Eclesiastes - N. Comentario

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ECLESIASTES Introdução Plano do livro Capítulo 1 Capítulo 4 Capítulo 2 Capítulo 5 Capítulo 3 Capítulo 6

Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9

Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12

INTRODUÇÃO I. ESTILO Eclesiastes ou Pregador é, em muitos aspectos, um livro enigmático. De construção um tanto desconexa, de vocabulário obscuro, com estilo freqüentemente complicado, desafia o entendimento do leitor. Contém certo número de palavras que não se encontram no resto do Antigo Testamento, e cujo significado é difícil de determinar com precisão. Faz alusão a incidentes, costumes e dizeres que teriam sido facilmente entendidos por seus primeiros leitores, mas sobre os quais não possuímos indicação alguma. Contém incoerências aparentes, o que torna difícil precisar qual o ponto de vista do próprio autor. Esses contrastes têm levado alguns a supor que o livro original foi reescrito e "expurgado" por diversas mãos. O modo pelo qual o escritor arrumou seu material sugere que não houve a preocupação de dar qualquer seqüência ligada de pensamento a correr livro afora. O livro pode ser antes uma coleção de fragmentos ou anotações, à semelhança do Pensées, de Pascal, com a qual tem sido freqüentemente comparado. A despeito de todas essas dificuldades e obscuridades, entretanto, o livro exerce um poderoso fascínio. Torna-se imediatamente evidente, para o leitor dotado de discernimento, que aqui temos uma penetrante observação e criticismo sobre a cena humana. A profundeza daquelas observações do escritor que podemos entender de pronto nos impele a sondar seus mais profundos discernimentos, como certa vez Sócrates,


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 2 deleitado pela sabedoria de Heráclito a falar com clareza, foi impelido a procurar uma sabedoria mais profunda nos pontos obscuros daquele. II. INTERPRETAÇÃO O problema crucial apresentado pelo livro é o de sua posição dentro do cânon das Escrituras. Entre os judeus houve quem disputasse seu direito de ser incluído entre os livros sagrados, desde o começo, e sua presença entre eles tem sido uma fonte de perplexidade para muitos crentes cristãos desde então. Aqueles que pensam que a tonalidade que prevalece no livro é de desilusão e desespero, temperado apenas por um epicurismo modificado, realmente devem achar difícil como tal livro possa ter sido aceito entre aqueles que nos podem tornar sábios para a salvação mediante a fé que é em Cristo Jesus. Alguns estudos recentes sobre o livro, todavia, têm demonstrado que essa concepção popular sobre o livro é superficial, e têm levado a uma apreciação mais verdadeira sobre o ponto de vista peculiar do escritor. Isso é provavelmente indicado pelo seu nome escolhido, Qoheleth, "o Pregador" (Eclesiastes é o equivalente grego desse nome). No hebraico a palavra está ligada com qahal, a assembléia pública, e sugere a espécie de sabedoria transmitida pelo orador aos que se reuniam no átrio exterior, em distinção com a "sabedoria oculta" que é conhecida somente daqueles que foram admitidos ao mistério de Deus (1Co 2.7). Qoheleth escreve partindo de premissas ocultas, e seu livro, em realidade, é a maior obra sobre apologética ou teologia "polêmica". Sua aparente prolixidade é ditada por seu alvo: Qoheleth estava dirigindo-se ao público em geral, cuja visão está limitada pelos horizontes deste mundo; ele os enfrenta no próprio terreno deles, e prossegue a fim de convencê-los da inerente inutilidade desta existência. E isso ainda é mais sustentado por sua expressão característica, "debaixo do sol", pela qual ele descreve aquilo que o Novo Testamento chama de "o mundo" (kosmos). Seu livro, de fato, é uma crítica contra o secularismo e a religião secularizada. Pois o secularismo não é necessariamente


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 3 irreligioso, e a religião dos judeus tendia a ser desproporcionadamente secular, esquecendo a transcendência de Deus (verso 2). Nessa qualidade, sua mensagem é permanente, e não menos para nossa própria época, quando o secularismo domina as mentes dos homens como talvez nunca antes na história, e quando a religião muito tem feito para amoldar-se a isso e procura recomendar-se como meio de melhoramento da vida "debaixo do sol". O livro de Eclesiastes exerce uma indispensável função dentro do cânon das Escrituras, provendo um corretivo contra todas as tentativas de reduzir a religião a um mero instrumento do secularismo. A fraqueza fatal da utopia secularista é, conforme tem sido dito, que não toma na devida consideração os fatos gêmeos do mal e da morte. Os olhos de Eclesiastes estão bem abertos para a vaidade e corrupção às quais a criação foi sujeitada (Rm 8.20 e segs.), e o livro inteiro tem sido apropriadamente descrito como uma exposição da maldição imposta devido à queda (Gn 3.17-19). O escritor percebe como esses dois fatos delimitam a existência inteira debaixo do sol, com um sinal negativo, e desafiam todas as tentativas para que se force tal existência a produzir sentido ou satisfação por si mesma. Mas, embora a tonalidade do livro seja preponderantemente negativa, é um equívoco apodar o livro de Eclesiastes como cético ou apóstolo do desespero. O melancólico estribilho "Vaidade de vaidades! é tudo vaidade", não é o veredito do escritor sobre a vida em geral mas apenas quanto aos empreendimentos humanos mal orientados de tratar o mundo criado como se fosse um fim em si mesmo. O pregador sabe, durante todo o tempo, que o mundo tem uma significação positiva; de fato, como ele poderia proferir tão destruidor criticismo se não soubesse disso? Mas, esse segredo ele conserva em segundo plano, excetuando uma indicação aqui e outra acolá, porque sua preocupação imediata é dissipar todas as esperanças falsas e ilusórias que possuem as mentes dos homens, e das quais é preciso purgá-las antes que tais homens possam ser levados à esperança que é firme e permanente, e que entra até o


