninos nas escolas sobre tudo isto (...). Na cultura erudita, tanto quanto na cultura popular, o negro brilhou, é preciso contar também às pessoas que até os anos 20, na Bahia, os professores de matemática e de piano eram todos negros malês, que sabiam ler muito bem, inclusive em árabe, liam árabe, liam o Alcorão e ninguém conta isso. E, para completar estas reflexões, nada melhor que os versos da canção de Nei Lopes e Wilson Moreira:

“Me ajuda a olhar” Nosso processo de organizar e selecionar os textos não foi fácil, já que nos deparamos com muitas vicissitudes acerca do tema. O acabamento, o embelezamento, os ajustes e os retoques ficaram sob a responsabilidade da equipe pedagógica do Salto – fato que merece destaque, pois produções para o coletivo são também coletivas, por mais individuais que pareçam. Ao pesquisar, ler e reler o material selecionado, nós nos conectamos com algumas percepções que não nos furtaremos a compartilhar. Deparamo-nos com caminhos que chamo de “exunicidades”, por tratarem-se de encruzilhadas, possibilidades que demandam encontros, comunicação, articulação, negociação, conflitos... E, assim, devemos fazer esta alusão a um deus

Em toda cultura nacional

da mitologia africana: Exu.

Na arte, até mesmo na ciência O modo africano de viver Exerceu grande influência O negro brasileiro

7

Assim como não existe a África homogênea, nem a história e a cultura africana e afro -brasileira, já podemos dizer, com certeza, que não existe um pensamento único sobre

Apesar de tempos infelizes

a temática. Isso tudo, articulado com a di-

Lutou, viveu, morreu e se integrou

versidade de pensamento e de ações peda-

Sem abandonar suas origens .

gógicas brasileiras, nos permite afirmar que

Ao povo em forma de arte. Composição de Nei Lopes e Wilson Moreira.

15


a implementação da lei também é plural e

e documentários, experiências pedagógicas,

complexa. Por exemplo, existe uma varieda-

quer na sua especificidade (segunda parte

de de denominações, concepções, conceitos

desta coletânea), quer em interação com

e visões que podem se associar a essa diver-

áreas diversas de conhecimento (terceira

sidade pedagógica, como educação bancá-

parte deste livro), o que nos leva a afirmar

ria, tradicional, formal, conservadora, sócio-

que, a despeito do esforço abnegado de mui-

-histórica, liberal, conteudista...

tas pessoas, sejam educadoras, educadores ou

ativistas, esta temática necessita de

Paradoxalmente, não há uma relação biuní-

compromisso político por parte, sobretudo,

voca entre o acesso ao conhecimento ou ao

dos gestores e dos definidores e definidoras

patrimônio africano e afro-brasileiro e a di-

de recursos e ações para coletivos, incluindo

minuição das desigualdades étnico-raciais.

aí o reconhecimento dos saberes e fazeres

O sistema de apropriação, o racismo e o pa-

dos(das) docentes e dos educadores/as das

trimonialismo não estão abalados na nossa

instituições escolares e da comunidade es-

sociedade. Temos muito a aprender e a ca-

colar como um todo. Cremos que a imple-

minhar na direção da eliminação do racismo

mentação da lei precisa, para tal, suplantar

e das mentalidades e práticas racistas.

as visões equivocadas de ação afirmativa como sinônimo de paternalismo e condes-

Embora esteja na lei maior da educação bra-

cendência, para visões de ação afirmativa

sileira, a LBBEN, não temos a garantia da

como potência e reconhecimento do direito

introdução nos currículos escolares da(s)

e potência do outro.

história(s) e da(s) cultura (s) africana(s) e afro-brasileira(s), nos mais de 5.000(cinco)

Posto isto, esta coletânea, tentando estar

mil municípios brasileiros. A temática das

em sintonia com o que foi dito nesta intro-

relações étnico-raciais ainda é controversa,

dução, está dividida em três capítulos;

o mito da democracia racial ainda é forte, muitos não acham este tema relevante e o racismo recrudesce no Brasil e no mundo.

1º – ABORDAGENS MULTICULTURAIS AMPLAS: uma articulação da temática do livro com o multiculturalismo, a diver-

Temos, por outro lado, um significativo acer-

sidade, as narrativas e a complexida-

vo sobre as temáticas da Lei n. 10.639/2003

de, além, obviamente, do currículo;

em livros, sítios, núcleos de estudos nas universidades, organizações do movimento negro, organizações governamentais, filmes

2º – AFRICANIDADES: as africanidades em foco;

16


3º – ENTRECRUZAMENTOS TEMÁTICOS

Existe um rico repertório metodológico no

– MULTICULTURALIDADES, DISCIPLI-

campo da multiculturalidade e, no que se

NARIDADES E AFRICANIDADES: nesta

refere à educação étnico-racial, várias abor-

parte da coletânea se pretende uma

dagens podem e devem ser experimentadas,

interseção entre as temáticas das Afri-

vivenciadas, saboreadas: pedagogia griot, do

canidades e áreas de conhecimento,

Axé, dos terreiros, do samba, dos valores ci-

como uma trama, uma tessitura.

vilizatórios afro-brasileiros, em diálogo, em confronto, encontro, encanto com as de-

Fios do tear das moiras fiandeiras8

mais pedagogias, quer sejam as oficiais, dominantes, quer sejam a dos povos indígenas ou das florestas, ou dos ciganos, ou dos ára-

MULTICULTURALISMOS | DIVERSIDADE CULTURAL |

bes, judeus, orientais, das pessoas com defi-

INTERCULTURALISMOS | PLURALIDADE CULTURAL |

ciência, com necessidades especiais... Todo

AFRICANIDADES | EDUCAÇÃO INDÍGENA | EDUCA-

este repertório, como o fio do destino tecido

ÇÃO ESPECIAL | EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

pelas moiras, pode contribuir para construir

| EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | PEDAGOGIA QUEER | ESTUDOS CULTURAIS | EDUCAÇÃO RELIGIOSA | EDUCAÇÃO POPULAR | EDUCAÇÃO PÚBLICA | AFRICANIDADES | PEDAGOGIA DIASPÓRICA | PEDAGOGIA

as bases da pedagogia brasilis, uma pedagogia voltada para a real e diversa população brasileira.

DA DIFERENÇA | PEDAGOGIA BRASILIS.

8 Na verdade, colocar as moiras ou mouras neste contexto é provocar as/os leitora/es acerca dos nomes e mitos das várias origens que povoam nosso imaginário.As moiras e/ou as mouras?

17


CAPÍTULO 1

Abordagens gerais sobre multiculturalismo e diversidade cultural

Neste capítulo selecionamos, entre os textos

• O que nós, como educadores, devemos fa-

do Salto para o Futuro, alguns que lidam di-

zer na escola? E como o faremos? Como

retamente com questões conceituais gerais

nosso currículo se configurará?

que dão suporte para as reflexões ligadas às Africanidades ou que com elas dialogam.

• Como serão e deverão ser nossas aulas, nossa avaliação, nossa sala de aula? Como

A opção de não seguir uma linearidade cro-

será nossa postura?

nológica dos textos tem como objetivo visibilizar a não linearidade do pensamento e

• Como não sermos tão individualistas e

das reflexões sobre os temas em questão:

julgarmos que os outros são muito dife-

multiculturalismo e diversidade cultural.

rentes de nós? E como não sermos tão

Esta introdução antecipa algumas indaga-

universalistas a ponto de apagarmos as

ções, presentes no texto da organizadora

singularidades culturais, políticas, sexu-

desta coletânea, que encerram este primei-

ais, sociais, intelectuais?

ro capítulo. Afinal, uma educação multicultural, criativa e inclusiva, no sentido de incluir na pauta as diferenças, o contato, o diálogo e a interação com as diferenças, coloca a própria escola num lugar de questionamento quanto ao seu papel, seu sentido e seu significado. Vamos aos questionamentos:

• Como levar em consideração todos os segmentos da escola? Como enfrentar que nossas mais belas intenções e ações são ainda incipientes, que são muito poucas, embora necessárias? Ao formular essas questões buscamos evidenciar que trabalhar o multiculturalismo na escola não é apenas colocar imagens de

• Qual deve ser o papel da escola num con-

todas as etnias que compõem nossa escola

texto multicultural que se sabe político,

nos murais ou, simplesmente, festejar o Dia

e que não se supõe racista, nem elitista,

do Índio e o Dia Nacional da Consciência

nem machista, nem etnocêntrico?

Negra. Não é apenas debater as políticas de

18


cotas e outras ações afirmativas. Ou, ainda,

III. Pluralidade e diversidade, de Carla

ter a imagem de uma Virgem negra como

Ramos – objetivando discutir os con-

padroeira do Brasil. Tampouco ter o atleta

ceitos do título num mundo em movi-

do século l, um homem preto, como um íco-

mento, em mudanças, focando-se na

ne nacional (sobretudo se o que se destaca,

cidade como espaço onde estes movi-

nesse caso, é o dinheiro como submetendo

mentos nos desafiam a pensar outra

as questões relacionadas à cor da pele).

geopolítica

Para buscar respostas para essas e outras

IV. Saberes culturais e educação do futu-

questões, selecionamos os textos que se se-

ro, de Edgard de Assis Carvalho. Dis-

guem, acreditando que, ao reorganizá-los

cutindo os saberes culturais na pers-

nesta coletânea, sob o tópico multicultura-

pectiva da integração dos saberes, o

lismo e diversidade cultural, estaremos pro-

texto transita entre a poesia, a arte

pondo novas e possíveis leituras:

e os saberes culturais como pistas para a educação na sua complexida-

I. Multiculturalismo, ou de como viver junto, de Mary Del Priore - onde a autora faz uma apresentação panorâmica de questões muito caras à temática multicultural deixando-nos a questão desafio: COMO VIVER JUNTO? II. Por um multiculturalismo democrático, de Sueli Carneiro – destacando a democracia como um fim, a autora apresenta-nos variáveis contemporâneas que põem em fragilidade a perspectiva universalista e hegemônica de conformação de sujeitos, convidando-nos a pensar um multiculturalismo democrático brasileiro

de e inclusividade, apresentando-nos autores e perspectivas não hegemônicas de pensar o mundo a partir do paradigma, digamos, europeu, mas como que anunciando um hibridismo, mestiçagem cultural, e termina apresentando-nos Fernando Diniz, talvez paradigmático para este livro. V. Identidade e diferença no cotidiano escolar: práticas de formação e de fabricação de identidades docentes, de Elizeu Clementino de Souza. Este texto, nesta coletânea, coloca os e as docentes no centro da roda como produtores e produtoras de histórias de vida (s), no

Depois de dois textos, com seus desafios,

fio de prumo da Identidade e da Dife-

apresentamos o texto anunciado pelo título:

rença.

19


VI. Diversidade e Currículo, de Nilma Lino Gomes. De volta à discussão da diversidade, agora focando-se o Currículo, o que se torna mais um dos desafios da escola que “normatiza” a diferença sem hierarquizá-la e buscando não ser uniformizadora. O texto indica, prescreve e sinaliza alguns

desafios para esta arrojada ação político-pedagógica. VII. Reinventando a roda: experiências multiculturais de uma educação para todos, de Azoilda Loretto da Trindade. Este texto é um convite à criação e ao compromisso com uma educação para a vida em expansão.

20


I. Multiculturalismo ou de como viver junto1 Mary Del Priore2

Multiculturalismo: como viver junto?

Há menos de trinta anos, as primeiras medidas políticas de inspiração multiculturalista foram colocadas em ação na América

Nas democracias pluralistas, assistimos a um movimento generalizado de incremento das identidades particulares. Minorias, populações autóctones, grupos de migrantes e imigrantes manifestam seu desejo de reconhecimento cultural. “Viver junto” é uma questão cada vez mais premente.

do Norte (Canadá e EUA). Lá, a indiferença frente à cor da pele foi substituída pelo princípio de consciência da cor. O debate sobre multiculturalismo foi crescendo de intensidade e, a partir dos anos 90, difundiu-se na Europa e América do Sul. A doutrina multiculturalista avança essencialmente na ideia de que as culturas minoritárias são discri-

O termo “multiculturalismo” designa tanto

minadas e devem merecer reconhecimen-

um fato (sociedades são compostas de gru-

to público. Para se realizarem ou consoli-

pos culturalmente distintos) quanto uma

darem, singularidades culturais devem ser

política (colocada em funcionamento em

amparadas e protegidas pela lei. É o Direito

níveis diferentes) visando à coexistência pa-

que vai permitir colocar em movimento as

cífica entre grupos étnica e culturalmente

condições de uma sociedade multicultural.

diferentes. Em todas as épocas, sociedades pluriculturais coexistiram e, hoje, menos de 10% dos países do planeta podem ser considerados como culturalmente homogêneos.

Entre universalismo e multiculturalismo

Por outro lado, o tratamento político da diversidade cultural é um fenômeno relativa-

Mas, de que diferenças culturais nós fala-

mente recente.

mos? Muitas vezes reduzidas à questão da

1

Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 1.

2

Historiadora e Coordenadora Geral do Arquivo Nacional.

21


etnicidade (condição ou consciência de per-

paradoxal, mas a reivindicação cultural está

tencer a um grupo) ou, em alguns casos,

claramente associada ao individualismo

reduzidas até mesmo à “questão racial”, as

moderno, ao primado do “sujeito individu-

diferenças culturais não concernem apenas

al”. Ela emana da subjetividade pessoal da-

aos particularismos de origem ou de tradi-

queles que se reconhecem neste ou naquele

ção (religiosas ou linguísticas).

particularismo e resolvem se engajar coletivamente em reivindicações identitárias.

As reivindicações se enraízam cada vez mais no particularismo dos mores (preferências

O debate de ideias entre monoculturalismo

sexuais, por exemplo), de idade, de traços

e multiculturalismo funciona, de certa for-

ou de deficiências físicas (obesos, cegos,

ma, em duas vertentes de pensamento. Ele

paraplégicos). O multiculturalismo comba-

se organizou, primeiramente, em torno de

te o que ele considera como uma forma de

uma querela de filosofia política norte-ame-

etnocentrismo, ou seja, combate à visão de

ricana: os liberais, ou individualistas, sus-

mundo da sociedade branca dominante que

tentavam que o indivíduo é mais importante

se toma – desde que a ideia de raça nasceu

e antecede à comunidade. Liberais recusam

no processo de expansão europeia – por

a ideia de que direitos minoritários possam

mais importante do que as demais. A políti-

ferir a preeminência legítima do indivíduo.

ca multiculturalista visa, com efeito, resistir

O comunitarismo ou coletivismo, ao contrá-

à homogeneidade cultural, sobretudo quan-

rio, acredita que os indivíduos são o produto

do esta homogeneidade afirma-se como

das práticas sociais e que é preciso prote-

única e legítima, reduzindo outras culturas

ger os valores comunitários ameaçados por

a particularismos e dependência.

valores individuais e, principalmente, reconhecer as diferenças culturais.

Um detalhe importante nesta discussão é que, em nossos dias, um cidadão raramen-

Tal debate, contudo, já é coisa do passado.

te “esquece” sua condição particular para

Pensadores como Charles Taylor e Michael

encarnar um pretenso universalismo. O

Walzer avançaram posições mais nuança-

universalismo dificilmente se combina com

das. Inúmeros teóricos acreditam que os

as condições da modernidade. Com a libe-

direitos minoritários podem promover as

ração dos mores e a emancipação sexual, a

condições culturais de liberdade potencial

vida privada foi maciçamente reconstruída,

dos membros de grupos minoritários. Na

revestindo-se de grande potencial político.

Europa, este “multiculturalismo liberal” pa-

Nesta perspectiva, identidade e individuali-

rece ter se imposto por falta de alguma ideia

dade quase se sobrepõem. Isto pode parecer

melhor. Abandonou-se, então, o modelo que

22


prevalecia desde a Revolução Francesa e que

patamar de reconhecimento do que a cul-

propugnava o cidadão unificado.

tura dominante branca, saxônica e protestante.

Vejamos, num exemplo, como procede esta vertente: a sopa passada no liquidificador

Em reação a esta “etnicização majoritária”,

transforma tudo num todo homogêneo, no

na verdade, uma assimilação dissimulada –

qual não se distinguem mais os elementos

leia-se, o mito do “melting pot” – operou-se

que a compõem. Apenas um paladar avisa-

uma “etnicização das minorias”. O reconhe-

do poderá adivinhar, no sabor, cada um dos

cimento público das identidades coletivas

ingredientes. Na salada composta, por outro

resultou, por sua vez, de redes políticas vol-

lado, cada ingrediente se distingue dos ou-

tadas para a consolidação da ideologia do

tros, conservando sua aparência, seu gosto

“politicamente correto”.

e sua textura. Nos EUA, o mito do “melting-pot”, ou seja, da encruzilhada na qual todas

Na Europa, as práticas multiculturalistas

as culturas se fundem ao adotar o “ameri-

são ainda pouco desenvolvidas. O modelo

can way of life” – jeito americano de viver –,

do Estado-Nação afirmou-se no século XIX,

sucedeu o modelo do mosaico, ou da “sala-

praticando uma política de redução de dife-

da”, imagem possível do multiculturalismo:

renças culturais e de assimilação de popula-

uma justaposição um pouco heterogênea de

ções imigradas. Nos países europeus, apesar

grupos étnicos e minorias culturais coabi-

das importantes diferenças nacionais (na

tando num mundo de concordância.

Inglaterra, por exemplo, está bem avançada a luta contra discriminações étnicas), o par-

As políticas multiculturais

ticularismo é percebido como uma divisão e uma regressão culturais. O multiculturalismo, por sua vez, é um desafio fundamental

Além do Canadá (desde 1982), vários países têm constituições multiculturais: Austrália, África do Sul, Colômbia, Paraguai. Mas foram os EUA que, antes de qualquer outro país, colocaram a luta contra a discrimi-

para a consolidação da União Européia. Sobretudo, quando lá se pergunta se a Europa irá optar por uma cultura comum ou por um regime multicultural constituído por um mosaico de nações.

nação no centro de suas preocupações. No prolongamento da luta dos afro-americanos

Na França, por exemplo, as políticas de tra-

por direitos cívicos, militantes e intelectuais

tamento preferencial são aplicadas para

consideraram uma injustiça que as culturas

combater as desigualdades socioeconômi-

minoritárias não acedessem a um mesmo

cas ou as desigualdades entre gêneros (ho-

23


mem-mulher). Lá, cada vez mais, a etnicida-

A pergunta a fazer é: será que os fins justi-

de é reconhecida e respeitada nas práticas

ficam os meios? O princípio da discrimina-

(no Direito, ainda não): são dadas subven-

ção positiva se choca com as exigências de

ções diretas a associações étnicas, são cria-

igualdade do Direito e à imparcialidade do

das políticas em favor de imigrantes, exis-

Estado? Caminhamos no sentido da justiça

tem Fundos de Ação Social voltados para a

social? A busca de uma igualdade real pode

questão.

ser incompatível com os princípios de igualdade formal?

O modelo da diversidade francesa foi comemorado no Campeonato Mundial de Fute-

Sabemos que nem todos os membros das

bol de 1998, quando os jogadores de origens

minorias são desfavorecidos e os que sabem

diferentes (França, África do Norte e África

aproveitar as vantagens são raramente os

Central) tornaram-se campeões do mundo.

mais desfavorecidos. Por outro lado, exis-

A imagem de uma equipe multiétnica fun-

tem grupos da população realmente desfa-

diu-se com aquela de uma “equipe que ga-

vorecidos que não pertencem às minorias

nha”.

étnicas.

Os limites do multiculturalismo

Neste caso, todas as diferenças podem ser defendidas? Sabemos que há o risco de opressão do grupo cultural sobre seus mem-

Para vários autores, o multiculturalismo

bros: como proteger a minoria das outras

aparece como um mal necessário. Discute-

minorias, os explorados dos excluídos? Por

-se muito como aperfeiçoar o sistema, limi-

vezes, ocorre até o contrário, pois foi invo-

tando seus efeitos perversos e melhorando

cando a noção de Direito que os brancos de

a vida dos atores sociais. Em alguns casos,

origem holandesa defenderam o sistema do

o multiculturalismo provoca desprezo e in-

“apartheid”. Muitos pensadores, entre eles

diferença, como acontece no Canadá entre

Charles Taylor, autor de Multiculturalismo,

habitantes de língua francesa e os de língua

Diferença e Democracia, acreditam que ne-

inglesa.

nhuma política identitária deveria ultrapassar a liberdade individual. Indivíduos, no seu

Nos EUA, esta militância só fez acentuar as

entender, são únicos e não poderiam ser ca-

rivalidades étnicas. Ao denunciar seus ad-

tegorizados.

versários, tais políticas terminam por estigmatizá-los e acabam, também, por dar uma

A quem cabe a legitimidade de atribuir uma

dimensão étnica às relações sociais.

identidade? Não é o indivíduo o único capaz

24


de escolher a sua, ou as suas identidades de

Vale lembrar, ainda, que o reconhecimento

pertença? Mais ainda, quando pensamos que

de uma cultura minoritária não implica o fim

identidades individuais são construídas em

de sua alienação socioeconômica. O grande

oposição ao grupo de pertença, os especia-

desafio consiste em conciliar as políticas de

listas concordam sobre o princípio de que as

reconhecimento e as de redistribuição.

diferenças culturais não podem colocar em causa os direitos do homem e do cidadão.

Pesquisadores de todas as áreas insistem sobre a necessidade de construir uma ver-

Novas perspectivas

dadeira “educação intercultural”. Apresenta-se, aí, a ocasião de um aprendizado de-

Não podemos analisar tudo em termos de culturas. A denúncia das discriminações e as reivindicações pelo reconhecimento cultural parecem ter se sobreposto à luta de classes e à denúncia da exploração socioeconômica que caracterizaram a primeira metade do século na Europa, e na segunda metade, no Brasil.

mocrático. É a ideia de uma democracia de mores proposta por Farhad Khosrokhavar, na qual a comunicação cultural é possível: democracia feita de respeito à alteridade cultural e de tolerância. É, também, a ideia de uma “democracia inclusiva”, na qual as comunidades não se definiriam mais pela exclusão.

Mas, na luta contra as discriminações, o es-

É também a vontade de viver junto que

quema dominados/dominantes não é mais

funda uma cultura e permite uma relativa

possível. Os conflitos sociais são cada vez

homogeneidade social. Quando uma socie-

menos óbvios, menos maniqueístas. Cada

dade se diz multirracial, ela se bate, igual-

um de nós pode ser ao mesmo tempo discri-

mente, contra a desigualdade racial. Taylor,

minado e discriminador. Um operário pode

por exemplo, definiu a democracia como a

ser discriminado socialmente, mas também

política do reconhecimento do outro, logo,

discriminar como homem, como pai e como

da diversidade. Mais adiante, o debate so-

marido. Existe, hoje, uma oposição entre as

bre o multiculturalismo obriga também a

políticas sociais e as políticas multiculturais.

redefinir o conceito de cultura, sobretudo, a alargá-lo para aí incluir um conjunto de

Os que são objeto de discriminação cultural

diferenças comportamentais. As culturas

são também os que mais sofrem as desigual-

são menos feitas de tradição do que de re-

dades socioeconômicas. Por trás da tensão

presentações construídas pela história, sus-

entre brancos e negros, há, antes de qual-

cetíveis de mudanças tal como vemos nas

quer coisa, a tensão entre ricos e pobres.

reivindicações de uns e outros.

25


Como já demonstraram o sociólogo Michel

de cotas para os afro-brasileiros na univer-

Wieviorka e o historiador Serge Gruzinski,

sidade e no funcionalismo público acabou

o hibridismo e a maleabilidade das cultu-

por negar a fábula do encontro harmonioso

ras são, igualmente, fatores positivos de

entre as três raças. Durante muitos anos, os

inovação. Considerar a cultura como algo

negros aceitaram a ilusão de que a mestiça-

que não é variável, bem como julgar sobre

gem poderia ser a solução para a discrimi-

diferenças culturais são também formas de

nação racial, diluindo a cor em casamentos

marcar a cultura com um selo de autenti-

mistos. Mas a questão da raça está também

cidade que não existe e fixá-la num molde

ligada à da posição social: quanto mais so-

único. Uma saída possível seria considerar

bem na escala social, mais os negros se tor-

as vantagens da mestiçagem cultural, este

nam brancos.

poderoso fator de mudanças, de criatividade e de invenção, e que não é objeto de ne-

O processo de reafricanização do Brasil tal-

nhuma reivindicação. Mas o que dizer de

vez melhore o status social, artístico ou reli-

mulatos que, na Bahia e no Caribe, despre-

gioso de muitos de nós. Mudanças, contudo,

zam os negros?

dependem diretamente da redistribuição de renda e do fim das desigualdades imen-

Foi se apoiando em suas raízes culturais

sas entre ricos e pobres. Aí, sim, estaremos

que a ação dos negros brasileiros tomou a

prontos para construir uma democracia in-

dimensão de um movimento social de mas-

clusiva e intercultural.

sas. Nas ruas das grandes cidades brasileiras já é possível ler, em muitas camisetas, “100% negro!”. Desde os anos 80, a questão

Referências

racial está nos espaços públicos e teve início um debate interno sobre as representa-

CAPONE, Stefania. Le candomblé au Brésil,

ções coletivas, sua história, sua diversidade

ou l’Afrique réinventée. In: Cultures – La

cultural e racial. A maior parte deles acedeu

construction des identités. Sciences Humai-

à consciência negra pela brecha da cultura

nes, nov. 2000, p. 52-54.

popular. A música afro-brasileira e as escolas de samba tiveram aí um importante papel

GRUZINSKI, Serge. La pensée métisse. Paris:

mobilizador. A busca da “pureza africana”

Fayard, 2000. (Edição em português: O pen-

acompanhou-se também de uma crítica fe-

samento mestiço. São Paulo: Cia. das Letras,

roz ao sincretismo. Finalmente, a aprovação

2001).

26


KYMLICKA, Will. Multicultural citizenship:

TAYLOR, Charles. Multiculturalisme, différen-

a liberal theory of minirity rights. London:

ce et démocracie. Paris: Aubier, 1994.

Clarendon Press, 1995. SOUTY, Jérôme. Multiculturalisme: com-

WALTZER, Michel. Pluralisme et démocracie. Paris: Esprit, 1997.

ment vivre ensemble. In: Les grandes ques-

WIEWIORKA, Michel; OHANA, Jocelyne (dir.).

tions de notre temps. Sciences Humaines,

La différence culturelle. une reformulation

dez. 2001, p. 78-82.

des débats. Paris: Balland, 2001.

27


II. Por um multiculturalismo democrático1 Sueli Carneiro 2

Gênero, raça/etnia, orientação sexual, reli-

produção que instituem classes minoritárias

gião e classe social são algumas das variá-

abastadas, que submetem e exploram maio-

veis que se impõem contemporaneamente,

rias despossuídas; homofobia decorrente da

conformando novos sujeitos políticos que

imposição da heterossexualidade como for-

demandam ao Estado e à sociedade por re-

ma exclusiva de relacionamento afetivo e se-

conhecimento e políticas inclusivas.

xual e condenação arbitrária, muitas vezes violenta, do relacionamento entre pessoas

A emergência desses novos atores decorre da insuficiência da perspectiva universalista para contemplar as diferentes identidades sociais e realizar um dos fundamentos da democracia, que é o princípio de igualdade para todos. A imposição de um sujeito universal ao qual todos os seres humanos seriam redutíveis obscureceu, ao longo dos tempos, as ideologias discricionárias que promovem as desigualdades entre os sexos, as raças, as classes sociais, as religiões etc... São elas: o patriarcalismo, que, ao instituir como natural a hegemonia do sexo masculino, justifi-

do mesmo sexo; fundamentalismo religioso, responsável por grande parte dos martírios ocorridos na história da humanidade, em que cada denominação religiosa, ao buscar impor o seu Deus aos outros, transforma-o, paradoxalmente, em uma das principais fontes de intolerância do mundo; racismo que, ao eleger que um grupo racial é superior ao outro, provoca a desumanização de grupos humanos, justificando as formas mais abjetas de opressão, tais como a escravidão, os holocaustos e genocídios e a discriminação étnica e racial.

ca todas as formas de controle, violência e exclusão social da maioria dos seres huma-

Essas são algumas das ideologias que cons-

nos que pertencem ao sexo masculino; o eli-

piram contra a consolidação da democra-

tismo classista determinado por modos de

cia e o pleno gozo dos direitos de cidadania

1

Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 2.

2 Diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, pós-graduanda em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo e articulista do Jornal Correio Braziliense.

28


para a maioria da população em nosso país,

sido construída a partir de uma perspectiva

tornando o homem branco, de classe supe-

hierárquica, segundo a qual, no topo, se en-

rior e heterossexual, no único tipo humano

contram os brancos responsáveis pelo nosso

a desfrutar plenamente do exercício de di-

processo civilizatório e, na base, os negros e

reitos e poder em nossa sociedade. Por isso,

indígenas, contribuindo com pinceladas cul-

esse tipo humano, embora se constitua uma

turais exóticas, que caracterizariam o jeito

minoria, está em absoluta maioria nas ins-

especial de ser do brasileiro.

tâncias de mando e de poder da sociedade. A primeira questão que esta visão coloca é É em função dessa evidência que adentram

a despolitização dos processos de exclusão

à cena política os movimentos de minorias

e discriminação que os “diferentes” sofrem

políticas, como o Movimento de Mulheres

em nossa sociedade, como também escamo-

lutando pela igualdade de gênero, de gays

teia a forma pela qual historicamente este

e lésbicas pelo direito e respeito à orienta-

“diferente” vem sendo construído em opo-

ção sexual diferente, de negros ou afrodes-

sição a uma universalidade cultural branca

cendentes por igualdade de direitos, etc. Ou

e ocidental, supostamente legítima para se

seja, a afirmação da diferença constitui-se

instituir como paradigma, segundo o qual

num pressuposto para conquistar a igualda-

os diversos povos do mundo são avaliados.

de. E, dentre esses movimentos, a questão racial aparece no momento como aquela

Há um outro viés neste debate sobre diver-

que maior peso tem na estruturação das

sidade. Ele é tão mais aceito quanto mais

desigualdades sociais no Brasil, impactando

for capaz de encobrir um elemento básico

todos os indicadores sociais, como se pode

e estruturante da nossa sociedade, que é o

auferir pelos estudos realizados pelo IBGE,

racismo, o maior tabu da sociedade brasi-

IPEA, DIEESE entre outros. Por isso, a enfati-

leira, em relação ao qual há uma verdadeira

zamos nesse texto.

conspiração de silêncio.

A temática da diversidade sempre esteve

As organizações negras vêm, ao longo das

presente no debate nacional e informou as

últimas três décadas, denunciando os pro-

principais teses sobre a identidade nacional

cessos de exclusão a que os negros estão

ou a formação do País enquanto nação.

submetidos na sociedade brasileira, seja no mercado de trabalho, sensibilizando as enti-

Triunfou, neste debate, um discurso ufa-

dades sindicais para a incorporação da luta

nista em relação ao caráter plural de nossa

contra o racismo e pela utilização dos me-

identidade nacional, a despeito de esta ter

canismos internacionais que combatem as

29


discriminações no âmbito do trabalho, seja

turais negras, no sentido do fortalecimento

no setor empresarial, sensibilizando-o para a

da identidade étnica e racial da população

adoção de políticas de diversidade em seus

negra, tais como as oriundas dos terreiros

processos de seleção. Ocupam-se ainda em

de candomblé, das bandas de rap ou dos

projetos de capacitação e reciclagem da mão-

blocos afros. Avançou a organização política

-de-obra negra para o mercado de trabalho.

das comunidades remanescentes de quilombos, adquirindo dimensões nacionais, e elas

As ações que vêm sendo realizadas pelas

demandam, cada vez com maior contun-

organizações negras no campo da educa-

dência, ao Estado, o direito pela titulação

ção expressam-se em diferentes dimensões

de suas terras ancestrais e a um desenvolvi-

dessa temática, incidindo sobre a educação

mento sustentado.

formal nos diferentes níveis; na produção e avaliação crítica de instrumentos didáticos;

As organizações negras vêm monitorando

em projetos de formação para o exercício da

e denunciando as práticas discriminatórias

cidadania, para a capacitação para o merca-

presentes nos veículos de comunicação de

do de trabalho e/ou para o fortalecimento

massa e, através dos casos exemplares de

da capacidade de pressão sobre o Estado.

discriminação, mobilizam a opinião pública para o debate da questão racial. Essas de-

A compreensão de que o racismo e a discri-

núncias e críticas vêm obrigando os veículos

minação impedem a distribuição igualitária

de comunicação a ampliarem e diversifica-

da Justiça no Brasil vêm motivando diversas

rem a presença de negros nesses veículos,

iniciativas. A Constiuição de 1988, ao tornar

em especial na televisão.

o racismo crime inafiançável e imprescritível, criou uma oportunidade nova de enfren-

As organizações de mulheres negras, por sua

tamento do racismo na esfera legal. Desde

vez, vêm desenvolvendo uma série de expe-

então, essa perspectiva jurídica fez surgir

riências-modelo em diversos campos, tais

projetos exemplares e pioneiros, como os

como em comunicação, novas tecnologias,

SOS Racismo, serviços de assistência legal

advocacy em mídia; atendimento jurídico e

para vítimas de discriminação racial, uma

psicossocial a mulheres vítimas de violência

experiência exitosa que já se multiplicou em

doméstica e sexual; experiências inovado-

diversos estados do país e em alguns dos pa-

ras na abordagem das sequelas emocionais

íses da América Latina.

produzidas pelo racismo. E, sobretudo, as organizações de mulheres negras impulsio-

No campo da cultura, são inúmeras as ex-

naram a intervenção do ponto de vista racial

periências de politização das expressões cul-

na questão da saúde, dando visibilidade às

30


questões das doenças étnicas/raciais ou do-

ções da sociedade para a adoção de políticas

enças de maior incidência entre a população

que rompam com a apartação racial existen-

negra, denunciando o viés controlista sobre

te no Brasil, que se exprime nos índices de

a população negra que a esterilização tem

desigualdades raciais em alguns indicadores

no Brasil.

superiores aos encontrados para a África do Sul.

Portanto, as organizações negras vêm desenvolvendo um conjunto de “boas práti-

Como indica uma propaganda, “é hora de

cas”, ou de experiências exemplares, em

mudar os nossos conceitos”. Isso implica,

nível nacional, para a inclusão efetiva dos

por exemplo, desnaturalizar a heterossexua-

negros na sociedade brasileira.

lidade, a hegemonia masculina, a supremacia branca. Nesse último caso, exige, sobre-

Essas experiências expressam a responsabili-

tudo, no rompimento com o “conforto” do

dade que os negros organizados têm em re-

mito da democracia racial, em prol do reco-

lação à população negra, na busca de cons-

nhecimento de que é imperiosa a correção

trução de uma rede de solidariedade baseada

das injustiças sociais motivadas pela exclu-

na identidade racial e na consciência do per-

são dos negros, em especial das mulheres

tencimento a uma comunidade de destino

negras em nossa sociedade.

fundada numa experiência histórica compartilhada. Essas práticas visam à superação

É uma exigência ética, um pressuposto para

da discriminação racial e, sobretudo, visam

a consolidação da democracia e condição de

oferecer ao Estado e aos governos modelos

reconciliação do país com sua história, no

para políticas públicas que, ao beneficiarem

sentido da construção de um futuro mais

a comunidade negra, promovam a realização

justo e igualitário para todos.

da igualdade de direitos e oportunidades. Uma inspiradora abordagem da questão do A sociedade civil negra vem fazendo a sua

multiculturalismo no Brasil nos é oferecida

parte: denuncia, reivindica, formula e im-

por Jacques Dadesky em seu livro Racismo

plementa propostas inclusivas. No entanto,

e anti-racismo no Brasil. Partindo da noção

essas ações alcançam baixa visibilidade e

hegeliana de reconhecimento, Dadesky nos

pouca adesão e solidariedade do conjunto

anuncia que é o desejo de reconhecimento

da sociedade.

que nos leva à luta. Desejo de reconhecimento de nossa igualdade e dignidade humanas,

A problemática racial requer vontade políti-

o que se traduz politicamente na luta pelo

ca dos governos, empresas e demais institui-

direito igualitário aos bens materiais e sim-

31


bólicos de prestígio da sociedade. Desejo de

políticos e dos direitos sociais. A situação

reconhecimento de nossa identidade cultu-

dos cidadãos negros pode ser aferida pela

ral diferenciada, do qual decorre a luta pelo

garantia desses direitos: de liberdade de ir

direito de sermos quem somos, sem precisar

e vir (e não ser molestado pela polícia como

nos negar para sermos aceitos.

‘suspeito’ em função da cor da pele); de ser lembrado para ocupar posições de confian-

Para Jacques Dadesky, são esses os eixos de

ça e destaque; da possibilidade de acesso ao

luta que estruturam o discurso e a práxis

trabalho digno e à moradia; de educar-se

antirracista dos Movimentos Negros Brasi-

nas mesmas condições dos cidadãos da clas-

leiros, em resposta ao racismo característi-

se média e de acesso aos sistemas de saúde,

co de nossa sociedade que, segundo ele, ao

público ou privado”.

fundar-se num tipo de pluralismo étnico que prescinde de um tratamento igualitário das

Portanto, da forma pela qual a sociedade

diferentes culturas, legitima as hierarquias

brasileira enfrentar estas questões depen-

e desigualdades materiais e simbólicas entre

de o projeto de nação inclusiva que todos

os grupos étnicos e raciais.

desejamos ou a consolidação do projeto de nação excludente que vem sendo cons-

Da exegese das contradições colocadas por

truído há mais de 500 anos de extermínio

essa forma de racismo e do tipo de antirracis-

dos povos indígenas e de marginalização

mo que ele produz, Dadesky retirará o subs-

social dos negros em prol do desejado em-

trato para a formulação de sua concepção de

branquecimento racial, étnico e cultural do

um multiculturalismo democrático capaz de

país.

realizar, a um só tempo, o reconhecimento da igualdade da cidadania e do valor igualitário intrínseco das diferentes culturas.

Referências

Tal como afirma o jurista Jorge da Silva: “a

D’ADESKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multi-

cidadania plena se afirma pela conjugação

culturalismo - Racismos e antirracismos no

do desfrute dos direitos civis, dos direitos

Brasil. Ed. Pallas, 2001.

32


III. Pluralidade e diversidade1 Carla Ramos2

Uma pequena história ou quando significados e sensações estão juntos

país, saímos apressadas para a rua, na tentativa de entender o motivo daquele inusitado acontecimento. Quando chegamos bem perto, um carro de polícia tinha acabado de

Gosto da idéia de que as palavras têm sentido e de que muitas delas carregam sensações3. Primeiramente, vamos ao significado: Diversidade: qualidade daquilo que é diverso, diferente, variado; Pluralidade: fato de existir uma grande quantidade, de não ser o único; multiplicidade, diversidade4.

estacionar. O homem, visivelmente transtornado, afirmava que aqueles jovens “só podiam ser estrangeiros”, “só podiam ser árabes” “porque não sabiam e nem respeitavam as regras de trânsito”. Ao passo que os estudantes, um deles mais exaltado, respondeu que os seus pais eram “chilenos”, e que ele era “sueco”! A briga durou cerca de duas

E, para debater estes conceitos, reporto-

horas e terminou com os policiais contem-

-me a uma pequena história. Em outubro de

porizando a situação, os vizinhos fechando

2005, um homem com aproximadamente 60

silenciosamente as janelas, o homem indo

anos para o seu carro numa rua da tranquila

embora e os estudantes dispersando-se pelo

cidade de Malmo, sul da Suécia, e inicia uma

caminho.

discussão fervorosa com um grupo de jovens estudantes. Os gritos começam a chamar a

A razão deste sério desentendimento foi

atenção dos vizinhos, que abrem as janelas

uma suposta infração do código de trânsito

para olhar o que estava acontecendo. Eu e

cometida por um daqueles jovens, quando

a minha amiga, na época radicada naquele

andava de bicicleta. As regras para o trá-

1 A Cidade como Espaço Educativo – 2008 / PGM 5 2 Mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ/PPGSA e Analista Educacional do Salto para o Futuro 3 Bauman, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual (cf. Bibliografia). 4

Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001.

33


fego em vias suecas são rígidas e dizem

gens, os palestinos são mostrados como hor-

respeito também às pessoas que utilizam a

das de homens barbudos, que correm de um

bicicleta como meio de transporte diário.

lado para outro, aos berros, carregando cor-

Mas qual seria a importância deste evento

pos de companheiros vitimados no confron-

para pensarmos as noções de diversidade e

to. As suas mulheres vestem exóticos trajes

pluralidade? Além de nos dar uma pequena

cobrindo a cabeça e o rosto e perambulam

mostra das relações sociais daquele país, o

como fantasmas pelas mesmas ruas, ruas

conflito nos permite observar, por exemplo,

devastadas; uma paisagem inóspita, digna

que percepções de ordem moral e racial,

dos filmes de ficção científica hollywoodia-

como o fato de atribuir comportamentos

nos. Na África, que vale sublinhar, não é um

desviantes a grupos estigmatizados social-

país, mas um continente, o que em geral é

mente – neste caso: “árabes” e “estrangei-

mostrado são epidemias, mortes, guerras,

ros” – fazem parte do repertório do nosso

fome, desespero e brutalidade. Diante disso,

mundo contemporâneo, tão marcado pelo

cabe perguntar: quem são estes “árabes pa-

fenômeno da imigração e de um regime de

lestinos” e quem são estes “africanos”? Eles

verdades, de um sistema de representações

sequer têm uma língua porque não têm voz;

– por que não dizer? – ainda tributário do

não têm família, porque vivem aos bandos

colonialismo5.

e raramente são mostrados seus núcleos familiares. O que resta deste diferente, senão

Todos os dias somos bombardeados com

a sua diferença estereotipada pela mídia? E

imagens, capturadas por agências de notí-

a pluralidade de vozes, de visões de mundo,

cias internacionais, que trazem o mundo

de pensamentos, de ideologias, de corpos,

para dentro das nossas casas via telejornais,

de histórias, de História? Tudo é facilmen-

jornais impressos, revistas, internet e outras

te suplantado diante do fast food diário de

mídias. No entanto, cabe perguntar: como o

onde retiramos punhados de narrativas es-

mundo está sendo representado? Como as

tereotipadas sobre o Outro6.

“pessoas” aparecem? De que modo os lugares são retratados? Podemos observar, por

Ainda sob este aspecto, o filme do diretor ca-

exemplo, uma notícia bastante conhecida

nadense Paul Haggis, Crash: no limite, mos-

por todos nós: o conflito envolvendo israe-

tra a população da cidade de Los Angeles,

lenses e palestinos. Na maioria das reporta-

nos Estados Unidos, na iminência de um co-

5 No Brasil padecemos do mal causado pela discriminação racial, de gênero, religiosa, de classe, motivada pela opção sexual, etc. Estas atitudes atingem e traumatizam milhares de pessoas todos os dias em nosso país. 6 Só precisamos olhar ao nosso redor e prestar mais atenção nas nossas atitudes cotidianas para perceber as práticas discriminatórias, os nossos preconceitos e a dificuldade explícita de conviver com a diferença.

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lapso causado por um excesso de, digamos, diversidade e pluralidade, e pela consequente

Dinâmicas de cisão e de reconstrução

impossibilidade de convívio e comunicação em tal contexto. Neste caso, a emergência das diferenças e do fundamentalismo das identidades guetorizadas com nuanças essencialistas desarticularam o aparato das regras de convívio social que, idealmente, serviria a todos da mesma maneira. A partir de então, qualquer desentendimento passou a ser motivo para acusações de cunho racial, todo problema é interpretado como de fundo étnico, todos os desencontros são causados por barreiras linguísticas ou de costumes/tradições particulares, e as instituições operam de maneira a privilegiar grupos religiosos, castas, etc. Estes são momentos profundamente dolorosos e traumáticos para todo e qualquer grupamento humano. Não obstante este cenário pouco atraente, os personagens permaneciam ligados; todos estavam implicados nos rumos da trama, nos rumos daquela sociedade; os laços, mesmo esgarçados, sobreviviam e apontavam para algumas saídas e uma delas foi o afeto. O afeto foi/é um dispositivo capaz de reordenar, por exemplo, contextos marcados por dinâmicas violentas de conflito e cisão, como aconteceu na África do Sul, no pós-apartheid7.

Alguns autores apontam, e eu me identifico com esta perspectiva, que estamos em meio a um turbilhão de mudanças que atingem, em cheio, os padrões de identidade que conhecemos na chamada modernidade tardia8. De acordo com isso, teríamos o seguinte quadro interpretativo: temos o mundo social e os indivíduos que, por sua vez, se ligam ao primeiro por um conjunto de referências e estas podem ser culturais, por exemplo. Tais referências atuam “estabilizando” os indivíduos em seus contextos. O meu objetivo neste texto é fazer um exercício de reflexão acerca da noção de diversidade e pluralidade num mundo em movimento, não é demais lembrar, onde as tradicionais fontes de representações culturais, de significados, como o Estado-Nação, deixam de ser hegemônicos. As consequências são variadas e é preciso um esforço de investigação amplo e extenso para dar conta de mapeá-las. No entanto, é importante seguir algumas pistas que podem nos levar na direção destas mudanças na ordem das identidades culturais: se por um lado os padrões de identificação tradicionais do Estado-Nação perderam força

7 Esta “saída” foi habilidosamente apresentada num romance da autora sul-africana Nadine Gordimer chamado: Engate. 8 Não vou me estender aos pormenores do debate. Para tanto, sugiro o precioso e inspirador livro do autor jamaicano Stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade.

35


no embate com a diversidade e a pluralidade

ao fim por causa de um povo/raça fraco e

reivindicadas pelos grupos que antes esta-

doentio; um contingente de homens e mu-

vam silenciados sob o plácido manto “na-

lheres resultante de assombrosos intercur-

cional”; de outro lado, acompanhamos o

sos sexuais entre negros, brancos e índios.

ressurgimento de um nacionalismo de tipo

Uma população cuja força havia se enfra-

étnico/racial e fundamentalista religioso.

quecido biologicamente, havia se tornado impura, sem chances de vida.

Diante deste quadro, quem sabe, poderíamos resgatar a tese de Gramsci, e trabalhar

Sobrevivemos a isso? Alcançamos o século

a partir do entendimento de que o mundo

XXI! Mas de que maneira nos livramos desta

das disputas políticas é o palco para a con-

sentença de morte e alcançamos a condição

quista de mentes e corações para esta ou

de “País do Futuro”10? Que engenharia so-

aquela ideologia. A diversidade e a plurali-

cial foi responsável por este acontecimento?

dade, como valores para serem celebrados,

Vou ressaltar, de maneira bastante sintéti-

não nascem por geração espontânea, não

ca, apenas uma dimensão desta luta por um

são algo genético, alguma coisa inevitável.

contra-argumento bastante representativo:

Pelo contrário, são ideologias, forjadas, la-

foram muitos anos de intensa produção

pidadas, escolhidas e levadas a cabo por

intelectual por estas terras e pelo mundo

obra e engenharia humana, dos grupos so-

afora até que a tese das diferenças culturais

ciais, portanto, são históricos9! O Brasil, por

conseguisse um campo maior de hegemo-

exemplo, no século XIX, foi condenado pela

nia, em prejuízo do biologismo, da hipótese

ciência europeia eugenista a poucos anos

segundo a qual a humanidade devia as suas

de sobrevivência como nação; isto porque

diferenças às divisões raciais que classifi-

era escandaloso verificar as variações de

cavam os grupos humanos de acordo com

cores e tipos de pessoas que conviviam nas

a sua localização numa linha evolutiva11. O

cidades do antigo Império Português. “Es-

Brasil começou a ganhar fôlego e horizonte

candaloso” é uma boa palavra para resumir

a partir da celebração da mistura – genéti-

o sentimento de estranhamento e horror

ca e cultural – do povo que por estas terras

declarado por renomados cientistas e po-

está12. Misturar, mesclar, sincretizar, tornar

líticos franceses e ingleses depois de um

híbrido tanto pessoas quanto tradições cul-

pequeno passeio pelas ruas do Rio de Janei-

turais: a celebração destas possibilidades

ro. Não tínhamos saída! Estávamos fadados

precisa ser inventada.

9 Uma leitura interessante é o artigo de Claude Lévi-Strauss chamado Raça e História.

36


A cidade como espaço a ser permanentemente conquistado

raízes? Mas a cidade também é raivosa e, muitas vezes, dá as costas aos sujeitos. E quando isso acontece, os movimentos sociais – os coletivos organizados – precisam

Visto isso, podemos pensar a respeito do

retomá-la à força. Por isso, será necessário

papel da cidade neste grande panorama

apropriar-se do patrimônio da cidade, de

que acabamos de desenhar. A cidade é o

sua pedra e cal, da sua intangibilidade para

lugar onde estes embates se dão, ela é mol-

depois colocar no plural a História e, por

dada, ela está organizada, ela reflete e é

fim, afirmar como é diversa a cidade que

refletida nestes encontros promovidos sob

antes se fez arredia.

a égide da diversidade e da pluralidade. Em suma, a cidade é um ente pulsante neste

A cidade precisa ser constantemente captu-

jogo. A geofísica, as fronteiras, a arquite-

rada por seus cidadãos, afinal de contas, são

tura, o seu desenho sociopolítico: a cida-

eles que lhe imprimem sentido. A educação

de é chão e abstração. Quando emigram,

formal e a não-formal nos dão instrumentos

as pessoas levam consigo as suas cidades.

mais eficazes para colocar em prática este

Com elas viajam hábitos, cheiros, gostos,

intenso processo de reelaboração das “his-

festas, paisagens, sotaques característicos,

tórias locais” sem perder de vista os “pro-

etc. Neste sentido, a cidade está inscrita

jetos globais”13. Quando olhamos ao nosso

em nossos corpos. Dessa maneira, quão

redor, quando descobrimos e organizamos

desnorteador deve ser o desaparecimento

as histórias sobre o lugar onde nascemos,

súbito de uma cidade que sucumbe à guer-

o bairro onde vivemos, a cidade em que

ra... Dá para imaginar o quanto de agonia

transitamos, estamos refazendo a paisa-

está disseminada entre milhares de pesso-

gem, apresentando nossas vozes e nossas

as que vivem há anos nos campos de re-

percepções sobre aquele espaço. É como

fugiados espalhados pelo planeta, que vi-

me explicou um jovem participante do gru-

vem neste vácuo, neste espaço provisório

po “Reperiferia”, do Rio de Janeiro, dizendo

que teima em não permitir que elas deitem

que “Reperiferia” significa repensar a peri-

10

Para saber mais, indico a leitura do clássico livro de Stefan Zweig: Brasil um país do futuro.

11 Sobre este tema, as minhas fontes para estas questões costumam ser os livros: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire; Raça, Ciência e Sociedade, organizado por Marcos Chor Maio e Ricardo dos Santos Ventura; Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, da antropóloga Olívia Cunha. 12 Ver Gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala (1933). 13 Fiz esta referência inspirada por um pensador argentino que vale a pena ser lido, Walter Mignolo. O livro em questão tem o título: Histórias Locais, Projetos Globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. (2003).

37


feria; pensar novamente alguns lugares da

GORDIMER, Nadine. Engate. Rio de Janeiro:

cidade que já estiveram submetidos ao olhar

Companhia das Letras.

de outras pessoas, muitas vezes descoladas daquela realidade. A ideia é recolocar-se na cidade a partir de um entendimento amplo

HALL, Stuart. A Identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.

dos procedimentos de construção de sua ge-

Dicionário HOUAISS. Rio de Janeiro: Editora

opolítica e das dinâmicas culturais e sociais

Objetiva, 2001.

que algumas vezes nos separam, e em outras refazem laços afetivos que imagináva-

LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In:

mos não mais existir.

Raça e Ciência I São Paulo: Unesco/Editora Perspectiva, 1970.

REFERÊNCIAS MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo VenBAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca

tura (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de

por segurança no mundo atual. Rio de Janei-

Janeiro: Fiocruz/ CCBB, 1996.

ro: Jorge Zahar Editor, 2003. CUNHA, Olivia M. Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in) diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002.

MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: HB/Ed. UFMG, 2003.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio

ZWEIG, Stefan. Brasil um país do Futuro. Por-

de Janeiro: Editora Record, 1998.

to Alegre: L&PM, 2006.

38


IV. Saberes culturais e educação do futuro1 Edgard de Assis Carvalho2

O que são saberes culturais? São o acervo

saberes. De qualquer modo, denominou-se

de conhecimentos, entendimentos, realiza-

Cultura a esse patrimônio material e imate-

ções, progressos, regressões, utopias, desen-

rial de proporções milenares.

cantamentos, produto de uma aventura que nós construímos no planeta Terra, datada de pelo menos 130 mil anos. As sociedades humanas, tal como as conhecemos hoje, são o produto de uma longa evolução que possibilitou a um pequeno bípede, com um cérebro muito assemelhado ao de um chimpanzé, e ainda mais ao de um bonobo, criar cognições, transmiti-las, codificá-las. Nossas diferenças para com os primatas não humanos diminuem a cada dia. O genoma das duas espécies tem semelhanças de 99%. Mês passado, foi identificado o FOXP2. Humanos que apresentam defeito nesse gene apresentam graves problemas de fala. Chimpanzés, orangotangos, resus e gorilas também o possuem. Talvez uma dissipação genética

Desde que o mundo passou a ser explicado pela ciência, instituiu-se uma fronteira entre humanos e não humanos que nunca foi suficientemente explicitada. Essa divisão entre animalidade e humanidade foi responsável por muitas das definições pelas quais o conceito de cultura passou a ser entendido. Em finais do século XIX, por exemplo, a cultura era definida como a mera soma de fatos que incluía desde tecnologias, artes, até magias, religião, parentesco. Em meados dos anos XX, o conceito adquiriu contornos mais precisos, dado que o Ocidente voltou seu olhar e sua cobiça para outros mundos, considerados por uns como inferiores, por outros simplesmente como diferentes, nativos, primitivos, selvagens.

tenha sido responsável pelo fenômeno da fala, essa fantástica marca dos primatas hu-

Instalou-se, a partir daí, a pulsão da desco-

manas que tornou possível criar e transmitir

berta e a compulsão da descrição, definido-

1 Complexidade e seus reflexos na educação (2002). 2 Professor titular de Antropologia. Coordenador de COMPLEXUS – Núcleo de Estudos da Complexidade da Faculdade/PG de Ciências Sociais da PUC/SP.

39


ras do metiê antropológico. As sociedades

preconceituoso para explicar a essência dos

humanas passaram a ser identificadas a or-

interditos. De qualquer forma, a proibição

ganismos, cujas partes garantem, por vezes

passou a sinalizar a passagem da natureza

precariamente, a continuidade harmoniosa

à cultura, da universalidade à diversidade,

do todo. Embora a analogia fosse precária,

garantia da perpetuação e reprodução do

os pesquisadores passaram a admitir que o

mundo, propiciada pela circulação de mu-

funcionamento das instituições era o único

lheres, bens econômicos e mensagens.

responsável pela regulação da engrenagem da sociedade. Se, por um lado, esse tipo de

Em decorrência disso, passou-se a questio-

explicação propiciou uma radiografia por-

nar se essas alteridades eram mesmo dife-

menorizada de usos e costumes, delibe-

rentes em natureza (primitivo/civilizado),

radamente não levou em conta que essas

em grau (inferior/superior) e pensamento

diferenças já faziam parte de um processo

(pré-lógico e lógico). Admitir que outros po-

histórico altamente desigual, que opunha, e

vos pensavam como nós e, por vezes, me-

opõe até hoje, Oriente a Ocidente, civilizado

lhor do que nós, representou um duro golpe

a primitivo, moderno a arcaico, capitalista a

para muitos, já narcisicamente abalados pe-

nativo ou indígena.

las impertinências e ferimentos provocados pelas revoluções copernicana, darwiniana e

No final dos anos 40, a distinção entre o

freudiana. Mesmo que não tivessem escri-

natural e o cultural passou por alteração

ta para registrar seus saberes, os mitos que

significativa, mesmo que a ideia da nature-

construíram para entender melhor a reali-

za como universalidade dos instintos e a de

dade em que viviam atravessaram gerações

cultura, como diversidade de padrões tenha

e, até hoje, surpreendem leitores e pesqui-

sido mantida. Passou-se a postular que entre

sadores.

a natureza e a cultura havia algo simultaneamente universal e particular, um fenôme-

O arrogante pensamento domesticado, mo-

no que se encontrava presente em todas as

derno, científico, que se consolidou a partir

sociedades humanas e que, ao mesmo tem-

do século XV, cercado de certezas, leis, de-

po, era diferente em muitas delas. Esse algo

terminismos, causalidade, teleologias, dei-

mais era a proibição do incesto. O respon-

xou de lado a preocupação com a totalidade,

sável por este estudo foi Claude LéviStrauss.

com a intuição, com o imaginário, passando a se concentrar no entendimento do frag-

Se o incesto não tinha nada a ver, neces-

mento, da parte, supondo que através deles

sariamente, com uniões consanguíneas, o

seria possível atingir uma objetividade sem

apelo da “voz do sangue” tornou-se inútil,

parênteses. Com isso, virou as costas para

40


o sujeito, para a incerteza e para a comple-

Para surpresa de muitos, esses estranhos

mentaridade, privatizou terras e mares, con-

mundos passaram a ser considerados como

siderou magias e mitos como algo irracio-

as primeiras “sociedades da afluência”, pois

nal, produto descartável criado pela mente

dedicavam poucas horas ao trabalho e, em

obscura de selvagens, ou por alucinações

muitas delas, a palavra trabalho nem existia.

dos civilizados.

O restante do tempo era dedicado aos rituais reforçadores da vida e da solidariedade

A principal consequência dessa visão de

coletivas.

mundo, no plano da educação, acabou por consagrar, em décadas posteriores, a figura

Essa ampliação cognitiva não conseguiu

do especialista, esse humano fechado em si

abalar o sólido edifício do grande paradigma

mesmo, egoísta, que descarta e desconsi-

do Ocidente, e isso porque ainda mantinha

dera tudo aquilo que ocorre para além dos

a definição do humano dentro de padrões

contornos infinitamente pequenos de sua

normativos demais. Afinal de contas, fazen-

existência e de seu objeto de pesquisa.

do parte do gênero homo, a espécie sapiens é igualmente faber, porque fabrica instrumen-

O final dos anos 60 provocou outra altera-

tos, loquens, porque articula fantásticos jo-

ção no entendimento entre nós e os outros,

gos de linguagem, ludens, porque se encan-

só que agora referente às formas materiais

ta com jogos e rituais, simbolicus, porque

de vida, às relações com a natureza pro-

atribui significados ao mundo e acumula e

priamente dita. Um número considerável

transmite saberes.

de pesquisadores, identificados com o materialismo histórico, debruçou-se sobre po-

Não foi fácil admitir que não éramos ape-

pulações não capitalistas, demonstrando

nas sapiens. Se chimpanzés, bonobos, gori-

que uma vida igualitária, regida por normas

las já exibem sapientalidade, ganhamos um

coletivas e solidárias não era coisa do outro

segundo adjetivo e passamos a ser definidos

mundo. Constatou-se, também, que não era

como sapiens sapiens. A repetição do ter-

necessário trabalhar arduamente em tempo

mo não se deu por acaso. As pesquisas de

integral para que a comunidade sobrevives-

Richard e Louis Leakey, Jane Goodall, Frans

se dignamente. Maurice Godelier e tantos

de Waal mostram a todos nós que a cultu-

outros foram os responsáveis por essa esto-

ra, antes privilégio nosso, é algo muito mais

cada no relativismo substantivista, que sem-

amplo do que supúnhamos anteriormente.

pre se traveste de tolerante para justificar e

O “antropocentrismo satírico” de Wall fun-

manter a dominação.

damenta-se no pressuposto de que chim-

41


panzés, por exemplo, vivem em sociedades

inscritos numa complexa ordem biológica;

complexas, e se arranjam como podem para

somos culturais porque capazes de elaborar

enfrentar alianças, conflitos e lutas pelo po-

estratégias de sobrevivência e adaptação, a

der. Bonobos preferem fazer amor sob for-

curto, médio e longo prazos, onde quer que

mas as mais variadas, para que as contendas

nos encontremos. Em resumo, e a ideia é de

se anulem e a reconciliação seja reposta.

Edgar Morin, somos 100% natureza, 100% cultura, ou melhor dizendo, somos seres vi-

A diminuição da distância intelectual e cog-

vos uniduais, carregamos conosco uma tra-

nitiva entre primatas exigiu que o conceito

jetória biológica milenar, ao mesmo tempo

fosse visto de modo menos excludente, o

em que somos portadores de um vasto acer-

que de fato ocorreu a partir dos anos 70. Ao

vo cultural constituído pela memória coleti-

manter acopladas as noções de unidade e

va da espécie.

diversidade, a cultura passou a ser entendida como um conjunto complexo de saberes,

Porque falamos, comunicamos, planejamos,

por vezes contraditório, por outras harmô-

calculamos, competimos, amamos e odia-

nico, de regras, normas, valores, mitos, so-

mos, passamos a nos autoatribuir uma su-

nhos, que primatas, humanos preferencial-

perioridade ímpar perante os demais seres

mente, acionam ao se defrontarem com os

vivos. Em cada um de nós existe algo que es-

desafios do ecossistema circundante.

capa a essas características normativas demais, sistemáticas demais. A cada momen-

Semelhantes e diferentes, universais e par-

to, somos invadidos por delírios, sonhos,

ticulares, produzimos diferenças locais que

excessos, loucuras, descomedimentos que

não devem ser entendidas como ilhas inco-

escapam a nosso controle explícito, cons-

municáveis de um arquipélago, mas como

ciente.

um continente de objetos complexos, manifestações de algo mais profundo e universal,

Treinados pela educação familiar e escolar a

construído num longo processo evolutivo

afastá-los de nossa imaginação e a recalcá-

não linear, que envolveu sempre perdas, ga-

-los em nossa psique, temos que reaprender

nhos, avanços e recuos.

a conviver e dialogar com eles, ou seja, introjetar em nossas cabeças que somos sá-

Longe de serem consideradas como uma

bios e loucos, unos e múltiplos, duplos, e

dualidade de fronteiras intransponíveis, é

que é exatamente isso que vialibizará, sem

preciso acionar os operadores da recursivi-

excessos, processos civilizatórios solidários

dade e da dialógica e enxergar a natureza na

e processos educativos religados. Sapiens sa-

cultura e vice-versa. Somos naturais porque

piens demens, eis nossa condição, plano de

42


imanência que nos permite viver, sobreviver,

pativo, restaurador do homem genérico,

afrontar, e talvez superar, a insignificância

que envolve princípios, valores, utopias e,

dos mal-estares pós-modernos comandados

certamente, um contrato planetário, social

pela unidimensionalidade da tecnociência,

e natural, no qual animais e homens, natu-

pela compulsão da conectividade, pela des-

reza e cultura não se separem mais.

razão da política, pela insuficiência dos afetos.

Traduzir esses pilares para a sala de aula é uma tarefa complexa, dadas as condições

Precisamos de um novo sujeito do conhe-

em que o ensino se encontra, debatendo-

cimento, que não seja tecnofóbico e muito

-se entre uma utopia democrática, a escola

menos antropofóbico, que reconheça o pa-

para todos, e uma realidade meritocrática, a

pel das tecnologias do infinitesimal, sem

escola para alguns. Além disso, a fragmen-

atribuir-lhes papel determinante para desti-

tação disciplinar, empenhada em transmitir

nos futuros. O planeta tem urgência de ser

conteúdos e gerar competências, esquece-se

mais integrativo e interdependente. Se fosse

de que a formação do sujeito responsável re-

possível traduzir esse ponto de vista em slo-

quer como ponto de partida a religação dos

gans de um programa político, as palavras de

saberes, cabeças bem-feitas, como preten-

ordem dessa biocosmopolítica serão: conser-

dia Montaigne.

vação em lugar de destruição, religação em lugar de fragmentação, cooperação em lugar

Uma vez perguntaram a um poeta, mais

de competição, partilha em lugar de concen-

exatamente a Yves Bonnefoy, porque ele

tração, inclusão em lugar de exclusão.

considerava fundamental o ensino da poesia nas escolas. Sua resposta foi direta e

A UNESCO, ao promover os quatro pilares

incisiva. Disse ele que a poesia propiciava

da educação para o século XXI, em torno de

a prática da liberdade para com as palavras

quatro formas de aprendizagem, a saber:

e a vivência da responsabilidade com um

conhecer, fazer, viver junto e ser, estava cer-

mundo melhor, com o sentido da vida. A po-

tamente imbuída da ideia de que a humani-

esia e a literatura em geral, as artes, com as

dade, a Terra-Pátria, não pode ser concebida

imagens que constroem, criam uma fantás-

como um meio de obter lucros e vantagens

tica reserva de emoções, abrem janelas para

para poucos, mas como um fim a ser cons-

o mundo, acionam níveis de realidade não

truído por todos e para todos. Na verdade,

percebidos pela linguagem fria e distante

trata-se de um aprendizado complexo, a ser

dos conceitos. Quando se aprende um po-

exercitado não apenas nas escolas, mas na

ema de cor, quando se lê um romance pela

vida em geral. Um amplo processo partici-

décima vez, ou se guarda a imagem de uma

43


pintura, eles permanecem para sempre em

conhecimento pertinente e não se deixar se-

nossa mente, como fiéis companheiros que

duzir pelos confortáveis apelos da fragmen-

nos convidam a encarar a desregulação do

tação e da hiperespecialização. Restaurar o

mundo de modo menos pessimista, a per-

conhecimento pertinente implica integrar

ceber a realidade de forma menos linear, a

razão e paixão, onda e partícula, unidade e

descrer dos ditames da razão, a usufruir das

multiplicidade, arte e ciência, em acionar

delícias do imaginário.

uma espécie de significante flutuante, uma força primordial que circula por toda parte,

Essa escuta do mundo não implica obrigar

que atravessa todos os códigos, que recupe-

as escolas a incluírem a poesia em seus cur-

ra o sentir, o agir e o pensar, que religa indi-

rículos, embora isso fosse até desejável. Ela

víduo, sociedade e cosmo, que se situa além

alerta, porém, para o fato de que ciência e

e aquém da vida e da morte.

imaginação não se excluem, mas se complementam, empenhadas que estão na decifra-

Toda vez que pensadores instauradores de

ção dos enigmas da vida. Não é mais possí-

discursividade utilizaram-se da forma meta-

vel que a educação do século XXI mantenha

fórica da arte para aclarar o conteúdo som-

a separação entre as duas culturas, a saber: a

brio e metonímico da ciência, os saberes

cultura científica e a cultura das humanida-

culturais se enriqueceram, as duas culturas

des. Refiro-me, mais uma vez, aos propósi-

se interligaram, a educação sentiu-se mais

tos da UNESCO que pregam os princípios de

gratificada. Vejamos alguns poucos momen-

educação permanente, sociedade educativa,

tos escolhidos ao acaso na vasta história do

reciclagem e atualização contínua dos con-

pensamento em que isso ocorreu.

teúdos, sinergia entre alunos e professores. Um ensino compartimentalizado não conse-

Claude LéviStrauss, em 1962, muniu-se de

guirá jamais promover esses objetivos. A re-

um pequeno quadro de François Clouet do

ligação exige não apenas cabeças bem-feitas,

século XVI (1515-1572), Elisabeth da Áustria,

mas disponibilidade e revolta docentes para

para construir a ideia de modelo reduzido

abrir compartimentos, fomentar incertezas,

como elemento propiciador da emoção es-

promover o diálogo, reinventar o mundo.

tética e da visibilidade dialógica entre a parte e o todo, magia e ciência, arte e ciência,

Se o século XX presenciou a irrupção da de-

jogo e rito.

sordem, da incerteza e da complementaridade e expôs como nunca a interface en-

Humberto Maturana e Francisco Varela

tre ciência e política, o século XXI tem pela

abrem seu fabuloso livro, A Árvore do conhe-

frente a inédita possibilidade de restaurar o

cimento, com Hieronimus Bosch (1450-1516),

44


“O Cristo coroado de espinhos”. Para Ma-

cifrá-los e analisá-los. Se a história humana

turana e Varela, o quadro expressa as ten-

possui sempre um caráter não determinista,

tações da certeza. Cristo, no centro, revela

devemos privilegiar as experiências da cria-

imensa paciência diante dos verdugos, coisa

tividade, esse algo mais que resiste ao pen-

que precisamos muito diante da vigilância

samento em detrimento das experiências da

cognitiva que nos ataca constantemente. O

repetição, prosaicas, equilibradas demais.

personagem do canto direito segura Jesus

A arte de viver expressa exatamente isso: a

pelo manto. Restringe sua liberdade, parece

luminosidade da criatividade e a singeleza

dizer “eu sei, eu sei”. Certezas demais, con-

da repetição. Simetricamente irreversíveis,

vicções demais.

nos debatemos entre essas duas dimensões existenciais, pulsões constitutivas do serno-

Edgar Morin refere-se, com certa frequência,

mundo, como se a ordem nascesse sempre

a Guiseppe Archimboldo (1527-1593). Quan-

da desordem, a vida sempre da morte, e as-

do tomamos contato com suas pinturas,

sim sucessivamente.

nos surpreendemos com o caráter alegórico da harmonia e do caos, a interdependência

Finalmente, reencontramos Fernando Diniz

dos quatro elementos, das estações do ano,

(1918-1999). Em 1944, foi preso e levado para

a comple¬mentaridade de flores, frutos e

o manicômio judiciário, porque, segundo

peixes, as agruras e o peso da acumulação

dizem, andava nu pelas areias de Copacaba-

dos saberes. O Livreiro, um de seus quadros

na. Em 1949, foi internado no Centro Psiqui-

mais comentados pelos críticos de arte, en-

átrico D. Pedro II, de onde não saiu nunca

contra-se literalmente embriagado de livros,

mais. Iniciou-se nos ateliês de artes coorde-

tragado pelo conhecimento. Descarnado, a

nados por Nise da Silveira, a doutora Nise,

cortina o livra das intempéries do frio. Um

odiada pela vigilância cognitiva instalada

pouco de todos nós estamos contidos nas

na psiquiatria cartesiana, que considerava

imagens desse Livreiro, que acumula e religa

os coterapeutas utilizados pelos clientes

saberes sem saber ao certo o que fazer com

simplesmente como animais destituídos de

eles, como operacionalizá-los.

emoções. A doutora sabia muito bem que seus gatos e cachorros sofreriam muito nos

Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de

corredores hospitalares do Pedro II. Não

1977, debruçou-se recentemente sobre René

esmoreceu. Colocou tintas, pincéis, barro,

Magritte (1898-1967). Para Prigogine, Magrit-

tecidos, linhas nas mãos de Artur Bispo do

te enfatiza sempre os mistérios da existên-

Rosário, Adelina, Carlos, Raphael, Emygdio,

cia humana, insistindo que a obra de arte

Fernando, permitindo que “inumeráveis es-

os explicita e a ciência pretende, apenas, de-

tados do ser” aflorassem, mesmo diante das

45


tristes consequências que choques, medica-

que não tem fim”. Desfez a separação entre

mentos, desafetos e abandonos provocam

arte e loucura, consciente e inconsciente,

na psique. Qualquer visita ao Museu das

religou saberes.

Imagens do Inconsciente, criado em 1952 no Rio de Janeiro, produz uma infinita sensação

Afinal de contas, como ele mesmo afirma

de êxtase diante dos símbolos que as forças

num texto que escreveu, “a estrela existe,

do inconsciente acionam e explicitam.

antes de tudo, em cima da estrela se desenham círculos, e em cima dos círculos bor-

Fernando Diniz produziu não apenas tape-

boletas ou margaridas”. Em 1996, foi pre-

tes digitais e mandalas, mas um mosaico de

miado no Festival de Gramado na categoria

imagens figurativas, abstratas, orgânicas,

de melhor curta-metragem com o desenho

inorgânicas. Trinta mil obras: telas, dese-

animado “A estrela de oito pontas”, para o

nhos, modelagens, tapetes, alguns titulados

qual realizou cerca de 40 mil desenhos. Rea-

outros não. Diz ele: “mudei para o mundo

lizou sua última exposição em 1998, no Mu-

das imagens”. Instado a definir o que era

seu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

um pintor afirmou: “o pintor é feito um livro

Morreu em 1999.

46


V. Redes

de convivência e de enfrentamento das

desigualdades1 Elizeu Clementino de Souza2 “Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio: pilar da ponte de tédio que vai de mim para o outro” (Mário de Sá Carneiro).

Sinopse

da construção da identidade profissional no processo da formação docente e do desen-

O texto aborda questões relativas à identi-

volvimento profissional de professores, no

dade e à diferença no cotidiano escolar e

que se refere às diferenças e à intercultura-

as implicações nas práticas de formação.

lidade na escola.

Busca discutir aspectos concernentes à fabricação de identidades docentes e formas historicamente construídas de regulação no cotidiano escolar e no desenvolvimento profissional dos professores, a partir das práticas pedagógicas implementadas na cultura escolar, no tocante à homogeneização das identidades, em negação à cultura da diferença.

Vivemos numa sociedade marcada pela pluralidade de imagens e diferenças sociais e culturais. A escola, por sua vez, buscará desenvolver seu projeto pedagógico com ênfase nas diferenças e nas relações que os indivíduos estabelecem consigo mesmos e com os outros. Convém questionar se nós, professores, desenvolvemos nossas práticas tendo em vista a assunção das identidades

Neste texto, que visa oferecer subsídios aos

e o respeito às diferenças. Como podemos

debates do terceiro programa da série, pre-

viver os projetos de igualdade e do respei-

tendo discutir questões teóricas e práticas

to à diversidade, tão presente e marcada na

relacionadas à construção da identidade e à

sociedade brasileira? De que maneira a es-

vivência das diferenças no cotidiano escolar.

cola pode tornar-se um território favorável à

Pretendo, também, analisar as implicações

aprendizagem do convívio com a diferença?

1 Espaços de encontro: corporeidade e conhecimento – 2005 / PGM 3. 2 Doutor em Educação pela FACED-UFBA, Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia e das Faculdades Integradas Olga Mettig.

47


Compreendo a educação como um processo

para a vivência, para a tolerância e para o

de autotransformação do sujeito, que en-

respeito ao exercício da cidadania.

volve e provoca aprendizagens em diferentes domínios da existência, evidenciando o

Discutir a fabricação da igualdade, tomada

processo que acontece em cada indivíduo,

aqui como projeto de homogeneização dos

traduzindo-se na dinâmica que estrutura ou

indivíduos e da negação das diferenças no

é estruturada por cada um no seu modo de

espaço da escola, é uma tarefa que exige re-

ser, estar, sentir, refletir e agir. Sendo assim,

afirmação de novas e constantes opções que

a educação e, por consequência, também

cruzam e entrecruzam a compreensão do

a formação, não se esbarram na transmis-

mundo, da vida, das aprendizagens e expe-

são e aquisição de saberes, na transferência

riências construídas ao longo da existência.

de competências técnicas e profissionais e, tampouco, na assertiva das potencialidades

A vivência escolar se entrecruza, no seu co-

individuais. Filio-me à perspectiva epistemo-

tidiano, com valores produzidos no coleti-

lógica da formação experiencial, por enten-

vo e no âmbito social, na medida em que

der que a noção de processo de formação

esses valores se modificam de acordo com

que ela implica possibilita o centramento

os condicionantes econômicos, políticos,

no sujeito na globalidade da vida, entendida

institucionais, culturais, físico-ambientais e

como interação da existência com as diver-

ético-estéticos. Compreendo que é desse en-

sas esferas da ‘con-vivência’ como perspec-

trecruzamento que são apropriados, cons-

tiva educativa e formativa.

truídos e reconstruídos diversos processos e formas da vida dos sujeitos como produ-

É na dinâmica da vida e nas histórias tecidas

tores e construtores da história. Por isso,

no nosso cotidiano que aprendemos dimen-

penso que não devemos fechar a noção de

sões existenciais e experienciais sobre nós

“identidade” como algo fixo, imutável e cris-

mesmos, sobre os outros e sobre o meio em

talizado, porque significa construção, daí a

que vivemos. No entrecruzamento de nossas

necessidade de compreendê-la como pro-

aprendizagens, a escola exerce um papel sin-

cesso que comporta subjetividades, comple-

gular, visto que neste espaço ‘convivemos’

xidades, diferenças e não igualdades.

e internalizamos papéis sociais apreendidos no cotidiano familiar. O investimento na for-

É fundamental desconfiar de tudo que é

mação de professores e no trabalho coletivo

naturalizado, especialmente, em relação às

na escola poderá possibilitar outras formas

práticas cotidianas engendradas na escola e

de trabalho didático e pedagógico, que con-

no espaço familiar, as quais são ancoradas

tribuam para a reafirmação de identidades,

em padrões, envolvendo os sujeitos e refor-

48


çando o projeto de igualdade, reforçando a

mos a construção das identidades, também

marginalização e escamoteando as diferen-

somos perseguidos por esse modelo de es-

ças3 daqueles que transitam e optam por

tabilidade, de harmonia e de cristalização

formas de expressão e de manifestação que

como padrão desejado. A sociedade nos

não se enquadram nas legitimidades sociais

dá, prontas, algumas identidades: homem,

e institucionais.

mulher, professor, artista, mãe, pai, família, escola etc.” (Pereira, 2000, p. 36). Desta for-

Teoricamente, busco em Louro (1997, 1998),

ma, reitera o autor que: “Uma identidade é,

Hall (2000) e Silva (1999, 2000) princípios te-

nesse caso, uma configuração cristalizada,

óricos que me possibilitem apreender con-

estereotipada de uma maneira de ser ou um

ceitos e políticas de sentido sobre a iden-

ritmo determinado em responder às figuras

tidade e a diferença no cotidiano escolar,

demandadas [...]. A institucionalização das

visto que “[...] consideramos a diferença

identidades é uma forma de homogeneizar

como um produto derivado da identidade.

o cotidiano e construir os grupamentos e as

Nesta perspectiva, a identidade é a referên-

coletividades [...]” (idem, p. 37). Evidencia-

cia, é o ponto original relativamente ao qual

-se que a identidade não é uma construção

se define a diferença [...]” (SILVA, 1999, p. 74-

do sujeito por ele mesmo em suas relações

5). Numa outra perspectiva, e no que con-

individual e coletiva, mas sim uma diferen-

cerne à fabricação de identidades docentes,

ça que o sujeito produz em si. Por isso, a

busco em Lawn (2000), Moita (1992) e Nóvoa

identidade é produzida e forjada conforme

(1992a, b), aspectos teóricos sobre a cons-

os modelos e padrões estabelecidos, como

trução de identidades profissionais e práti-

quer a nossa sociedade, com base nas es-

cas de regulação engendradas nas políticas

tratégias e estratificações convencionadas

de formação.

socialmente.

Ao abordar a subjetividade e o processo de

Ao discutir sobre “Os professores e a fabri-

formação e (auto) formação do “devir pro-

cação de identidades” Lawn4 (2000) afirma

fessor”, Pereira afirma que: “Quando pensa-

que a construção e as alterações na identi-

3 Para o aprofundamento dessa questão, consultar o trabalho de Stela Rodrigues dos Santos (2001): ‘O mito da homogeneidade no cotidiano da escola: um ideal insensato’, quando a autora analisa implicações e práticas discriminatórias e homogeneizadoras no cotidiano escolar, no tocante à fabricação de identidades dóceis e subservientes. 4 Embora, como salienta o autor, o texto trate de um caso particular – os professores e a sociedade inglesa –, entendo que as questões por ele colocadas são cabíveis em outras esferas, que não especificamente o sistema público inglês. Afirma o autor que “[...] A identidade do professor tem o potencial para não só refletir ou simbolizar o sistema, como também para ser manipulada, no sentido de melhor arquitetar a mudança [...]” (Lawn, 2000, p. 71).

49


dade são forjadas e governadas pelo Estado,

aos modelos político-econômicos e refletem

o qual utiliza discursos como forma de con-

as alterações que são impressas no trabalho

trolar as “identidades oficiais”. O discurso

docente, relacionando-se às formas de con-

revela-se como elemento de governação das

trole sobre a identidade dos professores e as

identidades oficiais e gerencia as reformas

tecnologias impostas pelo trabalho.

pensadas como estratégias políticas de um determinado momento histórico.

Historicamente, as questões sobre fabricação da identidade e políticas reguladoras de

O controle da identidade dos professores e

fronteira são ilustradas pelas lutas e tensões

o estabelecimento de ações de fiscalização

dos professores nos movimentos trabalhis-

instauram-se como matriz da gestão da pro-

tas ao longo do século XX, na vinculação a

fissão, porque a mesma deve refletir e ade-

partidos de esquerda, na eleição ou candi-

quar-se ao projeto educacional do Estado e

datura de professores e na participação em

representar a ideia de “identidade nacional e

movimentos sociais.

de trabalho” (p. 69), como forma de garantir mudanças no sistema educativo.

Em diferentes períodos e reformas, a fixação da identidade dos professores, gerenciada

Evidencia-se que a identidade é produzida

através dos discursos, materializa-se nas

e performatizada através do discurso legal,

mudanças e na reestruturação do trabalho.

do administrativo e do pedagógico, os quais

Estruturas e políticas tácitas são pensadas

são expressos através de parâmetros, regu-

pelo Estado como forma de regulação das

lamentos, manuais, portarias, discursos pú-

identidades dos professores, seja para a ma-

blicos, projetos e programas de formação.

nutenção das identidades oficiais ou para o policiamento das fronteiras identitárias. Os

A relação posta pelo autor entre a fixação de

professores contrapõem-se, através dos mo-

uma identidade nacional ou oficial e o mun-

vimentos associativos e sociais da profissão,

do do trabalho torna-se visível pelos efeitos

ao discurso de governação e às políticas de

práticos e ideológicos da administração e

fronteira. A autonomia e o domínio exerci-

da governação dos professores, seja através

do no espaço da sala de aula, assim como

das políticas de formação, das exigências

o controle por parte do sujeito professor do

e ‘competências’ requeridas para seleção

seu fazer, podem criar dimensões de não

ou contratação, o que evidencia que “[...] a

subserviência, de oposições e tensões sobre

identidade pode ser um aspecto chave da

a manutenção e as políticas de fronteiras

tecnologia do trabalho [...]” (p. 71). As mu-

pensadas e reguladas pela nação, visto que

danças e reformas educativas vinculam-se

a “[...] existência de professores que não se

50


adequam às identidades oficiais causa pâni-

nos anos 80, a identidade dos professores re-

co. Da mesma forma, as ideias que os pro-

presentava um domínio sobre o fazer e cir-

fessores têm, e as pessoas às quais se asso-

cunscrevia-se no espaço da sala de aula e na

ciam, também causam pânico [...]” (p. 76).

organização da escola, num modelo de des-

Este princípio configura-se como um dos

centralização como sinônimo de qualidade,

problemas relacionados à manutenção das

a partir do início dos anos 90 as identidades

fronteiras, estabelecendo dificuldades para

e os mecanismos de controle são explicita-

controlar e manter fidedignas as identidades

dos nas políticas de formação e de certifica-

oficiais.

