Unicom Retrô

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JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – UNISC – SANTA CRUZ DO SUL – OUTUBRO/2009


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O diferente, neste caso, fica por conta do fato de o exercício se propor a buscar, no presente, marcas do passado, com a condição que estas dissessem respeito ao presente.

Ou seja, para além uma saudação às coisas que já se foram, trata-se de uma maneira de ser, em termos de comportamento, que permite ao passado compor o presente, tornando-o, desta forma, coevo aos dias que se seguem.

Mais que um paradoxo, ou uma aberração evolutiva, o que se buscou foi identificar, por meio da prática jornalística, a sociedade em que vivemos a partir de sua singularidade.

Foi com base nesta premissa que os alunos da disciplina de Produção em Mídia Impressa da Unisc deste segundo semestre de 2009 resolveram, uma vez mais, realizar uma edição diferente.

E o resultado está aí, caro leitor, cara leitora: ao longo das páginas que se seguem, mais que um exercício de jornal-laboratório, ainda que o seja, vocês têm em mãos o resultado de um esforço muito grande que os alunos da disciplina realizaram no sentido de exercitar, desde já – e da melhor forma possível – o jornalismo e suas formas.

O que não chega a ser bem uma novidade, à medida que fazer da forma mais original possível é regra no Unicom.

Ou seja, com critérios jornalísticos.

Exercício este que, a julgar pela qualidade do jornal que agora chega às suas mãos, nos permite afirmar que o jornalismo vai muito bem desde a etapa formação, o que novamente não chega a ser bem uma novidade, pelo menos não em termos de Unisc. A afirmação se justifica à medida que o Curso de Jornalismo da Unisc foi eleito, pela revista Imprensa, uma das mais tradicionais do setor, o segundo melhor curso da área em todo o Rio Grande do Sul, e o sexto em termos de Região Sul. Trata-se de um reconhecimento que muito nos orgulha, mas que também aumenta nossa responsabilidade quanto à forma que conduzimos nossos passos dentro e fora da sala de aula. Uma boa leitura a todos.

ARQUIVO/LIBRARY OF CONGRESS

e acordo com o dicionário Aurélio, retrô, mais que um adjetivo, é tudo aquilo – roupa, decoração, estilo etc. – que se baseia em épocas passadas.


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Querida amiga!

ARQUIVO PESSOAL

Eu costumo dizer que nossa amizade foi presente divino, pois nasceu no dia-dia da faculdade, se fortaleceu nos encontros do grupo de orações e se mantém em linhas por muitos anos. No tocante de nossa força de vontade eu, uma mera personagem do cotidiano e você, uma pessoa que recebeu o dom divino de seguir a vida religiosa que mesmo morando a 1.500 quilômetros de distância, mostramos que é possível, mesmo com a tecnologia crescente, desfrutar de bons sentimentos e de ótima literatura. Afinal, pelo menos para mim, poucas coisas são mais importantes que amizade, que é uma flor que desabrocha e necessita ser sempre regada para manter-se forte, viva e radiante. No troque do calendário, no correr dos dias e na passagem de mais um inverno, eis que me encontro aqui a te escrever e ficar na expectativa de uma resposta, pois sei que a vida de irmã carmelita é rígida, porém sábia. Saiba que não há nada no mundo mais surpreendente do que receber uma carta. Isso, nem o tempo nem a modernidade dos longos dias haverão de apagar. Não têm explicação, é uma alegria sem igual. Hoje, lembrei-me do dia em que nossas linhas ganharam vida, e recebi a sua ligação... Para mim, foi um momento maravilhoso compartilhar com você o nascimento do meu filho, e também dividir a esperança de que aquele frágil anjo, nascido aos seis meses e com 600g, tivesse forças e coragem para crescer, desenvolver-se e tornar-se uma pessoa do bem. E, graças à nossa fé, isso se tornou realidade e eis que hoje já se passaram dois anos. Você lembra, amiga, que certa vez lhe enviei uma carta com envelope e selo dentro para que pudesse me responder? Foi para que assim que a recebesse, não precisasse esperar tanto, pois sei que aí vocês vivem de doações. Aliás, o trabalho que você realiza com as pessoas nada mais é do que um dom de Deus. Eu acredito que nada na vida é por acaso, e também não foi por acaso a nossa amizade, que sobrevive mesmo a uma longa distância. Eu acredito que todas as pessoas nesse mundo são únicas e que deixam sempre algo de si, levando consigo algo de nós. Ah, já ia esquecendo, sua afilhada Mª Helena está mandando dizer que adora receber suas cartas. Por hora, vou ficando por aqui. Os dias por aqui têm sido corridos, eu imagino que para você também. Quero te dizer, querida amiga, que vou ficar aguardando sua resposta. Quero que saibas que sua amizade não é como o vento, que um dia sopra e no outro nem existe, nem como a chuva que cai e desaparece. Mas sim como a terra, que por mais que se pise, em toda sua extensão, continua sempre firme.