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 4 interior do véu (Hb 6.19). "A fim de que os homens possam ser capazes de encontrar a verdadeira felicidade, ele destrói, com golpes sem misericórdia, a falsa felicidade que continuamente buscam neste mundo mas que lhes produz tão somente infelicidade" (G. Kuhn, Erklarung des Buches Koheleth, 1926). Contudo, o pregador sabe que o mundo pode proporcionar felicidade e gozo, conforme testificam suas freqüentes exortações para que se busque essas coisas (2.24; 3.12,22; 5.18; 9.7; 11.9), e que podemos encontrar no mundo uma ocupação na vida que seja digna (3.12 e segs.; 9.10); doutro modo, os conselhos que oferece para a vida e a conduta neste mundo não teriam significado. A significação do mundo é que ele pode tornar-se um meio de revelação sobre a bondade, a sabedoria e a justiça de Deus. É somente quando o homem o trata como se fosse uma finalidade em si mesma, e quando seu principal alvo é ganhar o mundo, que este se transforma em vaidade. Porém, existe um caminho no qual o homem pode aceitar a vida debaixo do sol, com seus dons e perdas, com suas aparentes irracionalidades e injustiças, isto é, "da mão de Deus" (2.24; 5.18-20). É claro que isso não importa em ceticismo ou pessimismo; mas é fé. Conforme foi expresso por um moderno escritor, em quem algo do espírito de Eclesiastes vive novamente, a fé sempre protestou que "todas as coisas seriam absurdas se suas significações fossem exauridas em sua função e lugar no mundo dos fenômenos físicos, se por sua essência não se estendessem a um mundo além do presente"; e sempre "confiou na visão interna, que discerne as coisas por trás da natureza algo mais divino que a natureza, in recessu divinius aliquid" (W. Macneile Dixon, The Human Situation, págs. 40 e segs.). Eclesiastes é cético somente até o ponto em que rejeita as pretensões da sabedoria humana para elucidar a obra de Deus (3.11; 8.17). O pregador sabia que andamos pela fé, e não pela vista; e exibiu a necessária humildade ou reserva de fé em face da transcendental sabedoria de Deus, de cuja eterna providência ele estava firmemente certo (3.14).


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 5 A complexidade característica de seu pensamento, com suas aparentes contradições ou seus "contrapontos" (W. Vischer, Der Prediger Salomo, 1926) mostra-se claramente em suas afirmações sobre a morte. Por um lado ele fala da morte como a redução final da vida debaixo do sol à nulidade (3.19 e segs.; 9.4-6; 11.8). Mas, dizer que ele considera a morte como a extinção final é não fazer justiça a outra de suas linhas principais de pensamento. Ele repetidamente afirma a certeza do julgamento divino (3.17; 11.9; 12.14), e permanece certo, a despeito de todas as injustiças da vida debaixo do sol, que "bem sucede aos que temem a Deus" (8.12). Sua posição se parece com a de Sl 49. À semelhança do salmista ele se opõe a qualquer imortalidade falsa erigida sobre premissas derivadas da vida debaixo do sol. O veredito do salmista "o homem que está em honra não permanece; antes é como os animais que perecem" (Sl 49.12) é refletido em Ec 3.18: "Disse eu no meu coração: é por causa dos filhos dos homens, para que Deus possa prová-los, e eles possam ver que são em si mesmos como os animais". Em contraposição a isso, entretanto, o salmista estabelece o "grande 'mas Deus'" (Sl 49.15; cf. Ef 2.4), e à vista disso modifica sua primeira conclusão: "O homem que está em honra, e não tem entendimento, é semelhante aos animais que perecem" (Sl 49.20). A significativa frase, no livro de Eclesiastes, "são em si mesmos como animais", certamente indica que o pregador tinha experiência desse conhecimento, que é a única coisa que outorga ao homem tal proeminência sobre os irracionais (3.19). Seja como for, sua resoluta negação de todas as possibilidades humanas, pelo menos esclarece o caminho para novas possibilidades de Deus, e nos capacita a falar de Eclesiastes como um livro que fica no limiar da ressurreição. PLANO DO LIVRO Conforme foi salientado acima, o livro desafia qualquer análise lógica e, portanto, nenhum Esboço do Conteúdo é apresentado. Os


