CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO Bacharelado em Artes Visuais, Pintura, Gravura e Escultura
FERNANDA HEITZMAN
Dissensos: Sinestesia e acaso na fotografia
São Paulo 2014
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CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO Bacharelado em Artes Visuais, Pintura, Gravura e Escultura
FERNANDA HEITZMAN
Dissensos: Sinestesia e acaso na fotografia
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Bacharelado em Artes Visuais, Pintura, Gravura e Escultura do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Bacharel em Artes Visuais, sob a orientação da Professora Doutora Celina Yamauchi.
São Paulo 2014
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Agradecimentos Agradeço as pessoas que estiveram comigo antes, durante e espero que depois da graduação; aos familiares, ao corpo docente e aos amigos. Em especial, a minha mãe; a turma AMBAV (2011-2014), aos queridos Cadu Gonçalves, Olyvia Bynum, Marina Colhado e Henrique Monteiro; a minha orientadora Celina Yamauchi, aos professores Fernando Amed, Katia Salvany, Natalício Batista, Jacques Jesion, Bertoneto Alves; ao meu companheiro Ronald Pedroso; aos amigos Harumi Moriyama, Ariadne Martins e Ruth Weg; e a todos aqueles que tornaram este trabalho possível. Obrigada!
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Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê, não vendo. Otto Lara Resende
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Resumo Dissensos conjuga duas instâncias complementares. Um conjunto de oito fotografias cegas e dois textos que se apresenta no espaço expositivo intitulado Transparente estabelecendo uma relação entre o eu e o mundo ao englobar índices de acontecimentos, sem os mimetizar. Concomitantemente, os 10 livros de artista de Opaco visam proporcionar para o espectador uma experiência individual por meio da inter-relação entre imagens fotográficas impressas e recortes de espelhos.
Palavras-chave Fotografia, realidade, sistema sensorial, sinestesia, acaso.
Abstract Dissensos combines two complementary instances. A set of eight blind photographs and two texts are displayed on the exhibition area entitled Transparente that establish a connection between the self and the world by including indexes of events, without mimicking them. Simultaneously, the 10 artist books, Opaco, aim to provide the viewer an individual experience through the inter-relation between the photographic images and clippings from mirrors.
Keywords Photography, reality, sensorial system, synesthesia, fortuity.
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Sumário 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................7 1.2 O ar vermelho do verão...................................................................................8 1.3 O acaso..........................................................................................................10 1.4 Latência da imagem.......................................................................................12 1.5 Referências....................................................................................................13 2. O Começo............................................................................................................17 2.1 O recomeço....................................................................................................20 2.2 Da performance ao livro de artista................................................................21 2.3 Dissensos.......................................................................................................23 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................25 4. Referências Bibliografias....................................................................................26 5. Lista de Ilustrações............................................................................................................27
7 1. INTRODUÇÃO
Dissensos foi desenvolvido a partir de aspectos da investigação do projeto Inversão de Sentidos de 2012. Procuro problematizar a interferência das informações sinestésicas na captação de uma fotografia e o modo como o olhar automatizado pode negligenciar a capacidade de compreender as coisas através dos outros sentidos, por meio das propostas Transparente e Opaco. Trata-se de um estudo da fotografia e suas possibilidades e se estrutura por capítulos baseados nos conceitos, referências e escolhas realizadas durante o processo. O eixo principal que conduz a pesquisa plástica é constituído pela experiência dos estímulos sinestésicos, pelo aproveitamento do acaso, pela vivência da latência da imagem, pela ação da performance e pela concepção do objeto livro. Em “O ar vermelho do verão” e “O acaso” introduzo a pesquisa levantando e articulando questões a partir da sinestesia e o acaso, propondo um paralelo com outros artistas. Já no segundo capítulo reviso trabalhos anteriores ressaltando questões que foram importantes naquele momento e que, atualmente, servem como base para o aprofundamento. Em “Da performance ao livro de artista” apresento o trabalho Dissensos e seus desdobramentos.