Maria Holler e Catiane Neitzke reforçam os laços da amizade através das velhas e boas cartas

Tatiane Lawisch

Assinado,

A origem das cartas Os primeiros registros escritos encontrados foram de antigos mercadores, e acredita-se que serviam para que eles fizessem contas. A origem da carta está relacionada à necessidade de comunicação do homem desde os princípios da humanidade. As antigas tábuas feitas de argila tiveram um papel importantíssimo nos tempos mais remotos. Foram encontrados na cidadela de Tell Brank, na Mesopotâmia, tábuas de argila contendo registros escritos, datados de 3200 a.C., sendo provavelmente as inscrições mais antigas já encontradas. Ao redor de 2800 a.C, as inscrições se reduziram a símbolos convencionais na forma de cunha (daí a origem do nome cuneiforme). Logo, esta escrita começou a ser usada em outras partes do mundo, como Egito. Os textos cuneiformes da antiga Babilônia e os escritos em estátuas de pedra são os indícios do alto interesse e necessidade do homem em se comunicar.

LUANA RODRIGUES

amiga eterna


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FOTOS: NAIRO ORLANDI

Para algumas pessoas, máquina boa é Nairo Orlandi

Contrariando o senso-comum, há quem prefira utilizar tecnologias consideradas ultrapassadas em seu dia-a-dia

Fábio Norberto Emmel ainda não se acostumou com o computador. Prefere máquina de escrever, objeto raro atualmente.


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m pleno século XXI, algumas pessoas ainda preferem utilizar uma máquina de escrever para digitar textos em vez do computador. Por motivos variados, elas entendem que os aparelhos novos, que buscam facilitar a vida, não são os melhores. Esse é o caso do senhor Lauro Carlos Sebastiany, aposentado de 77 anos que reside em Sobradinho. Atualmente Lauro cuida de uma farmácia de sua propriedade e é colunista do jornal Gazeta da Serra, hobby esse que começou em 1960, quando comprou uma máquina de escrever Ollivetti 88. Pois essa é a mesma máquina que ele usa até hoje para escrever a sua coluna. E o fato de ainda usá-la não se deve à preguiça de entender os computadores, pois ele fez até curso de informática. Mas “apenas por hábito, e por inspiração momentânea”, como ele mesmo define. É claro que isso gera alguns percalços, por exemplo na semana passada teve que vir até Santa Cruz para fazer a manutenção e trocar a fita de sua relíquia. E usar máquina de escrever para criar textos não é algo que fica restrito ao senhor Sebastiany. Seu amigo e também colunista do jornal, Fábio Roberto Emmel, aposentado de 77 anos, também prefere utilizar ela ao invés do computador. O motivo é que quando surgiram os computadores logo se viu que teriam atualizações constantes, com isso eles ficam ultrapassados rapidamente. “Acho melhor escrever na máquina, até porque nela você tem que escrever certo, enquanto que o computador corrige automático”, salienta. Além do computador há outra tecnologia do “mundo moderno” que o senhor Emmel não aderiu. “Nem eu, nem o Moacyr Scliar e nem o Luiz Fernando Veríssimo temos celular”, afirma orgulhoso. Como possui várias atividades, diz que se tivesse celular estaria sendo importunado constantemente. Então prefere ficar apenas com os telefones residenciais. E engana-se quem pensa que este pequeno aparelho faz falta para

o aposentado. O senhor Emmel, diz que apenas uma vez, quando fez uma longa viagem, que durou mais do que o esperado, sentiu a falta de ter um celular para informar a família sobre o atraso. Em Cachoeira do Sul, há um outro exemplo de afeição à objetos antigos. No Armazém Tischler, fundado em 1924, existe uma registradora inglesa da marca National que acompanha o estabelecimento desde seu início. Litdo Lauro Friedrich, que trabalha na empresa há 37 anos, sendo 27 deles dedicados a operar a registradora, ressalta que ela já foi comprada usada. “Seu Lauro”, como é conhecido pelos colegas, conta que colecionadores, antiquários e até o museu municipal já tentaram comprar a máquina, mas depois de 85 anos acompanhando as transformações pelas quais passou a empresa, isso nem é cogitado pelos proprietários. “Não trocamos ela porque tem um grande valor afetivo... até podemos inserir máquinas mais novas, mas sem deixar esta de lado”, enfatiza. No entanto, enquanto muitas pessoas ainda utilizam objetos antigos, outras tantas apenas os mantém como recordação. Um exemplo é a casa dos pais da administradora hospitalar de 31 anos, Roberta Rauber. Lá encontramos diversas relíquias da antiguidade, como relógios, um telefone de 1927 e um rádio valvulado da década de 30, que pertencia ao seu avô. Ao ligar, o aparelho emite uma luz, mas permanece em silêncio, como se não estivesse funcionando. Depois de um tempo a válvula esquenta, e o som sobe num crescendo. Para a família Rauber, esta é uma maneira de relembrar e recriar o passado em sintonia com o novo. Insensatez? Saudosismo? Coisa de velho? Muitas vezes, uma questão de opção, como explica Sebastiany no alto de seus 77 anos: “quando se chega a certa idade você pode se dar ao luxo de aproveitar o prazer da velhice enquanto assiste o progresso do mundo”. Nem que seja escrevendo em uma velha Olivetti 88...