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 6 parágrafos nos quais o livro se divide, foi indicado pela inserção de índice, que foram destacados por letras consecutivamente. COMENTÁRIO

Eclesiastes 1 a) Introdução (1.1-11) 1. O TÍTULO (1.1). Pregador. Quanto à provável significação desse termo ver Introdução. Em realidade o autor não reivindica ser Salomão, mas coloca suas palavras nos lábios de Salomão. Podemos comparar a prática de atribuir obras escritas a famosas personagens históricas, o que era um artifício literário familiar na antiguidade. A intenção disso era indicar o tipo ou gênero de literatura a que uma obra pertencia. Não tinha a intenção de enganar quem quer que fosse, e nenhum de seus leitores originais de fato teria ficado enganado. 2. O TEXTO DO DISCURSO (1.2). É tudo vaidade. "Tudo" para aqueles a quem ele se dirigia, mas não para si mesmo, pois como o Pregador poderia julgar que tudo era vaidade, a não ser que soubesse de algo que não era vaidade, de algum terreno firme no qual seu espírito se apegasse? Seu objetivo não era aconselhar o desespero, mas era refugar o secularismo em seu próprio terreno. 3. A EXISTÊNCIA É UM CÍRCULO VICIOSO (1.3-11). Eclesiastes vai direto ao âmago da questão sem introduções preliminares. O mundo valoriza a vida em termos de lucro e perda. Mas que proveito pode ter um homem se aquilo que ganha deve finalmente perder? "Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado para quem será?" (Lc 12.20). A busca pelas riquezas fica refutada pela mortalidade do homem, como o mundo bem sabe; pois seus próprios poetas e filósofos já disseram isso suficientemente. Mas os homens


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 7 procuram escapar do gelado vento da mortalidade pensando em sua posteridade e na continuação da raça. "O seu pensamento interior é que as suas casas serão perpétuas e as suas habitações de geração em geração: dão às suas terras os seus próprios nomes" (Sl 49.11). Buscam uma pseudoimortalidade na imaginária perpetuidade de suas obras, ou "em mentes melhoradas por suas presenças", ou "deixando suas pegadas nas areias do tempo", ou na idéia de "progresso". Porém, nada existe que apóie isso no curso da natureza, que é circular, tal como Eclesiastes destaca (5-7), ou no desenrolar da história, que se repete interminavelmente (9-10). O progresso é sempre acompanhado pelo retrocesso. Somente os atores e as cenas que mudam; o padrão da história permanece a mesma coisa, sendo "pouco mais que o registro dos crimes, loucuras e desastres da humanidade". b) O fracasso de todas as tentativas de dar significado à existência (1.12-2.23) 1. A TENTATIVA FILOSÓFICA (1.12-18). O homem não pode ficar satisfeito com a existência sem significado. Dentro dele existe um irresistível ímpeto para encontrar rima ou razão na vida; pois ele é uma "cana pensante" (Pascal). Deus implantou no homem esse desejo insopitável por ordem e sistema. Não obstante, isso só faz adicionar ao tormento do homem; pois o quebra-cabeças de peças recortadas da vida não pode ser completado; estão faltando algumas das peças (15). A tentativa de traçar um completo sistema filosófico só pode ser conseguido mediante a violência contra a realidade "tentando fazer direito aquilo que é torto". A última palavra da sabedoria humana, como alguns dos mais sábios têm percebido, é confessar que nada sabemos, que a chave para o mistério final escapa de nosso entendimento. Tal é a sabedoria de Tao Te Ching:


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"Trinta raios compõem uma roda; E se adaptam a "nada" no centro: Nisso jaz a utilidade de uma carruagem. A argila é moldada para fazer um vaso; e o barro se amolda em torno de "nada": Nisso jaz a utilidade do vaso... Assim é que, se é vantajoso ter algo ali, Também deve ser útil "nada" ter ali".

A sabedoria que termina nesse "buraco no centro" necessariamente deve ser vexação de espírito, até que o homem encontra "a sabedoria que do alto vem" (Tg 3.17), "a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória" (1Co 2.7).

Eclesiastes 2 2. A TENTATIVA SENSUAL (2.1-2). Para que perturbar a cabeça tentando solucionar o significado da existência? Goza o prazer (2), desfruta a vida. Dá ouvidos a Mefistófeles: "Grau, teurer Freund, ist alle Theorie Und grun des Lebens goldner Baum". Mas, não há necessidade de gastar palavras sobre a loucura dessa experiência; pois logo ela atraiçoa sua promessa. "Os prazeres são como as papoulas espalhadas, Pega-se na flor, seu brilho fenece". O viciado nos prazeres não pode escapar da "manhã seguinte" e da revulsão da saciedade. 3. A TENTATIVA CULTURAL (2.3-23). O fracasso da busca pela sabedoria e da busca pelo prazer sugere uma transigência, um meio termo que evita extremos unilaterais e tem por alvo uma vida rica, variada e equilibrada. Trata-se da cultura. O homem culto é aquele que se aproveita de todas as riquezas, prazeres, sabedoria e ações da vida, e que procura mesclá-las num harmonioso total. Mas logo aprende o


