No coração Pantaneiro
Por Josué Alves Conceição Ilustração: Helena Katsue e Marina Harumi
Diagramação: Hélder Rafael Campo Grande/MS - 2017
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ra uma vez duas irmãs que gostavam de aventuras. Helena Katsue, com três anos de idade, e Marina Harumi, com quase dois anos. Elas nasceram no coração do Pantanal Sul-Mato-Grossense. Nos meses de março e abril é época das cheias e as planícies ficam encantadoramente alagadas; uma imensidão sem fim de águas. Certa manhã, Helena disse ao pai: - Quero que você faça uma canoa de madeira bem leve e resistente, papai... - Para quê, minha filha? - Eu e minha irmã Marina vamos navegar nas águas do Pantanal. O pai sorriu feliz com a ideia das meninas e informou: - Se é desejo de vocês mandarei construir uma canoa do tipo chalana com dois remos. 5
O pai das meninas quis saber o porquê dessa decisão aventureira e se os avós e a mamãe já haviam aprovado a decisão. - Ainda não, papai, mas tão logo a canoa esteja pronta, todos hão de nos apoiar. Quando o barquinho ficou pronto, as irmãs sorriram e aplaudiram a presença da embarcação. Banquinhos estofados e macios, apoio para os pés e as mãos e um compartimento para armazenar e proteger a alimentação. Bananas desidratadas, farinha láctea, leite em pó, barrinhas de cereais, pedaços de chocolate e frutas passas. Tudo bem organizado em cestinhas de vime. Na proa do barquinho, um refrigerador adaptado para não fazer muito volume, onde havia muitos litros de água mineral. A bateria solar garantia a energia elétrica para iluminação noturna e o refrigerador. 6
Eis que chegou o dia da partida; o Pantanal expandia-se em água. Boiadeiros levavam o gado para lugares altos. Ao longe, ouviam-se o estalar dos chicotes, o berro, o mugir e o toque do berrante que o Pantaneiro sabe interpretar ao ler a partitura das águas. Marina segurava a filmadora e Helena a orientava. Nada passava despercebido. Um bando de capivaras curiosas espionavam de longe, lá do outro lado na margem. Uma delas, a maior, saltou na água do coricho e as outas a seguiram. Mais adiante, ao lado dos camalotes, vários jacarés. Na areia, alguns de boca aberta... dentes à mostra. Uma onça pintada cruzou a água a nado, olhava para o barquinho com uma certa curiosidade até alcançar a outra margem. 7
Marina tocou de leve o ombro da irmã que, com olhar indagativo, perguntou: - Que bicho é aquele, Helena? Parece um cavalo... - Aquele animal é uma anta, maninha. Pesa quase 600 quilos e alimenta-se de folhas e frutos da flora local: pitangas, guaviras, marmelos, araçaí e outros. Helena e Marina remavam de leve, fazendo a embarcação deslizar suavemente nas águas infestadas de jacarés, lontras, ariranhas e as terríveis piranhas amarelas. Na margem esquerda, tuiuiús e garças brancas. No lado direito, um casal de ariranhas brinca despreocupadamente. De repente, suspenderam a brincadeira para "manguear" as passageiras navegantes. 8
Já era quase noite... hora do crepúsculo... As meninas avistaram um ranchinho humilde nas margens do coricho e resolveram aportar. Desembarcaram pisando nas areias do paradisíaco lugar conhecido como "O Canto da Sereia". Lá do ranchinho, surgiu o casal de idosos Dona Zinha e Seu Tino, moradores dali há muitos anos. Vieram receber as irmãs que desembarcaram sorridentes e curiosas. Ela, saia longa de chita meio desbotada, avental branco e cabelos protegidos por uma toalhinha discreta. Ele, camisa xadrez, calças remendadas e sandálias de pescador. Era um lugar espraiado, vegetação exuberante: lírios selvagens, orquídeas roxas, lilases, brancas e amarelas, samambaia do cerrado, araçaí, jatobás, canafístulas e andirobas. O rancho, pau-a-pique, coberto com folhas de carandá e sapé. 9
Em frente à morada, um banco tosco de imbuia, pilão de aroeira e um cocho de guarantã, onde se alimentavam dois porquinhos e algumas galinhas. Na parede, xaxins com folhagens ornamentais coloridas e uma caixinha de madeira com abelhas jateí. Debaixo da paineira, o velho carrode-boi e, sobre ele, espichado, o couro de uma suçuarana, onça comedora de bezerros e que não respeita nem bicho de couro, nem bicho de penas. Surpreso, o casal as acolheu com carinho e dedicação. Nunca tinham visto cena igual nos quase 40 anos vividos ali em terras pantaneiras.