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1.2 O ar vermelho do verão É a voz de um corpo que transforma um acontecimento sensível em outro, esforçando-se para nos fazer “ver” o que ele viu, por nos fazer ver o que ele nos disse. A retórica e a poética clássicas nos ensinaram: há imagens na linguagem também. São todas aquelas figuras que substituem uma expressão por outra para nos fazerem experimentar a textura sensível de um acontecimento melhor do que fariam as palavras “próprias” (RANCIÉRE, 2012, p. 92)
O termo sinestesia refere-se à união de percepções, sendo uma condição neurológica definida por estímulos que provocam a percepção em outro sentido. Em torno dela, agrupam-se diversas questões complexas, tendo sua origem histórica na Grécia. Para Baudelaire, em Teoria das Correspondências, existe um domínio das relações sensoriais, onde é possível sentir o cheiro das cores ou provar a doçura de uma música. No contexto artístico, a sinestesia é encontrada na produção de diversos artistas. Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), pintor maneirista, relacionou música e cores trazendo luminosidade com contrastes consoantes às notas musicais. No século XVIII, o padre francês Louis Bertrand Castel (1678-1757) construiu o primeiro teclado de cores. Mondrian (1872-1944) com Broadway Boogie Woodie, 1942-1943, representou a sensação de ritmo, estabelecendo relações entre vibrações ópticas e a colorida música visual. Kandisnky (1866-1944) é mencionado muitas vezes como o verdadeiro sinestésico. Sua intenção era provocar a capacidade de suas obras emitirem sons, como em Do espiritual na arte, onde existe essa relação. Embora a sinestesia esteja ligada entre cores e sons é possível encontrá-la em outros modos de apresentação: René Magritte (1898-1967) sobrepunha objetos e símbolos comuns produzindo metáforas. Meret Oppenheim (1913-1985) criou em 1936, Le Dejéuner en fourrure, uma escultura que provoca uma mistura de sensações ao espectador. Anton Bragaglia 1890-1960), junto ao seu irmão, criou o fotodinamismo, que trazia a sensação de velocidade em uma imagem estática. Carol Steen (1943), em sua pintura usa cores que ela vê em sua acupuntura. Em1959-1962, Tomie Ohtake (1913) realiza pinturas cegas, onde o trabalho opera na crítica sobre o “ocularcentrismo que rege a modernidade”, ressaltando o acaso e a intencionalidade.
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Fig. 1 Meret Oppenheim. Le Déjeuner em fourrure, 1936
Atualmente, no universo da arte, a sinestesia se apresenta pela tecnologia digital, sobretudo, relacionada a sons e imagens, embora os demais sentidos possam ser igualmente envolvidos. Discutir a percepção sinestésica é, portanto, discutir o hoje, reunindo recursos para dialogar com o mundo diante de sua transformação acelerada que condicionam nossas experiências. Em Dissensos, o uso da sinestesia é uma forma de buscar a fusão dos sentidos, de modo que seja vivida e projetada sugerindo imagens diante do tato, olfato e audição, onde a experiência está presente assim como a ficção, possibilitando novos aspectos de realidade. “As imagens mudam nosso olhar e a paisagem do possível quando não são antecipadas por seus sentidos e não antecipam seus efeitos” (RANCIÉRE, 2012, p. 101102). Quando o corpo não sabe de antemão o que está vendo, o pensamento não sabe o que fazer com aquilo. A estratégia é provocar um distanciamento variando a resistência e a indecibilidade1 do efeito.