Apesar de ser da década de 30, rádio valvulado ainda funciona


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Ouvir LP é Maria Clara Reis

Mais que um colecionador, ou um saudosista, Dario Trindade, 34 anos, é um apaixonado por long plays, os antigos bolachões

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ara algumas pessoas, ouvir música requer certa habilidade: é preciso, em primeiro lugar, retirar o disco cuidadosamente da capa – caso contrário ele pode arranhar – e depositá-lo no prato. Depois, a mão, leve e delicada, apanha o braço do toca-discos e repousa a agulha sobre a superfície do vinil, que gira no sentido horário. Quando o pequeno diamante se encaixa no sulco do disco provoca, em um primeiro momento, um chiado, que logo em seguida se transforma em música. Praticar este gesto vai além de um hobby. É uma espécie de ideologia, um modo de vida. É assim que Dario, amante de música analógica – não digitalizada, como a dos CDs, MP3 etc. – define seu modo de encarar o som extraído das vitrolas. Para ele, isso é bem mais do que música, é uma forma gostosa de apreciar o tempo. Antes mesmo de ouvir a música, propriamente dita, há de se buscá-la no armário, onde estão todos os discos posicionados na vertical, pegar a embalagem com aquela grande foto ou ilustração (depende do álbum), com carinho despir o disco de seu invólucro e, então, aproveitar. Nesta entrevista ao Unicom, Dario explica um pouco de seu amor pelos antigos discos de vinil. E por que esse ritual? O que te passa na cabeça neste momento? Dou mais valor para a música. Quando eu ouço fico analisando tudo, por completo, da música à capa. E esta, por sinal, tem muito que oferecer. A capa é muito mais visível; as dimensões são em média 30 × 30 cm. Lembro de ficar horas traduzindo as músicas e pedindo ajuda para a minha professora de inglês. Servia até como lição de vida. Com todas as praticidades da música digital, por que voltar a ouvir o LP? O som que produz é rico. Acredito que o som analógico seja quase 100% real, tem integridade, e esse é só um dos pontos a favor. Não é só pelo ritual ou aparência

nostálgica que me apego a essa tendência. Acredito que a música analógica tem alma e mostra a verdadeira cara do artista. Reflete no que o artista ou a banda são, e daí, mostra tudo, tudo mesmo; até os ruídos (in) desejáveis. O que dá a sensação de estar ali, a duas fileiras do palco. A diferença é mesmo muito grande? Noto que quando ouvimos o CD ou MP3 não valorizamos a música, não temos paciência de ouvir o conjunto da obra. Na verdade, nem consideramos como obra. Não passa de “dado”; de arquivo de informação. Agora, quando se pega um LP na mão, você pensa mais antes de pular uma faixa. Acho que por não ser tão fácil trocar de faixa, acabamos ouvindo o álbum na ordem cronológica e por inteiro, até as músicas menos conhecidas. Isso agrega valor ao objeto. Como uma obra de arte de alguém que se empenhou para fazer isso. Como foi que surgiu a sua história com os discos de vinil? Como tudo começou? Ganhei o meu primeiro LP quando tinha 11 anos, em 1987. Era o álbum Slippery When Wet, do Bon Jovi. Lembro-me de ter ficado muito feliz e de ter ouvido o disco inteiro, por quatro vezes seguidas, já no primeiro dia.

Você teve alguma influência em relação à música? Minha família sempre se interessou por música, e eu não fui diferente. Só que, na década de 90, todos os artistas, inclusive os que eu me interessava, estavam aderindo à era digital e lançando seus trabalhos em CD. E como era uma novidade e se falava tanto da clareza do CD, eu também aderi. Só que eu percebi, talvez sem admitir, que quando ouvia o CD não era com a mesma “febre” de antes, e concluir que deveria ser por causa da capa que tento me fascinava. Antes tínhamos uma cultura de contemplação, tanto da parte sonora como da física do disco.


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A última sobrevivente Já iniciaram as obras de restauração da Polysom, a única fábrica de vinil da América Latina. Segundo o Twitter da nova fábrica, a meta é fabricar LPs e compactos de alta qualidade a partir do segundo semestre de 2009. Depois de muitos protestos e de promessas furadas do ex-ministro da cultura Gilberto Gil, a Polysom, que fica localizada em Belford Roxo, no Rio, fechou as portas no ano passado. A fábrica de vinil foi criada em 1999 por Nilton José Rocha, que trabalhava há 30 anos no meio fonográfico e recentemente foi comprada pelos proprietários da gravadora carioca Deckdisc. Toca-disco de 32 anos

E você foi atrás do vinil ou ele que te achou? Bem, no início, foi por pura curiosidade. Em 2007 comprei um disco, depois de longos anos longe do vinil. Peguei na casa dos meus pais um velho “3 em 1”, daqueles que reúne rádio, toca-fitas e toca-discos, mandei restaurar e então começou. Foi amor à segunda vista, na verdade o lado B da minha vida. Comprei uma agulha com ponta de diamante do fabricante Leson. Então, a curiosidade se transformou em febre novamente, e passei a procurar na internet, nos sebos online, todas as bandas que eu gostava de ouvir nos anos 80. Queria (e ainda quero) refazer toda a coleção que eu tinha e ampliá-la ainda mais. Já encontrei, por exemplo, em um sebo, um exemplar do meu primeiro LP, o Slippery When Wet. De certa forma podemos dizer que está na moda comprar vinil ultimamente. Mas você acha que isso vai mesmo durar? Esse seu gosto por LPs? Quando comecei não sabia onde iria parar. Mas agora sei que não se trata de “modismo”. Aliás, tenho que

me controlar para não comprar tudo o que vejo. Mas sempre que alguma banda que gosto está para lançar um novo álbum, a primeira coisa que verifico é se eles também pretendem lançá-lo em vinil, como está se tornando cada vez mais freqüente. Para mim virou um vício bom. Só minha mulher não fica muito feliz quando compro um LP de R$ 150. Passado menos de três anos, eu já tenho mais 130 discos e não pretendo parar. Uma vez estabelecido que esse seu gosto pelo LP é permanente, qual a sua expectativa para o futuro em relação às mídias de música? Acho que a palavra-chave para o futuro é diversidade. Teremos vários segmentos diferentes entre si, mas com o mesmo propósito, CD, MP3, vinil etc. Ou seja, várias opções para ouvir música. Não acredito que o LP vá estourar nas paradas e ser a principal mídia, mas acho que vai ter um aumento graduado. Já no caso do CD, acho que vai diminuir, por causa dos preços exacerbados e da pirataria.