ção, as quais configuram modelos de competências, de uma cultura da excelência e na

Novos problemas são impostos cotidiana-

diversidade de imagens e de representações

mente à identidade dos professores e às

de professores que é engendrada pelos dife-

políticas de fronteira. Gerir a identidade

rentes modelos de escolarização.

docente, através da polifonia de discursos construídos na modernidade – como forma

Outra vertente de reflexão sobre a identida-

de um novo controle sobre a profissão, ou

de é construída na perspectiva dos estudos

para as transformações exigidas pela socie-

culturais5, apreendendo a identidade como

dade do aprender a aprender – instala uma

‘aquilo que é’ e a diferença, como o oposto

nova crise sobre a profissão e os saberes da

à identidade, como ‘aquilo que não é’, visto

profissão. As mudanças na forma de pensar

que ambas estão numa relação de estreita

e de viver a identidade docente são constru-

dependência. Ou seja, a forma de expressão

ídas desde a década de 80, e se consubstan-

da identidade, como fixa e imutável, demar-

ciam na emergência de uma sociedade tec-

ca e escamoteia as relações postas nesta

nológica, numa economia globalizada e no

relação, ou como algo que se esgota em si

acirramento das injustiças e desigualdades

mesmo. “A identidade está ligada a estru-

entre as pessoas e as nações.

turas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A

Tais mudanças mexem significativamente

identidade tem estreitas conexões com rela-

com a forma de pensar e de exercer a pro-

ções de poder” (Silva, 1999, p. 97). Identidade

fissão docente, incluindo os formatos de

e diferença são produções históricas, resul-

controle e de regulação das identidades. Se,

tantes de processos de produção simbólica e

5 Em relação às teorizações construídas no campo dos estudos culturais sobre identidade e diferença, busco em Louro (1997, 1998), Hall (2000) e Silva (1999, 2000) princípios teóricos que me possibilitem sistematizar aspectos sobre tal abordagem.

51


discursiva que envolvem poder, saber, disci-

desenrola [...]” (1992 p. 115-6). A identidade

plinamento, inclusão, exclusão e que se ca-

profissional assenta-se em saberes cientí-

racterizam em representações.

ficos e pedagógicos e tem como referência axiomas éticos e deontológicos. Pode-se

Conforme Louro (1997), “a escola delimita

apreender que é forjada e performatizada

espaços” , os quais são instituídos a par-

a partir do contexto e dos interesses postos

tir de símbolos e códigos, mapeando o que

historicamente como forma de controle e

cada um pode ou não pode fazer, separando,

de organização das mudanças educativas

agregando, elegendo, classificando e legiti-

ou, ao contrário, como forma de não assu-

mando diferenças em suas identidades ‘es-

jeitamento ao estabelecido. Ainda assim, a

colarizadas’.

autora reitera que a identidade profissional:

6

“É uma construção que tem marca das exDas representações, sentimentos, gestos e

periências feitas, das opções tomadas, das

olhares, aprendemos, no cotidiano escolar,

práticas desenvolvidas, das continuidades e

a construir identidades e diferenças. É nesse

descontinuidades, quer ao nível das repre-

movimento de ‘arquitetura’ das identidades

sentações, quer ao nível do trabalho concre-

que busco entender os mecanismos e movi-

to” (idem, p. 116).

52

mentos pensados ideológica e tacitamente sobre as produções das identidades docentes

Conforme Nóvoa (1992b, c), a identidade é

em suas transformações históricas. Identida-

entendida como um lugar de lutas, tensões e

des que são reguladas, imitadas, performati-

conflitos, caracterizando-se como um espa-

zadas conforme os modelos estabelecidos.

ço de construção do ser e estar na profissão, que parte do pessoal para o profissional e

Para Moita, a identidade profissional “[...] é

vice-versa. “[...] É um processo que necessita

uma construção que tem uma dimensão es-

de tempo. Um tempo para refazer identida-

paço-temporal, que atravessa a vida profis-

des, para acomodar inovações, para assimi-

sional desde a fase da opção pela profissão

lar mudanças” (1992b, c, p. 16).

até a reforma, passando pelo tempo concreto da formação inicial e pelos diferentes

As histórias de vida, as representações e as

espaços institucionais onde a profissão se

narrativas de formação marcam, tanto na

6 Segundo Louro, “Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornam-se parte de seus corpos. Ali se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. [...] E todas essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam e também produzem diferenças. Evidentemente, os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas. Ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens – reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente” (1997, p. 61).


dimensão pessoal, quanto profissional, e

LOURO, Gaucira Lopes. Gênero, sexualidade e

entrecruzam movimentos potencializado-

educação. Petrópolis: Vozes, 1997.

res da profissionalização docente, porque “[...] um professor tem uma história de vida,

__________________. Segredos e mentiras do

é um ator social, tem emoções, um corpo,

currículo. Sexualidade e gênero nas práticas

poderes, uma personalidade, uma cultura,

escolares. In: SILVA, Luiz Heron da (org.). A

ou mesmo culturas, e seus pensamentos e

Escola Cidadã no contexto da globalização.

ações carregam as marcas do contexto nos

Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 33/47. MOITA,

quais se inserem” (Tardif, 2000, p. 15). Nesta

Maria da Conceição. Percursos de formação

perspectiva, a epistemologia da prática, os

e de trans-formação. In: NÓVOA, António

saberes e a história de vida são significativos

(org.). Vida de Professores. Porto: Porto Ed.,

para a aprendizagem profissional. Não po-

1992, pp. 111-140.

demos separar os saberes das histórias, dos contextos que os instituem, modelam e definem, visto que eles implicam a forma de ser e estar na profissão e demarcam possibilidades de trabalhar o desenvolvimento pessoal e profissional do professor, bem como po-

______________ (org.). Profissão professor. Porto: Porto Ed., 1992a. ______________ (org.). Vida de professores. Porto: Porto Ed., 1992b.

tencializam práticas pedagógicas centradas

___________. Os professores e as histórias da

na pedagogia da diferença.

sua vida. In: NÓVOA, António (org.). Vida de professores. 2 ed. Porto: Porto Ed., 1992c, pp.

Referências

11-30. SANTOS, Stela Rodrigues dos. O mito da ho-

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?

mogeneidade no cotidiano da escola: um

In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e di-

ideal insensato. In: Revista da Faculdade de

ferença: a perspectiva dos estudos culturais.

Educação da Bahia, Ano II, v. 1, n. 2, (jan./

Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 103/133.

dez./, 2001), Salvador: EDUFBA, 2001, pp. 77/98.

LAWN, Martin. Os professores e a fabricação de identidades. In: NÓVOA, A. e SCHRIEWER,

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferen-

J. (orgs.). A difusão mundial da escola. Lisboa:

ça: a perspectiva dos estudos culturais. Petró-

EDUCA, 2000, pp. 69-84.

polis: Vozes, 2000.

53


_________________. Documentos de Identida-

elementos para uma epistemologia da prá-

de: uma introdução às teorias do currículo.

tica profissional dos professores e suas con-

Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

sequências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação,

TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos

Campinas, ANPED – Autores Associadas, nº

professores e conhecimentos universitários:

13, pp. 05-21, jan./abr. 2000.

54


VI. Diversidade e currículo1 Nilma Lino Gomes2

A diversidade, do ponto de vista cultural,

passaram a destacar politicamente as suas

pode ser entendida como a construção his-

singularidades e identidades, cobrando tra-

tórica, cultural e social das diferenças. Ela

tamento justo e igualitário, desmistificando

é construída no processo histórico-cultural,

a ideia de inferioridade que paira sobre dife-

na adaptação do homem e da mulher ao

renças socialmente construídas.

meio social e no contexto das relações de poder. Os aspectos tipicamente observáveis, que se aprende a ver como diferentes, só passaram a ser percebidos dessa forma porque os sujeitos sociais, no contexto da cultura, assim os nomearam e identificaram.

Não é tarefa fácil trabalhar pedagogicamente com a diversidade, sobretudo em um país como o Brasil, marcado por profunda exclusão social. Um dos aspectos dessa exclusão – que nem sempre é discutido no campo educacional – tem sido a negação das dife-

O grande desafio está em desenvolver uma

renças, dando a estas um trato desigual.

postura ética de não hierarquizar as diferenças e entender que nenhum grupo humano e social é melhor do que outro. Na realidade, todos são diferentes. Tal constatação e senso político podem contribuir para se avançar na construção dos direitos sociais.

Para avançar na discussão, é importante compreender que a luta pelo reconhecimento e pelo direito à diversidade não se opõe à luta pela superação das desigualdades sociais. Pelo contrário, ela coloca em questão a forma desigual pela qual as diferenças vêm

A cobrança hoje feita à educação, de inclusão

sendo historicamente tratadas na socieda-

e valorização da diversidade, tem a ver com

de, na escola e nas políticas educacionais.

as estratégias por meio das quais os grupos

Essa luta alerta, ainda, para o fato de que, ao

humanos e sociais considerados diferentes

desconhecer a diversidade, pode-se incorrer

1 Esse artigo faz parte de um texto maior publicado na coletânea Indagações sobre Currículo – MEC. Parte do mesmo também integra o Documento-Referência da Conferência Nacional de Educação Básica (MEC). 2 Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFMG. Doutora em Antropologia Social/USP e coordenadora do Programa Ações Afirmativas na UFMG.

55


no erro de tratar as diferenças de forma dis-

contextos históricos, políticos, sociais e cul-

criminatória, aumentando ainda mais a de-

turais, algumas diferenças foram naturaliza-

sigualdade, que se propaga via conjugação

das e inferiorizadas, tratadas de forma de-

de relações assimétricas de classe, raça, gê-

sigual e discriminatória. Trata-se, portanto,

nero, idade e orientação sexual.

de um campo político por excelência.

Compreender a relação entre diversidade e

Cabe destacar, aqui, o papel dos movimen-

currículo implica delimitar um princípio ra-

tos sociais e culturais em prol do respeito

dical da educação pública e democrática: a

à diversidade. Os movimentos negro, femi-

escola pública se tornará cada vez mais pú-

nista, indígena, juvenil, dos trabalhadores

blica na medida em que compreender o di-

do campo, das pessoas com deficiência, GL-

reito à diversidade e o respeito às diferenças

BTs3, dos povos da floresta, entre outros, são

como um dos eixos norteadores da sua ação

atores políticos centrais nesse debate. Eles

e das práticas pedagógicas. Para tal, faz-se

colocam em xeque a escola uniformizadora,

necessário o rompimento com a postura

que, apesar dos avanços dos últimos anos,

de neutralidade diante da diversidade que

ainda persiste nos sistemas de ensino. Ques-

ainda se encontra nos currículos e em vá-

tionam os currículos, imprimem mudanças

rias iniciativas de políticas educacionais, as

nos projetos pedagógicos, interferem na po-

quais tendem a se omitir, negar e silenciar

lítica educacional, na elaboração das leis e

diante da diversidade.

das diretrizes curriculares nacionais.

A inserção da diversidade nas políticas edu-

Os movimentos sociais vão além da com-

cacionais, nos currículos, nas práticas peda-

preensão da diversidade como a construção

gógicas e na formação docente implica com-

histórica, social e cultural das diferenças.

preender as causas políticas, econômicas e

Eles politizam as diferenças e as colocam no

sociais de fenômenos como: desigualdade,

cerne das lutas pela afirmação dos direitos.

discriminação, etnocentrismo, racismo, se-

Ao atuarem dessa forma, questionam a ma-

xismo, homofobia e xenofobia.

neira como as escolas, o Estado e as políticas públicas lidam com a diversidade e cobram

Falar sobre diversidade e diferença implica,

respostas públicas e democráticas.

também, posicionar-se contra processos de colonização e dominação. Implica compre-

Aos poucos, vêm crescendo, também, os co-

ender e lidar com relações de poder. Para tal,

letivos de profissionais da educação, sensí-

é importante perceber como, nos diferentes

veis à diversidade. Muitos deles têm a sua

3 Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgêneros e Transexuais.

56


trajetória marcada pela inserção nos mo-

próprios de aprendizagem, com ensino

vimentos sociais, culturais e identitários, e

bilíngue e formação de profissionais da

carregam para a vida profissional suas iden-

educação oriundos dos próprios povos

tidades coletivas e suas diferenças.

indígenas;

Há uma nova sensibilidade nas escolas pú-

d) a implementação de novas formas de

blicas em relação à diversidade e suas múl-

organização e gestão para a educação

tiplas dimensões na vida dos sujeitos, a qual

de jovens e adultos, para as escolas do

vem se traduzindo em ações pedagógicas

campo, para os povos da floresta e para

concretas de transformação do sistema edu-

os estudantes com deficiência e /ou al-

cacional público em um sistema inclusivo,

tas habilidades/superdotação;

democrático e aberto à diversidade. e) reconhecimento, garantia e construção Os desafios postos pela diversidade na edu-

de projetos político-pedagógicos volta-

cação básica estão a exigir medidas políticas

dos à educação das comunidades rema-

que garantam para todos os grupos sociais,

nescentes de quilombos;

principalmente para aqueles que se encontram histórica e socialmente excluídos, o

f) a adoção de medidas político-pedagógi-

acesso a uma educação de qualidade. Para

cas que garantam tratamento ético e

tal, é preciso desencadear ações articuladas

espaço propício às questões de raça/et-

entre o Estado, a comunidade, as escolas e

nia, gênero, juventude e de sexualidade

os diversos movimentos sociais que consi-

na prática social da educação.

derem:

g) a criação de condições políticas e peda-

a) a necessidade de reorganização dos tem-

gógicas que garantam a implementa-

pos e espaços escolares, com vistas a

ção da Lei n. 10.639/03 (obrigatoriedade

atender a diversidade presente nas es-

do ensino de História da África e da Cul-

colas;

tura Afro-brasileira na Educação Básica) e as Diretrizes Curriculares Nacionais

b) a inserção da discussão sobre diversidade

para a Educação das Relações Étnico-

e currículo na formação inicial e conti-

-raciais e para o Ensino de História e

nuada de professores e professoras;

Cultura Afro-brasileira e Africana, as Diretrizes Operacionais para a Educa-

c) a adoção de medidas que garantam às

ção Básica nas Escolas do Campo e as

comunidades indígenas a utilização

Diretrizes Nacionais para a Educação

de suas línguas maternas e processos

Especial na Educação Básica.

57


VII. Reinventando a roda: experiências multiculturais de uma educação para todos1 Azoilda Loretto da Trindade2 “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante (...) do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.” Raul Seixas

Esse texto, na verdade, se propõe a fazer uma

dos ao longo da nossa existência, por ideias

aliança com a nossa potência de vida, com

e ideais construídos ou apreendidos, por

nossa autonomia, com nossa criatividade

concepções a respeito da vida e do mundo.

de professoras e professores. Pretendemos

É bom lembrar que a Vida, no singular e no

dialogar com nossa parcela, com nossa di-

plural, é muito mais abrangente do que nos-

mensão educadora que se inquieta e se sente

sa condição humana pode captar, compre-

desafiada a cada dia, parcela/dimensão dese-

ender, capturar.

jante, que ora se alegra, ora se desespera, que se sente encantada pela vida, que não se can-

Quando nos predispomos, quando somos

sa de ler no mundo palavras e ações que pos-

fisgadas pela percepção da existência da

sam nos valer e nos possibilitam aprender a

diferença como valor, como expansão da

trabalhar pedagogicamente, numa perspec-

riqueza humana e não como um demérito,

tiva multicultural crítica, criativa e inclusiva,

perdemos o chão das verdades, da razão,

num mundo marcado por desigualdades e

das certezas fechadas e absolutizadas e nos

injustiças sociais, étnicas e culturais.

colocamos no campo da dúvida, do devir, da pergunta, da inquietação, da errante busca,

É bom sinalizar que qualquer caminho tri-

da incerteza.

lhado no sentido de lidar com as diferenças no cotidiano educacional não é neutro, nem

Qualquer concepção teórica ou prática de

ideal. Todas nós estamos marcadas por nos-

trabalhar com as diferenças na sala de aula,

sas visões de mundo, por valores incorpora-

no cotidiano escolar, é passível de críticas,

1

Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 5.

2 Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ, Doutora em Comunicação pela ECO/UFRJ. Organizadora desta coletânea.

58


de análise, de necessidades, de acertos, ajus-

• Imagine, por exemplo, quanto esforço é

tes. TODAS são insólitas, na medida da me-

necessário para que possamos admitir

tamorfose constante da própria Vida, afinal,

que fazem parte da espécie humana tira-

“nenhum rio passa duas vezes no mesmo lu-

mos como Hitler, ou um pedófilo, ou um

gar”, lembram? Ora, se a diferença é a regra,

criminoso. É fácil perceber a humanidade

se tudo é devir, se tudo é movimento, é di-

no que é espelho, no que consideramos

nâmica, o problema que nos coloca a Vida,

ser semelhante a nós, ou no que deseja-

o problema que nos desafia é como sermos

mos ser e valorizamos. É fácil reconhecer,

capazes de ver, perceber, conhecer, intera-

portanto, a humanidade de Gandhi, da

gir com o diferente de nós. E é bom desta-

criancinha que achamos lindinha, lim-

car que somos diferentes, inclusive, de nós

pinha e arrumadinha. Mas naquele ou

mesmos... Somos diferentes de nós mesmos

naquela que desprezamos, abominamos,

a cada momento: um livro que lemos, um

desqualificamos, desejamos ver longe de

filme que vemos, um acontecimento que vi-

nós, tal reconhecimento é de fato muito

venciamos, um carinho que recebemos ou

difícil.

damos, uma injustiça que presenciamos, praticamos ou sofremos, o tempo passado,

• O que demanda em nós de energia para a

o sol, o frio, o calor, o amor ou desamor,

desconstrução de preconceitos ao vermos

a violência, o dia-a-dia... Tudo nos altera a

inteligência, por exemplo, numa criança

cada instante.

com algum tipo de síndrome, ou numa criança ou adulto com paralisia cerebral.

Estamos diante do desafio, talvez similar ao

Ao percebermos força e potência em pes-

momento que antecedeu à invenção da roda,

soas com alguma deficiência, não admi-

talvez um desafio menos conceitual e mais

tindo pensar nelas como “coitadinhas”.

prático, mais vivencial, mais visceral, que

Ao percebermos essas pessoas como mais

nos coloca diante dos nossos próprios pre-

uma expressão da vida humana, e não

conceitos, do nosso racismo, do nosso ma-

como vítimas de um castigo, de uma des-

chismo, do nosso elitismo. Ora, nosso maior

graça, de uma infelicidade para a pessoa

desafio, talvez, seja enfrentar o que está den-

ou para os seus pais.

tro de nós, no nosso sangue, no nosso coração, na nossa mente, em nós mesmos.

• O que demanda de desconstrução de verdades percebermos a sabedoria nas popu-

Trabalhar com a percepção da existência da

lações indígenas, ou para desarticularmos

Diferença, como uma constante, obriga-nos

a sinonímia entre a palavra “escravo” e

a rever valores, posições, preconceitos:

os povos afrodescendentes no Brasil. Ou,

59


ainda, para conseguirmos deixar de ver

• Imagine admitir que a escola não é o lu-

como “natural” a ideia contida na expres-

gar, como muitos dizem, onde a criança

são “manda quem pode e obedece quem

se prepara para “ser alguém na vida”, ou

tem juízo”, muito cara nos espaços de

para “ser gente”, ou para se preparar para

trabalho, sobretudo no escolar, expressão

a vida. Gente e alguém todos nós já somos

elitista que coloca a obediência como um

e a vida já está sendo, aqui e agora, onde

valor, um mérito, e desqualifica o sujeito,

quer que estejamos.

subtrai dele a inteligência, sua capacidade de pensar, ponderar, discordar, ter contribuições, criar.

• Quanto de energia física, mental, intelectual precisamos dispender para ver que nossa visão religiosa, pedagógica, polí-

• O que se exige de nós, em termos de força,

tica, sexual, não é a melhor para toda a

não nos silenciarmos diante de qualquer

humanidade, é apenas a nossa visão, que

tipo de discriminação, de injustiça social,

pode, ou não, ser compartilhada por mui-

cultural, ou de qualquer espécie? O que

tos? Que a ideia da maioria não é necessa-

de energia é exigido de nós, em termos

riamente a melhor para todos?

de aprendizagem, crítica e reflexão, para conseguirmos reconhecer, analisar e avaliar tais situações?

• E se a gente não sofrer em admitir tudo isto, quanto de humildade precisamos ter para não nos sentirmos melhores ou pio-

• Imagine ver, no analfabeto, sabedoria, afinal, a alfabetização em massa é um fenô-

res que aqueles que consideramos errados, reacionários e conservadores...

meno recente na história da humanidade e ainda hoje há culturas eminentemente

Ora, uma educação multicultural, criativa e

orais. Constatar que a escola não é o úni-

inclusiva, no sentido de incluir na pauta as

co espaço de desenvolvimento dos seres

diferenças, o contato, o diálogo, a interação

humanos (embora seja um espaço privi-

com as diferenças, coloca a própria escola

legiado para isto). Imagine ver e valorizar

num lugar de questionamento quanto ao

o saber que não é cientifico, a sabedoria

seu papel, seu sentido, seu significado. Qual

popular que diz, por exemplo, que galo ve-

o papel da escola num contexto multicultu-

lho bota ovo, que tem cobra que de noite

ral que se sabe político, e que não se propõe

mama o leite da mulher e coloca o rabo

racista, nem elitista, nem machista, nem

na boca da criança, que os astros influen-

etnocêntrico... É essencial percebermos a

ciam a nossa vida, que tem gente com

dimensão disto tudo. O que nós, como edu-

olhar de “seca-pimenteira”!

cadores, faremos? E como faremos? Como

60


nosso currículo se configurará? Como serão

saberes socialmente valorizados e historica-

e deverão ser nossas aulas, nossa avaliação,

mente construídos. A Psicologia, a Sociolo-

nossa sala de aula? Como será nossa pos-

gia, a História, a Matemática, a Biologia, a

tura? Como não sermos tão individualistas

Física, as Ciências de um modo geral terão

e julgarmos que os outros são muito dife-

que ser revistas e rediscutidas. As disciplinas

rentes de nós, a ponto de nos transformar-

poderão até ser ultrapassadas, como aponta

mos numa ilha cercada de ilhas por todos

o professor Ubiratan D’Ambrósio (2002).

os lados? Como não ser tão universalistas a ponto de apagarmos as singularidades cul-

É um campo delicado, sobretudo num mun-

turais, políticas, sexuais, sociais, intelectu-

do que assiste ao recrudescimento do racis-

ais? Como levar em consideração todos os

mo, do conservadorismo, da intolerância,

segmentos da escola?Como enfrentar que

que assiste a guerras religiosas e vê a violên-

nossas mais belas intenções e ações são ain-

cia se expandir galopantemente. Que perce-

da incipientes, que são muito poucas, em-

be que o poder do capital se fortalece a cada

bora necessárias? Por exemplo, trabalhar

dia, em detrimento da vida e da sobrevivên-

o multiculturalismo na escola não é ape-

cia da própria espécie e do planeta.

nas colocar imagens de todas as etnias que compõem nossa escola nos murais, festejar

Temos que nos saber aprendizes, eternos

o Dia do Índio e o Dia Nacional da Consciên-

aprendizes, na medida em que estamos no

cia Negra. Não é apenas debater as políticas

momento de inventarmos a roda de um tra-

de cotas e outras ações afirmativas. Nem

balho multicultural na educação. Iremos

ter a imagem de uma Virgem negra como

inventar, porque não existirá O trabalho úni-

padroeira do Brasil. Tampouco ter o atleta

co, que deverá ser seguido, imitado, copiado

do século como um ícone nacional (se o que

pelos demais. Cada grupo, cada coletivida-

conta, nesse caso, é o dinheiro e não a cor

de, cada comunidade escolar deverá bus-

da pele).

car construir sua roda (ou suas rodas), mas como não se trata de ilhas de pessoas, como

Acreditamos que uma educação multicul-

o conhecimento é coletivo e construído em

tural, inclusiva, crítica e criativa demanda

comunhão, algumas palavras-ações básicas

mudanças radicais nas estruturas de poder

devem ser fortalecidas:

da escola e da sociedade, demanda mudanças em nós mesmos e mudanças de para-

A autonomia, como capacidade de cada um

digmas. Aliás, para as mudanças de para-

tomar suas próprias decisões, mas a partir

digmas, para incorporarmos outros atores

da interação e diálogo com pontos de vistas

e interlocutores, é necessário revermos os

deferentes e diversos dos nossos;

61


O diálogo, que implica ouvir o outro, escu-

criados em meio a soluços ébrios. Segundo

tar e se deixar preencher com a palavra, com

a lenda, a cada momento um ser foi criado

a idéia, com a perspectiva do outro;

e nunca um era igual ao outro. Logo, somos seres diversos, singulares e irregulares, so-

O movimen,to que concretiza a ação, que

mos todos diferentes, mas nos reconheça-

realiza a mudança e a criação; e

mos a todos como uma criação divina.

O contato. Não dá para se trabalhar com

Como prêmio, contingência ou como casti-

educação multicultural apenas no gabinete,

go, somos fadados à multiplicidade e a his-

na sala de estudo individual, no computa-

tória nos coloca diante do grande desafio de

dor, através dos textos, da palavra escrita. O

aceitar a diferença e aprendermos ecologi-

outro e nós temos um cérebro, uma mente,

camente, com respeito, sabedoria, humil-

produzimos palavras, poesia, virtualidade,

dade, quiçá com amor, a lidar com elas em

distanciamentos. Mas temos também um

todos os espaços, sobretudo, o que é o nos-

corpo que tem cheiro ou cheiros, cor, textu-

so caso, na escola. Neste caso, precisamos

ras, odores, sabores, expressões corporais...

fortalecer nossa autonomia, nossa capaci-

E esta percepção só acontece realmente

dade de ler e aprender no/com o mundo,

como contato, com o encontro.

assumirmos a nossa responsabilidade em escrever no e para o mundo nossas experi-

Como diz a cosmovisão dominante, judaica

ências na busca da invenção da nossa roda,

cristã, somos descendentes de Babel, des-

a roda de trabalhos multiculturais cons-

cendentes de um povo que falava a mesma

cientes, críticos, criativos e, assim, contar

língua e que tentou chegar aos céus através

essas experiências, esse exercício, sair dos

de uma torre, desafiando Deus. Castigados

muros da escola no sentido de compartilhar

por Deus, homens e mulheres perderam a

nossas ações com outros coletivos e fortale-

harmonia e foram condenados à multiplici-

cer a complexa rede de produção de saberes

dade, a falarem várias línguas e a se descen-

da humanidade.

trarem na Terra. Sendo assim, que sejamos pelo menos uma Babel feliz, encantada com a multiplicidade, com o Outro.

Referências

Como conta uma lenda africana Iorubá, da

DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mu-

criação do ser humano e do mundo, somos

lher: Pequena história das transformações do

resultantes da ação de um Deus – o Orixá

corpo feminino no Brasil. São Paulo: Editora

que tinha bebido vinho de palma – e fomos

SENAC. São Paulo, 2000.

62


FUGANTI, Luiz Antonio. Saúde, Desejo e

do Futuro. São Paulo: Cortez, Brasília, DF,

Pensamento. In: Saúde e Loucura 2: 19-82.

UNESCO, 2000.

São Paulo: Editora Hucitec (s/d). TRINDADE, Azoilda Loretto da. O racismo no MORIN, Edgar. Ensinar a Condição Huma-

cotidiano escolar. Rio de Janeiro: FGV/IESAE.

na. In: Os sete saberes necessários à Educação

Dissertação de Mestrado, 1994.

63


CAPÍTULO 2

Africanidades

O segundo capítulo do livro pretende apre-

Esse texto apresenta força argumenta-

sentar uma panorâmica de reflexões rela-

tiva em articulação com a história, a

cionadas à temática afrodescendente, ou

política e a cultura, afirmando a pers-

afro-brasileira. Embora tenha o título de Afri-

pectiva das Africanidades na Educação

canidades, seus textos são de diversas visões

brasileira, como presença e como par-

positivadas acerca do patrimônio africano e

ticipação na construção de uma edu-

afro-brasileiro. Nossa intenção é garantir a

cação emancipatória.

possibilidade de observarmos a riqueza teórica, social, política, histórica, psicológica e cultural deste patrimônio.

II. Humilhação, encorajamento, e construção da personalidade, de Azoilda Loretto da Trindade. Esse texto, sim-

Certamente não contemplaremos todas as

ples e leve no seu aspecto teórico,

autorias significativas... Algumas lacunas se

escrito antes de 2003, tem atualida-

farão presentes, assim como algumas abor-

de no que se refere a acontecimen-

dagens... Mas nenhum livro pode ser maior

tos do cotidiano que legitimam sua

que um patrimônio milenar como o africano

presença nesta coletânea, sobretudo

e, assim, fica o convite para novas pesquisas

por nos ajudar a pensar que, além da

e novas descobertas.

Lei n. 10.639/2003, temos desafios na

Dividiremos este capítulo do livro em quatro blocos:

construção de práxis educativas inclusivas.

A. ASPECTOS GERAIS. Selecionamos textos

III. A lei n. 10.639/2003 altera a LDB e o

com a expectativa de fundamentarmos a te-

olhar sobre a presença dos negros no

mática.

brasil e transforma a educação escolar, de Bel Santos. Temos aqui um tex-

I. Africanidades, afrodescendências e

to rico em fundamentos do cotidiano

educação, de Henrique Cunha Júnior.

para a implementação da lei, e mais

64


rico ainda pelo seu caráter de otimis-

VII. As relações étnico-raciais, a cultura

mo em relação a políticas públicas

afro-brasileira e o projeto político-

transformadoras e a eliminação da ex-

-pedagógico, de Lauro Cornélio da Ro-

clusão.

cha. O foco aqui está no diálogo Projeto Político Pedagógico e a educação

IV. África viva e transcendente!, de Narci-

das relações étnico-raciais e a cultura

mária Correia do Patrocínio Luz. Esse

afro-brasileira no cotidiano escolar

texto é uma expressão da rica e exube-

brasileiro. Ao apresentar propostas

rante complexidade que a implemen-

significativas nesta direção, o autor

tação da lei pode oferecer e significar

exemplifica as proposições com o rela-

para as bases, diretrizes e práxis da

to de um trabalho exitoso – O Projeto

educação brasileira.

Raiz.

V. Diversidade étnico-racial no currícu-

B. EDUCAÇÃO INFANTIL. Acreditamos que

lo escolar do ensino fundamental, de

a educação infantil mereça um destaque no

Véra Neusa Lopes. Aqui, a perspecti-

que se refere à implementação da lei. Temos

va das narrativas se afirma e o texto,

muitos relatos que sinalizam que crianças

além de revelador no que se refere ao

de 2 ou 3 anos já percebem sua cor de pele

projeto de desafricanização embuti-

e observam as imagens que as representam

da na filosofia e política educacionais

no entorno, como cartazes, outdoors, co-

brasileiras, obriga-nos a refletir sobre

merciais de TV, livros infantis... Sabemos,

as bases filosóficas e conceituais hege-

também, do despreparo de muitos(as) do-

mônicas que fundamentam nossas es-

centes no trato com as crianças afro-bra-

colas. Para além da constatação, apre-

sileiras de pele escura. Sabemos, ainda, da

senta uma inspiradora experiência de

importância deste período na formação da

práxis transformadora.

personalidade e os prejuízos que uma desatenção a certas temáticas, por exemplo, da

VI. O legado africano e a formação do-

pedagogia da diferença, pode causar na for-

cente, de Marise de Santana. Baseado

mação de autoimagem e da autoestima de

em observações e em dados oficiais,

TODAS as crianças. Conhecemos, também,

o texto é um convite ao trabalho co-

algumas experiências individuais e de redes

letivo para a implementação da Lei n.

de ensino voltadas para a Educação Infantil

10.639/2003, com algumas importan-

e a implementação da Lei n. 10.639/2003, e

tes sugestões nesta direção.

vemos como é fundamental este trabalho.

65


Nesta direção, destacamos três textos que

II. Quilombo: conceito, de Gloria Mou-

abordam esta temática, para início ou for-

ra. É um texto didático, não só sobre

talecimento de conversas e ações político-

o conceito de quilombo, mas por ser

-pedagógicas:

uma genealogia deste conceito, ainda em construção, pois uma história ain-

I. Valores civilizatórios afro-brasileiros na

da está sendo construída.

Educação Infantil – Azoilda Loretto da Trindade II. As relações étnico-raciais, história e cultura afro-brasileira na Educação Infantil – Regina Conceição1 III. Tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras e a criança afro-brasileira (uma reflexão) – Azoilda Loretto da Trindade

III. Saberes tradicionais de saúde, de Bárbara Oliveira. Esse texto, que poderia estar na última parte do livro, insere-se num campo pouco explorado, mas fundamental para a compreensão da vida do povo de origem africana: os saberes tradicionais de saúde. IV. Organização social e festas como ve-

C. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA. É impressio-

ículos de educação não-formal, de

nante e animador observarmos a energia

Verônica Gomes. Com a focalização

vital que alguns povos nos apresentam. Os

da vida dos moradores das comunida-

povos indígenas, os ciganos... uma infinida-

des remanescentes de quilombos, so-

de de exemplos e situações. Povos e grupos

bretudo, no que se refere “ao uso das

que afirmam a sua potência de vida, a des-

ervas medicinais, no modo de trabalhar

peito ou em meio a emaranhados genoci-

a terra, de tirar dela seu sustento, nas

das da diferença ou da diversidade. Nesta

linguagens gestuais, na música, nas fes-

coletânea, destacaremos a Educação Qui-

tas, no modo de se divertir, de cantar,

lombola como vivências ensinantes e como

dançar e rezar”, defrontamo-nos com

uma das pistas para a construção de uma

uma pedagogia de afirmação positiva

Pedagogia Brasilis.

da diferença, com destaque à questão de gênero.

I. Os quilombos e a educação, de Maria de Lourdes Siqueira Com esse texto pre-

V. Kalunga, escola e identidade – experi-

tendemos oferecer aos e às docentes

ências inovadoras de educação nos

uma abordagem informativa e afetiva

quilombos, de Ana Lucia Lopes. Des-

da dimensão pedagógica da vivência

tacamos dois aspectos deste texto: ele

quilombola.

aponta para uma visão de Quilombo

66


para além da hegemônica visão que

acerca dos impasses, resistências e insufici-

o atrela à fuga e à resistência e apre-

ências nacionais, na implementação de polí-

senta um valioso relato de experiência

ticas públicas educacionais para a população

que nos propicia refletir sobre um dos

afro-brasileira e de enfrentamento de proble-

dilemas que nos perpassa ao pensar-

mas sociobrasileiros, “em especial, aqueles re-

mos a Lei n.10. 639/2003 – “na tensão

lacionados com os chamados excluídos sociais

entre a valorização do conhecimento

– negros, quilombolas, mulheres, indígenas, de-

Kalunga[tradicional] produzido histori-

ficientes físicos, pessoas com orientações sexu-

camente e o direito de acesso ao conhe-

ais diferenciadas e outros”.

cimento do novo por eles reivindicado.” D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS VI. Lei nº 10. 639/2003 e educação quilombo-

Apresentaremos o texto do documentário, e

la: inclusão educacional e população negra

esperamos que todas as escolas possam ter

brasileira, de Denise Botelho. Texto crítico

acesso ao programa.

67


A. ASPECTOS GERAIS i.

Africanidades, afrodescendências e educação1 Henrique Cunha Júnior2

O educador negro Pretextato dos Passos Sil-

sociais, partidos políticos e alguns setores

va apresentou ao Ministério Público uma

dos movimentos sindicais.

petição para a criação de uma escola destinada a meninos pretos e pardos. No requeri-

Pela predominância de um pensamento de

mento, ele argumenta que, sendo ele negro

base universalista, as alegações contrárias

e compreendendo a vida daquelas crianças,

às reivindicações dos afrodescendentes fo-

poderia “ensinar com perfeição e sem coação”.

ram sempre problematizadas no campo da

Considerava as escolas existentes discrimi-

igualdade de oportunidades de todos e da

natórias, portanto, ambiente pouco adequa-

negação da existência de sistemas de inclu-

do para o aprendizado dos pretos pardos,

são controlada e diferenciada. Sistemas em

que tinham seu desempenho escolar pre-

que as regras etnocêntricas brancas e as sis-

judicado. Seu projeto foi acompanhado de

temáticas de inferiorização da cultura e da

lista de assinatura dos pais dessas crianças,

população afrodescendente não são denun-

solicitando a criação da escola em questão

ciadas como tais. Ignoram-se, nos universos

(SILVA, 2000, p.14-18).

de análise, os processos históricos e os resultados das estatísticas que indicam a existên-

Os temas de interesse da população afro-

cia de problemas de ordem específica e se

descendente e as especificidades dessa

impõem silêncios no campo da educação so-

população na educação têm sido olhados

bre os diversos temas relativos à população

com descaso por uma parcela significativa

de origem africana. Desconhecem-se a exis-

de educadores responsáveis pelos sistemas

tência e a importância desses temas, negan-

educacionais e por parte da população em

do-se a existência das diversidades culturais

geral, bem como por parte dos movimentos

e a incidência do tratamento dado a estas

1

Debate: Educação, direito e cidadania – 2001 / PGM 4.

2 Professor Titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) / Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e do Centro de Estudos Sergipanos (CESER).

68


sobre os resultados educacionais e sociais

tratada com propósitos da política. A ideia

colhidos pelas diversas etnias. Nem mesmo

da “Casa Grande e Senzala” tornou-se mo-

a razão da assimetria dos resultados étni-

delo não somente da interpretação da so-

cos preocupou os diversos pesquisadores

ciedade, como das razões políticas. Foram

ou formuladores de políticas educacionais.

esquecidas, propositalmente, as relações de

Os conformismos e os descasos processam

produção representadas pelo eito. Confun-

a ideia de que se trata apenas de um pro-

de-se um universo biológico como político,

blema de pobreza, e deixam de questionar a

mascara-se não somente a base racista e et-

produção diferenciada da pobreza entre as

nocêntrica dessa interpretação, mas a base

etnias. Persiste, ainda, a recusa do sistema

positivista. Embora apareça na equação de-

educacional em admitir a existência de um

terminante do Brasil, tanto cultural como

racismo à brasileira, portanto, distinto dos

constitutiva do povo, a ideia das três raças,

demais de outras nações na sua formulação

estranhamente, somente uma aparece lo-

e expressão, produzindo entretanto, um sis-

calizada como possuidora e depositária de

tema de dominação e opressão com resulta-

processo civilizatório.

dos similares aos dos outros países racistas. Sistema que reduz absurdamente o acesso aos bens sociais para nós afrodescendentes e limita as possibilidades de expressão cultural e política.

A História da Educação presta um desserviço ao não registrar e não problematizar a presença dos afrodescendentes nos sistemas educacionais e nas ideias sobre a educação anterior aos anos 50 do século passado. As

Duas ideias têm dificultado o avanço do tra-

ideias são falhas em apresentarem a presen-

to dos temas de interesse dos afrodescen-

ça dos afrodescendentes na educação, a par-

dentes nos últimos 50 anos. Uma é a con-

tir do meados dos anos 50, como resultados

solidação do ideário dos grupos dominantes

dos processos de urbanização da sociedade

na sociedade e na cultura nacional sobre a

brasileira e de universalização do ensino pú-

“democracia racial”. Ideário que impediu

blico. Diversas evidências e resultados de

em diversos setores uma reflexão mais acen-

pesquisas demonstram tratar-se de mais um

tuada e problematizadora sobre as questões

equívoco, cujos resultados repercutem nas

das estruturas étnicas vigentes na socieda-

perspectivas da compreensão do presente

de e sobre os problemas daí decorrentes no

pela história do passado (NUNES CUNHA,

trato com a cultura e a educação. Comple-

1999), (SILVA, 2000), (RIBEIRO, 2001).

mentar ao ideário da democracia racial, esteve sempre a segunda ideia, a da base na-

Venho há muito tomando consciência em-

cional miscigenada, portanto, negadora da

pírica deste equívoco por diversas razões.

particularidade. Miscigenação biológica é

Uma delas vinda da escolarização da minha

69


mãe, Eunice de Paula Cunha e de minha

de africanidades e afrodescendência, preten-

madrinha Zobeida, ambas formadas como

dendo ampliar a percepção da participação

professoras primárias nos anos 30 em São

das populações de origem africana na cul-

Paulo e parte de um grupo de professores

tura nacional e nos sistemas educacionais.

negros da mesma geração. E do conhecimento de que meu pai e seus amigos mili-

Estes conceitos serviram de referência para

tantes dos movimentos negros dos anos 20

uma dezena de trabalhos de Mestrado e

e 30 também eram alfabetizados, bem como

Doutorado no Ceará, Piauí, Paraíba, Per-

minhas avós, o que leva a história para o fi-

nambuco, São Paulo e Rio de Janeiro (RIBEI-

nal do século XIX. Esta percepção nos leva a

RO, 1995), (SOUZA, 1997), (PIMENTEL, 1998),

questionarmos onde se educaram diversos

(BALLESTEROS, 1998), (NUNES CUNHA,1999),

afrodescendentes de renome nacional e in-

(SILVA, 1999), (GOMES, 2000), (GUIA, 1999),

ternacional, que viveram no séc. XIX e início

(MATOS, 1999), (CRUZ, 2000), (NASCIMEN-

do séc. XX. O problema da não percepção da

TO, 2000), (CONCEIÇÃO, 2001), (PEREIRA,

nossa participação retarda a correlação en-

2001), (OLIVEIRA, 2001), (LIMA, 2001), (RIBEI-

tre o registro das demandas educacionais e

RO, 2001), embora tenha existido apenas a

o enfoque da especificidade, como também

divulgação dos originais mimeografados,

a problematização sobre os grupos étnicos

nunca publicado, de um texto de 1996 com

nos confrontos dos cotidianos dos sistemas

o título Afrodescendência e Africanidades Bra-

educacionais.

sileiras: a condição necessária, porém não suficiente para compreensão da história

Entretanto, como tratamos no artigo Pes-

sociológica do povo brasileiro. Este artigo

quisa Educacionais em temas de interesse

apresenta uma versão modificada do referi-

dos Afrodescendentes (CUNHA JR., 1999), os

do texto. A intenção do texto não está na

Movimentos Negros da década de 70 foram

ênfase conceitual, mas sim em apresentar

fomentadores de uma preocupação particu-

as razões de um percurso na elaboração dos

lar sobre a problemática da educação e das

conceitos, de forma correlata com a trajetó-

relações interétnicas. A partir destes movi-

ria afrodescendente no contexto educacio-

mentos sociais surge uma geração de edu-

nal brasileiro.

cadores e pesquisadores trabalhando as temáticas dos afrodescendentes nos sistemas de produção e transmissão da cultura. Neste ciclo do enfoque das questões educacionais sob o crivo da afrodescendência, pelos anos 1989 e 1990, introduzimos os conceitos

Os conceitos de africanidades e afrodescendência são vinculados ao enfoque de etnia, sendo que este último permanece como problema nos debates sobre educação. Etnia e Raça, como terminologia e perspectiva

70


teórica, fomentaram embates dentro da li-

los, apresentou uma disciplina em educação

teratura educacional. Existem trabalhos que

como curso de extensão e com validade de

oscilam entre um e outro, havendo mesmo o

créditos para pós-graduação. Em 1991, eu ti-

uso etnia / raça. O importante neste artigo é

nha escrito um texto denominado Não mais

apresentar um enfoque, de caráter específi-

base zero para o estudo das Africanidades Bra-

co, que recoloque a problemática da cultura

sileiras, para um curso de formação de pro-

na orientação dos temas educacionais para

fessores da Rede Municipal de São Paulo, no

a sociedade brasileira. Não se trata de um

quadro de trabalhos da ABREVIDA. São fon-

problema novo, pois iniciei o texto relem-

tes imprescindíveis para a elaboração destes

brando o professor Pretextado e, proposital-

conceitos os trabalhos de Muniz Sodré, Mar-

mente, omitindo a data do requerimento do

co Aurélio Luz e Clóvis Moura, para a crítica

referido professor à Corte no Rio de Janeiro.

cultural e historiográfica negra brasileira.

A data foi 1853, sendo que professor Pretex-

No campo internacional foram estruturais

tado implantou e trabalhou em sua escola

as leituras de Cheike Anta Diop, Rene Depes-

por mais de 20 anos. Não foi o único. Outros

tre, Edouard Glissant, bem como dos inte-

fazem parte da história dos Movimentos So-

lectuais da Revolução Haitiana.

ciais Negros na luta pela educação. Outros que têm sido sistematicamente esquecidos

As viagens pelo Brasil e Caribe sedimenta-

pela literatura educacional brasileira.

ram o caráter empírico das reflexões e exercitaram a observação da existência de etnias

Os motivos

afrodescendentes. Foi marcante e significativa a estada na Guiana e na Jamaica. Os

Desde os anos 90 venho fundamentando

seminários da Guiana de 1988 foram fontes

os conceitos de afrodescendência e africani-

fundamentais de informação, nos quais se

dades brasileiras, num processo não unica-

pode ver a elaboração cultural dos afrodes-

mente meu, mas presente em diversos tra-

cendentes sob um ângulo de uma cultura

balhos sobre cultura brasileira e negros(as)

universitária não massivamente branca, não

no Brasil.

abusivamente eurocêntrica, dentro de um país onde o racismo não é exercido na mes-

O uso sistematizado de africanidades brasi-

ma forma de dominação e no mesmo senti-

leiras ocorreu em 1993, quando um grupo de

do que é dado na sociedade brasileira.

professores, composto por minha pessoa, pela Profª Drª Petronilha Beatriz Gonçalves e

A sociedade guianense é Afro-Indo-Amerín-

Silva, o Prof. Dr. Álvaro Risoli e o Prof. Válter

dia-Européia, com predominância Afro-Indu,

Silvério, da Universidade Federal de São Car-

sendo que 80% da população é desta for-

71


mação étnica. Estas etnias expressam uma

no Brasil. Quase somente ele pensa cultu-

fenomenal diversidade cultural. Dentro de

ralmente. Quando não diretamente, fica

cada uma das etnias temos diversas religi-

como fantasma assombrando os pensamen-

ões e culturas. Existe na Guiana uma liber-

tos. Todos devem pensar através dele, ainda

dade de expressão étnica não pensável na

que seja, pelo menos, pela obrigatoriedade

sociedade brasileira. Não se pensa aqui na

bibliográfica. Não são lidos os intelectuais

liberdade de expressão das culturas bra-

africanos nas universidades brasileiras. Nem

sileiras. Estas são raramente organizadas

mesmo reconhecem a existência destes. Nas

pelo pensamento universitário. Geralmente

Universidades do Caribe posso dizer que sou

sequer são apresentadas ou minimamen-

negro, penso negro, sem vetos de censura,

te reconhecidas. As diversas culturas são

sem precisar provar o terrorismo da afirma-

reprimidas e desconsideradas nos espaços

ção, sem as desconfianças de estar traindo

públicos promotores de transmissão cultu-

o espírito nacional. Sem que me coloquem

ral. O que está em discussão, neste texto,

no banco dos réus, por um suposto racismo

são as percepções sombrias que os intelec-

invertido. Melhor ainda, lá não preciso dizer

tuais brasileiros conseguem ter destas cul-

que sou negro, todos sabem e respeitam. As

turas. Penso que os intelectuais nacionais

vozes negras podem ter eloquência na orga-

são míopes para estas culturas. Inexiste pre-

nização do conhecimento e nas expressões

ocupação em organizá-las nos centros de re-

das culturas universitárias. Certamente os

presentação da cultura nacional. A título de

intelectuais locais sentem outras restrições

depoimento, devo dizer que as duas primei-

relacionadas com o ex-colonialismo e o im-

ras vezes que não me senti sufocado, que saí

perialismo, diferente das minhas inquieta-

deste estado de quase asfixia, pela branqui-

ções.

dade conceitual sistemática e ideológica da cultura nacional brasileira, foram quando

As universidades brasileiras não têm equi-

cursava Mestrado em História em Nancy-

distância sistemática do pensamento eu-

-França e quando estive no Caribe. Sobretu-

ropeu. Da forma que se dá, o pensamento

do na Guiana, na Universidade da pequena

europeu recozido e recopilado, não fertiliza,

cidade de Georgetown, capital da Guiana.

reduz, enfaixa, cristaliza e provoca a necrose

Outras experiências posteriores, também

pensada. No Caribe me vi livre destes fantas-

significativas, de poder respirar, vieram nos

mas. Do europeu compulsório em todos os

EUA e na África. Os afrodescendentes brasi-

espaços e dimensões da cultura acadêmica.

leiros não conhecem, nem imaginam a sen-

Lá não há medo que o ritmo africano emba-

sação libertária de poder, intelectualmente,

le o pensamento. A reflexão pode ser dança-

respirar. O eurodescendente é compulsório

da e cantada na voz da minha avó. As avós e

72


avôs africanos existem no cotidiano do pen-

pesquisado e admitido como novo no pen-

samento e são reconhecidos no cotidiano

samento nacional, seja ele conservador ou

da vida. No pensamento africano, mesmo

revolucionário.

o racionalismo matemático é representado nas formas simbólicas da dança e da arte.

Quais são os marcos exteriorizadores desses

Entretanto, os racismos, mesmo na Guia-

pensamentos? Apesar das eloquentes defe-

na, trabalham nos processos de dominação.

sas da constituição da nacionalidade brasi-

É pertinente refletirmos sobre a sociedade

leira a partir de “três raças”, a pluralidade

brasileira a partir do modelo guianense de

daí resultante torna-se redução constante

racismo. Este opõe hindus aos negros. Hin-

do índio e do negro aos preceitos da inter-

dus, negros de cabelos lisos, a afro-negros

pretação do branco. Branco como resumo

de cabelos crespos. Tornam-se translúcidas

do pensamento ocidental dominante e (re)

as bases culturais dos racismos, apagando

elaborado no Brasil. Pensamento que tem

as ilusões do espectro das cores brasileiras.

no seu centro a fonte inspiradora do ma-

Os racismos se expõem na sua real função, a

nual do racismo e machismo, que é a gran-

de sistema de dominação, produzindo a ne-

de obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto

cessidade da produção da alienação cultu-

Freire. Texto até agora não abolido, sequer

ral para facilitar sua naturalização. Racismo

discutido quanto à sua validade nos cursos

que, no plano internacional, opõe europeus

de graduação. Texto lido e relido como fun-

a guianenses. O Caribe negro, ex-colônia; a

damento, indicado, reescrito na versão mais

Europa branca, ex-colonizadora. As ideias de

sofisticada do povo brasileiro, visto como

etnias são muito fortes e amplas na Guiana

fundamento, mas não explicado como fun-

e no Caribe. Mostram que racismos não têm

damento do quê e para quem, mas sempre

nada a ver com as ideias de raça, são proces-

com este status de fundamento. Fundamen-

sos de dominação, são construções tempo-

to do controle étnico-sexual-social das mas-

rais históricas.

sas contra nós, negros e índios, apesar dos disfarces democráticos e intelectuais.

O que está em discussão não são as culturas brasileiras, mas as percepções que

No pensamento nacional tornou-se siste-

os intelectuais brasileiros conseguem ter

mática a ideia do “escravo” como fator de

desta. Percepções que instauram a produ-

produção. Não temos os escravizados como

ção da cultura nacional, aqui no singular,

fonte do pensamento e produção intelectu-

significando a síntese oficial, genitora dos

al, isto fica relegado ao branco, o europeu

programas de ensino e das práticas cultu-

magnífico. Na cultura brasileira, o escravi-

rais legitimadas. Progenitora do que vai ser

zado não pensa, não cria, não tem noção

73


política, nem consciência de ser visto e se

A imagem de tribos de homens nus é refe-

ver como ser humano, como produtor de

rência conceitual do pensamento brasileiro,

ideias. As referências feitas a africanos, des-

nos ditando uma suposta ausência de cul-

cendentes de africanos, ficam no patamar

tura elaborada e desenvolvida dos africanos

das ações reativas, aos impulsos do imedia-

aqui escravizados.

to. Somos produtores de uma cultura Naife, simplória e linda. Percebida como rica em artefatos de simplicidade e improviso. Não de elaboração pensada e alicerce centrado

Afrodescendências e Africanidades

pelo uso da razão. Em muitos dos cursos sobre Africanidades A redução branca das culturas negras no

Brasileiras, tenho sido questionado se a Nova

Brasil é produzida a partir da ignorância de

História e os trabalhos de Darcy Ribeiro não

parte dos nossos intelectuais sobre as cultu-

têm exercido este papel de ruptura necessá-

ras africanas. Somos tidos como ignorantes

ria para a compreensão ampliada da partici-

pela ignorância deles, ignorância produzida

pação do afrodescendente na história social

devido à ausência de cursos sobre África e

e cultural nacional. Penso que a resposta é

Afrodescendência nas universidades. Muito

negativa. Nem um nem outro produziu os

menos somos sujeitos temáticos de pesqui-

elementos essenciais para a ruptura, ambos

sa, devido a estas tendências, alimentadas

continuam conceitualmente na base zero

pela inexistência de literatura sobre o assun-

para a história do(a) negro(a) brasileiro(a),

to nas bibliotecas nacionais. O desaparelha-

para a história dos afrodescendentes.

mento do intelectual brasileiro é expresso com o brilho do poema de Castro Alves, em

A (re)análise do escravismo não tem sido fei-

“Navio Negreiro”, no qual os africanos, imi-

ta, considerando este sistema antes de tudo

grados forçadamente para o Brasil, são tidos

como criminoso. A (re)análise continua nos

como originários de uma suposta tribo de

vendo como números e coisas. Não procu-

homens nus. Esta imagem da tribo dos ho-

ra captar a nossa dimensão humana. A su-

mens nus perpassa toda a cultura brasileira,

posta novidade em matéria de abordagem

produzindo os racismos que a perpassam.

não imagina o que o meu bisavô intelectual

Raras são as exceções, entre elas os traba-

africano pensava do criminoso escravizador.

lhos de Costa e Silva, Kabengele Munanga,

Não tem tomado a compreensão ampla do

Muniz Sodré ou do SECNEB (Sociedade de

sistema escravista e os quilombos como pro-

Estudos da Cultura Negra no Brasil).

dução das alternativas políticas. A Nova His-

74


tória não tem, na sua essência, o imigrante

da problemática afrodescendente brasileira,

africano como produtor intelectual e como

o entendimento das restrições do político-

um dos formadores de pensamentos polí-

-econômico, uma vez que admitimos que a

ticos na ordem escravista. Sobre Darcy Ri-

(re)elaboração destas culturas foi realizada

beiro, sua abordagem me parece uma insis-

sob forças de pressões e dominação. É essen-

tente reprise da obra Casa Grande e Senzala,

cial ao conceito de Africanidades Brasileiras

cujo eixo central é uma missão da miscige-

a ideia de (re)elaboração. As Africanidades

nação como elemento pontificador. Eu não

Brasileiras são (re)processamentos pensa-

acredito nisso. Penso que a miscigenação é

dos, produzidos no coletivo e nas individu-

um dado à parte dos processos ideológicos

alidades, que deram novo teor às culturas

de dominação. A miscigenação pouco con-

de origem.

tribuiu para o suposto pacifismo. O conflito existe pela violência do sistema, que utiliza

A ideia de (re)elaboração tem o conteúdo da

o racismo, o machismo, o classicismo e as

produção intelectual dos afrodescendentes.

ignorâncias produzidas, como elementos ar-

Introduz a ideia do pensado, do nacional,

ticuladores das dominações e das alienações

do produzido através de bases civilizadas

na sociedade nacional.

importantes preexistentes às invasões européias.

As Africanidades Brasileiras

A (re)elaboração é o elemento dinâmico, parte da compreensão de novas realidades

Os trabalhos de Diop (1959) permitem uma

e dos novos embates políticos, ela é produ-

percepção da diversidade cultural africana,

ção do novo. A (re)elaboração explica cons-

dentro de uma unidade da matriz africana.

truções inexistentes nas culturas africanas

A diversidade é produzida pelos contextos

presentes nas africanidades brasileiras. En-

históricos, geográficos e econômicos. Pa-

tretanto, as bases constitutivas desta nova

rece-me possível, devido aos importantes

construção são dadas na diversidade cul-

contingentes de africanos imigrados à força

tural africana. A ideia da (re)elaboração e

para o Brasil, advogar as mesmas participa-

da sua importância foi percebida por mim

ções nesta dinâmica de diversidade e unida-

quando, em 1986, estava em viagem a Trini-

de das culturas afrodescendentes processa-

dad y Tobago. Impressionou-me a apresen-

das no Brasil. Os elementos de base africana

tação de um grupo de Steel Band, sendo que

passam no Brasil pelas restrições econômi-

Steel Band são instrumentos de percussão

cas e políticas do escravismo e do capita-

produzidos com barris metálicos, cortados

lismo racista. É essencial, na compreensão

e abaulados, que através de um martelo pro-

75


duzem um processo de afinação. São feitos

vê a sua preservação. As complicações deste

por grupos de afrodescendentes do Caribe,

sistema de dominação não passam pela aná-

vivendo em regiões portuárias. Devido à re-

lise acadêmica amplificada. Produzem con-

volução industrial, os portos recebiam gran-

siderações fortes sobre os pensamentos aca-

de quantidade de barris metálicos. O Steel

dêmicos, que produzem a sua reprodução.

Band é um instrumento que produz os sons de todos os quatros grupos de instrumentos

Os pensamentos, guiados por estruturas ra-

de uma orquestra sinfônica. Trata-se de um

cistas, não foram ainda denunciados como

quinto grupo de instrumentos com vários

tais, com sistemática veemência. Existe um

tamanhos e formas. É um instrumento ine-

medo nacional das consequências desta de-

xistente na África e na Europa, entretanto

núncia. Os racismos são ainda identificados

aparece no Caribe, graças à (re)elaboração

como de menor importância, como tolerá-

da base africana de música e percussão, sob

veis ou como passíveis de eliminação pelo

a referência de novo contexto de disponibili-

passar do tempo. A singularidade do traba-

dades materiais. Não é uma construção sim-

lho brasileiro, durante quase 300 anos, sinô-

ples, ingênua, casual, Seria impossível con-

nimo de escravo, e escravo assemelhado a

ceber tal instrumento, sem uma elaboração

negro, não sofreu ainda a devida elaboração

sistemática, instruída de bases dos conheci-

no pensamento nacional. Continuamos com

mentos complexos de processos racionais.

os vetores dominantes no campo de um marxismo dogmático e estranho às parti-

A partir da (re)elaboração pensada sobre o

cularidades do processo histórico nacional.

Steel Band se descortinou um novo horizonte

Temos, por outro lado, as dificuldades dos

para pensar o candomblé, a capoeira angola

grupos dominantes se reconhecerem como

e os quilombos, que são, assim, (re)elabora-

dominadores, em face do discurso sorratei-

ção da base africana. A (re)elaboração abriu

ro de um espírito democrático, igualitário.

o caminho para pensar a ideia de culturas afrodescendentes e a existência de um conjunto amplo, indo do pensamento brasileiro à base material da cultura brasileira.

As necessidades ideológicas dos grupos dominantes de um credo no universalismo e na modernidade criam visões conflitantes com as do particular, do localizado, do regional e do étnico. São razões que precisam

Conclusões

ser percebidas e debatidas para a construção da pluralidade democrática. Ademais,

Os racismos produzem justificativas de sua

outro fator não percebido na cultura brasi-

existência, elaboram uma cultura que pre-

leira e, sobretudo, na política universitária é

76


a do peso relativo da representação. A etnia

processados pelas camadas “racizadas” da

afrodescendente aparece sempre em des-

população brasileira. Favorecem a destrui-

vantagem numérica, de poder e de acesso

ção das idealizações da cultura do domi-

à elaboração dos discursos oficiais. Somos

nador. Produzem espaço de liberdade inte-

derrotados pela ausência produtora e jus-

lectual, livre dos racismos e dos conceitos

tificadora da precariedade do embate. Sem

produzidos nos processos da dominação

que se enfrentem as razões fundamentais

historicamente vigentes na cultura brasilei-

da ausência. As razões dos racismos e as so-

ra.

luções estão nos programas específicos de formação.

As Afrodescendências instruem sobre a diversidade étnica brasileira, livre dos racialis-

Para a utilização e expansão dos conceitos

mos, reconhecedora da presença ampla, di-

de Afrodescendência e Africanidades Bra-

versa, múltipla e estruturada, de uma etnia

sileiras, não se apresentam até o presente,

predominante afrodescendente.

fortes objeções de fundo teórico da produção de conhecimento, somente objeções de

Referências

caráter político. As estruturas do poder, de domínio do certo e do errado, ficam abaladas com o reconhecimento das Africanidades Brasileiras. A verdade entra numa competição de dominação, em que seus supostos conhecedores podem se confortar com as ignorâncias, com as faces dos racismos no espelho. São revelações que podem emergir do aprofundamento no conceito de

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79


II. Humilhação,

encorajamento e construção da

personalidade1 Azoilda Loretto da Trindade2 A todos as crianças, em especial às negras (afrodescendentes): “Ao entrar na sala, após a merenda, a professora encontrou Rafael e Tiago, também recém-chegados da merenda, brigando: - E você? - perguntou Rafael. - É, sou branco mesmo. Mas, pior é você, que é louro! - respondeu Tiago. - Você também é louro, seu branquela! - falou Rafael. – É, mas você é mais louro do que eu! - retrucou Tiago.” (Ambos, de 8 anos de idade, cursavam a 1ª série do Ensino Fundamental, numa escola pública do Rio de Janeiro.)

80 Esse acontecimento ficou gravado na mi-

Quero, no entanto, convidá-lo(a) a pensar a

nha memória como algo intrigante e eu o

negritude, a questão negra ou afrodescen-

destaco, agora, como ilustração de que, no

dente na escola. Uma questão complica-

que diz respeito ao racismo e às exclusões e

da, por estar amalgamada com a questão

discriminações, quer na sociedade, quer na

do racismo, e porque tendemos a negá-lo.

escola, todos nós estamos afetos e expostos:

Quanto(a)s de nós falamos ou ouvimos “não

mulheres, homens, negro/as, índios, ciganos,

existe racismo, o que existe é questão de

judeus, nordestinos, crianças, idosos, etc. To-

classe”, “aqui não tem essa de racismo, todo

dos nós somos e estamos envolvidos, trans-

mundo é igual: preto, branco, amarelo, ín-

versalmente enredados na teia do racismo

dio”, ou coisa parecida?

e dos preconceitos, ou por pertencer a um determinado grupo, ou por não fazer parte de outro e, estando à margem, não percebermos o que aquele grupo vive, pensa ou sente.

No entanto...

1 Escola: exclusão e inclusão – 2000 / PGM 3. 2 Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ, Doutora em Comunicação pela ECO/UFRJ. Organizadora desta coletânea.


A Negrítude na Escola

Festas, desfiles e comemorações

Fico fascinada ao ver, cotidianamente nas ruas, nos horários de início das aulas, o contingente de crianças, com seus/suas responsáveis, dirigindo-se às escolas. Quantos sonhos e expectativas! Muitos chegam a dizer que vão a escola para serem “alguém” na vida, como se já não o fossem.

Davidson, com 9 anos, na primeira série, menino negro, pai e mãe negros, recusou-se a participar da festa junina se tivesse que dançar com uma colega negra. Alegou não gostar de negros e que, por isso, não dançaria com a menina. A professora disse-lhe

E as crianças e adolescentes negros, afro-

que, se ele não dançasse com a colega, ele

descendentes, que pertencem a um grupo

não dançaria com ninguém. Ele ficou na fes-

que têm a sua história escondida e/ou ne-

ta apenas como espectador e não dançou

gada na sociedade; que têm suas necessi-

com ninguém. Imagine o nível de autonega-

dades, seus modos de ser, seus problemas,

ção daquela criança e como deve ter ficado

sua cultura, as lutas e ações positivas do

a menina.

seu povo, sua voz, sua pele, seu cabelo negados, escondidos, invisibilizados; que

Amauri era um menino inteligente, só tira-

sofrem diretamente com a omissão, segre-

va excelentes notas. A regra da escola era

gação e secundarização dos problemas es-

que o melhor aluno carregaria a bandeira

pecíficos do seu povo?

da escola no dia do desfile cívico. Naquele ano, pelas notas e atitudes, Amauri era

Começo a lembrar de acontecimentos relacionados a nós, negros e afrodescendentes na escola.

considerado o melhor aluno. No entanto, no dia do evento, Amauri foi preterido por um outro aluno.

Mesmo com visíveis mudanças - hoje temos os Parâmetros Curriculares Nacionais, com

É importante que nos indaguemos quantas

a proposta de discutir a pluralidade cultu-

crianças negras, sob nossa responsabilida-

ral, em nível nacional; O Dia Nacional da

de docente, têm a oportunidade de levar

Consciência Negra incorporado em muitos

a bandeira da escola, e/ou de representar,

calendários escolares; a voz do Movimento

nas festinhas da escola, coelhinhos da Pás-

Negro, ecoando em toda a sociedade - as si-

coa, ou Jesus ou sua mãe Maria, ou anjos,

tuações que relatarei a seguir ainda nos são

ou situações que exprimam beleza e visibi-

contemporâneas.

lidade positiva?

81


Brincadeiras

Temos situações mais duras, que trazem, em seu bojo, uma limitação de possibilidades da

“Barra manteiga/no fuça da nega” ou “Chi-

criança ou do aprendiz, ou uma descrença

cotinho Queimado”. Esses e outros tipos de

no potencial do outro/a como:

brincadeiras nada teriam demais, não fosse a desumanização de negros, quem tem fuça

O destino de Denise

não é gente, ou a banalização de um instrumento de punição e coerção como o “chi-

A mãe de Denise, menina negra, de família

cotinho queimado”, o chicote que já “quei-

de baixa renda, foi à escola da sua filha, que

mou” na pele de muita gente, sobretudo dos

era pública e situada em bairro popular, re-

negros escravizados do nosso país.

clamar do ensino “fraco” daquela instituição.

Musiquinhas

A professora, que gostava muito da Denise, menina inteligente e boazinha, excelente

Músicas infantis, como, por exemplo “Escravos de Jó” que, embora pertencendo ao nosso imaginário social, à nossa memória afetiva, trazem no seu bojo a naturalização da condição de escravo que, no caso do Bra-

aluna, acalmou a mãe: “Não se preocupe, para ser auxiliar de enfermagem ou trabalhar num supermercado, este ensino está ótimo. Ela vai se dar muito bem, fique tranquila”.

sil, é tido como sinônimo de negro. Denise, hoje, é doutora em Sociologia e pro-

Contos de fadas e populares

fessora de uma universidade norte-americana.

No nosso repertório de contos de fadas ou populares mais conhecidos, quantas belas he-

Imagine se a mãe da Denise aceitasse aquela profecia para sua filha...

roínas negras podemos, de pronto, destacar? Imagine quando uma criança é negra e, junLendas que retratam a origem das “raças”

to com esta falta de expectativa, vier a cren-

colocam os negros como os esquecidos de

ça de que aos negros cabem profissões que

Deus, ou como descrentes ou preguiçosos,

exigem pouco estudo.

ou a cor negra como uma espécie de castigo. Imagine quantas crianças têm seu potencial São tantas exclusões, preconceitos, discri-

embotado por causa do racismo e preconcei-

minações!

to de algumas e alguns docentes, e/ou pela

82


falta da confiança que tiverem em relação

ou picadas relacionados ao povo negro,

a ela, pela falta daquele encorajamento, da-

ou quando as crianças negras se dese-

quele estímulo para a aventura de aprender.

nham brancas de olhos claros.

Professora negra

• O desconhecimento e o desinteresse coletivos de que há um mundo submetido, tornado subalterno, estereotipado, silen-

O pai de uma criança de uma escola pública, no primeiro dia de aula, ao ver que a professora do seu filho era negra, foi solicitar à diretora da escola que trocasse sua criança de turma. “Ora! Logo meu filho com aquela professora escurinha” - disse ele.

ciado pelo racismo e preconceito a tudo que nos reporta à África e à sua diáspora: o Continente Africano, sua gente e seus descendentes, seus costumes, sua literatura, seus saberes, religiões, ciência, sua geografia, história, biologia - toda uma riqueza a ser descortinada e reconheci-

Temos situações mais sutis, mais naturaliza-

da.

das, submersas e corriqueiras, como: Não destaco estes acontecimentos para • A exclusão da imagem negra com positivi-

culpabilizar ninguém, mas porque sou pro-

dade dos murais, quadros de avisos, de ani-

fessora e sei a importância do nosso papel

versariantes do mês, dos quadros das cha-

na formação dos alunos/as e cidadãos(ãs),

madinhas, nos brinquedos adquiridos pela

na ampliação do seu desejo de aprender, no

escola, como, por exemplo, bonecos/as.

formação da sua autoimagem, na sua auto-

• A ainda incipiente quantidade de livros didáticos ou paradidáticos e de literatu-

confiança e sei o quanto a escola é crucial para nós, afrodescendentes.

ra infantil e juvenil com imagens negras,

Destacamos estes acontecimentos para con-

que não mostrem posições subalternas

vidar o/a leitor/a a entrar na escola com um

ou de marginalidade.

olhar antirracista e democrático porque, no

• Quando compramos presentinhos iguais para todas as meninas da escola, por exemplo, pentes ou prendedores, sem levar em consideração a constituição dos cabelos das meninas negras. • Quando ficamos paralisados sem saber o que fazer diante de xingamentos, apelidos

seu cotidiano, está presente a diversidade, o movimento, as multiplicidades de sons, cores, cheiros, vozes, formas, desejos, a diferença, os negros/as - afrodescendentes, a(s) cultura(s) negra(s), entre outras. Essa entrada na escola, numa perspectiva antirracista, requer atuarmos no seu cotidiano criticamente:

83


• na hora da matrícula, para não excluir ninguém com mecanismos sutis e perver-

nas nossas lutas, no nosso sangue e na nossa alma.

sos, mascarados, ou não, de bonzinhos; • nas ações que incidem no controle do corpo e da fala dos alunos, já que este “controle”, subliminarmente, aponta para um padrão de corpo e linguagem humana que nega as diferenças ou privilegia um determinado aspecto como o melhor, o certo, o válido; • - quando da escolha e da organização de turmas, no planejamento, nas ações cotidianas de sala de aula (definição de conteúdos e suas abordagens, livros didáticos

Enfim, convidamos todo(a)s a perceber essa Cultura com sentimentos como a curiosidade, a admiração, o interesse, e sobretudo com respeito, muito respeito para com um povo que, chegado ao Brasil como chegou, tendo vivido e vivendo uma história de injustiça, exclusão, discriminação, não perdeu a capacidade coletiva de dançar, cantar, sorrir, criar e, como canta Caetano, construir “milagres de fé no extremo Ocidente” e que só sobreviveu e sobrevive porque possui “essa estranha mania de ter fé na vida”

e paradidáticos, textos escolares, merendas, recreio, brincadeiras, musiquinhas,

Afinal, romper com a discriminação e com

nas reuniões docentes, em nossos discur-

o racismo, investindo numa escola que

sos, nas reuniões com as responsáveis,

contemple e valorize nossas matrizes cul-

etc.), para que o respeito, a valorização, o

turais sem hierarquizá-las, que valorize e

diálogo, a tolerância, a construção coleti-

atue com competência, conhecimento e

va, a expectativa positiva, a criatividade e

desejo político, rumo à construção de uma

a paixão por aprender e ‘conhecer o mun-

educação libertadora e multicultural críti-

do’ sejam realidades visíveis.

ca - esses são os nossos desafios e legados históricos.

Destacamos estes acontecimentos para sinalizar a urgente necessidade de descobrirmos nossa negritude presente na escola e na

Referências

sociedade. Descobrirmos com outros olhos a presença negra no Brasil, para além da

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O racismo na

circunscrita no folclore, para além da mera

história do Brasil: mito e realidade. Rio de Ja-

contribuição na dança, música, samba, co-

neiro: Ática, 1998.

res vivas, futebol. Percebermos a Cultura Negra em todas as partes, ainda que sub-

MUNANGA, Kabenguele. Negritude: usos e

mersa, na Arte, na Ciência, nas nossas vidas,

sentidos. Rio de Janeiro: Ática, 1986.

84


SANTOS, Joel Rufino dos. A questão do negro

MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do

na sala de aula. Rio de Janeiro: Ática, 1990.

laço de fita. Rio de Janeiro: Ática, 2000.

TRINDADE, Azoilda; SANTOS, Rafael (Orgs.). Multiculturalismo: as mil e uma faces da escola. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1999.

Infantis e Juvenis:

MIGUEZ, Fátima. Em boca fechada não entra mosca. São Paulo: DCL, 1999. LIMA, Heloisa Pires. Histórias da preta. São Paulo: Cia. das Letrinhas, 1998.

BARBOSA, Rogério Andrade. Bichos da África

ZIRALDO. O menino marrom. São Paulo: Me-

(coleção). São Paulo: Melhoramentos, 2002.

lhoramentos, 1986.

85


III. A Lei n. 10.639/2003 altera a LDB e o olhar sobre a presença dos negros no Brasil e transforma a educação escolar1 Bel Santos2

A alteração dos artigos 26 e 79 da Lei n.

mente, estas leis incorporaram, ao concei-

9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educa-

to de inclusão, o direito inerente a todas as

ção - LDB, através da Lei n. 10.639/2003, deve

pessoas de serem tratadas em condições de

ser entendida como um passo importante a

igualdade, independente de sua cor ou raça,

caminho de uma pedagogia e de uma didáti-

ao mesmo passo que deixaram patente que

ca que valorizem a diversidade étnico-racial

a democracia racial, tão apregoada, não é,

e cultural presentes no Brasil.

ainda, uma realidade, necessitando, portanto, que seja garantida por lei.

Uma das características do processo de democratização do país tem sido a alteração

Quando o assunto é lei, vêm logo a nossas

do marco legal, incluindo, em forma de leis,

mentes algumas expressões do senso co-

antigas reivindicações sociais de acesso aos

mum: “lei no Brasil não pega... é só mais

direitos. São exemplos: a Constituição Bra-

uma”, “é para inglês ver”, “se fosse bom o

sileira (1988), o Estatuto da Criança e do

governo não dava, vendia”, “é mais uma lei

Adolescente (Lei n. 8.069/1990), a LDB (Lei

que vem de cima para baixo, para complicar

n. 9.394/1996) e sua recente alteração (Lei

a vida do/a professor/a3 e da escola”. Os de-

n. 10.639/2003), tema deste texto. Indistinta-

mais programas desta série já trataram de

1 Repertório afro-brasileiro – 2004 / PGM 5. 2 Professora formada em Matemática, com especialização em Pedagogia Social. Durante 11 anos alfabetizou em escolas da Rede Pública Municipal de São Paulo e, desde 1992, atua em organizações não governamentais. Atualmente é coordenadora de projetos de educação do Centro de Estudo das Relações do Trabalho e Desigualdades - CEERT, voltado para a promoção da igualdade racial/étnica no ambiente escolar; sendo docente do Programa de Formação em Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC 3 A partir deste momento, apenas para efeito de facilitação da leitura e da escrita, utilizaremos os artigos femininos apenas quando se tratar especificamente do gênero feminino. Nos demais casos, utilizaremos o gênero masculino.

86


apontar como as organizações do movimen-

movimentos negros, mas que beneficiarão

to negro, por meio de pesquisas e denúncias,

toda a sociedade?

se empenharam em tornar incontestáveis os dados da desigualdade racial que marcam as

Se para lá dos muros da escola, os conteúdos

relações em nosso país4. A inferiorização e a

fazem com que os negros e negras se sintam

invisibilidade da população negra foram ex-

inferiores, como a escola pode se contrapor

plicitadas. Uma rápida olhada nos outdoors

e ir na contramão, oferecendo possibilida-

das grandes cidades do país e a quantidade

des para que crianças, adolescentes e jovens

de mulheres louras associadas a produtos de

negros construam uma justa imagem de si

beleza e de ascensão social nos levariam a

mesmos?

supor estarmos na Dinamarca ou em qualquer outra cidade européia. Em contraparti-

Perguntas como estas, há décadas orien-

da, as campanhas e propagandas de cunho

tam os estudos e intervenções de organiza-

social (como saneamento básico, alfabeti-

ções negras e intelectuais brancos e negros,

zação, doação para orfanatos etc.) se valem

como F. Rosemberg, Ana Célia Silva, Eliane

da imagem de pessoas negras, provocando a

Cavalleiro e outros.

rápida associação entre negro e miséria. Permito-me argumentar que, ainda que ouAssim, é! Todos nós vemos! Todos os dias:

tras leis sejam resultantes de reivindicação

no jornal, na novela, nas revistas... Assim

popular, a inclusão da história e cultura da

é a nossa sociedade! Assim acontece fora

África nos currículos escolares se destaca

da escola, porque dentro... Como acontece

pela intensa mobilização social e pela com-

dentro? Como negros e negras são represen-

petente metodologia produzida à margem

tados nos livros didáticos? Qual enfoque é

do sistema oficial de ensino. Entendendo

dado à sua participação na história e cultura

que mudar o imaginário de África incidia di-

do país? Aparecem como escravos? Como

retamente no imaginário social sobre a po-

passivos? Ou não? Já falamos de Zumbi e do

pulação negra no Brasil, instituições como o

Quilombo dos Palmares... E o 20 de novem-

Ilê-Aiyê da Bahia, passaram a desenhar uma

bro? E as várias insurreições negras, as ve-

proposta educacional para suas crianças, in-

lhas e atuais reivindicações pautadas pelos

cluindo uma história positiva da África, os

4 De acordo com dados do Instituto de Pesquisas Aplicadas - IPEA, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 1999, apesar de os negros representaram pouco menos da metade da população, são 70% dos que vivem em situação de miséria; a pobreza atinge 38% das crianças brancas e 65% das negras; um negro, com mesmo nível de escolarização que um branco ganha até 54% menos que este; entre os meninos brancos 44,3% estão cursando o 2o ciclo do Ensino Fundamental, já para os negros este percentual cai para 27,4%; sete em cada dez negros não completam o Ensino Fundamental.

87


mitos, a ancestralidade e a topografia do

Foi o conjunto de práticas como estas que

terreiro à sua concepção pedagógica. A prin-

impulsionou a inserção da história e cultura

cípio, estas práticas pretendiam ser com-

da África e dos afro-brasileiros no currículo

plementares ou alternativas à educação es-

oficial de algumas secretarias de educação

colar que, baseada na ditadura do “mono”,

na década de 1990 e em 2003, em todo o sis-

invalidava e abortava a diversidade cultural

tema educacional, como lei federal. Portan-

e racial presente em seus alunos, produzin-

to, a Lei n. 10.639/2003 não é um presente

do, com esta invisibilização, uma escala de

“do governo”. No máximo um presente das

valores, na qual a história e cultura da África

organizações do movimento negro para a

ocupavam os últimos lugares.

sociedade brasileira. Um passo importante neste processo foi a consolidação do Plano

A experiência do Apô Afonjá, sistematiza-

de Ação da III Conferência Mundial Contra o

da por Vanda Machado, é um feliz exemplo

Racismo, o direito de ter incluído nos currí-

de busca de uma pedagogia nagô, que liga

culos escolares a história que até então não

a educação escolar ao mundo do terreiro

tinha sido contada nas escolas.

com toda a sua riqueza material e simbólica, envolvendo toda a comunidade com a ação educativa e promovendo o conhecimento e o respeito às religiões de matriz africana. Crianças, ainda muito pequenas, ouvem e reescrevem, com suas educadoras, histórias de reis e rainhas africanos como a Rainha Nzinga, de lutadores como “O caçador de uma flecha só, que trouxe alegria”, e assim aprendem a gostar mais de si mesmas. O passo seguinte foi levar esta pedagogia para a escola, incluir este novo olhar e novos sentidos à formação dos educadores da rede pública aos espaços acadêmicos. E assim vem acontecendo. Desde 1940, o Teatro Experimental do Negro, preocupado com uma educação que valorizasse a participação do negro na construção

Atuando na formação de educadores e na proposição de políticas de promoção da igualdade racial, tenho observado que, no geral, as unidades educacionais já reconhecem que é delas a tarefa de educar para a igualdade racial, ainda que alguns educadores estejam esperando uma situação explícita de racismo, para então pensar no assunto. Porém, para aqueles que acreditam que é necessário fazer algo, a questão que se apresenta é o como fazê-lo. A tendência é delegar esta missão ao professor negro, militante, ou ao professor de História, que são considerados como “aqueles que sabem destas coisas”, enquanto os demais ficam à espera do dia em que estarão preparados para tratar tema tão delicado!

da história, criou cursos de alfabetização,

As dificuldades, muitas vezes, estão pauta-

arte e cultura para adultos e crianças.

das, mais que na falta de conteúdos e fontes

88


de pesquisas, em receios, medos, mágoas e

A experiência do Prêmio Educar para a Igual-

inseguranças em tratar a temática racial, que

dade Racial apontou que a inclusão de uma

não devem ser ignorados. Muitas vezes, os

perspectiva africana ao currículo escolar

educadores brancos, negros, indígenas, etc.,

tem provocado grandes mudanças no modo

não tiveram oportunidade de refletir sobre

de ensinar, nas metodologias de ensino, nos

sua própria identidade racial, sobre suas vi-

recursos didáticos utilizados. Observa-se

vências das relações raciais. Cabe uma pro-

que estas práticas são mais participativas,

posta efetiva de capacitação de educadores,

contam com a presença da comunidade es-

oferecendo conteúdos, mas também, dando

colar em seu sentido mais amplo (familia-

conta das questões subjetivas, para encorajá-

res, organizações sociais etc.), estimulam a

-los a uma prática que promova a igualda-

pesquisa, valorizam a oralidade, os símbo-

de racial. Trata-se de mudar, não apenas os

los, os mitos, a ancestralidade.

conteúdos, mas o olhar e os sentidos dados à diversidade étnico-racial. Nessa perspec-

A experiência do Prêmio Educar para a Igual-

tiva, muitas práticas “alternativas”, muitos

dade Racial apontou que a inclusão de uma

materiais e experiências têm sido produzidos

perspectiva africana ao currículo escolar

em território nacional: bibliografias afro-

tem provocado grandes mudanças no modo

-brasileiras têm chegado às salas de leitura e

de ensinar, nas metodologias de ensino, nos

bibliotecas dos municípios de São Paulo, Belo

recursos didáticos utilizados. Observa-se

Horizonte e Campinas; programas de forma-

que estas práticas são mais participativas,

ção continuada nas unidades escolares, nos

contam com a presença da comunidade es-

horários coletivos, nas universidades; sele-

colar em seu sentido mais amplo (familia-

ção, análise e disseminação de práticas edu-

res, organizações sociais etc.), estimulam a

cacionais como as que são organizadas pelo

pesquisa, valorizam a oralidade, os símbo-

Prêmio Educar para a Igualdade Racial, promo-

los, os mitos, a ancestralidade.

vido pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT10. Práticas

Não tememos ser otimistas, ao dizer que a

que têm saído do combate ao racismo para a

Lei n. 10.639/2003 já nasce ultrapassando o

promoção da igualdade racial na educação.

limite da obrigatoriedade. A África está dei-

10 O Prêmio Educar para a Igualdade Racial, em duas edições, recolheu e analisou 524 experiências educacionais de promoção da igualdade racial/étnica, de todos os estados do país, da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e Médio. A primeira edição teve como um dos produtos a publicação “Educar para a Igualdade Racial” contendo as sínteses de 30 experiências e um CD com sugestões de atividades e uma bibliografia com mais de trezentos títulos. A publicação da segunda edição está em andamento, mas é possível verificar no site do CEERT (www.ceert.org.br), um resumo de 32 práticas bem sucedidas.