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 9 "paradoxo do hedonismo" e encontra seu prazer, não na sensualidade, mas no pleno exercício de suas faculdades mentais e volitivas (10). Porém, não pode finalmente, escapar da hora de reflexão calma, de introspecção, que vem depois do trabalho de um dia haver terminado; e então "o atiçamento da resolução se apega à pálida armação do pensamento". Terá ele conseguido o verdadeiro prêmio da vida? Sua recompensa é comensurável com o labor despendido? É verdade que a sabedoria é relativamente superior à estultícia; pois o homem sábio aproveita melhor da vida que o tolo. Mas essa relatividade é cancelada pela morte, um fato que desafia seriamente o valor da sabedoria. Existe certo paradoxo referente à sabedoria: a sabedoria significa olhar para a frente. Enquanto que o tolo, à semelhança do gafanhoto, vive para o momento presente, o sábio, à semelhança da formiga, cava para o futuro; ele toma sua posição partindo de amanhã, e procura traçar seu curso de conformidade com isso (14). Não obstante, tal sabedoria é muito arriscada; pois não está dentro de nosso poder prever, e muito menos controlar, o futuro. "Não presumas do dia de amanhã, porque não sabes o que produzirá o dia" (Pv 27.1). E os mais sábios planos podem abortar. Porque, que fará o homem...? (12). Parece que se trata de uma afirmação proverbial, e seu significado só pode ser adivinhado. Já tem sido sugerido que a sentença foi deslocada. c) A sabedoria da criação (2.24-3.15) Haverá algum modo de escapar do dilema em que estamos colocados, entre a sabedoria e a insensatez? Somente por uma nova sabedoria, uma sabedoria que tenha diferente ponto de vista e orientação; não a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo (nem, podemos adicionar, do proletariado deste mundo); mas a sabedoria de Deus em mistério (1Co 2.7). O primeiro axioma dessa sabedoria é que a criação e sua abundância são para ser desfrutadas. Qualquer sabedoria que negue essa verdade fá-lo no interesse de seu próprio sistema centralizado no homem, e é presunção. A sabedoria autêntica procede do


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 10 fato de nosso estado de criaturas no meio da criação. Aqui estamos, e "o mundo está tão repleto de certo número de coisas" para serem desfrutadas. Esse é o decreto e a doação de Deus (2.26). Porém, não é uma sabedoria fácil; pois deve renegar sistema. Um ponto de vista mundial sistemático, um Weltanschauung, só seria possível se ocupássemos o centro do qual pudéssemos pesquisar o todo e vê-lo em sua verdadeira perspectiva. Porém, essa é a posição ocupada pelo Criador, e não pelas criaturas. De nossa posição de criaturas debaixo do sol vemos, como se fosse assim, o avesso do tapete com suas muitas linhas confusas e fios soltos. Procurar desemaranhar o tapete, de nosso ponto de vista, é ficar envolvido num interminável labirinto. Isso também é vaidade e vexação de espírito.

Eclesiastes 3 O princípio de nossa sabedoria é o temor do Senhor (Sl 111.10; Pv 1.7), e um de seus elementos é o reconhecimento da eleição divina na diferença dos tempos e estações. Teoricamente todos os tempos são iguais, mas isso só é verdade quando são esvaziados de seu conteúdo. Não temos experiência de tempo vazio. Cada tempo se nos apresenta carregado com seu próprio desafio e oportunidade particulares; e a sabedoria da vida consiste em discernir o tempo (Lc 12.56), o kairos (Rm 13.11), o momento decisivo (Ec 8.5-6), o instante no qual "cai o acento da eternidade". "Há certa maré nas atividades dos homens". Essa característica incalculável e inexplicável da história e da experiência serve de dolorosa perplexidade para o homem. Pois o homem não é meramente uma criatura do tempo; existe dentro dele aquilo que transcende ao tempo: "O homem tem Para Sempre". Ele procura postar-se por detrás do processo do tempo e discernir o plano e o padrão do todo. Mas está por demais profundamente imerso no tempo para ter sucesso nessa tentativa; o fim e o princípio se ocultam dele. A tensão entre o Hoje e o Para Sempre, na vida do homem, não pode ser completamente solucionada. Não obstante, o homem pode encontrar o