Bon Jovi foi o primeiro de muitos

FOTOS: MARIA CLARA REIS

Então, nessa época o vinil tinha saído de cena. Como ele voltou para a sua vida? A partir do ano 2000, passei a perceber que na internet muitos estavam falando sobre o vinil novamente, e eu não entendia por que. Daí, li que nos EUA estavam fazendo muitos “testes cegos”, ou seja, colocando pessoas para ouvir as duas mídias, sem que elas soubessem qual delas estavam ouvindo. A conclusão foi que um número expressivo de pessoas parecia preferir ouvir o LP. E isso me deixou muito curioso. Continuei a observar por um longo tempo nas matérias de música que lia em revistas e na internet. Comecei a perceber que estavam surgindo vários sebos online e que o mercado estava crescendo, principalmente nos EUA e na Europa. E nestes locais os preços variavam muito. Percebi também, que estava se agregando valor histórico para cada disco, valor cultural. Achei muito interessante, e naquele momento da minha vida lamentei por minha família ter se desfeito de todos os antigos LPs, que eram um grande acervo.

Com isso, a Polysom resgata uma história antiga. O disco de vinil surgiu no ano de 1948, tomando o lugar dos antigos discos de gomalaca de 78 rotações – RPM (rotações por minuto) –, que até então eram utilizados. Os discos de vinil eram mais leves, maleáveis e resistentes a choques, quedas e manuseio. Mas eram melhores, principalmente, pela reprodução de um número maior de músicas. A partir do final dos anos 80 e início da década de 90, a invenção dos CD prometeu maior capacidade, durabilidade e clareza sonora, sem chiados, fazendo os discos de vinil ficarem obsoletos e desaparecerem quase por completo.


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Uma vida sobre quatro rodas

Wesley Soares

Quando passam, eles logo chamam a atenção. Com um jeito requintado e charmoso, os carros antigos ignoram os desafios do tempo e se mantém entre os preferidos de grande parte dos apaixonados por automóveis

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m carro pode ter diversas significações. É capaz de representar status, traduzir conquistas pessoais, expressar uma personalidade e, como princípio básico, transportar pessoas de um lado para outro. No entanto, este “ser inanimado” de mais de cem anos de vida pode constituir histórias que vão além de um conjunto de lata, motor, pneus e outros acessórios que, mecanizados corretamente, circulam conduzindo pessoas para cá e para lá. É notável, todavia, que em pleno século XXI, ainda há quem desafie toda essa avalanche de avanços tecnológicos – aparentemente infindáveis – das máquinas automotoras contemporâneas, em nome do glamour e do conforto de possantes de mais de meio século de vida. É o caso, por exemplo, da família Bernauer que, apaixonada por carros antigos, além de

manter as relíquias, faz questão de as conservar mais próximas do seu estado original possível e sem jamais deixar de usá-las. Colecionador desde 1965, quando completou 18 anos e ainda morava em São Paulo, seu Andreas Bernauer já teve mais de uma dezena desses carros. Alguns de raro valor, como o Ford 1928, que foi seu primeiro veículo; e o Peugeot 1924 que, na década de 90, foi comprovadamente, o carro mais antigo da Peugeot em circulação no Brasil. Isto, inclusive, fez com que o nome máximo da montadora francesa pedisse à família Bernauer o veículo para desfilar na inauguração da fábrica, em São Paulo. O carro foi levado até lá e utilizado na cerimônia de abertura da montadora. O mix de carros antigos que já passou pela mão dos Bernauer é comparável ao amor que eles conser-

vam por estas relíquias. E engana-se quem pensa que a tradição se dá só por parte dos homens da família – Andreas pai e Andreas filho. As mulheres – a mãe Daniela e a filha Ana Carolina – também levam a sério esta tradição. Andreas filho lembra um fato curioso que envolveu sua mãe, Daniela: “Ela sempre teve carro, tirou carteira com 16 anos, na Argentina, e já fazia algum tempo que estava ‘a pé’. Um dia, do nada, ela chegou em casa com um Chevetão 77, modelo Tubarão. Já minha irmã, tempo atrás, comprou um Puma 1978 para ela”. O próprio Andreas, quando completou 16 anos, em 1998, pediu ao pai um carro de presente. Uma olhada nos classificados de um jornal de Porto Alegre, fez com que truxesse para casa um Ford 1950, que já o acompanha há 11 anos. Entre tantos que a família possuiu, destacam-se –

