2 PEDRO Introdução Plano do livro Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
INTRODUÇÃO I. AUTORIA A questão da autoria de 2Pe é um dos problemas difíceis da crítica do Novo Testamento. Baseando-se na demora de sua aceitação definitiva como livro canônico e em certas características de fraseologia e estilo, alegam que esta epístola não foi escrita por Pedro. É diminuta a evidência externa em abono da autoria petrina. O primeiro escritor a fazer-lhe menção é Orígenes (cerca de 240 A. D.), que fala das duas Epístolas de Pedro e em certo lugar cita 2Pe 1.4, dando-lhe a denominação de Escritura. Esta epístola não foi reconhecida como canônica até o Concílio de Cartago em 397. Eusébio, bispo de Samaria, tinha alguma dúvida a seu respeito e colocava-a entre os livros discutidos. Jerônimo, por sua vez, incluiu-a em sua Vulgata, se bem que com alguma hesitação, em vista de seu estilo diferir de 1 Pedro. Venceu esta dificuldade na suposição de que o apóstolo empregou dois diferentes amanuenses ou intérpretes. Outros eruditos como Agostinho, Epifânio, Rufino e Cirilo aceitaram-na como autêntica. Ao tempo da Reforma, Erasmo rejeitou-a, porém Lutero não alimentava dúvida quanto à sua genuinidade. Calvino vacilou um pouco em aceitá-la por causa de aparentes discrepâncias com 1 Pedro. A opinião dos eruditos de hoje está muito dividida a respeito. Salmon, Zahn, Plummer e Bigg argumentam a favor da autoria petrina, enquanto Chase e Mayor, raciocinando com base na literatura antiga e na evidência interna da própria epístola, chegam à conclusão de que 2 Pedro não é um documento apostólico. No seu entender, não foi certamente
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 2 escrita no primeiro século de nosso Senhor, mas provavelmente lá pelos meados do segundo; portanto, concluem, não foi Pedro quem a escreveu. Parece que, com tais alegações, poder-se-ia negar a autoria petrina, mas não se pode dar muita importância a argumento que se baseia em literatura antiga. Porquanto, como Salmon e sua escola fazem notar, Irineu, Justino Mártir, o "Pastor de Hermas", a "Didaquê" e Clemente de Roma, todos estavam familiarizados com a epístola e lhe fizeram alusões em seus escritos. Tal evidência em favor da autoria petrina vale tanto quanto a produzida por Chase e seus adeptos em contrário. A aceitação geral deste documento, depois de plenamente discutidas e pesadas suas evidências pelo Concílio de Cartago, é outro detalhe importante que deve ser levado em consideração. Quando passamos a examinar a evidência interna de autoria, antes de outra coisa qualquer encontramos a declaração clara de 1.1. O autor denomina-se Simão Pedro, declarando ser apóstolo de Jesus Cristo. Adiante, em 3.1, afirma que já escreveu uma epístola àqueles a quem se está dirigindo agora. Outra vez, em 1.16-18, declara que viu Jesus Cristo no monte da Transfiguração. Mostra também conhecer as Epístolas de Paulo (3.15 e segs.). Das citações que faz das Escrituras do Velho Testamento deduzimos que se trata de um judeu. Já é velho e espera em breve morrer (1.13 e segs.). Conhece bem a condição espiritual dos seus leitores (1.4,12; 3.14,17), tem intimidade com eles, chamando-os "amados" (3.1,8,14,17). Demais disto, se bem que sobre o fundamento de dessemelhança entre as duas epístolas no que tange ao estilo, dicção e, até certo ponto, ao conteúdo de ambas, João Calvino e outros hesitaram em aceitá-la, não podemos ignorar o fato de que existe acentuada similaridade entre os dois escritos nesses particulares. Por exemplo, palavras e frases raramente encontradas em outros escritos são comuns a ambas as epístolas, como "precioso" (1Pe 1.7-19; 2Pe 1.1); "virtudes" (1Pe 2.9; 2Pe 1.3; esta encontrada alhures somente em Fp 4.8); "supre" (1Pe 4.11; 2Pe 1.3); "amor fraternal" (1Pe 1.22; 2Pe 1.7); "observando" (1Pe 2.12;
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 3 3.2; 2Pe 1.16; em 1 Pedro está na forma verbal, e em 2 Pedro está na forma substantiva, "testemunhas oculares"); "sem defeito e sem mácula" (1Pe 1.19; 2Pe 3.14). Além disso há uma similaridade de ensino que deve ser reconhecida. Notem-se, por exemplo, as referências ao "último tempo" (1Pe 1.5; 4.7; 2Pe 3.3,10); "profecia" (1Pe 1.10-12; 2Pe 1.19 e segs., 3.2); o dilúvio (1Pe 3.20; 2Pe 2.5; 3.6); e a liberdade cristã (1Pe 2.16; 2Pe 2.19). Outrossim, o escritor desta epístola usa palavras que são empregadas quase que exclusivamente por Pedro nos Atos dos Apóstolos. Seguem exemplos: "obtiveram" (1.1; At 1.17); "piedade" (1.7; At 3.12); "iníquas" (2.8; At 2.23); "dia do Senhor" (3.10; At 2.20); "salário de injustiça" (2.13-15; At 1.18). Tudo isto seria uma indicação de que o orador em Atos é o escritor desta epístola. Mais ainda: o escritor apela para certos fatos da vida