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 11 Para Sempre no Hoje, aceitando gradualmente os dons de Deus e obedecendo a Seus mandamentos. Também pôs o mundo no coração deles (11). A palavra hebraica que aqui é traduzida como o mundo, tem, uniformemente, o sentido de "para sempre", e é assim traduzida noutras porções deste livro, como, por exemplo, no verso 14 (eternamente). É melhor traduzi-la como "eternidade", ou então simplesmente conservar a tradução literal (como Browning), "para sempre". d) A justiça de Deus (3.16-4.3) A interpretação moralista da vida se despedaça no duro fato da maldade humana. O desejo ansioso por uma ordem moral está profundamente enraizado no coração do homem, mas isso o torna inclinado para duas ilusões comuns. Uma delas é a crença patética, geralmente entretida em nossa época, que a ordem é obtida pela organização. Até mesmo um observador tão perspicaz como Lenin sucumbiu a essa crença. Porém, a maldade que torna necessária a organização não faz alto nos portais da organização. O egoísmo que mancha os indivíduos mancha não menos os governos, mas antes, mais ainda; pois a organização engrandece o poder (4.1), e o poder é a moral. E então, quis custodiet custodes? (quem cuidará dos que cuidam?). A outra solução experimentada é a teoria de um governo moral da história: "Os moinhos de Deus moem vagarosamente..." Essa é uma noção mais respeitável, talvez; contudo, a despeito de sua imensa popularidade, não produz qualquer satisfação real à exigência moral. Pois mesmo que ela fosse verdadeira, requerer para sua exibição uma tela muito maior que o breve período entre o berço e a sepultura. Que conforto existe no pensamento que "Os moinhos de Deus moem vagarosamente" para aqueles cujas vidas são inteiramente moídas entre as pedras do moinho a de cima e a de baixo? "O espantoso pensamento se todos os nossos sábios e nós Somos apenas fundamentos de uma raça do porvir".


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 12 Um ponto de vista moral sobre a vida, resolutamente seguido, conduz à conclusão que os homens são animais irracionais. "O homem que está em honra, e não tem entendimento, é semelhante aos animais que perecem" (Sl 49.20). Mas, e que dizer sobre sua "imortalidade"? "Quem sabe se o espírito do homem sobe para cima...?" (Ec 3.21, diz outra versão). O que existe no próprio homem para sugerir que seu destino é tão diferente do destino dos irracionais? "Que a alma do homem por sua própria natureza é Eterna, e que seja uma Criatura viva independente do corpo: ou que qualquer mero homem seja Imortal, a não ser pela Ressurreição do último dia (excetuando Enoque e Elias) é uma doutrina não evidente nas Escrituras" (Hobbes, Leviathan, 38). Deus é o Juiz. Mas a justiça de Deus não está sujeita ao nosso julgamento. Na qualidade de justiça de Deus, ela pertence ao Seu tempo, embora possa estar oculta do nosso. Aquele que não entende isso não tem outra alternativa senão dar mais valor à morte do que à vida.

Eclesiastes 4 e) A vaidade da vida (4.4-16) 1. DA INDÚSTRIA, DO ÓCIO E DO CONTENTAMENTO (4.4-6). Qual o motivo que inspira a indústria e o empreendimento humano? É o desejo de fazer algo mais que sobreviver, de ultrapassar os rivais, de avultar na luta competitiva. Mas a realização desse desejo não produz a satisfação que ele promete; pois excita a inveja de outros, e a ansiedade de que os outros o alcancem toma conta do líder da corrida. Sem esse desejo de avultar, o homem não seria homem. Contudo, a ironia do fato é que geralmente são os menos empreendedores, o tolo (5), os "obtusos finitos onde não raia um só fulgor", que obtêm a maior parte da satisfação. Deve haver algum feliz meio entre esses dois extremos. O verso 4 ficaria mais fiel assim: "Então vi que todo o trabalho e toda obra habilidosa (ou bem sucedida), se origina na rivalidade de um homem com seu semelhante".


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 13 Come a sua própria carne (5). Come a carne que possui sem cobiçar a dos outros. Aqui não temos referência a alguma tendência antropófaga, da indolência, como as palavras sugerem em português; isso dificilmente serve ao contexto. 2. DA SOLIDÃO E DA SOCIEDADE (4.7-12). Será que o motivo de lucro, nos empreendimentos humanos, pode ser contrabalançado pelo benefício feito à sociedade? Será que pode ser afirmado que "a iniciativa particular sem restrições" contribui para o bem-estar comum? É difícil manter essa opinião quando se observa quão poderosamente opera o motivo do lucro naqueles que não têm sociedade e que não dão um tostão por ela. É duvidoso, realmente, que alguém que não tenha responsabilidades de família, sinta qualquer responsabilidade para com a sociedade. Por outro lado, onde o senso de solidariedade é poderoso, a satisfação que ele produz é de espécie diferente. 3. DA POPULARIDADE (4.13-16). De todos os prêmios rebrilhantes que a vida oferece, certamente que o mais vão de todos é a popularidade. A promessa da juventude é sempre preferida à petrificação da idade (como fica testemunhado pela estudada ilusão de juventude perene nas modas contemporâneas). Mas a juventude inevitavelmente se torna idosa, e então tem de tolerar a dor de ver o passageiro interesse da multidão voltar-se para outro lado. Essa passagem é altamente enigmática, e é impossível interpretá-la com segurança. Parece conter uma alusão a algum episódio histórico com o qual os leitores contemporâneos estariam familiarizados: um decrépito e idoso monarca sendo substituído por um brilhante jovem que romanticamente saiu da prisão em meio a entusiasmo universal mas que rapidamente caiu no desagrado.