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RANCIÉRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução por BENEDETTI, Ivone C. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. P. 101
10 1.3 O acaso
Segundo Entler, a invenção da fotografia representava a era da reprodutibilidade tecnológica, caracterizada pela substituição da mão do homem por operações programadas gerando alguns constrangimentos, no sentido de questionar sua validade em confronto com as artes tradicionais, antes mesmo de poder se afirmar como linguagem. E o que restava era ver o que ela realmente trazia de novo: a fotografia trabalha a partir da luz, e com frequência isso é colocado como um obstáculo, “toda criação se daria não por meio da técnica fotográfica, mas apesar dela” (ENTLER, 1998, p-283). O acaso aparece na vanguarda se firmando como base conceitual para os procedimentos da arte como uma ação que vem de fora para dentro da criação. Os ready-mades de Marcel Duchamp levam ao limite o questionamento da habilidade de execução no dadaísmo. No surrealismo André Breton propõe um relaxamento de todo controle racional. E por último, no expressionismo, Pollock trabalha diretamente com o acaso em sua action painting. As vanguardas correspondem a um momento de contestação particular dos valores da arte. Ou seja, mesmo que haja uma intenção prévia, o artista pode se submeter a uma nova coerência imposta pela obra que já foi iniciada, definindo sua estrutura a partir dos acasos. Os caminhos da arte são ilimitados e, contudo, o acaso pode propor outra forma de mecanismo. “Mas qualquer ideia que aproxime conceitos como acaso e eficiência é forte candidata ao contra-senso, já que o acaso nunca está dotado de objetivo e não se submete a nenhuma lógica.” (ENTLER,1998, p. 285). A eficiência comparece quando se sabe desprezar os acasos inócuos. O problema da obra de arte acidental corresponde, ao observá-lo de perto, ao do valor estético do objeto encontrado [...]. Qual a diferença entre executar uma obra de arte e encontrar alguma coisa que pareça – que possa ser – uma obra de arte? [...] Entendamos que ajudar o acaso e encontrar intenções artísticas no que não é intencional, não é somente dotar a natureza de antropomorfismo, mas também lhe conferir um caráter cultural, atribuir-lhe tendências estilísticas determinantes, vê-la como constantes formativas dadas. (ECO, Humberto apud ENTLER,1998, p. 286)
Nesse sentido, o fotógrafo recupera fragmentos de visualidade que não tem atenção e análise de observadores e os apresenta em outro contexto, ou seja, o acaso aparece como um cruzamento que permite o reaproveitamento. As ocasiões informais
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foram os caminhos que a fotografia encontrou para se livrar do peso do realismo que lhe é constantemente atribuído, ressaltando a mudança de contexto e o recorte. Além disso, o acaso pode não ser previamente esperado e nem abolido, mas se constitui por todos os momentos em que o fotógrafo não teve discernimento do recorte que elegeu para sua foto. Em Dissensos o acaso comparece no processo de captação das fotografias cegas (Transparente) e também, na manipulação dos livros de artista (Opaco) com a desconstrução das imagens fotográficas impressas a partir do reflexo do espelho.
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1.4 Latência da imagem Em Dissensos as fotos foram feitas com câmera analógica e filme preto e branco (PB). Utilizar o filme PB foi um artifício para relacionar o processo de criação a revelação parcial da realidade de forma indireta. A escolha da película fotográfica é arbitrária pelo fato de ela agir em dois extremos, em que a passagem do nada para o tudo é imediata no processo de revelação, fazendo com que não se possa alterar, substancialmente, a imagem captada. O estado de latência na fotografia provoca certa perturbação levantando conjecturas diante do que se imaginava ter visto durante o ato fotográfico, pois não há um momento intermediário. Nesse sentido, o que temos na imagem, não necessariamente, corresponde ao que a realidade nos mostrava. As incertezas que experimentamos diante de uma fotografia pertencem ao mesmo universo de discussões colocadas por Magritte quando ele desarticula títulos que nada têm a ver com a imagem representada. (BRAUNE, p-112, 2000)
Segundo Lissovsky, o modo de espera faz a latência do tempo se instalar no instante fotográfico. A espera diante da expectativa da fotografia é algo interior a imagem, como o futuro das imagens passadas, entre o fazer e o ver.
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1.5 Referências Os artistas referenciais em minha construção poética guiaram-me através de suas obras e textos. Apesar da diversidade de linguagens e abordagens considero importante citá-los por questões pontuais. Na tentativa de relatar o quanto estamos cegos em relação aos outros sentidos, Cao Guimarães (1965, Brasil) apresenta o trabalho em formato de livro “Histórias do não-ver”, 2001, criado a partir da experiência de ser “sequestrado” e fotografar com os olhos vendados, além de pequenos relatos. Conheci o trabalho de Cao Guimarães após ter iniciado o projeto Dissensos e diante da similaridade da proposta decidi me aprofundar em sua obra. O que me interessa nesse e em outros trabalhos é a preocupação de Guimarães em tornar o espectador agente-criador, como no filme-instalação Rua de mão dupla, em que pede para as pessoas trocarem de casa.
Fig. 2 Cao Guimarães. Histórias do Não-ver, 2001
Evgen Bavcar (1946, Eslovênia) é um fotógrafo que ficou cego aos 12 anos. Sua fotografia é circunscrita através de outro tipo de visibilidade, a qual é ligada a desejos que constituem um caráter interpretativo da imagem. Seu trabalho ultrapassa a experiência perceptiva e perpassa pela fantasia imaginativa, pelo fato de ele nunca conseguir ver suas fotos posteriormente. Auxiliado por técnicos em estúdio, trabalhando em uma relação entre escuridão e luz, permeada por significados e sentidos “eu-mundo” reiterando o papel da fantasia e imaginação em que baseia seu discurso.