de Pedro que são quase biográficos. Por exemplo, além do que afirma em 1.16-18, diz "estou prestes a deixar o meu tabernáculo, como... nosso Senhor Jesus Cristo me revelou" (1.14). Sem dúvida faz referência a Jo 13.36; 21.18 e segs. Indiretamente declara-se inspirado, sem o que é impossível haver verdadeira profecia (1.19-21) Do princípio ao fim seu testemunho é pessoal, enfático e direto; o teor desta carta assemelha-se muito à maneira clara como Pedro falou de si mesmo no Concílio de Jerusalém (At 15). Muito se tem discutido sobre a semelhança entre esta epístola e a de Judas, sendo que esta parece citar 2 Pedro. Seria avançar demais dizer que já está definitivamente resolvido qual das duas epístolas surgiu primeiro. Muitos escritores recentes ainda afirmam que a de Judas foi escrita primeiro, enquanto outros dizem que foi a de Pedro. Por exemplo, Zahn argumenta vigorosamente a favor de ser 1 Pedro mais antiga e que Judas faz citação dela. A diferença real entre as duas é a que existe entre vaticínio e realização. Pedro vaticina o advento dos falsos mestres (2.1); os principais verbos que emprega estão no futuro (cf. 2.1-3,12,13). Usa o presente ao descrever o caráter e o procedimento dos libertinos (2.17 e
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 4 segs.), mas a presença e o ensino desastroso deles estão colocados no futuro (2.13-14). Judas, por seu lado, refere esses mesmos corrutores como já presentes no meio do povo de Deus e já realizando sua obra nefasta. Judas recomenda com instância a seus leitores que se lembrem das palavras que os apóstolos de Cristo falaram anteriormente, e passa a citar 2Pe 3.3 quase que nas mesmas palavras. Pedro escreve do que se está avizinhando; Judas, do que já chegou e, fazendo isso, desenvolve o que Pedro escreveu. A cronologia igualmente dá prioridade a Pedro. Este morreu antes da queda de Jerusalém (70 A. D.), ao passo que a epístola de Judas, segundo se aceita geralmente, foi escrita depois desse acontecimento, provavelmente em 75-80 A. D. Isto é de alguma importância pelo fato de ficar assim evidenciado que Judas confirma 2 Pedro como documento apostólico e igualmente canônico, visto reconhecer Pedro como apóstolo, dotado do espírito profético. II. OCASIÃO E DATA Resumindo, vê-se de 1.14 que a epístola foi escrita não muito antes do martírio desse apóstolo; a data, pois, seria mais ou menos 66 ou 67 A. D. Tivera notícias acerca da obra dos falsos mestres na Igreja e então exorta os cristãos a perseverarem na verdade, ainda que rodeados de erros e infidelidade. Adverte os falsos mestres sobre o crime que estão cometendo e o perigo que daí decorre, apontando para a segunda vinda do Senhor que para eles não seria ocasião de alegria, senão de juízo. Os cristãos, por outro lado, devem viver à luz dessa vinda; insta com eles para que se santifiquem e sejam diligentes, ao mesmo tempo humildes, como convém aos que esperam pela aparição do Senhor Jesus. PLANO DO LIVRO I. SAUDAÇÃO - 1.1-2 II. O PROGRESSO DOS CRISTÃOS - 1.3-21 III. FALSOS MESTRES - 2.1-22
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) IV. A ESPERANÇA DOS CRISTÃOS - 3.1-18
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COMENTÁRIO
2 Pedro 1 I. SAUDAÇÃO - 1.1-2 O apóstolo cumprimenta seus companheiros cristãos, mencionando primeiro seu nome antigo Simão, seguido do outro que o Senhor lhe deu, Pedro. Denomina-se servo, ou escravo, dando a entender que pertence de modo absoluto ao Senhor, a quem obedece, e apóstolo de Jesus Cristo. Apóstolo era literalmente aquele que era comissionado (veja-se 1Pe 1.1). Dirige-se aos leitores, não como em 1 Pedro a estrangeiros eleitos, mas como aqueles que, diz ele, conosco obtiveram fé igualmente preciosa. Sua fé é de igual quilate, donde ser "igualmente preciosa". Gr. isotimon, de igual valor, gozando da mesma honra (cf. At 15.7-11). A posse comum de uma fé preciosa é o laço que os une. Tal fé recebe-se independentemente de mérito do seu recipiente e unicamente na base da justiça de Deus. Veja-se Rm 3.20-26 onde este termo está plenamente explicado. A ARA sugere que a referência aqui é unicamente a Deus o Filho. No verso 2 não há tal ambigüidade, parecendo melhor ver no v. 1 também uma referência a Deus o Pai, tanto quanto a nosso Salvador Jesus Cristo. A saudação Graça e paz vos sejam multiplicadas (2) está vazada numa fórmula exclusiva de Pedro e Judas. Em 1 Pedro os crentes podem contar que Deus lhes multiplicará graça e paz nos seus sofrimentos. Assim, em 2 Pedro, podem igualmente estar certos de que receberão graça suficiente e abundância de paz para enfrentarem a apostasia que já começa a operar (veja-se 1Pe 1.2). Tais bênçãos, contudo, são concedidas mediante o conhecimento que tenham de Deus de Jesus Cristo nosso Senhor.