Carros antigos sempre foram a paixão da família de Andreas Bernauer


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FOTOS: WESLEY SOARES

Bernauer viu parte dos seus sonhos esvaírem-se com a crise financeira que atingiu a Ulbra, em 2008

além do Peugeot 1924 e do Ford 1928 – um Chevrolet 1924, com rodas de madeira; um Mercedes 1953 conversível; um Marmon; e uma Romi-Isetta 1953. Este último, dono de uma beleza excêntrica incomparável, é redondo e tem pouco mais da metade do tamanho de um Fusca. Com formato de um ovo gigante, possui as duas rodas traseiras praticamente juntas, o que dá a impressão de se tratar de um triciclo. A maioria destes carros foi comprado em estado de sucata, e pessoalmente restaurados por seu Andreas, quando ainda morava em São Paulo. Cada carro levava de três a quatro anos para ficar pronto. A família sempre foi muito assediada por colecionadores. No entanto, mantinha-se firme afinal, parte da sua vida estava ali. Mas um acontecimento mexeu com seu Andreas. Após emprestar os carros para se-

rem expostos na Oktoberfest, os teve devolvidos “de forma deplorável, com peças quebradas, urina dentro do tanque de combustível, e até mesmo preservativos usados dentro dos carros”, lamenta ele. Na semana seguinte, após contato da Ulbra, a família resolveu, de coração partido, vender parte da “frota” para a universidade. Os Bernauer ficaram apenas com a Romi-Isetta 53 e o inseparável Fordão 28, além do Ford 1950, do filho Andreas. Seu Andreas acreditava não haver lugar mais seguro e adequado para suas relíquias do que o museu da Ulbra. Duplo engano. Além do arrependimento pela venda impulsiva, a constatação de que seus carros não estavam tão protegidos quanto ele pensava. Devido à grande crise financeira pela qual a Ulbra passou em 2008, todos os carros da universidade fo-

ram a leilão. Não apenas os carros, que outrora foram dos Bernauer, mas suas paixões e seus sonhos. Um pouco de suas vidas e muito das suas histórias de mais de meio século sendo negociados friamente. Esta família paulista, que se mudou para Santa Cruz do Sul na década de 90, simboliza o fascínio de milhares de pessoas, para as quais não há avanço que supra a identidade e a história destes veículos. Um GPS de alta precisão ou uma câmera que ajude a estacionar jamais substituirá o glamour destas máquinas raras. A tecnologia crescente até ajudou o homem moderno, mas o automóvel continua sobre quatro rodas, como no princípio dessa história. E sobre essas quatro rodas se carrega muito mais do que pessoas e bagagem. Sobre essas quatro rodas viajam sonhos, fantasias e histórias de vida.


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criança, que no passado olhava admirada para a beleza das pérolas do colar de sua mãe, hoje cresceu, virou mulher e complementa seu look com o mesmo acessório. Talvez a peça não seja exatamente a mesma, mas a inspiração, com certeza, é. Se isso ocorre, é porque os anos passam, novas tendências surgem, e, de repente, aquilo que esteve em evidência há muito tempo volta a brilhar. É a moda retrô. Um estilo que relança novas peças com desenhos e formas iguais ou parecidas com as de antigamente.

à moda antiga

Luana Rodrigues

Fotos: Luana Rodrigues Modelo: Fabiane Lamaison Assist. de Produção: Tatiane Lawisch Agradecimento: Provisório Bar e Botequim


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O retrô é uma tendência que nunca sai de cena. Usar peças novas inspiradas em criações antigas é a definição perfeita para o estilo. Quando se fala de moda não há limites para a criatividade e a ousadia

ser usadas até mesmo no trabalho. Já as mais esportivas dão um toque especial aos looks casuais como o jeans + t-shirt. Outro elemento que não pode ficar de fora do universo retrô é o “pretinho básico”. Ele é um coringa da moda e, com certeza, não há quem não tenha pelo menos um vestido preto no armário. Foi Chanel, na década de 20, que transformou a peça (antes usada apenas em funerais) em uma roupa de gala. Já quem viveu na década de 70, hoje pode se inspirar no estilo “hippie chic”. Cabelos ondulados, flores, vestidos esvoaçantes, lenços, calças largas, colares compridos, batas e máxi-óculos são alguns dos principais itens. A moda é realmente um ciclo e não há nada melhor do que saber aproveitar o sublime de cada época e adaptá-lo ao seu estilo. Muita coisa retrô se consegue em brechós, com preços acessíveis, ou até mesmo no guarda-roupa da avó ou da mãe. É só garimpar.

MARIA CLARA REIS

A moda retrô encontra espaço no século 21 basicamente porque, de certa forma, já não existe mais o que é certo ou errado. Tudo passa a ser apenas uma questão de estilo e preferências nos dias que se seguem. Mas, independente do gosto pessoal, sempre haverá pelo menos um item no seu guarda roupa que foi inspirado em algum clássico da moda. As cinturas marcadas, os cortes retos, as pantalonas, sapatilhas e casaquetos são ótimos exemplos para demonstrar que o retrô está com tudo em 2009. Até pouco tempo, as cinturas das saias e, principalmente, das calças, eram super baixas. Aos poucos, esta tendência foi saindo de cena e hoje é possível ficar muito mais elegante ao valorizar os detalhes das peças com o cós mais alto. Já para as fãs de sapatos baixos, a volta das sapatilhas foi um presente. Confortáveis e bonitas, elas são o xodó das mulheres. Os modelos são os mais diversos possíveis. As peças mais sofisticadas podem


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Velhas companheiras No Centro de Santa Cruz do Sul, uma casa quase centenária ameaça desabar. Em seu interior, uma única moradora, de 99 anos. Sua vida se confunde com a história do velho casarão

ÁLVARO NEUWALD

Álvaro Neuwald

Q

uem passa pelo número 1734 da rua Marechal Floriano, em Santa Cruz do Sul, talvez não note a presença de uma velha casa que, com mais de 94 anos, apresenta rachaduras, telhas e janelas quebradas. Entretanto, para aqueles que a observam com um pouco de atenção, mostra a imponência típica dos velhos casarões do início do século passado. Embora a estrutura esteja praticamente condenada, a dona não permite que reformas sejam feitas. Tudo em nome das lembranças, das histórias e dos mistérios que ela e o casarão guardam dos velhos tempos, em uma sintonia que demonstra uma relação de profunda amizade e cumplicidade.