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Embora eu não me identifique com a obra de Bavcar, por ser auxiliado por técnicos em estúdio, criando o cenário, mesmo ciente de que ele nunca poderá ver suas fotos, considero importante citá-lo pela natureza da condição de criação.
Fig. 3 Evgen Bavcar. Um sonho em movimento, 1997
Fig. 4 Evgen Bavcar. Casa de papelão com bonecas
Sophie Calle (1953, França) com sua série de trabalhos com cegos. “A última Imagem”, 2010, Calle vai para Istambul conhecer cegos que repentinamente perderam sua visão e lhes pergunta qual foi sua última memória. Em “Ver o Mar”, 2010, convida cegos para ver o mar pela primeira vez e projeta suas reações em 14 telas. Em “Os Cegos”, 1991, pergunta aos cegos qual sua ideia de beleza. Nesse sentido, Calle parece colocar seu trabalho mais para o lado da emoção, abordando o destino trágico que não pode ser superado.
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Além de possuir elementos performáticos registrados e trazidos para outras linguagens (fotografia, audiovisual), no trabalho Os Cegos, traz os textos também como imagens quando os emoldura e os apresenta ao lado dos retratos e das fotografias.
Fig. 5 Sophie Calle. Os cegos, 1986
“Máscaras Sensoriais” de Lygia Clark (1920-1988, Brasil) propõem uma experiência solitária, uma busca pelo autoconhecimento e sensações particulares. Cada máscara foi confeccionada com cheiros, sons e visões diferentes fazendo com que quando o espectador a coloca entre em um isolamento absoluto com seu interior.
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O trabalho de Lygia Clark traduz o que me interessa de maneira palpável por desenvolver os objetos relacionais propondo a interação com o espectador, sem a preocupação com o registro, fundamental em Dissensos.
Fig. 6 Lygia Clark. Máscaras Sensoriais, 1967
Sophie Ristelhueber (1949, França) na série Plongée, barreira israelense em uma estrada palestina, recusa-se fotografar o muro de separação que é o ícone midiático dos problemas do Oriente médio e representa a encarnação da política de um Estado, ao invés disso, fotografou o emblema da guerra: as feridas e as cicatrizes que ela deixou no território. Ristelhueber não procurou o óbvio. Retrata as linhas sinuosas deixadas pela guerra, dando delicadeza plástica para o trabalho e ignorando o figurativismo.
Fig. 7 Sophie Ristelhueber. Plongée, 1992
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2. O começo Na busca de trabalhos que possivelmente se relacionassem, faço relação com este o Catálogo do céu, 2013, apresentado em Linguagem Gráfica III – Processos de encavo e Linguagem do Audiovisual II, onde procurei relatar o céu em diversas horas e lugares. Na primeira linguagem estampado em Polaroides para denotar a transitoriedade do tempo, já que assim como o céu, a Polaroid se modifica com o passar do tempo. Na segunda, vídeos de aproximadamente 10’’, sem nenhuma mudança significativa, junto com dados meteorológicos dos respectivos momentos captados.
Fig. 8 Fernanda Heitzman. Catálogo do céu, 2013
Para estes, tive como referência Regina Silveira, com a série Ficções, onde Silveira cria instalações que estão intimamente ligadas com o tempo, o movimento e estar “diante de”. No livro de artista Para o todo O nada para, 2014, apresentado para Poéticas contemporâneas: Linguagem gráfica, procuro revelar parcialmente o Todo das paisagens naturais de modo que apareçam apenas nuances de cores.
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Fig. 9 Fernanda Heitzman. Para o todo O nada para, 2014
O desdobramento se dá a partir da imagem que provoca o espectador a prestar atenção especial a algo que está ali e geralmente não é visto. Além de buscar plasticidade em situações óbvias, o trabalho envolve a percepção.
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2.1 O recomeço No projeto Inversão de Sentidos fui guiada desde o Centro Universitário Belas Artes de São Paulo até o Parque Ibirapuera com os olhos vendados, e mesmo percorrendo o trajeto todos os dias, senti que não havia nenhuma familiaridade em que pudesse me apoiar por não estar habituada com tal situação, restando então, apenas os significados sensoriais como referencial. Apesar de ter guias descrevendo o percurso, minha percepção era completamente diferente, tornando a experiência única e individual. Fui retratando o trajeto do início ao fim e o resultado foi inesperado. Conheci pessoas através dessa condição, podendo ver seus rostos apenas posteriormente através da fotografia.