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) II. O PROGRESSO DOS CRISTÃOS - 1.3-21
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Todas as coisas que conduzem à vida e à piedade (3). Deus é a fonte de todo o crescimento espiritual. A vida aí mencionada é a nova vida em Cristo e piedade é a expressão dessa vida espiritual. O divino poder é a fonte dos dons divinos que advêm pelo mesmo canal que traz a graça e a paz de 1.2, a saber, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude. Cf. 1Pe 2.9. A "glória" de Cristo era a revelação que Ele fez do Pai (Jo 1.14). Pensam alguns que a "virtude" de Cristo aí não significa Sua excelência moral (seria desnecessário afirmar isso), antes quer dizer Sua suprema energia e poder. Ao fim de contas, parece preferível a interpretação que dá o termo como significando Sua suprema pureza e santidade, e considera "glória e virtude" em correspondência com "vida e piedade" da cláusula precedente, expressando ao mesmo tempo Seu "divino poder". A palavra promessas (4) é peculiar de 2 Pedro, ocorrendo aqui e em 3.13, onde se refere aos "novos céus e nova terra, nos quais habita justiça". Um dos erros prevalecentes então era uma atitude de ceticismo para com a segunda vinda de nosso Senhor; refutá-lo foi uma das principais finalidades desta epístola. Pedro aqui aborda o assunto preliminarmente, declarando que os dons de Cristo relacionam-se com o futuro, tanto quanto com o presente. Suas promessas são preciosas porque não consistem em palavras vazias; são mui grandes porque apontam para a perfeição e consumação a que a nossa presente vida se está encaminhando. Co-participantes da natureza divina (4). O objetivo das promessas é trazer os homens de volta para Deus, é restaurar neles a imagem de Deus que se perdeu. Quanto à corrupção das paixões que há no mundo vejam-se Tg 1.14 e 1Pe 2.11. Deus tem feito tudo quanto é necessário implantando a natureza divina, mas o cultivo da nova vida, assim recebida, deve ser providenciado por quem a recebeu, na dependência do poder do Espírito
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 7 Santo. Donde exorta, o apóstolo, a que exerçam toda a diligência e acrescentem (gr. epichoregein), isto é, que supram ou ministrem sempre mais. O sentido da palavra é prestar o serviço esperado em virtude da posição ocupada. Associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o conhecimento (5). Cada qualidade é considerada uma espécie de solo ou atmosfera em que se nutre a qualidade seguinte. A palavra aqui traduzida conhecimento é gnosis, significando que é passível de desenvolvimento, não epignosis, como nos vers. 2 e 3, onde o sentido é conhecimento pleno. Temperança (6), isto é, domínio próprio (gr. engkrateia, o poder de o indivíduo conter-se). Paciência; isto é, perseverança. Piedade indica verdadeira reverência para com Deus (cf. 1.3-3.11). Fraternidade (7). Veja-se 1Pe 1.22. O verdadeiro distintivo do discípulo cristão é o amor recíproco (Jo 13.35). A existência abundante destas coisas, as sete graças mencionadas, levam o crente a frutuosa atividade em Cristo. Inativos (8); isto é, "ociosos". Abundando tais graças, Cristo é conhecido mais e mais plenamente. Por outro lado, a ausência destas coisas é índice de cegueira espiritual (9). Vendo só o que está perto, de vista curta com relação às coisas celestiais, pelo hábito de fixar os olhos nas coisas do tempo e dos sentidos (cf. 2Co 4.18). Um sinal de a pessoa ter chegado a tal estado é esquecer-se da purificação dos seus pecados de outrora, isto é, o perdão e a purificação que marcaram o início da vida cristã. No verso 10 o apóstolo torna a exortar à diligência, por causa das solenes possibilidades indicadas nos versos 8 e 9. Procurai confirmar a vossa vocação e eleição; cf. 1Pe 1.2, onde o lado divino dessa eleição vem sublinhado. Aqui se dá ênfase à correspondência humana a essa divina vocação. A eleição divina realiza-se mediante a resposta do homem à revelação de Deus. O resultado dessa diligência vem a seguir.
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 8 Não tropeçareis em tempo algum (10); cf. Jd 24. Ser-vos-á amplamente suprida (11). No verso 5 disse-lhes o que deviam "acrescentar" (associar). Aqui lhes diz o que é que, se assim fizerem, lhes será ricamente suprido. Deus nada poupará no intuito de aperfeiçoar suas vidas e coroá-las de bênção. As exortações dos versos 3-11 são agora confirmadas nos vv 12-18, com um apelo pessoal e uma consideração dos grandes e indiscutíveis fatos como vêm abonados pelo testemunho apostólico da Transfiguração e pela palavra profética. É claro que uma das idéias dominantes nesta passagem é a lembrança. Seus leitores conhecem a verdade, mas para que não a admitam como hipótese e assim ela deixe de exercer influência na vida deles, o apóstolo declara sua intenção de avivar-lhes a memória desses fatos, trazê-los lembrados acerca destas coisas (12) enquanto estiver neste tabernáculo (13). A palavra grega e skenoma, "tenda", usada metaforicamente do corpo como a habitação da alma (cf. 2Co 5.1). A palavra lembra a natureza frágil e temporária do corpo terreno. A comparação do corpo com uma tenda combina com o conceito geral da vida como peregrinação. Pedro fala de sua partida como o deixar, diz ele, o meu tabernáculo (14) e declara que Cristo lhe revelou "por qual gênero de morte ele glorificaria a Deus". É alusão ao vaticínio de nosso Senhor em Jo 21.18. Note-se a tradução: "sabendo que depressa deixarei meu tabernáculo", isto é, o fato dar-se-ia de repente, sem aviso. Está solícito por que eles conservem a lembrança destas verdades depois de sua partida. Partida (15); gr. exodos, "saída", a mesma palavra empregada em a narrativa da Transfiguração (Lc 9.30 e segs.). O apóstolo corrobora sua posição dando seu próprio testemunho acerca da Transfiguração de Cristo. Ele, assim como os outros apóstolos, não seguiam fábulas engenhosamente inventadas (16); gr. mythoi, "mitos" (cf. 1Tm 1.4; 4.7; 2Tm 4.4; Tt 1.14). Alude às falsas acusações assestadas contra eles por seus perseguidores, a saber, de inventarem histórias deliberadamente, como meio de obter dinheiro e influência.