Na frente da casa, um pequeno muro de pouco mais de um metro de altura, seguido de uma cerca viva, ajudam a esconder a fachada. As paredes estão quase sem tinta. Parte do telhado já ruiu, mas os cômodos sob ele já estão em desuso por causa da vegetação que invadiu o local. As outras partes do telhado apresentam problemas. Quando chove, a água escorre pelas paredes e invade os ambientes internos, causando incontáveis manchas e o apodre-

cimento do assoalho. As janelas estão quase caindo, algumas com partes quebradas e outras remendadas com fita adesiva. Pode-se pensar que se trata de uma casa abandonada... Mas, não! A única moradora desta quase tapera, do alto de seus 99 anos de idade, tem, como rotina


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diária, o hábito de passar as horas sentadas à janela do quarto observando o movimento na rua. A senhora Regina Wolf tem problemas de audição, visão e aparência frágil. Mas quando questionada se não gostaria de morar em outra casa, responde com força quase juvenil: “Árvore velha, depois de arrancada, não brota mais. A casa é minha e não saio daqui”. De certa forma, é fácil entender o amor que esta senhora tem pela casa. Seus pais se mudaram para o local em 1915, quando ela tinha cinco anos de idade. Uma parte já havia sido construída pelo antigo morador, mas como era muito pequena para comportar o casal com os filhos, quatro cômodos foram construídos: dois quartos, cozinha e sala. Quase cem anos depois, dona Regina só ficou um mês longe dalí, quando precisou ir para o interior por recomendação médica. São 94 anos de histórias. Da infância, restam apenas lembranças de quando

corria por entre as árvores. Brincava com um amigo – que até hoje mora em frente – nos trilhos do trem que passavam a pouco mais de cem metros da casa. Mais tarde, na juventude, casou-se com um rapaz que, depois se tornaria fotógrafo do exército. Depois de viúva, dona Regina se viu sozinha, já que não teve filhos. Os pais também já tinham morrido e os irmãos já eram casados. O jeito foi tocar a vida dedicando-se ao trabalho. Na Litografia Minerva, empresa que fabricava rótulos, dona Regina atuava no setor financeiro. Ali, trabalhou até se aposentar. A partir daí, dona Regina seguiu a rotina de acordar pela manhã, passar o dia cuidando da casa - sua velha companheira - fazer os serviços domésticos, dormir por volta das 19 horas e ver a velhice apresentar seus infortúnios. Após perder parte da visão e da audição, ficou impossível perceber que a ruína foi tomando conta do velho lar.

Atualmente, Dona Regina conta com uma “cuidadora geriátrica”. Belami Duarte, 57 anos, também faz os serviços domésticos e pequenos reparos na casa. Mas os consertos são feitos de maneira que a senhora não perceba. Caso contrário, fica furiosa. “Há alguns dias fui consertar uma janela que estava caindo e, quando ela percebeu o barulho do martelo, me xingou. Como eles eram bem de vida antigamente, e a casa era muito bonita, ela acredita que a casa seja um palácio. Não percebe que a casa está quase caindo”, comenta Belami. Depois de quase um século de companheirismo entre dona Regina e sua casa, o que resta dos velhos tempos são os objetos que ainda enfeitam o interior e as lembranças vividas no local que, de tão enraizadas na memória da idosa, tornaram-se parte inseparável desta. Afinal, “árvore velha, depois de arrancada, não brota mais...”.

Uma volta ao passado Ao se abrir a porta e entrar na casa de dona Regina Wolf, a sensação é de estar voltando no tempo. É um mergulho no passado. Atrás da porta, contra a parede, um cabideiro, para segurar os casacos dos visitantes, com espelho e porta guarda-chuva. Logo na entrada, poltronas de mola com forração de napa e um divã são a primeira visão que se tem da sala. Mais adiante, uma cristaleira com copos de cristal e pratos de porcelana. No mesmo cômodo, um relógio de parede - todo feito em madeira - guarda no balanço de seu pêndulo, histórias que o tempo já tratou de apagar.

ÁLVARO NEUWALD

Nos quartos, as camas são de molas e os guarda-roupas, de madeira de lei, guardam espelhos de cristal no lado interno das portas. Na cozinha o que dá um ar de modernidade é a geladeira. A cuba da pia é de louça e o fogão da década de 40. Já as cadeiras, são de madeira com uma espécie de palha trançada. A casa é um museu, que guarda em seus objetos, seus detalhes e defeitos, a nostalgia de um tempo que já se foi, mas que ainda segue vivo na memória de Dona Regina.