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Eclesiastes 5 f) A vaidade da adoração e do culto (5.1-9) 1. SABEDORIA E ESTULTÍCIA NA ADORAÇÃO A DEUS (5.1-7). Pesquisando a vaidade de todas as coisas debaixo do sol, Eclesiastes volta seu olho crítico para a religião; pois o homem secularizado de modo algum é avesso à religião; somente que a sua é uma religião secularizada e humanizada. Esse é o grande abismo da religião, contra o que é feita a advertência. Pois existe uma inveterada tendência, no homem, para tentar "usar Deus" (Deo uti, Lutero), sujeitando Deus a si mesmo e à sua própria preocupação, tratá-Lo como um aliado, um analgésico, ou uma agência de seguros. A característica dessa religião centralizada no homem é sua verbosidade; sua ansiedade para dizer o que tem a dizer se reflete numa torrente interminável de relatórios, declarações, pronunciamentos, panfletos, etc. Mas faz ouvidos poucos para a palavra de Deus. A palavra de Deus não é eco de nossas palavras. É Sua própria palavra, é Sua palavra de julgamento e de graça, e perante ela precisamos estar em silêncio e escutar. Em nossa aproximação a Deus é necessário relembrar "a qualidade de ser outro de Deus", e respeitar "a infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem" (Kierkegaard). Guarda o teu pé (1). O sentido é excelentemente transmitido pela moderna expressão: "Cuidado por onde andas!" Anjo (6). O Sacerdote ou ministro. Por que razão se iraria Deus...? (6). É preeminentemente contra a infelicidade humana que se manifesta a ira de Deus. 2. DO MAGISTRADO CIVIL (5.8-9). O temor de Deus é geminado (naturalmente) com o respeito pela autoridade no estado. Cf. 1Pe 2.17. Pois não existe outro poder senão o de Deus: e os poderes que porventura existam foram ordenados por Deus. Não quer dizer isso que os poderes governantes estejam acima de repreensão. Pelo contrário,


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 15 existe corrupção em cada estágio da hierarquia política. Nem mesmo os mais altos na terra estão livres de pecado. Dessa maneira, a existência da injustiça e da opressão não deve ser motivo de admiração; pois seu remédio não jaz em qualquer autoridade humana. Contudo, existe uma forma relativamente melhor de governo; e Eclesiastes expressa sua preferência por uma monarquia patriarcal, onde o rei esteja intimamente familiarizado com as preocupações de seus súditos (agricultores) - um julgamento que sem dúvida é são, devido a sua ênfase sobre a agricultura e a rejeição subentendida da burocracia, ainda que de difícil aplicação nos grandes estados industrializados. O que mais alto é do que os altos (8). O termo é ambíguo, talvez intencionalmente. Olhando para o alto da escada da autoridade, segundo nossa visão, podemos ver apenas "os poderes que existem", ou então podemos ver, acima dele. Aquele que fará "justiça ao órfão e ao oprimido, a fim de que o homem, que é da terra, não prossiga mais em usar da violência" (Sl 10.18). O proveito da terra... (9). A melhor tradução parece ser: Proveitosa para uma terra em geral é um rei devotado ao campo arado. g) A vaidade das riquezas e do destino humano (5.10-6.12) 1. DA RIQUEZA E DA AQUISIÇÃO (5.10-6.9). A enfeitada satisfação do mamonismo (culto à riqueza), que concebe que a vida de um homem consiste na abundância das coisas que ele possui e que identifica sua posição com suas propriedades, é uma miragem que continuamente recua; pois a concupiscência da aquisição, uma vez solta, se torna insaciável, e o apetite cresce conforme mais se come. O capitalismo só pode florescer num mercado em expansão, e o círculo da procura e da oferta, por mais expandido que seja, não deixa de ser um círculo; não pode ser esquadrejado. Além disso, a aquisição traz ansiedade; pois a riqueza é incerta (1Tm 6.17): a bolha da prosperidade


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 16 estoura, e o colapso segue-se à explosão de vendas. Finalmente, morre o homem rico, e que bem lhe pode fazer então toda a sua riqueza? Devemos, portanto, recomendar a renúncia ascética? De modo algum. As boas coisas do mundo são presentes de Deus que devem ser desfrutadas por nós com ações de graças e com contentamento. A chave para o desfrutamento é substituir a ganância pela graça. "Porque toda a criatura de Deus é boa, e não há nada que rejeitar, sendo recebido com ações de graças" (1Tm 4.4). A experiência demonstra que a arte do desfrutamento geralmente vem mais prontamente para aqueles que estão menos atravancados com os bens mundanos, enquanto que aqueles que possuem "todas as vantagens" podem não desfrutar tal gozo. Não se lembrará muito... (20). Aquele que está em correspondência com Deus, aquele cuja principal finalidade é glorificar a Deus e desfrutar dEle, pode viver no presente e gozar dos dons de Deus hoje, sem pensamentos ansiosos para com o amanhã. Cf. Mt 6.33-34.

Eclesiastes 6 E além disso não tiver um enterro (6.3). Tem sido sugerido que esta cláusula foi deslocada e que pertence ao verso 5; certamente pareceria ser um fim mais provável para um nascimento fora do tempo do que para um homem que gerou cem filhos, onde é extravagantemente inapropriado. 2. DO DESTINO HUMANO (6.10-12). A natureza e o destino do homem são determinados por Alguém mais poderoso que ele, e o homem não pode contender com seu Criador, nem adicionar à sua estatura um cúbito. Todos os seus esforços para encontrar substância permanente nesta vida transitória resultam em vaidade, e deixam-no a enfrentar a questão final.