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 9 Pedro assevera que não se ocupou de ficções, da imaginação humana, mas de fatos históricos quando lhes pregou o poder (cf. 1.3) e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo (16), alusão ao segundo advento. Seu espírito retrocede ao passado, para o que testemunhou no monte da Transfiguração. Ele e os outros dois discípulos foram testemunhas oculares da Sua majestade (16). A Transfiguração é considerada aqui como uma antecipação, um penhor da glória a ser revelada "quando o Filho do homem vier em sua glória". Pedro, com Tiago e João, presenciou o testemunho do Pai acerca do Filho, prova esta do poder e autoridade da mensagem do evangelho. A voz procedeu da Glória Excelsa (17); gr. megaloprepes, de megas, grande, e prepo, adequada ou conveniente; donde majestosa, adequada a um grande homem. (Cf. o testemunho em Jo 1.14 "vimos a sua glória"). Segue-se a confirmação profética. O argumento é que a profecia veterotestamentária concernente ao Messias ficou mais firme (19) com a confirmação da Transfiguração, juntamente com os fatos da vida terrena e ministério de Jesus. Essas Escrituras proféticas são como "candeia que brilha em lugar escuro" (19). As trevas mostram a necessidade que se tem da luz divina. No grego a palavra escuro é auchmeros, de auchmos, que significa secura produzida por excessivo calor; donde querer dizer seco, sombrio, escuro, "esquálido". A luz da Escritura revela a sujeira do pecado. Até que o dia clareie, e a estrela da alva nasça (19); é outra alusão à segunda vinda do Senhor (cf. verso 16). A estrela da alva aparece como precursora da aurora e é seguida da gloriosa aparição da plena luz do sol. Nesta conexão o Dr. W Griffith Thomas (The Apostle Peter) sugere que a frase em vossos corações deve ser separada desta outra até que... a estrela da alva nasça, ligando-se ela às palavras fazeis bem em atendê-la; de outro modo a implicação seria que os cristãos estavam naquele tempo em trevas, o que dá uma idéia errônea do que o apóstolo quer dizer.
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 10 O verso 20 alude ao desvirtuamento da Escritura pelos falsos mestres considerados no cap. 2. Interpretação; gr. epilyseos, soltar, desenvolver, elucidar. Particular; gr. idios, lit. "seu próprio". É possível interpretar isto de dois modos. O pensamento pode ser semelhante ao de 1Pe 1.10-12; isto é, os escritores da Escritura não explicavam por si mesmos as palavras inspiradas (sopradas) por Deus, mas o verdadeiro sentido delas era-lhes revelado. Ou pode a referência ser àqueles que receberam as profecias e têm em mente os falsos mestres que Pedro vai referir, os quais propagam suas próprias, particulares e falsas interpretações das Escrituras do Velho Testamento. Ninguém podia produzir uma profecia a seu talante, quando quisesse. A profecia vem da iluminação do Espírito Santo; o homem não pode compreendê-la ou interpretá-la independentemente do auxílio do mesmo Espírito Santo. Esta referência direta ao Espírito Santo é a única desta epístola. Pedro é muito claro relativamente à origem das Escrituras. A profecia foi-lhe entregue assim como é entregue a nós. Note-se a importância do termo grego pheromenoi, sendo "levado" ou "conduzido" pelo Espírito Santo. Paulo faz a importante declaração (2Tm 3.16) de que toda Escritura é "dada por inspiração de Deus" e assim assevera a inspiração desses escritos. Aqui Pedro declara que homens santos de Deus foram movidos pelo Espírito Santo, afirmando assim a inspiração desses escritores. A figura por ele usada é muito vívida. Esses escritores foram levados pelo Espírito Santo, como navio a vela é levado pelo vento. Isto não obriga a concluir que foram instrumentos inconscientes ou meras máquinas; mas quer dizer enfaticamente um controle e um poder "dirigente" muito além do que a vontade humana ou a imaginação possa reivindicar para si. Temos aqui a base não somente da doutrina da inspiração das Escrituras, senão também de serem elas dignas de confiança, ou "infalíveis" (veja-se também 1Pe 1.11 e segs.).
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2 Pedro 2 III. FALSOS MESTRES - 2.1-22 Em volta deste capítulo tem-se travado a controvérsia denominada de Pedro-Judas (ver a Introdução). A semelhança entre os dois documentos é muitíssimo impressionante, cf. especialmente 2Pe 2.2,4,6,11,17; Jd 4-18. Sugere-se que os erros denunciados por ambos os escritores tiveram sua origem em Corinto; que a desordem se espalhava; que Pedro se alarmou e escreveu sua segunda epístola, mandando uma cópia a Judas com o aviso de que o perigo urgia; e que Judas imediatamente despachou uma carta idêntica às igrejas nas quais estava interessado pessoalmente. Comparem-se as notas aqui apresentadas com o comentário acerca de Judas. a) Sinais dos falsos mestres (2.1-3) Começa este capítulo lembrando que na história de Israel muitos falsos mestres surgiram; cf. 1Rs 22; Jr 23; Ez 13; Zc 13.4, etc. Nosso Senhor também advertiu contra falsos mestres; cf. Mt 7.15; 24.11 e segs. Pedro confirma agora tais advertências. Da parte final deste capitulo colhe-se que esses falsos mestres já haviam aparecido e estavam agindo na Igreja (vejam-se os vv. 9-19). A palavra encobertamente faz supor a presença de espião ou traidor. Cf. Gl 2.4 onde o grego pareisaktos se traduz na RV por "entremeteram-se secretamente". No mesmo verso pareiserchomai se traduz por "penetraram ocultamente". Em ambos os casos alude-se aos judaizantes introduzidos pelo partido da circuncisão, para subverterem a fé, cf. também Jd 4 onde pareisiduo sê traduz por "introduziram-se dissimuladamente". O sinal característico de tais falsos mestres é introduzirem heresias destruidoras (1); "seitas de perdição". O termo grego hairesis indica primeiramente "escolha"; daí aquilo que se escolhe, donde opinião, especialmente uma opinião obstinada, que conduz a divisão e a formação de seitas (cf. At 24.5). No Novo Testamento o termo "heresia" não