89


xando de ser um “país carente” para se tor-

cial presente na sociedade brasileira. Este

nar um continente cheio de contradições e

“projeto continente” não está pronto. Está

belezas históricas. Na mesma medida, a es-

sendo e poderá ser construído por cada

cola deixa de ser o terreno da exclusão de

um, cada uma de nós, cotidianamente. Sua

crianças negras e indígenas, para se tornar

implantação impulsionará decisões asserti-

espaço de intervenção pedagógica de com-

vas, políticas públicas transformadoras. E,

bate ao racismo e de promoção da igualdade

brevemente, nossos alunos, negros, bran-

racial. Vão desaparecendo as ações solitárias

cos, indígenas e de outros grupos étnicos

das salas de aula e emergindo projetos co-

terão que consultar o dicionário para com-

letivos, “projetos-continente”, partilhados

preender o termo exclusão.

com outros educadores, com organizações do movimento negro, pesquisadores e secretarias de educação. Os livros com visões estereotipadas cedem o espaço àqueles que falam de tantas diferentes gentes, em tantas diferentes línguas, de tantos diferentes sentimentos, mostram tantos diferentes

Para ampliar o debate Vídeos: “Vista minha pele” – CEERT . ceerteduc@uol.com.br “Rompendo o silêncio” – SEBRAP

jeitos e cabelos. Rompe-se o silêncio diante de situações de discriminação, sejam elas explícitas ou não. As referências negras,

Referências

as personalidades históricas não podem mais ser contadas nos dedos das mãos, tamanhos os levantamentos feitos por educadores e educandos. Cada vez que um educador sente dificuldades para abordar a temática racial ou tem vontade de aprofundar sua formação sobre os estudos afro-brasileiros conta com vasta bibliografia e

BENTO, Maria Aparecida da Silva. Cidadania em preto e branco. São Paulo: Ed. Ática, 1999. CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar, ao silêncio escolar. Racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo, Ed. Contexto: 2000.

com a parceria das universidades locais e

MACHADO, Vanda. Ilê- Axé.Vivências e Imer-

seus pesquisadores. Os quilombos deixam

são pedagógica: as crianças do Apô Afonjá.

de ser referência do passado e estão cada vez mais perto do universo das escolas.

BRASIL. CNE/CP 003/2004. Diretrizes Curricula-

Uma boa escola passa a ser assim denomi-

res Nacionais para a Educação das Relações Ét-

nada na medida em que reflete, em todos

nico-raciais e para o Ensino de História e Cultura

os seus aspectos, a diversidade étnico-ra-

Afro-brasileira e Africana. Brasília, MEC: 2004.

90


ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Alma-

cação: repensando nossa escola. São Paulo,

naque Pedagógico Afrobrasileiro. Uma pro-

Summus, 2001. p. 97-114.

posta de intervenção pedagógica na superação do racismo no cotidiano escolar. Belo

SILVA, Ana Célia da. A discriminação do ne-

Horizonte: Mazza Edições, 2004.

gro no livro didático. Salvador, EDUFBA/CEAO: 1995.

ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo, Global:1985.

______. Desconstruindo o racismo no livro didático. Salvador, EDUFBA/CEAO: 2001.

SANTOS, Isabel Aparecida. A responsabilidade da escola na eliminação do preconceito

SILVA Jr., Hédio. Discriminação racial nas es-

racial: alguns caminhos. In: CAVALLEIRO,

colas: entre a lei e as práticas sociais. Brasí-

Eliane (org.). Racismo e anti-racismo na edu-

lia: UNESCO, 2002.

91


IV. África viva e transcendente!1 Narcimária Correia do Patrocínio Luz2 [...] Eu digo para nunca esquecerem o lugar de suas origens. Se nós participamos na religião de outros, se nós aprendemos a cultura dos outros, não devemos esquecer a nossa. Portanto, nós não devemos usar nossas mãos para relegar nossa própria cultura a posições inferiores. Toda pessoa deve aprender a colocar-se a si mesma num pedestal. Isto porque a galinha é que se abaixa quando está entrando em casa. Meus filhos, todos os tesouros do povo Yorubá estão em Ilé-Ifé. Ifé é o lar e a origem de todos nós... Ilé-Ifé é a terra sagrada do povo negro e de todos os devotos da religião dos Orixás espalhados pelo mundo. Foi aqui em Ifé que Oduduwa criou a Terra sobre a qual todos nós hoje estamos em pé e no seio da qual nós desapareceremos quando mudarmos nossa presente posição mortal!!!Oduduwa que desceu para a terra numa corrente, e que foi o primeiro Olofin, não deixará secar nunca a fonte de vossa sabedoria. Eu saúdo a vossa coragem. Eu saúdo vossa paciência. Eu estou muito feliz por ver que vocês não esqueceram o seu lar ancestral... (Oba Okunade Sijuwade, Olubuse II, Rei de Ifé. Pronunciamento na I Conferência Mundial da Tradição do Orixá, Ilê Ifé, Nigéria, 1981.)

Introdução

África e Cultura Afro-Brasileira, e sua implementação no currículo oficial das esco-

A efervescência do debate sobre a Lei n.

las brasileiras são o foco da nossa análise,

10.639/03, que entrou em vigor em 09 de ja-

principalmente depois de constatarmos

neiro de 2003 e que inclui, no currículo da

muita ansiedade entre os professores(as),

Educação Básica, o estudo da História da

sob a pressão de ter que contribuir no pro-

1 Currículo, Relações Raciais e Cultura Afro-Brasileira – 2006 / PGM 1. 2 Professora Titular do Departamento de Educação Campus I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Doutora em Educação; pesquisadora no campo da Educação, Comunicação e Comunalidade Africano-Brasileira; coordenadora do PRODESE - Programa Descolonização e Educação CNPq/UNEB.

92


cesso de implantação do ensino de História

nea, submetida ao discurso universal que a

da África e História e Cultura Afro-Brasileira

congela no tempo e no espaço da lógica do

nas suas escolas.

projeto histórico da “ordem e progresso” capitalista, destituindo-a completamente dos

Levando em consideração as questões mui-

povos que detêm milenarmente um comple-

tas vezes dispersas e equivocadas que vêm

xo sistema de pensamento, de onde trans-

afligindo professores(as), e aquelas que ha-

bordam cosmogonias, universos simbólicos,

bitam o imaginário de crianças, adolescen-

um complexo sistema de comunicação cujas

tes e jovens que deverão vivenciar a Lei, aqui

linguagens e valores organizam comunali-

é importante esclarecer que o processo de

dades, instituições e suas hierarquias, tec-

sua implantação não está ocorrendo em

nologias e modos de produção, além de uma

águas tranquilas. A Lei n. 10.639/03 é o resul-

magnífica erudição estética...

tado do esforço envolvendo as comunalidades africano-brasileiras que, durante muito

Nossa contribuição se alinha justamente

tempo instituíram iniciativas em Educação

nesse esforço, de compor a África a partir

que afirmassem e legitimassem seu patri-

do repertório das comunalidades que a (re)

mônio civilizatório: a África e sua (re)criação

criaram aqui, tornando-a visceral em nos-

nas Américas.

sas vidas. A África que aparece no currículo escolar soa como um lugar distante, tudo é

Apesar de reconhecermos a conquista ob-

estranho, fora das nossas entranhas. Essa

tida pelas comunidades africano-brasileiras

África, que ganha o status jurídico, no âm-

em estabelecer canais de legitimação ins-

bito das políticas de Educação, perde a di-

titucionais para que o Estado assumisse a

nâmica de civilização transatlântica que há

diversidade civilizatória dos povos nas polí-

muito atravessa o nosso viver cotidiano no

ticas de educação, vimos que há equívocos

Brasil. Ora, se estamos dentro da dinâmica

na abordagem sobre a África e sua influ-

entre tradição e contemporaneidade, é pre-

ência em nossas vidas. Isso, muitas vezes,

ciso que se diga: a África também está aqui!

vem ocorrendo pela adoção de perspectivas

Está aqui o tempo todo envolvendo nossas

teórico-metodológicas, ainda derivadas das

crianças e jovens, animando-os a estruturar

projeções da História e da Geografia civili-

suas identidades e erguer a cabeça para lidar

zatórias greco-romanas, anglo-saxônicas e

com os espaços institucionais impregnados

ibéricas. São perspectivas que insistem em

do recalque ao que somos, enquanto povos

representar a África compacta, homogê-

descendentes de africanos.

93


Para além das fronteiras do currículo escolar, existe a floresta

a história como Hegel e Marx viram, é dinâmica, é uma mutação sem compromisso com o pai, porque o Ocidente é uma sociedade deicida e parricida, ma-

Se realmente pretendemos aproximarmo-

tou Deus e mata o pai. Bem, eu estou

-nos da “África Viva”, será preciso pensar

falando com outra linguagem, do Egun,

em africanizar o currículo. A africanização

que é o culto ao ancestral. Portanto, o

do currículo escolar é uma estratégia para

princípio da ancestralidade é poderoso,

transcendermos as narrativas curriculares

porque nele você pode crescer, envelhe-

que destituem os povos da África do direito

cer, morrer, e o tempo inteiro você é

à existência e da afirmação de toda a exube-

atravessado por um discurso de funda-

rância que caracteriza o seu continuum ci-

ção de seu pai e sua mãe. Você não se

vilizatório. Nossas crianças e nossos jovens

livra desse discurso. Você pode tentar

precisam saber disso! É uma dinâmica de

rejeitá-lo, mas quando joga fora é para

currículo cujas linguagens e valores se inter-

cair num outro que você funda, porque

cambiam entre as distintas civilizações que

você se livra de seu pai físico, mas quan-

compõem a nossa identidade nacional.

do tem um filho vira o pai e você está no discurso de fundação3.

Isso nos leva à radicalidade das elaborações sobre o tempo que atravessa o pensamento

Vamos nos dedicar agora a realçar alguns

africano. Creio que Muniz Sodré nos ajudará

elementos dramáticos que nos permitem

a elaborar essa transcendência:

a aproximação da singular visão de mundo que faz expandir a complexidade da civiliza-

[...] Os neo-alexandrinos tinham uma

ção milenar africana entre nós.

categoria chamada ‘eon’, que é uma das maneiras de dizer tempo em grego. O

Trata-se do conto “Ajaká, Iniciação para a

‘eon’ é o tempo que recorre. Então, há

Liberdade”4, que integra a herança nagô nas

alguma coisa na Bahia que é a ordem do

Américas, de modo particular na Bahia. Esse

‘éon’, ‘trans-histórico’, transtemporal.

mito foi (re)criado para um auto coreográ-

Onde há ‘éon’ tem-se o princípio forte de

fico por Mestre Didi, Deoscóredes Maximi-

ancestralidade, de paternidade, e não de

liano dos Santos, Juana Elbein dos Santos e

história pura. A história, principalmente

Orlando Senna.

3 SODRÉ, Muniz. Entrevista a Mariluce Moura, Caderno Valor, 4 de março de 2001, p.10. 4 Conto adaptado de SANTOS, Deoscóredes M. et alii. Ajaká, a Iniciação para a Liberdade. Salvador, SECNEB, 1991.

94


Esse auto coreográfico vem alimentando

podendo assumir a plenitude de ser e ter or-

nossas iniciativas teórico-metodológicas,

gulho da sua descendência africana.

envolvendo professores de várias regiões do Brasil, para falar sobre a presença africana e a contribuição de suas linguagens na área de Educação.

No tempo em que os seres humanos moravam nas árvores e conversavam com elas5, os mais antigos nos contam que Oduduwa, orixá patrono da criação da

Fizemos uma adaptação cuidadosa e exclu-

Terra, vivia em seu palácio na cidade

siva de Ajaká para compor esse mosaico de

de Ifé, na Nigéria, de onde se originam

ideias sobre a “África Viva e Transcenden-

a cultura nagô e as linhagens reais dos

te”, e irmos conversando, tocando no que

diversos reinos do império nagô.

há de mais profundo no conto, a saber: os percalços pelos quais Akajá passa, que são

Oduduwa ficou muito doente e, se não

explorados entrelaçando dança, música, tex-

fosse logo cuidado, poderia ficar cego.

to, efeitos plásticos: uma linguagem assen-

Ah! Se isso acontecesse, a existência es-

tada no universo simbólico nagô. A floresta

taria toda em perigo! O ânimo de todo o

é o cenário-chave do conto e nela crescem,

povo de Ifé era a esperança de encontrar

com maestria, conteúdos ético-estéticos

a Folha da Vida, único remédio, planta sa-

que revelam as Mães Ancestrais, represen-

grada que representa descendência, reno-

tadas como o pássaro Akalá; Aroni, o orixá

vação, cuja seiva permitirá que o Rei Odu-

das folhas, que se torna irmão de Ajaká e seu

duwa recupere a visão e a força da vida.

guia; os espíritos da água e da palmeira; os ancestrais masculinos Egunguns.

Mas não é fácil encontrar a folha da vida! A hierarquia do palácio convoca

Escutem com o coração e procurem extrair,

os caçadores experientes, que conhecem

das imagens que alimentam a narrativa,

bem as matas e florestas, mas infeliz-

linguagens que levantem a auto-estima das

mente eles não conseguem encontrar a

nossas crianças, adolescentes e jovens, que

folha da vida.

precisam urgentemente (re)aprender a encontrar seu lar ancestral e com ele, e através

Se abate por toda Ifé muita angústia e

dele, projetar-se para uma ética do futuro,

tristeza, pela situação da saúde de Odu-

5 É assim que os/as mais antigos/as costumam transmitir saberes aos/às mais novos/as nas comunidades de matriz africana. As histórias, contos, cantigas, parábolas, provérbios são anunciados com essa introdução, carregada de poesia mítica, demonstrando que o conhecimento a ser transmitido vem de tempos imemoriais, isto é, desde que o mundo é mundo.

95


duwa, que a cada dia se agrava. O Baba-

tos ancestrais infinitos, contidos princi-

lawô, que é um sacerdote iniciado nos

palmente na floresta.

mistérios oraculares e capaz de indagar sobre o futuro, sabe que a folha da vida é a única solução, e diante da situação abre seu coração e indaga: “Quem pode encontrar? Quem sabe reconhecer uma coisa em outra? Quem sabe adivinhar o que não se vê e não se toca? Quem pode sentir o impossível? Quem?”

No seu encontro no coração da floresta com a Iya mi Agbá, a mãe ancestral, ela o orienta dizendo-lhe que: “(...) terá de aprender em seu próprio corpo. Com a cabeça, com as mãos, com os pés e o coração. Ori, Okan, ese, e òwo. Com o estômago, com as vísceras, com a saliva, o esperma e o sangue, com a pele e o pensamento. A Folha da Vida

Diante dessas indagações apresenta-se

está em alguma parte, em qualquer lu-

o jovem Ajaká, o primogênito, o primei-

gar no mais profundo recanto da flores-

ro neto do rei Oduduwa. Sabe aquele

ta, na zona mais difícil e oculta.”

adolescente, cheio de si e destemido? Pois é! Ajaká é assim, e se oferece confiante para ajudar Oduduwa, e com isso, assegurar a continuidade e dinâmica da transcendência que envolve o mistério da existência na Terra.

Depois de beber o vinho da palmeira, Ajaká torna-se irmão de Aroni, o orixá das folhas, que também o orienta: “Você pode aprender os mistérios das folhas, das raízes, das flores e dos frutos, os mistérios que eu sei, os mistérios que eu

Ajaká é capaz de dar continuidade, ex-

sou. Você, meu irmão, pode aprender a

pandir e recriar os valores inaugurais

multiplicar, você pode aprender a eter-

legados dos ancestrais. Ele é uma repre-

nidade... As plantas podem curar, pro-

sentação mítica do orixá Ogum, que é

teger e revelar uma nova sabedoria, um

desbravador, caçador, e conhecedor pro-

conhecimento infinito.”

fundo da floresta. Em Aroni, Ajaká identifica o saber soSerá imerso a esse mundo sobrenatural

bre as plantas, a medicina, o segredo

e de mistério que Ajaká faz a sua inicia-

da luz que abraça cada semente, grãos,

ção da adolescência para se tornar um

pétalas, fibra vegetal. Mas Ajaká desco-

adulto. Durante esse período de busca

bre que todo o conhecimento que Aroni

pela folha da vida, absorve conhecimen-

detém de reconhecer esse repertório so-

96


bre a flora não abrange a folha da vida e

E lá se vai Ajaká. Transformou-se doloro-

nem mesmo sabe onde ela está.

samente em macaco, e agora é capaz de encontrar Egunguns, os espíritos ances-

Mais uma vez, Aroni ensina a Ajaká que

trais.

os mistérios da vida não estão apenas nas plantas, ele terá que aprender muito

Ajaká sabe que a Folha da Vida se en-

em seu próprio corpo.

contra no ponto mais secreto da parte desconhecida da floresta, a região mais

“Os mistérios da vida estão em outros

escura e úmida, a mais sagrada, protegi-

pontos da natureza, como em certas

da pelos espíritos que impedem a passa-

partes animais. Para sabê-los você terá

gem. E pergunta aos Eguns como pene-

de aprender a transformar-se em bicho.

trar nessa região.

Mas este é um segredo profundo, e agudo como a ponta do espinho, um segredo

Os Eguns acolhem a pergunta de Ajaká.

das mães ancestrais.”

De repente, um forte ciclone o leva para os recônditos da floresta. Assim Ajaká se

Assim, Ajaká invoca outra vez a mãe an-

aproxima da folha da vida, que fica quie-

cestral Akalá, e diz a ela da necessidade

tinha, escondidinha observando a apro-

de conhecer o corpo dos bichos. Akalá o

ximação de Ajaká. Diante do silêncio da

previne de que ele poderá, ou não, saber,

folha da vida, que não se revela imedia-

e pede-lhe que imagine a estranha, mas

tamente , Ajaká canta para ela:

maravilhosa inteligência do macaco, que é o guardião da ancestralidade, o que fala com os mortos. E como a Folha da Vida encontra-se muito longe de onde eles estavam, Akalá recomendou-lhe:

“Ewê ê asa kojé ewê gbogbo ni segun ewê ê asá kojé tantan ewê gbogbo ni ti tôrisá!

“Você precisa da força do búfalo, da ferocidade e da agilidade da pantera; e da

Folha da Vida!”

serpente, que lhe dirá como é possível re-

A folha da vida, revelando-se, responde:

nascer, renascer, renascer... Você será se souber a mágica multicor do camaleão...

“Encontre-me, ofereço-me àquele que

O macaco fala com os mortos, os que sa-

pode levar a vida aos olhos do Rei. Só um

bem; Egun, Egun, Egun. O corpo do ma-

descendente indicado pelo ixé, demons-

caco é feito de dor, dor, dor...”

trando bravura, persistência, sabedoria

97


e imensurável amor pelos ancestrais

Todo o conhecimento – a aquisição de sa-

sabe utilizar e honrar o que lhe é dado.

beres e/ou aprendizagem – é interdinâmico,

Sou a cura, a descendência e a renova-

interpessoal; é necessária a presença do ou-

ção, sou o que não pode ser encontrado

tro para que se estabeleça a linguagem, a

senão por aquele que venceu todos os

comunicação com sua riqueza de códigos e

sofrimentos e dissolveu os obstáculos,

formas de expressão. É um conhecimento

grande aprendiz, grande iniciado!”

vivo e direto.

E assim, Ajaká retorna ao palácio de

Ajaká é a extensão da floresta, da natureza e

Oduduwa para devolver a visão e a exis-

de seus mistérios. Todas as outras formas de

tência ao orixá patrono da Terra.

existência presentes no aiyê, mundo visível. Mas Ajaká também interage com o mundo

Ajaká retorna um homem depois de todo

invisível, o orun, o que permite a completu-

o processo de iniciação vivido na flores-

de da sua iniciação. Ajaká sabe e compreen-

ta. É um Ser em permanente mutação.

de que a Natureza não pode ser reduzida a objeto, à manipulação e à exploração inces-

“(...) Forte como um búfalo, veloz como

sante do homem. Ele aprende na e com a na-

a pantera, leve como um pássaro, com

tureza. A natureza não é matéria-prima para

os sentidos de camaleão, o instinto do

manufatura, submetida ao lema de “ordem

peixe, mais sábio que o macaco e senhor

e progresso” do mercado capitalista.

do segredo que se instala em cada planta, em cada semente.”

A riqueza do conhecimento adquirido por Ajaká, na trajetória de sua iniciação, trans-

Por esse amor e fidelidade ao ancestral,

cende o comportamento ascético e inerte do

Ajaká recebe a espada Agadá, que lhe dá

corpo, onde apenas a relação olho-cérebro é

o poder de desbravamento, e recebe o

permitida, como enfatizam os currículos es-

título de Awasoju, o que vai à frente de

colares. Apela-se para todos os sentidos do

tudo e de todos.

corpo. O corpo é movimento, pulsão, vida!

O conto de Ajaká, que adaptamos para os propósitos desta série, nos leva a destacar valores singulares da civilização africana.

A aprendizagem é permitida por essa interação profunda e singular entre a humanidade e a natureza.

Princípios como a fidelidade, o amor, o res-

Ajaká não se caracteriza como um desbrava-

peito aos mais velhos, aos ancestrais, à hie-

dor ganancioso da “conquista” dos segredos

rarquia e os valores inaugurais da existência

e mistérios da Natureza, submetendo-a aos

estão presentes no conto.

seus caprichos.

98


Seu objetivo não é ascensão individual.

sentar a África, sua transcendência e a infi-

Ajaká busca, de forma exuberante, a con-

nitude de (re)criações contemporâneas nas

tinuidade da vida, da existência do seu con-

Américas, principalmente no Brasil, a nossa

tinuum civilizatório e comunalidade, da

floresta simbólica.

preservação e expansão dos princípios originais da existência, para que esse mundo

Nas comunalidades tradicionais da Bahia,

não se acabe.

nossas crianças aprendem e elaboram conhecimentos e expressam esses universos,

Como Awasoju, aquele que vai na frente de

característicos do pensamento africano e

tudo e de todos, Ajaká abre caminhos, per-

suas atualizações nas Américas, através da

mitindo aos seus descendentes o legado dos

vivência e convivência com orikis, contos,

seus ancestrais, da dinamização dos princí-

instrumentos percussivos, cujos toques

pios cósmicos da existência à pulsão de so-

falam/comunicam/relatam

ciabilidade e comunalidade.

anunciam os primórdios da humanidade,

histórias

que

indicando princípios ético-estéticos para A folha da vida, como motivação iniciáti-

que o corpo comunitário se expanda e dê

ca de Ajaká, representa metaforicamente a

continuidade aos elos de ancestralidade

África Viva contemporânea em cada um de

que projetam e anunciam a ÁFRICA VIVA,

nós. Retomemos uma passagem do mito,

TRANSCENDENTE.

em que o Babalawô, diante da situação, diz e indaga:

Relativizar é o que propomos! Não podemos colocar um “manto de ferro” nas crianças

A Folha da Vida é a única solução. Quem

que vivem imersas em territorialidades que

pode encontrar? Quem pode reconhecer

têm outros valores radicalmente distintos

uma coisa em outra? Quem sabe adi-

da territorialidade imposta pelo mundo im-

vinhar o que não se vê e não se toca?

perialista representado pela História e pela

Quem pode sentir o impossível?

Geografia civilizatórias européias.

Ajaká se atualiza e vive intensamente no co-

O que propomos, como educadores(as), é a

ração daqueles que acreditam que a educa-

legitimação das várias tradições africanas

ção merecida pelas nossas crianças e pelos

que constituem a formação social brasilei-

jovens e adultos deve ter a pulsão de um

ra, nos currículos da Educação Infantil, En-

repertório iniciático de aprendizagem e ela-

sino Fundamental e Ensino Médio, evitando

boração de conhecimento, cuja dinâmica

o recalque perverso que tende a impor às

é envolta pela busca da folha da vida, que

nossas crianças e aos nossos jovens apenas

metaforicamente usamos aqui para repre-

a versão neocolonial sobre África.

99


REFERÊNCIAS

LUZ, Narcimária. ABEBE: a criação de novos valores na educação. Salvador: Edições SEC-

Sobre a presença da civilização africana nas Américas e sua contribuição para elaborarmos perspectivas educacionais promissoras, recomendamos:

NEB, 2000. ______. (Org.) Pluralidade cultural e educação. Salvador: Secretaria da Educação do Estado da Bahia: Edições SECNEB, 1996.

LUZ, Marco Aurélio. Agadá, dinâmica da civi-

SANTOS, Deoscóredes Maximiliano. Contos

lização africano-brasileira. Salvador: EDUFBA,

crioulos da Bahia e contos negros da Bahia.

2001.

Salvador: Corrupio, 2003.

______. Cultura Negra e Ideologia do Recalque.

SODRÉ, Muniz. As Estratégias Sensíveis: afeto,

Rio de Janeiro: Ianamá, 1983.

mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.

100


V. Diversidade étnico-racial no currículo escolar do ensino fundamental1 Véra Neusa Lopes2

Na vida fora da escola, ninguém tem dúvida

O Relatório de Desenvolvimento Humano de

de que, no Brasil, convivem pessoas de di-

2005, por sua vez, aponta que os negros estão

versas origens étnicas. Basta que tenhamos

pouco representados entre juízes, desembar-

um olhar atento para os que estão à nossa

gadores, procuradores, defensores públicos,

volta, para os que aparecem nos jornais, re-

na máquina administrativa do Estado, nos ni-

vistas, programas e noticiários de televisão.

chos de mercado mais valorizados, enfim em

Sabemos que as diferenças existem, vemos

todas as posições de poder. Isto nos mostra

que somos diversos, mas não estamos, na

que a sociedade trata diferentemente aqueles

maioria das vezes, educados para perceber

que não pertencem ao grupo hegemônico e

o quanto estas diferenças influenciam e de-

não se enquadram nas normas estabelecidas

terminam os modos de vida das pessoas e

por esse mesmo grupo. Os que se encontram

fazem com que as mesmas venham a ocupar

na base da pirâmide social (e aí estão indíge-

posições distintas na esfera socioeconômica

nas e negros em sua maioria) são geralmente

e a desempenhar papéis também distintos

discriminados, enfrentando dificuldades na

que, secularmente, são indicativos de quem

afirmação de sua identidade (pessoal, cultu-

é quem na sociedade brasileira. Estudos do

ral e nacional), não conseguindo exercer em

IBGE e do Censo Escolar apontam para esta

sua plenitude a condição de cidadão brasi-

diversidade, indicando que quase metade da

leiro. A invisibilidade com que a diversidade

população em geral e da população escolar,

étnico-racial é considerada torna-se danosa à

respectivamente, é composta por negros

democracia brasileira, pois impede a promo-

(pretos e pardos).

ção da igualdade racial.

1 Currículo, Relações Raciais e Cultura Afro-Brasileira – 2006 / PGM 3. 2 Especialista em Planejamento Educacional, licenciada e bacharel em Ciências Sociais. Integrante do Coletivo Estadual de Educadores Negros APNs/RS do Regional Sul 3 da CNBB. Integrante do GT Programa de Educação Anti-Racista no Cotidiano Escolar da PROREXT/ UFRGS. Membro da CADARA/ MEC – Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros.

101


Esta diversidade de que estamos falando

-racial, tornando-os capazes de interagir e de

está presente, também, na escola, muito

negociar objetivos comuns que garantam, a

embora nem sempre isto seja objeto de pre-

todos, respeito aos direitos legais e valoriza-

ocupação por parte das autoridades educa-

ção de identidade, na busca da consolidação

cionais, gestores escolares e professores. É

da democracia brasileira; b) o do Ensino de

urgente pensar e promover mudanças em

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana

direção a uma escola cidadã, comprometi-

– reconhecer e valorizar a identidade, a histó-

da com os direitos humanos e a construção

ria e a cultura dos afro-brasileiros, bem como

de identidades que respeitem a contribuição

garantir o reconhecimento e a igualdade de

de cada grupo étnico para a formação da

valorização das raízes africanas na nação bra-

sociedade brasileira. A Lei n. 10.639 de 2003,

sileira, ao lado das indígenas, européias e asi-

que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da

áticas. Configura-se, assim, uma política de

Educação Nacional ao incluir os artigos 26-A

Estado, cuja duração transcende à política

e 79-B, veio nesta direção ao contemplar, em

de governo. Estes dois artigos vieram para

caráter obrigatório, a inclusão no currículo

ficar e serem cumpridos.

escolar da história da África e dos africanos, da luta dos grupos negros no Brasil, da cul-

Ao longo dos anos, os currículos foram sen-

tura negra brasileira e do negro na forma-

do construídos, tendo por base um modelo

ção da sociedade nacional, em especial, mas

eurocêntrico, o que significa ter tomado o

não exclusivamente, nas áreas de Educação

homem branco como referência para a cons-

Artística, Literatura Brasileira e História do

trução das propostas de ensino e aprendiza-

Brasil. O art. 79-B introduz, no calendário

gem. Quem não atende aos requisitos desse

escolar, o dia 20 de novembro como Dia Na-

modelo constitui-se num problema para o

cional da Consciência Negra.

sistema escolar.

A Resolução CNE/ CP 1/ 2004, que institui as

Tomar consciência de que o Brasil é um país

Diretrizes Curriculares para a Educação das

multirracial e pluriétnico e, portanto, re-

Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

conhecer e aceitar que, nesta diversidade,

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,

negros e indígenas também desempenham

enfoca dois campos de objetivos, em tudo

papéis relevantes e substantivos, são apren-

relacionados à questão da diversidade: a)

dizagens que precisam ser realizadas e que

o da Educação das Relações Étnico-Raciais

convergem para a educação das relações

– divulgar e produzir conhecimentos, bem

étnico-raciais porque, conforme expressa o

como atitudes, posturas e valores que edu-

Parecer CNE/CP 3/2004, esta educação pode

quem cidadãos quanto à pluralidade étnico-

oferecer conhecimentos e segurança para ne-

102


gros orgulharem-se de sua origem africana;

como os indígenas, entre outros, do acesso

para os brancos, permitir que identifiquem as

aos direitos humanos fundamentais. Assim,

influências, as contribuições, a participação e

tem de colocar, necessariamente, a diversi-

a importância da história e da cultura dos ne-

dade étnico-racial como conteúdo escolar e

gros no seu jeito de ser, viver, de se relaciona-

dar a esse conteúdo o tratamento adequado.

rem com as outras pessoas. Para tanto, deve constituir-se em ambiente O processo educativo, que viabiliza essas

educativo, acessível à comunidade à qual

aprendizagens essenciais para a construção

serve, em que se respeita o outro, em que

da identidade e formação do cidadão, encon-

se dá visibilidade a todos, combatem-se as

tra embasamento nos princípios da consci-

discriminações, busca-se eliminar os pre-

ência política e histórica da diversidade, do

conceitos e são desfeitos os estereótipos,

fortalecimento de identidades e de direitos,

estimulando a auto-imagem e a auto-estima

das ações educativas de combate ao racismo

positivas e promovendo a igualdade étnico-

e às discriminações, também apontados no

-racial, pelo reconhecimento da diversidade

mesmo Parecer.

e pela desconstrução das diferentes formas de exclusão.

103

A escola de Ensino Fundamental, ao tratar da questão da diversidade étnico-racial e

Algumas possibilidades

propor e executar medidas de implementação dos artigos 26-A e 79-B, cumpre a parte

A implementação da Lei está longe de ser

que lhe toca nos compromissos de Estado

concluída. Em alguns lugares sequer come-

assumidos pelo Brasil, enquanto signatário

çou. É preciso avançar na tarefa de sensibi-

de tratados internacionais de combate às di-

lização das pessoas para que se interessem

ferentes manifestações de racismo, discrimi-

pelo assunto para a fase de comprometi-

nação e preconceito raciais, comprometen-

mento dos profissionais da educação com

do-se a construir uma democracia em que as

o cumprimento dos artigos 26- A e 79-B da

pessoas possam usufruir, em sua plenitude,

LDB, o que envolve profundas mudanças nas

a condição de cidadãos, independentemente

estruturas organizacionais, administrativas

de raça/ etnia, cor, posição e papel social, re-

e pedagógicas das escolas, que vão dos pro-

ligião, gênero. A instituição escolar tem, as-

jetos político-pedagógicos, currículos e pla-

sim, de criar mecanismos e instrumentos de

nos didático-pedagógicos à gestão de pes-

uso permanente, via projeto político-peda-

soas, com base em princípios e valores que

gógico e currículo, para intervir na realidade

regulam a educação das relações humanas e

que exclui o negro (pretos e pardos), bem

os estudos de história e cultura afro-brasilei-


ras e africanas, permeando todas as áreas do

minação, de eliminação dos preconceitos

conhecimento escolar.

e dos estereótipos, em que são estimuladas a auto-imagem e a auto-estima posi-

Todos da comunidade escolar estão convida-

tivas, em que são criadas condições de vi-

dos a fazer parte do mutirão (pixurum) de

sibilidade do afro-brasileiro e do indígena;

transformação dessa escola de que estamos falando, ao abrir espaço para que, no estudo da diversidade étnico-racial, seja oportunizado o trato das questões afro-brasileiras e africanas, de modo explícito e em igualdade de condições com as demais etnias, de sorte que todos venham a respeitar o afro-brasileiro em suas especificidades e a valorizar a contribuição do negro na formação da sociedade brasileira. O que se tem de fazer deverá ser fruto de uma construção coletiva envolvendo toda a comunidade escolar. Estão todos chamados a colocar a sua inteligência, saberes e habilidades a serviço da construção de uma ampla proposta, fruto de muitas cabeças e muitas mãos. Cada escola tem de definir esse processo. Como sugestão, vale a pena lembrar o que se segue:

• Chamar a comunidade escolar e do entorno – por meio de suas legítimas representações,

incluindo

organizações

afro-brasileiras – para a reconstrução do projeto político-pedagógico e da proposta curricular, de modo que fique assegurado o reconhecimento e o resgate da história e cultura afro-brasileiras e africanas, em todas as séries oferecidas, como condição indispensável para a construção da identidade brasileira; • Criar condições para exercitar uma relação de ajuda e partilha, de modo que todos possam se apropriar, em igualdade de condições, da história, dos saberes e fazeres dos diferentes grupos étnicos formadores da sociedade brasileira; • Possibilitar uma nova concepção de mun-

Para a escola de Ensino Fundamental • Constituir-se em espaço privilegiado de inclusão, colocando em prática uma pe-

do, alicerçada em valores que favoreçam uma relação fraterna e igualitária entre as pessoas, observadas e respeitadas as especificidades dos grupos étnico-raciais e das culturas a que pertencem;

dagogia multirracial e interétnica, de res-

• Organizar, coletivamente, uma rede temá-

peito e valorização da diversidade étnico-

tica sobre história e cultura afro-brasilei-

-racial da sociedade brasileira, voltada

ras e africanas, que permita o desenvol-

para a formação do cidadão, direcionada

vimento de conteúdos (atitudes, valores,

ao combate de todas as formas de discri-

conceitos e procedimentos), ao longo de

104


toda a escolaridade oferecida pelo Ensi-

• Aprender a valorizar pessoas, povos e na-

no Fundamental. Por exemplo: negros

ções, num combate permanente às ideias

na África, africanos no mundo, africanos

preconceituosas, às ações discriminató-

no Brasil e seus descendentes brasileiros;

rias, às manifestações racistas.

trocas entre comunidades negras ao redor do mundo: afro-brasileiros na África e no mundo; presença africana no Brasil atual; presença negra na comunidade local, e na comunidade escolar.

• Desenvolver ações que possibilitem o aprender uns com os outros e uns dos outros, pondo em prática verdadeiras comunidades de aprendizagem, construindo progressivamente a noção de identidade

• Construir coletivamente recursos que, abordando a diversidade, deem visibilida-

nacional, pessoal e cultural, bem como o sentimento de pertencimento ao país.

de à história e à cultura afro-brasileiras e africanas, como: calendário étnico, contemplando vultos africanos e afro-descendentes, com a inclusão de 20 de novembro, como Dia Nacional da Consciência Negra; mostra fotográfica que evidencie a contribuição dos negros na comunidade; sarau cultural, apresentando manifestações da cultura afro-brasileira; exposição de documentos e outras formas de registro sobre a cultura afro-brasileira.

Por oportuno, destacamos a seguir alguns procedimentos pedagógicos possíveis de serem adotados em sala de aula de classes de séries ou ciclos iniciais do Ensino Fundamental. Tais procedimentos levam em conta que é a pessoa na sua integralidade (corpo, mente e emoção) que aprende, destacam a importância do trabalho coletivo e em grupo e propõem a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade como formas adequadas de tratamento das questões de diversi-

Para professores e alunos

dade e da história e culturas afro-brasileiras e africanas.

• Colocar em prática comportamentos e

• Criar situações que despertem o interes-

posturas que possibilitem viver numa

se das crianças para a questão das seme-

sociedade democrática, aprendendo a se

lhanças e diferenças entre os integrantes

ver, a ver o seu entorno, de modo objetivo

da classe, incluindo o(a) professor(a). Por

e crítico, a comparar o hoje com outros

exemplo: reunir as crianças em roda para

tempos e lugares, a observar permanên-

conversarem sobre cada um, explorando

cias e transformações e a identificar o

perguntas tais como Quem sou? e Como

quanto isso afeta a vida do homem.

sou?. Pedir que uma criança comece ou,

105


se for muito difícil, iniciar pela professo-

• Propor aos alunos que, aos pares, se ob-

ra, que se apresentará, dando seu nome,

servem e expressem oralmente como

idade, endereço, filiação, nacionalidade,

vêem o parceiro. Em roda, pedir que des-

origem étnica, preferências. Observar a

crevam os colegas e a professora. Comen-

reação das crianças, especialmente quan-

tar as falas.

do disser qual é a sua origem étnico-racial. Exercitar com as crianças, nessa ocasião, que pode estender-se por vários dias, a oralidade, a observação, a escuta. Dar tempo para que todos se apresentem. • Propor a realização do auto-retrato, a partir da observação da própria imagem refletida no espelho. Analisar com as crianças a fidedignidade do auto-retrato.

• Conversar com as crianças sobre o fato de, embora sendo de mesma nacionalidade, as pessoas podem ser de origem étnico-racial distinta. Trabalhar as noções de diversidade étnico-racial, nacionalidade, naturalidade, ascendência, descendência. • Ajudar os alunos a identificarem semelhanças e diferenças, quanto às origens, às nacionalidades, ao modo de vestir, ao

• Solicitar que os alunos tragam para classe

modo de falar, ao modo de ser, aos hábi-

uma fotografia recente. Observar com as

tos alimentares, aos costumes e tradições.

crianças as fotos uma a uma. Tirar, depois,

Valorizar a presença dos mais velhos.

uma foto coletiva e observar a diversidade existente em classe, incluindo a diversidade étnico-racial. Examinar fotos mais antigas de outros grupos conhecidos. Discutir com os alunos a contribuição das pessoas para o bem-estar da comunidade, incluindo a escolar. Construir um registro coletivo.

• Trabalhar com as crianças outras linguagens além da verbal, por meio das quais podem expressar seus conhecimentos, sentimentos e expectativas, a aceitação ou rejeição do outro. Trabalhar com brincadeiras e jogos, cantigas e contos que valorizem a diversidade cultural. • Orientar a produção coletiva para socia-

Pedir ajuda aos pais ou responsáveis, para que as crianças possam fazer um retrato falado de si mesmas. Usar, em sala de aula, o

lização dos saberes. Organizar o espaço para valorizar a diversidade étnico-racial e cultural existente na sala de aula.

espelho para as crianças se descobrirem e fazerem o seu retrato usando a linguagem gráfica.

• O desafio está posto! Você é convidado(a) a participar. O Brasil precisa de você! En-

106


tre na roda, e juntos(as) busquemos en-

-brasileiros. Revista do Professor, Porto Ale-

contrar as saídas para mudar esse país, a

gre, v.19, n. 75, p. 25-30, jul./ set. 2003.

partir da educação escolar, especialmente no Ensino Fundamental.

______. Histórias de Vida: Estudo ajuda os alunos na construção da identidade e da ci-

REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. 1ª a 4ª Séries. Temas Transversais. 5ª a 8ª Séries. Brasília,

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107 PROJETO A Cor da Cultura. Saberes e Fazeres:

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Modos de Ver. v. 1. Rio de Janeiro: Fundação

INEP. Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Roberto Marinho, 2006.

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004.

ROCHA, Rosa Margarida de C. Almanaque Pedagógico Afrobrasileiro: uma Proposta Pedagógica na Superação do Racismo no

LOPES, Véra Neusa. Afro-Descendência: Plu-

Cotidiano Escolar. Belo Horizonte: Mazza,

ralidade Cultural precisa e deve abordar a

s.d.

questão do negro brasileiro. Revista do Professor, Porto Alegre, v.17, n.67, p. 21-25, jul./

SILVA, Petronilha Beatriz G. e. Africanidades

set. 2001.

Brasileiras: esclarecendo significados e definindo procedimentos pedagógicos. Revista

______. Inclusão Étnico-Racial: Cumprindo a

do Professor. Porto Alegre, v. 19, n. 73, p. 26-

Lei, práticas pedagógicas contemplam afro-

30, jan./mar. 2003.


VI. O legado africano e a formação docente1 Marise de Santana2

Introdução

Tendo este objetivo em mente, atualmente coordeno um programa de trabalho que

Em todo o Brasil, a alteração da LDB n.

abarca: cursos de extensão em “Educação e

9.394/96, primeiro com os Parâmetros Cur-

Culturas Afro-brasileiras” e outro em pós-

riculares Nacionais – PCN e, em seguida,

-graduação lato sensu em “Antropologia com

oficialmente pela Lei n. 10.639/2003, mexeu

Ênfase em Culturas Afro-brasileiras”. Faz

com valores enraizados na educação. Valo-

parte deste programa o grupo de pesquisa

res de uma ciência que negou e silenciou

certificado pelo CNPq que oferece, para a

nos currículos escolares narrativas de gru-

comunidade da região do Sudoeste da Bahia,

pos considerados minoritários como, por

estudos abertos sobre o tema, bem como

exemplo, o africano e seus descendentes.

eventos periódicos. Também temos um pro-

Essa educação de exclusão levou os afro-bra-

jeto já aprovado pelo MEC/UNIAFRO para

sileiros a desconhecerem e negarem suas

implantar um acervo com material biblio-

pertenças africanas.

gráfico, documental, cartográfico e com peças das culturas africanas e afro-brasileiras.

Hoje, muitos de nós, brasileiros, em diversas áreas do conhecimento, sentimos como

Vale salientar que estudos vários sobre as

necessário abraçar as políticas de ações

culturas brasileiras apontam a construção

afirmativas para descendentes de africanos

de um imaginário do povo brasileiro, edu-

implementadas pelo Governo Federal, a fim

cado para valorizar elementos culturais e

de que possamos desenvolver atividades que

raciais que se enquadrem nas categorias

fortaleçam a identidade negra, através de

branca e cristã. Tal formação torna-se desa-

uma educação da pertença afro-brasileira.

fio para a educação brasileira, isso porque

1 Currículo, Relações Raciais e Cultura Afro-Brasleiro – 2006 / PGM 4. 2 Professora Adjunta do Departamento de Ciências Humanas e Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Coordenadora do ODEERE - Órgão de Educação e Relações Étnicas com Ênfase em Culturas Afro-brasileiras da UESB / Jequié.

108


os/as docentes foram formados/as para entender o legado africano como saberes do

A Desafricanização como conteúdo educativo

mal, saberes de culturas atrasadas e pré-lógicas, repercutindo nos currículos escolares com uma carga preconceituosa que gera as discriminações. Assim, neste texto, temos como objetivo apresentar algumas atividades didáticas, com conteúdos antropológicos das Culturas Africanas e Afro-brasileiras, fruto de estudos realizados em pesquisas para mestrado, doutorado e também de ex-

É sabido que os portugueses incluíram, em sua agenda de explorar comercialmente as terras das Américas, intensificar o movimento de cristianização, sobretudo depois da Reforma Protestante. Primeiro pela catequese e, depois, pela alfabetização, tanto um processo como o outro buscava “recuperar” culturalmente os povos considerados pagãos.

periências como coordenadora e professora no curso de extensão em “Educação e Culturas Afro-brasileiras” da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, para professores/as que atuam com a disciplina “História e Cultura Africana e Afro-brasileira”, já implantada nos currículos de algumas poucas escolas públicas nesta região. O curso de extensão objetiva que professores desenvolvam atividades metodológicas com saberes das Culturas Afro-brasileiras. Nesta perspectiva, estuda-se sobre a Antropologia

Mazzoleni (1992) nos lembra que, mesmo considerando o trabalho forçado e a violência padecida pelos índios, não se pode esquecer que o comércio de escravos teve como objeto os negros, e que aos mesmos era negada sua condição de humanos. Desde o início, o europeu rejeitou a cultura do índio, mas não rejeitou sua natureza humana. “Do africano, ao contrário, o europeu rejeita a inteligência e não só a cultura como a natureza humana (...)”3

dos povos africanos e afro-brasileiros, levando-se em consideração seus mitos e saberes

No século XVIII e XIX, afirmava-se a impos-

populares, bem como seus símbolos, a partir

sibilidade de recuperar culturalmente os de

de suas formulações simbólicas. Assim sen-

pele preta. Mazzoleni nos diz que Carlos Li-

do, nosso objetivo é relatar as etapas do cur-

neu, ao catalogar as espécies vivas, distin-

so e as respectivas atividades desenvolvidas,

gue o Homo sapiens do Homo afer (ou seja:

além de indicar caminhos que viabilizem um

africano). Voltaire, defensor da poligênese

acervo didático teórico / prático de relevân-

humana, considera possível uma hierarquia

cia para o trabalho docente no espaço da

estável entre as raças, o que expressava nes-

sala de aula.

te raciocínio:

3 Mazzoleni (1992). p. 61-62.

109


“A distinção entre selvagens recupe-

tivesse uma identidade cristã, embora lhe

ráveis e seres impermeáveis à cultura

fosse negada a humanidade. Sendo assim,

acabava criando um grave embaraço ao

vai dizer Mazzoleni: “Pode-se falar, portan-

espírito ecumênico do Ocidente cristão

to, de uma monocultura cada vez mais ex-

(herdeiro entre outras coisas do antro-

tensa, na medida em que as classes dirigen-

pologismo helênico e do universalismo

tes dos países “ocidentais” agem de acordo

‘civil’ romano): se os negros não eram

com uma orientação comum, utilizando

passíveis de cultura, tampouco o eram

meios de persuasão cada vez mais eficazes

de evangelização: mas isso teria dimi-

(...)” (p. 74).

nuído irrecuperavelmente a missão da Igreja” (p.65-66).

Essa persuasão passa pelo que Paulo Freire chama de Pedagogia do Oprimido, através da

Pensando na relação entre Homo sapiens e

qual se estabelece uma relação entre opres-

Homo afer, que se estabeleceu durante toda

sor/oprimido. Sobre essa relação binomial,

a escravidão, Mazzoleni diz que a possibi-

Mazzoleni também vai dizer: “O componen-

lidade de recuperar culturalmente o Homo

te cristão da civilização ocidental, contudo,

afer é cogitada porque a Europa passa a vê-

está tentando uma recuperação de sua ‘mis-

-lo como Homo religiosus. Para o Ocidente

são’, dirigindo-se aos oprimidos em nome

cristão, o outro, que é o africano, seria co-

da mensagem cristã e atuando, portanto,

optado para ser o Eu cristão. Segundo ele:

numa mediação das duas oposições”4.

“O africano, portanto, de ser (mais ou

Na década de 90, a nova Lei de Diretrizes e

menos humano) que vivia nas trevas (de

Bases da Educação n. 9.394/96 traz para si a

satanás) passou a viver na luz (do Se-

reflexão oficializada acerca dos preconceitos

nhor) e tomou progressivamente toda

e das discriminações com a diversidade cul-

uma série de conotações, digamos inter-

tural presente no espaço da escola, quando

mediárias, que não serviam a uma con-

propõe que o trabalho docente tome como

traposição com o homem racional (bran-

base os conteúdos dos Parâmetros Curricu-

co), que escolheu a luz da razão e as

lares Nacionais.

explicações da ciência humana” (p.72). Os Parâmetros Curriculares sugerem que os Assim, desde a colonização européia, o que

docentes atuem com uma proposta de res-

se buscava para o africano era que o mesmo

peito às diversidades existentes no espaço

4 Mazzoleni (1992). p. 76.

110


da sala de aula, diversidades estas compos-

ro (...). Deus, ele é único, é o único Deus

tas de docentes e alunos que diferem em

que existe, agora Buda e os outros eu

suas formas de ver, sentir, pensar, comer e

não considero como Deus, de forma ne-

cultuar seus deuses.

nhuma e não acho que devem ser cultuados como Deus, como deuses, ou como

Em trabalho para dissertação de mestra-

falsos deuses.”

do, pesquisando docentes de 1ª a 4ª séries, constatei que a formação e o trabalho de-

No depoimento a seguir, outra professora

senvolvido por esses profissionais esta-

afirma:

va entre o querer e o não saber lidar com uma educação multicultural, por conta de

“Candomblé é alguma coisa que nós,

sua formação monocultural. Ao tomar seus

negros, trazemos no sangue, na alma,

depoimentos sobre a diversidade, eles nos

sei lá... mas acho que isso pende mui-

mostraram que a tradição em que foram

to para o lado ruim (...) já sonhei com

formados argumentava sobre a diversidade

o preto velho e contei para minha mãe,

de modo muito inadequado.

no dia seguinte ela me levou a uma casa de candomblé, porém ela me pediu mil

Conforme dados de depoimentos, verifica-

segredos, ela é católica; se a igreja sou-

mos que a orientação para o trabalho pe-

besse que ela foi nesse lugar (...)”.

dagógico baseava-se numa formação maniqueísta. Detectamos que os/as professores/

Assim, apontamos como conclusão da dis-

as abordavam os elementos culturais de

sertação de mestrado defendida na PUC/SP,

outros grupos étnicos, especialmente a re-

que a formação monocultural dos docentes

ligião, enquanto dimensão cultural, com

dificultava um trabalho multicultural, devi-

argumentações preconcebidas pelas catego-

do ao fato de suas mentalidades estarem es-

rias branca e cristã, tal qual transcrevemos

truturadas pela lógica do “bom senso”5.

nos dois depoimentos abaixo, retirados da dissertação mencionada:

Ter “bom senso” é saber coisas que pessoas com “bom senso” sabem, é não falar coisas

“Acho que Orixás são Espíritos e Buda

que pessoas com “bom senso” não falam;

é uma estatuazinha gorda que se bota

portanto, se a representação mental religio-

de costas num lugar que chama dinhei-

sa de uma comunidade se estrutura no cris-

5 Este termo é utilizado por Geertz (1997) para falar sobre o bom senso que autoriza os membros de uma comunidade a se declararem ou não de uma religião que não seja a tradicional. O bom senso também autoriza se os membros da comunidade devem ou não dissimular ou discriminar os pertencimentos do “Outro”.

111


tianismo, pessoas de “bom senso” devem

de curso para professores(as) da região do

falar em cultuar o deus cristão e não deuses

Sudoeste da Bahia, visando que os mesmos

outros.

se embasem de conhecimentos sobre as temáticas das culturas africanas e afro-brasi-

Em função destes resultados na pesquisa

leiras, conforme descreverei a seguir.

de mestrado, busquei investigar, no doutorado, o Legado Africano e a Formação e

O curso de extensão, de 180 horas, inicia-se

Trabalho Docente. O objetivo deste estudo

com um estudo das “Teorias Antropológi-

foi entender como a escola, enquanto es-

cas e Questões Educacionais”. Este estudo é

paço institucional nascido do primeiro pa-

proposto em função de compreender que a

radigma da educação jesuítica, lidava com

Antropologia tem uma dívida histórica com

as culturas africanas, em especial com a

o africano, uma vez que ela nasce no sécu-

religião, enquanto dimensão da cultura

lo XIX reafirmando o modelo maniqueísta

afro-brasileira. Constatei que esta institui-

e monocultural do Ocidente, que distingue

ção é partícipe na perpetuação do conflito

europeus e africanos pelas categorias: supe-

entre religião de matriz africana e outras

rior e inferior; lógicos e pré-lógicos; civiliza-

religiões. Esse conflito fica estabelecido a

dos e atrasados. Portanto, as grandes ideias

partir das concepções e sentidos construí-

pedagógicas do século XX nasceram influen-

dos pelos(as) professores(as) entre si e com

ciadas por essas categorias, o que evidente-

os(as) alunos(as), sobre os símbolos do le-

mente interferiu no espaço da escola.

gado africano por eles/elas divulgados, equivocadamente, em seu trabalho, como sabe-

O que se tem, no momento histórico em

res do mal, saberes de culturas atrasadas e

que os jesuítas foram os primeiros profes-

inferiores, “folclore”. Assim, aponto a teia

sores e após sua expulsão, é uma orientação

de relações em que o legado cultural africa-

que segue o paradigma da Educação Evan-

no se insere junto aos valores presentes nas

gelizadora. Esse paradigma aponta para va-

diversas denominações religiosas e como

lores elaborados pela racionalidade de parâ-

isto se configura no discurso da escola.

metros definidos pelo colonizador europeu, buscando civilizar os povos através da “re-

Curso para a educação da pertença afro-brasileira

cuperação cultural”. Portanto, foi entendido que o processo de “recuperação cultural” do africano deveria ser feito através da evange-

As constatações acima descritas forneceram

lização, fosse pela Igreja ou pelo sistema de

subsídios para elaboração de uma proposta

ensino.

112


O movimento de higiene mental organizado

remotos do inconsciente coletivo e sol-

na América do Norte pelo “Comitê Nacional

te as amarras pré-lógicas a que se acha

de Higiene Mental”, em 1909, pretendeu dar

acorrentado.” (p. 23)

continuidade a esse processo. Em 1923, Gustavo Riedel funda a “Liga Brasileira de Higie-

Essas ações pedagógicas, que alicerçaram

ne Mental”. Assim, no Brasil, na década de

as políticas educacionais no Brasil, tiveram

30, ao tempo em que se reivindica “Educa-

como objetivo homogeneizar e aniquilar as

ção Para Todos”, um avanço para a época,

diferenças culturais. Arthur Ramos (1955) vai

uma das grandes preocupações do Prof.o

dizer que o movimento de higiene mental

Anísio Teixeira era de instalar, nas escolas

era necessário para trabalhar a mentalidade

do Distrito Federal, um serviço de Higiene

“pré-lógica” de “povos primitivos e sobrevi-

Mental, para erradicar a identidade cultural

ventes dos meios atrasados em cultura, que

“daqueles que frequentavam as Macumbas

vivem entre nós, os homens da civilização

e os centros de feitiçaria”, gente considera-

ocidental”.

da pelos higienistas como “grupos sociais atrasados em cultura”.

Sobre as políticas higienistas, Luz (2000) vai dizer que, nesse mesmo pacote de desafri-

Acreditando que a escola deveria fornecer

canizar, o Prof.o Isaias Alves, fundador dos

àqueles que participavam da Macumba uma

centros de Pesquisa Psico-Pedagógicas do

“mentalidade civilizada”, uma “mentalidade

tradicional Colégio Ypiranga na Bahia, apli-

lógica”6, o higienista Arthur Ramos afirma:

ca o teste de inteligência e concebe como estratégia política educacional a extinção

“Assim, para a obra da educação e da

das línguas africanas no Brasil.

cultura, é preciso conhecer essas modalidades do pensamento ‘primitivo’, para

Arthur Ramos, enquanto comportamenta-

corrigi-lo, elevando-o a etapas mais

lista, vai dizer que “o homem é produto de

adiantadas, o que só será conseguido

sua civilização e da sua sociedade”, por isso,

por uma revolução educacional que aja

interessa para a higiene mental estudar os

em profundidade, uma revolução ‘verti-

fatores sociais e culturais que condicionam

cal’ e ‘intersticial’ que desça aos degraus

o mesmo. Para ele, o movimento de Higie-

6 No século XIX, L. Lévy-Bruhl deu o nome de lei de participação ao “princípio próprio da mentalidade primitiva que rege as ligações e as pré-ligações das representações coletivas” (Ramos, 1988, p.207). Ramos nos diz que, para Lévy-Bruhl, segundo a lei de participação na mentalidade primitiva, seres, objetos, fenômenos podem emitir forças, qualidades ações místicas, sem deixarem de ser quem e o que são. A essa mentalidade ele chamou de pré-lógica. Ainda nos diz Ramos que pré-lógica não pode ser entendida como anterior no tempo, “mas pelo fato de ela não se adstringir ao nosso pensamento, de se abster da contradição”.

113


ne Mental deve pedir auxílio à Sociologia e à

cende o espaço dos Terreiros. Esses saberes

Antropologia Cultural, pois “o indivíduo vive

estão na base das culturas entendidas por

em círculos de sociedade: de família, de reli-

Mircea Eliade (1992) como culturas tradi-

gião, de partido político (...). A higiene men-

cionais, arcaicas ou “primitivas”, as quais

tal investiga todos esses fatores, penetrando

na própria forma de apreender a realidade

‘intersticialmente’ na sua urdidura íntima”.

diferenciam-se das culturas modernas.

Daí ele salientar que não todas, mas algumas religiões, são nefastas, e assegura:

A terceira etapa8 é um estudo sobre a “História Cultural da África Pré-colonial”, bus-

“Já temos mostrado, em mais de um tra-

cando entender os impérios, reinos e civili-

balho, os perigos dessa mentalidade pré-

zações africanas antes da colonização. Este

-lógica, no Brasil, denunciando certos fe-

estudo é de fundamental importância para

nômenos de feitiçaria, baixo-espiritismo,

o entendimento da dança, festas, músicas;

demonopatias e outros, e sua nefasta

assim como o próprio cotidiano, permea-

influência na formação da personalida-

do de elementos sacralizados, os quais, no

de”7.

Brasil, foram denominados de religiões afro-brasileiras.

114

Ao falar das religiões de povos com “mentalidade pré-lógica” e classificar essas religiões

Na quarta etapa9 nos ocupamos de um estu-

como nefastas, com fenômenos de “demono-

do sobre a Diversidade Linguística dos Grupos

patias”, tal preconceito ensinou para os(as)

Étnicos Africanos que vieram para o Brasil.

professores(as), ao longo da história da edu-

Sobre a diversidade dos grupos étnicos, Ver-

cação, que o modelo oficial de escola não

ger (2002), falando sobre a tomada da Bahia

deve tomar os saberes do legado africano.

na primeira invasão holandesa, em 1624, nos informa que havia naquele momento predo-

Na segunda etapa do curso, é feito um es-

minância da importação de africanos bantos,

tudo sobre a “Antropologia das Populações

pois havia, no porto da Bahia nessa época,

Afro-brasileiras”. Estuda-se sobre o Legado

seis navios vindos de Angola com um total de

Africano como um conjunto de saberes de

1.440 escravos, contra um único navio com

uma matriz não ocidental cristã, que trans-

28 escravos vindos da Guiné.

7 Ramos (1955), p.29. 8 Esta etapa é ministrada pela professora Mestranda Silene Arcanjo, Historiadora, consultora do OPOXORÔ / Bahia. 9 Etapa ministrada pelo Prof Dr Manoel Soares Sarmento, Linguista do Departamento de Ciências Humanas e Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.


Entre 1641 e 1648, Angola permanece nas

diz que “(...) as pesquisas sistemáticas sobre

mãos dos holandeses, que cortam o rea-

o mecanismo das mentalidades primitivas

bastecimento de escravos de lá provenien-

revelam a importância do simbolismo para

tes. Estes fatos nos permitem pensar que

o pensamento arcaico e, ao mesmo tempo,

os Bantos foram os primeiros negros expor-

seu papel fundamental na vida de qualquer

tados em grande quantidade para a Bahia.

sociedade moderna”. Segundo ele, o resta-

Nos três primeiros quartos do século XVIII,

belecimento do símbolo enquanto forma de

porém, o tráfico de escravos em direção à

conhecimento é uma reação “(...) contra o

Bahia já vinha da Costa da Mina e, entre 1770

racionalismo, o positivismo e o cientificis-

e 1850, incluindo o período do tráfico clan-

mo do século XIX e já basta para caracterizar

destino, vinha da Baía de Benin. “A chegada

o segundo quarto do século XX” (p. 5-6)

dos daomeanos, chamados Jejes no Brasil, fez-se durante os dois últimos períodos. A dos Nagôs Iorubas corresponde ao último”. Assim sendo, Verger vai nos dizer que, nos arredores da Bahia, como por exemplo, na Vila de São Francisco do Conde, cidade do Recôncavo Baiano, em 1830 é constatada uma maciça presença de Nagô Ioruba, em função do que passam a predominar suas crenças e costumes em detrimento das dos africanos bantos.

Sobre os problemas ligados ao estudo do simbolismo e de suas interpretações, Eliade (1991) ainda chama a atenção para o fato de que a forma de conhecimento e atualização de um símbolo não é mecânica: “ela está relacionada às tensões e às mudanças da vida social; em último lugar, aos ritmos cósmicos”. O julgamento e o sentido interpretativo de um símbolo dependem do vivido. Assim, não há como um símbolo possa esgotar, para os diferentes julgamentos, o seu sentido interpretativo.

Estes dados nos oferecem subsídios para pensar sobre a diversidade de línguas, cren-

Byington (1996), buscando elaborar uma “Pe-

ças, saberes, enfim, de elementos culturais

dagogia Simbólica”, chama a atenção para

dos africanos.

que se pense na problemática da educação brasileira baseada no modelo da cultura oci-

Na quinta etapa10, desenvolve-se um estudo

dental. Também nesta etapa nos ocupamos

sobre as “Linguagens Visuais, Simbolismos e

de um estudo de antropologia interpretati-

Culturas Afro-brasileiras”. Eliade (1991) nos

va, com Geertz (1978).

10 Etapa ministrada pelos seguintes professores: Dr Edson Dias Ferreira, cientista social – Antropologia das Linguagens Visuais. Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. Professor mestrando Lucio André Andrade. Coordenador da divisão de Diversidade Cultural da Prefeitura Municipal da cidade de Candeias / Bahia.

115


Já a sexta etapa, ocupa-se da Didática para o

reprodutivos e de soluções de problemas;

ensino de culturas afro-brasileiras. Segundo

assim, desenvolvo as seguintes atividades:

Brandão (1995), por todo o período da colonização européia na América Latina, o pa-

• Análises de filmes e documentários (Kiri-

radigma eclesiástico se fez presente através

ku, Amistad, Negro fugido, Orixás, Coleção

do monopólio da Igreja Católica, portanto,

do Correio da Bahia, entre outros), com o

nesta etapa busca-se entender essa forma-

objetivo de que as imagens sensibilizem

ção que tem orientado o processo ensino-

os indivíduos e permitam-lhes localizar

-aprendizagem ao longo da história da edu-

memórias negadas e silenciadas histori-

cação brasileira através de um saber - fazer

camente.

que discrimina outras culturas, especialmente as africanas.

Na sétima etapa, o objetivo é coletar dados,

• Análises de mitos para compreensão da estrutura histórico-cultural dos africanos na África Pré-colonial;

visitando espaços de culturas afro-brasilei-

• Oficinas com conteúdos dos mitos africa-

ras, tais como: casas de matriz religiosa afri-

nos e afro-brasileiros, levando os partici-

cana; Museu Afro-brasileiro, em Salvador; e

pantes do curso à reflexão acerca de seus

Casas de Benin e Angola, em Salvador. Visi-

conhecimentos, com narrativas monocul-

tam-se as cidades de Jequié, Cachoeira, São

turais etnocêntricas;

Francisco do Conde e outras, com o objetivo de enxergar a presença do Legado Africano. Ainda nesta etapa, os/as participantes do curso, em um texto, articulam os dados coletados durante as visitas e as histórias de vida. Com isso, é esperado que eles e elas busquem lidar com seu próprio processo histórico-cultural, dando visibilidade aos preconceitos e discriminações enraizados em sua formação, assim como, possivelmente, possam superar alguns.

Nas etapas 1, 2 e 6 do curso, nas quais as atividades didáticas ficam sob minha res-

• Utilização de músicas com palavras de línguas africanas, traduzindo as mesmas com o auxílio de dicionários. Vale salientar que esta atividade é de muita importância, uma vez que ao tempo que educa os ouvidos para ouvir palavras de línguas africanas, também desmistifica a ideia de que as diversas línguas da África são dialetos (“dialeto” no sentido de “língua corrompida”; e não no sentido linguístico de “variação de uma língua”), conforme narrativas discriminatórias sobre o continente africano.

ponsabilidade, busco operacionalizar técni-

• Interpretação antropológica de textos

cas que viabilizem os métodos expositivos,

musicais e literários com temáticas afri-

116


canas e afro-brasileiras. Estes textos sem-

percebida como grave ameaça externa (...).

pre trazem elementos culturais, possibi-

O ‘outro’ é aquilo que nós não somos. Ele co-

litando uma educação de símbolos e de

loca em xeque a nossa verdade, questiona os

processos simbólicos.

nossos valores, relativiza a nossa identidade. É preciso desqualificá-lo” (p. 9). Consorte

Considerações Finais

ainda nos lembra que essa desqualificação passa historicamente pelo etnocentrismo e

Salientamos que tanto nos estudos de mestrado e doutorado, como nas várias etapas

que “a partir dos nossos modos de ser, fazer e sentir” pode emergir o preconceito. Assim:

do curso, percebemos que desenvolver atividades com os/as professores/as é uma tarefa difícil, pois eles/elas são conhecedores/as de conteúdos de normas, valores da escola, mas também são conhecedores/as dos conteúdos doutrinários de suas religiões. Pude perceber a dimensão da distância que esses docentes colocam entre sua identidade religiosa e o papel de respeito à diversidade no âmbito do seu trabalho docente.

“O preconceito é a atitude que, tributária do etnocentrismo, se forma a partir das representações que construímos em relação aos outros, informadas pelas nossas referências (...); a discriminação é o comportamento efetivo traduzido em ações que põem em prática o preconceito e que nos levam a negar ao outro aquilo que queremos só para nós, a excluí-lo das oportunidades que estão ao

Não podemos esquecer que o respeito à di-

nosso alcance, mas às quais ele não deve

versidade passa pelas leituras de outras reali-

ter acesso” (p.10).

dades, com informações desprovidas da carga de preconceitos e de discriminação sobre

A reflexão elaborada feita até o presente

o outro. Consorte (2003), em um artigo numa

momento nos leva a perceber que existe

revista de ensino religioso, afirma que desde

a falta de articulação entre teoria e práti-

que a antropologia surgiu, na metade do sé-

ca na formação docente, isto porque nós,

culo XIX, seu grande desafio foi o de compre-

professores(as) de um Brasil colonizado por

ender o fenômeno da diversidade humana.

europeus, colocamos entre parênteses nossa pertença africana e repetimos a nossas

Ela nos lembra que os mitos dos mais diferen-

crianças o que nos foi ensinado, que essa

tes grupos humanos são registros que reco-

pertença é demoníaca, atrasada e inferior.

nhecem a diversidade. Entretanto, assegura

Perdemos o orgulho de ser como nossos an-

que a diversidade não é percebida como ri-

cestrais, auto-sustentáveis, dependentes da

queza da humanidade “(...) ela é geralmente

natureza, do cosmo.

117


REFERÊNCIAS

MAZZOLENI, Gilberto. O planeta cultural: para uma Antropologia Histórica. Tradução

CONSORTE, Josildeth Gomes. Diversidade humana: Fonte de riqueza ou ameaça? DIÁLOGO – Revista de Ensino Religioso. São Paulo, agosto de 2003. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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Trabalho Docente: Novos e Velhos Desafios.

Salvador/Bahia: SECNEB, 2000.

São Paulo: PUC- SP, 1999.

118


VII. As relações étnico-raciais, a cultura afro-brasileira e o projeto político-pedagógico1 Lauro Cornélio da Rocha2

Apresentação

ser aplicada, uma lei depende da efetivação de políticas públicas e da transparência na

Ao pensarmos a relação da população negra com o Estado brasileiro, percebemos que, desde a época da escravidão, foi marcada por pressão por parte da população negra e desejos de regulação por parte do Estado. Havia – e há – sempre, uma lei, tendo como perspectiva controlar, estabelecer diálogo com a comunidade e/ou atender a reivindicações. Isso aconteceu com a primeira Lei antitráfico (1831); com a Lei Euzébio de Queiroz (1850); com a Lei do Ventre Livre (1871); com a Lei do Sexagenário (1886); com a Lei Áurea (1888); com a Lei Afonso Arinos (1951); com a Lei Caó (1985); com a Constituição Federal (1988); com a Lei de Diretrizes e Bases da

aplicação de recursos. A educação tem se configurado, nos últimos anos, como área importantíssima na discussão das relações étnico-raciais no Brasil. Este texto se propõe a discutir – ainda que de forma sintética – o papel da Lei n. 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais, que são fundamentais no processo de mudança das relações no espaço educacional e, consequentemente, pontuar o projeto político-pedagógico como expressão do ser e do fazer coletivo das escolas, inerente, portanto, ao processo do ensinar-aprendendo e aprender-ensinando.

Educação Nacional (1996) e tantas outras leis ordinárias que incluem o tema.

Pensando a Lei n. 10.639/033

Aqui não se trata de negar a perspectiva le-

A Lei n. 10.639/03 se constitui num impor-

gal implementada pelo Estado e por sucessi-

tante mecanismo de promoção de igualda-

vos governos. Porém, necessariamente, para

de étnico-racial no ambiente escolar. Como

1 Currículo, Relações Raciais e Cultura Afro-Brasileira – 2006 / PGM 5. 2 Mestre em História Econômica – USP. Coordenador Pedagógico da Rede Municipal de São Paulo. 3 Lei de 09/01/2003. Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira” e dá outras providências.

119


considerações iniciais, é preciso pontuar que

cação. O salto qualitativo dado ao longo dos

ela altera a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-

anos deveu-se principalmente a: a) ação de

cação Nacional, ao mesmo tempo em que

educadores(as) negros(as), que colocaram

busca superar alguns obstáculos: pretende

a discussão nos programas de suas disci-

superar a visão negativa sobre os africanos e

plinas ou em atividades culturais; b) mais

seus descendentes, construída ao longo dos

recentemente, negros(as) nas estruturas

tempos no Brasil; coloca a questão referente

governamentais iniciaram um processo de

aos africanos e afro-brasileiros como ques-

discussão e proposições; c) Organizações

tão nacional; pretende ressaltar positiva-

Não-Governamentais negras e não-negras,

mente a participação da população negra na

em vários estados da Federação, promo-

construção da história do Brasil, quebrando

vem ações para promoção da igualdade ra-

a lógica eurocêntrica na produção e difusão

cial e sistematizam as produções nacionais

do conhecimento; articula-se ao rol de polí-

existentes; d) Centros e Núcleos de Estu-

ticas de ação afirmativa e, por fim, pretende

dos Africanos e Afro-brasileiros, dentro das

possibilitar a permanência bem sucedida da

universidades, que se propõem a fomentar

população negra na escola.

a discussão nos seus espaços, com resultados significativos; e) Professores, em várias

O fato de ser quase consensual uma lacuna na formação inicial que é ministrada nas universidades, faculdades e cursos de formação permanente e continuada, no que se refere à história da África e à cultura afro-brasileira, nos permite afirmar que a trajetória da educação no Brasil nega a existência do referencial histórico, social, econômico e cultural do africano e não incorporou conteúdos afro-brasileiros nas grades curriculares escolares e, embora tenhamos muita notícia

universidades, têm constituído grupos de pesquisa ou fomentado em seus alunos o desejo ou necessidade de ampliar os horizontes de pesquisas, tendo as relações étnico-raciais como foco.

Essas e outras ações fizeram, sem dúvida, com que a segunda lei aprovada pelo Governo Lula fosse voltada à promoção da igualdade no sistema educacional.

de discriminação racial nas escolas, quando há um processo de acusação por racismo, a tendência é culpar os vitimizados pela opressão sofrida.

A preocupação que se explicita quanto à implementação da referida lei se coloca em torno da criação de alternativas para formação, nas redes de ensino. Neste momento,

Desde o início, o Movimento Negro busca

são fundamentais a sensibilização de mem-

traçar políticas de combate à discriminação

bros das Secretarias de Educação e a lucidez

racial e reparação de desigualdades na edu-

para buscar parcerias com pessoas e organi-

120


zações com trajetória histórica na discussão

Educação Artística, Literatura e História,

do tema das relações étnico-raciais.

está explícito que currículo se confunde com grade curricular, o que é um equívoco, do

Também ressalto algumas preocupações e

meu ponto de vista. No meu entendimento,

desafios que têm muito a ver com a forma

currículo é a totalidade das relações que se

com que as pessoas compreendem a educa-

estabelecem nas escolas, independentemen-

ção no Brasil. As preocupações se referem

te do espaço ser a sala de aula, quadra, aten-

ao pensamento de pessoas que ocupam po-

dimento na secretaria, sala dos professores

sições estratégicas nas Secretarias de Educa-

ou horário do recreio. Se, acreditamos que o

ção de estados e municípios, com os quais

racismo está presente na escola, esse espa-

temos dialogado. Algumas pessoas têm di-

ço não é neutro, ele se manifesta também

ficuldade de entender a proposta da lei e de

nas relações estabelecidas pela comunidade

uma educação para promoção da igualdade

escolar.

étnico-racial. Seus pensamentos, na verdade, se parecem muito com o pensamento de

Ainda sobre currículo, podemos dizer que a

educadores(as) das redes de ensino.

rede tenha avançado, do ponto de vista de ser uma construção coletiva, mas o foco

Alguns dizem que a lei vem realçar o que já

ainda é a experiência dos educadores, base-

era feito nas escolas, que esse tipo de ensino

ada em livros didáticos. Dessa forma, pouca

já existia, mas não com força de lei. Dizem

importância é dada ao território, à troca de

que a questão discriminatória nasce na so-

experiência com colegas e não são privile-

ciedade, não na escola, e que a sociedade

giadas as vivências dos alunos e da comu-

teria outros mecanismos para reduzir o ra-

nidade.

cismo, não só no setor educacional.

Outros afirmam que a Lei é desnecessária, por já ser tratada a história e a cultura africanas nos currículos... E, portanto, que isso é redundância.

Pensando as Diretrizes Curriculares Nacionais para educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas4

Uma outra preocupação é a compreensão de currículo presente na Lei. Quando se fala

As Diretrizes, construídas a partir de con-

em colocar os estudos prioritariamente em

sulta a grupos de movimento negro, con-

4

Parecer nº 003/2004 de 10/03/2004. Aprovado pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação.

121


selhos estaduais e municipais de educação,

atue contra a exclusão e pela promoção da

organizações da sociedade civil, militantes

igualdade racial. Ao olhar a escola e a sala

e intelectuais, colocam como alvo central a

de aula, ele assume o compromisso de ul-

formação dos professores e a mudança da

trapassar o limite das ações pontuais e fa-

qualidade social da educação. Destinam-se

zer com que as políticas educacionais de

aos sistemas de ensino, universidades, fa-

promoção da igualdade façam parte das

culdades, educadores, educandos e familia-

discussões sobre reorientação curricular,

res, enfim, a todos os comprometidos com a

formação permanente e projeto político-

educação no Brasil.

-pedagógico.

A proposta fundamental das diretrizes é a

Pensando o projeto político-pedagógico

construção da igualdade étnico-racial no Brasil. Aqui não se trata de atribuir ao presente a culpa pelo passado, mas de dizer que todos somos responsáveis – independente de sermos negros ou negras – por ajudar na superação do preconceito, discriminação e racismo. O grande determinante das diretrizes é trabalhar a consciência histórica e política da diversidade, buscando ampliar o foco do currículo, promovendo ações de igualdade étnico-racial e fortalecendo identidades.

O projeto político-pedagógico se constitui como elemento norteador do ser e do fazer da escola. Na verdade, é um conjunto de relações a partir das quais o educador e a comunidade “lêem” a si mesmos e ao mundo num processo relacional. Ao educar o olhar e a escuta para o mundo, a nação, a cidade, o bairro, a rua, a escola e a sala de aula processam suas sínteses, questionam o exercício do poder, as situações de afetividade, as vivências das diferenças, situações

É, portanto, compromisso de todos os edu-

de conflito, a solidariedade, a cooperação e

cadores dar visibilidade às Diretrizes, exigin-

a justiça.

do dos governos a efetivação da Resolução n. 01/2004, da Lei n. 10.639/03 e a disponibi-

O projeto político-pedagógico, nas suas

lização de bibliografia étnico-racial, além de

duas dimensões – o político e o pedagógi-

realizar atividades e projetos estabelecendo

co – se constitui numa ação intencional,

parcerias com entidades que possam contri-

com compromisso explícito assumido cole-

buir para este trabalho.

tivamente, reafirmando a intencionalidade da escola: incluir todos os integrantes da

É necessário que o educador, como media-

mesma num processo de transformação da

dor do processo de transformação escolar,

realidade.

122


Ele concretiza não só a prática pedagógica,

e na sociedade e trabalhar para a melhoria

mas também a dinâmica do cotidiano esco-

de condições de vida de todos. A luta pelo

lar, onde toda a comunidade educativa assu-

investimento na educação básica, quer em

me, nos seus projetos de trabalho e planos

políticas de formação permanente e conti-

de ensino, um compromisso radical contra

nuada, quer no fortalecimento de práticas

os preconceitos, as discriminações e o racis-

democráticas na gestão escolar, deve ser

mo.

uma constante.

Neste sentido, questões étnico-raciais, de

Por fim, gostaria de propor algumas estra-

gênero, de sexualidade, entre outras, não

tégias que poderão contribuir ou auxiliar na

podem ficar de fora do projeto político-

implementação da lei, tendo como referên-

-pedagógico, sob pena de a escola não se

cia as Diretrizes e como fundamento o pro-

pensar e compreender-se como espaço de-

jeto político-pedagógico da escola:

mocrático, plural e fundamental na atuação contra a exclusão.

• A construção de materiais pedagógicos e curriculares contra-hegemônicos. A res-

Conclusão A educação é base para construção de uma sociedade democrática, com oportunidades reais de inserção no mercado de trabalho determinadas em parte pelo grau de instrução.

peito disso, temos algumas experiências bem sucedidas em várias Secretarias de Educação e organizações não-governamentais que trabalham com educação ou ligadas ao Movimento Negro. • Incorporar uma concepção de educação humanizadora, com base na desconstrução de conteúdos e práticas racistas e na

É necessário que os educadores assumam

divulgação de experiências bem sucedi-

o compromisso de ultrapassar o limite de

das de educadores e educandos que pro-

ações pontuais para fazer com que, no coti-

movam a igualdade racial no ambiente

diano das escolas, as políticas educacionais

escolar. Essas experiências contribuem

de promoção da igualdade racial façam par-

para que se estabeleça um referencial me-

te do projeto político-pedagógico.

todológico no processo de Formação Permanente de Educadores e Reorientação

É importante discutir e viabilizar propostas

Curricular;

concretas de mudança da mentalidade racista da sociedade brasileira, formular proje-

• Ultrapassar o limite de ações pontuais

tos visando erradicar o racismo nas escolas

para fazer com que, no cotidiano das es-

123


colas, as políticas de promoção da igual-

de março, discuto a questão da mulher, em

dade racial façam parte do currículo, dos

19 de abril, discuto a questão do índio, em

processos de formação e da construção

13 de maio ou em 20 de novembro, discuto

do projeto político-pedagógico escolar.

a questão do negro. Não quero mais pensar sobre isso!”

• Programas de formação inicial e permanente nas instituições de ensino que atuam nos níveis e modalidades da educação brasileira; • Promoção, pelos sistemas de ensino, de cursos, projetos e programas de formação para equipes de gestão e educadores(as), estabelecendo canais de comunicação com o Movimento Negro, grupos cultu-

Ao formular um projeto para trabalho na escola, alguns cuidados devem ser tomados no planejamento: • Envolver várias áreas de conhecimento; • Relacioná-lo na proposta pedagógica da Escola, no sentido de adquirir cumplicidade da escola como um todo na realização;

rais, instituições formadoras de professores, núcleos de estudos e pesquisas, orga-

• Contar com o apoio de organizações, pes-

nizações não-governamentais, buscando

soas e entidades que tenham acúmulo de

subsídios para os projetos político-peda-

conhecimentos no tema a ser trabalhado;

gógicos das Unidades Escolares e Movimento Curricular, no sentido da permanência bem sucedida da população negra nas escolas.