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Em busca do

Aline Silva

perfeito

Aparelhos eletrônicos, giletes de lâminas afiadas, cremes de barbear e loções pós-barba. Esses são alguns dos “apetrechos” do que facilitam a vida do homem moderno. Mesmo assim, ainda hoje existem aqueles que preferem um barbear de aparência mais lisa, feito a navalha e pelas mãos de alguém experiente – o barbeiro FOTOS: TATIANE LAWISCH

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pesar de menos procurados hoje em dia, os barbeiros transpassam as barreiras do tempo e se mantêm firmes em suas profissões. Com clientes fixos e sorriso aberto para quem chegar. Segundo Aimoré Firpo, um dos mais “jovens” barbeiros entrevistados, está na profissão há 45 anos, cada cliente é especial, a barba de cada um é diferente e merece um tratamento diferenciado. Não é à toa que ao entrar no Salão Lord, você ouve boa música e se depara com um sujeito muito bem vestido e pronto para lhe atender. Firpo se diz especialista em fazer barba, faz massagem no rosto de seus clientes e capricha no acabamento. “Esse é o diferencial”, diz o amigo e cliente, Moacir Rocha, de 52 anos. Garante que uma barba feita no barbeiro tem outro acabamento e deixa o recado, de que os jovens ainda não se deram conta do quanto isso faz bem para saúde e para si próprio, já que a aparência fica muito melhor. Essa opinião de Rocha é compartilhada por Eurico Wankler, de 53 anos, que diz ficar mais apresentável. Ele começou a frequentar barbearias ainda jovem, usava aparelho elétrico, mas o acabamento era ruim e o uso das lâminas lhe causavam alergia no rosto. Praticamente todos os dias se dirige ao Salão Ideal, para que seu amigo e barbeiro Armindo Haas apare seus pelos. Haas atua no mesmo lugar há 46 anos e mantêm clientes desde a época em que era um simples aprendiz.

Nestélio em seu primeiro salão


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Diariamente recebe clientes e garante: “Nunca marco horário, quem chega eu vou atendendo”. Mostra com orgulho seus certificados pendurados na parede e diz que foi nessa profissão que sustentou a família e garantiu os estudos dos filhos. Ambos estão localizados no centro da cidade, gostam de conversar e compartilhar suas histórias. Firpo mantem um salão mais moderno, atualizado, enquanto Haas, permanece com seus móveis de madeira, sofá de couro marrom, fazendo com que, quem entre em seu recinto relembre as décadas passadas. Essa mesma característica possui o Salão Becker onde atua Isidoro Becker, mais conhecido como Beckinha. O Salão Becker existe há 51 anos, desde que Beckinha deixou o serviço da roça e veio para cidade. Hoje diz que faz pouca barba e acredita que as pessoas têm menos tempo para ficar no barbeiro. Diz também, que as lâminas melhoraram muito e faz com que as pessoas prefiram fazer em casa. Quando questionado, então, se a profissão tende a terminar, responde sorrindo: “Terminar não termina, sempre tem os amigos da gente. Ser barbeiro é a melhor coisa que tem. Eu acordo todo dia só para vir trabalhar”. Conta

que por ser tão apaixonado pelo que faz, acabou influenciando seu casal de filhos, ambos atuam no ramo de cabeleireiros. Outro apaixonado pela profissão é Nestélio Calmo Kist, que dos 75 anos de idade, 64 são dedicados ao corte de cabelo e feitura de barbas. Ainda jovem aprendeu com o pai e aos 12 anos de idade cortava seu primeiro cabelo. Nunca parou. Já perdeu dois salões devido a incêndios, mas não deixou de trabalhar. Até quando serviu o exército cortou cabelos. Barba diz que faz muito pouco e acredita que os avanços tecnológicos interferem na decisão de se fazer a barba no barbeiro. Kist diz não pensar em parar, não quer ficar em casa. “Enquanto dá para levar eu venho trabalhar, se parar vou ficar doente.” Cada um, ao seu modo, registrou as experiências e prazeres de uma vida inteira dedicada a mesma profissão. Que apesar da diminuição pela procura, não se extinguiu. É retrô para quem não conhece o que é, pois, acredite, um barbear feito pelo barbeiro tem valor incomparável. A aparência é visivelmente melhor do que as mais poderosas lâminas atuais são capazes de fazer.

Isidoro Becker

No salão de... Aimoré Firpo e o cliente Moacir Rocha

Haas – tem bastante jornais e revistas. E também balinhas para quem espera. Beckinha – a cadeira chama a atenção por sua beleza antiga e exótica. Ele comprou já usada há mais de 50 anos. Firpo – tudo é bem iluminado com música ambiente e você se sente sendo atendido por um verdadeiro Lord. Kist – tem amplo espaço e um mural de fotos que traz sua retrospectiva, com fotos da família, clientes e amigos.


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Emanuelle Dal-Ri

Cigarros de palha são encarados por algumas pessoas antes como um ritual que um vício; é o caso de Otacílio Pereira, 65 de seus 100 anos dedicados à verdadeira arte de fumar