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Eclesiastes 7 h) A sabedoria da morte (7.1-14) Eclesiastes apresenta uma sabedoria de vida que leva em plena consideração as grandes negativas: adversidade, tristeza e morte. Aquele que desejar viver sabiamente deve pôr a morte no coração e integrá-la em seu ponto de vista sobre a vida. A sabedoria que pretenda ver a "vida permanentemente e vê-la por inteiro" também precisa ver a morte; ela "toma em plena consideração o pior". A moderna fuga da morte, evidenciada pelo fato que se evita consideração séria sobre ela, no pensamento popular, e mesmo de evitar-se qualquer menção a ela na conversação polida, como se a morte fosse um cão a dormir pelo qual se pudesse passar na ponta dos pés, é um índice de um ponto de vista sobre a vida para o qual a morte não tem significado salvo o de um fato irracionalmente brutal que interrompe rudemente os esforços e as aspirações do homem. As esperanças do homem, hoje em dia, estão ligadas a um adiamento progressivo da morte e ao sonho de sua eliminação eventual. Se Eclesiastes foi capaz de olhar a morte cara a cara com destemor, isso se deve simplesmente ao fato que ele não a via como uma negativa simples, mas como um "horizonte", uma linha que demarca "o limiar das possibilidades metafísicas", e que aponta para uma oculta dimensão de existência. As lições que ele nos recomenda aproveitar das severas disciplinas da experiência podem ser descritas como uma espécie de sabedoria de um tabuleiro de xadrez: em lugar de ficar a queixar-se amargamente que todos os quadros são negros, ou a "suspirar pelos bons dias antigos", quanto tudo era branco, essa sabedoria consiste na paciente aceitação de sua real condição como um fato final que podemos conhecer, mas que aponta para além de si mesmo. É um equívoco supor que o fatalismo de Omar é a única, ou a única inferência lógica a ser tirada do caráter de tabuleiro de xadrez desta vida.


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 18 Os vv. 11 e 12 são difíceis de compreender em seu presente contexto, e talvez tenham sido deslocados. Posições alternativas sugeridas para eles são depois do verso 14 e depois do verso 21. i) A excelência e a dificuldade da sabedoria (7.15-29) 1. "CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA" (7.15-22). A tentativa de reduzir a matéria bruta da vida a um sistema por meio de princípios morais naufraga nas anomalias da experiência. A consistente aplicação da moralidade entra em choque com a vida, que não pode ser forçada a entrar dentro desses moldes. Há necessidade de humildade e restrição tanto no pensamento como na prática da moralidade. Deve ser relembrado que toda a moralidade é condicionada pela finitude do homem e maculada por seus pecados. Precisamos ter cuidado para evitar o orgulho moral. "O orgulho moral é a pretensão do homem finito de que sua virtude altamente condicionada é a justiça final, e que seus padrões morais extremamente relativos são absolutos. O orgulho moral, assim, tornam a virtude o próprio veículo do pecado" (Niebohr, Human Nature, pág. 212). 2. "CRÍTICA DA RAZÃO PURA" (7.23-28). A tentativa de reduzir a matéria bruta da vida a um sistema, por meio de idéias teóricas, naufraga semelhantemente. A mais penetrante sabedoria não pode atingir a harmonia final na qual os desacordos da existência são resolvidos; toda tentativa esbarra no problema do mal, "das radikal Bose", no coração humano. Eclesiastes encontra a mais obstinada manifestação do mal na fêmea da espécie humana (26); para ele a sabedoria de Sócrates aborta devido ao problema de Xantipa. 3. A QUEDA (7.29). A conclusão, que é o máximo a que a sabedoria humana pode atingir, é que o homem caiu do estado em que por Deus foi criado, e mediante sua astúcia produziu sua própria


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 19 destruição. As insolúveis contradições da vida têm seu ponto focal no fato que o homem está em choque consigo mesmo.

Eclesiastes 8 j) Os poderes que existem (8.1-9) A inferência lógica da universalidade da corrupção humana seria a anarquia ("o aluno é tão bom quanto seu mestre"). Mas a sabedoria política não é uma ciência lógica, é uma arte psicológica. É guiada não por aquilo que é logicamente são e coerente, mas pelo que é relativamente oportuno (5). Desse modo, uma ordem autoritária de sociedade precisa ser irracional e até mesmo má (9); não obstante, a lealdade a ela é preferível à insurreição. Cf. Rm 13. Essa é uma doutrina dificilmente aceita em nossos dias; todavia, é um profundo desafio para aqueles que identificam alteração com progresso. A idéia de reforma sem dúvida alguma era estranha à mente do escritor, que considera a crítica à autoridade como simples insurreição. Mas suas reflexões não são menos aplicáveis a ela. A incapacidade de ver o resultado de qual alteração proposta coloca o onus probandi sobre aqueles que a advogam ou instigam. É um fato que as reformas que têm por finalidade remover um mal, geralmente substituem-no por outros; e as orientações políticas a longo prazo são duvidosas devido à brevidade da vida humana. O problema real da vida é urgente e não pode ser adiado; pois o tempo é limitado: "Agora é o dia, e agora é a hora". Não sabemos se veremos o amanhã - e "que vantagem tem o cavalo primevo saber que um de seus descendentes ganharia o Derby?" (K. Heim). Para desgraça sua (9); isto é, do dominado e não do dominador. l) A reversão dos juízos humanos (8.10) A significação exata deste versículo extremamente difícil não pode ser recuperada. Cerca de doze interpretações diferentes têm sido