Pensando as atividades/ projetos

• Definir os objetivos de forma explícita, saber onde se quer chegar com o projeto/ atividade; • Pensar todos os passos no desenvolvimento, bem como as formas de envolver a comunidade educativa;

A ideia é propor atividades/projetos que

• Estabelecer critérios de avaliação que da-

possam ser realizados nas escolas de Ensi-

rão possibilidade de continuidade ou redi-

no Fundamental, EJA e Ensino Médio. Alerto

mensionamento da proposta;

que não acredito em ações pontuais, restritas a determinado dia, ou momento de sala

• Definir prazos para realização da ativi-

de aula, ou comemoração especial. Conside-

dade/projeto, sempre tentando fugir de

ro essas ações tranquilizadoras de consciên-

ações pontuais que, de forma geral, não

cia, como por exemplo: “Já trabalhei: em 08

trazem mudanças de comportamento;

124


• Tratar de desmistificar preconceitos, dis-

da formação, para que se possa iniciar um

criminação e/ou racismo, ter potencial de

processo de mudança e participação efe-

replicabilidade (poderá ser realizada em

tiva dos alunos e, consequentemente, da

outras realidades, com possibilidade de

comunidade. Dar oportunidade aos alunos

sucesso).

de participarem de atividades que envolvam várias manifestações culturais: dança afro,

• Por fim, apresentaremos uma atividade/ projeto, como exemplo.

percussão, excursões a centros culturais onde se conheça a cultura e história afro-brasileiras. Trabalhar contra qualquer for-

Projeto Raiz

5

ma de discriminação, pela liberdade, plu-

Professora: Luzinete Araújo Benedito da

ralismo cultural, diversidades, igualdade e

Silva

respeito. Desenvolver o espírito participativo, responsável, crítico, cooperativo, soli-

Contexto

dário, coletivo, e de respeito às diferenças. Apontar caminhos que levem à não-violên-

A experiência Projeto Raiz foi desenvolvida de maio de 2002 a abril de 2004, na EMEF Madre Maria Imilda do Santíssimo Sacramento, na cidade de São Paulo (SP). Atingiu aproximadamente 80 alunos com idade média de 14 anos. As principais áreas do conhecimento envolvidas na experiência foram Educação Artística, História, Educação Física, Língua Portuguesa, Geografia, Sociologia e Antropologia.

cia e à integração social. Envolver a comunidade para que se sinta corresponsável e parte integrante do projeto. Criar espaços e momentos de reflexão e sensibilização dos alunos, professores e comunidade acerca da questão do negro no Brasil e demais temas relacionados à desigualdade. Resgatar a autoestima dos alunos e a identidade étnica afro-brasileira.Conscientizar os alunos para assumirem responsabilidades, tendo noção de grupo e percebendo que são parte integrante na tomada de decisões. Integrar os

Objetivos

alunos participantes do projeto à sociedade, para que não estejam sujeitos às desagrega-

Conhecer, valorizar, difundir e resgatar a

ções familiares e sociais. Resgatar valores

cultura afro-brasileira. Buscar ações trans-

culturais e empregar a arte como veículo de

formadoras, por meio da arte, da cultura e

transmissão desses valores. Promover o con-

5 Experiência premiada no 2º Prêmio Educar para Igualdade Racial – Experiências de Promoção da Igualdade Racial/Étnica no Ambiente Escolar, promovido pelo CEERT, São Paulo, 2004.

125


tato com produções artísticas nas várias lin-

Desenvolvimento de atividades

guagens expressivas. Incentivar a produção artística de todos os alunos, ajudando-os a

Conteúdos das atividades: 1. Processo de

desenvolver seu potencial, suas capacidades

colonização brasileira; 2. Negros da África

e conhecimentos, para que possam contri-

e do Brasil: histórias, valores e culturas de

buir como cidadãos críticos e criativos.

ontem e de hoje; 3. Identidade, africanidade e resistência; 4. Processo de escravidão, eu-

Justificativa e planejamento

rocentrismo e ideologia do branqueamento; 5. Lutas e processos de liberdade / descons-

Vivemos em um país em que a maioria da

trução e autoestima; 6. Lideres negros, mo-

população é composta por negros e afrodes-

vimento negro; 7. Questões sociais, políticas

cendentes. São mais de 70 milhões de pesso-

e culturais que historicamente estão intrín-

as, o que faz do Brasil o maior país africano

secas nestes processos; 8. Diversidades, dife-

fora da África (dados do IBGE – Instituto Bra-

renças, discriminação, preconceito, racismo

sileiro de Geografia e Estatística). Por isso

(“os porquês”); 9. Produção cultural, lingua-

veio a preocupação de resgatarmos e difun-

gens artísticas (música, poesia, literatura,

dirmos a cultura negra como efetiva mani-

dança, teatro, artes visuais, artes plásticas,

festação histórica. É inaceitável que em um

entre outras); 10. Religiosidade afro-brasilei-

país com essas características, manifeste o

ra e suas matrizes africanas; 11. Direitos, ci-

racismo e a discriminação social. Inaceitável

dadania, respeito; 12. Leis do período de es-

que haja desigualdades em todos os níveis e

cravidão e as atuais quanto ao racismo; 13.

instâncias.

Dinâmicas das atividades; 14. Realização de oficinas de dança afro e percussão; 15. Gru-

A escola, como entidade que visa à trans-

po de formação envolvendo alunos, profes-

formação, à formação e à integração dos

sores e comunidade participante; 16. Pales-

indivíduos na sociedade, deve ter seu papel

tras com a participação de especialistas em

de mediadora no processo de valorização e

vários temas; 17. Reuniões com os pais dos

difusão da cultura afro-brasileira, como for-

alunos envolvidos no projeto (no mínimo,

ma de recuperar a autoestima e a identidade

duas por ano).

étnica. Percebendo nosso papel como educadores e agentes de transformação, tanto

“Outras Vivências”: 1. Uma vez por mês, o

na escola quanto na sociedade, nós nos sen-

grupo recebeu um convidado que fez uma

timos corresponsáveis (com base no nosso

oficina diferente, propiciando um novo

Projeto político-pedagógico) em trabalhar-

olhar e novas vivências; 2. Atividades reali-

mos a proposta com a nossa comunidade.

zadas nas salas de aula nas diversas áreas do

126


conhecimento (cada professor participante

estávamos “fazendo macumba na escola”.

foi responsável por ser o multiplicador dos

Houve quem se deixou levar pela força dos

conteúdos e do projeto em cada sala que tra-

tambores, que invadiam efetivamente aque-

balhou); 3. Apresentação de vídeos sobre te-

le espaço. Aos poucos, fomos arrancando as

mas propostos; 4. Visitações a lugares onde

amarras sociais e, por meio de leituras, dis-

se pôde aprofundar a cultura afro-brasileira;

cussões, dificuldades e resistências, fomos

5. Pesquisa contínua; 6. Painel permanente

incomodando e acomodando a situação.

com o conteúdo relacionado ao projeto, que foi também um meio para formação e reflexão; 7. Realização da Semana da Consciência Negra, além de várias intervenções no espaço-escola, com o intuito de estimular a participação e sensibilização; 8. Leituras de textos em grupo, debates e resumos.

Avaliação Nossos objetivos foram alcançados. Eles se refletiram nas atitudes dos nossos alunos, em sua forma de argumentar e de se posicionar diante das injustiças presenciadas no dia-a-dia. Observamos que a auto-estima

Motivação e Participação do Aluno

aumentou. Percebemos que os alunos se orgulharam ao dizer-se afro-brasileiros, que se orgulharam do que são. Alguns se tornaram

Despertamos o interesse e a curiosidade

multiplicadores do que aprenderam nas ofi-

dos alunos através da sensibilização. Por

cinas. Também recebemos o reconhecimen-

exemplo, levamos para a escola um grupo

to da comunidade. Fomos chamados para

de dança afro da região. Assim, iniciamos a

relatar nossa prática em um Congresso Mu-

conversa e propomos as oficinas para que

nicipal e no Fórum Mundial. Utilizamos os

eles participassem livremente aos sábados.

seguintes instrumentos de avaliação: relatos

O diálogo também incluiu os colegas edu-

verbais e escritos, questionários, conversas

cadores, que manifestaram diferentes opini-

com o grupo.

ões a respeito de discutir o preconceito no ambiente escolar. Algumas opiniões eram

As dificuldades foram muitas: financeiras,

preconceituosas.

de falta de espaço, de carência de tempo, de organização, de compreensão. Todas elas

Também por parte dos alunos, os sentimen-

foram superadas, porque acreditávamos no

tos variaram. Houve quem se reconhecesse

que fazíamos. A experiência implicou, des-

na proposta, sentindo-se contemplado por

de o seu início, assumirmos determinadas

nós. Houve quem discriminasse, dizendo que

posturas na escola. Não dá pra ficar “em

127


cima do muro”, temos que romper com os

BENTO, Maria Aparecida S. Cidadania em Pre-

esquemas enraizados em nossa vida. Pas-

to e Branco: discutindo relações raciais. São

samos por muitos momentos perversos de

Paulo, Ática, 1998.

preconceito, desde a piadinha até a ofensa feita de forma direta por parte de alunos e

CEERT. Políticas de Promoção da Igualdade Ra-

de professores.

cial na Educação – Exercitando a Definição de Conteúdos e Metodologia. São Paulo, 2004.

Algumas vezes entrávamos na sala de professores negros para argumentar com os alunos acerca da pertinência do nosso trabalho e esses professores não participavam das discussões. Isto mostra como é eficiente a ideologia do branqueamento, pois até mesmo alguns afrodescendentes evitam discutir esses temas. O trabalho implicou a íntima mudança de cada um de nós, pois também temos pre-

______. 2º Prêmio Educar para a Igualdade Racial - Experiências de Promoção da Igualdade Racial/Étnica no Ambiente Escolar. São Paulo, 2004. CUNHA, Perses M. C. Da Senzala à sala de aula: como o negro chegou à Escola. In: Relações Raciais e Educação, alguns determinantes. Iolanda de Oliveira (coord.) Niterói. Contexto, 1999. p.69-96.

conceito, não somos os anjos da sabedoria,

LIMA, Lana e VENANCIO, Renato P. Os Órfãos

imaculados. O Projeto Raiz nos transfor-

da Lei: abandono de crianças negras no Rio

mou, nos fez reavaliar nossas vidas, ações,

de Janeiro após 1871. Rio de Janeiro. Estudos

conceitos, “pré-conceitos”, posturas, atitu-

Afro-asiáticos nº15, 1988. p.24-42.

des, história, identidade, família. Ele nos fez enxergar o que fizeram conosco e o que efe-

MEC/SECAD. Orientações e Ações para a Edu-

tivamente não queremos ser.

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Anhembi, 1995.

derno Pedagógico, 1999.

128


____________. Educação Democrática como

contemporânea, focalizando as semelhanças

Política de Reversão da Educação Racista.

existentes no contexto social e econômico das

Texto apresentado no Seminário “Racismo,

duas épocas. A ação se desenrola nesses dois

Xenofobia e Intolerância”, Salvador, nov.

períodos históricos, ao mesmo tempo. Ao tra-

2000.

çar esse paralelo entre o século XIX e o tempo atual, o filme questiona até que ponto a estru-

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tura da sociedade brasileira realmente mudou

do Negro e outras histórias. Brasília, MEC/

da época colonial até hoje.

SECAD, 2005. Quase Dois Irmãos. Direção Lucia Murat, ROCHA, Lauro Cornélio da. A Exclusão do Ne-

Brasil, 2005. Sinopse: Retrata as diferenças

gro – 1850-1888: Uma Interpretação Histórica

raciais vividas entre prisioneiros brancos (pre-

das Leis Abolicionistas. Dissertação de Mes-

sos políticos) e negros (presos comuns) no pre-

trado, USP, out./1999.

sídio da Ilha Grande, nos anos 70. Miguel é um

_____________________. A Questão Etno-racial e a Formação Permanente de Educadores. São Carlos, 2000.

Senador da República que visita seu amigo de infância Jorge, que se tornou um poderoso traficante de drogas do Rio de Janeiro, para lhe propor um projeto social nas favelas. Retrata

ROSEMBERG, Fulvia. Segregação Espacial na

o abismo entre brancos e negros na sociedade

Escola Pública. Rio de Janeiro, Estudos Afro-

brasileira.

-asiáticos, nº 19, 1990. p. 97-107. Na Rota dos Orixás. Direção: Renato BarbieSCHWARCZ, Lilia M. As Teorias Raciais, uma

ri. Sinopse: O documentário apresenta a gran-

Construção Histórica de Finais do Século

de influência africana na religiosidade brasi-

XIX: o contexto brasileiro. In: Raça e Diversi-

leira, mostra a origem das raízes da cultura

dade. São Paulo, EDUSP, 1996. p.147-185.

jêje-nagô em terreiros de Salvador, que virou candomblé, e do Maranhão, onde a mesma in-

Indicação de Filmes

fluência gerou o Tambor de Minas.

Quanto vale ou é por quilo? Direção Sergio

Um grito de liberdade. Direção: Richard At-

Bianci, Brasil, 2005. Sinopse: Filme de ficção,

tenbourough, 1987. Sinopse: Sobre a luta con-

baseado num conto de Machado de Assis. O

tra o apartheid, na África do Sul, enfocada sob

filme traça um paralelo entre a vida no pe-

o ponto de vista de um homem branco e de um

ríodo da escravidão e a sociedade brasileira

negro.

129


Além de trabalhador, negro. Direção: Daniel

Quilombo. Direção Cacá Diegues. Brasil,

Brazil, Brasil, 1989. Sinopse: Filme didático,

1984. Sinopse: num engenho de Pernambu-

que apresenta a trajetória do negro brasileiro

co, por volta de 1650, um grupo de escravos

da abolição até os dias atuais.

se rebela e ruma ao Quilombo dos Palmares,

Vista a minha pele. Joel Zito Araújo & Dandara. Brasil, 2004. Sinopse: é uma paródia da realidade brasileira, para servir de material básico para discussão sobre racismo e preconceito em sala de aula. Nesta história invertida, os negros são a classe dominante e os brancos foram escravizados.

onde existe uma nação de ex-escravos fugidos que resiste ao cerco colonial, entre eles Ganga Zumba, um príncipe africano. Tempos depois, seu herdeiro e afilhado, Zumbi, contesta as ideias conciliatórias de Ganga Zumba e enfrenta o maior exército jamais visto na história colonial brasileira.

130


B. Educação Infantil

I. Valores

civilizatórios afro-brasileiros na edu-

cação infantil1 Azoilda Loretto da Trindade2

A criança gozará de proteção contra atos

sencontros, alegrias, emoções, prazeres,

que possam suscitar discriminação racial,

desprazeres, produção de saberes, de co-

religiosa ou de qualquer outra natureza.

nhecimentos e de múltiplos fazeres. Espaço

Criar-se-á num ambiente de compreensão,

de pessoas buscantes, pesquisadoras da sua

de tolerância, de amizade entre os povos, de

própria prática.

paz e de fraternidade universal e em plena consciência de que seu esforço e aptidão de-

Apresentamos, de início, algumas explica-

vem ser postos a serviço de seus semelhan-

ções, antes de darmos continuidade a este

tes. (Adotada pela Assembléia das Nações

diálogo:

Unidas, de 20 de novembro de 19593) 1ª) Ao destacarmos a expressão “valores Este texto, que se propõe a falar sobre os

civilizatórios afro-brasileiros”, temos

valores civilizatórios afro-brasileiros na Edu-

a intenção de destacar a África, na sua

cação Infantil, tem como ponto de partida e

diversidade, e o fato de que os africa-

está ancorado no princípio acima referido.

nos e africanas trazidos ou vindos para

Propõe um diálogo em aberto, que precisa

o Brasil e seus e suas descendentes

ter continuidade no trabalho de cada pro-

brasileiros implantaram, marcaram e

fessor, propondo um compartilhar ideias,

instituíram valores civilizatórios neste

no sentido amplo, com aqueles que fazem

país de dimensões continentais, que

o cotidiano escolar. Cotidiano este entendi-

é o Brasil. Valores inscritos na nossa

do como vibrante, como lugar de desafios,

memória, no nosso modo de ser, na

inquietações, movimento, encontros e de-

nossa música, na nossa literatura, na

1 Valores afro-brasileiros na Educação – 2005 / PGM 2. 2 Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ, Organizadora desta coletânea. 3

http://www.fvt.com.br/declaracaouniversal.htm

131


nossa ciência, arquitetura, gastronomia, religião, na nossa pele, no nosso coração. Queremos destacar que, na perspectiva civilizatória, somos, de certa forma ou de certas formas, afrodescendentes. E, em especial, somos o segundo país do mundo em população negra. A África e seus descendentes imprimiram e imprimem no Brasil valores civilizatórios ou seja, princípios e normas que corporifi-

Fonte: www.paginas.terra.com.br/arte/

cam um conjunto de aspectos e caracterís-

mundoantigo/africa

ticas existenciais, espirituais, intelectuais e materiais, objetivas e subjetivas, que se

3ª) Sempre cremos que é interessante fa-

constituíram e se constituem num pro-

lar do cotidiano para fazer formula-

cesso histórico, social e cultural. E apesar

ções. Recentemente, ouvi uma senho-

do racismo, das injustiças e desigualdades

ra reclamando que um dia na sua vida

sociais, essa população afrodescendente

foi discriminada por ser branca e isso

sempre afirmou a vida e, consequentemen-

a indignou. Afinal, como e por que

te, constitui o/s modo/os de sermos brasi-

discriminá-la? Alias, muitas pessoas

leiros e brasileiras4.

argumentam, baseadas em um único exemplo da sua existência, o fato de

2ª) Sobre a África, é bom destacar que é

elas serem discriminadas, sobretudo

um imenso continente, com 52 países,

quando a discriminação vem da parte

com uma imensa e variada diversida-

daqueles que são, em geral, os mais

de: política, econômica, social, cultu-

discriminados. Outras pessoas desta-

ral... E que, assim como podemos di-

cam outras formas de discriminação,

zer que existem vários brasis no Brasil,

como que para amenizar a afirmação

existem várias áfricas na mãe África.

do racismo e a discriminação, histó-

4 É bom dizer, para evitar as tradicionais inquietações quando se afirma a africanidade brasileira, que sabemos que somos um país plural, marcado por valores civilizatórios de outros grupos humanos, contudo, este não é o foco deste texto.

132


rica e atual, sofrida pelos negros e

Não é apenas motivo de negligência a dis-

negras. Referem-se ao fato de que al-

criminação, o preconceito, o racismo com

guém pode ser discriminado por ser

relação às crianças negras. É também uma

gordo, por ser pobre, por ser feio, por

insensibilidade, que está ancorada nos 312

ser muito bonito, por ser, ou não, in-

anos oficiais de escravidão neste país e nos

teligente... E por aí vai.

117 anos de promulgação da Lei Áurea. É impressionante que, por muito tempo, nin-

Uma pessoa adulta, em geral, fica arrasada

guém se preocupou com a importância de

ao ser discriminada, sofre, se revolta, fica fu-

colocar, no acervo de brinquedos das crian-

riosa, deprimida... Enfim, tem várias reações.

ças da Educação Infantil, bonecas e bonecos

Agora, imaginemos um ser humano negro

negros, livros infantis com imagens e per-

de 0 a 6 anos de idade, uma criança negra

sonagens negros em posição de destaque,

que é, numa sociedade racista, discrimina-

não ter mural com personagens negros, não

da 24 horas por dia e, muitas vezes, com o

serem trabalhadas as lendas, as histórias e

silêncio omisso dos adultos, da professora.

a História africanas, entre outras formas de afirmação de existência e de valorização dos

Essa criança tem que se sustentar sozinha nestas situações. Infelizmente, ainda há muita insensibilidade para com as crianças negras. Estas, ao serem discriminadas, ficam acuadas, envergonhadas, inibidas em denunciar. Se essa é uma experiência muito confusa para uma pessoa adulta, imaginemos para um ser humano de pouca idade, uma criança de 0 a 6 anos. Professores e professoras, acreditem, a criança pode não saber expressar oralmente a discriminação,

negros em nosso país. E essa insensibilidade está inscrita na nossa memória coletiva de brasileiros e brasileiras, que vendiam crianças negras, que abusavam das crianças negras, que matavam crianças negras, que impediam que as crianças negras fossem amamentadas por suas mães. A história parece que nos legou uma responsabilidade social especial para com essas crianças. Especial, pois temos que ter responsabilidade social para com todas.

mas ela sente, sofre, seu corpo fica marca-

Para ilustrar que, para a cultura iorubá, to-

do, com a discriminação e com a omissão,

das as pessoas são divinas, traremos, um

com o silêncio conivente, com a falta de

conto5 que é emblemático do valor civiliza-

acolhida do adulto que ela tem como refe-

tório afro-brasileiro de aceitação das dife-

rência no momento.

renças humanas:

5 Recontado por Heloisa Pires Lima em Histórias de Preta. São Paulo, Cia. das Letrinhas, 1998. p. 61.

133


(...) Olodumaré, que é um deus Iorubá, quis criar a Terra e deu um punhado dela, num saquinho, para Obatalá ir

Tecendo fazeres e saberes afro-brasileiros na Educação Infantil

criá-la. Antes de ir, Obatalá teria que fazer a oferenda a Exu6, pois sem movimento não há ação. Obatalá, que é muito velho, esqueceu e foi andando, andando devagarinho, e no caminho sentiu sede. Então viu uma árvore, dessas que têm água dentro, e parou, abriu a planta e bebeu. Só que era uma bebida que dava um pouco de tontura, e então ele se deitou debaixo da árvore e acabou dormindo. Enquanto isso, Oduduá, que também queria criar a Terra, fez as oferendas a Exu e alcançou Obatalá. Vendo-o dormir, achou que ele iria se atrasar muito,

“Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas graças, de um pássaro e sua árvore.” Manoel de Barros. In: Memórias Inventadas. A Infância. Vamos agora, pinçar alguns aspectos afro-brasileiros que consideramos caros à Educação Infantil. Alguns, pois há uma infinidade deles:

pegou o saquinho e foi ele mesmo criar a Terra. E criou.

Principio do Axé ENERGIA VITAL - tudo que é vivo e que existe, tem axé, tem energia vital:

Obatalá acordou e viu a Terra criada, e foi reclamar para Olodumaré, que enviou e deu a ele barro, para que criasse os homens na Terra. Obatalá foi e criou os homens, mas de vez em quando tomava a bebida da árvore de que tinha

planta, água, pedra, gente, bicho, ar, tempo, tudo é sagrado e está em interação. Imaginem se nosso olhar sobre nossas crianças de Educação Infantil forem carregados da certeza de que elas são sagradas, divinas, cheias de vida.

gostado, e ... não chegava a dormir, mas, meio tonto, fazia uns seres humanos

Podemos trabalhar a potencialização des-

meio tortinhos.

te princípio nas nossas crianças, se nosso

6 Divindade que simboliza na cosmovisão Iorubá, a transformação, a comunicação, os encontros, a contradição, o movimento.

134


olhar, nosso coração e nosso corpo senti-

Já fazemos as tradicionais rodinhas na Edu-

rem-nas verdadeiramente assim.

cação Infantil, e nas reuniões pedagógicas, nas reuniões dos responsáveis. Que tal po-

Elogios, afagos, brincadeiras de faz-de-conta, nas quais elas se sintam a mais bela estrela do mundo, a mais bela flor, alguém

tencializarmos mais a roda, com cirandas, brincadeiras de roda e outras brincadeiras circulares?

que cuida, alguém que é cuidado. Um espelho para que elas se admirem, para que brinquem com o espelho, e se habituem a se olhar e a serem olhadas com carinho e respeito.

CORPOREIDADE – o corpo é muito importante, na medida em que com ele vivemos, existimos, somos no mundo. Um povo que foi arrancado da África

ORALIDADE – Muitas vezes preferimos ou-

e trazido para o Brasil só com seu cor-

vir uma história que lê-la, preferimos

po, aprendeu a valorizá-lo como um

falar que escrever... Nossa expressão

patrimônio muito importante. Neste

oral, nossa fala é carregada de sen-

sentido, como educadores e educado-

tido, de marcas de nossa existência.

ras de Educação Infantil, precisamos

Faça de cada um dos seus alunos e

valorizar nossos corpos e os corpos

alunas contadores de histórias, com-

dos nossos alunos, não como algo

partilhadores de saberes, memórias,

narcísico, mas como possibilidade de

desejos, fazeres pela fala. Falar e ouvir

trocas, encontros. Valorizar os nossos

podem ser libertadores.

corpos e os de nossas crianças como possibilidades de construções, produ-

Promova momentos em que a história, a música, a lenda, as parlendas, o conto, os fatos do cotidiano possam ser ditos e reditos. Potencialize a expressão “fale menino, fale menina”.

ções de saberes e conhecimentos coletivizados, compartilhados.

Cuidar do corpo, aprender a massageá-lo, tocá-lo, senti-lo e respeitá-lo é um dos nos-

CIRCULARIDADE – a roda tem um significa-

sos desafios no trabalho pedagógico com

do muito grande, é um valor civiliza-

a Educação Infantil. Dançar, brincar, rolar,

tório afro-brasileiro, pois aponta para

pular, tocar, observar, cheirar, comer, beber

o movimento, a circularidade, a reno-

e escutar com consciência. Aparentemente

vação, o processo, a coletividade: roda

nada de novo, se não fosse o desmonte de

de samba, de capoeira, as histórias ao

corpos idealizados e a aceitação dos corpos

redor da fogueira...

concretos

135


MUSICALIDADE – A música é um dos as-

COOPERATIVIDADE – A cultura negra, a cul-

pectos afro-brasileiros mais emble-

tura afro-brasileira, é cultura do plural,

máticos. Um povo que não vive sem

do coletivo, da cooperação. Não sobre-

dançar, sem cantar, sem sorrir e que

viveríamos se não tivéssemos a capaci-

constitui a brasilidade com a marca

dade da cooperação, do compartilhar,

do gosto pelo som, pelo batuque, pela

de se ocupar com o outro.

música, pela dança. Como dissemos, este texto é um comparPortanto, mãos à obra, som na caixa e muita

tilhar ideias e contamos com seu retorno7

música, muito som, mas não os “enlatados”,

com opiniões, sugestões, críticas, comple-

as músicas estereotipadas, o mesmismo que

mentações e ponderações, em nome de um

vemos na TV e em quase todas os momentos

verdadeiro e profundo amor pelas nossas

da escola, nos quais a música se faz presen-

crianças brasileiras, que merecem ter aces-

te. Vamos ouvir músicas que falem da nossa

so a um patrimônio cultural que as consti-

cultura, que desenvolvam nossos sentidos,

tua como tais, que é o patrimônio cultural

nosso gosto para a música e, com isso, não

afro-brasileiro.

produzirmos alienados musicais desde a tenra idade. Nosso país é riquíssimo em ritmos

Muito axé.

musicais e em danças, que tal investirmos neste caminho? Conhecer para promover. LUDICIDADE – A ludicidade, a alegria, o gosto pelo riso pela diversão, a celebração da vida. Se não fôssemos um

REFERÊNCIAS BENTO, Maria Aparecida da Silva. Cidadania em preto e branco: discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 1998.

povo que afirma cotidianamente a vida, um povo que quer e deseja viver,

CAVALLEIRO, Eliane (org.). Racismo e Anti-Ra-

estaríamos mortos, mortos em vida,

cismo na Educação-Repensando nossa Escola.

sem cultura, sem manifestações cul-

São Paulo: Summus, 2001.

turais genuínas, sem axé. __________________. Do silêncio do lar ao silênPortanto, brinquemos na Educação In-

cio escolar. São Paulo: Contexto, 2000.

fantil, muita brincadeira, muito brilho no olho, muito riso, muita celebração da vida.

7 azoildaloretto@ig.com.br

NEN - NÚCLEO DE ESTUDOS NEGROS. Ne-

136


gros e Currículo. Série Pensamento Negro

A ovelha negra – Bernardo Aibê – Ed. Ioni Me-

em Educação. Florianópolis: Editora Atilèn-

loni Naif.

de, 2002. As tranças de Bintou – Sylviane A. Diouf – CoROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Almanaque Pedagógico Afrobrasileiro. Belo Horizonte: N’Zinga/Mazza Edições, 2004. SODRÉ, Muniz. Claro e Escuros – identidade, Povo e Mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. ______. A Verdade Seduzida. Por um conceito de Cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1983. TRINDADE, Azoilda Loretto e SANTOS, Rafael

sac e Naify. Berimbau – Raquel Coelho – Editora Ática. Bruna e a Galinha D’ Angola - Gercilda de Almeida – Editora Pallas Como as histórias se espalharam pelo mundo – Rogério Andrade Barbosa – Editora Difusão Cultural do Livro. Duula, a mulher canibal – Rogério Andrade Barbosa – Ed. Difusão Cultural do Livro.

(org.). Multiculturalismo – mil e uma faces da

Gosto de África – Histórias de lá e de cá – Joel

escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

Rufino dos Santos – Editora Onda Livre.

______. Racismo no Cotidiano Escolar. Rio

Histórias Africanas para contar e recontar -

de Janeiro: FGV/IESAE, 1994. Dissertação de

Rogério A. Barbosa – Ed. do Brasil.

Mestrado em Educação. Histórias da Preta – Heloísa Pires Lima – Edi-

Literatura Infantil Ana e Ana - Célia Godoy – Difusão Cultural do Livro. Agbalá, um lugar-continente – Marilda Castanha – Editora Formato.

tora Companhia das Letrinhas. Ifá, o adivinho – Reginaldo Prandi- Companhia das Letrinhas. Lendas Negras – Júlio Emílio Braz – Editora FTD.

A menina que tinha o céu na boca – Júlio Emí-

Menina bonita do laço de fita – Ana Maria Ma-

lio Braz – Difusão Cultural do Livro.

chado - Editora Ática.

A semente que veio da África – Heloísa Pires

O amigo do rei – Ruth Rocha – Editora Áti-

Lima – Salamandra.

ca.

137


O espelho dourado – Heloísa Pires Lima – Pei-

Os reizinhos de Congo – Edimilson de Almei-

rópolis.

da Pereira – Ed. Paulinas.

O filho do vento – Rogério Andrade Barbosa –

Que mundo maravilhoso! – Julius Lester – Edi-

Ed. Difusão Cultural do Livro.

tora Brinque-Book.

O menino marrom – Ziraldo – Ed. Melhora-

Tanto, tanto! – Tristh Cooke – Editora Ática.

mentos. A cor da ternura – Geni Guimarães – Editora O menino Nito – Sonia Rosa – Editora Pallas.

FTD

138


II. As relações étnico-raciais, história afro-brasileira na educação infantil1

e cultura

Regina Conceição2

A promulgação da Lei Federal nº. 10.639/03,

etnia, religiosa, entre outras, estão contem-

que torna obrigatório o ensino de História e

pladas? São abordados aspectos de história

Cultura Afro-Brasileira, bem como as Dire-

e cultura de origem africana? De que forma?

trizes Curriculares Nacionais para a Educação

E de outras etnias?

das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,

No que se refere aos conteúdos de His-

têm provocado mudanças nas práticas edu-

tória e Cultura Afro-Brasileira e Africana,

cativas de professores e professoras de toda

muitos(as) educadores(as) relatam o desco-

a Educação Básica, sem esquecer das refor-

nhecimento desses conteúdos como sendo

mulações necessárias nos currículos de for-

a principal causa para a não abordagem em

mação de professores(as).

sala de aula. Ou seja, como está sendo a formação inicial de professores(as) no tocante

Antes de traçar considerações a este respei-

à diversidade humana e ao preparo para a

to, é preciso dizer que tais mudanças não

educação das relações étnico-raciais?

são tarefas fáceis, pois implicam repensar e reformular práticas pedagógicas cristaliza-

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a

das e que são consideradas, por seus prati-

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

cantes, de boa qualidade e com resultados

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

garantidos.

Africana (2004), que atendem “dispositivos legais, bem como reivindicações e propos-

Sendo assim, há que se questionar: resul-

tas do Movimento Negro ao longo do sé-

tados positivos para quem? Ao desenvolver

culo XX” (p. 9), salientam a necessidade de

tais práticas, as diversidades de gênero, raça/

desenvolvimento de projetos que valorizem

1 Currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / PGM 2. 2 Assessora de Educação Étnico-Racial da Secretaria Municipal de Educação e Cultura/ Prefeitura Municipal de São Carlos (SP). Mestre em Educação (PPGE/UFSCar – área de Metodologia de Ensino). Professora das séries iniciais (rede municipal de ensino – São Carlos – SP).

139


a história e a cultura dos povos africanos e

etnocêntrico marcadamente de raiz euro-

afro-brasileiros “no sentido de políticas de

péia por um africano, mas ampliar o foco

ações afirmativas, isto é, de políticas de re-

dos currículos escolares para a diversidade

parações, de reconhecimento e valorização

cultural, racial, social e econômica brasilei-

de sua história, cultura, identidade” (p. 10).

ra” (p. 17).

Como educadores(as) preocupados(as) e

Como ampliar o foco dos currículos se, por

comprometidos(as) com o desenvolvimen-

um lado, nos livros didáticos, a história e

to de uma educação de qualidade para

a cultura afro-brasileiras ficam restritas ao

todos(as), em todos os níveis de ensino, e

trabalho escravo no período colonial e à sua

com a formação dos(as) educandos(as) para

abolição em 13 de maio de 1888? Se não tra-

a cidadania, de maneira que respeitem e va-

tam das origens deste povo, ou seja, de onde

lorizem as diferenças e as diversidades da

vieram?

nação brasileira, devemos abordar, desde a Educação Infantil, as histórias e as culturas

Por que e como vieram para as Américas?

da população de origem africana.

Como viviam na África? Quais as diferenças

As Diretrizes Curriculares Nacionais (2004), enquanto política curricular de ações afirmativas, de reparações, de reconhecimento e de valorização, “têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos” (p. 10).. É direito das populações negras e não negras conhecerem e se orgulharem de suas origens, isto é, serem educadas como “cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos (...)” (op. cit., 2004, p. 10).

de hábitos e costumes dos povos africanos? Segundo Cavalleiro (2000), há educadores(as) “que não percebem a influência dos livros didáticos e paradidáticos na formação do autoconhecimento e da identidade da criança” (p. 46). Por outro lado, como superar as lacunas da formação inicial de professores(as) e até mesmo o que foi assimilado anos atrás? As soluções têm sido as mais variadas possíveis: a busca por estes conhecimentos em cursos de formação continuada, grupos de estudos, estudos individualizados (LOPES, 2003), entre outras, para que o ambiente escolar e o de sala de aula possam, de fato, incluir a cultura de origem africana e pro-

As Diretrizes Curriculares Nacionais (2004)

mover a educação para as relações étnico-

não propõem a mudança de “(...) um foco

-raciais.

140


Abordar em sala de aula questões relativas

A preparação do ambiente escolar, bem como

à educação das relações étnico-raciais, para

o de sala de aula, é muito importante para

alguns educadores, é muito delicado, pois

que todos(as) se sintam representados(as) e

implica rever valores éticos, pessoais e pro-

valorizados(as). Cartazes, fotos, textos diver-

fissionais. É, por vezes, se descobrir racista,

sos – em livros didáticos e paradidáticos –,

preconceituoso, discriminador e que, mui-

além de brincadeiras e jogos, são estratégias

tas vezes, as atitudes diante destas situações

que visam à elevação da auto-estima e do

são de silenciamento, por não ter a sensibi-

autoconhecimento “de indivíduos discrimi-

lidade necessária para identificá-las ou por

nados” e tornam “a escola um espaço ade-

não saber como agir.

quado à convivência igualitária” (CAVALLEIRO, 2000, p. 9-10).

Cavalleiro (op. cit.), em pesquisa realizada numa escola de Educação Infantil, diz que

A representação da diversidade no ambiente

este silenciamento “do professor facilita

escolar não é uma prática muito utilizada

novas ocorrências, reforçando inadvertida-

pelos profissionais da educação, como sa-

mente a legitimidade de procedimentos pre-

lienta Cavalleiro (op. cit.), quando diz que

conceituosos e discriminatórios no espaço

“no decorrer do trabalho de campo, foi pos-

escolar e, com base neste, para outros âmbi-

sível constatar a ausência de cartazes ou li-

tos sociais” (p. 10).

vros infantis que expressassem a existência de crianças não-brancas na sociedade brasi-

Alguns educadores de Educação Infantil não acreditam que, na faixa etária de 03 a 05 anos, sejam possíveis atitudes e/ou ações de caráter racista, preconceituosa e discriminadora. Mais uma vez, Cavalleiro (op. cit.) ressalta que, nesta fase, as “crianças brancas revelam um sentimento de superioridade, assumindo em diversas situações atitudes preconceituosas e discriminatórias, xingando e ofendendo as crianças negras, atribuindo caráter negativo à cor da pele”, ao passo que as “crianças negras já apresentam uma identidade ne-

leira” (p. 44). A escola e seus profissionais devem oferecer aos educandos “uma educação de fato igualitária, desde os primeiros anos escolares (...), pois as crianças dessa faixa etária ainda são desprovidas de autonomia para aceitar ou negar o aprendizado proporcionado pelo professor”, ou seja, podem se tornar “vítimas indefesas dos preconceitos e estereótipos transmitidos pelos mediadores sociais, dentre os quais o professor” (CAVALLEIRO, op. cit., p. 37-38).

gativa em relação ao grupo étnico ao qual

Diante destes fatos, como cumprir e garan-

pertencem” (p. 10).

tir “o sucesso das políticas públicas de Esta-

141


do, institucionais e pedagógicas (...) (Diretri-

de literatura infanto-juvenil, por ela anali-

zes Curriculares Nacionais, 2004, p. 13)” tais

sados, dizendo que, naqueles, as persona-

como a Lei Federal nº. 10.639/03, bem como

gens negras aparecem “de maneira positiva,

as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

como protagonistas, pertencentes a uma fa-

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

mília, com ilustrações bem delineadas” (p.

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

196). Estes são alguns cuidados que se deve

Africana com jovens, adultos e principalmen-

ter quando se pretende uma educação que

te com crianças que, segundo o Estatuto da

vise à promoção da igualdade étnico-racial

Criança e do Adolescente (2002), são pessoas

no ambiente escolar.

em condição peculiar de desenvolvimento? O livro Bruna e a Galinha D’Angola, de GercilA resposta, mais uma vez, vem das referidas

ga de Almeida, pode ser considerado como

Diretrizes Curriculares Nacionais (2004) que

um exemplo positivo para trabalhar, com os/

dizem depender “de condições físicas, mate-

as educandos/as da Educação Infantil, a his-

riais, intelectuais e afetivas favoráveis para

tória e a cultura de origem africana.

o ensino e para aprendizagens; (...) da reeducação das relações entre negros e brancos; (...) de trabalho em conjunto, de articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-raciais não se limitam à escola” (p. 13). A utilização da literatura infanto-juvenil,

Neste livro, Bruna aprende, com sua avó Nanã, a história da criação do mundo, a partir de uma visão africana. Uma história bem escrita, atraente, com belas ilustrações, em que é possível, ao final da leitura, confeccionar, com a colaboração dos educandos, pais e/ou responsáveis, os panôs que ilustram toda a história.

tendo como base personagens negras, tem mostrado “que é possível realizar um trabalho com esse material, pelo fato de ele romper com um imaginário estereotipado do negro, tão comum na literatura infanto-juvenil” (Souza, 2001, p. 195), trazendo, assim, resultados positivos para a educação das relações étnico-raciais.

Uma outra sugestão de literatura infanto-juvenil é o livro A semente que veio da África de Heloísa Pires Lima, e de Georges Gneka e Mario Lemos, dois autores africanos. O livro conta a história do Baobá, uma árvore que nasce em todo o continente africano e, em cada parte da África onde existe essa árvore, há uma história diferente para explicar sua

Para tanto, cabe destacar as considerações

importância para aquela comunidade. São

de Souza (op. cit.) a respeito de alguns livros

relatadas histórias da Costa do Marfim e de

142


Moçambique. Há belas fotografias do Baobá

BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria

na África, com vários desenhos desta árvore

Especial de Políticas de Promoção da Igual-

e, ao final do livro, a sugestão do jogo de

dade Racial, Secretaria de Educação Conti-

origem africana, a Awalé ou Mancala.

nuada, Alfabetização e Diversidade. Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação

Estas foram apenas algumas pequenas refle-

das relações étnico-raciais e para o ensino de

xões e sugestões de atividades que podem

história e cultura afro-brasileira e africana.

ser desenvolvidas em sala de aula, desde a

Brasília (DF): Instituto Nacional de Pesqui-

Educação Infantil até o Ensino Fundamen-

sas Educacionais Anísio Teixeira, 2004

tal. Muitas outras experiências estão sendo desenvolvidas em toda a educação básica,

______. Estatuto da Criança e do Adolescente:

resultando em atitudes de conhecimento e

Lei nº. 8069, de 13 de julho de 1990. Brasília:

valorização das diferenças, principalmente

Secretaria de Estado dos Direitos Humanos,

aquelas que dizem respeito às culturas e às

Departamento da Criança e do Adolescente,

histórias africanas e afro-brasileiras, como

2002.

determina a Lei Federal nº. 10.639, de 09 de janeiro de 2003, assim como na sua regula-

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio

mentação, expressa nas Diretrizes Curricu-

do lar ao silêncio escolar: racismo, preconcei-

lares Nacionais para a Educação das Relações

to e discriminação na educação infantil. São

Étnico-Raciais e para o Ensino de História e

Paulo: Contexto, 2000.

Cultura Afro-Brasileira e Africana. LIMA, Heloísa Pires. A semente que veio da Desenvolver práticas educativas a partir des-

África. Editora Salamandra, 2005.

tas situações tem sido importante para que educandos e educadores conheçam histórias

LOPES, Véra Neusa. Inclusão étnico-racial –

e culturas das populações negras, desmisti-

cumprindo a lei, práticas pedagógicas con-

ficando o tema e tornando positiva e real a

templam afro-brasileiros. Porto Alegre: Re-

participação dos africanos e afro-brasileiros

vista do Professor, jul./set. 2003. p. 25-30.

na história nacional. SOUZA, Andréia Lisboa de. Personagens ne-

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cação: repensando nossa escola. São Paulo:

Científica e Pallas Editora, 2000.

Summus, 2001. p. 195-213.

143


III. Tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras e a criança afro-brasileira (uma reflexão)1 Azoilda Loretto da Trindade2

Às crianças que foram invisibilizadas e silen-

raltices... Não continue este texto sem lem-

ciadas ao longo da História

brar. Lembre, relembre, lembre...

Abra a roda tin dô lê lê Abra a roda tin dô lá lá

Lembrar para se religar à criança que está dentro de nós, guardada no coração, a criança que ainda somos. Avivar nossa memória, puxar seu fio para que, quem sabe, possamos perceber, no nosso corpo, o valor, a importância dos brinquedos e das brincadeiras

Abra a roda tin dô lê lê tin dô lê lê tin dô lá lá3 ...

para nós e, consequentemente, para nossas crianças, as crianças sob nossa responsabilidade de educadoras e educadores. Afinal, Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração Toda a vez

Vamos convidá-lo(a) a lembrar dos sorri-

que o adulto “balança” ele vem pra me

sos, da sua infância, das brincadeiras... Dei-

dar a mão.

xe essas lembranças chegarem. Permita-se lembrar dos sabores, odores/cheiros, cores, texturas... Dos gritinhos, das corridas, dos

Há um passado no meu presente. Um sol bem quente lá no meu quintal,

machucados... Das marquinhas que você

Toda vez que o adulto fraqueja o menino

carrega no corpo como lembranças das pe-

me dá a mão...

1 Repertório afro-brasileiro – 2004 / PGM 4. 2 Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ. Organizadora desta coletânea. 3 Abra a roda tin dô lê lê é uma cantiga de roda do nosso repertório popular.

144


E me fala de coisas bonitas que eu acre-

No centro da roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin

dito que não deixarão de existir:

dô lá lá. Colocando estas crianças no centro

Amizade, palavra, respeito, coragem, bondade, alegria e amor...

da roda, vamos, para começo de conversa, tirá-las do lugar de carência e olhá-las como força, como potência. Como crianças cujo

Pois não posso, não quero, não devo, vi-

axé, cuja energia vital foram e são tão fortes

ver como toda essa gente insiste em vi-

que nos fazem pensar: como elas resistiram

ver.

e resistem à tanta perversidade social?

Não posso aceitar sossegado qualquer

Desnaturalizar a concepção de criança es-

sacanagem ser coisa normal .

crava, como algo quase biológico, fecha-

4

Devagarzinho /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/ tin dô lá lá.

do, etiquetado, e olhá-las como crianças que foram, sim, escravizadas ontem e hoje, parece-me fundamental. Fundamental para

No clima dos brinquedos e brincadeiras, per-

desnaturalizar o lugar de subalternidade, de

cebamos a riqueza da roda aberta. Olham-se

marginalidade, de exclusão ao qual tentam

as diferenças e semelhanças, as igualdades,

colar, aprisionar nossas crianças. Funda-

a diferença dos seus participantes, sem hie-

mental para reafirmar o compromisso e o

rarquias. Todos ali se vendo, de mãos dadas,

débito social de garantir-lhes sua infância,

num círculo em cujo centro existem as pos-

seu direito de brincar, de sorrir, de ter orgu-

sibilidades.

lho da sua memória e do seu povo.

Vamos, no entanto, devagarzinho, nos lem-

Fechando a roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô

brar das crianças que ficaram de fora desta

lá lá. Agora bem próximos, vamos pensar que

roda ao longo da nossa História, de crianças

temos uma memória social cindida, partida.

cuja memória histórica de brinquedos e brin-

Grande parte da nossa população brasileira

cadeiras está ligada ao engenho de cana5, à

não se reconhece afro-brasileira. Neste sen-

senzala, aos guetos, aos lugares invisibiliza-

tido, o lado afro da nossa história, o escondi-

dos, escondidos, ao estado, qualidade, con-

do, o submerso da nossa memória, necessi-

dição de escravas. Para evitar equívocos,

ta ser descortinado, exposto. Essa memória

estamos nos referindo às crianças afro-bra-

afro-brasileira precisa vir à tona e creio ser

sileiras, razão desta série, deste programa.

no exercício de lembrar que o emergir, o sair

4 Bola de gude, Bola de Meia, de Milton Nascimento e Fernando Brant. 5 a 59).

KISCHIMOTO,T. M. Jogos tradicionais Infantis: O jogo, a criança e a educação. Petrópolis,RJ: Vozes, 1993 (p 26

145


da amnésia social, na qual nos encontramos,

O artigo Africanidades Brasileiras: esclare-

podem acontecer coletivamente. E nada me-

cendo significados e definindo procedimen-

lhor para isso do que lembrar das histórias

tos pedagógicos, de Petronilha Silva (2003)

inscritas no nosso corpo, em especial no

refere-se às “raízes da cultura brasileira que

nosso corpo de educadoras e educadores.

têm origem africana.(...)”. Dizendo de outra forma, queremos nos reportar ao modo de

Histórias que entram em cena mediadas por suas lembranças. Tais lembranças necessitam ser faladas, escritas, lidas, assumidas, afirmadas, escutadas, para poderem assim ganhar status de memó-

ser, de viver, de organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros e, de outro lado, às marcas da cultura africana que, independente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do dia-a- dia”7.

ria, serem lapidadas. Elas nos habitam individualmente, mas seu nascimento,

Ao tirar da prisão do esquecimento a me-

há muito, aconteceu no coletivo. Quan-

mória individual e coletiva afrodescendente

do socializadas, podem ser refletidas e

que habita nossa população, estaremos dan-

criticadas. (...)

do um passo fundante para a concretização dos nossos ideais democráticos em relação

Ver, porque ganhou distância, num

à educação.

processo reflexivo, como construtor e não reprodutor do próprio processo de

Dando um exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/

aprendizagem, possibilita a compreen-

tin dô lá lá. Conceição nasceu no dia 8 de

são entre construir conhecimento e re-

dezembro, no final dos anos 70 do sécu-

produzir conhecimento, repetir história

lo XX, dia consagrado a Nossa Senhora da

e construir história6.

Conceição e, em algumas religiões afrodescendentes ou afro-brasileiras, a Oxum, orixá

Destaco isto, pois creio que se nosso corpo não estiver visceralmente envolvido com o processo de construção de uma educação efetivamente voltada para todos, sucumbi-

feminino, que, segundo Verger (1981, p. 174) controla a fecundidade e reina sobre todos os rios, exercendo seu poder sobre a águas doce, fundamental para a vida na Terra.

remos diante do árduo processo de imprimir as africanidades brasileiras no nosso currí-

Sua família, adepta da umbanda, uma reli-

culo escolar, que se pretende multicultural.

gião afro-brasileira, desejou homenagear

6 1999.

FREIRE, Madalena. “Memória: Eterna idade.” Diálogos. São Paulo. Espaço Pedagógico, ano II, n° 5, julho

7 SILVA. Petronilha Beatriz Gonçalves e. Africanidades Brasileiras: esclarecendo significados e definindo procedimentos pedagógicos. Revista do Professor. Porto Alegre, 19 (73):26-30, jan./mar. 2003.

146


Oxum, colocando este nome na menina.

brincadeiras ingênuas, bobagens ou insigni-

Segundo ela, houve o impedimento no car-

ficâncias.

tório e a família imediatamente deu-lhe o nome de Conceição para poder homenagear

Dando outro exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/

Oxum, sem repressão. Esta história é emble-

tin dô lá lá. Participava de um curso de for-

mática em relação ao surgimento do nosso

mação de educadores de Educação Infantil,

sincretismo religioso.

quando a professora colocou um vídeo, onde tinha a brincadeira infantil Barra manteiga

Por muito tempo, mais de vinte anos, ela re-

na fuça da nêga. Vale destacar que o curso

lata que tinha vergonha de contar esta his-

tinha uma perspectiva crítica e progressista.

tória e dizia que seu nome era em homena-

Fiquei constrangida, mas fui obrigada, pela

gem a Nossa Senhora da Conceição.

minha consciência, a questionar o material.

Ao compartilhar, coletivizar sua lembrança, sua história identitária, Conceição libertou sua memória e sua própria identidade e certamente sua história lembrada e contada foi disparadora de outras memórias e de outras identidades.

O argumento-resposta foi perfeito: “essa brincadeira faz parte do nosso repertório cultural e afetivo, todos já brincamos dessa brincadeira”, foi dito. No entanto, contra-argumentei: “É, mas não foi dito que a nêga da brincadeira é uma mulher negra, logo gente, logo tem nariz e não fuça”. Não foi dito que

Relato este exemplo para fundamentar o de-

não se coloca barra de manteiga no nariz de

safio que se coloca à nossa frente ao nos pre-

ninguém, não foi dito que se tratava de uma

dispormos a fazer valer a Lei nº 10.639/2003

brincadeira que retratava um período de

que regulamenta a inclusão da temática

nossa história (o escravismo). Não foi dito

“História e Cultura Afro-Brasileira” no currí-

que o silêncio, a não-crítica, a não-reflexão

culo escolar. Ora, nenhuma lei se torna exe-

num curso de formação de professores aca-

quível sem envolvimento social, sem perten-

bam por naturalizar a situação e reforçar a

cimento coletivo. Esta lei, especificamente,

violência simbólica que se pratica contra to-

só se concretizará, no cotidiano escolar, se

dos os afro-brasileiros e afrodescendentes.

houver a real parceria com os professores e

E, assim, não se questiona que com tantos

professoras. Se houver a vivência cotidiana

exemplos possíveis de brincadeiras, aquele

da crítica do cotidiano escolar, permeado

foi escolhido sem nenhuma crítica, num ví-

por conflitos, encontros e desencontros, ra-

deo de um curso que se pretendia crítico,

cismos, preconceitos e discriminações, mui-

multiplicador, formador de práticas e opini-

tas vezes alienadamente confundidos com

ões pedagógicas.

147


Esta situação significativa demonstra a to-

Atentemos para o fato de que nós, educado-

tal ou quase total insensibilidade para com

ras e educadores, imersos em planejamen-

metade da população brasileira: os afro-bra-

tos, currículos, controles, muitas e muitas

sileiros. Mas por quê?

vezes, além de não brincarmos - capacidade que em muitos de nós está aprisionada no

Mão na testa/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá

nosso corpo -, impedimos que o outro brin-

lá. E no repertório popular e afetivo da nos-

que, em nome, num sem número de vezes,

sa gente, temos muitos exemplos de brinca-

de uma desnecessária disciplina, lei, organi-

deiras significativas que nos levam a pensar:

zação, em nome da nossa “autoridade”, con-

Chicotinho queimado, as Sinhazinhas das fes-

tribuindo assim, para a degeneração da vida

tas juninas, as músicas como Samba -lelê tá

humana, que tem no brincar a afirmação da

doente,/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba-

vida.

-lelê precisava /É de umas boas palmadas. Ou a tradicional Boi, boi, boi,/ boi da cara preta,/

Vamos brincar um pouquinho, vamos nos

pega essa menina /que tem medo de careta.

encontrar com os sacis, com as cucas, com

Das histórias como a do Negrinho do Pasto-

o Negrinho do Pastoreio, com os bois das

reio e da Moura Torta. Creio que as brinca-

caras-pretas de vez em quando. É, vamos re-

deiras e brinquedos estão em sintonia com

descobrir o prazer de brincar que, certamen-

a sociedade na qual estão inseridos, então

te, tomou nosso corpo em algum momento

não é surpreendente o que ocorre e ocorreu

da nossa vida.

numa sociedade com uma história de autoritarismo como a nossa.

O corpo traduz a nossa presença concreta no mundo. A nossa existência e potenciali-

Vamos girando/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá

dade se circunscrevem no nosso corpo. Com

lá. Gostaria de concluir este texto pensando

ele amamos, sonhamos, produzimos, senti-

em dois aspectos fundamentais para nós: a

mos, percebemos, nos constituímos como

importância do brincar e a importância do

sujeitos. O que é importante para nós, edu-

corpo que brinca.

cadores e educadoras, é o respeito por este corpo, o nosso e o do outro, dos nossos alu-

O brincar, no dizer de Verden-Züller (2004, p.

nos, das nossas alunas, nossos colegas, nos-

230), “é atentar para o presente”. O não estar

sas colegas, nossos companheiros e compa-

preocupado com o futuro, com as consequ-

nheiras de existência.

ências da ação, mas em vivê-la enquanto ela está sendo vivida por nós. É encantar-se com

Corpos que carregam histórias e memórias,

o aqui e agora, é entregar-se ao presente.

marcas que anunciam e denunciam, que fa-

148


lam, mesmo sem palavras. Creio que esta di-

REFERÊNCIAS

mensão de acolhida, respeitosa e amorosa, do corpo do outro, sobretudo quando este

CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao si-

outro tem uma história-memória social de

lêncio escolar: racismo, preconceito e discrimi-

violência, mutilação e insensibilidades com

nação na educação infantil. São Paulo: Con-

relação ao seu corpo e aos corpos dos seus

texto, 2000.

iguais, é uma chave para a permanência e o sucesso das nossas crianças, em especial as

FREIRE, Madalena. Memória: Eterna idade.

crianças negras, na escola. Permanência e

In: Diálogos. São Paulo: Espaço Pedagógico,

sucesso, não de vítimas ou de carentes, mas

ano II, n° 5, julho 1999.

de cidadãos e cidadãs de direito, vitoriosos sobreviventes de racismo, exclusões e injus-

KISCHIMOTO, T. M. Jogos tradicionais Infan-

tiças sociais.

tis: O jogo, a criança e a educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993

Que tal, junto com elas e eles, construirmos um belo repertório de brinquedos e brinca-

LUZ, Marcos Aurélio. Cultura Negra e Ideo-

deiras? E assim, quem sabe, no coletivo, fa-

logia do Recalque. Rio de Janeiro: Achiamé,

zermos emergir, no brincar, a nossa memó-

1983.

ria afro-brasileira. Confie, o nosso corpo e o corpo de nossas crianças, eles sabem brin-

LUZ, Narcimária C. do Patrocínio Luz. Abebe:

car, afinal o brincar é um saber acontecente.

a criação de novos valores na educação. Salva-

É só começar.

dor-BA: SECNEB, 2000.

Inventando tin dô lê lê Inventando tin dô lá lá Inventando

MATURANA, H. e VERDEN ZÖLLER,G. Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia. São Paulo: Editora Palas Athena, 2004. MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília-DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental,

tin dô lê lê tin dô lê lê tin dô lá lá...

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149


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Um grito de Liberdade

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Documentário sobre Luther King Quando o crioulo dança -REDEH/MEC Racismo - IBASE Vídeo

151


Alguém falou de racismo Meninas do Rio e FUNK RIO - Cecip

CDs de Nei Lopes CD Abra A Roda Tin Dô Lê Lê, de Lydia Hortélio

Kiriku e a feiticeira Vista minha pele Kiara, corpo de rainha. Ilha Negra

CD Tambolelê Dia de Graça (Candeia - sambista negro) Wonderful world - Louis Armstrong

Beleza Negra Sites Retrato em Preto em Branco MÚSICAS Milagres do povo- Caetano Veloso e Gilberto

www.mulheresnegras.org www.afirma.com.br

Gil

www.geledes.org.br

Haiti - Caetano Veloso e Gilberto Gil

www.anped.org.br (GT de Relações Raciais)

CD do Antônio Nóbrega - O marco do meio-

www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/

-dia

jogos.html

CD do Jorge Aragão - Jorge Aragão ao vivo

www.projetohistoriadosamba.hpg.ig.com.br

152


C. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA

I. Os quilombos e a educação1 Maria de Lourdes Siqueira2

Introdução

30, foram criados a Frente Negra Brasileira, a Imprensa Negra, o Teatro Experimental do

A sociedade brasileira, em sua grande maio-

Negro. Nos anos 70, o Movimento Negro

ria, é animada por uma força ancestral que

ressurge com o Ilê Aiyê e o Movimento Ne-

mantém vivas tradições, costumes, crenças,

gro Unificado – MNU.

valores que há cinco séculos são repassados, em nosso país, de uma geração a outra, sobretudo pela ação da mulher negra e das organizações de resistência negra.

A nossa proposta maior nesta reflexão é incluir o significado do papel dos Quilombos nos processos sócio-político-culturais de construção da Sociedade Brasileira e a di-

A origem dessa tradição se inicia com os

mensão educativa que se realiza nos Qui-

africanos escravizados que chegam ao Brasil

lombos em todo o território nacional. Para

sob a ação do Sistema Colonial Escravista,

o professor, militante e senador Abdias Nas-

no período compreendido entre os séculos

cimento, há um permanente:

XVI e XIX. Eram africanos de origem Yorubá (nagô ou ketu), Gegê, Ewé, Mina, Congo, An-

“movimento de in-surreições, levantes,

gola, Moçambique.

revoltas proclamando a queda do sistema escravo, que podem ser localizados

As organizações clássicas criadas em resis-

em toda a extensão geográfica do país,

tência à dominação escravocrata e colonial

particularmente naquelas de significa-

sempre existiram no Brasil entre Irmanda-

tiva população escravizada. Frequente-

des Religiosas, Terreiros de Candomblé,

mente aqueles movimentos tomavam

Congadas, Capoeira, Quilombos. Nos anos

a forma de Quilombos, à semelhança

1

Valores afro-brasileiros na Educação – 2005 / PGM 3.

2 Professora da Universidade Federal da Bahia/Diretora da Associação Cultural Ilê Aiyê/ 2ª vice-presidente da Associação de Professores Pesquisadores Negros – seção Bahia.

153


de PALMARES: eram comunidades or-

As Comunidades de Quilombos estão sujei-

ganizadas para africanos livres que se

tas a transformações, guardando um jeito

recusavam a submeter-se à exploração

próprio de viver, transmitindo essa heran-

e à violência e buscavam a instituciona-

ça ancestral de resistência às gerações que

lização do poder inspirado na estrutura

se sucedem. Conhecemos, por exemplo,

do comunalismo tradicional da África”

a família de Seu Bernardino e Dona Clara,

(Nascimento, 2002).

moradores dos Matões dos Moreira, cujos descendentes convivem hoje entre Matões e

Desde o século XIX, os Quilombos existem

Santo Antonio dos Pretos, constituindo qua-

no Brasil, realizando ações de identidade,

tro gerações, presentes nesses Quilombos:

trabalho, organização social e resistência

bisavó, avó, filho e neto juntos, vivendo o

aos sistemas de dominação impostos aos

cotidiano da vida quilombola. A bisavó cuida

africanos e seus descendentes.

de uma Casa de Santo de matriz africana, a avó hoje é quilombola nos Matões dos Mo-

Há uma oralidade, de tradição, que realiza

reira; o neto é agente cultural da comunida-

permanentemente o exercício de guardar de

de e o bisneto, com a idade de cinco anos,

memória as lições de sabedoria e experiên-

acompanha todos. Essa família é parte de

cia dos ancestrais e transmiti-las aos seus

minha própria família, no lugar onde nasci,

descendentes, sempre na perspectiva de

cujos herdeiros dessas Terras de Pretos eram

formar novas gerações sobre valores, prin-

meus avós, meus tios, e minha mãe.

cípios, crenças, costumes e tradições que mantenham viva a ancestralidade originária

De que modo os conhecimentos, os saberes,

das Civilizações Tradicionais Africanas.

são passados nas Comunidades Quilombolas?

Hoje, os Quilombos, denominados Comunidades Remanescentes de Quilombos, ou

Continuam vivas, nestes lugares, tradições

Terras de Pretos, se reorganizam no país

de Candomblé, Umbanda, Tambor de Mina,

inteiro, nas diferentes regiões, revivendo o

Terecô, Tambor de Crioula, Bumba meu Boi,

legado de seus antepassados. São núcleos

Reisado, Festas do Divino, Festa de Caboclo,

vivos de iniciativa comunitária, identitá-

ladainhas para Santos e Encantados. Há um

ria, sem perder de vista as dinâmicas das

processo educativo que, no cotidiano, zela,

transformações histórico-político-culturais

transmite e celebra, a cada ano, na medida

ocorridas no decurso de tantos séculos, que

do possível, estas culturas e expressões reli-

essas tradições atravessam em tempos e es-

giosas de origem africana, reelaboradas na

paços diferentes.

dinâmica concreta da vida das pessoas, que

154


às vezes vão se transformando, de um lugar

excelência. Ela sempre guardou os saberes e

a outro, mas guardam sempre os fundamen-

os cultivou e transmitiu em todos os lugares

tos.

por onde passou. Ela é identificada com a ancestralidade, porque incorpora essa an-

As pessoas dos Quilombos, das Terras de Pre-

cestralidade, nos papéis de mãe, mulher (es-

tos, frequentam as escolas públicas ou até

posa, companheira) professora, enfermei-

pequenas “Bancas” privadas para aprender

ra, mãe de santo, filha de santo, ekede ou

a ler, a escrever, a desenvolver as operações

makota, mestre, contra-mestre ou pratican-

de raciocínio matemático, porque elas preci-

te de capoeira, benzedeira, curadora, conhe-

sam entrar na engrenagem da vida em Socie-

cedora dos segredos da natureza. Ela realiza

dade. Mas elas não abandonam as tradições

essas lutas e ações cotidianas com dignida-

de seus ancestrais que, para elas, constituem

de e pela DIGNIDADE da família negra.

os valores e princípios educacionais. Entre os múltiplos saberes, destaca-se: o saber respeitar as pessoas mais velhas; a história da família dos seus antepassados; o culto à natureza; os saberes em relação à chuva e à posição do sol; os efeitos da lua; o tempo de plantar e de colher; o perigo dos raios, a leitura da força dos trovões; a importância da água em todos os momentos da vida; os segredos das plantas; o poder das folhas e das raízes para curar, para fortalecer o corpo e a alma das pessoas.

Os Quilombos hoje mais reconhecidos nos estados são principalmente: No Amazonas: Bacia do Trombetas; no Pará: Oriximiná Itamoari, São José; no Amapá – Curiaú, no Maranhão: Santo Antonio dos Pretos, Matões dos Moreira, Ingarana; em Pernambuco: Castaninho, Conceição das Crioulas; na Bahia: Rio das Rãs e Rio de Contas. Mangal, Barra, Santana, São José, da Serra; em Sergipe: Mocambo; no Rio de Janeiro: Campinho da Independência, San-

Estes saberes são praticados dia a dia. É certo

tana, São José Serra da Serra; no Rio Grande

que há rupturas, há separações, há quebras,

do Sul: Serra Geral, Camizão; Ceará: Con-

mas há uma FORÇA MAIOR: a lembrança dos

ceição dos Caetano; Goiás: Kalungas; São

ANTEPASSADOS, dos ANCESTRAIS, dos mais

Paulo: Iporanduva, Maria Rosa, São Pedro

velhos da Comunidade que têm força moral

de Eldorado, Iporanga; Mato Grosso: Mata

ante suas famílias.

Cavalo; Minas Gerais: Porto Coris, Garimpeiros, Campo Grande; Ambrósio; Tocan-

Nesse processo de passagem de conheci-

tins: Lagoa da Pedra; Paraíba: Caiana dos

mentos, a mulher negra é a educadora por

Crioulos.

155


Uma proposta de Políticas Públicas com

Medicina, Música, Psicanálise, Religião, Te-

Ações Afirmativas em Educação, para Co-

atro.

munidades Remanescentes de Quilombos, pressupõe, fundamentalmente, conteúdos educacionais e práticas pedagógicas; currículo, programas de formação de professores e produção de recursos pedagógicos, que incluam o respeito às diferenças e às especificidades culturais destas populações em seus lugares, vivendo a tradição das Comunidades Remanescentes de Quilombos.

A experiência de Palmares, no Estado de Alagoas, e a liderança de Zumbi dos Palmares constituem a referência de um líder e de uma República que viveu a mais séria e duradoura experiência democrática em solo brasileiro, além de ter sido a maior manifestação de luta contra o escravismo na América Latina. A continuidade dos Quilombos está articu-

Concluindo

lada a Políticas Públicas que proporcionem a inclusão das dimensões mitológicas, sim-

As Comunidades Remanescentes de Qui-

bólicas e rituais em processos educacionais

lombos só existem porque elas são repre-

nos Quilombos e na Sociedade Brasileira.

sentações vivas de princípios fundadores de saberes seculares que perpassam, direta ou

156

REFERÊNCIAS

indiretamente, ao estilo de uma seiva, que alimenta uma semente que renasce dia a

ALMEIDA, Alfredo Wagner B. Terras de Pretos,

dia, em forma de um processo educativo,

terra de santo e terras de índio. In: Revista

que se realiza a partir de um outro olhar, de

Humanidades, Brasília, 1987/88.

uma outra perspectiva, do ponto de vista daqueles que conhecem a realidade onde vivem, e detêm saberes úteis a toda a Sociedade: convivência, partilha, o valor do outro, o reconhecimento da diferença, a valorização da natureza, a esperança, a alegria de viver, a confiança no ser, independente do ter.

ARAÚJO, Mundinha. Insurreição de escravos em Viana – 1867. Prefácio de Joel Rufino dos Santos/Maria Raimunda Araújo. São Luís: SIOGE, 1994. BRASIL. MEC-SEF. Uma história do povo Kalunga. Caderno de atividade e encarte para o professor. 120 p. il. Brasília: Secretaria de

Estes princípios hoje são incorporados em

Educação Fundamental, 2001.

distintas áreas do conhecimento: Arquitetura, Administração, Arte, Biologia, Botânica,

CADERNOS DE EDUCAÇÃO DO ILÊ AIYÊ. Ter-

Cinema, Culinária, Cultura, Dança, Enge-

ra de Quilombo. Vol. VIII. Ilê Aiyê. Salvador

nharia, Gestão, Indumentária, Linguagem,

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MOURA, Glória. Quilombos contemporâne-

tos pela Lei Federal n. 10.639/03. Secretaria

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versidades. Brasília: Coleção Educação para

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o racismo na escola. 2 ed. Revisada Brasília:

quisa e comentários em documentos histó-

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Conquista, 1972.

Aiyê, 2004.

157


II. Quilombo: conceito1 Gloria Moura2 Da terra, na terra, quilombolas desenvolvem atividades. Plantam e colhem os frutos de seu trabalho. Marcam sua história.

A história da propriedade rural brasileira tem

regulamentado as terras registradas, levan-

início com as Capitanias Hereditárias e com

do a lei ao fracasso. As terras no Brasil eram

as Sesmarias, as quais se constituíam de ter-

possuídas por poucos, um bem de capital não

ras doadas pela Coroa Portuguesa a benefici-

acessível à população. As doações previam

ários da Corte. Os donatários que não conse-

estabilizar o pretendente, que teria escravos

guissem cultivar essas terras as devolveriam

e se comprometeria a fazer benfeitorias.

à Coroa, daí a expressão terras devolutas. Ressaltamos, neste texto, o processo de forDesde aquela época, terra no Brasil é

mação de quilombos na Colônia e no Impé-

conflito entre Estado, latifundiários, pe-

rio. Escravos fugiam de fazendas e consti-

quenos proprietários, camponeses. A Lei

tuíam resistência à escravatura. Palmares é

de Terras (18503) pretendeu que o Estado

símbolo-mor, quilombo com quase 100 anos

regulamentasse as sesmarias, desapro-

de existência e líderes como Ganga Zumba e

priasse terras improdutivas, vendesse

Zumbi. Em Palmares, terra era considerada

terras para subsidiar a imigração es-

como sinônimo de liberdade. Terra é patrimô-

trangeira. Proibiu doações.

nio onde se fincam aspirações de despossuídos de espaço para plantar e viver. Os negros

Fazendeiros recusaram-se a registrar as terras, o que questionava os limites de suas posses. Em 1870, raros fazendeiros haviam

libertários fortaleciam-se, causavam apreensão e temor. Magalhães Magalhães (In: Marcas da Terra, Marcas na Terra) comenta:

1 Educação Quilombola – 2007 / PGM 1. 2 série.

Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Pesquisadora do CNPq. Consultora desta

3 Lei n.º 601 (de Terras), 1850. Maria Jovita Wolney Valente (org.) Legislação Agrária, Legislação de Registro Público, Jurisprudência (coletânea). Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, Brasília, 1983.

158


A terra representa, para esses sujeitos,

tes de escravos que mantêm laços de paren-

patrimônio cultural e histórico, na me-

tesco entre si. A maioria vive de culturas de

dida em que há valores morais a ela atri-

subsistência em terra doada/comprada/se-

buídos a serem transmitidos de geração

cularmente ocupada. Seus moradores valo-

a geração. Ela não é percebida apenas

rizam tradições culturais dos antepassados,

como objeto em si mesma, de trabalho

religiosas (ou não), recriando-as. Possuem

e de propriedade. Através de diversos

história comum, normas de pertencimento

saberes e concepções de mundo criados

explícitas, consciência de sua identidade ét-

e reelaborados no trabalho cotidiano

nica.

com a terra, homens e mulheres, camponeses migrantes (...) buscam que sua

Reviu-se e ampliou-se este conceito, por-

dignidade seja reconstruída, garantida

que manifestações culturais recriam-se em

e respeitada, para que possam também

sucessivas gerações. E a Fundação Instituto

transmitir a outras gerações uma obra,

Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

uma história.

(1980) conceituou terras de preto, no Mara-

Magalhães refere-se, na obra citada, a camponeses migrantes, cujo valor da terra não difere para negros assentados há mais de 200 anos. A terra é o sustento, o alimento que vai mantê-los vivos. Da terra e na terra se desenvolvem atividades vitais, plantio e colheita, marcos históricos. Realizam as tradições no chão de muitos anos na luta, o que garantirá o direito de ser diferente sem ser desigual frente à lei, sem receber a pecha da marginalidade. Frente à questão da terra no Brasil, nosso

nhão, como os quilombolas as chamavam: As de nominadas terras de preto compreendem domínios doados, entregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, às famílias de ex-escravos, a partir da desagregação de grandes propriedades monocultoras. Os descendentes de tais famílias permanecem nessas terras há várias gerações sem proceder ao formal de partilha e sem delas se apoderar individualmente (Censo Agropecuário, IBGE, 1980).

foco é a recente evolução do conceito de quilombo quanto às comunidades rurais negras.

Historicamente, no Brasil, em função da resposta do rei de Portugal à consulta do Con-

Conceito

selho Ultramarino (2 de dezembro de 1740), define-se quilombo (ou mocambo) como

Quilombos contemporâneos são comunida-

“toda habitação de negros fugidos que pas-

des negras rurais habitadas por descenden-

sem de cinco, em parte despovoada, ainda

159


que não tenham ranchos levantados nem se

Como resultado de pressão dos movimen-

achem pilões neles”. Ramos noticia quilom-

tos, a luta para incluir na Constituição ter-

bos em data anterior:

ras ocupadas por descendentes de escravos foi em parte consagrada no artigo 68, do Ato

A maioria dos historiadores brasileiros

das Disposições Constitucionais Transitó-

assinala a data de 1630 para o início dos

rias: “Aos remanescentes de quilombos que

quilombos que iriam constituir Palma-

estejam ocupando suas terras é reconhecida

res. Mas tudo leva a crer que as fugas de

a propriedade definitiva”. Em 1996, o presi-

negros escravos naquela região vinham

dente da República concedeu título de reco-

se dando em datas muito anteriores (RA-

nhecimento de domínio às comunidades de

MOS, 1971).

Pacoval e Água Fria, no Pará, cumprindo os artigos 215 e 216 da Constituição e o artigo

Quilombo, vocábulo que designou, por mui-

68 do Ato das Disposições Transitórias. Pelo

to tempo, apenas acampamentos de escra-

Decreto-lei n. 3.912 (2001), a FCP (Fundação

vos fugidos, tem origem africana. Para Reis

Cultural Palmares), do MinC (Ministério da

(1996):

Cultura), pôde aplicar o artigo 68 e reconhecer mais comunidades. Em 2003, foi assina-

Quilombo derivaria de kilombo, socieda-

do o Decreto n. 4.887, que “Regulamenta o

de iniciática de jovens guerreiros mbun-

procedimento para a identificação, reconhe-

du, adotada pelos invasores jaga (ou im-

cimento, delimitação, demarcação e titula-

bangala), formados por gente de vários

ção das terras ocupadas por remanescentes

grupos étnicos desenraizada de suas co-

das comunidades dos quilombos de que tra-

munidades.

ta o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, que determina ser

Esta matriz histórica dos quilombos foi retomada para se referir às comunidades rurais negras no Brasil. O conceito de quilombo tem sido objeto de reflexão histórica e po-

o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o órgão competente para emitir títulos de propriedade.

lítica desde os anos 70. O movimento negro contribuiu significativamente para ressaltar

Comunidades rurais negras são objetos de

a importância do estudo dos quilombos na

constantes invasões de terras por fazendei-

história. Reificou o conceito, considerando

ros, porque os ocupantes não possuem do-

agrupamentos quilombolas como nichos

cumentos comprobatórios de propriedade,

culturais autônomos, pedaços da África no

embora essas ações também ocorram mes-

Brasil.

mo quando os possuem.

160


Remanescentes de quilombos vivem situa-

CARVALHO, José Jorge. O quilombo do Rio das

ção indefinida. Houve vitórias, mas não se

Rãs. Salvador: EDUFBA, 1996.

resolveu a questão. A visibilidade das comunidades aumentou, há mais grupos interes-

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de

sados em seu destino, mais estudos sobre o

Janeiro: Paz e Terra, 1975.

assunto, mas muito a fazer. Não foram feitos, ainda, levantamentos sistemáticos das

GOMES, Flávio S.; REIS, João J. Liberdade por

comunidades existentes e dos problemas

um fio: história dos quilombos no Brasil. São

jurídicos e sociais que enfrentam. No Mara-

Paulo: Companhia das Letras, 1996.

nhão, com o Projeto Vida de Negro, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e o

MOURA, Gloria. Ritmo e Ancestralidade na

Centro de Cultura Negra, apoiados pela Fun-

força dos tambores negros: o currículo invisí-

dação Ford e a Oxfam (Organização Oxford

vel da festa. Tese de doutorado. São Paulo:

para a Cooperação do Desenvolvimento),

USP, 1997 (mimeo).

em 45 municípios do estado, levantaram 401 terras de preto, designação usual na região

____________. Uma história do povo Kalunga.

para as comunidades rurais.

Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, MEC/SEF, 2001.

O Centro de Cartografia da Universidade de Brasília publicou mapas de comunidades

____________. A educação e as comunidades

remanescentes de quilombos, identifican-

remanescentes de quilombos. Revista Palma-

do cerca de 2.000, mas ainda não se sabe o

res em Ação, Brasília, Ano I, n. 1, 2002.

número exato de ocorrências de quilombos contemporâneos.

MOTTA, Márcia M. M. Nas fronteiras do poder: conflitos de terra e direito agrário no Bra-

Em resumo, pode-se dizer que há um processo, em curso, de visibilidade e estudo, da

sil de meados do século XIX. Tese de doutorado. Campinas, SP: Unicamp. 1996.

questão das comunidades remanescentes de quilombos, destacando-se avanços e insegu-

SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifún-

ranças, ao mesmo tempo.

dio: efeitos da lei de 1850. Campinas, SP: Unicamp, 1996.

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agrária, legislação de registro público, juris-

ras de santo e terras de índio. In: Revista Hu-

prudência. Brasília, Ministério Extraordiná-

manidades. Brasília, 1987/88.

rio para Assuntos Fundiários. 1983.

161


III. Saberes tradicionais de saúde1 Bárbara Oliveira2

As comunidades quilombolas encontraram

rezadeiras(os), benzedeiras(os), essas são

explicações e soluções para os distúrbios

pessoas muito presentes na estrutura social

de saúde do dia-a-dia e para os elaborados

dessas comunidades.

processos do ato de dar continuidade à vida. O nascer, para muitos quilombolas, é um

Os quilombolas depositam a esperança da

evento familiar e coletivo, desde que se des-

solução de diversas enfermidades, além de

locaram e resistiram ao sistema escravista

auxílio no processo da procriação, nessas

e, posteriormente, à sociedade nacional que

pessoas. Esse trabalho, em especial o das

não os incorporou de modo efetivo.

“remedieiras” e das parteiras, remete-se às mulheres. Elas representam a continuida-

Os saberes tradicionais e os costumes, pas-

de dos ensinamentos de suas ancestrais.

sados e perpetuados através das gerações,

As mulheres que atuam nos cuidados e nos

historicamente estruturaram o ciclo de vida

atendimentos às grávidas, parturientes,

das comunidades quilombolas e norteiam,

mães e crianças (e realizam contatos mais

atualmente, a estrutura social. Hoje em dia,

permanentes e intensos com as famílias)

em grande parte das comunidades quilom-

são, a partir dessas relações sociais, legiti-

bolas do país, há pessoas que tradicional-

madas como lideranças e referências em

mente dominam o conhecimento acerca de

muitas comunidades quilombolas.

rezas curadoras e de ervas e remédios concebidos de forma tradicional, e pessoas que

Detentoras de conhecimento tradicional de

detêm enorme saber sobre o processo re-

saúde, as parteiras têm suas atuações e tra-

produtivo e o parto. Mais conhecidas como

balhos tidos como ‘dádiva divina’. Partici-

parteiras,

pam de modo efetivo dos núcleos familiares

remedieiras,

curandeiras(os),

1 Educação Quilombola – 2007 / PGM 2. 2 Mestre em Antropologia pela UnB. Consultora na Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais na SEPPIR.

162


como referências muito próximas. As partei-

atuam. Na pesquisa realizada junto às par-

ras estão ligadas diretamente ao ciclo vital

teiras Kalunga3, foi possível observar a im-

da comunidade, são tratadas como mem-

portância da ancestralidade nesse trabalho.

bros das famílias das mulheres a quem pres-

As parteiras sempre se remetem à Brigda4,

tam auxílio. Além de grande proximidade fa-

referência ancestral que estrutura a organi-

miliar, há toda a aura de autoridade de fala e

zação do trabalho e dá força às mulheres.

de ação que cerca essas representantes dos

Em geral, nenhuma parteira presta auxílio,

saberes tradicionais.

sozinha, a uma parturiente. Isso ocorre apenas em situações em que o parto progride

A resistência, que marca tão profundamen-

rápido demais. Nesses casos, não há tempo

te as comunidades quilombolas, se expressa

para chamar uma ‘cumpanheira’ e acaba

nas práticas autônomas de saúde, uma vez

sendo uma atuação solo. Caso o processo

que “o nascer” e “o morrer” se davam, e em

do parto aconteça de forma costumeira,

muitas comunidades ainda se dão, no âm-

conta-se com a presença de várias mulheres.

bito do próprio grupo, a partir de sua cos-

E cada uma tem uma função específica no

movisão. Clóvis Moura (1981) ressalta que o

parto, assim como tem também o marido,

quilombo foi, incontestavelmente, a unida-

o(a) filho(a) mais velho(a), a mãe da partu-

de básica de resistência dos negros escravi-

riente, a vizinha, a benzedeira.

zados. O vínculo das comunidades quilombolas com sua historicidade, baseada em

Um dos aspectos importantes desse traba-

resistência e luta, é um aspecto fundante do

lho conjunto é a transmissão de conheci-

universo simbólico e da consciência coletiva

mento e o aspecto pedagógico dessa atua-

dessas comunidades. As práticas e saberes

ção. A tradição oral envolve, há gerações, o

relacionados à saúde têm íntima relação

conhecimento sobre o parto, os remédios

com esse processo.

tradicionais, as plantas, as garrafadas e o benzimento.

A passagem desse conheci-

O trabalho dessas pessoas, que são referên-

mento segue vários critérios de escolha. Os

cia em saúde nas comunidades quilombolas,

saberes em relação ao parto, dominados, por

em especial o das parteiras, se dá de modo

exemplo, pela “parteira veia”5, são passados

coletivo, a partir de todo o universo cultural

a algumas escolhidas. Essa seleção não se-

que permeia as comunidades em que elas

gue rigorosamente o parentesco direto. A

3 SOUZA, Bárbara O. Parteiras Kalunga: os saberes tradicionais e os processos de medicalização do parto. Universidade de Brasília, 2005, 117p. 4 Parteira, matriarca dos Kalunga, que é grande referência entre as parteiras. Pelos relatos orais, viveu na região há três gerações. 5 Mais experiente e sabedora das práticas.

163


“escolhida” pode ser uma sobrinha ou uma

Carlos Zolla, citado por Gordilho e Bonals

parenta distante da parteira. O importante é

(1994), define parteiras como “terapeutas

que a pessoa escolhida tenha o ‘dom’, ‘dado

tradicionais” que atuam em sua comuni-

por Deus’, e a partir daí, muita dedicação

dade e possuem reconhecimento social de

para acompanhar e auxiliar a “parteira veia”

seus conhecimentos, habilidades ou facul-

e ir acumulando conhecimento e experiên-

dades curativas. Pinto (2002) configura as

cia para, aos poucos, lidar com o processo

parteiras como “mulheres fortes, destemi-

de gravidez, parto e puerpério. Todo esse ci-

das, independentes e valentes (…). São mães,

clo de transmissão de conhecimento entre

esposas avós, comadres, que aprenderam

as parteiras está no âmbito da oralidade:

com suas antepassadas a desempenhar afazeres tanto no mundo natural, executando

“Quem me ensinou foi minha avó e mi-

as mais diversificadas formas de trabalho,

nha bisavó. Sempre que elas saíam, saí-

como no plano sobrenatural, benzendo, re-

am comigo, saía mais elas, elas me ‘en-

citando rezas e invocando encantarias, para

sinava’. Saía de lá e elas tornava a me

obter ajuda na hora do parto e curar os ma-

ensinar. Tudo de ‘có’, de cabeça, não ti-

les de seu povo” (p. 441 e 442).

nha nada de letra nenhuma” (Maria Pereira, parteira Kalunga).