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s outros fumam e depois jogam fora como outro cigarro qualquer, sem nenhuma poética. Mas para o centenário Otacílio Pereira, o “pito” faz parte da personalidade. É um adorno e, como tal, enfia a palha no bolso da velha camisa surrada pelos anos de uso e pelas inúmeras queimadas das brasas que caem do próprio palheiro. Deixa a palha assim, à mostra, como a ponta de um lenço. É um passatempo. Fica horas e horas no galpão em busca da palha mais sedosa da última colheita. É um livro. Senta-se na cadeira em frente à casa, pés esparramados, a pentear, com calma, as lourinhas. Com um pequeno canivete, corta a palha em tamanhos iguais e a empilha, cada uma, com paciência desumana. Às vezes distante deste planeta, tragueando, Otacílio retira ensinamentos do livro filofósico coberto por palhas, tal como se tirasse conclusões à medida em que a fumaça sobe ao sabor do vento. Ele é simples, jeito humilde, pouca fala, o verdadeiro estereótipo do homem campeiro por essência. O palheiro é feito manualmente, pouco ou nada químico, pelo menos para o aposentado. Enquanto o relógio retira-lhe a coordenação motora, o palheiro devolve, pelo menos em parte, um certo tempo para a pura reflexão. E realmente o fumo parece balbucear um diálogo sem nenhum verbo. São apenas palavras imaginárias, porém eficazes. Na tarefa que se repete diversas vezes ao dia, ele possui um ritual que jamais abandona, pelo menos há 65 anos dos 100 que tem: tira a palha do milho enrrugado, lambe-a, pica o fumo e enrola o cigarro pouco a pouco, sem pressa. Seu Otacílio não faz nada precipitadamente, não pelo menos até a primeira e encorpada tragueada no cigarro de palha, em cuja ponta sempre restam uns pedaços de fumo, os quais ficam incomodando na ponta da língua, fato que o força a cuspir, vez por outra, no chão. Como a casa é sua, ninguém se queixa.


Este velho homem parece ter entrado em um túnel do tempo. Voltou do passado, quando o vício era talvez menor do que a qualidade da palha e do fumo, pois na época ainda havia preocupação com o belo da arte de fumar. O presente se manifesta num produto cheio de substâncias tóxicas para o organismo, recriminado em locais públicos, sem a emoção do feitio, pois tudo já foi preparado. “Eu nunca respondo assim, de supetão, uma pergunta. Prefiro pensar um pouquinho, sempre com o palheiro na mão. Não quero nada feito”, disse.

Palheiro com a marca de Sobradinho Palheiro é a designação dada ao cigarro fabricado artesanalmente – manualmente – composto por fumo de corda picado e enrolado em palha de milho. Conhecido e difundido sobretudo entre gaúchos e mineiros, o

Ao cigarro Cigarro, minhas delícias, Quem de ti não gostarás? Depois do café, ou chá, Há nada mais saboroso Que um cigarro de Campinas De fino fumo cheiroso? Cigarro, quanto és ditoso! Já reinas em todo mundo, E esse teu vapor jucundo Por toda parte esvoaça. Até as moças bonitas Já te fumam por chalaça!... És do bronco sertanejo Infalível companheiro; E ao cansado caminheiro Tu és no pouso o regalo; Em sua rede deitado Tu sabes adormentá-lo. Tu não fazes distinção, És do plebeu e do nobre, És do rico e és do pobre, És da roça e da cidade. Em toda a extensão professas O direito de igualdade. (Fragmentos do poema de Bernardo Guimarães, Rio de Janeiro, 1864)

palheiro pode ser encontrado, inclusive, em caixinhas. Há mais de 20 anos, em Palmeira das Missões, o sobradinhense Renato Dalberto registrou e colocou no mercado a marca Crioulo. A ideia deu tão certo que o produto está disponível em tabacarias do Rio de Janeiro e de São Paulo. A principal matéria prima do cigarro de palha, o fumo de corda, é plantado por raros agricultores de Ibarama, Sobradinho e Segredo, no Vale do Rio Pardo. Os apaixonados pelo palheiro dizem que o fumo em corda não faz tanto mal, mas isso dá para contestar. O que não se pode negar, evidentemente, é que esse produto virou artigo cool nas rodas de moderninhos e descolados por todo o Brasil.

FOTOS: EMANUELLE DAL-RI

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Expediente UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul – RS CEP 96815-900 Curso de Comunicação Social – Jornalismo Bloco 15 – Sala 1506 Telefone: (51) 3717-7383 Coordenadora do curso: Ângela Felippi Impressão: Graphoset Tiragem: 1000 exemplares

MARIA CLARA REIS

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Editor-chefe Demétrio de Azeredo Soster

Direção de Arte e Logotipo Henrique Scherer

Editora Emanuelle Dal-Ri

Ilustração de Capa Mariana Pellegrini

Subeditor Wesley Soares

Publicidade CACO Henrique Scherer

Produção Aline Silva Tiago Garcia Edição de Fotografia Luana Rodrigues Tatiane Lawisch Diagramação Ana Paula de Andrade

Fotografia e Ilustração Maria Clara Reis Edição de Imagens Larissa Griguc Revisão Álvaro Neuwald Nairo Orlandi

Reportagem Aline Silva Álvaro Neuwald Emanuelle Dal-Ri Luana Rodrigues Maria Clara Reis Nairo Orlandi Tatiane Lawisch Wesley Soares Fotonovela Roteiro – Emanuelle Dal-Ri Direção – Maria Clara Reis Produção – Álvaro Neuwald, Tatiane Lawisch e Luís Habekost Edição de Imagens – Larissa Griguc Atores – Ana Paula de An-

drade, Luana Rodrigues, Tatiane Lawisch, Tiago Garcia e Wesley Soares Agradecimento Especial Jenifer Ana Limberger Clélia Limberger Henrique Scherer Blog blogdounicom.blogspot.com Este jornal foi produzido pelos alunos da disciplina de Produção em Mídia Impressa, coordenada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster, no segundo semestre de 2009.


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