Fig. 10 Fernanda Heitzman. Inversão de Sentidos, 2012.
Fig. 11 Fernanda Heitzman. Inversão de Sentidos, 2012.
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Fig. 12 Fernanda Heitzman. Inversão de Sentidos, 2012.
Observou-se que o projeto apontava questões ainda a serem exploradas, no sentido de ampliar as investigações em relação ao efeito que as imagens produzem, a fim de questionar o uso das imagens com idolatria. Dissensos é o trabalho que procura mudar os modos de apresentação sensível e os modos de enunciação, constrói novas relações entre realidade e aparência, o visível e sua significação. Nesta etapa, o procedimento feito para captura das fotos é o mesmo de Inversão de Sentidos, porém neste momento, não sabia para onde estava sendo levada, fazendo com que a câmera fosse a extensão do olho e única possibilidade de realidade. Pude reconhecer o lugar parcialmente apenas quando o filme foi revelado. Em cada saída fiz anotações livres da atuação da visão, fazendo um contraponto entre a narrativa e as imagens produzidas. Sendo assim, o trabalho consiste em criar outras realidades, outros dispositivos espaço-temporais, contribuindo para gerar novas configurações do visível, dizível e pensável e, sobretudo, uma nova paisagem do possível, segundo Ranciére.
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2.2 Da performance ao livro de artista O trabalho Dissensos acontece em duas instâncias: uma delas, mais íntima, quando me coloco na situação de me deixar conduzir por uma experiência até então desconhecida, onde existe meu desejo de compartilhar a ação através dos registros feitos, fazendo com que, posteriormente, o espectador tenha a sensação de “ver” meu pensamento na construção de cada imagem, permitindo certa violação dessa intimidade. A ação é feita para desautomatizar o olhar, onde minha percepção foi deslocada para o futuro, desorientando funções práticas e abrindo uma disponibilidade. A imagem gera uma saturação por sua previsibilidade, pensar no não-ver rompe com a automatização do que é considerado comum e traz possibilidades de reeducar uma visão esgotada. Existe um limite imposto que negligencia os elementos de identificação fazendo com que não haja motivos para dissociar as formas visuais daquilo que ela nos quer dizer. O enquadramento não sai ileso à criação, pois ele representa a posição do criador em relação ao recorte parcial do campo da realidade, exprimindo um ponto de vista, uma impressão, um sentimento, uma ideia. Nesse sentido, buscar a manifestação do acaso, identificando um novo olhar sobre as imagens. O processo da ação performática faz parte dessa construção que pertence a uma condensação e deslocamento. A outra instância se dá quando, através do livro de artista, procuro fazer com que o espectador também seja um agente criador da obra, tornando-se ativo ao ter que desvendar as realidades que se escondem por trás deste, havendo uma troca de posições. No livro de artista há dípticos de fotos que tirei vendo e entre elas, um acetato com espelhos fixados que possibilita ver o recorte de cada foto e ainda se integrem uma a outra. O apagamento do espaço que circunda a parte enquadrada é, para mim, tão importante quanto o que está representado, e é graças a esse apagamento que a imagem assume sentido, tornando-se mensurável. Ao mesmo tempo, a imagem continua no visível do apagamento convidando-nos a ver o resto do real não representado. (Kodachrome, 1978)
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Fig. 13 Fernanda Heitzman. Prot贸tipo de Opaco (Dissensos), 2014
Fig. 14 Fernanda Heitzman. Prot贸tipo de Opaco (Dissensos), 2014
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2.3 Dissensos
. Fig. 15 Fernanda Heitzman. Livro Opaco, 2014
Opaco, 2014. Livros de artista Fotografias preto e branco analógicas digitalizadas e impressas em papel alta alvura, 150g, encadernadas em conjunto com páginas de acetato com espelhos fixados. (10 livros) 25,0 x 18,5 x 1,0 cm aproximadamente. Esta imagem faz parte do pré-projeto do conjunto de livros Opaco, composto por 10 livros. O retângulo representa o espelho que será fixado no acetato na frente e atrás entre as fotografias.