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 12 implica opinião errônea somente, mas a adoção de falsos padrões de conduta. Uma heresia sempre é uma negação da obra e da autoridade de Cristo. O Senhor que os resgatou (gr. despotes) implica absoluto senhorio e domínio, pensamento este que o apóstolo frisa quando alude a "compra" ou resgate, tal como um senhor que compra um escravo (cf. 1Pe 1.18; 1Co 6.20; 7.23). Note-se que Pedro não alimenta dúvida quanto ao resultado de tal procedimento. Do resto desta epístola vê-se que a heresia em causa era o antigo antinomianismo, isto é, a doutrina de que sob a dispensação do evangelho a lei moral não mais obriga, visto como para a salvação é bastante a fé. O caminho da verdade será desacreditado aos olhos do mundo por causa da frouxidão moral permitida, pregada e praticada pelos falsos mestres e por aqueles que lhes caíram nas malhas, à força de suas palavras fictícias (3), gr. plastois, "moldados" (cf. "plástico"), e pela cobiça (avareza) deles, ou ambição de lucro, com que exploravam os incautos. Sua condenação, porém, era certa. O juízo não tarda (3); sua destruição não dorme, esperando a hora aprazada. Confirma-se isto com três ilustrações tiradas do Velho Testamento. b) A certeza do juízo (2.4-9) 1. A QUEDA DOS ANJOS (2.4) - Se Deus não poupou os anjos que pecaram. Vejam-se as notas sobre Jd 6-8. Não há no Velho Testamento referência específica a uma queda de anjos, a não ser que Gn 6.1-4 se interprete neste sentido. Há contudo freqüentes alusões no livro de Enoque a tal queda, e descrições de sua natureza. Pode ser que tais alusões se derivem de uma interpretação da passagem do Gênesis, segundo a qual "os filhos de Deus" são anjos. Plummer sugere que os falsos mestres podiam ter feito uso desse livro de Enoque na doutrinação perversa que empreendiam, e que Pedro introduz aqui a referência como uma espécie de argumentum ad hominem
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 13 contra eles. Então Judas, reconhecendo a alusão, perfilhou-a e esclareceu-a ainda mais. Precipitou-os no inferno; gr. tartarosas. "Tártaro" era o nome dado ao mais profundo abismo do mundo inferior, e era considerado como muito mais abaixo do Hades, apesar de algumas vezes o termo ter sido usado como sinônimo dele. Entregou-os às cadeias da escuridão (4). Certas autoridades oscilam de opinião entre esta tradução e a da ARA, "abismos de trevas"; isto é, sobre os termos gregos seirais e seirois. Provavelmente o termo "abismos" condiz mais com a idéia de Tártaro, que vem imediatamente antes. Em qualquer caso o sentido é óbvio. Reservando-os para juízo. No livro apocalíptico de Enoque 6-19, vem uma narrativa acerca dos anjos caídos e a relação dele, Enoque, para com tais anjos. As trevas foram-lhe mostradas e lá ele viu "os prisioneiros (os anjos) pendurados, reservados para o juízo eterno, e o aguardando". 2. O DILÚVIO (2.5) - Noé chama-se aí pregador da justiça. No Gênesis declara-se explicitamente que "Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus" (Gn 6.9). Noé a oitava pessoa. É idiotismo grego equivalente a "Noé e mais sete pessoas" (veja-se a ARA). 3. A SUBVERSÃO DE SODOMA E GOMORRA (2.6-9) - Note-se o paralelismo com Lc 17.26-29; veja-se Jd 7. Nenhuma referência Judas faz ao livramento de Ló. É significativo o que Pedro diz deste. Tão justo era que sua alma se afligia diariamente com a vida dissoluta dos insubordinados que o cercavam (7). O verso 9 é a apódose, ou segunda parte da sentença condicional, da qual os versos 4-8 são a prótase, ou primeira parte. A sentença portanto é: "Ora, se Deus não poupou anjos... e não poupou o mundo antigo, mas preservou a Noé... e reduziu a cinzas as cidades de Sodoma e Gomorra... e livrou o justo Ló... (então) o Senhor sabe livrar da provação os piedosos. Ele também sabe "reservar, sob castigo, os injustos" agora; não é apenas referência a castigo em alguma era futura. O verbo está na
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 14 voz passiva, lit. "sendo castigados". Para o dia de juízo; cf. a expressão veterotestamentária "dia de Jeová", o tempo em que Deus Se manifesta para vindicar a justiça. No Novo Testamento a expressão está associada à segunda vinda de Cristo para julgar o mundo. "Os ímpios já sofrem as conseqüências do seu pecado, mas a justa medida do seu castigo serlhes-á infligida logo mais" (Century Bible). c) Outra vez os falsos mestres (2.10-16) Não há no grego nenhuma interrupção de sentido entre os vv. 9 e 10, embora o apóstolo pareça continuar a descrever mais amplamente os falsos mestres. Esses malvados admite-se que existem no meio dos que fizeram profissão de Cristianismo. Seu caráter é apresentado primeiro como licencioso e obstinado. São libertinos, carnais, dados a imundas paixões; também afrontam a autoridade dos poderes civis, isto é, praticam suas abominações de um jeito a escaparem do alcance da letra da lei. O termo governo, ou dominação (gr. kyriotes), é empregado duas vezes por Paulo (Ef 1.21; Cl 