O trato tradicional de plantas, de ervas curadoras e do corpo vem sendo construído ao

É importante traçar um perfil de quem são

longo de séculos nas comunidades quilom-

essas mulheres que atuam com o nascer,

bolas de todo o país. Muitos conhecimentos

com as ervas, raízes e rezas. Primeiramente,

e sabedoria estão envolvidos nas práticas

são mulheres, que já deram a luz – muitas

das remedieiras(os), das curandeiras(os),

vezes realizando seu próprio parto –, são ori-

das rezadeiras(os) e das parteiras quilombo-

ginárias da própria comunidade e atendem

las. A importância dos conhecimentos qui-

a mulheres quilombolas, principalmente

lombolas em relação ao bioma no qual estão

nas últimas semanas de gravidez, durante o

inseridos perpassa toda essa tradição. Há

parto e parte do puerpério. Sua atenção com

muito que aprender com as comunidades

as mulheres nesse período é estruturada a

quilombolas que vivem há séculos em várias

partir de práticas de saúde baseadas nos co-

regiões do país e mantêm uma relação har-

nhecimentos tradicionais, que lhes foram

moniosa com as plantas e os animais.

transmitidos através do “dom divino” (dado por Deus) e do acompanhamento de partei-

A partir de suas vivências e saberes adquiri-

ras mais experientes.

dos na relação com o meio ambiente, estrutura-se uma enorme riqueza de conhecimen-

164


tos relacionados ao bioma e ao corpo, com

centrais no processo de regulamentação das

ênfase nas plantas, raízes e outros elementos

práticas de saúde nas comunidades.

curadores. É uma relação histórica e íntima estabelecida com o ambiente, pois conheci-

São fatores que dialogam também com os

mentos fitoterápicos e sobre plantas medici-

movimentos de expansão do projeto de Es-

nais existem nas comunidades há gerações.

tado, no sentido de homogeneizar práticas, controlar corpos e processos orgânicos,

Cabe ressaltar que os saberes das comuni-

como o nascer e o morrer. Nesse processo de

dades quilombolas e de outros povos tradi-

“conquista”, a construção do “outro” pres-

cionais, sobretudo nos últimos anos, têm

supõe também a busca pela sua assimilação

atraído o interesse de empresas, muitas ve-

e pela expansão do “nós” civilizador (SOUZA

zes estrangeiras, e podem se tornar alvo de

LIMA, 1995).

biopirataria. Para proteger as comunidades tradicionais desse tipo de ameaça, os prin-

O processo de ressemantização de valores

cípios de proteção e compensação pelo uso

e costumes de saúde faz parte de uma ló-

do patrimônio genético foram estabelecidos

gica ampliada de relações de poder, de ne-

na Convenção sobre Diversidade Biológica,

gociação identitária, de assimilações do

assinada durante a Eco 92. Na prática, entre-

“novo”, a partir de contatos interétnicos e

tanto, muita coisa ainda ocorre sem que se

de reafirmações do que é tido como ‘tradi-

efetive o acordado na Convenção.

cional’. Nesse sentido, a importância das parteiras, remedieiras(os), curandeiras(os) e

Outro aspecto é o processo de medicalização

rezadeiras(os) para as comunidades quilom-

crescente que se impõe sobre essas comu-

bolas e a continuidade de suas atuações têm

nidades, com vistas a normatizar o parto e

vínculo com o confronto entre estes distin-

as práticas de saúde, a partir da perspectiva

tos significados para a identidade quilombo-

biomédica. As diversas intervenções e rela-

la, e em como esses fatores se configurarão

ções estabelecidas entre o Estado e as comu-

nas relações de poder externas e internas.

nidades quilombolas, potencializadas nas últimas décadas, estabeleceram processos

A organização das comunidades quilombo-

de ressemantização de costumes, práticas e

las é importante no processo de valorização

tradições, e estes têm influência direta so-

dos saberes tradicionais de saúde. A educa-

bre o remanejamento social, político e cul-

ção também é fundamental na preservação

tural da comunidade. São fatores que inci-

da cultura quilombola e, nesse caso, dos

dem sobremaneira na atuação das parteiras

saberes tradicionais de saúde. Para que a

e “remedieiras” e se colocam como objetos

cultura quilombola se fortaleça, são neces-

165


sários espaços para frutificar e fortalecer

da comunidade na qual a escola está envol-

essas práticas. As comunidades têm o direi-

vida, cabe ressaltar que elaborar currículos

to de ficar onde sempre estiveram. Além do

capazes de responder às especificidades e à

direito à terra, cabe refletir também sobre

pluralidade da identidade brasileira é funda-

a educação e o currículo escolar e sobre

mental.

a relação que a cultura quilombola e os conhecimentos tradicionais de saúde têm

REFERÊNCIAS

com eles. Os conhecimentos tradicionais de saúde (sejam eles quilombolas, indígenas, caiçaras, de terreiro, dentre outros) são pouco estudados e não compõem de forma expressiva os materiais didáticos de nossas escolas. Portanto, apesar de serem fundamentais para muitos povos, são concebidos como inferiores, ou mesmo ultrapassados. Acredito que temos muitas coisas a aprender com esses saberes e, por isso, é fundamental conhecer mais sobre esse universo. Nós, professoras e professores, temos, portanto, um desafio grandioso à frente, que é o de “desenvolver, na escola, novos espaços pedagógicos que propiciem a valorização das múltiplas identidades que integram a

GORDILHO, Bárbara Cadenas; BONALS, Leticia Pons. O trabalho das parteiras em comunidades indígenas mexicanas. In: COSTA, Albertina de Oliveira; AMADO, Tina. (Orgs.) Alternativas Escassas: saúde, sexualidade e reprodução na América Latina. São Paulo: Prodir / FCC – Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. MOURA, Gloria. O direito à diferença. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. MOURA, Clovis. Rebeliões na Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo, Editora Ciências Humanas, 1981.

identidade do povo brasileiro, por meio de um currículo que leve o aluno a conhecer

PINTO, Benedita Celeste de M. Vivências co-

suas origens e a se reconhecer como brasi-

tidianas de parteiras e ‘experientes’ do To-

leiro” (MOURA, 2005, p. 69).

cantins. In: Estudos Feministas, vol. 10, n. 2, Florianópolis, UFSC, 2002.

Portanto, nessa discussão sobre saberes tradicionais de saúde, tendo como eixo os va-

REDE FEMINISTA DE SAÚDE. Dossiê: Humani-

lores e práticas culturais dos estudantes e

zação do Parto. São Paulo, 2002.

166


SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Um gran-

calização do parto. Universidade de Brasília,

de cerco de paz: poder tutelar, indianidade e

2005. 117p.

formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. SOUZA, Bárbara O. Parteiras Kalunga: os saberes tradicionais e os processos de medi-

VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2002.

167


IV. Organização social educação não-formal1

e festas como veículos de

Verônica Gomes2

Formação de Associações e Organização Política

dos direitos garantidos em lei, imprescindíveis à sua luta, os (as) quilombolas poderão exigir a garantia de seus direitos de forma

As comunidades remanescentes de quilombos no Brasil buscam, cada vez mais, o reconhecimento de seus direitos, a valorização de sua cultura, a afirmação de sua identidade e uma maior participação na sociedade envolvente. Para tanto, é necessário que sejam integradas à sociedade brasileira, do ponto de vista sociopolítico e econômico, por meio de políticas públicas, uma vez que elas são alvo de diferentes formas de discriminação e privação dos direitos humanos fundamentais.

efetiva, intervindo e participando de forma mais qualificada. Assim, para que se consolide o Estado Democrático de Direito, a representação quilombola deve estar organizada em associações, como já ocorre, pois no âmbito organizacional, os quilombolas, por meio de suas associações comunitárias, clube de mães, associações de trabalhadores rurais, dentre outras, vêm se auto-reconhecendo como remanescentes de quilombos e fortalecendo

Do ponto de vista geopolítico-administrati-

a sua luta pela titulação dos territórios. No

vo, as comunidades quilombolas pertencem

âmbito nacional, desde 1995, os movimentos

a diversos municípios, entretanto, as iden-

sociais quilombolas também vêm se organi-

tidades negras revelam-se firmemente en-

zando na Conaq – Coordenação Nacional de

raizadas nos diversos territórios históricos e

Quilombos, a partir das associações locais,

geográficos bem delimitados.

nos municípios e nos estados-membros. Porém, se essas associações, antes, tinham um

Com o domínio de informações acerca dos

certo nível de informalidade, hoje a exigên-

direitos humanos, das políticas públicas e

cia é que se constituam de maneira formal

1 Educação Quilombola – 2007 / PGM 3. 2 Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília. Integrante da equipe técnica do Projeto de Apoio a Comunidades de Quilombo no Brasil – PROACQ.

168


e jurídica. A organização política implica a

des, há um forte apelo ao reconhecimento

compreensão dos instrumentos políticos,

dessa identidade.

dos marcos regulatórios, passa pela formalização de saber empírico em um saber mais

O significado pedagógico deste tipo de pos-

formal de representação política. As organi-

tura pode ser avaliado à luz de análise feita

zações sociais são importantes como parte

por Paulo Freire, que propugnava a esperan-

do controle social das políticas públicas e as

ça como valor fundamental para o indivíduo,

organizações sociais quilombolas são partes

com a crença de que pode ser construída

integrantes desse universo.

uma comunidade de significados em torno

Enquanto o Estado brasileiro não assegurar aos quilombolas o recurso básico essencial – a sua territorialidade – os movimentos sociais deverão reforçar a importância dos quilombolas na qualidade de sujeitos sociais que, por meio de ações políticas, fazem valer suas reivindicações e direitos.

Festas

de experiências básicas da vida humana de que todos compartilhem (FREIRE, 1975).

Trata-se de um saber que vai sendo transmitido e assimilado de forma lenta e permanente, dando oportunidade de reflexão sobre a necessidade de mudança, sempre que as circunstâncias o exigirem, para que a comunidade possa adequar-se às novas condições do momento. É durante os rituais que os valores que a comunidade reputa essen-

Quando se constata a riqueza criativa das

ciais se condensam e são reafirmados e rene-

vivências dos moradores das comunidades

gociados, constituindo, assim, um currículo

remanescentes de quilombos, principalmen-

invisível através do qual são transmitidas as

te dos mais velhos, no que diz respeito ao

normas do convívio comunitário. Sem uma

uso das ervas medicinais, no modo de traba-

intenção explícita, este currículo invisível

lhar a terra, de tirar dela seu sustento, nas

vai sendo desenvolvido, dando às crianças o

linguagens gestuais, na música, nas festas,

necessário conhecimento de suas origens e

no modo de se divertir, de cantar, dançar

do valor de seus antepassados, mostrando

e rezar vê-se a importância de ter acesso a

quem é quem no presente e apontando para

esse conhecimento. É esse conhecimento

as perspectivas futuras.

que constitui o contexto em que se tecem as teias de significados que recriam inces-

Currículo invisível é a transmissão dos valo-

santemente sua cultura e sua identidade

res, dos princípios de conduta e das normas

contrastiva, isto é, a afirmação da diferença.

de convívio, ou, numa palavra, dos padrões

Nas práticas dos moradores das comunida-

socioculturais inerentes à vida comunitária,

169


de maneira informal e não explícita, permi-

a não esmorecer na árdua luta pelo reco-

tindo uma afirmação positiva da identidade

nhecimento de suas terras, que animam a

dos membros de um grupo social.

comunidade a fortalecer os laços comunitários participando das associações, que se

A construção desse currículo invisível cons-

informam e repassam para os comunitários

titui, assim, um processo histórico, no qual

essas informações, novos saberes e formas

a linguagem e, em especial, as linguagens

organizativas, fomentando redes de multi-

musicais e corporais, desempenham um pa-

plicadores que revelarão novas lideranças.

pel essencial.

Gênero Lideranças Vale salientar o papel da mulher quilombola As lideranças exercem um papel transformador junto às suas comunidades, atuam politicamente em favor delas e estão engajadas em projetos sociais e culturais. Há uma percepção geral de que é preciso buscar um novo espaço de diálogo com o Estado e de que é essencial fazer algo com mais consistência e consequência política. Existem características básicas para que um indivíduo possa se tornar um líder, tais como visão, integridade, conhecimento da realidade, autoconfiança, maturidade, capacidade para ouvir e dialogar e disposição/vontade de assumir riscos, dentre outros. Os líderes são,

na organização da comunidade. Historicamente, citamos a ocorrência do movimento da Balaiada (1838 - Maranhão) no qual, apesar das lideranças da Balaiada serem homens, as mulheres tiveram um papel muito importante na luta, que foi a de GUARDIÃS DAS COMUNIDADES. Cuidando das criações, da agricultura, das filhas, dos idosos, dos recursos naturais, providenciando os alimentos para os refugiados, escondendo-os, orientando crianças sobre a luta, rezando, curando com ervas medicinais, as mulheres foram e continuam sendo peças fundamentais na luta quilombola.

em regra, pessoas muito persistentes, com

Além do trabalho diário que fazem na roça e

grande carisma, motivadas pelo seu instinto

que sustenta sua família, também cumprem

e detentores da capacidade de decidir.

jornada como professoras, agentes de saúde, parteiras, quebradeiras de coco, dentre

No âmbito das comunidades remanescentes

outras atividades.

de quilombos, os mais velhos, as mulheres, ou um conselho de mais velhos constituem-

Atualmente, muitas mulheres quilombolas

-se nas lideranças que levam a comunidade

estão organizadas em associações, exercen-

170


do cargos de tomada de decisão, cumprindo

DEMO, Pedro. Introdução à Sociologia – com-

mandato político ou engajadas em coorde-

plexidade, interdisciplinaridade e desigual-

nações de mulheres quilombolas.

dade social. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2002.

REFERÊNCIAS ______. Exclusão social – categorias novas ALMEIDA, Alfredo. Nas Bordas da Política Ét-

para realidades velhas. In: Ser Social – Revis-

nica: os quilombos e as políticas sociais. Texto

ta do Programa de Pós-Graduação em Políti-

apresentado XXIV Reunião Brasileira de An-

ca Social do Departamento de Serviço Social

tropologia – “Nação e Cidadania”. Recife,

da Universidade de Brasília. Vol. 3, julho a

2004.XXIV Reunião Brasileira de Antropolo-

dezembro, 1998.

gia – “Nação e Cidadania”. Recife, 2004. MOURA, Gloria. Ritmos e ancestralidade na CASTRO, Alba Tereza Barroso de. Espaço Pú-

força dos Tambores Negros. Tese de Doutora-

blico e Cidadania: uma introdução ao pensa-

do. São Paulo: USP, 1997.

mento de Hannah Arendt. In: Serviço Social e Sociedade – Revista Quadrimestral de Servi-

_______________. Curso de Direitos Huma-

ço Social da Universidade de Brasília. Tema:

nos – Formação Política para Quilombolas –

Espaço Público, Cidadania e Terceiro Setor.

orientações para reuniões de multiplicação.

Ano XX, nº 59, Brasília, março 1999.

Brasília: IbrAP/PROACQ , 2007, mimeo.

171


V. Kalunga, escola e identidade – experiências inovadoras de educação nos quilombos1 Ana Lucia Lopes2

Introdução

historiador Flávio Gomes, uma intensa rede de relações econômicas e sociais, que possi-

Ao se falar em quilombos, no Brasil, as pa-

bilitava a manutenção dos quilombos e, ao

lavras fuga, resistência e liberdade apare-

mesmo tempo, as fugas faziam parte de es-

cem imediatamente no imaginário que te-

tratégias montadas pelos escravizados, que

mos acerca do tema. Estudos recentes3 têm

incluíam até esconder escravos em fazendas

mostrado que novos conceitos devem ser

vizinhas, o que significava haver um circuito

incorporados à nossa compreensão do que

de comunicação entre escravos nas fazen-

venham a ser os quilombos e sua história

das e quilombolas.

em nosso país. No caso dos Kalunga, território quilombola Primeiro conhecido por mocambo (entre os

formado no final do século XVIII, na região

séculos XVI e XVII), o nome quilombo desig-

da Chapada dos Veadeiros, norte de Goiás, a

nava grupos acima de três escravos fugidos.

memória dos mais velhos relembra histórias

Muitos foram os quilombos ao longo da nos-

contadas pelos seus antepassados a respeito

sa história, e entre eles, Palmares é conside-

de incursões, que chegavam a durar cerca

rado um símbolo. O isolamento geográfico

de um ano, quando iam até Belém para con-

de grande parte dos quilombos não estava

seguir, entre outras coisas, sal ou panelas de

acompanhado da distância social e econô-

ferro. A importância e os desafios dessas via-

mica entre os quilombolas, os escravos, os

gens eram tais que, quando as embarcações

libertos e os indígenas. Havia, segundo o

saiam, os foliões do Divino vinham para can-

1 Educação Quilombola – 2007 / PGM 4. 2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Co-autora de Uma história do povo Kalunga. Livro de leitura e Caderno de Atividades - primeiro projeto pedagógico para escolas em comunidades remanescentes de quilombos. Brasília, MEC/UNESCO, 2001. 3 REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.) Liberdade por um fio. História dos Quilombos no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 1996.

172


tar, invocando o Espírito Santo na proteção

de terceira e quarta séries de uma comuni-

dos viajantes. Eles levavam farinha, arroz,

dade remanescente de quilombo localizada

feijão, carne de gado salgada, pena de ema

em Goiás – os Kalunga. As questões envol-

e ouro, para vender ou trocar pelo que ne-

vidas nesse pedido baseavam-se em obser-

cessitavam4. Esse é um exemplo, que a me-

vações etnográficas que davam conta de

mória de quilombolas confirma, da comple-

um processo discriminatório abusivo que

xa rede de relações entre os moradores dos

as crianças Kalunga sofriam quando iam

quilombos e outros grupos sociais.

estudar nas escolas fora da área quilombola. Essas escolas ficavam nas sedes dos mu-

Assim, há muito que pesquisar e aprender

nicípios vizinhos e ofereciam os cursos de

sobre a história dos quilombos, para além da

quinta a oitava séries, já que as escolas da

fuga e da resistência. Atualmente, a situação

região Kalunga só tinham classes de primei-

das diversas comunidades remanescentes de

ra a quarta séries, em sua grande maioria

quilombos nos traz questões, entre as quais

multisseriadas e com professoras leigas.

a da identidade, do pertencimento, da posse da terra, da educação, da saúde, do trans-

Frente a esse quadro, a questão da autoesti-

porte, do desenvolvimento sustentável, que

ma e da identidade positiva Kalunga deveria

não podemos deixar de discutir, inclusive na

ser o eixo orientador do conteúdo dos livros

pauta das políticas públicas.

solicitados pelo MEC. Os registros de uma pesquisa de recorte etnográfico que havia

Neste sentido, o texto se propõe a refletir sobre uma experiência de educação, na região Kalunga, que considerou os temas acima citados.

sido realizada nas escolas por pesquisadores da Universidade de Brasília - UnB, além de uma série de materiais acerca da história da comunidade Kalunga e suas principais questões atuais, foram colocados à nossa dispo-

Escola e Identidade

sição; entre eles, contamos com desenhos e cadernos de lição dos alunos, que nos foram

Nos últimos meses do ano 2000, recebi o

entregues.

convite para integrar uma equipe responsável por conceber e escrever, a pedido da

Em primeiro lugar, tratava-se de saber que

Secretaria de Ensino Fundamental do MEC,

concepção pedagógica conduziria à elabo-

dois livros didáticos destinados aos alunos

ração dos livros e, a partir dessa reflexão,

4 GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos. Mocambos, Quilombos e Comunidades de Fugitivos no Brasil. São Paulo, Editora UNESP & Editora Polis, 2005

173


ao considerar a realidade da sala de aula

to de fora. Eles sabiam que precisavam am-

Kalunga, propus uma alteração do projeto,

pliar os seus recursos, e o nosso dilema era

na perspectiva pedagógica. Ao invés de dois

o de trazer um repertório de conhecimen-

livros didáticos, um para a terceira e outro

tos novos, mas fazendo com que, ao mesmo

para a quarta séries, escreveríamos dois li-

tempo, os conhecimentos por eles produzi-

vros, sendo um deles um livro de história, e o

dos não perdessem lugar para a novidade de

outro, um caderno de atividades. A proposta

fora. Nosso trabalho se construiu na tensão

era contemplar todos os alunos de uma clas-

entre a valorização do conhecimento Kalun-

se multisseriada com conteúdos que disses-

ga produzido historicamente e o direito de

sem respeito à autoestima, à identidade e à

acesso ao conhecimento do novo por eles

valorização do patrimônio cultural por eles

reivindicado.

construído. Não fazia sentido, de um ponto de vista pedagógico vinculado estreitamente

Depois de alguns meses de trabalho inces-

a uma abordagem antropológica de educa-

sante, o material ficou pronto. Vale lembrar

ção, tratar de autoestima com uns, enquan-

que, nesse processo, pudemos contar com a

to outros, no mesmo momento, faziam as

colaboração de diversas pessoas e institui-

lições tradicionais.

ções, que prontamente nos acudiram quando faltavam referências sobre determinados

A equipe reescreveu o projeto, consubstan-

aspectos da vida e da história Kalunga, o que

ciado desta vez em uma perspectiva antro-

evidenciava ainda mais a relevância do Pro-

pológica e pedagógica, e o encaminhou aos

jeto Vida e História Kalunga, que originou o

responsáveis no Ministério da Educação, que

livro Uma história do povo Kalunga 5, acompa-

concordaram com a nova justificativa e seus

nhado do Caderno de atividades e do encarte

argumentos. Passamos a estudar profunda-

de orientação pedagógica para o professor.

mente a comunidade Kalunga, para então

Nesse encarte, procuramos estabelecer com

escrevermos um livro de leitura, um cader-

os professores, que em grande parte eram

no de atividades e um encarte para o profes-

professores leigos, um diálogo a distância,

sor, que contemplassem questões curricula-

como uma carta informal que lhes enviás-

res de primeira a quarta séries, em diálogo

semos, para início de conversa... Talvez valha

com conteúdos referentes à identidade e ao

a pena transcrevê-la aqui, pois ela resume

pertencimento, e que trouxessem, segundo

o espírito com que todo o trabalho foi rea-

pedido dos próprios moradores, conhecimen-

lizado.

5 MONTES, Maria Lucia e LOPES, Ana Lucia. Uma história do povo Kalunga. Brasília, MEC/UNESCO, 2001.

174


Caro Professor

nenosas e daquelas que curam. E existem ainda outros “capítulos” que tratam dos

Gostaríamos de conversar com você so

números e das contas e são chamados

bre uma história – aliás, uma longa his-

de Matemática, outros que tratam dos

tória – da qual você é um contador.

mapas, dos países e dos Estados. Outros tratam da leitura, da escrita, do desco-

Nós, professores, somos, na verdade,

brimento do Brasil, da Independência.

contadores de história. Contamos a his-

Nós, professores, temos essa função ma-

tória da humanidade para nossos alunos.

ravilhosa, nos tempos de hoje, que é a de

Nisso nós nos parecemos com os “mais

contar essa história e ensinar, em poucos

velhos” de uma tribo indígena ou de ou-

anos, conhecimentos importantes que le-

tras civilizações antigas, que tinham o

varam milhares de anos para serem cons-

conhecimento das coisas da natureza

truídos.

e dos seres vivos, das coisas sagradas e dos valores que dão sentido à vida e que

Você já parou para pensar em quantos

passavam esse conhecimento aos mais

anos a humanidade levou para descobrir,

jovens, sendo por isso muito respeita-

inventar e aprender tudo aquilo que hoje

dos. Só que a história que nós contamos

ensinamos nas escolas? Quantos homens

não é a história de um só povo. Temos

não sobreviveram a venenos de plantas

a missão de contar a história de muitos

até descobrirem que muitas delas po-

povos, em tempos diferentes, e que tam-

diam curar e se transformar em remé-

bém tiveram modos diferentes de viver.

dios feitos nos laboratórios? Como foi que aprenderam a domesticar alguns ani-

Esta é a história da humanidade que nós

mais, que passaram assim a auxiliá-los

contamos hoje. É uma tarefa muito gran-

na luta diária pela sobrevivência? Quanto

de, pois ninguém conhece essa história

tempo o homem andou pelo mundo sem

inteira e por isso nós costumamos dividi-

mapas para orientá-lo nas rotas de suas

-la em “capítulos”. Às vezes os “capítulos”

viagens e como surgiram os primeiros

dessa história que ensinamos são chama-

mapas? Certamente, o homem observava

dos de Português, História, Geografia.

a natureza, o céu, de noite e de dia, os

Outras vezes recebem outros nomes,

mares, os ventos, as chuvas. Mas demo-

como Ciências, por exemplo, quando

rou muito tempo para que, observando o

tratamos do ar, dos animais selvagens e

que acontecia na natureza, comparando

dos animais domésticos, das plantas que

um dia com outro, uma noite com ou-

usamos como alimento, das plantas ve-

tra, a posição da lua, dos planetas e das

175


estrelas, o ciclo das estações, ele pudes-

nossa vida e ao longo de vários anos de

se concluir que essas coisas se repetiam

experiência, ensinando nossos alunos.

com regularidade e podiam indicar quan-

Mas o que faz de nós professores é esse

do plantar e colher e servir para orientar

compromisso de ensinar o que aprende-

suas rotas de viagem. Foi então que ele se

mos, e é por isso que precisamos apren-

tornou capaz de expressar tudo isso na

der sempre e sempre mais. Precisamos

forma de desenhos e da escrita, inventan-

fazer isso para que nossos alunos sejam

do todo esse conjunto de conhecimentos

capazes de se lembrar no futuro dessa

que temos hoje.

história que lhes ensinamos, como nós nos lembramos do que aprendemos com

Falando assim, até parece que o profes-

outros que nos ensinaram. Como para

sor deve saber tudo sobre todas as coisas

nós hoje, também para eles, no futuro,

do mundo. Impossível. Essa história da

esses conhecimentos serão necessários

humanidade tem muitos e muitos “capí-

em sua vida.

tulos” e naturalmente nós não os conhecemos todos. Mas nós, professores, pre-

Este livro com o qual você vai trabalhar

cisamos querer saber sempre mais sobre

de agora em diante, Uma história do

esses conhecimentos que são os capítu-

povo Kalunga, é um pequeno capítulo

los dessa história e sobre como ensinar

dessa história grande da humanidade

tudo isso aos nossos alunos. Porque o

que ensinamos. Mas é um capítulo mui-

homem foi transformando a natureza e

to importante e que deve ser aprendido

seu modo de se relacionar com ela e com

com carinho, porque ele irá servir de

os outros homens. E é por causa dessas

base para você ensinar aos seus alunos

transformações que nós temos que pen-

outros capítulos daquela história maior.

sar também que às vezes é necessário

E, sobretudo, porque os alunos que irão

mudar o nosso jeito de ensinar. Porque

aprender tudo isso são as crianças do

só assim poderemos ir sempre encon-

povo Kalunga e as que vivem nos municí-

trando uma forma cada vez melhor de

pios de Cavalcante, Monte Alegre de Goi-

contar para os alunos essa grande histó-

ás e Teresina de Goiás, onde está situado

ria que não paramos nunca de aprender.

o território Kalunga. É por isso que esse livro é também uma história que nós

Sem dúvida, nós, que somos professo-

contamos e que vocês vão contar aos

res, já aprendemos muito e precisamos

seus alunos. Uma história do povo Ka-

reconhecer o valor daquilo que sabe-

lunga. Quem é Kalunga sabe. Quem não

mos, daquilo que fomos aprendendo em

é Kalunga precisa aprender.

176


O livro de leitura foi desenvolvido como uma

As unidades que organizaram o Caderno de

história que estivesse sendo narrada, sobre

Atividades se referiam aos temas percebidos

a saga de um povo descendente de quilom-

nas entrevistas, que muitas vezes revelaram

bolas que, ao longo da sua história, foi capaz

tensões vividas por eles, a ampliação de co-

de construir uma identidade própria e um

nhecimentos e as competências dos alunos.

patrimônio cultural que deveria ser conhe-

Por exemplo, o trabalho proposto com ma-

cido e valorizado. O Caderno de atividades

pas, partiu de dois eixos; a facilidade que ti-

foi organizado de modo a garantir a parti-

nham em desenhar na perspectiva vertical

cipação dos alunos de todas as séries, da 1a

e a necessidade de aprender sobre mapas

à 4a série. Ele tinha a função de recuperar

em função da questão da posse da terra. São

e retomar os conteúdos do livro de leitura.

quatro as unidades: 1) Olhar o mundo; 2) Nós

Cada atividade começava com um trabalho

no mundo; 3) Perto e longe; 4) O passado en-

comum, a ser feito por todos os alunos. De-

contra o futuro e um encarte com um que-

pois, para cada série se pedia que os alunos fizessem uma tarefa particular. Foi escolhida uma cor para cada série, determinando-se que a 1ª série seria amarela, a 2ª azul, a 3ª laranja e a 4ª verde. Em cada folha que tivesse essa cor, o aluno encontraria a parte da atividade que correspondia à sua série e deveria realizá-la sob a orientação do professor.

bra-cabeça do mapa do Brasil político. Não abrimos mão da qualidade e da beleza do material, tanto para o livro de leitura como para o Caderno de Atividades. Assumimos compromissos pessoais para garantir que as crianças Kalunga vissem a sua imagem com dignidade e destaque, e para isso contamos com fotógrafos que se tornaram aliados e parceiros dessa nossa empreitada.

Como procedimento didático-pedagógico, o

Depois do material pronto, evidenciaram-se

Caderno de Atividades se orientou em séries

os resultados do nosso trabalho e muito nos

didáticas como possibilidade de abrir ao pro-

gratificou saber da reação positiva de orgu-

fessor unidades curriculares que contem-

lho e alegria das crianças e dos adultos, ao

plassem diferentes áreas do conhecimento.

se verem retratados com beleza e sofistica-

Os alunos retomariam o Caderno de Ativi-

ção. Tudo isso fazia parte da concepção do

dades nas séries seguintes, aprofundando o

projeto, que não separou forma de conteú-

conteúdo estudado, porém, na perspectiva

do, pois é isso que se espera de um trabalho

da série atual. Revisitar os conteúdos dentro

educacional que, fundado numa perspectiva

das novas condições das séries e faixas de

antropológica, busca refletir e fazer refletir

idade foi o princípio pedagógico orientador

sobre as relações que balizam a construção

desse livro.

de identidades e a noção de pertencimento.

177


VI. Lei nº 10. 639/2003 e Educação Quilombola1 Denise Botelho2

Inclusão educacional e população negra brasileira

A

partir

desses

instrumentos,

os(as)

gestores(as) podem contribuir para que a escola transcenda a transmissão do conhe-

Aspectos da cultura afro-brasileira precisam ser percebidos e explorados por todos e todas que participam do sistema educacional brasileiro, como estratégia para minimizar os preconceitos, as discriminações e o racismo que imperam em nossa sociedade e atingem, sobretudo, estudantes negros e negras de nosso país. No campo das políticas públicas educacionais, contamos com dois marcos legais importantes para a inclusão da população negra e, principalmente, para sua

cimento e seja, também, um espaço de reflexões críticas acerca dos processos de ensino/ aprendizagem de inclusão. Com base em práticas de gestão democrática, podem ainda estimular que a ação dos(as) educadores(as) possibilite a reelaboração dos conteúdos curriculares, a análise reflexiva do contexto sociorracial e a reelaboração de um saber direcionado para a cidadania (BOTELHO, 2000, p. 14). Mesmo porque, cidadania supõe educar na e para a diversidade:

permanência no sistema educacional brasi-

(...) conhecer e valorizar a pluralidade do

leiro: o Artigo 26 da Lei de Diretrizes Bases

patrimônio sociocultural brasileiro, bem

da Educação Nacional (LDB), que estabelece

como aspectos socioculturais de outros

a obrigatoriedade do ensino de História e

povos e nações, posicionando-se contra

Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica;

qualquer discriminação baseada em di-

e a Resolução CNE n. 01/2004, que instituiu

ferenças culturais, de classe social, de

as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

crença, de sexo, de etnia ou outras ca-

Educação das Relações Étnico-Raciais e para

racterísticas individuais e sociais (Brasil/

o Ensino de História e Cultura Afro-Brasilei-

Secretaria de Educação Fundamental,

ra e Africana.

1998, p. 7).

1 Educação Quilombola – 2007 / PGM 5. 2

Professora no Departamento de Planejamento e Administração (PAD) da Faculdade de Educação da UnB.

178


Com efeito, as discussões em torno da edu-

ferentes fontes da cultura nacional a todos

cação inclusiva têm avançado e promovido

brasileiros” (Resolução CNE n. 01/2004).

a reversão de alguns paradigmas educacionais vigentes, a exemplo das adequações dos espaços escolares para deficientes físicos, a ampliação de vagas na Educação Indígena e o fortalecimento da educação no campo. Entretanto, no que se refere à educação em prol da valorização da população negra brasileira, ainda se verificam inúmeras resistências. Precisamos, pois, identificar políticas públicas que atendam às necessidades desse contingente populacional, que não se vê representado e valorizado nas experiências educacionais. No caso específico da população remanescente de quilombos, precisamos avançar muito mais, posto que, entre os afro-brasileiros, esse grupo soma os maiores índices de exclusão educacional. Educar para a igualdade tem como pressuposto uma educação anti-racista3. E garantir a equidade entre os diversos grupos étnico-raciais depende de inúmeras ações, entre as quais conhecer e trazer, para o cotidiano escolar, conteúdos que estimulem a participação de alunos e alunas negras como ato-

É importante que educadoras e educadores estimulem seus alunos e alunas a reconhecerem a legitimidade dos diferentes saberes presentes na sociedade e perceberem como cada grupo sócio-racial contribuiu para a formação da identidade cultural do país. Diante de uma população escolar educacional multirracial, como a brasileira, mostram-se imprescindíveis novas práticas didático-pedagógicas que re-signifiquem os conteúdos curriculares e as atividades de sala de aula, por meio de recursos diferenciados de ensino, como os presentes nas comunidades quilombolas e quase sempre não apropriados por educadores e educadoras como alternativas didático-pedagógicas. Mesmo com avanços significativos na área educacional para as chamadas “minorias”, a equidade étnico-racial em território brasileiro ainda necessita de várias ações sociopolíticas, isso para atingir o que preconiza a Resolução n. 01/2004 do Conselho Nacional de Educação, que versa sobre:

res sociais ativos, com a intencionalidade de

(...) valorização e respeito às pessoas

promover a igualdade de oportunidades e o

negras, à sua descendência africana,

exercício da cidadania, como prevê a legisla-

sua cultura e história. Significa bus-

ção brasileira, que garante “igual direito às

car compreender seus valores e lutas,

histórias e culturas que compõem a nação

ser sensível ao sofrimento causado por

brasileira, além do direito de acesso às di-

tantas formas de desqualificação: apeli-

3 Educação que promova um convívio harmonioso entre os diferentes, não permitindo que os preconceitos se concretizem em preconceitos manifestos, discriminações, xenofobias, sexismos e racismos.

179


dos depreciativos, brincadeiras, piadas

ciedade secularmente racista, na qual

de mau gosto sugerindo incapacidade,

técnicas de seleção profissional, cultu-

ridicularizando seus traços físicos, a

ral, política e étnica são feitas para que

textura de seus cabelos, fazendo pouco

ele permaneça imobilizado nas camadas

das religiões de raiz africana. Implica

mais oprimidas, exploradas e subalterni-

criar condições para que os estudantes

zadas (MOURA, 1994, p. 160).

negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em

Após a abolição da escravidão, uma aparen-

virtude de seus antepassados terem sido

te integração interétnica e inter-racial sus-

explorados como escravos, não sejam

tentou por muito tempo a ideia de uma de-

desencorajados de prosseguir estudos,

mocracia racial brasileira, o que dificultou a

de estudar questões que dizem respeito

percepção das práticas racistas no cotidiano

à comunidade negra (2002, p. 12).

e camuflou as condições perversas de desigualdades a que os negros foram e, ainda

Permanece, então, na ordem do dia a se-

estão, submetidos.

guinte pergunta: Como valorizar e respeitar o contingente populacional afro-brasileiro enfrentando as imagens preconceituosas acionadas a partir do fato de que a maioria dos negros e negras brasileiros teve seus ancestrais sequestrados de várias nações do Continente Africano e as suas trajetórias terem sido subjugadas e escamoteadas da história oficial do país? Responder a essa questão não é tarefa simples, é preciso pensar o contexto sócio-his-

Temos consciência da importância das várias iniciativas que vêm sendo realizadas em território nacional em prol de uma sociedade étnico-racial realmente igualitária, mas esperar que atitudes isoladas, fragmentadas e de responsabilidade exclusiva dos negros possibilitem uma transformação social eficaz nos parece ingenuidade. Sem o desenvolvimento de políticas públicas que privilegiem a igualdade nas relações raciais, tais

tórico do Brasil. Com a extinção do regime

como a adoção de reserva de vagas (cotas)

escravocrata no Brasil, o contingente popu-

em instituições de ensino superior, não

lacional negro não teve sua vida social ime-

acreditamos que, a médio ou longo prazos,

diatamente alterada, uma vez que foram li-

tenhamos resultados positivos no combate

bertos sem qualquer apoio socioeconômico,

ao racismo no Brasil.

sendo ainda obrigados: Por que políticas de ações afirmativas para (...) a disputar a sua sobrevivência social,

negros e negras brasileiros? Porque, ainda,

cultural e mesmo biológica em uma so-

são os negros o grande contingente popu-

180


lacional vivendo em condições socioeconô-

No campo educacional, é preciso salientar

micas precárias. Trata-se de uma herança de

que, por falta de ações pedagógicas per-

um processo de “libertação” da escravidão

manentes de valorização dos negros(as), o

desconexo e indiferente aos destinos dos

racismo tem tornado a escola um palco de

negros e negras libertos, sem assistência e

violências raciais. A legislação atual garante

garantias que os protegessem na transição

possibilidades de reversão do quadro. O Esta-

para o sistema de trabalho livre. O “liberto”

tuto da Criança e do Adolescente, em seu Ar-

ficou à mercê de sua própria sorte, tornan-

tigo 58, garante à criança e ao adolescente o

do-se responsável por sua pessoa e por seus

direito de desfrutar de sua herança cultural

dependentes, diferentemente dos emigran-

específica. A Constituição Federal estabele-

tes, que foram convidados a trabalhar em

ce que os conteúdos do Ensino Fundamental

terras brasileiras com direitos trabalhistas

devem assegurar o respeito aos valores cul-

garantidos e direito à moradia. Apesar de to-

turais (Artigo 210). A LDB determina que os

das as dificuldades, a população negra tem

projetos, programas e currículos assegurem

lutado arduamente para alcançar um status

o respeito às diferenças culturais, sociais e

de igualdade, de direitos de cidadania e para

individuais de todos aqueles que frequen-

que o racismo seja minimizado.

tam a escola, bem como estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura

Devemos lembrar que, historicamente, o

Afro-Brasileira na Educação Básica.

contingente populacional afrodescendente se encontra vulnerável a processos discrimina-

O baixo nível de escolaridade da população

tórios, mantendo-se em situação social desfa-

negra retroalimenta sua exclusão do merca-

vorável e de subordinação aos demais grupos

do de trabalho, agravada pelas atuais mu-

sócio-raciais brasileiros (BOTELHO, 2000; SIL-

danças advindas do processo antidemocrá-

VA, 1995; HASENBALG E SILVA, 1988; ROSEM-

tico de mundialização econômica. Antigas

BERG, 1987; REGO, 1976). Para o equaciona-

reivindicações dos diversos segmentos e do

mento de tais disparidades, são necessárias

movimento negro organizado e a sensibili-

políticas públicas direcionadas aos afro-brasi-

dade de alguns gestores para a situação das

leiros em todos os segmentos sociais.

desigualdades raciais4 indicam a necessidade

4 A preparação para a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas realizada em Durban, África do Sul, no período entre 31 de agosto a 7 de setembro de 2001 deflagrou, no Brasil, diversos encontros, em todo território nacional, com o objetivo de desenhar propostas de ações afirmativas para superar os problemas pautados pelos grupos representantes dos movimentos dos negros, dos povos indígenas, das mulheres, dos gays, lésbicas, bissexuais e transexuais . Ao final do encontro em Durban foram redigidos uma Declaração e um Programa de Ação, com o controle social, pela sociedade civil para que os resultados sejam respeitados e as medidas reparatórias sejam implementadas.

181


de implementação de políticas de ações afir-

Secretaria de Educação Fundamental,

mativas5 educacionais de forma prioritária.

1998, p.7).

A legislação educacional brasileira permite

É importante lembrar que ações afirmativas

que educadoras e educadores atuem para

são importantes para a garantia de uma so-

minimizar as desigualdades étnico-raciais

ciedade democrática. Contudo, muitas são

nos espaços educacionais. Inicialmente com

as resistências às políticas públicas educa-

os Temas Transversais e um exercício de boa

cionais dirigidas para a população afro-bra-

vontade e de consciência política, alguns

sileira. É preciso superar o baixo preparo de

educadores já abordavam as desigualdades

gestores e gestoras no trato dos problemas

étnico-raciais presentes na sociedade brasi-

sociais brasileiros e, em especial, aqueles

leira a partir dos pressupostos do tema da

relacionados com os chamados excluídos

“Pluralidade Cultural”. Desde 2003, a Lei n.

sociais – negros, quilombolas, mulheres,

10.639/2003, que altera a LDB estabelecen-

indígenas, deficientes físicos, pessoas com

do a obrigatoriedade do ensino de História

orientações sexuais diferenciadas e outros

e Cultura Afro-Brasileira na Educação Bá-

– para que a equidade racial e de gênero es-

sica, permite uma ação mais contundente

tejam de fato corporificadas na nossa socie-

para valorização da cultura negra brasileira

dade.

e africana. Para subsidiar esse exercício de promoção de cidadania plena de todos e todas, é preciso compreender

REFERÊNCIAS

(...) a cidadania como participação so-

BOTELHO, D. M. Aya nini (Coragem). Educa-

cial e política, assim como exercício de

dores e Educadoras no enfrentamento de

direitos e deveres políticos, civis e so-

práticas racistas em espaços escolares. São

ciais, adotando, no dia-a-dia, atitudes

Paulo e Havana. Dissertação (Mestrado) –

de solidariedade, cooperação e repúdio

Programa de Pós-Graduação em Integração

às injustiças, respeitando o outro e exi-

da América Latina da Universidade de São

gindo para si o mesmo respeito (Brasil,

Paulo, 2000.

5 No Brasil, principalmente nos três últimos anos, com o sistema de acesso diferenciado para negros e indígenas, adotado em algumas instituições de ensino superior, aumentou a discussão sobre ações afirmativas. As cotas têm sido o cerne da questão e a discussão mais ampliada sobre ações afirmativas fica delegada a um plano de muitas opiniões e de poucas reflexões críticas. Grupos historicamente desfavorecidos precisam de políticas afirmativas pontuais para modificar o contexto social vigente. Ações afirmativas são bem aceitas nos partidos políticos por meio da ampliação da participação das mulheres nas legendas partidárias e nos concursos públicos, com reservas de vagas para deficientes físicos. Infelizmente, quando se trata de discriminação positiva para negros(as) e indígenas, a população recusa tais ações e não percebe os mecanismos racistas, presentes no Brasil, que têm alijado sistematicamente indígenas e negros da ascensão social.

182


BRASIL. Secretaria de Educação Fundamen-

HASENBALG, C. A.; SILVA, N. do V. Estrutura

tal. Parâmetros Curriculares Nacionais:

social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice.

terceiro e quarto ciclos. Apresentação dos

Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.

temas transversais/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo, Anita, 1994.

______. MEC. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-

ROSEMBERG, F. (1987). Relações raciais e

-Raciais e para o Ensino de História e Cultura

rendimento escolar. In: Cadernos de Pesquisa

Afro-Brasileira e Africana (2007). www.mec.

da Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n. 63,

gov.br/secad/diversidade/ci

1987.

______. Resolução CNE n. 01/2004 (2007).

SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro

www.mec.gov.br/secad/diversidade/ci

no livro didático. Salvador: CED, 1995.

183


D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS

Documentário: Africanidades Brasileiras e educação1 Azoilda Loretto da Trindade2 “(...) o que aconteceu, no Brasil, é que os africanos [e as africanas] foram tão fundo na construção desse país, que hoje eles [elas] já não são eles [elas] eles [elas] somos nós, os brasileiros [as brasileiras]”3

Construir um documento que dialogue com

tão subliminar, às vezes, que são quase

outro/outros, no caso, com um documentá-

imperceptíveis.

rio e, ainda, com outras séries do programa Salto para o Futuro, sobre a temática das Africanidades, é um grande desafio. Um desafio que se desdobra em outros:

• Desafio de conseguir tocar os corações e as mentes dos professores e professoras brasileiras que tecem, re-tecem, constroem cotidianamente a nossa escola, no

• Desafio diante da riqueza histórica e cultural (no sentido mais pungente, visceral e amplo do termo) do patrimônio legado pelos africanos e pelas africanas a toda a humanidade.

que se refere à importância e à urgência de se consolidar uma escola que respeite, sem hierarquizar, os diversos saberes e fazeres das diferentes matrizes culturais e étnicas que constituem nossa brasilidade, e, no caso mais específico deste material,

• Desafio de não reproduzir preconceitos e

as africanidades.

estereótipos que nos foram transmitidos

1

por uma educação racista, elitista e ex-

• O desafio de convidar todos os educado-

cludente, que todas nós, pessoas que edu-

res que demonstram indignação diante

cam, certamente, recebemos, de maneira

das injustiças a ampliar a rede dos que

Ano XVIII – Boletim 20 – Outubro de 2008.

2 Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ. Organizadora desta coletânea e Consultora do Documentário Africanidades brasileiras e educação. 3 Retirado do documentário “Povo Brasileiro” (baseado na obra de Darcy Ribeiro).

184


sabem do convite que a Vida, neste mo-

de gênero, de inserção social e cultural, de

mento histórico da nossa existência, nos

condição econômica, de aparência física, das

apresenta: UMA ESCOLA DE QUALIDADE,

chamadas deficiências... Nossa compreensão

INCLUSIVA, DEMOCRÁTICA, DO E PARA O

é de que as discriminações e os preconceitos

POVO BRASILEIRO.

aos quais os seres humanos são submetidos são vários e de tipos os mais diversos. Contu-

• Desafio que é alimentado por nossa indignação e inquietação diante do racismo e de qualquer expressão de injustiça social e, consequentemente, que se desdobra na não submissão, na não sujeição a circunstâncias e situações racistas e injustas presentes no nosso cotidiano, inclusive, escolar. Somos, também, alimentadas por um imenso amor e fé na Vida. O documentário Africanidades brasileiras e educação tem como objetivo principal ser um instrumento que possa ser utilizado na formação de docentes, gerando estudos, reflexões e debates acerca das africanidades brasileiras em ambientes formais e não-formais de aprendizagem, na perspectiva de potencializar positivamente a presença negra na sociedade brasileira. Como historicamente percebemos uma minimização das temáticas das africanidades,

do, abordaremos as africanidades brasileiras4 em função dessas premissas: um cronificado quadro de desigualdades aos quais os negros são submetidos; historicamente, estarmos aos 120 anos da abolição da escravatura; termos uma lei que institui a obrigatoriedade do ensino da história e culturas africanas e afro-brasileiras nos currículos escolares, ampliada para as questões indígenas. Tudo isto nos leva a pensar o que sabemos sobre a nossa afro-ascendência e a nossa ascendência indígena, além de estereótipos. Compreendemos que os preconceitos, os racismos e as discriminações não se circunscrevem aos negros e às negras, contudo, enfocaremos as africanidades brasileiras, como uma contribuição ao longo processo de construção de uma pedagogia voltada para a compreensão, a valorização e o respeito à nossa brasilidade.

muitas vezes vistas como secundárias em relação às temáticas “universais” ou outras,

África não é um país

achamos importante destacar a nossa compreensão acerca da amplitude da vida hu-

Parece brincadeira, mas muitas vezes ouvi-

mana e suas diversas expressões: de etnia,

mos pessoas se referirem à África como sen-

4 O Salto para o Futuro, ao longo da sua história, já tem uma tradição de documentários temáticos, inclusive,sobre questão indígena, cultura popular, dentre outros.

185


do um país ou um continente homogêneo,

fico impressionada com o que pode ter sig-

ou como “o local onde Tarzan viveu”... Enfim,

nificado para ela aquela ilustração.

várias situações que denotam um desconhecimento do patrimônio geopolítico, cultural

Compartilho estes episódios, pois acredito

e histórico que é o continente africano.

que você, leitor(a), ao parar para pensar, certamente terá pelo menos uma situação ilus-

Lembro-me de que, com 17 anos, numa aula

trativa da invisibilização ou minimização da

de pré-vestibular, escutei uma revelação de

presença negra na sociedade e na escola, ou

um jovem professor negro, de História, que

em diferentes contextos educativos. Creio

foi emblemática na minha vida. Ele revelou,

que essas situações, episódicas ou não, pre-

para a turma, que atentamente o ouvia, que

cisam ser lembradas, refletidas, recordadas,

Cleópatra não era como Elizabeth Taylor,

criticadas, compartilhadas, para serem li-

mas era uma mulher negra, inteligente e es-

bertadoras, para romperem com o silêncio

trategista, e que o Egito, das pirâmides, dos

que a escola e a sociedade têm produzido

hieróglifos, da esfinge, das técnicas de irri-

em relação às desigualdades étnico-raciais

gação... era negro, situava-se na África.

brasileiras. Situações sugerem questões e questões não nos faltam! Você já se pergun-

Outro episódio emblemático aconteceu, uns

tou por que conhecemos tão pouco sobre a

quatro anos depois do relatado acima, já nos

África? O que aprendemos na escola, o que

anos 80, quando eu lecionava numa escola

lemos a respeito, o que vimos no cinema ou

pública municipal, na Zona Oeste carioca.

na TV sobre o continente que é o berço da

Contava uma história sobre um dia no zo-

humanidade?

ológico e uma menina negra, de oito anos, levanta-se e sai do fundo da sala de aula para

Desconhecemos o passado remoto e recente

olhar de perto a imagem exibida durante a

da África e pouco sabemos sobre o seu pre-

leitura da história. Era uma imagem com vá-

sente.

rias pessoas no zoológico fazendo coisas diferentes. A imagem era panorâmica, logo as

No entanto, essa é uma história que influen-

pessoas apareciam bem pequeninas. A meni-

cia definitivamente nosso modo brasileiro

na vem à minha frente, olha, olha outra vez

de ser e de estar no mundo. O que estuda-

a gravura, como se não acreditasse no que

mos sobre africanos e africanas que foram

via e diz: “Ih! Uma pretinha!”

trazidos para o Brasil na condição de escravizados? Será que temos nos perguntado por

Depois, retornou, com um aspecto de satis-

que condições históricas os afrodescenden-

fação, ao local onde estava sentada. Até hoje

tes, assim como os povos indígenas e outros

186


grupos sociais, têm tido seus direitos mais

nea que durante três séculos forneceu

básicos desrespeitados ou mesmo negados?

escravos para o Brasil e procurar pensar, procurar estudar que sociedades eram

A desigualdade que marca profundamente a

essas, que culturas eram essas, em que

sociedade brasileira tem raízes no colonia-

dinâmica eram inseridos esses africanos

lismo e no escravismo. Alterar positivamen-

que vieram para o Brasil e que trouxe-

te esse cenário injusto tem sido bandeira

ram tantas coisas importantes! Que

de luta dos movimentos organizados. Algu-

trouxeram para o Brasil sua força de tra-

mas conquistas já podem ser vislumbradas,

balho, suas técnicas, suas competências,

inclusive no campo das políticas públicas.

suas religiões, suas cosmologias, suas

No caso da educação, destacam-se a Lei n.

formas de entender o mundo, formas es-

10.639/03 e a Lei n. 11.645/08 que preconi-

sas que ficaram gravadas no modo como

zam, respectivamente, o ensino da história

o Brasil, como os brasileiros são ainda

e da cultura africana e afrobrasileira nas

hoje. Outro ponto importante que a gen-

escolas e, no caso da lei mais recente, que

te deve ressaltar na história africana na

substitui a anterior, a também inclusão das

sala de aula é a própria historia africana

temáticas indígenas na educação.

em si mesma. Essa África milenar, essas culturas que são múltiplas e interessan-

África (re)conhecida

tes, a gente se deter na história das relações dos africanos com o mundo, nas criações, na emergência de reinos na

Se a África é o berço da humanidade, no mí-

África ocidental, entender o Egito como

nimo, o continente africano produziu e pro-

uma civilização que está inserida no

duz um imenso patrimônio sócio-histórico

contexto africano, que é tributário das

e cultural, entendendo cultura no seu mais

cidades africanas, ele próprio um marco

amplo sentido, no qual estão envolvidas ar-

importante. Então, entender o Egito no

quitetura, ciência, engenharia, medicina...

contexto africano é interessante, enten-

No entanto, lamentavelmente para todos os

der a própria história da África em suas

seres humanos, a escravatura e o racismo

próprias dinâmicas. Existe material para

nas suas nuances e atualizações, vem colo-

isso, para pensar a própria história afri-

cando a riqueza deste continente na subal-

cana em si mesma. Eu acho importan-

ternidade, na invisibilidade:

te o estudo da África contemporânea, dos seus dilemas, das suas questões que

“É importante que a gente lute contra

não são tão diferentes assim das ques-

essa ideia de uma África fixa e homogê-

tões pelas quais a América Latina vem

187


vivendo. Acho que as lutas africanas

pela Internet, pelos fluxos, a África está

são importantes, as tomadas de cons-

nesse fluxo e está esperando ser desco-

ciência, o processo colonial, o processo

berta pela Brasil” (Luena Nascimento –

pré-colonial, o mundo contemporâneo,

antropóloga/UNICAMP/Bolsista).

então a geografia tem muito o que explorar. Eu acho que existe uma riqueza

África diversa, África plural, África de on-

enorme nas culturas africanas hoje, nos

tem e hoje com riquezas, contradições e

países africanos, em termos de uma li-

conflitos,que precisa ser apresentada, re-

teratura muito interessante, disponível

apresentada às educadoras e aos educa-

em Português, para o caso de literatu-

dores do Brasil por brasileiras(os) e por

ras africanas em língua portuguesa, é

africanos(as) de variados países africanos.

preciso investir nesses estudos. Investir nesse diálogo que a África faz entre sua própria história e o mundo, juntando

Vozes d’África: trechos de entrevistas

tradição e modernidade, acho que são formas específicas de aliar a sua própria

Chimamanda5 - escritora (Nigéria):

tradição, seu próprio legado com o presente, a música africana é riquíssima,

“(...) é muito importante que as pessoas

a arte africana é lindíssima, tanto essa

contem suas próprias histórias. E a Áfri-

arte tradicional como a arte contempo-

ca é uma região do mundo que por mui-

rânea, que você encontra nas bienais,

to tempo teve suas histórias contadas

que você encontra enfim numa série de

por outras pessoas. Muitos dos textos

exposições. É preciso pesquisar essa Áfri-

africanos foram na verdade escritos por

ca urbana, essa África vibrante, das mú-

europeus, se voltarmos duzentos anos

sicas, das cores, da arte, da literatura,

atrás. Eu acho que é uma coisa boa ou-

ela está aí, ela está disponível para ser

virmos histórias de África contadas por

trazida para a sala de aula como uma

africanos”.

maneira, como mais um diálogo conosco mesmo. Acho que ela faz parte do mun-

“África não é uma coisa única. Poucos

do contemporâneo, então, esse interesse

pensam sobre África de forma diferente.

pela África como parte do nosso mundo,

Pensam na África das girafas, ou pen-

do nosso mundo globalizado, do nosso

sam em AIDS, ou pensam em guerras, ou

mundo que se aproxima cada vez mais

pensam na pobreza. Uma das perguntas

5 Tradução Kátia Santos.

188


que me foi feita por um dos jornalistas

estou apenas escrevendo histórias sobre

brasileiros, antes que eu chegasse aqui,

pessoas que vivem em um tempo em que

foi ‘como você pode ajudar ao seu país?’

o colonialismo é parte integral de nossas

E eu pensei, meu país não é apenas um

vidas. Mas isto não significa que as pes-

lugar para eu ajudar. Há muita coisa

soas não tenham [iniciativa]. Os africa-

acontecendo na Nigéria. Há nigerianos

nos são pessoas que têm iniciativa.”

que estão ajudando a nigerianos. Há nigerianos que são pobres; nigerianos que

Pepetela – escritor (Angola)

são ricos. Há muita coisa acontecendo. Acho que a única coisa que posso dizer

“A literatura acaba por mostrar que

é que há muitas Áfricas. Não há apenas

também no continente africano já há

uma. Há várias histórias em África. As

pessoas que pensam, começa por aí. E

histórias de ricos e pobres; as histórias

um dos estigmas que haviam passado

felizes e tristes; e todas elas são histórias

pela Europa é que em África praticamen-

africanas, e é importante que nos lem-

te só havia macacos em cima das árvo-

bremos disso.”

res. Portanto, a literatura é uma forma boa para dar a conhecer a realidade, cer-

“Não temos como apagar o colonialismo

ta realidade e, sobretudo, para chamar a

da nossa experiência. É parte da nossa

atenção para problemas, quaisquer que

experiência. Parte da experiência de ni-

sejam. Não para resolver problemas,

gerianos, de quenianos, de senegaleses...

não porque não é trabalho que se possa

A África foi colonizada. E é tudo muito

exigir do escritor. É para isso há outras

recente. Tornamo-nos independentes em

instituições e pessoas, mas levantar os

1960. Há pouco tempo atrás. E a forma

problemas, chamar a atenção, é obrigar

como vivemos hoje é ainda uma reação

as pessoas a pensar sobre esses proble-

ao colonialismo. O colonialismo é ain-

mas.”

da parte de nossa existência. O sistema educacional da Nigéria, por exemplo,

“(...) Mas o fato de ser a língua materna

não mudou muito desde os anos 1950. As

[a portuguesa] a língua na qual eu me

pessoas aprendem muito sobre a Ingla-

expresso, não me impede nunca de dei-

terra e muito pouco sobre África, porque

xar de escutar essas outras línguas que

foi assim que eles organizaram o siste-

eu não falo. E há em mim uma busca

ma educacional. Então, é difícil respon-

incessante da necessidade, da harmonia

der ‘o que você tem a dizer sobre o fim

de todas essas línguas e que foram tra-

do colonialismo na sua obra?’ Acho que

zidas em primeira mão pelas ‘mulheres’,

189


primeiro na família, depois na sociedade,

cuidavam dos vivos e dos mortos. Então,

depois no mundo inteiro que também

se há alguma coisa que possa ser recor-

tem outras vozes que eu também escu-

rente numa obra que tenta tocar todos

to. É curioso porque eu vou dizer mais

os temas, a palavra ‘mulher’ é talvez a

uma vez: foi em português que eu falei

mais forte e eu sou muito tributária des-

dessas mesmas línguas, mas há todo um

sas vozes que eu ouvi, dessas mulheres

patrimônio da tradição oral e mesmo fi-

que falavam outras línguas que não a

xado em português que foi importante

língua portuguesa que é a minha língua

para eu chegar ao conhecimento dos lo-

materna.”

cais, das regiões, do meu país, em suma. Eu penso que toda a gente é de um lugar,

“São Tomé e Príncipe é um país insular, é

como é de uma infância, com é de uma

um arquipélago com menos de mil km2,

determinada região e aí, essas mesmas

160 mil habitantes, eu acho que cabemos

línguas silenciadas durante todo o pro-

algumas vezes no estádio do Maracanã,

cesso colonial, elas foram só aparente-

e a origem da sociedade creola santo-

mente silenciadas, porque elas estavam

mense é escravagista, o povoamento se

lá, o meu trabalho nem sequer foi muito

fez com povos levados de diversas par-

grande, foi apenas ouvir, ficar atento.”

tes do continente africano e essa mescla de culturas, esse cadinho de cultura, faz

Ana Paula Tavares - escritora (Angola)

com que a questão da identidade também atravesse a poética santomense.

“Se eu tivesse que escolher um tema para

Em mim, a questão da identidade está

as minhas coisas, desde logo a palavra

muito presente e é um dos aspectos cen-

‘mulher’ seria muito importante. Desde

trais da minha poesia. O desejo de tentar

cedo eu me habituei a olhar a volta e no-

iluminar trechos obscuros ou apagados

tar que o país, a região local dependia

ou rasurados da história do meu povo.

dessa força enorme, dessa energia enor-

A presença do escravo, o sofrimento do

me das mulheres. São elas que inventam

escravo, dos nossos antepassados, o si-

a água, são elas que fazem as comidas,

lenciamento das suas vozes, contudo

são elas que sustentaram um país que,

não morreram porque eu degluti essas

como vocês sabem, durante tantos anos,

vozes e elas estão hoje na minha poesia.

esteve na guerra. Os homens estavam a

Por outro lado, a firme vontade de atra-

fazer a guerra, eram as mulheres que

vés da palavra poética como que fazer

faziam com que o país funcionasse com

justiça histórica a esse segmento funda-

que o país se reproduzisse. Eram elas que

mental do meu país e do meu passado,

190


porque há uma grande preocupação

coisa para essa partilha. Há como que

com o meu passado. A memória, portan-

um preconceito de parte a parte, nós

to, escreve-se aí, a memória familiar, a

mesmos muitas vezes nos olhamos com

memória pessoal, a memória histórica.

preconceito e nós olhamos o outro com

Outra preocupação central tem a ver

preconceito e temos medo de admitir

com o social presente e mesmo quando

esse preconceito que nós temos e todo o

eu me inspiro no passado e vou ao pas-

mundo tem um pouco desse preconceito

sado e vou à história, esse tratamento

lá no canto. Então, eu acho que cada vez

não é meramente revitalista. Há uma

que nós damos um passo para nos desi-

relação entre o silenciamento e a injus-

nibirmos um pouco mais, para limpar-

tiça, um presente marcado por fortes es-

mos este preconceito que às vezes nós

tratificações, por uma classe dominante

temos do outro, porque o outro é aquele

que tem muito e uma maioria que tem

que nós mal conhecemos e que, muitas

muito pouco.”

vezes, porque não conhecemos, porque é algo que se parece, em nossa vista, como

Conceição Lima – escritora (São Tomé)

misterioso, nós não conhecemos e ali há algo de que temos medo também e

“Há um provérbio guinense que diz as-

é esse medo que está a constituir a bar-

sim: quando alguém insiste em dizer

reira desta partilha, desse mau conheci-

que conhece fulano muito bem, que ele

mento do outro, de nós a nós mesmos,

não seria capaz de tal coisa ou que ele é

do Brasil a si próprio, para depois nós

capaz de fato de fazer ou cometer esse

partilharmos esse conhecimento que vai

erro! Há a voz de um velho que pergun-

passar pelo reconhecimento da cultura

ta: Há quantos anos vocês moram jun-

do outro, das nossas culturas, nós afri-

tos? Quando você diz: há cinco, há três,

canos, as vossas culturas, vós, brasilei-

há sete... ele diz: não, você não conhece,

ros, para conhecerem que o Brasil é um

porque nós vivemos uma vida inteira e

continente. O Brasil é uma imensidão e a

não nos conhecemos a nós mesmos, por-

África é outro continente, então é preci-

que às vezes nos surpreendemos com ati-

so que cada um de nós saiba se conhecer

tudes, com palavras que saem da nossa

a si próprio, saiba tolerar-se a si próprio,

boca. Eu parto desse provérbio guinen-

saiba conhecer a sua história e, como di-

se para dizer que não é fácil conhecer

ria Paulo Freire: Cada vez que nós ensi-

o outro, mas é possível criar condições,

namos a ler e a escrever a um homem e

criar um patamar de partilha de experi-

a uma mulher, nós estamos a dar a este

ências, então eu acho que falta qualquer

homem e a esta mulher instrumentos

191


para que ela e ele próprios consigam es-

continente com vários países, com vá-

crever e reescrever a sua própria história

rias culturas, várias línguas, várias ma-

e rever-se nela, sem complexo e com a

neiras de estar, de viver, de olhar o mun-

responsabilidade própria.”

do. Portanto, eu acho que essa lei é mais uma porta que se abre, não vai mudar o

Odete Semedo – escritora (Guiné-Bissau)

mundo, mas é um passo, é uma pedra no meu entender.”

“Quando eu tive conhecimento dessa lei, eu disse: bom, eu acho que o Brasil pôs na mesa o assunto para ser discutido,

Pensar a Diáspora Africana

um assunto que me parece que é um assunto tabu. As pessoas não querem falar

Pensar a Diáspora Africana é pensar na Áfri-

de racismo, em discriminação, no negro

ca como um continente que se expandiu,

e de várias coisas, parece que a histó-

de onde seus filhos e filhas se espalharam

ria nos envergonha. Então, essa lei vai

pelo mundo, antes, durante e depois do cha-

permitir um olhar para trás, um olhar

mado período da escravização negra. E isto

para a história do Brasil, um olhar sem

é importante, uma vez que aqui, no Brasil,

complexos, eu espero. E mesmo que seja

constituiu-se uma parcela desta diáspora

um olhar com complexos, mas desde

africana.

que permita a abordagem do problema já está a pôr à mesa uma questão que

Esta presença africana no Brasil, marcada

é uma questão não só brasileira, mas

por histórias, memórias, culturas e valores

africana e universal, porque o racismo,

civilizatórios, estabelece aqui referenciais

a discriminação, não é só no Brasil, não

que se constituem como valores civilizató-

é só em África. Há um pouco em cada

rios afrobrasileiros, valores tecidos no diá-

canto dos países da Europa ou da Améri-

logo, nos confrontos, nos encontros dias-

ca do Norte. O meu olhar sobre essa lei é

póricos dos africanos, afro-brasileiros entre

que ela vai permitir um olhar para trás,

si e com os demais grupos aqui existentes.

um olhar o presente e, em perspectiva, o

Que valores seriam estes? Ilustrativamente,

futuro sem receio, sem complexos, isso é

podemos citar o da circularidade como um

o que eu vejo. Eu acho também que essa

valor que nos permitiu, enquanto afrodes-

lei vai permitir um olhar sobre a África

cendentes e afro-brasileiros, ressignificar a

com outros olhos, não o olhar de uma

dor do processo cruel da escravização negra,

África folclórica, não a África de guerras,

do racismo, e positivizá-la, produzindo vida

de fome, mas uma África que é como um

afrodescendente fora da África.

192


O principio do axé, da energia vital, outro

oração, através da culinária quer dizer

valor que acena para esta presença no coti-

com o corpo, pelo corpo é que a expe-

diano brasileiro, o comunitarismo, a coope-

riência patrimonial, civilizatória vai ser

ração, a memória inscrita no corpo, a corpo-

reconstituída” (Julio César de Tavares –

reidade, a ludicidade imbricada no processo

Professor de Antropologia da Univer-

de transformar a dor em potência...

sidade Federal Fluminense).

“(...) os africanos chegaram pratica-

“(...) em comunidades remanescentes

mente com o seu corpo, foram muito

se festeja tudo, se festeja a vida, e jun-

poucos os objetos trazidos, eles eram na

tamente com a questão do festejo vem

verdade desnudados, vinham quase que

a questão do canto, vem a questão da

nus nos navios. O patrimônio maior cul-

música, vem a questão da dança, que

tural era o corpo. O corpo passou ser a

constitui momentos que, se formos ana-

caixinha de segredo. Então, o corpo tra-

lisar na comunidade o que se significa a

zia não só as marcas do mundo perdido,

festa, são movimentos reivindicatórios,

das culturas a que, na verdade, esses

são movimentos revolucionários, onde

africanos que para cá foram transla-

se revitaliza a potência de se tentar co-

dados pertenciam. As marcas culturais

locar frente ao mundo branco, frente a

vinham com o corpo nos gestos, nos

tantas expropriações a que os quilom-

hábitos, nos comportamentos das con-

bolas estão sujeitos” (Georgina Helena

dutas corporais e também nas escari-

Lima Nunes – professora da Universi-

ficações, das cicatrizes, das marcas do

dade de Pelotas – RS).

corpo. O corpo era na verdade o grande arquivo que continha a memória das

Pensar a Diáspora africana não apenas nas

experiências que agora eram violenta-

bases culturalistas, mas também políticas,

mente abandonadas, agora, se podemos

pois os valores trazidos e vivenciados po-

falar de patrimônio histórico e cultural

dem ser fatores de transformação social.

das populações africanas transladadas, o primeiro território, o primeiro objeto, o primeiro elemento fundamental dessa memória é o corpo. É com o corpo que o africano vai reconstruir a sua experiência perdida, é através desse corpo, através da gesticulação, através da dança, através do modo de andar, através da

Em toda cultura nacional Na arte e até mesmo na ciência O modo africano de viver Exerceu grande influência E o negro brasileiro

193


Apesar de tempos infelizes Lutou, viveu, morreu e se integrou

que vai deixar, sem dúvida, à margem da participação, digo participação produtiva, produtiva intelectual e produtiva

Sem abandonar suas raízes

econômica, uma grande parcela da sua

(Nei Lopes e Wilson Moreira).

população. E nesse sentido, quando nós pensamos em racismo, nós estamos pen-

Africanidades brasileiras e educação “(...) estudar Africanidades Brasileiras significa estudar um jeito de ver a vida, o mundo, o trabalho, de conviver e lutar por sua dignidade, próprio dos descendentes de africanos que, ao participar da construção da nação brasileira, vão deixando nos outros grupos étnicos com quem convivem suas influências e, ao mesmo tempo, recebem e incorporam as

sando em mais de 50% da população negra ou pelo menos quase 50%, se formos seguir as cifras oficiais apresentadas pelo IBGE. Então, nós estamos dizendo que numa sociedade que exclui e exclui pelo racismo, que é a nossa discussão aqui, nós vamos ter metade da população do Brasil fora dos regimes de direitos de todas as áreas e isso traz no mínimo subdesenvolvimento para o país” (Joselina da Silva - Professora da Universidade Federal do Ceará).

daqueles” (Petronilha Gonçalves e Silva

“É preciso que os educadores brasileiros

– Professora da Universidade Federal

entendam o seguinte. Que eles se per-

de São Carlos - UFSCar).

guntem: o que eu sei de Ásia? Estou vendo um japonês aqui, este aqui é uma des-

Pensar as Africanidades Brasileiras na atuali-

sas populações. O que eu sei da história

dade nos remete ao fato de que é impossível

do português, da história de Portugal,

negar a presença negra em todos os setores

será que eu sei alguma coisa? O que eu

da sociedade brasileira. Contudo, em alguns

sei da história da Itália? Então, eles têm

espaços, essa presença está aquém do que

que perguntar a eles mesmos, ao invés

é desejado e necessário, e ainda é marcada

de partir do que já sabem” (Yedo Ferrei-

pelo racismo, pela exclusão, pela subalter-

ra - Militante Movimento Negro).

nização. No entanto, é importante ressaltar A despeito do racismo, das desigualdades

que:

étnico-raciais, talvez alimentados pelos seus “Uma sociedade pautada em qualquer

valores civilizatórios, ainda que inconscien-

tipo de discriminação é uma sociedade

temente, o povo negro, ou afro-brasileiro,

194


afirma cotidianamente sua energia vital, seu

temáticas, as diferentes matemáticas

axé, sua presença, sua existência:

culturais. A matemática não é somente a matemática ocidental, a matemática

“(...) a escola deve ser impregnada pela

como forma de pensar geometricamen-

diversidade das culturas que compõem

te, aritmeticamente a natureza, isso

a nação brasileira. Então, temos que ad-

existe em várias culturas, então existe

mitir que existem várias culturas e não

uma forma de pensar matematicamente

só as culturas oriundas da Europa. O

na África, que deve aparecer. Essa diver-

tempo todo se fala nessa mítica das três

sidade deve se entrelaçar no cotidiano

raças compondo a nação brasileira, mas,

da escola, esse entrelaçar e o impregnar,

entretanto, os valores ocidentais não são

a gente tem que produzir essa impreg-

somente os hegemônicos, são os que de-

nação, essa interculturalidade, mais que

têm a supremacia na produção desses

a multiplicação das culturas, temos que

valores na escola. Então, uma escola

fazer com que haja o encontro e o inter-

democrática é uma escola que aposta

curso dessas culturas. A impregnação

na diversidade, mas não só diversidade

da cultura afro-brasileira seria talvez

congelada, coloca ali uma estátua do be-

o maior desafio, porque é muito fácil,

rimbau, ou uma estátua do orixá dentro

por conveniência, os diretores da escola

da escola e falar que isso é diversidade.

fazerem lá o dia do negro, como fazem

São esses valores que compõem a força

o do índio. Isso não é transformar essa

das diferentes culturas, em especial da

cultura como presente, congelando num

cultura afro-brasileira, eles devem não

único dia, dos 365 dias do ano, é preciso

só estar presentes, como também asse-

fazê-la presente diariamente conforme

gurar que a sua dinâmica se entrelaça

a cultura ocidental do europeu está pre-

no cotidiano da escola, eles devem estar

sente nos 365 dias, você não tem o dia

presentes na culinária, na merenda esco-

da cultura alemã, você tem ela presente

lar, eles devem estar presentes natural-

o tempo todo, a cultura italiana, a cul-

mente nas atitudes cotidianas desses jo-

tura portuguesa ou a cultura espanhola,

vens na escola, devem estar presentes no

como cultura ocidental, elas estão pre-

esporte, devem estar presentes na pró-

sentes os 365 dias do ano. Então, quere-

pria discussão religiosa, devem estar pre-

mos que também durante os 365 dias do

sentes na matemática, as formas de pen-

ano a cultura africana e a cultura indí-

sar a matemática, o número dentro da

gena estejam presentes e as demais cul-

África deve aparecer no ensino da mate-

turas, a cultura cigana, todas as outras

mática, valorizar as diferentes etno-ma-

culturas. É importante que haja um local

195


de manifestação dessa multiplicidade,

amor, não é violência, é amor, vamos abrir o

desses universos múltiplos das diferentes

coração e compreender que a cultura brasi-

culturas. A cultura afro-brasileira tem

leira está presente o tempo todo ao lado da

uma riqueza gigantesca para oferecer a

cultura afro-brasileira, ela é um dos princi-

essa moldagem da nação brasileira num

pais modeladores da nação brasileira (...) (Ju-

universo intercultural, precisamos estar

lio César de Tavares – Professor de Antropolo-

convictos, nós, professores, diretores da

gia da Universidade Federal Fluminense).

escola, que é importante para produção de um novo brasileiro, essa impregnação

Estamos na capilaridade da sociedade brasi-

e a convicção significa na adesão genero-

leira, somos, nesse sentido ampliado, todos

sa, na adesão amorosa, na adesão afeti-

afrobrasileiros.

va a essa cultura.” “Essa presença está no cotidiano do braDigamos, abrir o coração a essas culturas,

sileiro, está no ar que o brasileiro respira

abandonarmos a força colonial que nos co-

está no ritmo do corpo do brasileiro, está

loca quase que de joelhos diante daquilo que

na comida do brasileiro. Só que o brasi-

é europeu super, hiper valorizando o que é

leiro também não percebe isso e gosta-

europeu e desvalorizando, desqualificando o

ria de ser considerado como europeu.

que é africano, o que é indígena na cultura

Isso está claro no sistema de educação.

brasileira.

Nosso modelo de educação é uma educação eurocêntrica. A escola é o lugar

Isso é que precisa ser superado e essa su-

onde se forma o cidadão, onde se ensina

peração só poderá se dar com amor se não

uma profissão. Escolas que sabem lidar

houver convicção da necessidade de afeto no

com os dois lados da educação ensinam

tratamento com afeição, com generosidade,

a cidadania e a profissão. Uma história

com gentileza dessas culturas, compreen-

que é ensinada, a história da Europa, dos

dendo a presença delas já existente dentro

gregos e dos romanos, portanto, brasi-

de nós mesmos, dentro da cultura que nós

leiros não só descendentes de gregos e

temos. Imagine você que o Brasil tem a feijo-

romanos, de anglo-saxões... São descen-

ada como seu prato nacional e ainda discute

dentes de africanos também, de índios e

se deve ou não garantir a impregnação da

descendentes de árabes, de judeus e até

cultura afrobrasileira no nosso cotidiano. É

de ciganos. E se a gente olhar o nosso

tamanha a hipocrisia, a ignorância e o grau

sistema de educação, onde estão esses

de colonialismo em que vivemos que preci-

outros povos que formaram o Brasil?

samos superar isso com uma certa dose de

Então, há um problema no Brasil, além

196


dessas pessoas serem as maiores vítimas

to educadoras e educadores brasileiros, de

da discriminação social, do sistema de

uma pedagogia brasilis, uma pedagogia

educação formal, elas são simplesmente

com/da e para a real e diversa população

ocidentalizadas, elas são simplesmente

brasileira.

embranquecidas. Então, há um probleUm sorriso negro, um abraço negro

ma na educação do brasileiro. Se a gente colocar as questões: quem somos, de

Traz.... felicidade

onde viemos e por onde vamos, vamos ver que o Brasil nasceu do encontro da

Negro sem emprego, fica sem sossego

culturas das civilizações, dos povos indígenas, africanos que foram deporta-

DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRA-

dos os próprios imigrantes europeus de

SILEIRAS E EDUCAÇÃO 15 .

várias origens. Até estamos agora co-

Negro é a raiz da liberdade

memorando os cem anos da imigração japonesa, se fala mais dos cem anos da

Negro é uma cor de respeito

imigração japonesa do que 600 anos da Negro é inspiração

abolição. Não tenho nada contra isso, mas fala-se muito pouco da abolição.

Negro é silêncio, é luto

Se a gente quer saber quem somos, devemos conhecer todas as nossas raízes,

negro é... a solução

aqueles povos que formaram o Brasil, alNegro que já foi escravo

guns dizem que somos um país mestiço, mas essa mestiçagem não caiu do céu. Já

Negro é a voz da verdade

que a gente não quer reconhecer a diversidade das coisas, suponhamos que seja-

Negro é destino é amor

mos todos mestiços, vamos pelo menos Negro também é saudade.. (um sorriso

estudar as raízes da nossa mestiçagem,

negro!)

faz parte da nossa cultura” (Kabengele

(Dona Ivone Lara)

Munanga – Professor de Antropologia / USP – Diretor Centro de Estudos Africanos).

REFERÊNCIAS

Diante da nossa diversidade étnico-racial,

BRASIL. Ações Afirmativas e Combate ao Ra-

cultural, creio que fomos colocadas(os) no

cismo nas Américas. Brasília: MEC, SECAD,

desafiante território da construção, enquan-

2005.

197


______.

Educação anti-racista:

caminhos

______. Orientações e Ações para a Educação

abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasí-

das Relações Étnicos-Raciais. Brasília: SECAD,

lia: MEC, SECAD, 2005.

2006.

______. Histórias da Educação do Negro e

GARCIA, Januario. 25 anos 1980 – 2005: movi-

outras histórias. Brasília: MEC, SECAD,

mento negro no Brasil. Brasília, DF: Funda-

2005.

ção Cultural Palmares, 2006

198


CAPÍTULO 3

Entrecruzamentos temáticos: multiculturalidades, disciplinaridades e africanidades

A ideia que orienta este terceiro capítulo

Os textos devem ser vistos criticamente, pois

insere-se no campo das redes de conheci-

todos estão inseridos no campo ideológico e

mento, das tessituras de ideias, das inven-

de visões de mundo, classe, formação, etnia...

tividades, dos diálogos, das aventuras humanas na construção do novo, do novo que

I.

Ciência

multicultural,

de

Ubiratan

aproxima, une e se mescla... Ao ler os textos,

D’Ambrosio. Optamos em iniciar este capí-

observamos uma infinidade de caminhos,

tulo da coletânea com este texto, pela fun-

possibilidades, escolhas...

damental relevância deste tema - a ciência - no campo da multiculturalidade e das Afri-

Acreditamos que a implementação da lei ou

canidades. Pensar a ciência numa aborda-

a construção de uma educação inclusiva e

gem multicultural é uma demanda para não

emancipatória não deve ignorar conheci-

só implementar as leis, como mudar menta-

mentos produzidos, mas criticá-los e ajustá-

lidades colonizadas e excludentes.

-los, se possível, a uma perspectiva a favor da vida na sua plenitude.

II. Afroetnomatemática, África e afrodescendência, de Henrique Cunha Junior. Este

Selecionamos, no panorama das publicações

texto desconstrói as naturalizações acerca

do Salto para o Futuro, textos que, mesmo

do continente africano e o conhecimento

que não se refiram especificamente à Lei n.

matemático. São tantas as descobertas e re-

10.639/03 ou à Lei n. 11.645/08, podem ser sub-

descobertas, as novas possibilidades de ver,

sídios para pedagogias que não excluam, que

sentir, conhecer, que o estudo para os e as

não sejam racistas, machistas... As articula-

docentes é um caminho imprescindível.

ções que podem e devem ser feitas incluem-se no campo da pedagogia diaspórica, onde

III. A multiculturalidade na educação esté-

novas significações e apropriações podem ser

tica, de Ana Mae Barbosa. Como dissemos

elaboradas.

anteriormente, embora alguns textos não

199


foquem diretamente as Africanidades, eles

ra. Talvez, numa primeira leitura, o foco do

nos ajudam a fundamentar nossa visão in-

texto pareça ser unicamente os povos in-

clusiva, nossa prática, que pode ser rotulada

dígenas e a escrita, mas ao observarmos a

de multiculturalista crítica, emancipatória

formação e a ocupação da autora, o nome

e, também, que tem como meta implemen-

do texto e da série na qual ele está inseri-

tar a Lei n. 10.639 e a Lei n. 11.645. Arte e

do, podemos perfeitamente observar a sua

Estética são palavras-chave e campos de ex-

abrangência. Sim, temos, além dos povos

tremada relevância para o trato das Africa-

indígenas, populações como os ciganos e al-

nidades e para a desmontagem de precon-

gumas comunidades quilombolas em que a

ceitos. E este texto cumpre esta função.

oralidade é um valor.

IV. Construção estético-cultural de um espaço, de Laura Maria Coutinho. Ao ler e reler os textos desta coletânea, sempre tive a preocupação de promover diálogos entre diversos temas e autorias. Dessa forma, destacamos este texto como um alerta no que se refere às Africanidades. Atentem que, frontalmente, ele não aborda as relações étnico-

VII. No tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores..., de Narcimária Correia do Patrocínio Luz. Da mesma série da qual faz parte o anterior, este texto é uma ode à nossa ancestralidade e, ao mesmo tempo, um ensinamento de outras possibilidades não eurocentradas de ensino-aprendizagem.