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As visitantes misteriosas, olhinhos amendoados e sorriso angelical, foram recebidos pelo Seu Tino e Dona Zinha. Na varanda, a rede para o descanso; na sala, mesa rústica, na parede um calendário de 1954 com o retrato do finado Getúlio Vargas; lenço vermelho no pescoço e sorriso nos lábios. Dona Zinha conduziu as duas irmãs para se lavarem em uma "pilheta" ao fundo da cozinha enquanto seu Tino descarregava as tralhas do barco para a casa. Era crepúsculo; o pôr-do-sol no ocaso fugidio proporcionava um espetáculo de rara beleza. O sol tingia o céu de um vermelho quase lilás que cintilava, compondo uma aquarela surrealista, nas águas pandas do Pantanal. 11
Foi diante deste cenário que a noite chegou. Cansadas, as duas irmãs conversam sonolentas. Dona Zinha providenciou cama fofinha para as duas ali mesmo no quarto do casal. Preparou o mosquiteiro e uma colcha de retalhos à moda antiga. Serviu pão caseiro com chá de erva doce e leite. Helena disse a tempo: - Quero "ovinho fito", vovó... As meninas se alimentaram em companhia do casal que jantou arroz carreteiro feito com carne de porco monteiro, resultado da cruza de porco caseiro com cateto, porco do mato. 12
Enquanto as achas de angico ardiam no fogão a lenha, elas foram levadas até a varanda para apreciar a noite. Lá fora, por sobre o coricho, o clarão da lua, cujo reflexo dava à paisagem um tom místico entre o real e o fantástico. Aqui, ali e acolá, olhos misteriosos de corujas, urutaus e caburés. Pirilampos espalhavam confetes luminosos por entre a flora do cerrado enfeitando os marmeleiros, leiteiros, sarãs e sapezais. Gorjeios noturnos de curiangos dialogavam com os deboches de corujas sobre os morrotes de cupins. Ao longe, bandos de biguás, em um alarido sem fim, concorriam com a sinfonia que vinha dos ninhais; e foi com esse concerto, regido pela batuta das folhas de pindós, carandás, bacuris, piúvas e jatobás que Helena e Marina adormeceram.
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O amanhecer, espetáculo montado e dirigido pela Mãe Natureza, colocou no palco a seriema que, com uma apresentação solo, fez o fundo musical para o bando de curicacas que cruzou o colorido plúmbeo da manhã de sol. As inúmeras aves deixaram os ninhais. Um tuiuiú fez um pouso forçado seguido por tantos outros. Algumas marrequinhas surgiram barulhentas para os primeiros mergulhos do dia. Os galhos dos guavirais e as ilhas de camalotes mostravam-se insuficientes para receber sanhaços, bem-te-vis, frangos d'água, sabiás-da-terra e patos selvagens. No galho do jatobá-mirim, um casal de mutuns espiavam curiosos. Uma uirara, gatodo-mato, cruzou de foguete a trilha e, logo atrás, um bando de quatis. 14
Um lobo-guará solitário espiava o movimento das viajantes, sorrateiramente atrás de uma moita de caraguatás, debaixo de um pequizeiro. Dois frangos d'água desceram o rio de carona em uma jangada de camalotes verde-brilhante. Helena e Marina, carinhas ainda de sono, ajudaram Dona Zinha a compor a mesa para o quebra-torto. Arroz carreteiro, chipa, tortilha, queijo caseiro e "cozido", chá feito de erva-mate in natura sapecada com brasas. Após o tira-jejum, as irmãs decidiram que era hora da partida. Seu Tino e Dona Zinha esboçaram um gesto de tristeza no rosto e na alma. O casal pediu a elas que ficassem mais, que era cedo; que a casa e os corações eram grandes; que onde comiam dois, poderiam servir a três, quatro... dez, etc. 15
Enquanto as duas se preparavam para a despedida, Dona Zinha compôs uma "matula": chipinhas, biscoitinhos caseiros, bananas-da-terra, leite in natura, laranja, doce de abóboras e queijo. Seu Tino acabava de improvisar, no barquinho, uma cobertura de folhas de bacuri para protegê-las do sol, da chuva e do sereno. Tudo pronto e conferido, despediram-se e o barquinho zarpou deslizando suave sobre as águas calmas do coricho em direção ao rio principal, imensidão de águas. Helena Katsue e Marina Harumi acenavam o adeus com as inocentes mãozinhas, sorriso nos lábios e um brilho nos olhinhos de criança. 16
Enquanto o barquinho se afastava, lá nas areias, à margem do coricho, Dona Zinha enxugava as lágrimas no avental branco. A mulher com a cabeça levemente recostada no ombro do marido disse-lhe: ra uma vez duas irmãs que gostavam de aventuras. Helena Katsue, com três anos devocê idade, Marina com Pelo quase dois anos. Elas as nasceram no jacarés-açus coração do - Tino, nãoe se animaHarumi, ir com elas? menos até cruzar águas dos Sul-Mato-Grossense. Nos meses de março e abril é época das cheias e as e dasPantanal ariranhas? planícies ficam encantadoramente alagadas; uma imensidão sem fim de águas.
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- Seu Tino aprovou a sugestão da mulher e os dois gritavam e acenavam para as Certa manhã,asHelena disse navegantes, quais já nãoao se pai: podiam ouvi-los. -Foram Queroelas que navegando você faça uma de alegres, madeira contentes bem leve eeresistente, papai... abraçou a riocanoa abaixo, faceiras. Helena -irmãzinha Para quê,eminha disse: filha? - Eu e minha irmã Marina vamos navegar nas águas do Pantanal. O paiadolo sorriunavegar..." feliz com a ideia das meninas e informou: - "Eu -ESe é desejo vocêsirmãs mandarei construirencantado, uma canoa singrando do tipo chalana compantaneiras. dois remos. lá se foram de as duas no barquinho as águas 17 5
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