1.16) e se traduz por domínio, "senhorio". Igualmente em Jd 8. É possível referir-se a nosso Senhor, porque os falsos mestres desprezavam o Senhorio de Cristo, que era o tema central das mensagens apostólicas. "Atrevidos, obstinados, não receiam difamar as dignidades" (10). Dignidades; gr. doxa, isto é, uma aparência de respeitabilidade imponente, ou manifestação de glória; emprega-se a propósito dos poderes angélicos em virtude do seu estado, a exigir reconhecimento. O verso 11 é obscuro e difícil. O procedimento audacioso dos falsos mestres é contrastado com o comportamento mais decente dos anjos que, ao enfrentarem o mal, não injuriam os seus oponentes. A interpretação torna-se mais clara à luz de Jd 9. Pedro detém-se a referir às características deles. São brutos irracionais, isto é, considera-os meros animais de nascença, feitos para presa e destruição (12). Como os animais caem em armadilhas, levados pela avidez de satisfazer seu apetite, assim a
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 15 auto-satisfação trai esses falsos mestres para a ruína deles (veja-se a Century Bible). Todo o contexto dá a entender um abismo indescritível de degradação e infâmia. Não há linguagem bastante forte que exprima a condenação sarcástica do apóstolo. Adiante fala da temeridade deles. Falta-lhes qualificação espiritual e intelectual para o ofício de mestre que usurparam e por isso falam mal daquilo em que são ignorantes. Sua condenação, porém, é certa. Na sua destruição também hão de ser destruídos (12). O idiotismo grego, mostrando ênfase com a repetição da mesma raiz tanto no substantivo como no verbo é conservado na ARA. Havendo feito mal aos outros, incorrerão na retribuição de ser igualmente alcançados pelo mal. Prossegue e agora trata da sensualidade dos tais. Consideram como prazer a sua luxúria carnal em pleno dia (13). Via-se nisto o auge da auto-satisfação e do pecado (cf. At 2.15; Rm 13.13-14; 1Ts 5.7). O grego tryphe, traduzido aqui "regalar-se é cognato da palavra etriphesate de Tg 5.5, que a ARA traduz "tendes vivido regaladamente". É, pois possível que "em pleno dia", gr. en hemera (i), signifique "num dia de juízo", isto é, numa grande crise da história da Igreja e do mundo. Tais homens também são hipócritas. Quais nódoas e deformidades, eles se regalam nas suas próprias mistificações, enquanto banqueteiam junto convosco (13). Os MSS aqui e em Jd 12 variam entre apatais, "mistificações", e agapais, "festas de amor" (banquetes). Esta última palavra é mais geralmente preferida. As festas de amor a princípio celebravam-se em conjunto com a Ceia do Senhor, mas depois ficaram separadas. Tais festas eram um testemunho de nova fraternidade, nas quais ricos e pobres se reuniam (ver 1Co 11.17-22). O sentido da passagem parece ser que esses falsos mestres, mesmo vivendo em pecado, não hesitavam em freqüentar as festas de amor dos cristãos, e delas fazendo até ocasião de deleite. A sensualidade dos tais refletia-se-lhes nos olhos, e eram incapazes de recuar ante o pecado da satisfação dos seus apetites carnais.
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 16 O abismo do pecado deles sonda-se pela frase engodando almas inconstantes (14). Não apenas procuravam satisfação em horrível iniqüidade, como também aliciavam cristãos fracos e jovens para os imitar. E assim, à ganância de lucro, já mencionada, acrescentavam essa devassidão. O caráter deles é resumido na palavra que o apóstolo ajunta, filhos malditos (cf. "filho da perdição", 2Ts 2.3; "filhos da ira", Ef 2.3): abandonando o reto caminho, se extraviaram, seguindo pelo caminho de Balaão (14-15; cf. Nm 22.23; 31.8,16). Balaão é retratado no Velho Testamento como pessoa que tinha verdadeiro impulso profético, havendo sido comissionado por Deus para transmitir Suas mensagens. Não obstante, permitiu que a ambição do lucro triunfasse sobre esse impulso para sua ruína final. Não podia haver nada melhor a que comparar o pecado particular desses falsos mestres e a condenação a que esse pecado os levava. Balaão permanece nas Escrituras como exemplo da pessoa que conhece o que é certo, mas deliberadamente faz o que é errado, expondo-se assim ao tremendo perigo de brincar com a consciência ou tentar, por assim dizer, negociar com Deus, mas de tal jeito que os lucros da desobediência sejam colhidos sem que se Lhe desobedeça formalmente. Sua tentativa de forçar a vontade de Deus a conformar-se com seus próprios planos e objetivos, causou um desastre a Israel e a ele mesmo levou a um fim calamitoso e desonroso. Nas pegadas de Balaão e na direção de sua ruína os falsos mestres andavam ousadamente. Note-se a repetição do v. 13, amou o prêmio da injustiça, para frisar o paralelismo entre os falsos mestres do Velho Testamento e os do Novo. d) A influência dos falsos mestres (2.17-19) São como fonte sem água (17); isto é, vazios e sem real vitalidade. Como nuvens em tempestade, são instáveis e duvidosos (cf. Ef 4.14, "levados à volta por todo vento de doutrina"), isto é, não têm convicções firmadas em princípios. Sua ruína é predita outra vez. A negridão das