-raciais, mas suas pontuações com relação à imagem nos referendam. V. O espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão de mensagens sobre afro-brasileiros, de Heloisa Pires Lima. Em diálogo com os dois textos anteriores, este texto foca as Africanidades e os preconceitos e estereótipos alimentados por alguns produtores de imagens móveis ou fixas (fotografias, filmes...) alertando-nos para o cuidado com o racismo que embaça nossas visões e percepções acerca do nosso povo preto e mestiço.

VIII. Os versos sagrados de ifá: base da tradição civilizatória Iorubá, de Juarez Tadeu de Paula Xavier. Temos, aqui, um texto acessível e consistente que afirma a importância da oralidade e revela sua pujança como um valor civilizatório dos povos iorubanos. IX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e afro-brasileiras, de Andréia Lisboa de Sousa e Ana Lúcia Silva Souza. Aqui temos um cardápio de possibilidades de trabalho nas “águas” da oralidade e da literatura. É um

VI. O significado da oralidade em uma so-

texto afirmativo, propositivo e informativo,

ciedade multicultural, de Maria Elisa Ladei-

inclusive dos dispositivos legais.

200


X. Conto popular, literatura e formação de

relação ao nosso conhecimento e docência

leitores, de Ricardo Azevedo. Como aqui se

em face do ensino da história da África no

trata de um livro para professores e profes-

Brasil, colocando-nos diante da imperativa

soras, educadoras, este texto assume um

necessidade de pesquisa, estudo, crítica e

caráter de compreensão acerca do conto

autocrítica, de modo a não reproduzirmos

popular em interação com a literatura e a

equívocos e estereótipos já naturalizados no

formação de leitores. Cremos que o trinômio

nosso imaginário social brasileiro.

anunciado no título pode ser visto como um dos recursos propícios à implementação das

XIII. Enfrentando os desafios: a história da

leis de que fala esta coletânea, bem como

África e dos africanos no Brasil na nossa sala

favorecer o fortalecimento da autoestima

de aula, de Mônica Lima. Com cautela, res-

de crianças e jovens estudantes.

peito e compromisso político, o texto aponta repertórios da História da África e dos Africa-

XI. Literatura e pluralidade cultural, de Ma-

nos no Brasil, passíveis de serem trabalhados

risa Borba. Embora seja um texto publicado

pedagogicamente nas salas de aula.

antes das referidas leis, sua atualidade nos revela a necessidade de que a abordagem da

XIV. Sons de tambores na nossa memória

autora seja levada em consideração.

– o ensino de história africana e afro-brasileira, de Mônica Lima. Entre cuidados, si-

XII. Novas bases para o ensino da história

nalizações, fascínios e atenções, o texto bus-

da África no Brasil, de Carlos Moore. O texto

ca recuperar, com os sons dos tambores da

apresenta bases que nos desestabilizam em

nossa memória, a África Viva em nós.

201


I. Ciência multicultural1 Ubiratan D’Ambrosio2

Estamos passando por grandes transformações na sociedade e, em particular, na educação. Hoje falamos em educação bilíngue, em medicinas alternativas, no diálogo inter-religioso. Inúmeras outras formas de multiculturalismo são notadas nos sistemas educacionais e na sociedade em geral.

• uma realidade social, que é o reconhecimento da essencialidade do outro; • uma realidade planetária, o que mostra sua dependência do patrimônio natural e cultural e sua responsabilidade na sua preservação; • uma realidade cósmica, levando-o a trans-

As profundas transformações nos sistemas

cender espaço e tempo e a própria existên-

de comunicação, de informatização, de

cia, buscando explicações e historicidade.

produção e de emprego surgem como um resultado da mundialização e, consequen-

As práticas ad hoc para lidar com situações

temente, dão origem à globalização e ao

problemáticas surgidas da realidade são o

multiculturalismo. Os reflexos na geração e

resultado da ação de conhecer. Isto é, o co-

aquisição de conhecimento são evidentes.

nhecimento é deflagrado a partir da realidade. Conhecer é saber e fazer.

Um resultado esperado dos sistemas educacionais é a aquisição e produção de conhe-

A geração e o acúmulo de conhecimento

cimento. Isso ocorre, fundamentalmente, a

em uma cultura obedecem a uma forma de

partir da maneira como um indivíduo perce-

coerência. Há, como dizia J. Kepler no Har-

be a realidade nas suas várias manifestações:

monia Mundi, em 1618, uma comunalidade de ações, na qual se manifesta o “zeitgeist”,

• uma realidade individual, nas dimensões sensorial, intuitiva, emocional, racional;

1 Debate: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 4. 2 Professor Emérito da Unicamp.

que viria a se tornar fundamental na propos ta historiográfica de F. Hegel (l770-l83l).

202


Essa comunalidade de ações caracteriza

no seu sentido amplo, a partir da dinâmica

uma cultura. Ela é identificada pelos seus

cultural que se nota nas manifestações ma-

sistemas de explicação, filosofias, teorias, e

temáticas. Mas que não se confunda com a

ações e pelos comportamentos cotidianos.

Matemática no sentido acadêmico, estrutu-

Tudo isso se apoia em processos de comu-

rada como uma disciplina. Sem dúvida essa

nicação, de quantificação, de classificação,

Matemática é importante, mas de acordo

de comparação, de representações, de con-

com o eminente matemático Roger Penro-

tagem, de medição, de inferências. Esses

se, ela representa uma área muito pequena

processos se dão de maneiras diferentes nas

da atividade consciente que é praticada por

diversas culturas e se transformam ao longo

uma pequena minoria de seres conscientes,

do tempo. Eles sempre revelam as influên-

para uma fração muito limitada de sua vida

cias do meio, organizam-se com uma lógica

consciente. O mesmo pode-se dizer sobre a

interna, codificam-se e se formalizam. As-

ciência acadêmica em geral.

sim nasce o conhecimento. Em essência, o Programa Etnomatemática Procuramos entender o conhecimento e o

é uma proposta de teoria do conhecimen-

comportamento humanos nas várias regi-

to, cujo nome foi escolhido por razões que

ões do planeta ao longo da evolução da hu-

serão explicadas mais adiante. Na verdade,

manidade, naturalmente reconhecendo que

poderia igualmente ser denominado Progra-

o conhecimento se dá de maneira diferente

ma Etnociência. Ao lembrar a etimologia,

em culturas diferentes e em épocas diferen-

ciência vem do latim scio, que significa sa-

tes.

ber, conhecer, e matemática vem do grego máthema, que significa ensinamento – por-

Etnociência e Etnomatemática

tanto, está claro que os Programas Etnomatemática e Etnociência se complementam. Na verdade, na acepção que proponho, eles se confundem3.

Em meados da década de 70, propus um programa educacional que denominei Pro-

A ideia nasceu da análise de práticas mate-

grama Etnomatemática. Embora o Progra-

máticas em diversos ambientes culturais,

ma Etnomatemática possa sugerir uma ên-

porém foi ampliada para analisar diversas

fase na Matemática, esse programa é um

formas de conhecimento, não apenas as

estudo da evolução cultural da humanidade

teorias e práticas matemáticas. Embora o

3 Ver Ubiratan D’Ambrosio: Etnomatemática. Arte ou técnica de conhecer e Aprender. Editora Ática, São Paulo, 1990; e Etnomatemática. Elo entre as tradições e a modernidade. Editora Autêntica, Belo Horizonte, 2001.

203


nome sugira ênfase na Matemática, esse é

subordinadas a áreas de conhecimento mui-

um estudo da evolução cultural da humani-

tas vezes estanques: ciências da cognição,

dade no seu sentido amplo, a partir da dinâ-

epistemologia, ciências e artes, história, po-

mica cultural que se nota nas manifestações

lítica, educação, comunicações.

matemáticas. Considerando que a percepção de fatos é O ponto de partida é o exame da história das

influenciada pelo conhecimento, ao se fa-

ciências, das artes e das religiões em várias

lar em história do conhecimento estamos

culturas. Adotamos um enfoque externalista,

falando da própria história do homem e do

o que significa procurar as relações entre o

seu habitat no sentido amplo, isto é, da Ter-

desenvolvimento das disciplinas científicas,

ra, e mesmo do Cosmos. Mas não há como

das escolas artísticas ou das doutrinas religio-

falar da Terra e do Cosmos, desligados da

sas e o contexto sociocultural em que tal de-

visão que o próprio homem criou e tem da

senvolvimento se deu. O programa vai além

Terra e do Cosmos. A ciência moderna, ao

desse externalismo, pois aborda também as

propor “teorias finais”, isto é, explicações

relações íntimas entre cognição e cultura.

que se pretendem definitivas sobre a origem e a evolução das coisas naturais, esbarra

Ao reconhecer que o momento social está

numa postura de arrogância.

na origem do conhecimento, o programa, que é de natureza holística, procura compa-

A proposta é o enfoque transdisciplinar, que

tibilizar Cognição, História e Sociologia do

substitui a arrogância do pretenso saber ab-

Conhecimento e a Epistemologia Social num

soluto, que tem como consequências inevi-

enfoque multicultural.

táveis os comportamentos incontestados e as soluções finais, pela humildade da busca

A questão do conhecimento

incessante, cujas consequências são respeito, solidariedade e cooperação4.

O enfoque holístico à história do conheci-

A transdisciplinaridade é, então, um enfo-

mento consiste essencialmente de uma aná-

que holístico ao conhecimento que procura

lise crítica da geração e produção de conhe-

levar a essas consequências e se apoia na re-

cimento, da sua organização intelectual e

cuperação das várias dimensões do ser hu-

social e da sua difusão. No enfoque discipli-

mano para a compreensão do mundo na sua

nar, essas análises se fazem desvinculadas,

integralidade.

4 Ubiratan D’Ambrosio: Transdisciplinaridade. Editora Palas Athena, São Paulo, 1997.

204


Lembremos que variantes da postura dis-

1. Como passar de práticas ad hoc a mo-

ciplinar têm sido propostas. As disciplinas

dos de lidar com situações e proble-

dão origem a métodos específicos para co-

mas novos e a métodos?

nhecer objetos de estudo bem definidos. A multidisciplinaridade procura reunir resultados obtidos mediante o enfoque discipli-

2. Como passar de métodos a teorias? 3. Como proceder da teoria à invenção?

nar. Como se pratica nos programas de um Explicitando o que já foi dito acima, essas

curso escolar.

perguntas envolvem os processos de: A interdisciplinaridade, muito procurada e praticada hoje em dia, sobretudo nas escolas, transfere métodos de algumas disciplinas para outras, identificando assim novos objetos de estudo. Já havia sido antecipada em 1699 por Fontenelle, Secretária da Academia de Ciências de Paris, quando dizia que

• geração e produção de conhecimento; • sua organização intelectual; • sua organização social; • sua difusão.

“Até agora a Academia considera a natureza

Tais processos são normalmente tratados de

só por parcelas... Talvez chegará o momento

forma isolada, como disciplinas específicas:

em que todos esses membros dispersos [as

ciências da cognição (geração de conheci-

disciplinas] se unirão em um corpo regular;

mento), epistemologia (organização intelec-

e se são como se deseja, se juntarão por si

tual do conhecimento), história, política e

mesmas de certa forma” .

educação (organização social, instituciona-

5

lização e difusão do conhecimento). A transdisciplinaridade vai além das limitações impostas pelos métodos e objetos de

O método chamado moderno para se conhe-

estudos das disciplinas e das interdiscipli-

cer algo, explicar um fato e um fenômeno

nas.

baseia-se no estudo de disciplinas específicas, o que inclui métodos específicos e ob-

O processo psico-emocional de geração de

jetos de estudo próprios. Esse método pode

conhecimentos, que é a essência da criati-

ser traçado a Descartes. Isso caracteriza o

vidade, pode ser considerado em si um pro-

reducionismo. Logo esse método se mos-

grama de pesquisa, e pode ser categorizado

trou insuficiente e já no século XVII surgi-

através de questionamentos como:

ram tentativas de se reunir conhecimentos

5 B. de Fontenelle: , 1699; p.xix.

205


e resultados de várias disciplinas para o

É oportuno falarmos de cultura. Há muitos

ataque a um problema. O indivíduo deve

escritos e teorias fortemente ideológicos so-

procurar conhecer mais coisas para poder

bre o que é cultura. Conceituo cultura como

conhecer melhor. As escolas praticam essa

o conjunto de mitos, valores, normas de

multidisciplinaridade, que hoje está pre-

comportamento e estilos de conhecimen-

sente em praticamente todos os programas

to compartilhados por indivíduos, vivendo

escolares.

num determinado tempo e espaço.

Metaforicamente, as disciplinas funcionam

Ao longo da história, tempo e espaço foram

como canais de televisão ou programas de

se transformando. A comunicação entre ge-

processamento em computadores. É neces-

rações e o encontro de grupos com culturas

sário sair de um canal ou fechar um aplicati-

diferentes cria uma dinâmica cultural e não

vo para poder abrir outro. Isso é a multidisci-

podemos pensar numa cultura estática, con-

plinaridade. Mas quando se utiliza Windows

gelada em tempo e espaço. Essa dinâmica é

95, a grande inovação é poder trabalhar com

lenta e o que percebemos na exposição mú-

vários aplicativos, criando novas possibilida-

tua de culturas é uma subordinação cultural

des de criação e utilização de recursos. A in-

e algumas vezes até mesmo destruição de

terdisciplinaridade corresponde a isso. Não

uma das culturas em confronto, ou em al-

só justapõe resultados, mas mescla métodos

guns casos dá-se a convivência multicultural.

e, consequentemente, identifica novos obje-

Naturalmente, a convivência multicultural

tos de estudo.

representa um progresso no comportamento das sociedades, conseguido após violentos

A interdisciplinaridade teve um bom desen-

conflitos. Agora, não sem problemas, ganha

volvimento no século passado e deu origem

espaço na educação o multiculturalismo.

a novos campos de estudo. Surgiram a neurofisiologia, a físico-química e a mecâni-

Enquanto os instrumentos de observação

ca quântica. Inevitavelmente, essas áreas

(aparelhos – artefatos) e de análise (concei-

interdisciplinares foram criando métodos

tos e teorias – mentefatos) eram mais limita-

próprios e definindo objetos próprios de

dos, o enfoque interdisciplinar se mostrava

estudo. Depois, se tornaram disciplinas em

satisfatório. Mas com a sofisticação dos no-

si e passaram a mostrar as mesmas limita-

vos instrumentos de observação e de análi-

ções das disciplinas tradicionais. Surgiram

se, que se intensificou em meados do século

então os especialistas em áreas interdisci-

XX, vê-se que o enfoque interdisciplinar se

plinares.

tornou insuficiente. A ânsia por um conheci-

206


mento total, por uma cultura planetária, não

interdisciplinar, são úteis e importantes, e

poderá ser satisfeita com as práticas interdis-

continuarão a ser ampliados e cultivados,

ciplinares. Da mesma maneira, o ideal de res-

mas somente poderão conduzir a uma visão

peito, solidariedade e cooperação entre todos

plena da realidade se forem subordinados ao

os indivíduos e todas as nações não será rea-

conhecimento transdisciplinar.

lizado somente com a interdisciplinaridade. A educação está caminhando, rapidamente, Não nego que o conhecimento disciplinar,

em direção a uma educação transdiscipli-

consequentemente o multidisciplinar e o

nar6.

207

6 Ubiratan D’Ambrosio: Educação para uma Sociedade em Transição, Papirus Editora, Campinas, 1999.


II. Afroetnomatemática, África e afrodescendência1 Henrique Cunha Junior2

Afroetnomatemática

estudo da História africana e pela elaboração de repertórios de evidência matemática

Afroetnomatemática é a área da pesquisa que

encontrados nas diversas culturas africanas.

estuda os aportes de africanos e afrodescen-

Este estudo da História da Matemática no

dentes à Matemática e à Informática, como

continente africano trabalha com evidên-

também desenvolve conhecimento sobre o

cias de conhecimento matemático contidas

ensino e o aprendizado da Matemática, da Fí-

nos conhecimentos religiosos africanos, nos

sica e da Informática nos territórios da maio-

mitos populares, nas construções, nas artes,

ria dos afrodescendentes. Os usos culturais

nas danças, nos jogos, na Astronomia e na

que facilitam os aprendizados e os ensinos

Matemática propriamente dita realizada no

da Matemática nestas áreas de população,

continente africano. O que é realizado para

de maioria afrodescendente, é a principal

o continente africano tem sua extensão para

preocupação desta área do conhecimento.

as áreas de diáspora africana. A complexidade da racionalidade lógica africana é a maté-

A Afroetnomatemática se inicia no Brasil pela

ria por detrás destas pesquisas.

elaboração de práticas pedagógicas do Movimento Negro, em tentativas de melhoria do

A preocupação com o ensino e o aprendiza-

ensino e do aprendizado da Matemática nas

do da Matemática em territórios de maioria

comunidades de remanescentes de quilom-

afrodescendente nasce da constatação das

bos e nas áreas urbanas, cuja população de

precariedades da educação formal matemá-

descendentes de africanos é majoritária, de-

tica nestas áreas. Constatamos que, em mui-

nominadas de populações negras. Esta Afro-

tas das áreas de maioria afrodescendente,

etnomatemática tem uma ampliação pelo

praticamente inexiste ensino competente

1 Valores afro-brasileiros na Educação – 2005 / PGM4 2

Professor Titular na Universidade Federal do Ceará.

208


e adequado da Matemática, existindo, em

Nós, pesquisadores interessados no desem-

decorrência disso, um grande fracasso no

penho matemático de afrodescendentes, te-

aprendizado nos cursos de Matemática, nas

mos observado que nos territórios de maio-

escolas, o que fica imputado à população e

ria afrodescendente, por vezes, não existe

não à ineficiência do sistema educacional.

o ensino de Matemática. Trata-se apenas de um simulacro de ensino de Matemática.

Encontramos, em muitas destas áreas de

As aulas de Matemática são descontínuas,

maioria afrodescendente, o credo esdrúxulo

dadas por professores improvisados e de

e racista de que “negro não dá para a Mate-

treinamento precário para desempenho das

mática”. Este credo esdrúxulo cria sua pró-

suas funções. Onde este ensino existe, ele é

pria cultura de naturalização social e passa

deficiente e desprovido dos meios e méto-

a exercer a sua força de reprodução, servin-

dos adequados. No entanto, o ônus da defi-

do como justificativa ideológica da ausência

ciência de um sistema educacional, que leva

de políticas públicas do Estado para o ensi-

sempre à submissão e à inferiorização dos

no e aprendizado da Matemática nestes ter-

afrodescendentes, recai justamente sobre

ritórios. O dito “negro não dá mesmo para a

os afrodescendentes, dando a impressão de

Matemática” inferioriza os afrodescenden-

que temos uma dificuldade genética para o

tes e cria um medo interior, uma rejeição a

aprendizado da Matemática. Assim, uma das

essa área do conhecimento. Fica no ar um

tarefas importantes da Afroetnomatemática

pensamento, como se os testes escolares de

é o uso da História de africanos e afrodes-

Matemática pudessem revelar a verdade do

cendentes para mostrar o sucesso passado

credo esdrúxulo, mostrando uma confirma-

nas áreas da Matemática e dos conhecimen-

ção da suposta inferioridade cognitiva des-

tos relacionados com esta área do conheci-

tes afrodescendentes para a Matemática. O

mento, como a Arquitetura e a Engenharia.

credo serve para justificar a falta de ação e de adequação do sistema educativo às ne-

Tendo em mente esta finalidade da Afro-

cessidades de aprendizado matemático dos

etnomatemática é que organizamos este

afrodescendentes. A persistência de uma

texto, em quatro direções. Abrimos nosso

abordagem universalista produz discursos

caminho de exposição pela apresentação

antipedagógicos de que os educadores en-

biográfica resumida de quatro expoentes

sinam “igualzinho a todos”, e se deduz que

afrodescendentes da Arquitetura e da Enge-

“uns” aprendem, ou seja, os eurodescenden-

nharia na cultura brasileira. Seguimos pela

tes, sobretudo, e “outros” não aprendem. Os

exemplificação da Matemática nas práticas

outros têm designação social de pretos, po-

culturais africanas. Reforçamos nosso argu-

bres e pardos.

mento pelas realizações da Afroetnomate-

209


mática pelas práticas culturais das religiões

lhou em Engenharia na Secretaria de Obras

do Candomblé no Brasil. Terminamos pela

Públicas do Estado de São Paulo, como dese-

introdução de um jogo antigo africano, mui-

nhista. No entanto, era autodidata e apren-

to útil para a educação Matemática brasilei-

deu Arquitetura e fez muitos projetos, cuja

ra atual. A função deste texto é dar motiva-

assinatura foi de outro profissional diploma-

ção ao leitor educador para ir consultar uma

do. Outra dificuldade é que o país sempre

literatura mais ampla, apresentada no final

desprezou o conhecimento de africanos e

do texto.

afrodescendentes, devido aos racismos ou à falta de conhecimento dos responsáveis

Afrodescendentes expoentes na engenharia e na arquitetura Na década de 1970, eu estudei Engenharia na Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo e, logo no início do curso, encontrei nesta escola a presença de dois destacados professores negros. Um já falecido, mestre da área de Topografia e Aerofotometria, Professor Sergio Sampaio, o outro, um dos engenheiros de renome nacional da área do Planejamento de Transporte, o Professor Doutor Felix Bernardes.

pela elaboração da cultura oficial.

Mestre Valentim é um gênio afrodescendente, que inaugura o urbanismo no Brasil. Seu mais importante projeto, o “Passeio Público do Rio de Janeiro”, construído em 1783, é o primeiro conjunto arquitetônico urbano do Brasil e das Américas com ajardinamento e obras de arte ao estilo francês. Trata-se de um gênio do Urbanismo, da Arquitetura e da Escultura, cuja importância nacional é quase que incomparável. A obra do mestre Valentin é única pela perfeição alcançada, afirmam os especialistas (SANTOS, 1978),

Comentando com meu pai sobre a presen-

(BATISTA, 1940). Nasceu no Serro, em Minas

ça destes professores ilustres, meu pai fez-

Gerais, em 1745, filho de uma brasileira ne-

-me ver que a Engenharia brasileira começa

gra e de um português. Viajando a Portugal,

com grandes expoentes negros. Dentre eles

aprendeu o ofício de escultor e entalhador

Mestre Valentim, Theodoro Sampaio, An-

e aprendeu sobre edificações. Retornou ao

dré Rebouças, Antonio Rebouças, Manoel

Brasil em 1770, passando a residir e traba-

Quirino. A história dos afrodescendentes na

lhar no Rio de Janeiro. Durante a gestão do

Engenharia brasileira é muito rica, mas um

Vice-Rei Dom Luís de Vasconcelos, de 1779

pouco difícil de ser recuperada, pois muitos

a 1790, foi o principal construtor de obras

dos participantes eram autodidatas, cons-

públicas, atuando em Saneamento, Abaste-

truíam sem terem diploma das escolas de

cimento de Água e Praças Públicas. Morreu

Arquitetura. Meu pai mesmo sempre traba-

em 1813.

210


Theodoro Sampaio (1855-1937). Dentre os

como advogado e estadista na corte. Ficou

mestres dos mestres, a minha maior admi-

conhecido com o nome de conselheiro An-

ração é pelo engenheiro Theodoro Sampaio,

tonio Rebouças. Era autodidata e, devido a

devido à riqueza da sua história de vida. Era

seus conhecimentos, obteve licença para

filho de escrava, nascido em Santo Amaro

exercer a advocacia em todo o país. Ganhou

da Purificação, na Bahia, e, depois de for-

notoriedade nas lutas pela independência

mado, reuniu dinheiro para comprar a liber-

do Brasil na Bahia. Este estadista teve dois

dade da sua própria mãe. Foi um expoente

filhos engenheiros que, pelas suas obras, fi-

em diversas áreas do conhecimento, sendo

zeram nome na Engenharia brasileira. Eles

pesquisador na Geografia, no Saneamento

são André Rebouças (1833 – 1898) e Antonio

e na Filosofia. Mesmo com a sua genialida-

Rebouças (1838 – 1991) (Carvalho, 1998). O

de e cultura, foi vítima das diversas facetas

túnel Rebouças, existente na cidade do Rio

do racismo brasileiro, o que prejudicou em

de Janeiro, tem este nome em homenagem

muito a sua carreira profissional e acadê-

ao Engenheiro Antonio Rebouças. Os dois

mica, sem, no entanto, impedi-lo de deixar

engenheiros são nascidos na cidade de Ca-

exemplar legado para as gerações que o su-

choeira, no interior da Bahia. Estudaram

cederam. Viveu e estudou em pleno escra-

na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que

vismo criminoso. Estudou na Escola Politéc-

antes tinha o nome de Escola Militar, for-

nica do Rio de Janeiro e se formou em 1877.

maram-se em 1860 em engenharia, tendo

Foi engenheiro responsável pelos planos de

antes bacharelado em Ciências Físicas e Ma-

água e de saneamento das cidades de Santos

temáticas, em 1859, depois fizeram estudos

e de Salvador. Foi professor da Faculdade de

complementares de Engenharia em grandes

Filosofia e fundador da Escola Politécnica da

estruturas na França. Antonio Rebouças se

Universidade de São Paulo. Dedicou-se tam-

dedicou à construção de estradas de ferro

bém à política, sendo deputado federal pela

e foi responsável pela construção da antiga

Bahia, em 1927. A rua Theodoro Sampaio, no

estrada de ferro de Paranaguá, no estado do

bairro de Pinheiros, em São Paulo, é uma

Paraná, uma das maiores e mais belas obras

homenagem de reconhecimento da socieda-

da engenharia brasileira. André Rebouças

de paulistana a este ilustríssimo engenheiro

projetou obras de abastecimento de água do

negro baiano (COSTA, 2001).

Rio de Janeiro e as Docas da Alfândega, desta mesma cidade. Foi engenheiro do Exérci-

No período do Império, que também faz

to Brasileiro durante a Guerra do Paraguai.

parte do período do escravismo crimino-

Os irmãos Rebouças foram abolicionistas e

so que foi mantido pelo Império brasilei-

lutaram em defesa dos direitos sociais dos

ro, um negro baiano teve grande destaque

africanos e afrodescendentes.

211


Manoel Quirino foi artista plástico, arquite-

A nossa ancestralidade é a nossa história,

to, professor de desenho, artesão, jornalis-

ela é base da nossa identidade étnica. E nos-

ta, pesquisador da cultura de base africana,

sa ancestralidade na Arquitetura e na Enge-

político e sindicalista. Torna-se difícil falar

nharia brasileira é muito boa, por isto de-

de pessoa com tão amplo campo de conhe-

veríamos cultuá-la e cuidá-la, para que nos

cimento e com uma vida tão intensa. Se não

inspire no presente para formarmos grandes

tivesse sofrido as injustiças da cor da pele,

engenheiros afrodescendentes. Na ancestra-

seria sempre citado e aplaudido como um

lidade mais antiga africana, a religião tam-

grande intelectual brasileiro. O seu pensa-

bém registra feitos importantes nas áreas

mento abre um ciclo de uma nova forma de

de Tecnologia, Matemática, Arquitetura e

pensar os africanos e as culturas africanas

Engenharia, dados nos mitos sobre Inquises,

no Brasil. Somente em tempos recentes foi

ou de Orixás, como Ogum e Oya (Gleason,

dada a importância que a sua obra merece

1999).

(LEAL, 2004), (SODRÉ, 2001). Nasceu em pleno tempo de escravismo criminoso na Bahia, em 1851, e foi criado sobre as marcas deste sistema injusto. Ficou órfão e foi criado por

Africanos no uso da matemática 212

uma família que logo percebe seus talentos artísticos e o envia para os cursos de artes.

Pequeno conto: O fazedor de fumaça branca

Foi convocado quando jovem para a Guerra

(Henrique Cunha Jr.)

do Paraguai, indo para o Rio de Janeiro, mas devido aos seus estudos consegue ficar livre

Parece ser costume de certas tribos euro-

do recrutamento. Voltando à Bahia, inicia

peias realizar um estranho ritual. Todas as

ampla atividade sindical. Funda, em 1874, a

vezes, quando vão falar de África, o fazem

Liga Operária de Artesões da Bahia. Foi no-

em ambientes fechados e acendem grandes

meado vereador de Salvador, sendo reeleito

fogueiras. A fumaça branca logo toma o am-

pelo Partido Operário. Paralelo às atividades

biente e tolda os olhos e, mesmo olhando

político-sindicais, completa os estudos em

para as coisas da África, eles não veem nada.

artes e torna-se professor de Desenho. Dos

O hábito das fogueiras foi por muito tem-

estudos em Artes do Desenho, evolui para a

po praticado pelas comunidades de cientis-

Arquitetura. Foi intelectual ligado ao Institu-

tas. Um dia, alguns aboliram este método

to Histórico e Geográfico da Bahia. Escreveu

e se surpreenderam com o que viram. Qual

no jornal A Província e O Trabalho. Morreu

a surpresa quando viram, na África, todas a

em 1923, deixando vários livros sobre a cul-

origens dos conhecimentos europeus. A vai-

tura africana no Brasil.

dade era talvez a maior destas fogueiras.


A prepotência europeia fez com que as teo-

ções comerciais e culturais entre as diversas

rias racistas tivessem espaço na ciência do

regiões africanas. Deste modo, mostro que

ocidental, atrasando significativamente os

os conhecimentos, sobretudo os científicos

conhecimentos sobre o continente africano.

e tecnológicos, se propagam por todo o con-

Os povos africanos foram denominados de

tinente. Outros caminhos poderiam ser to-

tribais, incultos, meio irracionais e despro-

mados para este ensino, um deles é tomar

vidos de civilização. A onda de racismo nas

as construções africanas, relacioná-las com

ciências se proliferou nos séculos 19 e 20.

a Matemática e com a História da tecnolo-

Infelizmente, até hoje faz parte do conhe-

gia no continente africano (COSTA; CUNHA,

cimento difundido por muitos educadores

2004).

sem informações consistentes sobre o continente africano. Esta ausência de informa-

No continente africano, as bases numéricas

ção e a prática da desinformação faz desses

e as geometrias são diversas, mas existem

educadores uns racistas inconscientes das

em todos os povos, elaboradas em lógicas

suas formas de ação.

e formas de exposição que são, às vezes, de difícil interpretação para quem foi formado

Deste fato resulta que muitos não se con-

na cultura brasileira ocidental. Esta dificul-

sideram racistas, mas executam práticas

dade de interpretação e de compreensão da

educacionais e sociais racistas. As práticas

forma de exposição levou, por muito tempo,

sociais inadequadas impediram a ciência

à conclusão errônea sobre a inexistência de

e os educadores de verem o esplendor das

conhecimentos matemáticos importantes

culturas de base africana e a contribuição

nestas culturas.

destas para o conhecimento da humanidade. Muitos dos feitos no campo do conhe-

As bases numéricas utilizadas são variadas

cimento matemático foram considerados

nas sociedades africanas (ZASLOVSKY, Clau-

como restritos ao Egito e não viam que estes

dia, 1973). Todas as sociedades africanas apre-

conhecimentos se expandiram por extensas

sentam formas de contar. As bases utilizadas

regiões do continente africano. Não conse-

são as bases 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 20 e 24.

guiam nem mesmo estabelecer que muitos dos conhecimentos foram transmitidos de

Os conhecimentos de Geometria, no con-

outros povos africanos para o Egito. Quan-

tinente africano, não se restringem ao que

do eu leciono história africana (CUNHA JR.,

nós chamamos de Geometria Euclidiana.

1999), começo dividindo a África em ma-

Outras lógicas de composição geométrica

crorregiões em torno das grandes bacias

são encontradas. Uma delas, bastante di-

fluviais, e daí desenvolvo um mapa das rela-

fundida em diversas aplicações praticas, é

213


a Geometria Fractal. A Geometria Fractal é

africanas no Grande Zimbábue (MUBUMBI-

constituída de um elemento geométrico de

LA, 1992). O Grande Zimbábue é uma região

base, que sofre replicamentos por operações

na África Austral. Neste fractal, as figuras

de rotação e ampliação. Na Geometria Frac-

de base são os quadrados e suas rotações,

tal, cada elemento é constituído de um con-

com ampliações dos lados dos quadrados

junto de elementos com o mesmo formato,

nas mesmas proporções. Esta figura geomé-

mas em tamanho e disposição diferentes.

trica de base da esquerda aparece, na cultu-

Os exemplos da Geometria Fractal apare-

ra da região, de diversas formas estilizadas.

cem na construção de vilas de casas numa

Ela está gravada em tecidos, leques de fibra

cidade, em formas de penteados de cabelos,

vegetal e desenhos corporais. Entretanto,

em padronagem de tecidos ou em paredes

este fractal tem uma importância maior

acústicas em cabanas (CUNHA JUNIOR/ME-

para a Matemática. Ele permite termos uma

NEZES, 2002). Aqui no Brasil, as geometrias

demonstração original do teorema de Pitá-

fractais aparecem na arte das culturas afro-

goras pelas áreas das figuras geométricas

descendentes, sendo um excelente exemplo

inscritas. Trata-se de uma demonstração

alguns trabalhos de Emanoel Araújo, como

importante de geometria, bem difundida em

também de Aluisio Carvão. No campo da

uma grande região africana.

214

Matemática ocidental, o conhecimento da Geometria Fractal é muito recente e tem

Para quem quiser ver a demonstração, te-

tido grande utilidade nas áreas de produção

mos que a área do quadrado mais externo é

de circuitos semicondutores, nos campos da

igual à do quadrado interno mais os quatro

Informática para representação e reconstru-

triângulos retângulos complementares. O

ção de formas complexas. As aplicações de

lado do quadrado interno é a hipotenusa do

Geometria Fractal estão relacionadas com

triângulo retângulo. O lado do quadrado ex-

as Tecnologias da Informática.

terno é igual à soma dos lados do triângulo retângulo. A área do triangulo retângulo é a

Para exemplificar a realização de uma figura

área do retângulo, dividida por dois. Escre-

de Geometria Fractal, foi tomado o fractal

vendo a igualdade das áreas, sai o quadrado

de quadrados do Zaire, que aparece no livro

da hipotenusa, que é igual à soma do qua-

de Mubumbila sobre ciências e tradições

drado dos catetos.


Figura 1 - Os quadrados fractais e suas variantes iconográficas.

Matemática nos terreiros

Nos anos de 1980, as Ciências da Matemática de Sistemas Dinâmicos Complexos es-

A minha formação em Engenharia me levou

tavam impactadas pelo que era considerado

a uma especialização em Sistemas Dinâmi-

um dos maiores avanços na ciência, que a

cos. Esta é uma área da Matemática que

teoria do Caos. Esta teoria mudou muita a

lida com sistemas que têm movimento e

nossa visão de cientistas sobre a organiza-

que fazem, deste movimento armazenado,

ção das ciências e sobre a nossa capacidade

energia. Eu também tinha conhecimentos

em prever fatos da natureza através das ci-

em História africana e estava, em 1987, pre-

ências. A teoria do Caos explica a organiza-

ocupado com as questões das tecnologias

ção interna de grandes distúrbios que pare-

africanas transportadas e modificadas por

ciam ser totalmente desorganizados e sem

africanos e afrodescendentes na História do

uma explicação matemática. Foi uma teoria

Brasil e das Américas. Por esta razão, eu vim

revolucionária, que mostrou a importância

a conhecer duas historiadoras que trabalha-

de pequenos efeitos físicos na produção de

vam com História das tecnologias na África,

gigantescos efeitos no futuro distante. A di-

as Dras. Adelina Apena, da Nigéria; e Gloria

vulgação da teoria do Caos foi feita dizendo

Emengale, de Trinidad e Tobago. Ambas ti-

que ela demonstrava que as batidas das asas

nham se doutorado na Nigéria. Elas foram

de uma borboleta na Ásia poderiam ser o iní-

as pessoas que apresentaram os trabalhos

cio de uma imensa turbulência atmosférica,

de Judith Gleason (GLEASON, 1999), Paulus

como um tufão no Caribe, alguns meses ou

Gerdes (GERDES, 1993, 1990) e Claudia Zaslo-

anos mais tarde. A exposição desta teoria

vsky (ZASLOUSVY, 1973), sobre Matemática

do Caos se realizou por uma representação

nas sociedades africanas.

matemática específica em diagramas circu-

215


lares, mostrando as trajetórias caóticas das

A Informática trabalha com zeros e uns,

variáveis observadas (CUNHA JR.; COSTA;

constituindo uma base de estrutura do cál-

HOLANDA; MENESES, 2004).

culo binária, desenvolvida pela Álgebra de Boole. Neste sistema, os números 2, 4 e 16

O que tinha de impressionante em tudo

são de grande significado. Os computado-

isto? Estas representações da teoria do Caos

res eletrônicos evoluíram nas combinações

já existiam há séculos nas representações da

resultantes de 16 elementos, bits, para 32,

Deusa Oya, nas religiões africanas. Esta re-

64, 256, 1.024 e 4.096 e assim por diante. O

presentação está relacionada, na cultura do

interesse científico com relação à cultura do

Terreiro, com os fenômenos de turbulência

Terreiro aparece quando observamos que os

atmosférica de grandes ventos. O trabalho

jogos africanos seguem esta mesma lógica.

de Judith Gleason (GLEASON, 1999) era mais

Os elementos de partida, no jogo de búzios,

surpreendente, pois mostrava a existência

são 16, e se procura a informação pela com-

de uma combinação turbulenta atmosférica

binação desta probabilidade de ocorrência

de dimensão continental e de formação caó-

do búzio aberto (hum) e do búzio fechado,

tica justamente sobre o continente africano

(zero), numa estrutura de 16 combinados

e muito bem representada no conhecimen-

dois a dois. O jogo de búzios é realizado por

to religioso do Candomblé. Deduzimos, daí,

um especialista, depois de um longo perí-

que o conhecimento da teoria do Caos, que

odo de formação. Pois, ao movimento das

é recente para a ciência ocidental, já estava

peças do jogo, que são os búzios, está asso-

registrado e exemplificado como conheci-

ciada uma interpretativa filosófica, que são

mento religioso africano de diversas formas.

os Odus, e cuja complexidade implica uma

Esta impressionante constatação mexeu

ampla reflexão sobre o destino possível dos

demais com a minha emoção e com o meu

seres individuais e da sociedade na sua to-

respeito em relação aos conhecimentos do

talidade.

Terreiro. O meu respeito pelo conhecimento ancestral triplicou, não se tratava apenas da

Nas sociedades africanas tradicionais, esta

minha história, mas de histórias significati-

formação de especialista no jogo dura perío-

vas para o conhecimento da humanidade.

dos de até 20 anos.

Desde então, a procura se ampliou, e não

Mas a existência de uma estrutura numérica

tinha como não me inquietar pela organi-

2, 4, e 16 nos terreiros poderia ser tida como

zação dos chamados jogos de adivinhação

simples coincidência. Assim seria, mas não

africanos (BASCOM, 1980), cujo exemplo bas-

é. Não é, dado o conhecimento, pelos afri-

tante conhecido é o jogo de Búzios, no Brasil.

canos, de jogos de tabuleiros com esta es-

216


trutura de 16 casas e jogados com dois ele-

ralizados sob o nome de Mancala. Algumas

mentos, nos quais se pode fazer cálculos em

mancalas são ábacos usados para cálculo

diversas bases numéricas, em particular na

aritmético, como se fosse um computador

base binária. O conhecimento do equivalen-

de madeira.

te à Álgebra de Boole, ocidental, nas sociedades africanas, é possível que date de mais de

As mancalas são jogos executados em tabu-

3.000 anos. O professor Dr. Africano Muleka,

leiros de madeira, geralmente muito orna-

radicado no Brasil e trabalhando em Jequié,

mentados. Têm duas filas de casas côncavas

na Bahia, apresentou tese na Universidade

para cada lado de cada jogador. Nas bases

de São Paulo, mostrando estas evidências

das sequências de casas, temos duas cavida-

dos jogos de Búzios e da ligação destes com

des maiores para servirem de depósito das

o cálculo de estruturas computacionais.

peças capturadas durante o jogo por cada

Estes são dois dos muitos exemplos signifi-

jogador. As mancalas mais conhecidas têm

cativos de conhecimentos em Matemática

duas fileiras paralelas de seis casas e são

e Informática que podemos encontrar nas

atribuídas, a cada casa, quatro peças ou

culturas de comunidades de terreiros.

quatro sementes para o funcionamento do jogo. Temos mancalas como o Yolé, com 30

Aware, um jogo milenar africano

casas, organizadas em 5 colunas, e jogado com 12 peças de cores diferentes em cada casa.

Aware ou Oware é um jogo que era jogado especialmente pelos povos Ashanti, de

Na versão mais simples da Mancala, temos

Gana, e foi devido ao estudo deste povo que

o tabuleiro de 12 casas e o jogo começan-

tomei o primeiro conhecimento deste jogo

do com 4 peças em cada casa. O objetivo do

em 1982. Mas, depois, vim a saber que este

jogo é recolher o maior número possível de

jogo é encontrado em muitas regiões africa-

peças do jogador oponente. Para realizar o

nas, com diferentes nomes. Adi no Daomé,

jogo, um dos jogadores vai tomar as peças

Andot no Sudão, Wari ou Ouri, no Senegal e

de uma das suas casas e distribuí-las nas ca-

Mali. O jogo também chegou a diversas re-

sas do outro jogador, sendo uma por cada

giões das Américas, inclusive ao Brasil, com

casa, no sentido anti-horário. Neste sentido,

os nomes de Oulu, Walu, Adji e Ti. Estas de-

os depósitos das extremidades do tabuleiro

nominações fazem parte de um conjunto

têm a função de casa. Quando se passa pelo

de jogos e formas de cálculo em tabuleiros

próprio depósito, deixa-se aí uma das peças,

encontradas nas diversas partes da África e

quando na distribuição se passa pelo depósi-

da diáspora Africana, que podem ser gene-

to do oponente, se pula a distribuição.

217


Quando, na distribuição das peças de uma

BATISTA, Nair. Valentin da Fonseca e Silva.

casa para as outras, a última peça cai no seu

Revista do SPHAN, v. 4. Rio de Janeiro, 1940.

depósito, então você joga de novo. Mantém-se o mando do jogo. Ou seja, escolhe-se uma casa e se distribuem as peças aí contidas, uma a uma, em sequência anti-horária. Agora, na distribuição das peças, se a última cair numa casa do seu lado, você leva para o seu depósito todas as peças aí contidas. Se o buraco estiver vazio, leva-se esta peça e todas da casa do lado oposto. O jogo termina quando toda uma fileira de casas de um jogador estiver vazia. Aí, são contadas as peças contidas em cada depósito, vencendo

CARVALHO, Maria Alice Rezende. O Quinto Século. André Rebouças e a Construção do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1998. COSTA, Eliane Onuwale; CUNHA JUNIOR, Henrique. Construções Históricas Africanas e Construtivismo Etnomatemático em Sala de Aula de Escola Pública de Maioria Afrodescendente. Anais do Segundo Congresso Brasileiro de Etnomatemática. CBEM2, 2004.

quem tiver maior número de peças. O jogo

COSTA, Luiz Augusto Maia. O Ideário Urba-

implica uma constante observação de qual

no Paulista na Virada do Século. Engenheiro

casa se começa a tirar as peças e qual o nú-

Teodoro Sampaio e Urbano Moderno (1886

mero de peças contidas para se manter a

– 1903). São Paulo: Dissertação de Mestrado.

continuidade de mando de jogo.

FAU – USP, 2001.

Em algumas regiões da África, o jogo é re-

CUNHA JUNIOR, Henrique e MENESES, Ma-

alizado na área, cavando-se pequenos bu-

rizilda. Formas Geométricas e Estruturas

racos em linha e utilizando pedregulhos ou

Fractais na Cultura Africana e dos Afrodes-

conchas como peças para os movimentos. O

cendentes. São Carlos: Anais do Segundo

mesmo pode ser realizado sobre uma mesa

Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros.

com pires de xícaras de café ou chá e um

2002.

prato de sobremesa como depósito. CUNHA JUNIOR, Henrique. Africanidade, Afrodescendência e Educação. Revista Educa-

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p. 39-51.

219


III. A multiculturalidade na educação estética1 Ana Mae Barbosa2

Apresentação

Ser um professor multiculturalista é ser um professor que procura questionar os valores

A necessidade de uma educação democrá-

e os preconceitos.

tica está sendo reivindicada internacionalmente, nos dias de hoje. Contudo, somente uma educação que fortalece a diversidade cultural pode ser entendida como democrá-

Sabemos que, no Brasil, há preconceito contra a própria ideia de multiculturalismo. Para os mais preconceituosos, é coisa de feminista histérica ou de “crioulo”; para ou-

tica.

tros, é invenção de americano, que não tem A multiculturalidade é o denominador co-

nada que ver conosco porque, dizem, vive-

mum dos movimentos atuais em direção

mos numa democracia racial e as mulheres

à democratização da educação em todo o

aqui têm acesso ao poder e os negros não

mundo. Os códigos elaborados pelos euro-

são discriminados.

peus e pelos norte-americanos brancos não são os únicos válidos, apesar de serem os

O crítico de cinema norte-americano Ro-

mais valorizados na escola, por razões fun-

bert Stam, em entrevista à Folha de S. Paulo

dadas na dependência econômica, que se

(04/07/95), lembra que o multiculturalismo

intensifica com a dependência cultural. A

tem tudo a ver com o Brasil. O modernis-

preocupação com o pluralismo cultural, a

mo de Mário de Andrade, a antropofagia de

multiculturalidade e o interculturalismo nos

Oswald de Andrade e a “Tropicália” de Cae-

leva necessariamente a considerar e respei-

tano e Gil são exemplos de um conceito de

tar as diferenças, evitando uma pasteuriza-

multiculturalidade mais amplo até do que o

ção homogeneizante na escola.

que os americanos estão manejando.

1

Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 3.

2

Professora da ECA-USP (Pós-graduação, linha de pesquisa em Arte Educação).

220


Desenvolvimento

1. Compreender que a Arte pode conferir identidade às pessoas através de sím-

O ideal mesmo será começar indagando porque o professor de Arte precisa trazer para sua sala de aula a preocupação com as diferenças culturais.

bolos. Um exemplo: a Arte Haida e a Arte contemporânea, no Canadá, e a Arte Marajoara, no Brasil. Por que a Arte Marajoara perdeu sua força para conferir identidade e a Arte Haida,

A resposta, embora pareça óbvia, foi até ago-

também indígena da mesma América,

ra pouco considerada pelos educadores: em

tornou-se dignificadora para os seus

uma sala de aula, especialmente na escola

descendentes e respeitada pelos in-

pública, se inter-relacionam indivíduos de

divíduos de outras culturas, inclusive

diferentes grupos culturais, que terão sem-

dominantes? Atitudes pós-colonialis-

pre que lidar com outros indivíduos também

tas podem ser alimentadas pela atitu-

de diferentes culturas e subculturas.

de pluralista em relação à cultura.

Os grupos culturais que se imbricam podem

Uma criança negra que visite um museu

ser identificados pela raça, gênero, orienta-

que exiba arte ou “artefato” africano pode-

ção sexual, idade, locação geográfica, renda,

rá de lá sair com seu ego cultural reforçado

idade, classe social, ocupação, educação, re-

pelo conhecimento, apreciação e identifi-

ligião.

cação com os valores vivenciais e estéticos da Arte Africana, ou completamente des-

As principais questões que norteiam a atitu-

possuído culturalmente e desidentificado

de multiculturalista no ensino da Arte são:

com a gênese de sua cultura, dependendo da orientação que o profissional do museu

1. Como diferentes grupos culturais po-

que o receba der a sua visita. Já vi orientado-

dem encontrar um lugar para a Arte

res de museu ao falarem de Arte africana se

em suas vidas?

referirem apenas à escravidão e aos fazeres manuais dos escravos para contextualizar

2. Entender que grupos culturais diferen-

os objetos e em nenhum momento se re-

tes têm também necessidade da Arte,

ferirem às suas qualidades estéticas. Entre-

mas que o próprio conceito de Arte

tanto, quando se confrontavam com a Arte

pode diferir de um grupo cultural para

de código europeu e norte-americano bran-

outro.

co, a contextualização era institucional e a apreciação transcendental, apelando para a

A consciência de que estas questões são bá-

sensibilidade estética, a valoração econômi-

sicas, embora pareçam simples, ajudaria a:

ca e a identificação com status social. Além

221


disso, a consciência relativa a estas questões

sugere uma interpretação para a qual co-

também contribui para:

laboram uma gramática, uma sintaxe, um campo de sentido decodificável, a decodifi-

2. Sensibilizar para problemas de deficiência física e diferença de raças, nacio-

cação do mundo e a poética pessoal do decodificador.

nalidade, naturalidade, classe social, religião.

A ênfase na contextualização é essencial em todas as vertentes da educação contempo-

3. Libertar-se de atitudes discriminatórias

rânea, quer seja ela baseada em Paulo Freire,

em relação a pessoas de origem étnica

Vygotski, Apple, ou genericamente constru-

e ou cultural diferente.

tivista. Sem o exercício da contextualização, corremos o risco de que, do ponto de vis-

4. Ser capaz de responder à diversidade racial, cultural e de gênero de maneira

ta da Arte, a pluralidade cultural se limite a uma abordagem meramente aditiva.

positiva e socialmente responsável. A multiculturalidade aditiva vem sendo veÉ através da contextualização de produtos e

ementemente criticada por sociólogos, an-

valores estéticos que a atitude multicultura-

tropólogos, educadores e arte educadores.

lista é desenvolvida.

Por abordagem aditiva entendemos a atitude de apenas adicionar à cultura dominante

Para uma experiência cognoscente que im-

alguns tópicos relativos a outras culturas.

pulsione a percepção da cultura do outro e relativize as normas e valores da cultura

Multiculturalidade não é apenas fazer cocar

de cada um teríamos que considerar o fazer

no “Dia do Índio”, nem tampouco fazer ovos

(ação), a leitura das obras de Arte (aprecia-

de Páscoa ucranianos ou dobraduras japo-

ção) e a contextualização, quer seja históri-

nesas ou qualquer outra atividade clichê de

ca, cultural, social, ecológica, etc.

outra cultura.

Os PCNs preferiram designar a decodifica-

O que precisamos é manter uma atmosfe-

ção da obra de arte como apreciação. Cos-

ra investigadora na sala de aula acerca das

tumo usar a expressão “leitura” da obra de

culturas compartilhadas pelos alunos, tendo

Arte em lugar de apreciação, por temer que

em vista que cada um de nós participa no

o termo apreciação seja interpretado como

exercício da vida cotidiana de mais de um

um mero deslumbramento, que vai do arre-

grupo cultural.

pio ao suspiro romântico. A palavra leitura

222


Por exemplo, eu me defino, ao mesmo tem-

turais, preconceitos, discriminação,

po, como mulher, do ponto de vista de gêne-

racismo.

ro; nordestina, do ponto de vista da locação cultural; arte educadora, do ponto de vista

4. Enfatizar o estudo de grupos particula-

da ocupação; branca, do ponto de vista da

res e/ou minoritários do ponto de vis-

etnia; heterossexual, do ponto de vista da

ta do poder como mulheres, índios e

orientação sexual; classe média, do ponto de

negros.

vista da renda. Portanto, pertenço a alguns grupos de cultura dominante, mas também

5. Possibilitar a confrontação de proble-

pertenço a grupos culturais discriminados,

mas tais como racismo, sexismo, defi-

como o de mulheres e de nordestinos em

ciência física ou mental, participação

São Paulo. Além disso, como arte educado-

democrática, paridade de poder.

ra, sou discriminada por artistas, historiadores e críticos, os grupos dominantes na área de Arte. Diria que, para termos uma educação multiculturalista, crítica em Arte, é necessário:

6. Examinar a dinâmica de diferentes culturas. 7. Desenvolver a consciência acerca dos mecanismos de manutenção da cultura dentro de grupos sociais.

1. Promover o entendimento de cruzamentos culturais através da identificação de similaridades, particularmente

8. Incluir o estudo acerca da transmissão de valores.

nos papéis e funções da arte, dentro e entre grupos culturais.

9. Questionar a cultura dominante, latente ou manifesta, e todo tipo de opres-

2. Reconhecer e celebrar diversidade ra-

são.

cial e cultural em Arte em nossa sociedade, enquanto também se potenciali-

10. Destacar a relevância da informação

za o orgulho pela herança cultural em

para a flexibilização do gosto e do juí-

cada indivíduo.

zo acerca de outras culturas.

3. Incluir em todos os aspectos do ensino

Embora isto esteja com cara de 10 manda-

da Arte (produção, apreciação e con-

mentos da multiculturalidade em Arte, ar-

textualização) problematizações acer-

riscaria dizer que não são um regulamento,

ca de etnocentrismo, estereótipos cul-

mas lembretes críticos que, se postos em

223


prática, desmentiriam muitos preconceitos culturais,como, por exemplo, a ideia de que

3. A relativização de valores em relação ao tempo.

a melhor Arte é a produzida pelos europeus e a ideia de que a pintura a óleo e a escultura

Propor atividades, como identificar as for-

em mármore são as mais importantes for-

mas de Arte que importam em uma varie-

mas de Arte. Estas ideias só reforçam o códi-

dade de culturas e subculturas, seria uma

go hegemônico. Outra ideia preconceituosa

estratégia que poderia levar a uma atitude

de que a melhor Arte tem sido produzida

multiculturalista.

por homens também seria desmentida se a contextualizássemos em relação ao papel

Educação Multiculturalista permite ao alu-

secundário que as sociedades têm determi-

no lidar com a diferença de modo positivo

nado para as mulheres. A diferença hierár-

na Arte e na Vida.

quica entre artesanato e Arte, que é também preconceituosa, seria contestada se anali-

Não adianta nada fugir do uso de palavras

sássemos o valor dos saberes dos pobres e

como branco, negro, raça, etc. A chamada

dos ricos auferido pela cultura dominante.

linguagem politicamente correta, como diz Gloria Steinem, foi criada pelas feministas

Para chegarmos à desmistificação de muitos

para ironizar o comportamento masculino

preconceitos é necessário discutir:

que buscava escamotear a discriminação. O engraçado é que todos levaram a sério,

1. A função da Arte em diferentes culturas;

quando a luta antidiscriminatória consiste em falar a verdade abertamente, dar o ver-

2. O papel do artista em diferentes culturas;

dadeiro nome que designa o preconceito e não se adaptar aos novos tempos através de designações científicas ou supostamen-

3. O papel de quem decide o que é Arte e o que é Arte de boa qualidade em dife-

te respeitosas, como etnia em vez de raça, afro-brasileiro em vez de negro.

rentes culturas; Ao substituirmos raça por etnicidade, um Estas discussões contribuiriam para: 1. O respeito às diferenças;

princípio de organização socioeconômico e de coesão, inadvertidamente negamos a historia do racismo (JAN JAGODZINSKI, 1997).

2. O reconhecimento de manifestações

Isto significa que a responsabilidade dos

culturais que não se encaixam no sis-

brancos pela exploração e opressão dos ne-

tema de valores que subscrevemos;

gros e índios é suavizada pela demissão da

224


história. Continuaremos a mostrar a nossos alunos o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, como uma magnífica obra de Arte, sem analisar o fato de que ela comemora um episódio colonialista de nossa história, no qual a matança e a escravização dos nativos – os índios – atingiu proporções dizimadoras?

1997. JAGODZINSKI, Jan. “The politics of difference: the fate of art in an age of identity crisis”. In: Phoebe Farris-Dufrene (ed.). Voices of color . Atlantic Highlands, New Jersey, Humanities Press, 1997. MCLAREN,Peter. Multiculturalismo Crítico.

O politicamente correto é um clichê.

São Paulo, Instituto Paulo Freire/ Editora Cortez, 1997.

O que acontece em geral é que mudou a linguagem, mas o preconceito permanece ago-

MARCUS, George E. and MYERS, Fred R. The

ra disfarçado.

traffic in culture. Berkeley, University of California Press, 1995.

Militância multiculturalista é compromisso com o desmonte de preconceitos e não com linguagem atenuante.

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225


IV. A construção estético-cultural de um espaço1 Laura Maria Coutinho2 “As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança, torna-se um filme mudo. Todos nós temos na mente a imagem que é a primeira, ou uma das primeiras, da nossa vida. Essa imagem é um signo, e, para sermos mais exatos, um signo linguístico, comunica ou expressa alguma coisa3”.

Assim como a primeira imagem da vida, a

O que faz o cinema, então? Cria imagens que

que se refere Pasolini na epígrafe acima, cada

são, ao mesmo tempo que as vemos como

um de nós traz consigo a imagem da sua pri-

reais, expressão de coisas e pessoas com as

meira escola ou ainda a primeira imagem de

quais convivemos em nossas lembranças. E

uma escola, ainda que esta nem tenha sido

as lembranças têm origem em muitos luga-

a sua.O primeiro professor, ou professora

res e situações: nas histórias que ouvimos

- geralmente as mulheres atuam mais nes-

em casa, nas experiências pessoais de cada

ses anos iniciais de escolarização -, também

um, na televisão, nos filmes. Também por

compõem nosso banco pessoal de imagens,

isso gosto da ideia de que o cinema é uma

escolares ou não. Os primeiros colegas... a

arte da memória4. As cenas que vemos es-

turma, a fotografia da turma - quando isso

tampadas nas telas não dizem somente da-

fosse possível. Todas essas imagens ensinam

quelas personagens cuja história se desen-

e conformam a ideia que vamos ter dos lu-

volve à nossa frente, no tempo que durar a

gares sociais por onde transitamos. É assim

projeção, mas remetem a todas as outras

com a escola, a família, o trabalho, a cidade,

histórias e personagens que habitam as nos-

os hospitais, os hospícios, as prisões...

sas lembranças. O cinema, com alguns dos

2 Professora da Faculdade de Educação da UnB. Consultora desta série. Participaram de uma discussão na disciplina “Imagem e educação”, de onde se originou este texto, os professores Maria Madalena Torres, Cristiane Terraza, Neusa Deconto, Paula Miranda, Mário Maciel-Marel. 3 Pasolini, Pier Paolo. “Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas” em: Os jovens infelizes: antologia de ensaios corsários. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 125. 4 Ver Almeida, Milton José de. Cinema - arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999.

226


seus filmes, nos faz até mesmo sentir sau-

histórias, os personagens nos acompanham,

dade de lugares aonde nunca pisamos e de

solitárias, para além do filme, às vezes para

pessoas com as quais jamais estivemos. E o

sempre. Na escola, quando o filme termina,

faz em realidade e ficção.

é possível conversar sobre ele e construir uma ou quantas outras histórias cada pes-

No cinema, são os ambientes que (re)-conhe-

soa que viu quiser acrescentar.

cemos claramente que sugerem ações, comportamentos, atitudes que podem, além de

São muitas as razões que justificam o cine-

nos fazer olhar para o filme, olhar também

ma na escola. A sala de aula não é uma sala

para os lugares onde vivemos e, igualmente,

de cinema. Talvez por isso mesmo possa se

para a vida que levamos em casa, na cidade,

constituir em um outro ambiente, que não

na escola. Disse (re)-conhecemos, porque

é nem um nem outro, nem a simples soma

embora possamos estar vendo os lugares fic-

dos dois. Pode se transformar em algo novo,

cionados que o cinema apresenta, pela pri-

tão ou mais rico em possibilidades expres-

meira vez, os mecanismos de construção da

sivas e reflexivas: os filmes, na escola, são

linguagem cinematográfica ativam as lem-

projetados em telas de tevê e o videocassete

branças e assim, vemos as imagens na tela

proporciona outras formas de ver. Pode-se

não somente com o que objetivamente nos

parar o filme, voltar a fita, ver novamente.

mostram, mas também em reminiscências.

Acontece uma outra relação com os filmes

Por meio da linguagem do cinema, é possí-

que, no cinema, uma vez iniciados, seguem

vel ver tudo o que as imagens nos sugerem.

certo percurso espaço-temporal sem ser in-

No momento da projeção, acontece sempre

terrompido. Ainda que o espectador possa

um jogo entre a objetividade das imagens e

levantar e sair da sala, o filme prossegue, a

a subjetividade das lembranças de cada um

menos que falte luz. É bom lembrar, portan-

dos espectadores.

to, que estamos falando de linguagens que dependem de energia elétrica.

Por isso, o cinema na escola pode ser tão rico. Mais do que os conteúdos que cada fil-

Professores e alunos podem utilizar filmes

me possa trazer, a presença do cinema na

por muitos motivos: para enriquecer o con-

escola pode se constituir em momentos de

teúdo das matérias, para introduzir novas

reflexão que transcendam os próprios filmes

linguagens à experiência escolar, para mo-

e incluam o olhar de cada um à narrativa que

tivar os alunos para certo tipo de aprendi-

o diretor propôs e nos ofereceu, em imagens

zagem, para o desempenho de determinada

e sons. Quando vamos ao cinema, às salas

função, para entretenimento. Não que o ci-

escuras de projeção, ao final, as imagens, as

nema chegue na escola sem conflitos. Talvez

227


o cinema na escola deva mesmo se consti-

Um dos múltiplos cenários que o cinema

tuir em oportunidades para a explicitação

contempla é a própria escola. Inúmeros

dos conflitos com os quais a escola e a edu-

filmes tratam dela. Assim, direta ou indire-

cação têm de lidar.

tamente, os filmes nos ajudam a construir nossa imagem de escola, de professores,

Milton José de Almeida diz que “o filme é

de alunos e, até mesmo, da forma como a

produzido dentro de um projeto artístico,

educação escolarizada se insere ou deve se

cultural e de mercado - um objeto da cul-

inserir na sociedade. Convido, então, a uma

tura para ser consumido dentro da liber-

breve reflexão sobre como a escola é vista

dade maior ou menor do mercado. Porém,

pelo cinema, ou como alguns filmes tratam

quando é apresentado na escola, a primeira

as relações que ocorrem nesse espaço so-

pergunta que se faz é: ‘adequado para que

cial. Os personagens que por ali transitam,

série, que disciplina, que idade etc.?’ Às ve-

os papéis que desempenham, as tramas, os

zes ouvimos dizer que um filme não pode

desafios, os conflitos. Penso que a filmogra-

ser passado para a 6ª série, por exemplo,

fia que tem a escola como cenário principal

e no entanto ele é assistido em casa pelo

da narrativa não é tão extensa quanto a que

alunos, juntamente com seus pais.(...) [A

tem como cenário as prisões, por exemplo.

escola] está presa àquela pergunta sobre a

Talvez porque para haver um filme é preci-

adequação, à ideia de fases, ao currículo,

so algum tipo de conflito e os conflitos, nas

ao programa. Parece que a escola está em

prisões, são mais evidentes do que nas esco-

constante desatualização, que é sublinhada

las, têm mais impacto visual. É bom lembrar

pela separação entre a cultura e a educação.

que estamos falando de filmes de ficção e

A cultura localizada num saber-fazer e a es-

não de documentários.

cola num saber-usar, e nesse saber-usar restrito desqualifica-se o educador, que vai ser

Os campeões de audiência, ou os sucessos de

sempre um instrumentista desatualizado”5.

bilheteria, nas escolas, são os filmes que tra-

Entendo a provocação proposta por Milton

tam de situações escolares-educacionais, ou

Almeida como um desafio a todos os edu-

de outras que acontecem dentro delas, ou,

cadores que estão nas escolas e encontram

ainda, que têm as escolas como referência,

nos filmes e na linguagem cinematográfica

pano de fundo. Penso que o que professores

uma forma de ver o mundo em seus múlti-

e alunos buscam, ao levar esses filmes para

plos cenários.

a escola, são as situações exemplares que o

5 Almeida, Milton José de. Imagens e sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 1994, p.8.

228


cinema tão bem retrata. Não quero aqui res-

O mundo visto pelo cinema tem matizes

tringir o que chamo de exemplar, a simples

próprios, embora os filmes retratem a vida

exemplo a ser seguido. Talvez fosse melhor

como ela é, cheia de contradições, as histó-

dizer modelar, como alguma coisa que pode

rias apontam para a transformação, para a

conformar a nossa imaginação e a nossa

mudança. Talvez porque a escola seja mes-

memória e, até mesmo, a nossa maneira

mo um ambiente propício às mudanças ou

de perceber o mundo e a sociedade que nos

porque o filme não se concretizaria sem

cerca. Encontrei em muitos escritos, filmes,

que cumprisse a sua estrutura narrativa:

programas de tevê, uma ideia sobre isso e

apresentação, desenvolvimento, conflito,

que pode ser traduzida mais ou menos as-

clímax, desenlace. “A narrativa parece ser o

sim: toda imaginação é uma espécie de me-

modo mais simples e eficaz de nosso conhe-

mória6.

cimento, o modo pelo qual apresentamos o mundo e os homens de forma que, por um

Assim retorno ao que já expus no início do

momento, sejam inteligíveis para nós mes-

texto: a linguagem cinematográfica, os fil-

mos. Conhecer pode ser apenas isto: contar

mes que vemos - na escola ou fora dela -,

uma história onde o espaço e o tempo do

as situações que imaginamos depois dos

mundo se conjugam na sucessão linear dos

filmes, irão compor, em estética e magia, a

acontecimentos”7.

memória de cada um. A ideia que cada um de nós tem de escola transita, em realida-

Muitas das escolas que conhecemos nos

de e ficção, pelas imagens reais das escolas

filmes trazem a marca da sociedade ameri-

onde estivemos e imagens ficcionais que co-

cana. Somos alfabetizados audiovisualmen-

nhecemos através do cinema, da televisão.

te pelo cinema feito nos Estados Unidos.

Recorremos às nossas lembranças, sejam

Gosto da ideia de que o cinema americano

elas boas ou ruins, sempre que queremos

é o maior do mundo porque retrata uma so-

imaginar, projetar, criar alguma coisa nova.

ciedade que acredita no milagre. Talvez por

Ensinar e aprender são atos de criação; re-

isso mesmo tenha se apropriado, como ne-

correr aos filmes pode ser apenas parte des-

nhuma outra, da linguagem cinematográfi-

se esforço criativo.

ca, e feito dela uma de suas mais poderosas

6 Esta frase encontrei no livro de Shirley Maclaine, (Dançando na luz, Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 37.) que, talvez não por acaso, é atriz e roteirista, embora esse livro não trate de cinema. 7 Lázaro, André. Cultura e emoção: sentimento, sonho e realidade. In: Rocha, Everardo. (org.) Cultura & Imaginário. Rio de Janeiro: Maud, 1998, p.151.

229


indústrias. Pequenos milagres se realizam a

vel professor; Conrak; Sociedade dos poetas

cada filme. Como a redenção da escola po-

mortos, Perfume de mulher (EUA), Adeus, me-

bre, de bairro mais pobre ainda, no filme

ninos (França). Assistimos a histórias com-

“Meu mestre, minha vida” do diretor John

pletamente possíveis, não há nelas nenhum

G. Avildsen. Lá os alunos estavam reféns de

efeito especial de linguagem. Os professo-

traficantes, vândalos e toda sorte de bandi-

res sobretudo, os diretores, os alunos, pais

dos e, pela intervenção de um novo diretor

cumprem a sua função e seu papel. Ora es-

com métodos nada convencionais de ensi-

tão mais próximos do herói redentor, ora do

nar e administrar uma instituição escolar,

bandido mais prosaico. A magia do cinema

conseguem vencer o exame estadual em

ali, é o próprio cinema, com a sua lingua-

tempo recorde.

gem que se expressa por meio da realidade, mesmo sendo ficção. Procurando os filmes

Lembro que este filme deixa claro o fato de

brasileiros que passam em escola, encontrei

basear-se em uma história real. Uma vez

poucos. É bom lembrar que a nossa filmo-

mais realidade e ficção se fundem para rea-

grafia não é mesmo muito extensa por mui-

lizar o milagre de uma sociedade estratifica-

tos motivos que não cabem neste escrito. E

da, hierarquizada, legalista, centrada no es-

escrevendo este texto fiquei pensando que,

forço individual e na vida comunitária, qual

talvez, diferente dos americanos, sejamos

seja, formar vencedores. E o que é ser um

um povo que não acredita no milagre, mas

vencedor? A resposta a essa pergunta pode-

na vida como ela é. Talvez por isso não este-

mos encontrar em quase todas a imagens do

jamos cuidando o bastante do nosso ensino

filme, mas sobretudo num dos discursos do

público e tenhamos deixado o cinema para

diretor a seus alunos: precisamos mudar esta

os americanos e para alguns poucos obsti-

escola, pois vocês estão muito longe do sonho

nados conterrâneos que, além de acreditar

americano que vemos na tevê. Mas uma vez

no milagre do cinema, acreditam também

vemos as narrativas audiovisuais - do cine-

neste país.

ma e da televisão - constituindo a vida de uma nação, ou pelo menos o seu imaginário.

Para encerrar esta nossa reflexão, recorro a Jean-Claude Carrière8 quando diz que a na-

São muitas as histórias que envolvem a es-

ção que não produzir suas próprias imagens

cola que o cinema retrata, posso citar algu-

está fadada a desaparecer. Por isso penso

mas: A corrente do bem; Mr. Holland, adorá-

no cinema que vem de países que se dão a

8 Roteirista e escritor. Presidente da FEMIS, escola francesa de cinema, autor do livro A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

230


conhecer por seus filmes de forma comple-

REFERÊNCIAS

tamente diversa da que vemos nos noticiários da tevê. A tevê nos revela imagens cons-

COUTINHO, Evaldo. A imagem autônoma: en-

truídas por um olhar estrangeiro. Os filmes

saio de teoria do cinema. Recife: UFP/Editora

por um olhar próprio. São assim os filmes

Universitária, 1972.

Os filhos do paraíso e Gabet; ambos tratam com delicadeza e poesia situações escolares. Muito diferentes do que vemos no cinema americano, embora a educação para todos os povos se constitua em um processo de transformação. Talvez não seja exagero dizer, e se o for, deixo como forma de provo-

LEBEL, Jean-Patrik. Cinema e ideologia. São Paulo: Mandacaru, 1989. Lugar Comum - Estudos de mídia, cultura e democracia. Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação da Escola de Comunicação da UFRJ, nº 9-10 set. 1999 abr. 2000.

car o debate, que a nação que não recorrer às suas próprias imagens para educar suas

MIGUEL, Antonio; ZAMBONI, Ernesta (Orgs.).

crianças e seus jovens estará fadada a de-

Representações do espaço: multidisciplinarida-

saparecer duplamente. Mas como lembra

de na educação. Campinas: Autores Associa-

Manoel de Barros, “o mundo não foi feito

dos, 1996.

em alfabeto” e também não em linguagens audiovisuais. Talvez possamos reunir todas

ROCHA, Everardo. (Org.) Cultura & Imagi-

as linguagens e construir, como ainda diz o

nário: interpretação de filmes e pesquisa de

poeta “uma didática da invenção”9.

ideias. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

9 BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1998.

231


V. O

espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão

de mensagens sobre afro-brasileiros1 Heloisa Pires Lima2

Se “é de pequenino que se torce o pepino”,

para a superação de desigualdades históri-

o velho dito popular não deixa de nos aler-

cas. É preciso, sobretudo, superar o silêncio

tar sobre o fato de que é mais fácil deixar

oficial, que consiste na ausência de um ma-

de introduzir um preconceito do que retirá-

terial de apoio bem cuidado, para referên-

-lo depois. A percepção dos afro-brasileiros

cia, o que resulta numa deficiente prepara-

também atravessa o ambiente escolar, onde

ção dos educadores.

estudantes são informados e formados no que devem acreditar e valorizar a respeito destes. Outro alerta está em não nos esquecermos de que o processo de construção de identidades sempre necessita de referenciais. No entanto, se centralizarmos, para análise, o repertório sobre afro-brasileiros que entra através dos vídeos em sala de aula, há de se concluir que ele, como motivo de reflexão, é restrito e raro. Esta é uma das formas cúmplices na reprodução das estereotipias que sobrevivem no cotidiano escolar, base para percepções.

Como pressuposto primeiro, há para considerar o circuito dos meios de comunicação eficazes, com suas representações da realidade, sendo o videográfico uma poderosa linguagem transmissora de mensagens. Se há críticas, que em sua maioria não são positivas, por que não potencializar esse instrumental a favor de uma educação baseada nos valores inspirados nas perspectivas da Lei n. 10. 639? Antes, porém, o exercício de leitura dos conteúdos sempre se torna relevante. Tomemos, para exemplo, a representação de um personagem escravizado

Por outro lado, a demanda social por uma

bastante recorrente como referência para

cidadania plena para essa população tem no

a identidade sobre afro-brasileiros. A chave

espaço educacional um grande potencial

emocional do sofrimento como associação

1 Repertório afro-brasileiro – 2004 / PGM 3 2 Consultora para a série Repertório afro-brasileiro. Antropóloga, Mestre e doutoranda pela USP, escritora de livros infanto-juvenis como Histórias da Preta (1998).

232


pode ser uma armadilha para a correspon-

não estão nem com um pandeiro na mão,

dência. Um telespectador, se afrodescen-

nem como uma bola no pé e nem com uma

dente, tem que lidar com a dor exposta na

arma AR-15 na mão. A maioria negra, na opi-

tela e reviver constrangimentos históricos.

nião de Jéferson De, não mexe com pandei-

Não sendo, esta memória pode ainda levar a

ro, não mexe com uma AR-15 e não trabalha

concluir ser a população escravizada tão so-

com bola de futebol3.

mente um grupo de perdedores sociais. Retomar a escravização, geralmente com relações de poder unilaterais, reifica uma marca social. O caso de reavivar um passado é mais complicado ainda, visto serem os modelos de referência sobre afro-brasileiros muito restritos como leque de representações. O problema não é ser escravizado, mas ser tão somente e apenas escravizado. Isto sem falarmos no histórico dessas abordagens que idiotizaram, tornaram paisagem, perpetuando a ideia de objetos posta na escravização, sem problematizar essa ideia. Ou, então, quando esses personagens se tornam protagonistas, passam por um processo de branqueamento infalível.

Dá para perceber, então, que acompanhando a questão dos livros que circulam na sala de aula, o acervo ficcional de vídeos disponíveis deve ser selecionado de modo a ampliar o repertório de associações sobre afro-brasileiros. Soma-se a isto o problema da abordagem nesses clichês, mais agravada quando o público dessa produção é o infanto-juvenil. Cabe atribuir aos meios de comunicação uma alta cota de responsabilidade na oferta de materiais que garantam o bem-estar social, moral, espiritual e mental da criança, o que não pode ser deixado por conta da boa vontade profissional e ética dos realizadores. É fundamental trabalhar a capacitação dos telespectadores, incentivar o debate,

É importante acompanharmos o debate pro-

aprimorar formas seletivas que visem pre-

posto por uma inédita geração de cineastas

miar roteiros inovadores e cuidadosos. De-

negros, como a fala de Jeferson De, um dos

ve-se ressaltar o fenômeno do filme Kiriku e

idealizadores do Dogma Feijoada. Ao comen-

a Feiticeira, que tem inspirado inúmeras ini-

tar sobre uma presença de protagonistas ne-

ciativas de educadores atentos à qualidade

gros nos filmes nacionais, chama a atenção

da construção da figura humana africana. A

para o fato de que em todos foi colocada

afetividade que acompanha o personagem

uma arma na mão. Diferentemente, os ne-

demonstra um caminho para a inversão cul-

gros que ele procura retratar nos seus filmes

tural necessária como representação. Outro

3 Entrevista realizada em 17/12/2002 - Por Thiago P. Ribeiro no site: htpp://www.cinemando.com.br

233


exemplo é O menino, a favela e a tampa de pa-

no entendimento das leis próprias desse có-

nela, do diretor Cao Hamburguer, que retra-

digo visual. Essa alfabetização também ne-

ta uma favela, referência como repertório

cessita ser iniciada.

associado aos afro-brasileiros. No entanto, o que de fato é roteirizado é a história da afetividade nas relações entre o herói real, no ambiente real, mas que não é desvalorizado por ser espaço de pobreza. Tem uma mãe que tem um abração do tamanho do mundo, um guri que cumpre uma tarefa, enfim um enredo que emociona e que valoriza positivamente, dignamente, e é preciso ainda apontar, que humaniza o imaginário sobre a vida na favela.

Uma variedade de possibilidades pode ser observada na construção da África como material cinematográfico, depois circulando como vídeo. Se sempre existe um ponto de vista, uma abordagem na arquitetura da representação, vale alertar que os africanos foram retratados por décadas a partir de representações caricaturais, de onde emanaram canibais, ingênuos, boçais, infantis, macaqueadores do branco, travestis dos europeus e incapazes de se governarem por

Outro aspecto, ao pensarmos no potencial

si mesmos. Eles não tinham inteligência e

da videoteca, está em promover o diálogo

não realizavam feitos pessoais. Carregados

entre pesquisadores e cineastas, o que seria

de faltas, circularam nas telas com o reforço

tão salutar quanto incentivar o registro por

de não terem a boa pele, o bom cabelo, a

educadores de suas atividades nessa lingua-

boa língua, a boa religião. Essa foi uma Áfri-

gem. A desconstrução da teia de ideias pos-

ca produzida por europeus e americanos,

ta numa película se aperfeiçoa no domínio

num elaborado sistema de ideias-imagens,

dessa tecnologia particular. O exercício pode

que montou um esquema de referências que

se estender aos alunos, que serão mais crí-

dá legitimidade à ordem vigente. Historica-

ticos e compreenderão melhor o processo,

mente, a África e os africanos são apresen-

se também se posicionarem como produto-

tados sob a viscosidade do paternalismo, em

res, seguidos pela avaliação da comunidade.

filmes onde geralmente apareceram estúpi-

Assim, eles estarão mais bem preparados

dos, subevoluídos, ridículos, selvagens, no

quando expostos a violências simbólicas na

patamar da animalidade, articulados num

difusão de mensagens que possam cons-

universo de desigualdade e troça.

tranger, oprimir, hierarquizar. A forma de ver o filme em sala de aula, seguida de ativi-

E é exatamente por isso que as autoridades

dades participativas a ele relacionadas ou à

não podem permanecer indiferentes em re-

linguagem audiovisual do deleite, influencia

lação à garantia da qualidade do que é vei-

234


culado para as jovens idades. Quanto mais

____________. Estratégias e políticas de com-

tenras, menor a defesa para internalizar

bate à discriminação racial na mídia. In:

crenças e valores que circulam vinculadas

Munanga, K. (org.). Estratégias e políticas de

a estratégias de poder, à mediocridade pro-

combate à discriminação racial. São Paulo:

gramada, ao consumo, etc.

Edusp/Estação Ciência, 1996.

A Lei Federal n. 10.639, vinda de encontro a

FEILITZEN, Cecília von & Bucht, Catharina.

antigas reivindicações dos movimentos so-

Perspectivas sobre a criança e a mídia. Bra-

ciais negros, atinge o sistema de produção

sília: UNESCO, SEDH/Ministério da Justiça,

de material de apoio quando focaliza a vi-

2002.

deoteca pendente, ora para sua avaliação, ora para o seu potencial para as mudanças necessárias. Nesse contexto, vale salientar ainda o espaço estratégico para programas que discutam, atualizem, sejam vitrine das

IBEAC. A imagem do negro nos meios de comunicação. Relatório do Seminário realizado em São Paulo, 1986.

produções, como é o caso dos programas educativos, programas documentais com

JOLY, Martine. Introdução à análise de ima-

matérias que problematizem percepções de

gens, Campinas, Papirus, 2002.

mundo. MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do munO encanto produzido por uma obra pode vir a

do. São Paulo, Cosac & Naif, 2002.

ser um instrumento de valorização positiva e construtiva dos referenciais afro-brasileiros.

RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

REFERÊNCIAS STAM, Robert & SHOHAT, Ella. Estereótipo, AVELAR, José Carlos. Imagem e som - imagem e ação. São Paulo, Paz e Terra, 1982.

ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo, Editora Senac, 2000.

realismo e representação racial. In: Imagens, ago./dez., Campinas, São Paulo.

VASCONCELOS, Paulo C. Comunicação e imaginário na cultura infanto-juvenil. São Paulo: Ed. Zouk, 2002.

235


VOVELE, Michel. Imagens e imaginário na História. São Paulo, Ática.

VIDEOGRAFIA - CINEMATOGRAFIA A Revolta do Video Tape - Rogério Moura (Bra-

Gênesis - Jefferson De (Brasil) Geraldo Filme - Carlos Cortiz (Brasil) Kirikou e a Feiticeira - Michel Ocelot (França) La ultima Cena - Tomás Gutiérrez (Cuba)

sil)

Little Senegal - Rachid Bouchareb (Alg./Fr./

Abolição - Zózimo Bulbul (Brasil)

Al.)

Aruanda - Linduarte Noronha (Brasil)

Minoria Absoluta - Arthur Autran (Brasil)

Assalto ao Trem Pagador - Roberto Farias

O menino, a favela e as tampas de panela- Cao

(Brasil)

Hamburger (Brasil)

Cafundó - Joel Yamaji (Brasil)

O Rito de Ismael Ivo - Ari Candido (Brasil)

Candombe - Rafael Deugênio (Uruguai) Carolina- Jéferson De

Redenção de Ogun - Moira Toledo (Brasil) Um reino Xingu - Helena Tassara (Brasil)

Cecília - Humberto Solás (Cuba) Rio 40 Graus - Nelson Pereira S. (Brasil) Chico Rei - André Reis Martins (Brasil) Rio Zona Norte - Nelson Pereira S. (Brasil) Faça a Coisa Certa - Spike Lee (EUA) Família Alcântara - Daniel Santiago (Brasil) Filhas do Vento - Joel Zito Araújo (Brasil) Ganga Zumba - Carlos Diegues (Brasil)

Ritmo N´Angola - Antônio Ole (Angola) Vista Minha Pele - Joel Zito Araújo (Brasil) Wild Style - Fab 5 Freddy (EUA)

236


VI. O significado da oralidade em uma sociedade multicultural1 Maria Elisa Ladeira2

O problema teórico implícito nas propostas

esta escolha: em qual língua a alfabetização

educacionais relativas à aquisição da escri-

deveria ser efetivada3?

ta pelos povos indígenas esteve reduzido a uma perspectiva metodológica (o processo de alfabetização deve ser iniciado na língua portuguesa ou na língua materna/indígena?) e consumiu, durante décadas, educadores, linguistas e antropólogos. Os argumentos e ações envolvendo esta questão estavam voltados para o atendimento de uma demanda muito concreta dos povos indígenas: o falar, ler e escrever em língua portuguesa.