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Fig. 16 Fernanda Heitzman. Série Transparente, 2014
Série Transparente, 2014. Fotografias preto e branco analógicas digitalizadas e impressas em papel alta alvura, 150g e duas citações emolduradas (8 fotografias) 25,0 x 25,0 cm cada
25 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho é um desdobramento de Inversão de Sentidos (2012), que tem como objeto de pesquisa a fotografia e as percepções sensoriais. Encaro o projeto Dissensos como uma exploração de novas possibilidades da linguagem e novos modos de apresentação, como citado no desenvolvimento do artigo. O fato de o processo performático ter tanto peso quanto o registro fotográfico para o trabalho torna-se essencial para gerar novos caminhos. Um novo trabalho pode se desenvolver a partir da “finalização” de Dissensos, a princípio como um projeto de instalação que possa proporcionar estímulos semelhantes aos que originaram as fotos cegas, ambientadas em salas escuras com texturas, cheiros, sensações térmicas e sonoras.
26 4. Referências bibliográficas
BASBAUM, Sérgio Roclaw. Sinestesia, arte e tecnologia: fundamentos da crossomania. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001 BRAUNE, Fernando. O Surrealismo e a estética fotográfica. Rio de Janeiro: 7 letras, 2000 ENTLER, Ronaldo. Fotografia e acaso: a expressão pelos encontros e acidentes in O fotográfico, organização ETIENNE, Samian. – São Paulo: Hucitec, 1998. FABRIS, Annateresa. O Desafio do olhar: Fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013 GEOFF, Dyer. O instante contínuo: uma história particular da fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. Introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984 MASIERO, André Luiz; NAVES, Maria Allucham S. G. A produção de sentidos na arte fotográfica de Evgen Bavcar. Disponível em http://www.ip.usp.br/laboratorios/lapa/versaoportugues/2c40a.pdf. Acesso 11/2014 OTTO, Lara Resende. Vista Cansada. Disponível em http://www.releituras.com/olresende_vista.asp Acesso 11/2014 PRESA, Carla Patrícia Magalhães. Sinestesia na arte. 2008. Faculdade da Beira Interior. Tese de mestrado. Disponível em https://ubithesis.ubi.pt/bitstream/10400.6/1446/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o_Sinestes ia%20na%20Arte.pdf. Acesso 11/2014 RANCIÉRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução por BENEDETTI, Ivone C. São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2012. SANS, Claudia Linhares. Invisibilidade e latência do tempo na fotografia. 2009. Disponível em http://www.revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/977/917. Acesso 11/2014
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Lista de Ilustrações Fig. 1 Meret Oppenheim. Le Déjeuner em fourrure, 1936 Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9ret_Oppenheim#mediaviewer/File:M%C3%A9 ret_Oppenheim_Object.jpg Acesso 11/2014 Fig. 2 Cao Guimarães. Histórias do Não-ver, 2001 Disponível em http://www.caoguimaraes.com/obra/historias-do-nao-ver/ Acesso 11/2014 Fig. 3 Evgen Bavcar. Um sonho em movimento, 1997 Disponível em http://nosnacidadeteatro.wordpress.com/tag/fotografia/ Acesso 11/2014 Fig. 4 Evgen Bavcar. Casa de papelão com bonecas. Disponível em http://nosnacidadeteatro.wordpress.com/tag/fotografia/ Acesso 11/2014 Fig. 5 Sophie Calle. Os cegos, 1986. Disponível em http://www.deficienciavisual.pt/txtimagem_corporal_e_deficiencia_visual.htm Acesso 11/2014 Fig. 6 Lygia Clark. Máscaras Sensoriais, 1967. Disponível em http://www.scoop.it/t/arte-contemporanea-1/p/3055051058/2012/10/22/lygia-clarkmascaras-sensoriais-1967 Acesso 11/2014 Fig. 7 Sophie Ristelhueber. Plongée, 1992. Disponível em http://followartwithme.blogspot.com.br/2013_11_01_archive.html Acesso 11/2014 Fig. 8 Fernanda Heitzman. Catálogo do céu, 2013 Fig. 9 Fernanda Heitzman. Para o todo O nada para, 2014 Fig. 10, 11, 12Fernanda Heitzman. Inversão de Sentidos, 2012. Fig. 13, 14 Fernanda Heitzman. Protótipo do livo Opaco, 2014 Fig. 15 Fernanda Heitzman. Livro Opaco, 2014 Fig. 16 Fernanda Heitzman. Série Transparente, 2014