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 17 trevas (17). Declara o apóstolo que o ensino desses hereges é pretensioso e desmoralizante. Consiste em palavras jactanciosas de vaidade (18; Moff. "futilidades arrogantes"), expressão que traz as idéias de exagero, empáfia, fantasia e vacuidade. Tal ensino é desmoralizante pelo fato de encontrar como presas fáceis pessoas que estavam prestes a fugir dos que andam no erro (18) e, apelando às suas paixões latentes, seduzi-los para o caminho da satisfação sensual. A tragédia é que, embora esses falsos mestres proclamem liberdade na esfera do pensamento e da vida prática, abolição de restrições morais e a satisfação dos desejos naturais, estão realmente forjando grilhões para as suas vítimas. São dominados por seus próprios maus desejos e, conseqüentemente, estão em angustiosa escravidão. e) Decaindo da graça (2.20-22) Muito se tem discutido se estes versículos se referem aos falsos mestres ou aos por eles desencaminhados. De um modo geral, parece melhor considerar aplicáveis aos falsos mestres as particularidades do juízo aqui declaradas. Se a referência é a convertidos que foram enganados e traídos, por fraqueza e inexperiência, parece quase incrível que a ruína deles seja desesperadora. Por outra parte, parece apropriado o castigo reservado aos mestres que têm procedido assim, a despeito da verdade e da pureza. Tais homens não foram sempre hipócritas e pretensiosos. Mediante Jesus Cristo conheceram um dia o caminho da justiça (21) e até enveredaram por ele, resultando escaparem das "contaminações do mundo" (20). Agora porém voltaram a ser engodados e enredados. Quanto ao sentido do verso 21, veja-se Hb 6.4-6; 10.26-31,39, e o Apêndice III a Hebreus que trata das passagens admonitórias dessa epístola. Existe algo não só decepcionante como em certo sentido repugnante nessa queda das culminâncias da experiência cristã para os abismos da degradação. É o que vem expresso em dois provérbios, o
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 18 primeiro tirado de Pv 26.11, e o segundo de origem desconhecida. O sentido desses provérbios é que os pecados a que os falsos mestres haviam tornado eram nojentos, e o fato de haverem caído neles mostrava que no íntimo, ainda eram maus. A natureza das tais pessoas, em que o pecado se entranhara tão profundamente, não havia sofrido mudança.
2 Pedro 3 IV. A ESPERANÇA DOS CRISTÃOS 3.1-18 a) A promessa da vinda de nosso Senhor (3.1-7) O capítulo final da epístola começa referindo o propósito que o apóstolo teve em escrever, a saber, despertar com lembranças a vossa mente esclarecida (cf. 1.12), recordar-lhes o ensino dos profetas e dos apóstolos, especialmente os avisos de que nos últimos dias se levantariam homens que ridicularizariam a idéia da segunda vinda do Senhor, lá do céu. Alguns por engano têm pensado que o cap. 3.1 começava outra epístola, a qual editores não conhecidos juntaram à primeira e à segunda epístolas. Esse verso, realmente, reata o pensamento de 1.12-13, e tem o intuito de frisar a explicação do aparecimento dos falsos mestres. Em toda a perniciosa doutrinação deles havia um ponto que era desastroso de maneira especial, a saber, o ceticismo zombeteiro deles com referência à segunda vinda. A dúvida que lançavam sobre isto não apenas ia de encontro ao próprio fundamento do ensino apostólico, mas inevitavelmente produzia um efeito negativo na vida moral da comunidade cristã, incentivando um afrouxamento dos laços morais e uma auto-satisfação pecaminosa. Pedro encara a questão frontalmente, expõe a fraqueza dos argumentos apresentados pelos falsos mestres quanto a retardar o Senhor a Sua vinda e, colocando diante dos leitores o ponto de vista mais correto, exorta a uma maneira de vida conveniente àqueles que aguardam o Senhor lá dos céus. Desperta-lhes a "mente esclarecida" (cf. 1Co 5.8; 2Co 1.12; 2.17; Fp 1.10). O apóstolo dá
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 19 testemunho da realidade da vida espiritual deles. Um antídoto eficaz contra as falsas doutrinas é rememorar o ensino que se recebeu e nele permanecer. O apóstolo apela para as mesmas testemunhas já invocadas em 1.16-21. Ao ensino apostólico, denominado mandamento (2), une uma referência à profecia do Velho Testamento, exortando-os a dar particular atenção a este ensino à luz dos perigos que os cercam. Estes perigos são três: escárnio, vida pervertida e ceticismo (3-4). Tal ceticismo escarnecia de uma expectativa profundamente acariciada, a saber, a volta iminente do Senhor. A realização dessa esperança não se verificara ainda, não parecendo haver resposta pronta à pergunta dos céticos, a argumentarem que desde que os pais dormiram a ordem natural não sofrera solução de continuidade. A referência pode ser aos progenitores de Israel, ou à primeira geração dos discípulos de Cristo que haviam morrido sem ver o advento que aguardavam (cf. 1Ts 4.15). Para que a esperança deles não se tornasse em dúvida ou completo desespero, Pedro propõe um corretivo. Mostra a irrealidade e o deliberado pecado desse ceticismo. Eles têm obstinadamente desdenhado do ensino claro de Gn 1, onde se registra a criação. A terra, os céus, a água foram feitos pelo fiat divino, pela palavra de Deus (5). Além disso, o mundo, então existente, pereceu afogado em água (6). Portanto, não era verdade que tudo tem continuado como desde o princípio. E passa a avisar aos escarnecedores que, como antes a água foi o instrumento de que Deus se serviu para destruir, assim agora o fogo só está aguardando o tempo por Deus marcado para fazer a mesma obra. Embora o Senhor tarde, seus juízos são certos e seus instrumentos estão prontos, à Sua disposição (cf. 2.3). b) Explicação da demora (3.8-10) Tem sua razão de ser no caráter e no propósito de Deus. Deus não é limitado pelo tempo. Há uma diferença entre o método divino de calcular e o método humano.