A opção pela “alfabetização em português” tem tido como subtexto o fornecer ferramentas para esta decodificação (leitura)4 e codificação (escrita), atendendo às exigências dos índios em se apropriarem desta língua estrangeira, justificada em seus discursos como um instrumento de controle da chamada “sociedade dominante”. Assim, “(la) escritura aunque es ajena en una lengua ajena sirve para ayudar en la lucha, evitar el

Como um subtexto sempre latente, este

engano, es vista como una herramienta de pro-

impasse teórico – que na realidade trata os

téccion e de defensa.” (Túlio R. Curieux. In:

povos indígenas apenas e tão somente ou

Reflexiones sobre el paso de la oralidad a la es-

como povos ágrafos ou como cidadãos anal-

critura ). O momento em que esta ferramen-

fabetos – teve a sua discussão reduzida a

ta será significada (politicamente), quando a

1 Oralidade, memória e formação – 2006 / PGM 1. 2 Coordenadora do Centro de Trabalho Indígena – CTI. Professora Dra. em Sociolinguística/ Semiótica pela USP. 3 “Uma das justificativas técnicas de que a alfabetização na língua deve preceder a alfabetização em português é a de que o indivíduo é alfabetizado uma única vez, e que o ler e escrever numa segunda língua envolve somente uma transposição do código aprendido. Portanto, seria mais fácil e mais rápido ser alfabetizado em sua língua materna” (Ladeira, 1981). 4 Tendo em conta que ler é decodificar signos, quaisquer que sejam estes, aí poderíamos ampliar para as várias leituras possíveis de um mesmo texto/contexto, o que esvazia a concepção de leitores passivos. Não existe passividade na leitura, tanto quanto na escritura: quem lê/escreve o faz de uma determinada posição/lugar com seus olhos, olhar dado pelo lugar que ocupa no mundo, pela interação que estabelece com esse mundo, por sua história de vida e pela relação social construída por um dado povo com este estrangeiro em cuja língua se fala e se escreve.

237


leitura/escrita passa a ser algo culturalmen-

em que possibilita a criação de neologismos

te significativo para a comunidade indígena

e alterações linguísticas em função da situa-

ou para a própria vida pessoal, independe, no

ção de contato, indicando um vigor linguís-

entanto, da ação e prática alfabetizadoras.

tico surpreendente (idem, ib., p. 170). O que

Ou seja, este tipo de domínio instrumental

pressupõe considerar estas sociedades tanto

da escrita não acarreta em si mudança al-

como resultado de uma história (seu “obje-

guma nos códigos internos de comunicação

to”) como sujeitos dela, na medida em que

e expressão da comunidade indígena. A es-

são capazes de construir estratégias de convi-

crita/leitura em português apresenta aí um

vência (ou sobrevivência, no sentido de resis-

caráter puramente utilitário e de alcance

tência e adaptação). E estas estratégias estão

limitado e, por isso, podemos considerá-las

inscritas na continuidade das práticas sociais

(porque se reproduzem culturalmente deste

e representações das sociedades indígenas –

modo) como “culturas ágrafas”.

que são, por sua vez, recriadas cotidianamente, seja como marcadores identitários “para

É neste contexto que ganha corpo a concepção segundo a qual “a língua indígena con-

fora”, ou como marcadores diferenciais internos ao mundo pan-indígena mais genérico.

tinua sendo um sistema de conhecimento e categorização cultural do mundo, em que a

O outro lado da questão, aquele da alfa-

transmissão de conhecimentos, isto é, a rela-

betização se dar primeiramente na língua

ção única do indivíduo com seu mundo cultu-

materna, tem como subtexto o argumento

ral, só é possível através da língua do grupo”

segundo o qual os povos indígenas apre-

e da sua forma oral de transmissão (LADEIRA,

sentam uma falta, uma ausência do “letra-

2001, p. 170). Neste caso, o português (falado

mento”, que precisa ser sanada. Considera

e escrito) é empregado tão somente como

ainda que esta ausência fragilizaria não só a

língua-de-contato e em um contexto no qual

manutenção e uso da língua indígena, mas

os dois mundos, o indígena e o não-indígena,

o próprio povo em sua reprodução cultural.

se concebem como excludentes – e no qual

Logo, para suprir tal ausência, busca-se, en-

também a estabilidade das relações no inte-

tão, criar no seio de sociedades ágrafas o

rior do sistema linguístico é decorrente da

lugar da escrita, independentemente da in-

clara delimitação dos âmbitos de uso da lín-

tenção originária e que concretamente leva

gua. Podemos considerar tal atitude como

ou tem levado os povos indígenas a buscar

uma estratégia cultural da sociedade indígena

na escola o saber “estrangeiro”5. O que está

na manutenção da língua original, na medida

por detrás desta concepção, portanto, é que

5 Escola, o principal dos lugares em que impomos como imprescindível para poderem se apropriar desses estrangeiros, nós.

238


os povos ágrafos não passariam de cidadãos

bas, permitindo que antigas funções sejam

analfabetos. E para que esta necessidade da

desempenhadas de maneira nova e que, as-

escrita se faça mais rápida, independente-

sim, novas funções possam ser propostas ou

mente da situação e do contexto histórico

emergirem6. Entre estas duas concepções é

de um determinado povo, se impõe a neces-

que as propostas “educativas” para os povos

sidade de uma escrita “na língua” indígena.

indígenas se alicerçam, sendo que grande parte delas não problematiza o alcance de

Tal posição teórica determina, equivocada-

suas propostas. Para aquelas que concebem

mente penso, a escrita como o lugar/espaço

um continuum entre oralidade e escrita, há

indispensável para a manutenção da cultura

como uma “naturalização” (uma evolução

de um povo, pelas seguintes razões:

latente) na passagem das sociedades ágrafas para o mundo letrado. E, assim, a questão se

1) Exalta a língua independentemente do

reduz a uma falsa eficiência, na qual basta a

povo que a fala e de sua situação de uso; 2)

elaboração de materiais didáticos adaptados

esquece que não existe língua sem a atuali-

ao universo de interesses do povo em ques-

zação concreta da fala; 3) que esta atualiza-

tão, de formação/letramento de professores

ção é dada pelo contexto histórico e social

indígenas, e principalmente da criação de

daquela comunidade de falantes e 4) que

uma grafia para a língua indígena para que

como todo processo sociocultural, a língua

estes povos possam ter o mesmo estatuto

se altera/é alterada ao longo do tempo.

que a sociedade nacional.

A partir desses pressupostos iniciais, é possí-

Apesar do etnocentrismo subjacente, que vê

vel delinear duas teorias que embasariam es-

a escrita como a passagem para o esclareci-

tas duas concepções sobre o lugar/papel da

mento e a modernidade, já ter sido denun-

escrita para os povos indígenas. Uma, que

ciado pelas mais diversas correntes teóricas,

concebe um continuum entre a oralidade e

as preocupações de muitos pesquisadores

a escrita, considerando-as como meios lin-

com o possível desaparecimento da diversi-

guísticos essencialmente equivalentes para

dade linguística existente no Brasil têm re-

o desempenho de funções semelhantes.

sultado em ações que encontram respaldo

Outra, que estabelece um “divisor” entre a

na postura “continuísta” e parecem ter se

oralidade e a cultura escrita, embora reco-

esquecido da asserção etnocêntrica mencio-

nhecendo a importância interativa de am-

nada.

6 “Escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar: é uma operação que influi necessariamente nas formas escolhidas e nos conteúdos referenciais” (Gnerre, M. p.8).

239


De fato, dados históricos do desaparecimen-

frase lapidar: “a reflexão linguística de caráter

to das línguas indígenas no Brasil induzem

formal sistemático foi inevitavelmente coagida

o temor do linguista em relação à perda do

a adotar em relação às línguas vivas uma posi-

seu objeto de estudo em curto prazo. E este

ção conservadora e acadêmica, isto é, a tratar

medo subsidia a proposta em voga dos “cur-

a língua viva como se fosse algo acabado, o que

sos de formação de professores indígenas”,

implica uma atitude hostil em relação a todas

centrados no estudo da sua própria língua

as inovações linguísticas” (BAKTHIN, 1979, p.

(catalogação, organização de verbetes/dicio-

89 apud GNERRE, op. cit., p. 16).

nário) objetivando-a deste modo, sob o argumento de que a sua documentação con-

É no contexto do contato com a sociedade

tribuiria para diminuir o risco de sua perda.

nacional que a escrita na língua portugue-

Não discuto a procedência de se formarem

sa é exigida pelos índios, e aos quais tem-se

linguistas (ou antropólogos, ou médicos, ou

respondido com a imposição de que, para

advogados) indígenas; o que estou tentan-

dominar a língua portuguesa escrita, pre-

do apontar é que este tipo de pesquisa não

cisam primeiro aprender a escrever na sua

basta para afugentar o temor dos linguistas

própria língua – argumento embasado no

pelo “desaparecimento das línguas indíge-

pressuposto teórico, do qual não comparti-

nas”. O fato de um povo abandonar o uso de

lho, do continuum entre as formas da orali-

sua própria língua tem a ver com as condi-

dade e da escrita.

ções históricas impostas pelo contato com a sociedade nacional e as estratégias encon-

Pretendo agora realçar alguns argumentos

tradas por este povo para sua reprodução

em relação à justificativa para a necessidade

física nestas condições.

da escrita da língua indígena, que me pare-

A história das línguas, como muitos já demonstraram, é nada mais, nada menos

cem extremamente perigosos do ponto de vista político:

que a série dos contatos/intercâmbios entre povos. Portanto, querer transformar as mudanças que ocorrem nas línguas, suas inovações, em ameaças ou em “comprometimento linguístico”, o que afetaria o destino e a identidade dos povos indígenas, parece-me deslocar equivocadamente o eixo da questão. Bakthin ilustra e complementa o que estamos procurando apontar com uma

1. O de que a criação de uma língua indígena escrita passa a ser uma proposta elaborada pelo linguista (ainda que com a participação dos falantes dessa língua como informantes) para dar conta de um dilema posto etnocentricamente por nós, o “comprometimento linguístico”.

240


2. O de que, para diminuir o impacto desse “comprometimento linguístico”, a

dar ou resgatar, pensando estar garantindo a sua permanência através da escrita?

escrita a ser criada o será tendo por parâmetro sua fonetização, isto é, a es-

Primeiramente, tenho a dizer que os segre-

crita deverá ser transparente, em grau

dos da oralidade não estão no comporta-

máximo, à palavra falada; com isso se

mento da língua usada na conversação, mas

crê estar “guardando” ou “reforçan-

na língua empregada para o armazenamen-

do” a língua indígena falada por meio

to de informações. A língua oral (a oralidade)

da sua escrita, já que responderia à

tem dois requisitos básicos: o ritmo e a nar-

sua voz – o que é, penso, um equívoco

rativa. Sua sintaxe, por outro lado, sempre

perigoso, já que desvaloriza o funda-

descreve uma ação ou paixão e raramente

mental na manutenção de qualquer

princípios ou conceitos. As epopeias gregas

língua: a oralidade.

(e depois homerizadas) são hoje entendidas por muitos pesquisadores como imensos re-

3. E, por último, que essa “transparência

positórios de informação oral para fixação

pura” da escrita e da fala (que quali-

e para transmissão da cultura helenística. A

fica como primordial para a primeira

chamada “tradição” só pode ser armazena-

a correspondência unívoca entre fo-

da pela língua, a qual é memorizada e trans-

nemas e grafemas) impõe um limite

mitida de geração em geração.

físico para essa “língua” (fonetizada), dado que atinge os falantes que vivem

As artes das tradições orais têm como um

geograficamente em um mesmo espa-

dos seus objetivos na transmissão de conhe-

ço, em uma determinada terra indíge-

cimentos a memorização (armazenamento)

na; com tal postura, alguns linguistas

destes. Um dos objetivos tanto do épico na

reforçam a imposição de fronteiras

Grécia Clássica quanto do repertório de can-

fictícias entre povos indígenas, erigin-

tos Timbira é o armazenamento de material

do uma fronteira social e cultural en-

(informações) na memória oral. E são imen-

tre eles, já que cada diferença dialetal

sos repositórios de informação cultural. Mas

passa a se constituir em uma “língua”

para isso há todo um conjunto de regras que

diferente, fragmentando os povos in-

governam a composição oral, como marca-

dígenas em “comunidades linguísti-

dores que conduzem a narrativa, à medida

cas” estanques.

que esta se desenvolve. Estas regras são fundamentais porque ficam armazenadas

E de qual “língua” estão, pois, falando os lin-

na memória do narrador, do cantador, do

guistas? Qual “língua” eles pretendem guar-

chamador, dos mestres que dominam estas

241


artes para entrarem em ação sempre que

trazer ao processo cognitivo? Luria (1976)

necessário. E, porque este corpus de conhe-

estudou os principais desvios que ocorrem

cimento faz parte de um patrimônio social

na atividade mental na medida em que as

compartilhado com os demais membros da

pessoas adquirem a cultura escrita “cleri-

sociedade, estes marcadores estão armaze-

cal”. Seus processos cognitivos deixam de

nados na memória apenas como instrumen-

ser principalmente concretos e situacio-

tos de ajuda para facilitar a retórica. Por

nais. Começam a estabelecer inferências

isso, a importância da memorização nestas

não apenas na base de sua experiência pes-

sociedades. E, por isso deve-se refletir quan-

soal, mas também nos conceitos formula-

do a “liturgia da escolaridade” (para empre-

dos pela língua.

gar um termo de Ivan Illich), levada pelos programas de educação indígena, valoriza a

Parece que os povos ágrafos contemporâne-

aprendizagem por meio da “improvisação”,

os, na situação de desigualdade que carac-

da “criatividade” (em seu sentido mais lite-

teriza as relações entre povos indígenas e

ral), em descompasso total em relação aos

sociedade nacional, percebem com clareza

métodos tradicionais de aprendizagem dos

que, na nossa sociedade, a oralidade e a cul-

povos indígenas que repousam na recitação,

tura escrita podem ser vistas como interli-

na cópia, na observação, na imitação, técni-

gadas. A relação entre elas tem o caráter de

cas fundamentais para a noção de memori-

uma tensão mútua e criativa, na qual estes

zação.

povos encontram referências para definir as suas políticas linguísticas. Para nós, para

A questão da distância entre fala e escrita,

que uma língua continue viva, isto é, fala-

que aponta que as normas da escrita não

da, é necessário que sejam incrementados

se aplicam à fala, que há uma distância en-

os contextos de uso da língua indígena em

tre a língua codificada na gramática/escri-

questão, ou seja, que sejam valorizados e

ta e a realidade das variações da fala, tudo

multiplicados os momentos/espaços em

isto já foi tratado por especialistas. Porém,

que um determinado povo usa privilegiada-

suas consequências têm passado ao largo

mente a sua língua7. Para isso, o linguista

das propostas de letramento para os po-

e o antropólogo deveriam estar juntos, na-

vos indígenas que vemos entre linguistas e

quilo que o sociolinguista delimita como

educadores. Quais seriam, por exemplo, as

seu campo de ação. Esta estratégia política

alterações que a aquisição da escrita pode

está de acordo, assim, com a teoria do “divi-

7 Uma política pública que estivesse preocupada com essa questão estaria muito além do apoio à elaboração de materiais didáticos escritos, estaria apoiando a realização dos rituais, lócus privilegiado da expressão cultural plena.

242


sor” apontada inicialmente, que afirma que

to e modernização da língua indígena,

a oralidade e a cultura escrita possuem for-

indispensável para sua sobrevivência

mas distintas de expressão e de reprodução,

futura.” (In: Letramento e educação in-

embora reconhecendo a importância interati-

dígena: línguas indígenas e a fabricação

va de ambas, permitindo que antigas funções

de seus leitores e escritores. Wilmar da

sejam desempenhadas de maneira nova (como

Rocha d’Angelis).

o exemplo Timbira nos mostra) e que assim novas funções possam ser propostas ou emer-

Este talvez possa ser um dos futuros das lín-

girem.

guas indígenas. Em todo o caso, essa forma somente será eficaz se validada politicamen-

Há atualmente uma avaliação, por justifi-

te pelos usuários de cada língua e muito

cativas um pouco diversas das apontadas

além dos processos educativos que lhes são

acima, que considera que a escrita de uma

impostos pela sociedade dominante. Mas

língua indígena é fundamental para o seu

estaremos então nos referindo não somente a

não desaparecimento. Propõe que a questão

uma possível solução para o comprometimen-

central seria a da necessidade de se dotar

to linguístico como uma tendência subordina-

uma determinada língua indígena de leito-

da de resistência linguística, mas a uma redefi-

res, e por consequência, a necessidade de

nição do lugar e da relação destes povos com a

formar escritores indígenas como forma de

sua língua originária.

fortalecê-la. Assim, Mas pensar por meio da escrita – pois só “A única forma de se opor, concretamen-

assim se cria internamente, creio eu, a ne-

te, ao desaparecimento de uma língua

cessidade da escrita – não seria também jus-

indígena é fazer frente, deliberadamen-

tificar a necessidade da invenção de um pas-

te, à perda de espaços para a língua por-

sado histórico para as sociedades indígenas?

tuguesa, garantindo (ou criando), para

Como pensar sociedades cujo passado como

a língua indígena, funções e usos sociais

referência não faz sentido? O estado presente

relevantes e prestigiados. Desenvolver

é contínuo, criado pelo movimento eterno e

a escrita em língua indígena é uma das

constante da repetição. Repetição da repeti-

formas importantes e, possivelmente,

ção da repetição, num movimento infinito,

das mais eficazes, para uma política de

cuja fissura da mudança é anulada porque

resistência da língua indígena às pres-

não tem referência no passado. Sem dúvida

sões da língua majoritária. E é também

que a mudança existe, no sentido de que a

um dos instrumentos mais eficazes de

repetição da repetição da repetição não recria

uma política linguística de fortalecimen-

o mesmo, mas uma outra coisa que será re-

243


petida; nesse gesto de se buscar criar, sem-

O campo da nossa reflexão tem se movimen-

pre o mesmo, as “mudanças simplesmente

tado assim em uma dicotomia estanque: de

ocorrem”, mas não são consideradas como

um lado, a reificação da permanência de

objeto de uma reflexão, como algo que deva

uma tradição imemorial, concebida como

ser analisado criticamente. Na prática da

o horizonte de resistência destas socieda-

existência cotidiana, estão incorporadas no

des ao nosso mundo e, de outro, a assimi-

eterno presente. Tais mudanças são anula-

lação passiva de novos saberes e técnicas,

das enquanto história. Este distanciamento

tendo como horizonte a sua aculturação a

e a sua marcação entre tempos – isto que

este mundo novo. A história assim prevista

entendemos como história – são instaura-

condena as sociedades indígenas a desapa-

dos pela escrita, como já amplamente de-

recerem paulatinamente ou as encerra em

monstrado há décadas.

um “primitivismo” eterno (BOCARRA, 2001).

Os programas de Educação Indígena correm

Somente podemos escapar desse etnocen-

o risco de estarem se transformando em

trismo, que caracteriza nosso modo de en-

programas acelerados de mudança, ao com-

focar as possibilidades de futuro desses po-

partimentarem o tempo nestas três estações

vos, se pensarmos a história e as relações

(passado, presente, futuro). Os nossos livros

de contato destes povos com a sociedade

de “história” ou “etno-história” procuram re-

nacional a partir das estratégias políticas (e

fazer, pela escrita, esta trajetória, muitos sem

linguísticas) desenvolvidas por eles, na qual

estarem atentos a este dilema. E deste modo

o dilema da escrita, imposto por nós, se re-

reificam, eternizam ou desmitificam, em seu

faz pelo uso e sentido que dão a ela em fun-

sentido mais concreto, uma duração de tem-

ção de uma redefinição da noção de frontei-

po, desprendendo-o do movimento cíclico,

ra. E não mais concebida como um espaço

instaurando uma duração sequencial e linear

marcando um limite real entre mundo “pri-

do tempo, abrindo fissuras na forma canôni-

mitivo” e mundo “civilizado”, mas como um

ca dos povos ágrafos resistirem à mudança.

campo social em que as práticas e represen-

Ou, em outras palavras, de trabalharem com

tações relativas à construção destes limites

as mudanças que lhes são impostas.

são estratégias constitutivas destes povos.

244


VII. No tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores...1 Narcimária Correia do Patrocínio Luz2

Introdução

professoras que atuam nas escolas brasileiras. Não é fácil, sabemos! Ou seja, aprender

Abrimos este texto com um alerta:

a lidar com a riqueza de vida que nos cerca, para além dos muros, ou melhor, a arquite-

[...] A vida não é só isso que se vê, é um

tura dos currículos submetidos ao monopó-

pouco mais... Que os olhos não conse-

lio da fala3 sobre educação, que se restringe

guem perceber, e as mãos não ousam to-

a reproduzir teorias e metodologias fixadas

car, que os pés recusam pisar. Sei lá não

ao modo de existir característico dos valores

sei, sei lá não sei não. Não sei se toda be-

e linguagens europocêntricos, que passam a

leza de que lhes falo sai, tão-somente do

ser referência absoluta para as políticas de

meu coração. Em Mangueira a poesia,

Educação. O que vemos circular, no cotidia-

num sobe e desce constante, anda des-

no dos currículos das nossas escolas, são

calço ensinando um modo novo da gente

repertórios sobre crianças, jovens e adultos

viver, de cantar, de sonhar, de vencer. Sei

completamente afastados das dinâmicas

lá não sei, sei lá não sei não, a Manguei-

existenciais que caracterizam suas comuni-

ra é tão grande que nem tem explicação.

dades, principalmente aquelas que se des-

(Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho

dobram a partir das civilizações indígena e

da Viola).

africana.

Esse alerta é um exercício e/ou um desafio

Essa vida plena de poesia que transborda na

que se impõe todos os dias aos professores e

Mangueira no Rio de Janeiro é uma pequena

1 Oralidade, memória e formação – 2006 / PGM 2. 2 Professora Titular do Departamento de Educação I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Doutora em Educação; pesquisadora no campo da Diversidade Cultural e Educação; coordenadora do PRODESE - Programa Descolonização e Educação; autora dos livros: Abebe - a criação de novos valores na educação, Salvador: Edições SECNEB/2000; (Org.) Pluralidade cultural e educação .Salvador: Edições SECNEB: Secretaria da Educação do Estado da Bahia, 1996. 3 Categoria elaborada por Muniz Sodré tendo, como referência o sistema midiático de comunicação.

245


e bela ilustração da pulsão de vida e modos

Vamos nos dedicar a abordar aspectos do

de existir que caracterizam diversas comu-

universo simbólico da ancestralidade africa-

nidades no Brasil que (re)criam, de modo

na, e deles extrair perspectivas teórico-me-

extraordinário, os valores e linguagens mile-

todológicas que contribuam para fortalecer

nares, um legado dos seus ancestrais.

a autoestima das nossas crianças, jovens e adultos.

Nas Américas, o Brasil representa um dos principais pólos irradiadores das civilizações africana e indígena, e, apesar das características dessa realidade que constitui o patri-

Ancestralidade, memória e continuidade

mônio histórico-cultural da nação, o Estado brasileiro, até hoje, não conseguiu absorver e integrar a sua diversidade cultural, numa proposta de política educacional.

Para entendermos o princípio de ancestralidade, uma pergunta se torna fundamental: como preservar e expandir os valores da diversidade da vida para que esse mundo não

O desafio, portanto, é implementar políticas

se acabe?

de Educação que aproximem os/as professores/as de referências teóricas e metodológicas que os façam identificar e assumir, com sabedoria, a riqueza da diversidade cultural que caracteriza o Brasil contemporâneo.

As sociedades contemporâneas vivem essa angústia, o que tem estimulado iniciativas coletivas de educadores, em todo o mundo, que buscam uma nova e urgente abordagem sobre educação, que valorize e respeite a di-

A série Oralidade, memória e formação apre-

versidade civilizatória dos povos e toda a di-

senta a indagação: quais transformações se-

nâmica da vida que os envolve. É importan-

riam necessárias para afirmar que a “escola

te estabelecer canais, no cotidiano escolar,

tem futuro”4?

atentos à angustiante procura da compreensão sobre o estar no mundo, no univer-

A contribuição que trazemos para enrique-

so, as histórias que inauguram o patrimônio

cer esse debate enfatiza a importância da

ético-estético que caracteriza as culturas,

ancestralidade como princípio fundamental

os princípios milenares que atravessam os

para prover o cotidiano escolar de lingua-

tempos influenciando as gerações sucesso-

gens e valores que estabeleçam uma ética

ras, enfim, o processo dinâmico da existên-

do futuro para as atuais e futuras gerações.

cia.

4 Cf. Indagação apresentada na proposta pedagógica elaborada por Pedro Garcia para o programa Salto para o Futuro, série Oralidade, memória e formação. Rio de Janeiro: TV Escola, março de 2006.

246


A ancestralidade, portanto, constitui a cor-

carregado/a de poesia mítica, demonstrando

rente sucessiva de gerações que mantêm,

que o conhecimento a ser transmitido vem

com dignidade, o legado dos seus antepas-

de tempos imemoriais, isto é, desde que o

sados, repõem e expandem o universo mí-

mundo é mundo.

tico-simbólico que sustenta as tradições de um povo, suas instituições, organizações

Os/as mais antigos/as nos contam que quan-

territoriais e políticas, valores, linguagens,

do Oxalá, orixá que representa o ar, veio a

formas de comunicação através de narrati-

esse mundo, criou os seres humanos, e para

vas míticas, modos de afirmação existencial

cada ser humano criou uma árvore. As árvo-

e sociabilidades.

res carregam o princípio da ancestralidade, representam, portanto, os ancestrais e são

Estamos diante de uma concepção sobre

elas que estabelecem a dinâmica da relação

educação capaz de acolher linguagens cuja

entre os seres humanos e a natureza.

matriz seja “[...] a criação emocional e poética dos povos que mobiliza e abre caminhos, pon-

Oxalá está relacionado à cor branca, “[...] o

tes de aproximação entre comunidades diver-

axé, sangue branco... caracterizado por subs-

sas” (SANTOS, 2002, p. 26).

tâncias minerais como o giz, metais brancos, como prata e chumbo, pela seiva da palmeira

É ao sabor desse universo mítico-simbólico,

igi-ope, pelo algodão, pelo sêmen, pelos ossos e

que caracteriza o discurso e as linguagens

pela chuva. Pela chuva-sêmen que fertiliza e fe-

da elaboração de mundo africano, que nasce

cunda a terra regenerando-a e proporcionando

o título deste texto “no tempo em que os seres

o brotar das sementes. [...] Apresenta represen-

humanos conversavam com as árvores...”.

tações simbólicas de progenitura, capacidade de gerar filhos, de expandir a descendência,

É assim que os/as mais antigos/as costu-

multiplicação dos seres tanto no aiyê como

mam transmitir saberes aos/às mais novos/

no orun” (LUZ, 1995, p. 89)5 (grifos nossos).

as nas comunidades de matriz africana.

Oxalá possui poderes que garantem a exis-

Cada história, conto, cantiga, parábola, pro-

tência e, pela sua importância no panteão

vérbio anunciado/a com essa introdução era

nagô, merece respeito e atenção. Se for con-

5 Cf. SANTOS,1985, p.39. O axé expressa a força que assegura a existência, permite o acontecer e o devir, e as possibilidade do ciclo vital. Como toda força o àsé é transmitido e conduzido por meios materiais simbólicos e acumulável, portanto, só pode ser adquirido por introjeção ou contato aos seres humanos ou aos objetos. Axé em nagô significa força invisível, mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de toda coisa. Nas comunidadesterreiro nagô, a existência é elaborada em dois planos: o àiyé o mundo, e o òrun , que representa o além. O àiyé é o universo físico concreto, e a vida de todos os seres naturais que o habitam, portanto, mais precisamente, os ará-àiyé ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade. Já o orun corresponde ao espaço sobrenatural, o outro mundo, o além, algo imenso e infinito. Nele habitam os ara-òrun , que são os seres ou entidades sobrenaturais.

247


trariado ou desrespeitado, ele pode causar

ficas de transmissão de valores religio-

grandes danos, tal o seu poder.

sos, éticos e sociais da tradição dos mais velhos aos mais jovens. Eles se caracte-

Das árvores criadas, algumas se destacam

rizam como um aspecto da pedagogia

nessa relação simbólica, a exemplo do den-

negra iniciática, transmitidos numa si-

dezeiro com seus frutos, folhas e taliscas. Os

tuação, aqui e agora, a qual faz alusão,

frutos do dendezeiro compõem os instru-

constituindo a experiência vivida em

mentos de Ifá, ou seja, a forma tradicional

sabedoria acumulada. A comunicação

que o povo nagô/iorubá utiliza para consul-

se processa de maneira direta, pessoal

tar sobre os destinos dos seres humanos.

ou intergrupal, dinâmica, muitas vezes

As folhas estão relacionadas ao culto dos

acompanhada por cânticos, danças e

ancestrais masculinos, os mariô, represen-

dramatizações” (LUZ, 1977, p. 60).

tando filhos, descendência ininterrupta. As taliscas de onde as folhas se desprendem re-

Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o

presentam os ancestrais. Nesta estética do

Mestre Didi Asipá, como é conhecido um

sagrado, as árvores são as responsáveis pela

dos mais expressivos sacerdotes da tradi-

purificação do ar para que os seres huma-

ção nagô, possui um riquíssimo acervo de

nos tenham plenitude de vida.

contos, cujas narrativas expressam modos de sociabilidades singulares. As narrativas

Para aprendermos mais sobre o princípio de

dos contos de Mestre Didi caracterizam-se

ancestralidade, nada mais oportuno do que

pelas analogias, plasticidade das imagens,

apelar para um conto mítico que se desdo-

dramatizações, recriações, que ilustram a

bra do universo existencial característico da

dinâmica dos textos e o complexo contexto

ancestralidade e visão de mundo africanas.

simbólico nagô.

Nele, tradição e contemporaneidade se intercambiam, estruturando linguagens e va-

Adaptamos especialmente para a série Orali-

lores do patrimônio simbólico.

dade, memória e formação, o conto “O Filho de Oxalá que se chamava Dinheiro”, extraí-

Os contos míticos reúnem sabedorias mile-

do do acervo literário de Mestre Didi, ilus-

nares, cujos princípios éticos conduzem, in-

trando de modo extraordinário o modo afri-

fluenciam e atualizam o viver cotidiano das

cano de educar. Nossos filhos costumam ser

comunidades de base africana.

educados com os valores éticos transmitidos pelos contos, e a partir deles, aprendem

“Os contos, em sua originalidade, se

a lidar com a dinâmica da vida exigida pelo

constituem também em formas especí-

mundo contemporâneo.

248


O Filho de Oxalá que se chamava Dinheiro

Depois que Dinheiro ouviu vários comentários sobre a atitude dele, levantou-se e comentou ironicamente:

No tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores, Oxalá ti-

– Ah! Agora eu já sei tudo o que precisa-

nha um filho conhecido por Dinheiro,

va saber e já sei como agir.

que era um homem muito metido, egoísta, arrogante e muito prepotente. Um dia, Dinheiro, querendo aparecer como muito poderoso na frente de várias pessoas, desafiou seu pai, o rei Oxalá, dizendo que conseguia andar com Iku, a Morte, e levá-la para qualquer lugar que se possa imaginar.

Saiu com uma rede em direção à casa de Iku, foi entrando e tocando os tambores, instrumento que a dona da casa utilizava para realizar o seu trabalho de levar as pessoas para o outro mundo, o orun. Dinheiro ficou na espreita aguardando a Morte aparecer reclamando dos toques dos tambores.

Para mostrar que era capaz de dominar Iku, Dinheiro resolveu ir buscar a Morte e trazê-la à presença de Oxalá. Para isso, ele resolveu deitar numa encruzilhada, ficar quieto por um tempo, esperando a oportunidade para pegar Iku. As pessoas passavam pela estrada, ficavam chocadas com a situação e comentavam:

Não demorou muito, Iku aparece chateada, querendo saber quem era o atrevido que tocava seus tambores. Desprevenida, foi capturada por Dinheiro, que jogou a rede, prendendo-a. Dinheiro, com toda a sua arrogância, arrastou a Morte até o palácio de Oxalá e foi entrando e dizendo: – Não disse que traria Iku a vossa pre-

– Oxente! Que absurdo é esse! Como

sença?

pode esse homem ficar deitado aqui nessa encruzilhada com a cabeça vira-

Oxalá, na mesma hora, repreendeu-o e

da na direção da casa de Iku e os pés

disse-lhe:

virados um para o lado da moléstia e o outro para o lado da desavença. É de-

– Saia daqui agora mesmo com Iku! Você

mais! O que ele está querendo mostrar

é o causador de todas as coisas de bem e

com isso?

mal que existem no mundo. Leve a Morte!

249


Por este motivo é que, por causa do di-

tativas de obtenção de um poder absoluto, o

nheiro, todas as qualidades de crimes

desrespeito à ancestralidade, tudo isso está

têm sido e continuam a ser praticadas.

contido na mensagem do conto.

O dinheiro no mundo africano tem uma ou-

“A ética para o futuro, no contexto des-

tra conotação e representação, diferente do

te mito africano, apresenta-se como

mundo europeu. O “dinheiro”, como modo de

valores, linguagens, modos e formas de

troca, está ligado à fertilidade e à restituição.

sociabilidade que contemplam a trans-

Nos antigos reinos iorubá, a moeda eram os

cendência do Ancestral - esse pai que,

búzios, os quais tinham um valor inestimá-

mesmo morto, determina. O culto aos

vel, pois representam ancestralidade.

ancestrais responde pelo poder do pai morto. A ética, enquanto discurso da

Os ornamentos de determinados orixás

autoridade ancestral, é holística, comu-

apresentam constelações de búzios, carac-

nitária, consubstanciando a força do

terizando expansão de famílias, comunida-

grupo.” (SODRÉ, 1992, p.11).

des e sucessão de ancestralidade. A ética do futuro, dentro dessa dinâmica Na concepção de fertilidade, está presente

ancestral, elabora e faz expandir o direito

a ideia implícita de restituição e de morte.

à existência, às condutas individuais e co-

Assim, o poder da fertilidade e o de restitui-

letivas. Este princípio ético tem vigor nas

ção andam juntos. No conto, o desafio do

formas tradicionais das comunidades de

mais novo ao mais velho, inclusive conside-

origem africana, onde o ato de educar é con-

rando o poder ancestral contido em Oxalá,

cebido como uma dinâmica capaz de fazer

é uma quebra de valores significativos da

irradiar os mistérios transcendentes da vida

tradição e compromete a harmonia e a coe-

e da morte.

são da comunidade. Neste relato, o desafio do filho ao pai é motivado pelo grande po-

Na tradição nagô/ioruba, a educação realiza

der de representação do Dinheiro ao qual

o “[...] poder de tornar presente a linguagem

nos referimos.

abstrato-conceitual e emocional elaborada desde as origens[...]. Poder de tornar presen-

O poder, no contexto do mundo contempo-

tes os fatos passados, de restaurar e renovar a

râneo, é caracterizado pelo dinheiro e toda

vida. Reconduzir e recriar todo o sistema cog-

a onipotência que ele pode exprimir. A arro-

nitivo emocional, tanto em relação ao cosmos

gância, o egoísmo, o poder de destruição, a

como em relação ‘a realidade humana’.” (SAN-

desarmonia, a banalização da morte, as ten-

TOS, 1997, p. 4).

250


A perspectiva que destacamos nos inspira

REFERÊNCIAS:

a perseguir iniciativas em prol das Diversidades Culturais, produzindo possibilida-

Sobre a presença da civilização africana nas

des didático-pedagógicas que afirmem que

Américas e suas contribuições para elabo-

EDUCAR é repor os valores e princípios her-

rarmos perspectivas educacionais promisso-

dados e reelaborados – legado ancestral. É

ras, recomendamos:

expansão socioexistencial da diversidade humana, fruto de civilizações milenares

LUZ, Marco Aurélio. Agadá dinâmica da civi-

que inauguraram diversos territórios em

lização africano-brasileira. Salvador: EDUFBA,

todos os cantos do planeta, e que lutam há

2001.

séculos, tenazmente, para mantê-lo viável à vida.

______. Do tronco ao Opa Exin . Rio de Janeiro: Pallas, 2002.

Por fim, gostaríamos de reverenciar os nossos ancestrais que, nas suas trajetórias de vida, lutaram com afinco para assegurar o

______. Cultura negra em tempos pós-modernos. Salvador: EDUFBA, 2002.

direito às condições existenciais necessárias

______. Alguns Aspectos da Comunicação na

para que as gerações sucessoras expandis-

Cultura Negra. In: Revista Vozes, Petrópolis,

sem seu legado civilizatório.

n. 9, p. 60-72, 1977.

“Mo juba. Gbogbo asse tinu ara

LUZ, Narcimária (Org.) Pluralidade cultural e educação. Salvador: Secretaria da Educação do Estado da Bahia: SECNEB, 1996.

Saúdo e venero ______. ABEBE: a criação de novos valores na A todos os asese, nossas origens, Contidos em nosso corpo comunitário. As origens e sua permanente recriação permitem o existir da comunidade. Bibi bibi lo bi wa

educação. Salvador: Edições SECNEB, 2000. SANTOS, Juana Elbein. Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 1985. SANTOS, Deoscóredes M.; SANTOS, Juana Elbein. A Cultura Nagô no Brasil. In: Revista da USP, n. 18., p. 29-40, 1993.

Nascimento do nascimento que nos traz o existir.” (SANTOS, Deoscóredes; SAN-

SANTOS, Juana Elbein (Org.). O emocional lú-

TOS, Juana, 1993, p.29).

cido. Salvador: SECNEB, 2002.

251


SODRÉ, Muniz . O monopólio da fala. Petró-

SANTOS, Deoscóredes. Contos crioulos da

polis: Vozes, 1977.

Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996.

______. Claros e escuros. Petrópolis: Vozes, 1999. SEMENTES CADERNO DE PESQUISA. Salvador: Departamento de Educação Campus I, Universidade do Estado da Bahia-UNEB, 20002003.

______. Contos Crioulos da Bahia, Creole Tales of Bahia, Àkójopó Ìtan Àtenu’denu Iran Omo Oùduwà ni Ilè Bahia. Salvador: Núcleo Cultural Níger Ikàn, 2004. ______. Contos crioulos da Bahia e contos negros da Bahia. Salvador: Corrupio, 2003.

Para conhecer o repertório dos contos de Mestre Didi, desdobramentos da ancestrali-

______. Contos negros da Bahia. Rio de Janei-

dade africana:

ro: GRD, 1961.

252


VIII. Os

versos sagrados de ifá: base da tradição

civilizatória iorubá1 Juarez Tadeu de Paula Xavier2 Oxum, graciosa mãe, plena de sabedoria!/ Que enfeita seus filhos com bronze,/ Que fica muito tempo no funda das águas gerando riquezas,/ Que se recolhe ao rio para cuidar das crianças/ Que cava e cava e nela enterra dinheiro/ Mulher poderosa que não pode ser atacada

Os Versos Sagrados de Ifá guardam o mul-

cultural têm acesso aos conhecimentos das

tiverso de conhecimento da tradição ioru-

forças místicas e cósmicas que comandam

bá. Essas grandes narrativas contêm infor-

o universo, seus destinos, as relações terre-

mações com categorias universais – dados

nas, históricas e culturais. A exemplo de ou-

científicos sobre a natureza e os seus fenô-

tros povos africanos, os iorubás têm na ora-

menos e manifestações – singulares – do

lidade os arquivos de sua civilização. Para

dia a dia da vivência tradicional dos povos

esse povo africano, conhecido como nagô

iorubanos – e particulares – os valores cultu-

no Brasil, a palavra enunciada carrega a for-

rais dessa milenar tradição africana. É esse

ça da realização. Eles consideram a mentira

reservatório de preservação, transformação

como um câncer, pois ele corrói a constru-

e produção de conhecimento social do real

ção de cenários favorecedores da suas reali-

deu base para a reinvenção da arquitetura

zações primordiais na vida: viver muito, vi-

civilizatória desse importante povo da África

ver com condições de sacralizar o universo,

Ocidental.

amar, ter filhos e vencer as adversidades do mundo. Dessa forma, a oralidade assume a

Os mitos sagrados trazem os conhecimen-

função de meio condutor dos conhecimen-

tos das cartografias cosmológica e geográ-

tos ancestrais e civilizatórios que ordenam a

fica iorubanas. As crianças desse universo

trajetória dos seus descendentes.

1 Valores afro-brasileiros na educação – 2005 / PGM 5. 2 Jornalista. Doutor em Comunicação e Cultura-Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam – USP).

253


ILE ASÉ: Esses conhecimentos permitiram

novas soluções e respostas. Uma nova folha,

aos iorubás reorganizarem, pelo mundo afo-

uma nova forma de transmissão, um novo

ra, suas estruturas culturais. As grandes nar-

modelo de organização. O xirê orixá, cantado

rativas, as pequenas histórias do cotidiano

no início dos atos litúrgicos públicos, é uma

e as canções rituais preservaram a moral, a

prova dessa sagacidade e inteligência ances-

ética e a deontologia de suas relações huma-

tral. Nele, as novas gerações conheciam as

nas. A moral iorubana permitiu a reconsti-

formas místicas que comandam o universo

tuição da cartografia original no ile ase (ter-

sagrado iorubá, em especial a relação dinâ-

ra sacralizada pela força ancestral). Na linha

mica entre o orun (dimensão imaterial da

histórica das principais casas e terreiros or-

existência) e o aiyê (dimensão material e

ganizados no país, tem-se o registro da ação

histórica da existência), e entravam em con-

de homens e mulheres africanos que per-

tato com as energias cósmicas desse povo

sistiram na reconstrução de seu universo,

– representações das forças do universo, dos

destruído pelas forças da escravidão. A força

pontos energéticos da terra, das polaridades

moral e o tirocínio desses primeiros africa-

de gênero, das cores e suas funções –, com

nos escravizados nas Américas foi o motor

o universo social e sua ordenação tradicio-

propulsor dessa reorganização. No início,

nal – cargos, funções e responsabilidades so-

esses espaços de reconstrução tradicional

ciais de sacerdotisas e sacerdotes –, e ainda,

criaram uma linha de força que preservou a

aprendiam as canções tradicionais, as dan-

originalidade dessa civilização, ante a força

ças e toques rituais e a relação pedagógica

destrutiva da sociedade global. Nesses espa-

entre as gerações: o aprendizado da boca

ços de rearticulação tradicional, os africanos

dos mais velhos para os ouvidos e olhos dos

reconstituíam, paulatinamente, seus valores

mais novos. Cada uma dessas opções feitas

morais civilizatórios. Tais valores formaram

pelas velhas gerações implicava opções éti-

o chassi da reconstrução negra fora da Áfri-

cas, filosóficas, culturais e civilizatórias.

ca. As linhas-mestras dessa reconstrução foram os Versos Sagrados de Ifá, vivos na me-

Ante a divinação e a iniciação nos segredos

mória coletiva dessa população. A palavra é

sagrados desse universo, as novas gerações

uma força fundamental que emana do ser

entravam em contato com as suas poten-

supremo iorubá: Olodumaré. Por isso, ela

cialidades e limitações sacerdotais: o que

possui um caráter sagrado e divino.

comer, vestir, como se comportar ante o sagrado, ante a comunidade, ante o corpo

A cada novo desafio, a cada nova situação,

sacerdotal da comunidade e ante a força da

os velhos e velhas africanos reinventavam

sociedade global.

254


ÉTICA, MORAL E DEONTOLOGIA: Assim, no

Ensinam-se canções rituais, mitos cosmoló-

universo da educação civilizatória, articula-

gicos vinculados às deidades iorubanas, à na-

vam-se dimensões morais, condutoras dos

tureza terapêutica e ritualística das plantas

comportamentos coletivos e sociais dessa

e à presença dos elementos dessa cultura no

civilização; éticas, condutoras das opções e

universo simbólico do brasileiro, na música,

reflexões cotidianas, que implicavam ações

dança, literatura, artes plásticas e ciência.

filosóficas e culturais; e deontológicas, con-

Os núcleos que enfeixam os conhecimentos

dutoras do comportamento ante a comuni-

iorubás são ricos em fornecer informações

dade de iniciados e a social global.

em todas as áreas do conhecimento: universos da divinação; dos processos iniciáticos e

Todo esse universo conceitual era trans-

da relação com os orixás; do contato com as

mitido pelas equivalências universais que

energias ancestrais, e com o conhecimento

caracterizam a civilização iorubá em qual-

litúrgico das folhas.

quer parte do mundo: a divinação sagrada aos pés de Ifá, para a revelação dos desíg-

Dessa forma, universalizam-se as possibili-

nios humanos; a iniciação, marco de or-

dades de transmissão dos conhecimentos

denação da transição entre o profano e o

civilizatórios do universo iorubá, dos conhe-

sagrado; e pelo conhecimento mitológico

cimentos dos seus valores, e do aprendizado

do panteão: deidades e forças que organi-

em duas dimensões: o da escolarização e o

zam o cosmo iorubá. Durante muito tem-

da educação dos valores universais, presen-

po, o conhecimento da magnitude desse

tes nos Versos Sagrados de Ifá, infraestrutura

universo cultural ficou restrito às pessoas

conceitual sobre a qual repousam os conhe-

que se iniciavam nesse universo religioso,

cimentos ancestrais iorubá. O percurso des-

excetuando-se os trabalhos acadêmicos e

sa experiência evidencia a presença de fortes

as publicações.

e profundos elementos africanos e afrodescendentes no universo imaginário brasileiro,

Porém, algumas experiências foram reali-

no seu dia a dia, na sua visão de mundo e no

zadas na transmissão desses valores via es-

modo de se relacionar com o universo.

colarização. Alguns terreiros de candomblé organizaram escolas nos seus espaços co-

REFERÊNCIAS

munitários. Essas escolas, além das disciplinas formais do currículo escolar, acrescen-

ABIMBOLÁ, W. The literature of the Ifá cult. In:

tam elementos do conhecimento ancestral

Sources of Yorùbá history. Ì bàdàn. Universiry

iorubá.

Press, 1987.

255


BASTIDE, R. O candomblé na Bahia. São Paulo:

SOWANDE, F. Ifá. Lagos, Forward Press, 1967.

Companhia, 1978. ELBEIN DOS SANTOS, J. Os Nagô e a morte: Pàdè, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986

VERGER, P. Orixás: deuses Yorùbás na África e no Novo mundo. Bahia: Corrupio, 1981. XAVIER, J.T.P Exu, ikin e egan: as equivalên-

RAMOS, A. As culturas negras no novo mundo.

cias universais no bosque das identidades

São Paulo: Nacional, 1979.

afrodescendentes Nagô Lucumi – estudo comparativo da religião tradicional ioruba

RIBEIRO, R. Os iorubás. São Paulo: Ed. Oduduwa, 1996.

no Brasil e em Cuba. Dissertação de mestrado defendida do programa de pós-graduação

SALAMI, S. Cânticos dos orixás africanos. São

em Integração da América Latina da Univer-

Paulo: Ed, Oduduwa, 1992.

sidade de S. Paulo (PROLAM/USP), 2000.

256


IX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e afro-brasileiras1 Andréia Lisboa de Sousa2 Ana Lúcia Silva Souza3 Os mitos são, realmente, as histórias sociais que curam. Isso porque nos são mais do que o desfecho moral que aprendemos associar, há muito tempo, às quadrinhas infantis e aos contos de fada. Lidos apropriadamente, os mitos nos deixam harmonizados com os eternos mistérios do ser, nos ajudam a lidar com as inevitáveis transições da vida e fornecem modelos para o nosso relacionamento com as sociedades em que vivemos e para o relacionamento dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida (FORD, Clyde W. O herói com rosto africano. Mitos da África).

O objetivo deste texto é ressaltar a impor-

da, em especial, na literatura oral expressa

tância dos contos, orais e escritos, africanos

pelos mitos, lendas, provérbios, contos etc.,

e afro-brasileiros, destacando-os como mar-

ou, ainda, servindo como base da literatura

cas das experiências humanas de um povo

escrita desta natureza.

ao longo dos tempos. São narrativas com rosto africano.

No Brasil, uma das matrizes que informam a tradição oral diz respeito às influências dos

A história e a memória de vários povos afri-

africanos aqui escravizados que para cá vie-

canos adentram e permanecem como parte

ram, guardiões e guardiãs responsáveis por

de nossa cultura. Cultura essa materializa-

recriar a memória dos fatos e feitos de seus

1 Conto e reconto: literatura e (re)criação – 2006 / PGM 3. 2 Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Mestre em Educação pela FEUSP. I ntegra a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN. Fellow do Fundo Riochi Sasakaua/USP. Consultora na área de Educação e Relações Étnico-Raciais. Atualmente, é pesquisadora sobre cultura afro-brasileira em materiais didático-pedagógicos e Subcoordenadora de Políticas Educacionais da CGDIE/SECAD/ MEC. 3 Doutoranda em Linguística Aplicada - Unicamp/IEL. Estuda as interfaces entre práticas de letramento, relações raciais e juventude. I ntegra a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN - SP. Organiza e assessora projetos relacionados à leitura e à dinamização de acervos de literatura. Coordenadora do VI Concurso Negro e Educação pela Ação Educativa/ANPED.

257


antepassados, ressignificando a vida nos no-

ou história, como também ciências na-

vos lugares de morada. Foram também po-

turais ou humanas de todo tipo. Era um

etas, músicos, dançarinos, estudiosos, mes-

conhecimento (...) segundo a competên-

tres, conselheiros, denominados, de modo

cia de cada um, uma espécie de ‘ciência

geral, como contadores de histórias.

da vida’; vida, considerada aqui como uma unidade em que tudo é interligado,

Trouxeram para cá o significado da pala-

interdependente e interativo; em que o

vra na cultura africana – o uso da palavra

material e o espiritual nunca estão dis-

se constitui no diálogo, no argumento e no

sociados. E o ensinamento nunca era

conselho, que se mostraram como práticas

sistemático, mas deixado ao sabor das

essenciais do dia a dia nas comunidades

circunstâncias, segundo os momentos

Para a cultura africana, as palavras têm um

favoráveis ou a atenção do auditório

poder de ação, e ignorar aquilo que é pro-

(Bâ, 2003, p. 174-175).

nunciado e verdadeiro é cometer uma falha grave, que pode ser comparada ao ato de ti-

Como aponta Bâ, o poder da palavra garante

rar uma parte dos elementos essenciais do

e preserva ensinamentos, uma vez que pos-

nosso corpo, o que nos faria perder a vida ou

sui uma energia vital, com capacidade cria-

uma parte de nós.

dora e transformadora do mundo. Energia que possui diferentes denominações para as

Recorremos a Amadou Hampâté Bâ, filó-

diversas civilizações, por exemplo, para os

sofo, escritor e intelectual africano, para

bantus essa energia é hamba, já para o povo

exemplificar a relação entre a palavra, o co-

iorubá a energia é o axé.

nhecimento e o saber vivenciados na escola dos mestres da palavra:

Tal é a importância da palavra na África que existe um papel específico desempenha-

Um mestre contador de histórias afri-

do pelos profissionais da tradição oral – os

cano não se limitava a narrá-las, mas

griots – pessoas que têm o ofício de guardar

podia também ensinar sobre numero-

e ensinar a memória cultural na comunida-

sos outros assuntos (...) porque um ‘co-

de. Eles armazenam séculos e mais séculos

nhecedor’ nunca era um especialista no

de segredos, crenças, costumes, lendas e

sentido moderno da palavra mas, mais

lições de vida, recorrendo à memorização.

precisamente, uma espécie de generalis-

Existem também mulheres que exercem es-

ta. O conhecimento não era comparti-

sas funções, conhecidas como griotes. Ham-

mentado. O mesmo ancião (...) podia ter

pâté Bâ comenta sobre uma célebre canto-

conhecimentos profundos sobre religião

ra, Flateni, antiga griote do rei Aguibou Tall,

258


cujos “cantos arrancavam lágrimas até dos

conhecer e que se encontra latente em tudo o

mais empedernidos” (2003, p. 255). Há ainda

que nos transmitiram, assim como o baobá já

outras categorias de contadores de histórias

existe em potencial em sua semente (TIERNO

na África, como os Doma4, tidos como os

BOKAR, apud BÂ, 2003, p. 175).

mais nobres contadores, porque desempenham o papel de criar harmonia, de organi-

É interessante salientar que hoje nós temos

zar o ambiente e as reuniões da comunida-

a escrita como forma de apontamento de

de. Eles jamais podem usar a mentira, pois

nossas memórias, mas que ela não é a única

isso faria com que perdessem sua energia

forma de registrarmos os conhecimentos, a

vital, provocando um desequilíbrio no gru-

oralidade serviu e serve para preservar a cul-

po ao qual pertencem (Caderno de Educação

tura africana no Brasil.

– ÁFRICA ILÊ AIYÊ, 2001). A tradição oral pode ser vista como uma cacimba de ensinamentos, saberes que veicu-

Nas trilhas das histórias afro-brasileiras

lam e auxiliam homens e mulheres, crianças, adultos/as velhos/as a se integrarem no tempo e no espaço e nas tradições. Sem poder ser esquecida ou desconsiderada, a oralidade é uma forma encarnada de registro, tão complexa quanto a escrita, que se utiliza de gestos, da retórica, de improvisações, de canções épicas e líricas e de danças como modos de expressão.

De acordo com Nelly Novaes Coelho, não temos mais os contadores “descendentes dos narradores primordiais, isto é, aqueles que não inventavam: contavam o que tinham ouvido e ou conhecido” e que “representavam a memória dos tempos a ser preservada pela palavra e transmitida de povo para povo ou de geração para geração” (COELHO, 2000, p. 109). Contudo, podemos afirmar que a tra-

Mais uma vez recorrendo a Bâ: “A escrita é

dição de narrar mantém a sua força. Como

uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fo-

escreve Celso Sisto, “O homem já nasce pra-

tografia do saber, mas não o saber em si. O

ticamente contando histórias. Está inserido

saber é uma luz que existe no homem. É a he-

numa história que o antecede e com certeza

rança de tudo que nossos ancestrais puderam

irá sucedê-lo” (SISTO, 2001, p. 91).

4 Conforme mencionado no Caderno de Educação – África Ilê Aiyê (2001, p. 25) “Os profissionais da tradição mais reconhecidos na África tradicional e contemporânea são os Griots e os Domas. Os Griot é um nome de origem Bambará, para personagens africanos denominados contadores de histórias, que eles sabem de memória e acumulam, reunindo séculos e mais séculos de crenças, costumes, lendas, contos, lições de sabedoria. O Doma é a categoria mais nobre de contadores de história, aquele que tem o papel de criar harmonia, de colocar ordem em volta do ambiente, da audiência nas reuniões da comunidade”.

259


Todos nós temos histórias para contar, imer-

dominou uma referência a se seguir, em que

sos que estamos, ainda que por vezes sem

as personagens brancas reinavam como pa-

perceber, no patrimônio cultural informado

drão de representação literária e, por muito

por mitos, lendas, provérbios, contos, can-

tempo, esse modelo ocidental eurocêntrico

ções, sátiras de todas as matrizes.

foi quase que exclusivo. Esse contexto vem sendo alterado pelas ações dos movimentos

As narrativas orais expressam hábitos e va-

sociais negros, pelas influências de novas

lores cujo compartilhamento se dá no am-

visões e concepções de educação, além dos

biente familiar, religioso, comunitário, es-

dispositivos legais que atualmente orientam

colar. Todo este patrimônio está no corpo e

os currículos das escolas.

na mente das pessoas, onde quer que elas estejam.

Há, atualmente, vários livros publicados que se propõem a desvendar o universo de algu-

Essas histórias, que também estão nos livros,

mas culturas africanas e da afro-brasileira.

nos jornais, na rede informatizada, sugerem

Só para citar alguns temos: Bichos da África,

troca, intimidade e proximidade e, conforme

Volumes I, II, III e IV, Contos ao redor da fo-

Ford “nos ajudam a lidar com as inevitáveis

gueira e Histórias africanas para contar e re-

transições da vida e fornecem modelos para o

contar, de Rogério Barbosa; Que mundo Ma-

nosso relacionamento com as sociedades em

ravilhoso, de Julius Lester; Bruna e a galinha

que vivemos e para o relacionamento dessas

d’Angola, de Gercilga de Almeida; A cor da

sociedades com o mundo que partilhamos com

vida, de Semíramis Paterno; Tanto, Tanto, de

todas as formas de vida” (FORD, 1999, p. 9).

Trish Cooke; Chica da Silva, de Lia Vieira e As tranças de Bintou, de Sylviane Diouf. Existem

As culturas africanas e afro-brasileiras pre-

outros dentro do mercado editorial, o qual

servam, também na escrita, narrativas que

tem se interessado pelo tema, apresentando

podem ser associadas ao que a crítica literá-

novas opções.

ria ocidental classifica como contos, lendas, fábulas, provérbios, canções, etc. É funda-

Encontramos também livros que retomam

mental compreender que a base de todas as

traços e símbolos da cultura negra, tais

histórias guarda reminiscências na tradição

como: a capoeira, a dança, os mecanismos

oral.

de resistência diante das discriminações e outros que fazem alusão direta às religi-

As narrativas literárias são textos estéticos,

ões de matriz africana ou que remetem às

lúdicos, que suscitam a criatividade, o imagi-

divindades afro-brasileiras: Pai Adão era

nário da/o leitora/or. Nesse tipo de texto pre-

Nagô, de Inaldete Andrade; Rainha Quixim-

260


bi; O presente de Ossanha; Gosto de África e

Ao ampliar nossos conhecimentos, bem

Dudu Calunga, de Joel Rufino; Na terra dos

como desenvolver com os alunos e alunas

Orixás, de Ganymedes José; Lenda dos orixás

projetos e aulas significativos, percebere-

para crianças, de Maurício Pestana; Ifá, o adi-

mos que o universo afro-brasileiro é múlti-

vinho, Xangô, o rei do trovão, Os príncipes do

plo e que existem várias Áfricas que infor-

destino: histórias da mitologia afro-brasileira,

mam nossa cultura. Nas palavras de Braz:

de Reginaldo Prandi. Na verdade, não existe apenas uma ÁfriJúlio Emilio Braz, por exemplo, nos estimu-

ca, mas incontáveis, ricas em histórias

la a imergir no universo de algumas lendas

e tradições. Do norte islamizado até o

africanas, a fim de aguçar nossa curiosida-

sul dividido em incontáveis crenças e

de, durante a leitura. Afinal, indaga ele:

religiões, muitas delas fruto dos anos de colonização europeia, passando por

Quantas histórias sobre os tuaregues, o lendário povo nômade do norte da África, já ouviram? Qualquer um deles conhece a história de reinos tão poderosos quanto desconhecidos como de Ghana e Achanti? E sobre um império Mali? O que ouviram? Songai? Kanem-bornu? Bambara?

uma surpreendente diversidade ecológica e geográfica que vai dos desertos escaldantes como o Saara e o Kalahari às maravilhas florestais como Okavango e às extensas savanas em países como o Quênia (2001, p. 4). Ainda como nos alerta o autor, é importante estarmos atentos e re-vermos o quanto

Pouco ou nada se falou sobre a África

a cultura africana impregnou-se na cultura

para os jovens de hoje, afrodescenden-

brasileira:

tes ou não. E quando se falou, buscou-se mais a discussão sobre as religiões ou o

A riqueza étnica é impressionante, res-

folclore, quando não o estereótipo. Para

ponsável por uma herança cultural e ar-

muitos a África ainda é um mistério ou,

tística e precisamos conhecê-la, uma vez

pior ainda, quando aparece nos notici-

que ainda a conhecemos pouco, apesar

ários, é como palco de terríveis guerras

de a África ter uma influência decisiva

civis, epidemias pavorosas ou de países

nos hábitos e nos costumes mesmo da-

muito próximos de barbárie, onde a civi-

queles brasileiros que não são afrodes-

lização parece não existir (2002, p. 4-5).

cendentes (BRAZ, 2001, p. 4 e 5).

261


Tecendo os pontos para contar os contos

teresse, tristeza, perguntas, anseios e compreensões que fazem aflorar [imagens do nosso inconsciente](...). No en-

O aqui e agora dos espaços das narrativas,

tanto, (...) em cada fragmento de histó-

com seus personagens intrigantes, enredos

ria está a estrutura do todo (CLARISSA

carregados de metáforas e desfechos sur-

ESTES, 1999, p. 30).

preendentes, falam de valores importantes para descortinar as múltiplas dimensões da

Começar a busca em nosso acervo de memó-

vida na sociedade atual. Conhecer este uni-

ria pode ser significativo, considerando que

verso significa poder contribuir, em sentido

estes conhecimentos, de alguma maneira,

amplo, para a promoção da igualdade das

fazem parte de nossa formação identitária.

relações étnico-raciais na escola e fora dela.

Quais contos já ouvimos ou lemos? Quando foi? Quem nos apresentou as narrativas?

Talvez uma das maiores riquezas do traba-

Quais foram os sentimentos e emoções mo-

lho com os contos seja o exercício da bus-

bilizados?

ca coletiva, da pesquisa, das trocas e das descobertas. Os contos, sejam eles orais ou

Este pode ser um primeiro passo. Olhar para

escritos, estão por toda a parte para serem

nós e para nossa história de vida, para saber

recolhidos e oferecidos para nosso deleite,

que lugar ocupam os contos, os mitos, os

num tecido poético bordado de símbolos e

provérbios, e nos prepararmos para, no am-

ensinamentos.

biente escolar, lançar mão de ações simples

Para Clarissa Estes, nas histórias estão incrustadas orientações que nos guiam a respeito da complexidade da vida. Elas se apresentam, muitas vezes, como ingredientes medicinais, que aliviam, que curam: As histórias são bálsamos medicinais.

e organizadas e contribuir para as artes de falar e de escutar, destacando as fundamentais para a convivência e o exercício da cidadania na atual sociedade.

Como destaca Rogério Barbosa sobre a arte de contar histórias:

(...). Elas têm uma força! Não exigem que se faça nada, que se seja nada, que se aja

Seja bem-vindo ao mundo da literatura

de nenhum modo – basta que prestemos

oral. (...) Não se limite apenas a ler ou

atenção. A cura para qualquer dano ou

a ouvir. Vibre intensamente com as his-

para resgatar algum impulso psíquico

tórias como se fizesse parte da atenta

perdido nas histórias. Elas suscitam in-

plateia.

262


Aprecie os contos que explicam a origem

missos firmados no sentido de conhecer a

do comportamento de determinados

história, valorizar a memória e a herança

habitantes da floresta. Depois, leia as

cultural dos diferentes povos. Quais são

histórias em voz alta e tente reproduzir

as atividades e projetos que a escola, ou

o andar e os diálogos travados pelos in-

parte dela, já realiza ou realizou? Como

críveis personagens. Afinal, as histórias,

têm sido desenvolvidas e divulgadas?

principalmente na África, foram feitas para serem contadas e recontadas. (...)

• Incentivar a prática da pesquisa junto aos alunos e alunas. Discuta e elabore com

Uma das tradições africanas são os contos etiológicos, que procuram explicar as origens das coisas e o comportamento de determinados animais. Histórias africanas para contar e recontar surgiu de uma seleção e adaptação desses contos... (Barbosa, 2004 – introdução e biografia).

eles a coleta de depoimento oral de pessoas da família ou da comunidade. O que importa neste momento é valorizar as histórias e investir na construção de um mapa cultural e social, que pode ajudar na construção de uma rede de sociabilidade, fortalecendo a autoestima dos envolvidos neste processo. É importante também pensar na sistematização e comunicação

Ampliando horizontes: o ofício de fazer

do material coletado; • Dinamizar as reuniões de responsáveis, pais e mães, fazendo também desta opor-

A seguir, apontamos algumas possibilidades.

tunidade um espaço de valorização de sa-

É com a mão na massa que podemos pensar

beres, de trocas e descobertas, por meio

as nossas posturas investigativas, repensar

da coleta e ressignificação das memórias

atividades escolares como espaços de um di-

dos contos. As reuniões também são boas

álogo emocionado:

oportunidade para que as pessoas presentes conheçam os projetos que estão sendo

• Convidar nossos/as colegas professores

desenvolvidos na escola e tenham conta-

para o exercício de rememorar as narrati-

to com os livros e outros materiais traba-

vas que fazem parte das histórias pessoais,

lhados no espaço escolar;

o que pode ser bastante instigante. Trabalhar em grupo, nas reuniões pedagógicas,

• Realizar buscas na internet, para conhe-

é também excelente oportunidade para

cer sites de países africanos e conhecer

analisar o projeto político-pedagógico da

contos que estão disponíveis na rede, tais

escola, verificando quais são os compro-

como:

263


www.casadasfricas.com.br;

• Estabelecer contato com grupos do movi-

www.mestredidi.org;

mento social negro e outras entidades para

www.mundonegro.com.br;

conjuntamente organizar eventos – ativida-

www.portalafro.com.br;

des, cursos, palestras – que valorizem a cul-

www.navedapalavra.com.br

tura e a história africana e afro-brasileira

www.docedeletra.com.br .

e sejam incorporados ao projeto político-pedagógico e ao currículo da escola.

• Buscar outras fontes, tais como filmes, um deles Kiriku e a feiticeira, narrativa africana encantadora traduzida para a linguagem fílmica. Acessar séries educativas, como os programas de vídeo do projeto A Cor da Cultura5 (www.acordacultura.org.br), a série Repertórios Afro-Brasileiros, veiculada pela TV Escola/Programa Salto para o Futuro, em 2004, dentre outras (www.tvebrasil. com.br/salto). Conhecer as experiências de professores, voltadas para a promoção da igualdade racial/étnica no ambiente escolar, as quais foram selecionadas e divulgadas pelo Prêmio Educar para a Igualdade Racial do CEERT (www.ceert.org.br).

Mantendo a tradição africana, de trabalhar coletivamente, mostra-se fundamental pensar com a comunidade escolar outras possibilidades de tessitura de relações com compromisso. Desta forma, salientamos que o trabalho com os contos é interdisciplinar e pode tomar um dos lugares centrais no projeto político-pedagógico e nos currículos das escolas, de forma a disseminar e valorizar o uso da palavra oral, como uma das mais importantes modalidades da linguagem. Afinal, somos contadores e contadoras de histórias. O ato de contar, de ouvir histórias parece

• Visitar, em feiras e congressos, os estandes

ainda manter um sentido universal que re-

de editoras e ONGs, buscando materiais

side na sustentação do espaço de sociabili-

especificamente relacionados à temática.

dade. Contar história é trocar, compartilhar

O mercado editorial tem investido na pro-

vivências e saberes. Trata-se de escutar a voz

dução de materiais sobre diversidade. São

do outro que, ao contar, exerce O direito de

dezenas de livros que, analisados com cri-

ler em voz alta, como aponta Pennac em Di-

térios, enriquecem o trabalho;

reitos Imprescritíveis do Leitor6.

5 A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, realizado por uma parceria entre o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan – Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, a TV Globo, MEC/ e a Seppir – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. 6 Daniel Pennac, no livro Como um romance (p. 139), aponta os 10 direitos imprescritíveis do leitor: O direito de não ler; de pular páginas, de não terminar de ler um livro; de reler; de ler qualquer coisa; ao bovarismo (doença textualmente transmissível); o direito de ler em qualquer lugar, de ler uma frase aqui e outra ali, de ler em voz alta, de calar.

264


A possibilidade de escolher determinada his-

Espero que vocês saiam e deixem que as

tória nos permite ocupar o lugar de um griot

histórias lhes aconteçam, que vocês as

e o próprio poder de usar a fala pode ser to-

elaborem, que as reguem com seu san-

mado como um espaço de autoafirmação.

gue, suas lágrimas e seu riso até que

Trata-se de escutar a voz do outro. E quem

elas floresçam, até que você mesma es-

escuta aprende a respeitar e deleitar-se na

teja em flor. Então, você será capaz de

voz da outra pessoa.

ver os bálsamos que elas criam, bem como onde e quando aplicá-los. É essa a

Continuando a conversa: libertando vozes

missão. A única missão (ESTES, 1999, p. 570). A missão do poder da palavra está conos-

Quando nos referimos à cultura afro-brasileira, sempre fazemos uso dos incontáveis conhecimentos e saberes trazidos por outros povos e pelos africanos escravizados em suas estratégias de resistência e construção de suas identidades – o canto, as rezas, os gestos corporais, o som dos instrumentos,

co. Basta sabermos usá-la, como os sábios contadores de outrora, e mergulharmos nos mistérios desconhecidos, que nos revelam como lidar com os conflitos, com as mudanças, com as diferenças, com a convivência em sociedade nas singularidades das formas de ser e viver.

os usos da palavra cantada ou versada. Todos esses elementos se entrelaçam e comu-

Novos conceitos são construídos por meio

nicam e nos comunicam algo sobre nosso

da disseminação de outras ideias e con-

território, nossa cultura, nossa língua, en-

cepções, capazes de promover e sustentar

fim, nossa história.

comportamentos favoráveis à convivência e ao respeito, à igualdade nas relações entre

Podemos ser os novos guardiões e guardiãs,

crianças e jovens, homens e mulheres para

responsáveis por construir novas histórias,

além do aspecto jurídico, constituído pelo

re- criar enredos éticos e dignos, valorizar

princípio de que todos os homens são iguais

culturas e sermos portadores das vozes es-

perante a lei.

quecidas de um passado mais longínquo (dos mitos, dos ancestrais), assim como de

Fica o convite ao compromisso para desfiar a

um passado mais próximo, de séculos de

trama cultural, nos seus múltiplos sentidos

ocultamento da história da África como ma-

e tessituras, recuperar, produzir histórias e

triz da trajetória da humanidade. Basta abrir

– na própria voz dos sujeitos – buscar for-

as portas e deixar as histórias aflorarem:

mas de alterar as condições atuais, contar

265


ou retomar outras novas histórias, coletiva-

De acordo com o Parecer, é fundamental a:

mente, como rezam as tradições das Áfricas. Edição de livros e de materiais didáticos,

As leis contam e aumentam pontos

para diferentes níveis e modalidades de ensino, que atendam ao disposto neste parecer, em cumprimento ao disposto no Art. 26A da LDB, e, para tanto, abor-

Atualmente, a cultura africana e afro-brasileira está na agenda educacional de nosso País. É importante ressaltar que o movimento social negro brasileiro – incluímos também o movimento de mulheres negras – nas últimas décadas do século XX e início do XXI – tem desempenhado papel preponderante nessa tendência de valorização da cultura negra, por meio de suas denúncias e reivindicações. Todo esse contexto permite,

dem a pluralidade cultural e a diversidade étnico-racial da nação brasileira, corrijam distorções e equívocos em obras já publicadas sobre a história, a cultura, a identidade dos afrodescendentes, sob o incentivo e supervisão dos programas de difusão de livros educacionais do MEC – Programa Nacional do Livro Didático e Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE).

gradativamente, vislumbrar livros de Lite-

266

ratura Infanto-Juvenil com novas propostas

A Resolução retoma esse assunto quando in-

(LISBOA DE SOUSA, 2005).

forma no Art. 7º que “Os sistemas de ensino orientarão e supervisionarão a elaboração e

Vale chamar a atenção em relação à alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de n°. 9.394/96 (LDBEN), trazida pela Lei Federal de n°. 10.639/03, que torna obrigatório o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial de Ensino e da regulamentação da Lei 10.639/03 pelo Parecer CNE/CP 003/2004 e pela Resolução CNE/CP 1/2004, que dispõem sobre as

edição de livros e outros materiais didáticos, em atendimento ao disposto no Parecer CNE/ CP 003/2004”. Esses dispositivos legais são fundamentais para as mudanças atuais na história da educação no país, pois contribuem para que educadores, gestores, editores, leitores etc., possam redimensionar as práticas de leitura e a concepção de livros de literatura.

Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

Em 2005, a Secretaria de Educação Continu-

História e Cultura Afro-Brasileira e Africa-

ada, Alfabetização e Diversidade (SECAD),

na.

por intermédio da Coordenação Geral de


Diversidade e Inclusão Educacional, enviou

estimulam o respeito à diversidade. Salien-

ofícios para várias editoras, informando so-

tamos que tais ações precisam integrar os

bre os dispositivos legais acima citados, com

currículos das escolas e serem incorporadas

o intuito de que as editoras inscrevessem li-

ao cotidiano escolar.

vros sobre o tema no Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE). As Diretrizes do

REFERÊNCIAS

referido Programa apontavam o tema da diversidade como enfoque. O resultado foi positivo, na medida em que livros importantes sobre o tema foram selecionados em 2005,

BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena e Casa das Áfricas, 2003.

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Por um lado, algumas Secretarias de Edu-

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Caderno de Educação do Ilê Aiyê. África Ven-

guisa de exemplo, temos a Bibliografia Afro-

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__________. COELHO, Nelly Novaes. Literatu-

tos, aumentam pontos. Da mesma forma,

ra Infantil: teoria análise, didática. São Paulo,

ao partilharem conhecimentos, valorizam e

Moderna, 2000.

267


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271


X. Conto popular, literatura e formação de leitores1 Ricardo Azevedo2

Parte considerável dos contos populares pare-

“Uma filha de chefe e um rapaz se apai-

ce ser originária de mitos arcaicos. Os mitos

xonaram, mas os pais da jovem não

são, em princípio, narrativas sagradas, rela-

aprovavam a união da filha (...). Um dia,

tando fatos que teriam ocorrido num tempo

a moça desapareceu. Descobriu-se que

ou mundo anterior ao nosso e que, em geral,

tinha fugido para as colinas refugiando-

tentam explicar a origem e a existência das

-se entre animais e pássaros. Enviaram

coisas: como e porque surgiram o mundo, os

embaixadas e mais embaixadas até ela,

homens, os costumes, as leis, os animais, os

para convencê-la a voltar, mas em vão: o

vegetais, os fenômenos da natureza etc.3 Em

desgosto a tinha tornado surda e insen-

outras palavras, através de histórias, as cul-

sível. Um feiticeiro declarou que só um

turas criaram (e criam) mitos com o objetivo

grande choque poderia tirá-la daquela

de tornar compreensíveis e interpretáveis a

letargia. Anunciou-se então à heroína a

existência humana e tudo o que existe.

falsa morte de seu amado. Ela deu um pulo e desapareceu, transformada em

Vejamos trechos de dois relatos míticos

Engole-vento”4.

recolhidos pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss em sua passagem pelo Brasil, na década de 40. Ambos tentam explicar porque o pássaro Engole-vento é como é. O primeiro

Sobre o mesmo pássaro, cujo canto é muito triste, o ilustre pesquisador apresentou o mito karajá. Eis um trecho:

corresponde a um mito guarani:

1 Conto e reconto: literatura e (re)criação – 2006 / PGM 1. 2 Escritor e desenhista, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Lúcio vira bicho, Cia. das Letras, Contos de espanto e alumbramento, Scipione e A hora do cachorro louco, Ática, entre outros. 3 O assunto ultrapassa os limites desse artigo. Há, naturalmente, mitos modernos e contemporâneos. O termo costuma ser utilizado de forma imprecisa, seja meramente como “relatos fantásticos” ou “seres fabulosos” seja como “crenças inverídicas” ou mesmo simples mentiras. A noção de mito é bem mais complexa que isso. Para mais informações c.f. por exemplo ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo, Perspectiva, 1972. 4 LÉVI-STRAUSS, Claude. A oleira ciumenta. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 55.

272


“(...) certa noite, a mais velha entre duas

mais diversas culturas, teriam sofrido um

irmãs, admirando a beleza da estrela

processo de dessacralização, ou seja, com

vespertina, desejou-a. No dia seguinte, a

o passar do tempo, deixaram de ser inter-

estrela entrou em sua casa sob a forma

pretadas com fé religiosa. Algumas delas,

de um velho curvado, enrugado e de ca-

por serem muito bonitas, continuaram a ser

belos brancos, e declarou estar disposto

contadas e, de boca em boca, sofrendo natu-

a se casar com ela. A mulher, horroriza-

ralmente todo tipo de alteração e influência

da, rejeitou-o. Sua irmã mais nova ficou

– “quem conta um conto aumenta um pon-

com pena e aceitou o velho como ma-

to” – transformaram-se no que conhecemos

rido. No dia seguinte, descobriram que

hoje como contos populares.

aquele corpo não passava de um invólucro, sob o qual havia um belo rapaz, ri-

Esses contos, é bom lembrar, são típicas ex-

camente paramentado, que sabia fazer

pressões de culturas orais (sem escrita), ou

crescer as plantas alimentares que os

seja, culturas que não contam com recur-

índios ainda não conheciam. A mais ve-

sos para fixar informações. De narrador em

lha sentiu ciúme da irmã por sua sorte,

narrador, guardados, através dos séculos,

e sentiu vergonha de sua própria estu-

na plasticidade da memória e da voz, viaja-

pidez. Transformou-se então no Engole-

ram para todos os lados sendo disseminados

-vento, de grito desconsolado”5.

pela transmissão boca a boca. Nesse processo, sofreram todo tipo de modificação:

Como se vê, a associação entre narrativas míticas e contos populares pode ser bastante nítida. Ressalto que o que chamo aqui de “conto popular” é sinônimo de “conto de fadas”, “conto maravilhoso” ou “conto de encantamento”, narrativas que no Nordeste brasileiro também são conhecidas como “histórias de Trancoso”.

fusões, acréscimos, cortes, substituições e influências. Em tese, numa simplificação, de um mesmo mito (narrativa sagrada arcaica) europeu, por exemplo, podem ter surgido infindáveis e variadas histórias, marcadas pelas diversas culturas por onde passaram e recriadas por um sem número de contadores (cada um com seu estilo). Eis porque os contos populares são tão ri-

Em grandes linhas, é possível colocar a

cos, multifacetados e complexos e também

questão nos seguintes termos: acredita-se

porque costuma ser perda de tempo preten-

que muitas narrativas míticas, oriundas das

der identificar sua “verdadeira origem”.

5

Idem,ibidem, p. 58. 8 Idem, ibidem, p. 179.

273


O tema é amplo. Para abordá-lo no curto es-

viaja pelo mundo, enfrenta perigos e um

paço desse texto, será preciso dividi-lo em

sem número de aventuras, desobedece uma

tópicos.

recomendação, é castigado, foge, liberta a princesa das garras do monstro, retorna,

O primeiro deles diz respeito a algumas ca-

é traído, luta, vence, casa-se com ela e em

racterísticas, entre outras, dos contos po-

termos temporais, aparentemente, nada

pulares: 1) São sempre assumidamente de

mudou. Crianças, jovens e velhos começam

ficção, ou seja, não pretendem ter aconte-

e terminam a história mantendo, em geral,

cido de fato (ao contrário, por exemplo, do

suas respectivas idades.

“causo” ou da “lenda”); 2) Trazem, muitas vezes, a possibilidade do elemento maravi-

Não são poucas as exceções, mas que surgem

lhoso: a existência de forças desconhecidas,

para confirmar a recorrência dos pontos ali-

feitiços, monstros, encantos, instrumentos

nhavados acima de forma esquemática.

mágicos, vozes do além, viagens extraordinárias e amigos ou inimigos sobrenaturais;

Um segundo tópico merece ser destacado.

3) Não costumam ocorrer num tempo deter-

Na maioria das vezes, os contos populares,

minado (ou histórico), mas – como os mitos

ou de encantamento, não obedecem a uma

– num passado ou numa dimensão anterio-

moral de princípios. Em tese, a moral corres-

res e desconhecidos. Note-se que seu desen-

ponde a um conjunto de normas de compor-

volvimento acontece “certa vez”, “há muito

tamento destinadas a regular as relações en-

tempo...”, “no tempo em que os animais fa-

tre os indivíduos6. Estamos acostumados e

lavam”, “há milhares de anos quando nada

condicionados a pensar na moral como um

existia do que hoje existe” etc.; 4) Com suas

acervo de princípios abstratos, gerais e uni-

personagens acontece algo semelhante. Por

versais de comportamento que deve ser res-

vezes, nem nome têm: são “o pai e seus três

peitado por todos, seja qual for a situação:

filhos, o mais velho, o do meio e o caçula”,

não mentir, não roubar, não matar, valorizar

ou “a bela adormecida no bosque”, ou “cer-

a busca da justiça, da imparcialidade, da im-

to rei muito poderoso pai de uma princesa

pessoalidade, da isonomia, da isenção e da

mais linda do que as flores do campo” e, por

neutralidade. Pois bem, a moral dos contos

último, 5) Neles, em geral, a passagem do

de encantamento, chamada por alguns de

tempo inexiste. O herói despede-se do pai,

moral ingênua, costuma seguir outros para-

6 A ética, vale lembrar, é a teoria ou a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, ela representa um “conjunto sistemático de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento humano moral” (Vazquez). Enquanto a moral é inseparável da atividade prática, a ética constitui-se na avaliação, reflexão e crítica sobre esta atividade. Sobre o assunto, c.f. VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética . Civilização Brasileira, 1999 e ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Universidade de Brasília, 1992.

274


digmas. Segundo ela, tudo o que favorece

troca os benefícios do Estado – segurança,

o herói é o Bem e tudo o que prejudica o

moradia, educação, transporte, saúde e tra-

herói é o Mal. Trata-se, em outras palavras,

balho –, seja igual à moral de uma socieda-

de uma moral relativa, flexível e pragmática,

de desequilibrada, onde cada um luta por si

ligada não a princípios abstratos e univer-

para poder sobreviver? São questionamen-

sais mas a atuações e situações concretas

tos que mereceriam uma discussão urgente,

do aqui-agora. É ela que, por exemplo, pode

principalmente se levarmos em conta a so-

fazer com que certa mãe diga: “Meu filho

ciedade brasileira.

cometeu um crime, mas errar é humano. Nossa Senhora da Penha vai perdoá-lo e fazer com que a polícia jamais o encontre.” Note-se que, de acordo com a moral ingênua, errar costuma ser bem mais humano quando a gente gosta de quem errou. A questão também pode ser vista por outro viés: o do livre-arbítrio. A lei, um princípio geral e abstrato, nos obriga a não ultrapassar a velocidade de 60 km por hora nos perímetros urbanos. Estamos, por exemplo, com uma pessoa gravemente ferida dentro do carro. Devemos cumprir a lei ou não? Tento demonstrar que a questão da moral ingênua implica dissenso e contradição e que boa parte dos contos populares obede-

Passo para um terceiro aspecto dos contos populares: seu caráter eminentemente narrativo. Para compreender esse ponto, é preciso abordar, mesmo que de passagem, um tema relevante e muito amplo, embora nem sempre levado em conta: a oralidade, suas características e implicações. Sabemos que os contos populares, em princípio, nascem em culturas orais, ou seja, são histórias criadas, recriadas e preservadas ao longo do tempo – sempre com modificações – através da narração e da memória, recursos típicos das culturas que não dispõem de instrumentos de fixação como a escrita.

ce a uma moral que, embora eventualmen-

Mesmo em versões contemporâneas feitas

te condenável em termos da sociabilidade,

por escrito, o conto popular continua mar-

pode trazer à baila situações e conflitos hu-

cado pela narrativa oral, pois tende a man-

manos de grande interesse.

ter certas características do discurso falado e pressupõe sempre uma voz que narra e um

Ainda neste tópico, um último exemplo

ouvinte.

(que, por sinal, vincula a moral ingênua à cultura popular): como exigir que a moral de

Refiro-me a um escritor que, de certo modo,

uma sociedade civilizada e justa, onde todos

escreve como quem fala e a um leitor que lê

os cidadãos pagam impostos e recebem em

como quem ouve.

275


Podemos, claro, escrever solitariamente

tor, na verdade, independe completamente

sem nos preocuparmos com o eventual lei-

do seu leitor.

tor mas, convenhamos, quem narra em voz alta, sozinho, para ninguém, corre o risco

Já um orador – seja ele um contador de his-

de ser internado à força em alguma clínica

tórias, um professor, um político, ou um

psiquiátrica.

padre durante o sermão – quando se dirige a uma plateia face a face, “ao vivo”, vê-se

A narrativa, portanto, é, em princípio, essen-

diante de uma situação bastante diferente

cialmente dialógica e tem como substrato,

da vivida pelo escritor.

paradigma e pressuposto básico, sempre e sempre, a comunicação entre pessoas feita

Sabe que suas palavras, seu tom de voz, seus

face a face, em suma, de um eu que se dirige

gestos, seus olhos, o ambiente, a reação da

a um outro situado.

plateia e a energia estabelecida entre ele e a plateia fazem parte de seu discurso e jamais

Explico-me melhor: há textos marcados prin-

poderão ser completamente reproduzidos,

cipalmente pela cultura escrita. Isso signifi-

mesmo que seu discurso seja gravado, fil-

ca, em resumo, que são fixados e conserva-

mado ou fixado por texto, pois a diferença

dos por texto, o que garante sua perenidade

entre uma aula e o filme dessa aula é tão

e a possibilidade de serem lidos e interpre-

grande quanto a diferença entre um discur-

tados em qualquer lugar, época ou contex-

so ao vivo e sua transcrição numa folha de

to histórico. Um escritor sabe que, mesmo

papel. Sabe que seu discurso tem um alto

depois de morto, sua obra poderá ser lida.

grau de efemeridade. Sabe que precisa ser

Sabe que seu livro poderá ser distribuído

necessariamente compreendido, ou seja,

pelo mundo afora e que ele jamais verá o

evita falar para ser “interpretado” pois isso

rosto nem saberá a opinião da maioria de

demandaria tempo, distanciamento, análise

seus leitores. Sabe que pode se dar ao luxo

e reflexão por parte do ouvinte. Sabe que se

de escrever de forma fragmentada, recorrer

alguém da plateia não compreender seu dis-

a vocabulário e sintaxes incomuns, de uti-

curso poderá perguntar, portanto, sabe que,

lizar metáforas obscuras, fazer citações ou

se for o caso, pode improvisar e utilizar pa-

de ser experimental (pois o leitor pode ler,

lavras não previstas – ou seja, modificar seu

reler e analisar o texto com calma). Pode ser

discurso – para transmitir uma ideia. Sabe

indiferente ao fato de ser ou não compreen-

que não poderia fazer seu discurso se esti-

dido. Se quiser, pode até ser agressivo com

vesse morto. Sabe que sua plateia se resume

o leitor. Em tese, e considerando o meio de

às pessoas que estão à sua frente e precisa

expressão que utiliza – a escrita – um escri-

estar atento à reação dessas pessoas. Não

276


pode, portanto, se dar ao luxo de falar de

compartilhável construído através de uma

forma fragmentada, recorrer a vocabulá-

linguagem familiar e acessível.

rio e sintaxes incomuns, utilizar metáforas obscuras, fazer citações ou ser experimen-

Abro parênteses para lembrar que a narrati-

tal, pois correrá o risco de não ser compre-

va é um recurso humano vital e fundamen-

endido. Sabe que se for agressivo e ofender

tal. Sem ela, a sociabilidade, e mesmo a vi-

as pessoas da plateia pode até tomar uma

são que temos de nós mesmos, não poderia

surra. Em tese, e considerando o meio de

ser construída. Narramos nossas experiên-

expressão que utiliza – a voz – um orador

cias cotidianas, nosso dia no trabalho, fatos

depende completamente do seu ouvinte.

acontecidos, lembranças, sonhos, projetos e desejos. Narramos, mesmo de forma so-

Dei tantos exemplos para defender a seguin-

litária, em pensamento, para nós mesmos,

te ideia: há textos escritos marcados pela

episódios acontecidos que de alguma forma

cultura escrita e textos escritos marcados

não ficaram claros. Para além de um recur-

pela cultura oral. Esses últimos tentam sem-

so literário, a narrativa pode ser considera-

pre recuperar a situação do orador diante

da um dos procedimentos através dos quais

de uma plateia, o discurso falado no conta-

tornamos a vida e o mundo interpretáveis.

277

to face a face. Textos assim, claros, diretos, concisos e dependentes da plateia (do lei-

Na verdade, a narrativa sempre foi:

tor), são exatamente aqueles utilizados pelo escritor de contos populares. Além da busca

(...) uma tendência definidora do ser

da comunicação imediata, da linguagem pú-

humano: da escrita rupestre entreme-

blica e direta, da concisão e dos temas pas-

ada de sons guturais à elaboração da

síveis de identificação e compartilhamento,

linguagem narrativa, observamos que o

um de seus vários recursos é a narratividade.

homem conta a história de si mesmo e do mundo. A necessidade dos ancestrais

Naturalmente, o termo “narrativa” é am-

de reunirem-se à volta do fogo para se

plo e pressupõe a possibilidade de diversas

guarnecerem do frio e das feras está

abordagens. Refiro-me a uma narrativa que

acompanhada do pressentimento de

se pretenda popular, que seja linear, cons-

que algo poderia ser revelado na fala do

truída acumulativamente, com começo,

sacerdote. E, na atualidade, não é com

meio e fim, que tenha continuidade, que te-

outro pressentimento que o homem ro-

nha como objetivo contar uma história de

deia o aparelho de televisão, à espera de

interesse geral, abordando temas que per-

um sacerdote dessacralizado da mídia:

mitam identificação imediata, um discurso

todos aguardamos notícias, revelações,


reconstruções de eventos, através das

tos marcados pela cultura oral, podem ser

narrativas7.

experiências interessantes para o leitor jovem, em fase de compreender a literatura e

Ainda sobre o tema, vejamos as palavras de

situar-se diante dela.

Clóvis Barbosa, um homem do povo, pescador e contador de histórias em São Romão,

Falei em “tornar compreensível a experiên-

Minas Gerais:

cia de vida” e isso nos remete a meu último tópico: os temas e imagens recorrentes nos

Gosto de contá história (...). Qualqué

contos populares.

história eu gosto de contá. Se é um caso alegre, de brincá com os otro, eu vô con-

Ao contrário do que se poderia pensar, o fato

tano e vô rino. Se é história de sofrimen-

de serem de ficção e poderem conter aspec-

to, eu vô falano, o coração vai doeno e

tos mágicos e de encantamento, nem de lon-

tem vez que dá choro. Aí nós chora junto

ge tira dos contos populares sua extraordi-

e lembra tudo de difici que nós passô. É

nária capacidade de abordar a vida concreta

um choro manso, uma chuva fininha8.

e, mais ainda, de especular sobre ela. Tanto assim que neles nos deparamos com prince-

A construção narrativa, em suma, é um pro-

sas que nascem mudas e recuperam sua voz

cedimento que, sem dúvida, ajuda a estrutu-

quando encontram o homem por quem se

rar e tornar compreensível a experiência de

apaixonam. Pessoas que se deitam na cama e

vida, não de forma solitária, mas sim, note-

ficam “adormecidas” até serem despertadas

-se, por meio da sociabilidade e do contato

por um sentimento forte. Mães ou madras-

dialógico com o outro. Como disse o conta-

tas que, ao notarem que suas filhas cresce-

dor de histórias mineiro “aí nós chora junto

ram e tornaram-se mulheres, mandam matá-

e lembra tudo de difíci que nós passô”.

-las. Injustiças e transgressões. Gigantes que aprisionam moças em castelos. Irmãos que

Não por acaso, a narratividade é uma carac-

mentem e traem. Pais que tentam desposar

terística central do conto popular.

suas próprias filhas. Heróis tolos que fazem tudo errado mas mesmo assim se dão bem.

Perceber que há textos narrativos e textos

Moças ou moços que não conseguem rir e

não-narrativos, assim como perceber que há

se dispõem a se casar com alguém que saiba

textos marcados pela cultura escrita e tex-

alegrá-los. Traições, ciúmes, orgulhos, men-

7 GOMES, Núbia P.M. & PEREIRA, Edimilson P. Mundo encaixado – Significação da cultura popular. Belo Horizonte, Mazza Edições, 1992. p. 112. 8

Idem, ibidem, p. 179.

278


tiras, vaidades, vinganças, invejas e ódios.

à condição humana vital e concreta, suas

Heróis malandros. Enigmas e adivinhações.

buscas, seus conflitos, seus paradoxos, suas

Heróis que arriscam a vida e colocam os in-

transgressões e suas ambiguidades.

teresses da coletividade acima dos seus interesses pessoais. Lutas de fracos contra fortes.

Na minha visão, os contos populares, in-

Animais que falam e se comportam como

dependentemente de rótulos como “cultu-

gente. Seduções de todo o tipo. Heróis que

ra popular”, “folclore” e outros, podem ser

tentam enganar a morte. Pactos com o dia-

considerados uma excelente introdução à

bo e seus preços. Homens sábios. Príncipes e

literatura, pois nada mais fazem do que tra-

princesas que lutam para escapar de castelos

zer ao leitor, de forma acessível e comparti-

no fundo do mar. Pessoas e cidades transi-

lhável, enredos, imagens e temas recorren-

toriamente transformadas em pedra. Sinas e

tes na ficção e na poesia.

manias. Moços que precisam aprender a linguagem dos pássaros para conquistar suas

É muito bom quando alguém – principalmen-

amadas. Truques e ardis. Heróis transforma-

te se for um jovem – descobre que, além de

dos em animais ou monstros em busca de

regras, informações e lições, um livro pode

sua identidade perdida. Não é pouco!

abordar os temas da vida humana concreta. Terá, creio, uma boa chance de tornar-se um

Através dos contos populares, chamados

leitor e, mais, cheio de entusiasmo diante

também de contos de encantamento, de

do que leu, indicará o texto a seus amigos,

fadas etc., temos a oportunidade de entrar

contribuindo assim para a formação de ou-

em contato com temas que dizem respeito

tros leitores.

279


XI. Literatura e pluralidade cultural1 Marisa Borba2 “A literatura é a escola da complexidade humana, do entendimento da vida”. (Edgar Morin)

No território brasileiro convivem diferentes

escola a instituição criada para apresentar

grupos sociais, com características étnicas e

às crianças e aos jovens os conhecimentos

culturais distintas, permeadas por grandes

acumulados e sistematizados da história do

desigualdades socioeconômicas. Vivemos

país e da humanidade (democratizando as-

num país que se apresenta cheio de contra-

sim o acesso ao saber produzido pela classe

dições, no qual ainda encontramos relações

dominante). Neste sentido o ethos (a identi-

sociais discriminatórias, aliadas a práticas

dade de um povo, grupo ou comunidade, a

excludentes, gerando injustiça social e vio-

marca de suas manifestações e realizações

lência. País que também se apresenta com

culturais) precisa ser discutido amplamente

grande riqueza cultural. País complexo,

pelos educadores, para que se aproximem e

país plural, necessitando de pluralidade de

se apropriem de um conhecimento que se

alternativas. Para solidificar esta sociedade

torna cada dia mais universal.

brasileira plural, será preciso ampliar o plural que potencialmente está em cada indi-

Se queremos construir uma sociedade mais

víduo. A escola pública terá neste momen-

justa e democrática, na qual todos tenham

to uma função muito importante, primeiro

acesso à educação, à cultura, ao esporte, ao

porque é o espaço em que podem conviver

emprego, à moradia, ao saneamento básico,

crianças e jovens de origens e níveis socio-

à saúde; se queremos uma sociedade em que

econômicos diferentes, com costumes e vi-

haja efetivamente participação democrática

sões de mundo diferentes; é também o es-

(inclusive nas discussões sobre elaboração

paço público para a vivência democrática

de políticas públicas e nas decisões sobre o

com a diferença e, finalmente, porque é a

uso das verbas públicas), em que haja quali-

1

Literatura e temas transversais – 2000 / PGM 2.

2 Marisa Borba é pedagoga, com experiência em alfabetização, bibliotecas escolares da rede pública e particular do Município do Rio de Janeiro. Membro do PROLER e júri da FNLIJ.

280


dade social na prestação dos serviços; se que-

no desempenho de seus papéis sexuais. Os

remos a plenitude da cidadania para todos,

livros didáticos apresentam homens e mu-

teremos, como pressuposto básico que dis-

lheres segregados em mundos diferentes.

cutir a diversidade cultural, reconhecê-la e

Mulher é modelo do lar e homem represen-

valorizá-la. Precisamos também buscar a su-

ta trabalho e sustento, levando à discrimi-

peração das discriminações, atuando concre-

nação filhos de homens e mulheres que não

tamente sobre os mecanismos de exclusão.

se enquadrem nestes modelos. Muitos livros não refletem nossa realidade, uma vez que

Ressaltamos a importância da Lei de Diretri-

não atentam para nossa pluralidade cultu-

zes e Bases da Educação, desdobrada nos Pa-

ral, nem levam em conta as novas situações

râmetros Curriculares Nacionais, que vem

de desempenho de papéis sexuais, criados

trazer o tema pluralidade cultural para ser

pela transformação social. Se não refletem

pensado e vivido por professores e alunos,

nossa realidade, muito menos a questio-

uma vez que, historicamente, temos tido

nam. Apresentam a realidade como algo

dificuldade em lidar com a temática do pre-

pronto, acabado, inquestionável e sem pos-

conceito e da discriminação étnica.

sibilidade de interferência humana. Assim a escola contribui para a reificação do status

O preconceito no livro didático

quo, o que não deve ser o seu papel. Estudiosos e críticos da ilustração de livros didáticos ou de literatura infantil e juvenil

Pesquisas acadêmicas há muito denunciam livros didáticos com conteúdos indevidos, até mesmo errados, favorecendo assim a disseminação de preconceitos de diversas formas como, por exemplo, o privilégio da cultura da classe dominante, única aceita

também há algum tempo têm apontado para esta questão: preconceitos também são passados sutilmente através de imagens que são mostradas a crianças e jovens. Exemplo clássico é a ilustração da mulher de avental e lenço na cabeça, enquanto o homem apa-

como correta, bem como a hierarquização

rece sentado numa cadeira lendo o jornal

das culturas entre si.

(ilustração recorrente em livros didáticos quando se quer representar uma família de

Livros didáticos nos mostram o homem e

médio poder aquisitivo).

a mulher de forma estereotipada, sem nenhuma relativização; predominam deter-

Embora saibamos que a educação sozinha

minados modelos de homem e mulher, en-

não irá resolver o problema da discrimina-

quadrando-os em comportamentos rígidos,

ção em suas manifestações mais perver-

não considerando nenhum tipo de variável

sas, se queremos uma sociedade mais justa

281


devemos atuar para promover processos,

preciso que o agente deste processo - o(a)

conhecimentos e atitudes que colaborem

professor(a) - também se liberte, através de

com a transformação social. Por exemplo,

autoconhecimento e do desenvolvimento de

podemos promover práticas de respeito e

sua consciência profissional e crítica. O(a)

solidariedade para com os portadores de

professor(a) deve saber porque está ali, por-

necessidades especiais, através de esclareci-

que ensinar e o que ensinar, uma vez que só

mentos, uma vez que muitas situações dis-

um sujeito crítico e consciente politicamen-

criminatórias ocorrem por desconhecimen-

te tem condições de modificar o real.

to das causas ou das formas como é possível encaminhar pedagogicamente tais casos. Nas questões de gênero, deparamo-nos com histórias de injustiças para com as mulheres em seus cotidianos na vida privada, em situações familiares ou situações profissionais. Estas injustiças de gênero podem e frequentemente são agravadas quando acrescidas de injustiça por motivo de etnia, cultura ou exclusão socioeconômica . Vale lembrar que a maior parte do magistério é constituída por mulheres (de quem se espera que reproduzam o discurso masculino do poder). Conflitos, contradições, preconceitos, discriminações que hoje percebemos no universo escolar são resultados do lento e doloroso processo de libertação da mulher, principalmente no nosso século.

No nosso modelo de sociedade, os preconceitos e estereótipos foram desenvolvidos em função de antagonismos do tipo homem/mulher, negro/branco, senhor/escravo, e minoria dominante/maioria explorada e, ainda, reforçados pelas agências socializadoras como a família e a escola, que reforçam e reproduzem nas gerações mais jovens a visão de mundo que justificou e garantiu a continuidade no poder do grupo dominante, através da educação diferenciada. Mas o ideal de democracia que permeia nosso sistema, independente da condição de classe, gênero ou etnia fez com que se instalassem contradições. A partir daí recorremos a reflexões teóricas, ao pensamento acadêmico, à investigação sistemática para explicar estas mesmas contradições, respondendo sempre

E na medida em que os alunos, na maioria

que possível ao desafio proposto, como for-

das vezes, pertencem a grupos sociais eco-

ma de resolução do conflito.

nomicamente desfavorecidos, estes conflitos estarão sempre presentes e são de gênero, etnia e classe (preconceitos oriundos

A escola e a pluralidade cultural

de nossa formação histórica). Para que a escola promova um processo transforma-

A história da sociedade brasileira é marcada

dor em relação à pluralidade cultural, será

pela diversidade cultural: encontramos dife-

282


rentes características regionais, diferentes

vivência da pluralidade cultural, na medida

manifestações de cosmologias que ordenam

em que, entre outras estratégias e metodo-

de maneiras diferenciadas a apreensão do

logias, consegue democratizar o acesso ao

mundo, formas diferentes de organização

livro de literatura de qualidade, formando

social nos diferentes grupos e regiões, mul-

professores e alunos leitores críticos.

tiplicidade de relações com a natureza, de vivência do sagrado e de sua relação com o

A literatura, enquanto arte da palavra, nos

profano. O espaço rural e o espaço urbano

põe diante da complexidade da vida, nos

propiciam às suas populações vivências e

apresenta possibilidades de repensarmos o

respostas culturais muito diferenciadas que

real, o cotidiano, de reinventarmos a própria

implicam ritmos de vida, ensinamentos de

vida ou até mesmo entender sua multiplici-

valores e formas de solidariedade distintas.

dade.

A migração interna faz com que grupos sociais com diferenças de fala, de costumes, de valores, de projetos de vida se inter-re-

Que livros oferecer à criança e ao jovem?

lacionem, principalmente na escola em que esta diversidade cultural está presente e tem

Precisamos ter alguns cuidados ao sele-

sido ignorada, silenciada ou minimizada.

cionarmos os livros que vamos oferecer às crianças e jovens, pois não existe obra cultu-

Assim, quando pomos em discussão a plura-

ral inocente; todas estão carregadas de uma

lidade cultural, podemos também acoplar o

determinada visão de mundo, a do autor.

tema da educação diferenciada, começando

Para não ficarmos enredados na concepção

por reconhecer a existência de padrões de

de mundo dos outros e por ela não sermos

socialização baseados em estereótipos sexu-

manipulados, precisamos desenvolver uma

ais que determinam, a priori, o lugar da me-

leitura crítica.

nina e do menino na escola, e por extensão, mais tarde, na sociedade. Estes estereótipos

Escolhendo bons livros e oferecendo ao mes-

são tão bem urdidos, que são absorvidos, na

mo tempo uma grande variedade e diversi-

maioria dos casos, como algo “natural” e

dade deles faremos com que um texto dis-

“normal” através da escola.

corde do outro, o conteste e sugira outras alternativas. É importante a leitura de livros

A escola pública, já citada como espaço

variados, de culturas e opiniões diversas,

privilegiado da vivência democrática e de

com visões de mundo diferentes umas das

desenvolvimento do potencial criador de

outras, de modo que a leitura de um texto

seus alunos, contribuirá para a discussão e

dialogue permanentemente com a dos ou-

283


tros. Assim, cada leitor irá se enriquecendo

Sylvia Orthof, mostra a ovelha Maria que só

e a sociedade irá tecendo sua pluralidade. Se

ia aonde as outras iam e que sofria as con-

concordamos com estes pressupostos e que-

sequências de não pensar por si mesma, de

remos montar ou revigorar uma biblioteca,

ter criticidade, de refletir e tirar conclusões.

teremos como subsídios para este acervo:

Era uma vez duas avós, de Naumim Aizem e

livros de imagens; clássicos da literatura in-

Patrícia Gwinner, apresenta diferenças en-

fanto-juvenil - Grimm , Andersen, Perrault,

tre duas avós, com modos distintos de en-

entre outros; a obra de Monteiro Lobato,

carar a vida e como se pode tirar proveito

além de poesias, livros informativos, dicio-

da convivência com pessoas que pensam e

nários, enciclopédias e, principalmente, au-

agem diferente de nós (temos aí uma das fa-

tores que façam parte da moderna literatura

cetas da riqueza da complexidade humana).

infantil e juvenil, assim como jornais e re-

Mudanças no galinheiro mudam as coisas por

vistas. A variedade de autores e materiais de

inteiro, de Sylvia Orthof, relata a história de

leitura fará da biblioteca um lugar destinado

uma galinha que resolveu cantar de galo e,

à leitura de textos literários e um pólo de

dessa forma, promove grandes mudanças

discussão da pluralidade cultural, através de

em seu núcleo familiar. Faca sem ponta, ga-

atividades como debates de textos e livros

linha sem pé, de Ruth Rocha: nessa obra a

lidos, entrevistas, conversas com autores e

autora conta a história de dois irmãos (um

outros profissionais.

menino e uma menina), que recebiam uma educação diferenciada, o que leva a sérios

Ressaltamos, assim, autores da moderna

atritos entre eles. Em O Soldado que não era,

literatura infantil e juvenil que trabalham

Joel Rufino dos Santos nos traz a saga de Ma-

com a desconstrução de modelos clássi-

ria Quitéria, de forma muito rica e interes-

cos, tradicionais, ou que fazem denúncias

sante, proporcionando uma boa discussão

de algum tipo de opressão, que promovem

sobre preconceitos. Neste sentido, vários

rupturas com o discurso dominante, de for-

textos de Ana Maria Machado e Lygia Bojun-

ma radical ou não. Dentro desta perspecti-

ga são revolucionários. Em Angélica e A Bolsa

va podemos citar A fada que tinha ideias, de

Amarela, Lygia coloca a menina no interior

Fernanda Lopes de Almeida, em que aparece

do grupo familiar, questionando, refletindo,

uma proposta de reforma de estrutura fa-

buscando reverter situações incômodas. An-

miliar. A curiosidade premiada, também de

gélica nega a mentira sobre a qual se apoia

Fernanda Lopes de Almeida, apresenta uma

a celebridade da família das cegonhas. Ra-

personagem feminina curiosa, questionado-

quel, dona da bolsa amarela, sente o peso

ra, que tenta obter respostas para todas as

de ser criança e menina e suas vontades de

suas perguntas. Maria-vai-com-as-outras, de

ser menino, adulto e escritora crescem den-

284


tro da bolsa amarela. Maria, personagem

Ruth Rocha, em Procurando firme apresenta

de A Corda Bamba, apresenta uma autêntica

situações que também podem ser discutidas

emancipação. Em Tchau! encontramos a co-

sobre a questão da educação diferenciada

ragem enorme da mãe que larga a família

homem/mulher.

para viver uma grande e maravilhosa paixão e para realizar seus desejos. A filha questiona a desagregação da família, e se sente dividida entre o pai e a mãe. Lygia faz uma ruptura com o modelo de mulher adulta de comportamentos tradicionais e também faz uma crítica à filha que não entende a reação da mãe. Lygia consegue assim, com esta pluralidade de pontos de vista, dialogar com as múltiplas linguagens sociais. Ana Maria Machado, em muitas de suas obras, nos presenteia com protagonistas que assumem atitudes de rebeldia ante a passividade reinante, que buscam mudanças e alcançam seus objetivos, juntando-se a outros,

Alguns autores tratam com muita sensibilidade e visão crítica os excluídos pela sociedade. Paula Saldanha, em O Praça Quinze, mostra a realidade de meninos que vivem nas ruas, mesclando realidade e fantasia. Roseana Murray apresenta os direitos da criança e do adolescente num texto bastante poético. Entrevidas, também de Paula Saldanha, Coisas de Menino, de Eliane Ganen, Rosarito rosa-choque, Zé Beleza e Nus, como no Pontal, de Terezinha Éboli, nos mostram um Brasil geralmente ocultado pela escrita literária mais tradicional.

agindo com solidariedade e cooperação, so-

Trazendo nossa pesquisa para um período

bressaindo o espírito coletivo em detrimento

mais recente (década de 90) encontramos

do individualismo. Sua recente obra intitula-

diversos títulos por meio dos quais os pro-

da Mas que festa! nos mostra um pouco de

fessores podem abordar a questão da plura-

nossa diversidade cultural, assim como o já

lidade cultural. São exemplos:

“clássico” Menina bonita do laço de fita. Uma história só para mim, de Moacyr Scliar; No conto “A moça tecelã”, de Marina Cola-

Mulher que bicho é esse, de Lia Zatz; Meus

santi, do livro Doze reis e a moça do labirinto

vários quinze anos, de Sylvia Orthof; Felicida-

do vento, há o questionamento do mito de

de não tem cor, de Júlio Emílio Brás; Preto e

que o casamento resolve o problema da so-

branco, de Milton Camargo; Nó na gargan-

lidão da mulher e a submissão aos padrões

ta, de Mirna Pisky; Uma vitória diferente, de

comportamentais estabelecidos pela socie-

Marcos Bagno; O povo Pataxó e suas histórias,

dade. Ao tecer o tapete, a moça constrói e

de Angthichay Pataxó e outros; Meu livro de

reconstrói a sua vida...

folclore, de Ricardo Azevedo.

285


Estes e muitos outros títulos de literatura

escravo.” O que vem corroborar nossa

para crianças e jovens abordam questões de

tese da necessidade da leitura de bons

gênero, falam sobre as diferentes etnias, dis-

livros, pois esta é a leitura que nos dá

cutem questões sociais, falam de preconcei-

argumentos para que não nos intimide-

tos, enfim, apresentam a múltiplas expres-

mos, uma vez que a palavra é um instru-

sões culturais do povo brasileiro.

mento de libertação.

Algumas considerações

Assim, acreditamos que através da leitura dos livros de literatura de autores brasilei-

A pluralidade cultural presente em nossa

ros, como este citados, atingiremos um

moderna literatura infantil e juvenil poderá

desenvolvimento mais pleno e plural dos

chegar ao nosso aluno através do texto lite-

indivíduos, com mais consciência da im-

rário de qualidade, do texto que leve a for-

portância de sua participação nas decisões

mulações de perguntas e a indagações, que

coletivas, contemplando assim os diferentes

não apresente estereótipos como ponto de

grupos sociais, étnicos e culturais

partida, que não fira a ética e a estética. Esta literatura não será ponto de chegada e sim ponto de partida para outras leituras, outras indagações, e também outras descobertas de situações cada vez mais inesperadas. Esta literatura deverá fazer pensar, questionar, decifrar e interrogar e, depois de nos exigir algum esforço, nos fará sair dela diferentes, transformados de alguma forma. E para nos transformar, deverá nos atrair, viver dentro de nós. Gianni Rodari, no belíssimo A Gramática da

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286


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287


XII. Novas bases para o ensino da história da África no Brasil1 Carlos Moore2

Introdução3

1. Singularidades africanas

A obrigatoriedade4 do ensino da história da

No contexto da história geral da humanida-

África nas redes de ensino no Brasil con-

de, a África apresenta, em planos diversos,

fronta o universo docente brasileiro com o

um conjunto impressionante de singularida-

desafio de disseminar, para o conjunto da

des que remetem a interpretações conflitu-

sua população, num curto espaço de tempo,

osas e, muitas vezes, contraditórias. É pro-

uma gama de conhecimentos multidiscipli-

vável que nenhuma das regiões habitadas

nares sobre o mundo africano.

do planeta apresente uma problemática de abordagem histórica tão complexa quanto a

A generalização do ensino da história da

África, e isto se deve a muitos fatores, den-

África apresenta problemas específicos. Nes-

tre os quais podemos destacar:

te texto assinalamos, de maneira sumária e a título indicativo, alguns dentre os quais

• a sua extensão territorial (30.343.551 km2,

deverão ser levados em conta na formação

o que corresponde a 22% da superfície só-

inicial e continuada das/os professoras/es

lida da Terra), que vai desde a região do

das redes de ensino, incumbidos/as dessa

Pólo Sul até o Mediterrâneo e do oceano

missão.

Atlântico ao oceano Índico, apresentando

(...)

uma grande variedade climática5;

1 Sinopse retirada ao artigo publicado no livro Educação anti-racista - caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. MEC/SECAD, Valores afro-brasileiros na educação – 2005 / PGM 1. 2 Etnólogo e historiador. Doutor em Etnologia e doutor em Ciências Humanas pela Universidade de Paris-VII (França). Especialista em Relações Raciais (África, América Latina, Caribe, Pacífico). 3 Nota da edição do Boletim do Salto para o Futuro: A partir da sinopse do artigo citado, fizemos uma edição do texto focalizando alguns pontos essenciais para o debate. O texto pode ser conhecido na íntegra em Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal n. 10. 639/03. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília, Ministério da Educação, 2005. (Coleção Educação para todos) 4 A Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O Parecer 5 No interior do continente as distâncias são imensas – os 7.000 quilômetros que separam o Cabo da Boa Esperança, ao sul, do Cairo, ao norte, são aproximadamente a mesma distância entre Dacar, a oeste, e a extremidade do Chifre da África, a leste.

288


• uma topografia extremamente variada:

O continente africano, palco exclusivo dos

grandes savanas, vastas regiões desérti-

processos interligados de hominização e

cas ou semidesérticas (Sahel), altiplanos,

de sapienização, é o único lugar do mundo

planícies, regiões montanhosas e imensas

onde se encontram, em perfeita sequência

florestas;

geológica, e acompanhados pelas indústrias

• a existência e interação de mais de 2.000 povos com diferentes modos de organização socioeconômica e de expressão tecnológica; • a mais longa ocupação humana de que se tem conhecimento (2 a 3 milhões de

líticas ou metalúrgicas correspondentes, todos os indícios da evolução da nossa espécie a partir dos primeiros ancestrais hominídeos. A humanidade, antiga e moderna, desenvolveu-se primeiro na África e logo, progressivamente e por levas sucessivas, foi povoando o planeta inteiro7.

anos até o presente) e, consequentemente, uma maior complexidade dos fluxos e

Portanto, as atuais diferenças morfofenotí-

refluxos migratórios populacionais.

picas entre populações humanas – as chamadas “raças” – são um fenômeno recente

1.1. Berço da humanidade

na história da humanidade (presumivelmente do final do paleolítico superior, 25.000-

A mais marcante das singularidades africa-

10.000). E a ciência já descartou como an-

nas é o fato de seus povos autóctones terem

ticientífica a ideia de que o morfofenótipo

sido os progenitores de todas as populações

possa incidir de algum modo nos processos

humanas do planeta, o que faz do continente

intelectuais de socialização ou de aquisição/

africano o berço único da espécie humana.

aprimoramento de conhecimentos8.

Os dados científicos que corroboram tanto as análises do DNA mitocondrial6 quanto

Esta tradição, eurocêntrica e hegemônica,

os achados paleoantropológicos apontam

costuma alinhar o fato histórico com a apa-

constantemente nesse sentido.

rição, recente, da expressão escrita, criando

6 DNA mitocondrial humano é um pequeno DNA circular presente nas mitocôndrias (as usinas energéticas da célula) no citoplasma. Este DNA tem uma série de características genéticas peculiares, destacando-se o fato de ter herança puramente materna. Em outras palavras, todo o DNA mitocondrial de um indivíduo vem de sua mãe apenas, sem nenhuma contribuição paterna. 7 Grupos de humanos anatomicamente modernos deixaram o continente africano pela primeira vez há aproximadamente 100.000 anos. Essa população humana ancestral, que tinha apenas dois mil indivíduos, migrou progressivamente para os outros continentes, atingindo a Ásia e a Austrália há 40 mil anos, a Europa há 30-35 mil anos, e, finalmente chegando ao continente americano há pelo menos 18 mil anos. 8 Convém esclarecer um ponto: o fato de que a noção de “raça” não traduz uma realidade biológica não quer dizer que “raça” não exista como construção histórica. Neste caso, ela corresponde não a uma realidade genotípica (biológica), mas sim a um fato sócio-histórico baseado numa realidade morfofenotípica concreta à qual se deu uma interpretação ideológica e política. A ficção é a de se pretender que “raça” seja unicamente um fato que deve ser enquadrado na biologia. Infelizmente, raça não é uma ficção. Ela é uma realidade sociológica e política bem ancorada na história e que regula as interações entre os povos desde a Antiguidade. Desde há séculos, os povos africanos e afrodescendentes têm de se defrontar no cotidiano com essa concretude da raça.

289


os infelizes conceitos de povos “com histó-

sas, turcos, árabes), até o sudeste asiático

ria” e de povos “sem história” que, eventu-

(indonésios).

almente, o etnólogo Lucien LEVY-BRUHL iria transformar em “povos lógicos” e “povos pré-lógicos” . Mas a história propriamente 9

dita é a interação consciente entre a huma-

1.3. Alvo da escravidão racial e dos tráficos negreiros transoceânicos

nidade e a natureza, por uma parte, e dos seres humanos entre si, por outra. Por conseguinte, a aparição da humanidade como espécie diferenciada no reino animal, abre o período histórico. O termo “pré-história”, tão abusivamente utilizado pelos especialistas das disciplinas humanas, é uma dessas criações que doravante deverá ser utilizada com maior circunspeção.

A singularidade do continente africano, que teve a maior repercussão negativa sobre o seu destino, determinando o que é a África de hoje, foi a de ter sido o primeiro e único lugar do planeta onde seres humanos foram submetidos às experiências sistemáticas de escravidão racial e de tráfico humano transoceânico em grande escala. O chamado “continente negro” – como é designado o

1.2. Berço das primeiras civilizações mundiais

continente africano, ainda que nenhum historiador tenha se referido à Europa como continente “branco” ou à Ásia como o conti-

Uma das singularidades da África decorre do

nente “amarelo” – foi transformado, durante

fato de esse continente ter sido o precursor

um período de um milênio, num verdadeiro

mundial das sociedades agrossedentárias e

terreno de caça humana e de carnificina. O

dos primeiros Estados burocráticos, particu-

impacto negativo cumulativo dessa reali-

larmente ao longo do rio Nilo (Egito, Kerma

dade sobre o desenvolvimento econômico,

e Kush). Ao longo dos séculos, as riquezas

tecnológico, político, demográfico, cultural

destes Estados, assim como as riquezas do

e psicológico dos povos africanos está ain-

império de Axum, na parte oriental do con-

da por ser determinado. Mas as complexas

tinente, e do império de Cartago, situado

interconexões existentes entre as singulari-

na porção setentrional, aguçaram a cobiça

dades apresentadas e a visão depreciativa

de inúmeros povos vizinhos, desde o Me-

que permeia tudo o que se refere à herança

diterrâneo europeu (gregos e romanos) e o

histórica e cultural dos povos africanos já

Oriente Médio semita (hicsos, assírios, per-

começam a aparecer.

9 Ver: LEVY-BRUHL, Lucien, La mentalité primitive. Paris: Presses Universitaires de France, 1947.

290


1.4. Alvo dos mitos raciológicos

desprovidas de coerência orgânica. Sabe-se que na ótica materialista, hegemônica e line-

Às singularidades próprias do continente se

ar do Ocidente e do Oriente Médio, a expres-

agrega outra, de construção totalmente ex-

são “escrita”, a organização em “estados” e

terna: uma mitologia preconceituosa erigida

a utilização de “moeda” são sinônimos de

por seus sucessivos conquistadores (hicsos,

inteligência, superioridade e civilização.

assírios, gregos, romanos, persas, turcos, árabes, indonésios e europeus), que sobrevi-

A racialização de tudo tocante à África é

ve atualmente na maioria das obras eruditas

uma prática tão universalmente insidiosa,

produzidas pelos africanistas de todos os con-

que os próprios historiados nem a perce-

tinentes, e pelos historiadores em particular.

bem mais como um elemento de violenta desumanização do ser humano africano.

O ensino da história da África apresenta,

Ainda hoje, a visão raciológica continua a

pois, problemas específicos de interpretação

afetar boa parte das obras consagradas ao

com os quais o pesquisador nunca se defron-

continente africano, tanto na Europa e nos

tará ao percorrer a história dos outros povos

Estados Unidos, como também no Oriente

do planeta; povos cuja inteligência, dinamis-

Médio e na América Latina onde, de modo

mo, capacidade de empreender, aprender e

geral, os incipientes estudos africanistas

de adaptar-se às condições e meios diversos

são meras prolongações dos conceitos e

jamais foram questionadas.

preconceitos urdidos pela academia euro-

No caso da África, chegou-se a afirmar que a civilização do Egito faraônico tivesse sido

peia e norte-americana. (...)

“trazida de fora” por misteriosos povos “de pele branca”, supostamente vindos do Oriente Médio. Numídia e Cartago sofreram desde então a mesma sorte, e a África foi ideologicamente dividida entre uma “África

2. Para uma nova periodização africana (antiga e moderna)

negra” e uma “África branca”, para marcar a coincidência entre o conceito de raça e o

A periodização é um padrão conceitual que

conceito de civilização.

facilita a apreensão de uma longínqua trama histórica ou pré-histórica, tornando-a inteli-

Os povos africanos ao sul do Saara foram

gível para nós. Se descartarmos definitiva-

apresentados, durante longo tempo, como

mente o conceito de “pré-história” no que

gente “sem história”, “sem escrita”, “sem es-

diz respeito à África posterior há 2,5 milhões

tados”, e “sem moeda”, ou seja, sociedades

de anos, o ciclo histórico de qualquer perio-

291


dização se iniciaria nesse continente com a

tra-africanos desde a antiguidade nubio-

aparição da primeira humanidade arcaica

-egípcia até a contemporaneidade;

como espécie diferenciada dentro da família dos hominídeos. No estado atual de nossos conhecimentos, esse evento aconteceu efetivamente pelo menos há 2,5 milhões de anos. Somente uma periodização de longa duração poderia refletir esses fatos históri-

• as invasões do exterior; • a conquista e colonização árabe da África setentrional; • os tráficos negreiros intracontinentais e transoceânicos;

cos, que a ciência moderna legitima, e refletir aquelas singularidades que são próprias à historiografia africana.

• rocessos de desintegração de espaços sócio-históricos constituídos; • a conquista e colonização europeia de

Por conseguinte, há várias formas de abor-

todo o continente africano;

dagem para potencializar a inteligibilidade desses grandes períodos de uma história de tal extensão. Aquela que propomos consiste num padrão de periodização que levaria em conta tanto a produção das ideias filosóficas, religiosas e morais, como a produção do conhecimento científico e tecnológico pelas distintas sociedades: • o processo de hominização; • o povoamento do continente africano pela humanidade arcaica;

• as lutas de libertação e a descolonização da África; • as lutas da pós-independência.

292 Essa abordagem apresenta a vantagem de um enfoque panorâmico que, sem desnaturar ou desfigurar a experiência histórica dos povos africanos, coloca-os numa posição de maior inteligibilidade para o estudo por parte daqueles que inclusive não possuem, de início, uma grande familiaridade com essas questões.

• os êxodos do continente e o subsequente povoamento do planeta;

2.1. O marco referencial antigo

• os processos de migração intra-africana, sedentarização e assentamento agrícola; • o processo da construção dos primeiros Estados agroburocráticos da história;

Antiguidade

Pré-histórica

(7.000.000

2.500.000 anos) - o processo de hominização e a aparição de várias espécies de Hominídeos.

• as lutas e rivalidades políticas entre povos

Antiguidade Remota I (2.500.000 – 1.000.000

e nações africanas, os expansionismos in-

de anos) - surgimento, sucessivamente, de


dois troncos prototípicos da família huma-

que “os ecossistemas atuais do continente

na arcaica (Homo Habilis, Homo Erectus) e

africano se constituíram entre 12.000 e 3.000

primeiras migrações fora da África (Oriente

anos a.C., dando ao continente essa confi-

Médio, Ásia).

guração ambiental que explica o desenvolvimento das práticas agrícolas” (M’BOKOLO,

Antiguidade Remota II (1.000.000 – 200.000

2003, p. 51). Por isso, privilegiamos o Neolí-

anos) - surgimento da família humana proto-

tico como o ponto de referência para deter-

moderna (Homo Sapiens Neandertalensis) e

minar aquelas configurações histórico-de-

migrações para o Oriente Médio e a Europa.

mográfico-culturais que designamos como “espaços civilizatórios”.

Antiguidade Remota III (200.000 – 10.000 anos) - surgimento da família humana

Atentos ao fenômeno de longa continuidade

anatomicamente moderna (Homo Sapiens

na ocupação do solo e das complexas dinâ-

Sapiens); povoamento definitivo do plane-

micas migratórias intracontinentais, pare-

ta por levas sucessivas a partir da África;

ce-nos apropriado utilizar o período que vai

aparição de novos “troncos fenotípicos” na

desde o início do Neolítico (10.000 a.C.)10 até

Eurásia (protoeuropoides e proto-sino-nipô-

meados do século XIX, como o grande marco

nico-mongóis); migrações dos povos leuco-

histórico referencial para uma periodização

dermes europoides; migrações dos povos

suficientemente flexível. Atendendo a essas

leucodermes sino-nipônico-mongóis.

considerações, a historiografia africana dos últimos dez milênios pode conceber-se no

2.2. O marco referencial formador

interior de cinco grandes períodos, respectivamente denominados como “clássico”, “neoclássico”, “ressurgente”, “colonial” e

O Neolítico se apresenta como o momento em que os ancestrais imediatos das famílias linguísticas correspondentes aos povos e sociedades que conhecemos atualmente chegaram ao habitat que ocupam hoje. Embora

“contemporâneo”. Antiguidade Próxima (10.000 a.C. – 5.000 a.C.) - aparição das primeiras sociedades sedentárias agrícolas nos diferentes espaços civilizatórios.

ainda não tenhamos um desenho geral concreto sobre esse período, com a abrangência

Antiguidade Clássica (5.000 a.C.- 200 d.C.) -

e a meticulosidade que se requer, sabe-se

aparição, apogeu e declínio das primeiras

10 Convencionalmente, o período entre 10.000 e 4.000 a.C. está dividido em Mesolítico (de 10.000 a 8.000 a.C.) e Neolítico (de 8.000 à 4.000 a.C.). Privilegiamos a unificação destes, para constituir um só período abrangente: Neolítico (de 10.000 à 4.000 a.C.).

293


civilizações agroburocráticas clássicas: Egi-

A dominação imperial europeia e o tráfico

to, Kerma, Kush, Cartago, Axum (primeiras

escravista transoceânico pelo Atlântico (sé-

potências africanas), atendendo:

culos XV-XIX).

• à organização social; à extensão imperial;

Período Colonial (1870 – 1960) - a destruição

às rivalidades políticas interafricanas; às

pela Europa dos Estados agroburocráticos

invasões pelos povos europeus-mediterrâ-

ressurgentes e a colonização do continente

neos (“povos do mar”); às invasões pelos

africano.

povos semitas (hicsos); à rivalidade com o mundo semita emergente (hititas, assírios, persas); e às confrontações com o mundo greco-romano.

O processo de subdesenvolvimento do continente africano pela Europa e o surgimento da supremacia planetária do mundo ocidental.

Antiguidade Neoclássica (200 d.C. - 1.500 d.C.) - aparição, apogeu e declínio dos Es-

As lutas dos povos africanos pela descoloni-

tados agroburocráticos neoclássicos nos

zação do continente e o surgimento da ideo-

diferentes espaços civilizatórios (Ghana, Ka-

logia panafricanista11 na África e nas diáspo-

nem-Bornu, Mali, Mwenemotapa, Songoi...).

ras africanas12.

O império árabe e os tráficos escravistas

Período Contemporâneo (a partir de 1960) -

pelo Saara, pelo Oceano Índico e pelo Mar

do sonho libertacionista ao pesadelo neoco-

Vermelho (séculos VIII-XVI).

lonialista.

2.3. O marco referencial moderno

As independências políticas africanas: a decapitação política da África e a implantação do neocolonialismo ocidental.

Período Ressurgente (1500 – 1870) - aparição, apogeu e declínio dos Estados agroburocrá-

A África em crise I: as elites vassalas.

ticos ressurgentes nos diferentes espaços civilizatórios (Kongo, Oyo, Walo, Tekrur, Ma-

A África em crise II: os conflitos entre na-

cina, Segu, Kayor, Diolof, KwaZulu, Buganda,

ções.

Bunyoro...). 11 Pan-africanismo: ideologia política elaborada no século XIX, logo após a abolição da escravatura, por pensadores afrodescendentes nas Américas, dos quais os mais proeminentes são, Edward Wilmot Blyden, Sylvester Williams, W. E. B. DuBois, Marcus Garvey, Caseley Hayford, George Padmore, C. L. R. James. Centra-se na ação política e econômica sustentada, em prol da descolonização do continente africano e ao estabelecimento de nações soberanas. 12 Diáspora Africana: conjunto de comunidades de afrodescendentes em diferentes continentes.

294


O futuro da África: globalização neoliberal,

ce-nos ser a de considerar cada povo e as

ou invenção de uma via alternativa africana?

instituições por ele produzidas ao longo do tempo no contexto da sua própria inscrição

3. Como catalogar as estruturas sociais africanas

histórica. O primeiro pressuposto a descartar é, sem dúvida, uma ótica unilinear e universal,

3.1. As formações sociais, ou modos de produção

como a que surgiu do dogmatismo marxista, a partir dos desacertos da própria metodologia de Karl Marx13. Nem dentro nem fora da

Diversas e complexas estruturas socioeco-

África houve um modo de desenvolvimento

nômicas, chamadas de “modos de produ-

histórico universalmente linear. A história

ção” ou “formações sociais”, marcaram a

da humanidade, felizmente, é bem mais

vida social dos diferentes povos africanos

complexa do que isso, como o demonstrou

através dos tempos. Por diversas razões, as

o cientista senegalês Cheikh Anta Diop14.

quais nem todas nos são conhecidas, essas sociedades se encontram hoje em diferentes situações de adaptação socioeconômica e tecnológica.

3.2. As categoriais servis Apesar da enorme produção analítica so-

Um momento único de desenvolvimento

bre a escravidão no mundo inteiro15, não se

humano, em que mais de 2.000 povos esti-

chegou até hoje a uma teoria geral sobre a

vessem no mesmo patamar socioeconômico

escravidão que seja suficientemente abran-

e tecnológico nunca existiu na África, como

gente e flexível para permitir o desmembra-

não se deu também nas outras regiões do

mento tipológico desse sistema particular

mundo. Portanto, a maneira mais racional

de trabalho opressor atendendo às especifi-

e dinâmica de se abordar o problema pare-

cidades de épocas e de sociedades.

13 Ver: BAECHLER, Jean, Les origines du capitalisme. Paris: Gallimard, 1971. 14

DIOP, Cheikh Anta, L’Unité Culturelle de l’Afrique Noire. Paris: Présence Africaine, 1959.

15 Com relação à escravidão em geral, ver: VERLINDEN, Charles, L’Esclavage dans l’Europe Médiévale. Bruges: De Tempel, 1955. Ver também: DAVIS, David Brion, O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; FINLEY, Moses I., Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: GRAAL Editora, 1991; BAKIR, Abd el-Mohsen, Slavery in Pharaonic Egypt. Cairo, 1952; CHANANA, Dev Raj, Slavery in Ancient Índia: as Depicted in Pali and Sanskrit Texts. New Delhi, 1960; MENDELSOHN, Isaac, Slavery in the Ancient Near East: a Comparative Study of Slavery in Babylonia, Assyria, and Palestine, from the Middle of the Third Millennium to the End of the First Millennium. New York: Oxford University Press, 1949; WESTERMANN, William L., The Slave. Systems of Greek and Roman Antiquity. Philadelphia: American Philosophical Society, 1974. Sobre a Ásia, ver: WILBUR, C. Martin, Slavery in China during the Former han Dynasty, 206B.C.-A.D. 25. Chicago: Field Museum of Natural History, 1943; WATSON, James (org.), Asian and African Systems of Slavery, New York: Oxford Press, 1980.

295


A África, no seu percurso de estruturação

Américas. Não parece haver surgido em par-

de diferentes formas de relações sociais, co-

te alguma do continente, em qualquer épo-

nheceu diversos modelos de relações de tra-

ca que se considere, um modo de produção

balho e de produção baseados no trabalho

dominante – sobre o qual tivesse repousado

servil escravo16. A questão que continua sen-

o conjunto da sociedade, como foi o caso na

do o problema é: de que tipo de escravatura

Europa greco-romana, no Oriente Médio, e

se trata? Como conceber uma tipologização

nas Américas – baseado no trabalho escravo.

de formas especificamente africanas de trabalho servil à base de escravos?

4. A questão didática

A escravatura existente na África, principalmente no período pré-islâmico e pré-

4.1. As fontes de ensino

-colonial, continua a desafiar as tentativas de tipologização, sendo motivo das mais

É possível antecipar que a implantação do

divergentes e contraditórias análises . Todo

ensino da história da África no Brasil apre-

o assunto gira em torno da questão: houve

sentará problemas que também tiveram que

escravatura sem sistema escravista que en-

ser enfrentados e resolvidos no continente

globasse a totalidade da sociedade na Áfri-

africano. Considerando a visão negativa so-

ca? Com base nas pesquisas cada vez mais

bre a África que predominou na sociedade

precisas que estão sendo realizadas pelos

brasileira durante tanto tempo, o primeiro

especialistas africanos, começa a emergir

desses problemas e, talvez, o de maior sig-

uma visão que remete a uma complexidade

nificado, tem a ver com o pesado legado de

maior do que se pensava.

fontes bibliográficas eruditas “poluídas”.

As formas de regime de trabalho escravo na

Trata-se aqui do problema de “retroalimen-

África foram tão variadas quanto complexas

tação”, ou seja, da reintrodução no ensino

envolvendo, na sua maioria, o trabalho es-

contemporâneo de teorias desacreditadas

cravo serviçal, sem se chegar nunca a uma

pelos estudos científicos. Ora legitimadas

situação de escravidão econômica generali-

por novos argumentos, ora envoltas nestas

zada e, muito menos, de escravidão-racial

latitudes numa nova roupagem acadêmica,

como aquela que predominou nas planta-

não é inconcebível que a maioria das obras

tion do Oriente Médio e, mais tarde, das

sobre a África estejam sutilmente imbuídas

17

16 Sobre a escravatura africana, ver o excelente trabalho: MEILLASSOUX, Claude, Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995 17 Ver: MEILLASSOUX, Claude, L´esclavage en Afrique précoloniale. Paris: Maspéro, 1975; BARRY, Boubakar, Le royaume du Wallo, Paris: Karthala, 1985; Le Senegal avant la conquête. Paris: Karthala, 1985; e CISSOKO, Sekene Mody, Tombouctou et l´Émpire Songhay. Dakar: Nouvelles Editions Africaines (NEA), 1975.

296


de tenazes e profundos preconceitos contra

gonias, línguas e estruturas que moldaram

os povos e as civilizações africanas.

aquelas sociedades ao longo da mais extensa história do planeta.

4.2. A avaliação das fontes de ensino

Conclusão

Há em toda a América Latina uma carência

(...)

de material didático sobre a África, em línguas portuguesa e espanhola. Esta questão não será resolvida tão cedo, considerando que a tradução e publicação das obras estão submetidas a considerações de mercado e da política das grandes editoras. Corre-se o grande risco de que se privilegiem para a tradução em língua portuguesa, precisamente, obras preconceituosas ou desatualizadas, situação com a qual haverá que coexistir durante um longo tempo.

4.3. Obras dos cientistas africanos

O avanço constante do conhecimento científico sobre a África, em especial nos campos da paleontologia e da antropobiologia, não cessam de confirmar que esse continente foi o lugar privilegiado onde surgiu a consciência humana e onde se elaboraram as experimentações que conduziram à vida em sociedade. Contudo, a lentidão da assimilação/integração desses dados revolucionários, pelo meio acadêmico, continua sendo um problema, razão pela qual a reatualização dos conhecimentos deverá constituir peça importante do processo didático. À primeira vista, uma das formas eficientes de

Até os anos sessenta do século XX, a pro-

alcançar esses objetivos seria a organização

dução sobre a história da África esteve in-

de oficinas de formação para agentes multi-

questionavelmente monopolizada por afri-

plicadores selecionados, preferencialmente,

canistas europeus, americanos e árabes,

entre os docentes das disciplinas humanas,

majoritariamente imbuídos de uma visão

e não somente na disciplina histórica.

fundamentalmente essencialista e raciológica. Essa tendência tem diminuído em parte,

A sensibilidade do docente determinará, em

mas não desaparecido, com o crescimen-

muitos casos, a predisposição à aceitação, ou

to exponencial de especialistas e cientistas

à rejeição, das teses raciológicas e das mani-

africanos dedicados ao estudo do passado

pulações legitimadoras que, inevitavelmente,

de seu próprio continente. Trata-se de espe-

vestirão a roupagem “acadêmica”. O docente

cialistas que conhecem a África a partir de

incumbido do ensino da matéria africana de-

dentro, através das mentalidades, cosmo-

verá cultivar sua sensibilidade em relação aos

297


povos e culturas oriundos deste continente.

nas novas descobertas científicas; e uma in-

Num país como o Brasil, onde as tradições

terdisciplinaridade capaz de entrecruzar os

e culturas africanas nutrem de maneira tão

dados mais variados dos diferentes horizon-

vigorosa a personalidade do povo brasileiro,

tes do conhecimento atual para se chegar a

a empatia para com a África apareceria como

conclusões que sejam rigorosamente com-

algo natural, mas ela não é, apesar de todos

patíveis com a verdade.

os brasileiros serem herdeiros das tradições e cosmovisões desse continente.

Esses três pré-requisitos estão vinculados ao problema mais geral que se radica na ne-

Os novos desafios

cessidade de chegar-se a um maior grau de compreensão das diferenças e da alteridade,

A/O professor/a incumbido/a da missão do ensino da matéria africana se verá obrigado/a durante longo tempo a demolir os estereótipos e preconceitos que povoam as abordagens sobre essa matéria18. Estamos diante de novas tentativas de banalização dos efeitos do racismo e das agressões imperialistas por parte de verdadeiros soldados ideológicos da visão e das estruturas hegemônicas que tomaram conta do planeta.

como fatores estruturantes da convivência humana. O conhecimento do Outro, de sua identidade étnica, cultural, sexual ou racial, do seu percurso humano, de sua verdadeira inscrição histórica, possibilita a convivência confortável, se não feliz, com as diferenças fundamentais. A/O professor/a incumbida/o da missão do ensino da historia dos povos e das civilizações da África – que, como já vimos não é

Os estudos sobre a historia da África, espe-

uma história qualquer – dificilmente poderá

cificamente no Brasil, deverão ser conduzi-

permanecer insensível a todas essas consi-

dos na conjunção de três fatores essenciais:

derações. Pensamos que, pelo contrário, a

uma alta sensibilidade empática para com

sua eficácia pedagógica terá uma maior re-

a experiência histórica dos povos africanos;

percussão e abrangência na medida em que

uma constante preocupação pela atualiza-

a sua sensibilidade empática para a matéria

ção e renovação do conhecimento baseado

e para o seu entorno social seja elevado.

18 Ver, a esse respeito: OBENGA, Theophile, Le sens de la lutte contre l´africanisme eurocentriste. Paris: L´Harmattan e Khepera, 2001; TEMU, A., SWAI, B., Historians and Africanist History: A Critique. Post-Colonial Historiography Examined. Londres: Zed Press, 1981.

298


Bibliografia19

Bibliografia mínima norteadora de obras básicas sobre a África

DAVIS, David Brion. O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro: Civiliza-

BARRY, Boubakar. Le royaume du Wallo. Le

ção Brasileira, 2001.

Senegal avant la conquête. Paris: Karthala, 1985.

FINLEY, Moses I. Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: GRAAL Editora,

CISSOKO, Sekene Mody. Histoire de l´Afrique

1991.

occidentale. Moyen Age et Temps Modernes (VIIè siècle-1850). Paris: Présence Africaine,

HUBBE, M.O.R, ATUI, J.P.V, AZEVEDO, E.T.&

1966.

NEVES, W.A. A Primeira Descoberta da América. Evolução Humana. Sociedade Brasilei-

______. Tombouctou et l´Émpire Songhay.

ra de Genética. Ribeirão Preto: Atheneu,

Dakar: Nouvelles Editions Africaines (NEA),

2003.

1975.

KI-ZERBO, Joseph. Historie de l’Áfrique Noire.

DIAGNE, Pathé. Pouvoir politique en Afrique

Paris: Hatier, 1978.

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19 Nota da edição do Boletim: O autor relaciona uma extensa Bibliografia, da qual selecionamos as obras editadas em Português. Para conhecer a Bibliografia completa, consultar a obra citada (ver nota de rodapé n. 3). 20 O volume 1 foi publicado em português: M’BOKOLO, Elikia, África negra. História e civilizações, tomo I até o século XVIII. Lisboa: Editora Vulgata, 2003.

299


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Africaine e Khepera, 1996.

300


XIII. Enfrentando os desafios: a história da África e dos africanos no Brasil na nossa sala de aula1 Mônica Lima

No dia 9 de janeiro de 2003 foi aprovada a

comunidade acadêmica, desde há muito,

Lei n. 10.639, que tornou obrigatório o ensi-

reivindicam esta inclusão. Para falar apenas

no sobre História e Cultura afro-brasileira,

da história mais recente, houve um período,

bem como de História da África e dos afri-

na década de 90, em que os estudantes de

canos em todos os estabelecimentos de en-

História organizavam, no ano intermediário

sino, públicos e privados, no Brasil. Nestes

aos seus encontros nacionais4, um Encon-

conteúdos estariam incluídos, ainda segun-

tro Nacional de História da África. Em par-

do o texto da lei, a luta dos negros no nosso

tes diferentes do Brasil, distantes em geral

país, a cultura negra brasileira e a contribui-

dos grandes centros5, nunca menos de qui-

ção dos negros na formação da sociedade

nhentos estudantes passavam uma semana

nacional - como subtemas que passariam a

às voltas com cursos, mesas-redondas e ati-

ser necessários nos estudos de História do

vidades ligadas ao tema. Paralelamente, a

Brasil. O Conselho Nacional de Educação já

ANPUH (Associação Nacional de Professores

emitiu parecer detalhado, de autoria da Pro-

Universitários de História) não poucas vezes

fessora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva,

se pronunciou favorável à inserção de disci-

regulamentando a alteração da Lei de Dire-

plinas de História da África nos cursos uni-

trizes e Bases da Educação Nacional3.

versitários de História. E outras entidades e grupos, bem como intelectuais e ativistas do

Esta lei tem uma história. Grupos ligados

movimento docente, apresentaram a mes-

ao movimento negro e representantes da

ma reivindicação.

1 Repertório afro-brasileiro – 2004 / PGM 1. As ideias deste texto encontram-se desenvolvidas mais extensamente nos artigos da autora citados na bibliografia. 2 Professora de História do Colégio de Aplicação da UFRJ (Ensino Fundamental e Médio) , de História da África nos cursos de Pós-Graduação do PENESB/UFF e na Universidade Cândido Mendes(UCAM) , doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense(UFF). 3

Parecer CNE/CP 003/2004.

4 Os ENEH - Encontros Nacionais de Estudantes de História, que se faziam a cada dois anos. 5 O III Encontro Nacional de História da África, por exemplo, foi na cidade de Aquidauana - Mato Grosso do Sul.

301


Ou seja: não se pode em nenhum momen-

A negação desta história esteve sempre as-

to dizer que esta lei foi uma criação de um

sociada nitidamente a formas de controle

governo sem um movimento prévio que a

social e dominação ideológica, além do inte-

apoiasse e a pusesse na pauta da educação

resse na construção de uma identidade bra-

brasileira. Ela resulta de um processo no

sileira despida de seu conteúdo racial, den-

qual diferentesagentes sociais atuaram para

tro do chamado desejo de branqueamento

que se tornasse realidade, e por acreditarem

de nossa sociedade. Característico da segun-

na importância da medida. Claro que a lei

da metade do século XIX, este desejo ainda

não basta. Nenhuma medida legal é sufi-

vigora dentro de alguns setores sociais mais

ciente, se não nos debruçarmos sobre ela

retrógrados, embora a luta por mudanças

para refletir e se não nos engajarmos na sua

no campo do ensino da História tenha cria-

execução. E neste caso, em especial, estes

do embates ao longo do século XX.

dois movimentos se fazem necessários.

Se quisermos olhar com um certo distanciamento, podemos perguntar-nos: por que a necessidade de uma lei para fazer valer a presença de um conteúdo tão evidentemente fundamental na História geral e em especial na História de grupos humanos que participaram diretamente da formação do nosso país?

Podemos observar que até hoje existem nos currículos dos cursos de História das universidades brasileiras poucas disciplinas específicas sobre África, assim como praticamente se ignora o tema nos estudos de História Geral do Ensino Fundamental e Médio. Ao tornar obrigatória sua inclusão na Educação Básica, estaremos frente a uma imensa dificuldade: que História será esta a ser apresentada, se a maioria dos professores em sala não teve contato com ela?

A raiz deste ocultamento estava no preconceito e na ignorância sobre a vida social e a

Isto não tira a importância da medida. É cer-

história destes grupos humanos e, sobretu-

to, muitos fomos e somos aqueles que recla-

do, na necessidade de domínio sobre eles,

maram espaços para estes temas. Mas fren-

com objetivos de escravizá-los ou colonizá-

te a este espaço oferecido, temos que definir

-los. Esta raiz, portanto, se situava na própria

objetivos, discutir as abordagens - ou seja,

história das relações com os povos africanos

aonde chegar, e como chegar? Responder

por parte daqueles grupos dominantes das

a estas perguntas nos coloca frente a ques-

sociedades nas quais nossos primeiros his-

tões muito profundas. Ora, se resgatar esta

toriadores se espelharam para construírem

memória é elaborar nova matéria-prima da

os saberes oficiais sobre o Brasil.

nossa identidade como povo, estamos em

302


face de um desafio: quem somos? E ainda:

Em primeiro lugar é fundamental formar-

quem desejamos ser?

-se, atualizar-se nos temas, e não partir do pouco que se sabe para ocupar um lugar que

Não há receitas prontas, não existe um

nunca esteve ocupado. Temos a responsabi-

‘como fazer’, e por isso a necessidade de

lidade de tratar com muito profissionalismo

muitos espaços de discussão e troca inte-

estes conteúdos. Por isto, devemos estu-

lectual - e não apenas entre os reconheci-

dar, procurar leituras específicas e, sempre

dos como “intelectuais” mas com os movi-

que possível, capacitar-nos em cursos e em

mentos sociais. Não podemos, a despeito da

discussões acadêmicas. Nossas precárias

exigência da Lei, sair repassando nas nossas

condições de trabalho e de vida não podem

salas de aula informações equivocadas, ou

justificar uma ausência de esforço neste

tratar o tema de uma maneira folclorizadae

sentido. Estamos falando da re-escritura de

idealizada. Este é um grande temor: repetir

uma História que nos foi negada, estamos

modelos para fazer com que estes conteúdos

lidando com a base de uma identidade que

curriculares fiquem parecidos com os que já

está para ser reconstruída. O que está em

trabalhávamos ao tratarmos da História e

jogo é mais do que nossa competência - é o

das contribuições culturais comumente es-

nosso compromisso.

303

tudadas é um caminho fácil e perigosíssimo. São temas diferentes e sua abordagem ne-

É essencial cobrar das autoridades, em espe-

cessariamente deve ser diferenciada.

cial dos gestores de instituições de ensino, o apoio para fazer da iniciativa da lei uma re-

Nossos alunos certamente terão muito a

alidade. Foi estabelecida a obrigatoriedade,

dizer, mas devemos ter um imenso cuidado

mas ela não basta, para que o obrigatório

com o senso comum, que pode surgir tan-

se torne viável e produtivo tem que haver

to para desvalorizar como para criar mitos

investimento na formação. Estudantes uni-

- os quais, ao se desfazerem, redobrarão o

versitários: militem pela inclusão destes as-

peso da desilusão e do desgaste da autoesti-

suntos nas disciplinas dos currículos de suas

ma. Trata-se de um equilíbrio delicado entre

faculdades, institutos, departamentos. Isto

o resgate de uma História que deverá servir

é possível, e já vem sendo feito. Professores:

para elevar o orgulho de pertencer a ela e a

solicitem da rede de ensino a realização de

valorização de posturas estreitas que tendem

cursos - isto é possível, e também já é reali-

a criar esquemas explicativos maniqueístas.

dade em alguns lugares6. Busquem e criem

6 A rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro, na gestão Benedita da Silva em 2002, promoveu curso de especialização em História da África para professores de História em Campos e no Rio de Janeiro, organizado pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes, instituição com tradição neste ramo.


espaços (seminários, mesas-redondas, deba-

africanos, além de mão-de-obra, eram pes-

tes, simpósios) e cursos onde se estimule o

soas que produziam cultura - mas não bas-

aprofundamento no estudo destes temas e

ta dizer, isto tem que ser algo vivido para

as reflexões sobre práticas pedagógicas ade-

começar a abalar as velhas estruturas dos

quadas7. Pode não ser fácil, mas é um bom

preconceitos, as quais se alimentam da ig-

caminho.

norância.

Temos também que aprender a ouvir e a in-

No segundo segmento do Ensino Fundamen-

teragir com setores dos movimentos sociais

tal, já podemos trabalhar com conteúdos

organizados, que vêm criando, com esforço

mais precisos, falar da Pré-História - ques-

próprio, materiais pedagógicos e de divulga-

tionando o termo, pois não é a escrita que

ção sobre temas da História dos africanos

cria a história - como o tempo do processo

no Brasil e da História da África. Com estes

de hominização, que se deu na África, an-

grupos também devemos buscar discutir e

tes que em outros lugares do planeta. Expli-

refletir sobre as concepções e conceitos des-

car os porquês, falar dos primeiros homo

te campo do conhecimento. Não devemos

sapiens africanos que saíram a povoar o

nos acreditar os únicos donos deste saber.

mundo... Não deixar de comentar todo o esplendor e a pompa do Antigo Egito - tema

Para os professores de Educação Básica,

que fascina nesta idade - lembrando sempre

apresentamos aqui algumas sugestões de

que este fica na África, algo que parece tão

caráter geral. Nas séries iniciais do Ensino

óbvio, mas que acaba sendo esquecido. Cer-

Fundamental, pode-se introduzir temas da

tamente, o Egito era também lugar de desi-

cultura africana e afro-brasileira através de

gualdades - quem disse que os africanos não

lendas, contos, cantigas, brincadeiras. Já

as viveram em sua terra? Procurar lembrar

existe produção (livros, sobretudo) para se

os grandes reinos do Sudão ocidental, que

tomar como referência. Nas aulas de Inte-

durante a Idade Média ergueram cidades,

gração Social, falar da presença dos africa-

com universidades, mercados de livros, con-

nos na História do Brasil para além da rea-

tatos com o Oriente e Europa - e encanta-

ção à escravidão: levá-los a ver marcas desta

ram tantos viajantes e despertaram a cobiça

presença viva, nas músicas, nas festas, no

de outros povos com suas minas de ouro8.

vocabulário, nos hábitos alimentares. Os

E, certamente, ao estudar o tráfico de escra-

7 Como os cursos de Extensão e Especialização oferecidos pelo Programa de Estudos sobre o Negro na Sociedade Brasileira / PENESB da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. 8 No dizer de um importante historiador francês, Pierre Vilar, falar em ouro na Europa Medieval era falar da África ( em seu livro Oro y Moneda en la História, 1450-1920. Barcelona, 1974. p.61)

304


vos, não se limitar a falar do intercâmbio

Sabemos que nossa memória constrói nos-

de pessoas por riquezas, mas também das

sas percepções sobre nós mesmos e sobre

riquezas transportadas por estas pessoas

os outros - voltando a dizer: constrói nossa

dentro de si, no maior processo de migração

identidade. Cabe a nós multiplicar iniciati-

forçada da História da humanidade, que le-

vas como esta e fazer com que haja desdo-

vou a uma verdadeira diáspora africana pelo

bramentos concretos, e que se estimule a

Novo Mundo.

pesquisa, a formação, a produção sobre estes temas. Trata-se de resgatar a História da

No Ensino Médio, ao retomar alguns conte-

África e, de uma certa maneira, africanizar a

údos, debater as grandes visões, situar o sur-

História do Brasil.

gimento do racismo como projeto científico e político - utilizando estratégias que per-

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

mitam aos alunos construir e desestruturar ideias através de pesquisas, júris simulados, dramatizações. E sempre assinalar a fratura exposta da desigualdade racial brasileira. Nunca é demais repetir: nossa pobreza tem cor, nossa exclusão tem cor. Estes dados, porém, não devem ser naturalizados. Assim como foram fruto de uma História, fazer

BÂ, Amadou Hampate. Amkouell, o menino fula. São Paulo: Palas Athena/Casa das Áfricas, 2003. BELUCCI, Beluce. Introdução à História da África e da Cultura Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: CEAA-UCAM/CCBB, 2003.

uma outra História pode mudar o quadro. CANEN, Ana. Relações raciais e currículo. ReOutro ponto fundamental de caráter geral

flexões a partir do multiculturalismo. In: Ca-

no ensino de História da África e dos africa-

dernos Pedagógicos PENESB n. 3. Niterói:

nos para estudantes brasileiros é pensar for-

Editora da UFF, 2001, p.65-77.

mas de ampliar sua dimensão, dando destaque aos aspectos da afro-americanidade

LIMA, Mônica. A África na sala de aula. In:

e introduzindo elementos que aproximam

Nossa História nº4. Rio de Janeiro: Fundação

e diferenciam esta parte da nossa história

Biblioteca Nacional, 2004. p.84-87.

da história dos afrodescendentes em todo o continente. Sabemos que temos uma histó-

____________. Fazendo soar os tambores: o en-

ria comum não apenas entre África e Brasil,

sino de História da África e dos africanos no

como entre os africanos e seus descenden-

Brasil. In: Cadernos PENESB n. 5. Niterói:

tes nascidos no Novo Mundo.

EdUFF, 2004. p.159-173.

305


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Campus/Elsevier, 2004.

306


XIV. Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e afro-brasileira1 Mônica Lima2 “À volta da fogueira, os mais velhos disseram vão então caçar nuvens que já fogem de nossos olhos. Nós pedimos um guia armas, munições e farnel para a longa jornada. Mas eles sorriram terão de levar apenas estes sons de tambores na memória.”

307

(Caçadores de Nuvens , do poeta angolano João Melo) A aprovação da Lei n. 10.639 de 9 de janeiro

ocasionadas pela citada Lei ainda estão em

de 2003, que tornou obrigatório o ensino de

processo. E não influenciarão apenas os edu-

História da África e da História dos africanos

cadores. Elas podem trazer resultados para o

nas escolas de todo o país, além de atender

amplo grupo que pretendem atingir. Crian-

a uma antiga e justa reivindicação, trouxe

ças e adolescentes, jovens e adultos entra-

uma série de consequências para o ensino

rão em contato com o tema. O alcance das

desta área/disciplina em sua totalidade e

transformações pode ser grande – e muito

para a formação dos profissionais que atu-

positivo. E elas poderão ser aceleradas ou

am no magistério, em especial aqueles des-

adquirirem um ritmo mais lento, conforme

ta área específica – a História. As mudanças

a capacidade de setores interessados intervi-

1 Espaços educativos e ensino de história – 2006 / PGM 4. 2 Professora de História do CAP- UFRJ, de História da África nos cursos de Pós-Graduação do Programa de Estudos sobre o Negro na Sociedade Brasileira da Universidade Federal Fluminense (PENESB/UFF) e do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes(UCAM/RJ). Doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense(UFF).


rem no processo. O impacto da medida me-

Só para lembrar: não importa nossa origem

recerá certamente estudos aprofundados,

familiar: todos nós, brasileiros, carregamos

preferencialmente tendo como base dados

‘áfricas’ dentro de nós. Essas ‘áfricas’ (no

vindos de diferentes partes do país, com

plural, pois são múltiplas) são e foram per-

suas diversas experiências.

manentemente reinventadas aqui no Brasil, mas revelam sua profunda origem a cada

O ensino-aprendizagem destes conteúdos

momento: no vocabulário (moleque, qui-

abre muitas perspectivas para o trabalho

tanda, cafuné, cocada, entre tantas palavras

com espaços educativos não-formais. Mu-

– vale uma pesquisa!), nos costumes, na ex-

seus, centros culturais, sítios históricos

pressão de fé, na comida.

(tombados ou não) são lugares de memória e objetos de estudo e de sensibilização para a aprendizagem por excelência. Os exemplos são os mais diversos, se pensarmos em termos de Brasil: igrejas, casas de cultura, terreiros, espaços públicos de reunião e festejos também são locais para se aprender e ensinar a história afro-brasileira.

Todos estes aspectos convergem para a abertura de muitas possibilidades de trabalhar com o ensino de História em espaços não-formais e em situações não-formais. Estes lugares e momentos certamente enriquecerão nossos estudos e a aprendizagem que com eles se viabiliza. Estaremos lidando com uma matéria-prima

E, se pensarmos no nosso patrimônio ima-

fascinante e delicada: os diversos matizes

terial, este universo se amplia ainda mais:

da nossa formação cultural, a memória dos

histórias, contos populares, contos infantis

nossos ancestrais e, especialmente, suas he-

de matriz africana e/ou afro-brasileira, can-

ranças, tão longamente invisibilizadas. Todo

tigas, canções de festas religiosas populares

o cuidado será sempre pouco para não res-

(assim como a Congada, por exemplo) po-

valarmos pelas trilhas aparentemente fáceis

dem tornar-se um mote e o próprio objeto

do maniqueísmo, da simplificação e da fol-

de estudo, trazendo viva a africanidade da

clorização. Vamos pensar, então, na preven-

cultura brasileira. Além destes de caráter

ção destes perigosos males que podem en-

mais geral, estão presentes, em diversas de

fraquecer nossa percepção e nos distanciar

nossas comunidades, os mais velhos que po-

dos nossos objetivos. Alguns destes cuidados

dem relembrar e trazer para nossos alunos

podem parecer óbvios, mas muitas vezes o

muito deste patrimônio em momentos de

aparentemente óbvio merece ser re-visto e

congraçamento e aprendizagem.

re-visitado, para refletirmos sobre ele.

308


Vamos lá...

tre nós. O racismo é um fenômeno que influiu e influi nas mentalidades, num

• Os africanos e seus descendentes nascidos

modo de agir e de ver o mundo. E as di-

da diáspora no Novo Mundo (as Américas,

ferentes sociedades interagiram com ele

incluindo o Brasil) eram seres humanos,

de diversas maneiras – o Brasil não tem

dotados de personalidade, desejos, ímpe-

a mesma história de relações raciais que

tos, valores. Eram também seres contra-

os Estados Unidos, para usar um exem-

ditórios, dentro da sua humanidade. Ti-

plo clássico. No entanto, durante muito

nham seus interesses, seu olhar sobre si

tempo se defendeu a ideia de que aqui

mesmos e sobre os outros. Tinham suas

não havia discriminação e, ainda, que o

experiências de vida – vinham muitas ve-

que separava as pessoas era ‘apenas’ sua

zes de sociedades não-igualitárias nem

condição social. Hoje, não só vemos pelos

equânimes na África ou nasciam aqui

dados da demografia da pobreza brasilei-

em plena escravidão. Não há como uni-

ra que ela tem uma inequívoca marca de

formizar atitudes, condutas e posturas e

cor, como sabemos que um olhar mais

idealizarmos um negro sempre ao lado da

atento à História e à vida dos afrodescen-

justiça e da solidariedade. O que podemos

dentes no país revela a nossa convivência

e devemos ressaltar são os exemplos des-

permanente com o preconceito e seus

tes valores de humanidade, presentes em

efeitos perversos. Mas, para podermos

muitos, e injustamente negados e torna-

enxergar isso, tivemos que ouvir relatos,

dos invisíveis pela sociedade dominante,

ver dados e entender como foi esta Histó-

durante tanto tempo. Mas sugerimos, ve-

ria. Só assim pudemos desnaturalizar as

ementemente, evitar dividir o mundo em

desigualdades e ver a face hostil do nosso

‘brancos maus’ e ‘negros bons’, o que não

‘racismo envergonhado’. O que isto quer

ajuda a percebermos o caráter complexo

dizer? Que devemos nos dedicar ao tema:

dos grupos humanos. A ideia é valorizar o

estudar, ler, nos informar, sempre e mais.

positivo, mas sem idealizar.

Afinal, o que está em jogo é bem mais que a nossa competência profissional, é

• O nosso desconhecimento sobre a história

o nosso compromisso com um país mais

e a cultura dos africanos e dos seus des-

justo e com um mundo melhor para todos

cendentes no Brasil e nas Américas pode

e todas.

fazer muitas vezes com que optemos por utilizar esquemas simplificados de expli-

• Nós nos acostumamos a ver as manifesta-

cação para um fenômeno tão multiface-

ções culturais de origem africana confina-

tado quanto a construção do racismo en-

das ao reduto do chamado ‘folclore’. Este

309


conceito de folclore, que remete às tradi-

maneiras de ser próprias, construídas ao

ções e práticas culturais populares, não

longo de sua História. Referir-se a “o afri-

tem em si nenhum aspecto que o desqua-

cano” ou “a africana”, como uma ideia

lifique, mas o olhar que foi estabelecido

no singular é um equívoco. Podemos até

sobre o que chamamos de ‘manifestações

utilizar estes termos quando tratarmos de

folclóricas’, sim. E, sobretudo no mundo

processos históricos vividos por diversos

contemporâneo, em que a modernida-

nativos da África, mas sempre sabendo

de está repleta de significados positivos,

que não se trata de um todo homogêneo

o folclore e o popular se identificam não

e sim de uma ideia genérica que inclui al-

poucas vezes com o atraso – algo curioso,

guns indivíduos, em situações muito es-

exótico, porém de menos valor. Logo, se

pecíficas. Por exemplo: podemos dizer “o

não problematizarmos a inserção da cul-

tráfico de escravos africanos” – ou seja,

tura africana neste registro, correremos o

estamos nos referindo à atividade econô-

risco de não criar a identidade nem esti-

mica cujas mercadorias eram indivídu-

mular o orgulho de a ela pertencermos.

os nativos da África, conhecido nos seus

Podemos desmistificar a ideia de folclore

anos de declínio como “o infame comér-

presente no senso comum e, também,

cio”. Nestes tipos de caso, vale dizer, de

mostrar o quão complexa e sofisticada é

um modo geral, ‘africanos’ ou ‘negros

a nossa cultura negra brasileira. Envolve

africanos’. Mas, devemos evitar atribuir a

saberes, técnicas e toda uma elaboração

estas pessoas qualidades comuns, como

mental para ser construída e se expressar.

se fossem tipos característicos.

E, assim como nós, está em permanente mudança e não é nada óbvia.

• Um dos preconceitos mais comuns, quanto aos africanos e afrodescendentes, é

Além destes três cuidados básicos de caráter

com relação às suas práticas religiosas e

geral, há outros dados sobre os quais deve-

um suposto caráter maligno contido nes-

mos refletir e estar sempre atentos:

tas. Este tipo de afirmação não resiste ao confronto com nenhum dado mais consis-

• A África é um amplo continente, em que

tente de pesquisa sobre as religiões africa-

vivem e viveram desde os princípios da

nas e sobre a maioria das religiões afro-

humanidade (afinal, segundo pesquisas,

-brasileiras. Por exemplo: não há a figura

foi na região onde atualmente se localiza

do diabo nas religiões da África tradicio-

o Continente Africano que a humanidade

nal nem de nenhum ser ou entidade que

surgiu), grupos humanos diferentes, com

personifique todo o Mal. As divindades

línguas, costumes, tradições, crenças e

africanas e suas derivadas no Brasil, em

310


geral, se encolerizam se não forem cultu-

REFERÊNCIAS

adas e consideradas, e podem vingar-se; mas jamais agem para o mal de forma

BÂ, Amadou Hampate. Amkouell, o menino

independente dos agentes humanos que

fula. São Paulo: Palas Athena/Casa das Áfri-

a elas demandam. O grande adversário

cas, 2003.

das “forças do Bem” não existe, não há este poder em nenhum ente do sagrado

BELUCCI, Beluce. Introdução à História da

africano, a não ser naquelas religiões in-

África e da Cultura Afro-Brasileira. Rio de Ja-

fluenciadas pelo monoteísmo cristão, ou

neiro: CEAA - UCAM/CCBB, 2003.

pelo monoteísmo islâmico. Não é certo considerar Elegbará, Elegbá, Exu, como

CANEN, Ana. Relações raciais e currículo. Re-

um demônio ou seu representante. Exu

flexões a partir do multiculturalismo. In: Ca-

é o mensageiro, o embaixador dos pedi-

dernos Pedagógicos PENESB, n. 3, Niterói:

dos humanos aos orixás, e exige seu pa-

Editora da UFF, 2001. p.65-77.

gamento pelo serviço e se aborrece se não for atendido. Mas não tem nenhuma maldade congênita, como nenhuma outra divindade do panteão africano. Como vimos, toda a atenção é necessária e o exercício permanente que fazemos de ouvir pessoas e valorizar saberes não nos deve

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à História Contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005. LIMA, Mônica. A África na sala de aula. In: Nossa História n. 4, Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p.84-87.

eximir de estarmos atentos às armadilhas

LIMA, Mônica: Fazendo soar os tambores: o

do senso comum. E no mais, deixemo-nos

ensino de História da África e dos africanos no

encantar pela história africana e afro-brasi-

Brasil. In: Cadernos Pedagógicos PENESB n.

leira, porque, como bem sabemos, a apren-

4,. Niterói: Editora da UFF, 2004. p.65-77.

dizagem se dá pela rota da sensibilidade, e nada melhor que a via do afeto para (re)ver

MATTOS, Hebe. O ensino de História e a luta

preconceitos. Esta é a perspectiva amorosa

contra a discriminação racial no Brasil. In:

de trabalho que valorizamos: que inclui res-

ABREU, Martha e SOHIET, Rachel. Ensino de

peito à diferença, que convoca e se propõe

História. Conceitos, temáticas e Metodologia .

à participação, e que atua cooperativa e so-

Rio de Janeiro: FAPERJ/Casa da Palavra, 2003.

lidariamente.

p.127-136.

311


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312


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