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 20 Para com o Senhor, um dia é como mil anos (8), dedução do Sl 90.4 (LXX). "Mil anos aos teus olhos são como o dia de ontem". Na eternidade de Deus mil anos valem menos do que um dia da curta vida do homem. Esta pertence à ordem temporal e se assinala por divisão do tempo. A ordem eterna é diferente. A demora, pois, não é nenhum índice de indiferença. Qualquer aparente demora deve-se antes interpretar como oriunda de compaixão misericordiosa. O propósito de Deus é de amor e comiseração (9). Sua demora é mais uma oportunidade de salvação. Não é sinal de esquecimento de sua parte, senão que Ele se apraz em retardar a vinda. O dia do Senhor virá, todavia; isto é absolutamente certo (10). Sua longanimidade é contrabalançada por Sua justiça. Virá, subitamente, como ladrão de noite, quando os homens estiverem despercebidos (cf. Mt 24.43; 1Ts 5.2). Daí a necessidade de vigilância constante e preparação. Nesse dia os céus passarão (cf. Mc 13.24; Is 34.4) com estrepitoso estrondo (gr. rhoizedon). O substantivo rhoizos usa-se a propósito do zunido da flecha ou parece aludir ao rugido de um incêndio, ou provavelmente ao enrolamento dos céus como pergaminho (cf. Is 34.4). Os elementos (10); gr. stoicheia, ("corpos celestes", isto é, o sol, a lua e as estrelas) e isto oferece a interpretação com que todos em geral concordam. c) Resultados práticos (3.11-13) Tão terrível perspectiva do fim da presente dispensação deve produzir poderoso efeito na vida e na conduta. O espírito do homem nada mais horrível pode conceber do que ser apanhado despercebido e sem preparo para essa visitação divina. Por outra parte isto, para o crente, deve ser um incentivo para viver de modo santo. No grego as palavras santo procedimento e piedade (11) estão no plural, significando "toda espécie de". Uma vida santa produzirá o efeito de fazer-nos aguardar e desejar ardentemente (apressando) a vinda do dia de Deus (12). Esta última expressão é incomum; é empregada para
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 21 referir o tempo "por causa do qual" (ARA) deverão ocorrer estas convulsões físicas, que darão lugar aos novos céus e à nova terra, nos quais habita Justiça (13); isto é, a justiça residirá permanentemente aí. Segundo a sua promessa (13); cf. Is 65.17, e quanto ao seu cumprimento veja-se Ap 21.1. d) Exortações finais (3.14-18) Raciocina o apóstolo que o resultado lógico destes avisos e promessas deve ser um esforço ardoroso por uma vida santa. A atitude que convém à pessoa que aguarda a vinda do Senhor não é de ociosa antecipação nem de excitado temor, mas é de vigilância confiante e preparação. Diligência por ser achado por ele em paz (14), não a paz da quietude e silêncio, mas da harmonia e ausência de discórdia; isto é, cooperação sem atritos ou desavença prejudicial entre a vontade do homem e a de Deus. Sem mácula e irrepreensíveis (14); gr. aspiloi kai amometoi em contraste com os falsos mestres dos quais se diz serem spiloi kai momoi em 2.13. Como sob o velho concerto as ofertas que se faziam a Deus deviam ser íntegras e sadias, assim a consagração dos cristãos a Deus deve ser isenta de qualquer mancha de sua parte. A longanimidade de nosso Senhor é salvação (15); Pedro reafirma o que já disse no verso 9. Em vez de queixarem-se da aparente demora da volta do Senhor e tê-la como descaso, devem considerar a coisa como uma oportunidade graciosamente concedida a eles de se arrependerem e de realizarem a salvação que Deus neles operou. Como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu. É impossível dizer com certeza a qual das cartas paulinas Pedro se refere, mas parece muito provável seja a Epístola aos Romanos. Diz que Paulo não é apenas companheiro cristão, mas um colega e irmão de apostolado, reconhecendo francamente sua inspiração e autoridade, a sabedoria que lhe foi dada. Desta forma ele tira a dúvida do espírito de seus leitores acerca de alguma discrepância entre a doutrinação e a atitude de Paulo e
2 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 22 a sua concernente à segunda vinda. A apreciação já feita às epístolas de Paulo é também indicada. Pedro as associa às Escrituras do Velho Testamento, chamando-as assim Palavra de Deus. Já naquela época os ignorantes e instáveis começaram a deturpar (16); isto é, torcer ou esticar, como em aparelho de tortura, o ensino do apóstolo, da mesma forma como faziam às demais Escrituras, "Ignorantes" aqui significa, de fato, não adestrado no estudo das Escrituras. O último aviso de Pedro é acautelai-vos: não suceda, que descaias da vossa própria firmeza (17). Foram fielmente avisados acerca dos perigos que os cercavam e da possibilidade de fracassarem diante dos mesmos. Os falsos mestres eram talentosos e influentes. Por isso, tanto mais era preciso que estivessem vigilantes, para não se deixarem levar por eles. Era muito natural que a última exortação do apóstolo fosse crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (18). A graça é aquela de que Cristo é Doador. Ela os circunda e sustenta e é a própria atmosfera em que vivem. Permanecendo nela, devem continuar crescendo, porque é somente pelo crescimento constante que a possibilidade de cair pode ser eficazmente afastada (cf. 1Pe 2.2). Contudo, cumpre-lhes também crescer no conhecimento do seu Senhor. Conhecimento de Deus implica experiência pessoal e companhia contínua, que são o segredo da firmeza e progresso do cristão. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno. Amém (18), forma de doxologia da qual Jd 25 é desenvolvimento e adaptação. "Como no dia eterno". A expressão, assim traduzida, é única. A despeito de todas as perplexidades, oposições e fracassos, os cristãos são exortados a louvar a Deus, atribuindo-Lhe glória tanto agora como no dia eterno, cujo raiar será precedido e anunciado pela vinda do Senhor. ANDREW McNAB