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 20 propostas. Mas, se aceitarmos esta tradução como aproximadamente correta, o pensamento pareceria ser a falibilidade dos julgamentos populares, quer segundo descoberta pela própria observação aguda do escritor, quer, mais provavelmente, segundo o julgamento contrário da posteridade. m) A justiça oculta de Deus (8.11-17) Os moinhos de Deus moem vagarosamente - tão vagarosamente que os homens podem facilmente supor que não moem de modo algum. O universo parece diferente para as distinções morais, e Eclesiastes está bem consciente das dificuldades de uma aceitação por demais fácil da "filosofia histórica" judaica, e das tentativas de discernir julgamentos divinos no desenrolar dos acontecimentos (14). Não obstante, ele sabe a respeito da certeza do juízo, ainda que este não se manifeste nas coisas que são vistas, que são temporais, e por causa disso ele não se deixa abater, e até pode rir em face do desespero (15). Aqui ele mostra, provavelmente com mais clareza que em qualquer outra porção do livro, que sua própria alma estava ancorada no lado de dentro do véu.

Eclesiastes 9 n) Mais sobre a sabedoria da morte (9.1-10) A vida é uma pista pela qual todos têm de correr juntamente, todos devem saltar os mesmos obstáculos e todos estão sujeitos aos mesmos riscos, e todos chegam ao mesmo fim. Não existe antecipação do julgamento, não há discriminação a favor daqueles que "correm na maneira dos mandamentos de Deus"; os homens podem transformar a carreira numa avalanche com aparente impunidade. Todavia, há um julgamento; existem alguns que se acham nas mãos de Deus, cujas obras são aceitas por Ele, e que se podem devotar de todo coração à tarefa do momento sem pensamentos ansiosos sobre o amanhã. Enquanto perdura


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 21 a carreira, há esperança para todos, mesmo para aqueles que parecem mais desesperados; o conhecimento do fato que devem morrer torna os vivos mais sábios talvez; mas, para aqueles que já ultrapassaram o limite, a esperança desapareceu; para esses o dia da graça é passado, e "fechouse a porta" (Mt 25.10). o) Corroborações negativas (9.11-18) A sabedoria que busca luz por detrás do horizonte da morte, recebe confirmação das trevas e confusões da cena que há neste lado do horizonte. Portanto, depois de ter perscrutado o horizonte, Eclesiastes retornou e viu debaixo do sol que não é dos ligeiros a carreira, nem dos valentes a peleja (11). Portanto, é verdade que andamos por fé e não pela vista. "A fé é de coisas que não aparecem. E assim, para que exista espaço para a fé, é necessário que todas as coisas que são seus objetos estejam ocultas. Entretanto, não podem estar mais remotamente ocultas que debaixo de seus objetos, experiências e sentimentos contrários" (Lutero, De servo arbítrio). O que tem valor, no julgamento do mundo, é riqueza e autopropaganda; o mérito genuíno e sem ostentação passa despercebido, sem recompensas. Isso é descrito ironicamente por Eclesiastes como a sabedoria que ele viu debaixo do sol, e pareceu-lhe grande (13). Um só pecador destrói muitos bens (18). Esta cláusula introduz a série seguinte de reflexões.

Eclesiastes 10 p) Da estultícia e da sabedoria (10.1-7) A sabedoria é excelente, mas é uma desvantagem em comparação com a estultícia, que produz efeitos desproporcionadamente grandes. Um pouco de fermento de estultícia pode viciar a massa inteira da sabedoria, e um único tolo pode desfazer a obra de muitos sábios. Além disso, a


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 22 estultícia é mais imediatamente evidente; ela se anuncia nas ruas. Quando a estultícia se manifesta nos lugares de mando, o curso seguido pela sabedoria é de paciência e conciliação. Quanto menos é dito, mais cedo é feita a correção. Se alguém argüir que isso justificaria uma política de aplacamento, Eclesiastes responderia que o sábio é guiado pelo tempo e pelo julgamento (8.15). Há um tempo de fazer silêncio e um tempo de falar (3.7). Que a estultícia invade os lugares de mando é provado pela observação familiar que os estultos são exaltados a posições de honra e dignidade no estado, enquanto que os indivíduos realmente de valor passam despercebidos. Os ricos (6). Eclesiastes provavelmente entende aqueles que possuem riqueza hereditária - a aristocracia – em distinção com os novos ricos. q) Calculando o custo (10.8-10) O sentido geral destas afirmações gnômicas, que talvez fossem provérbios correntes, parece ser que nenhuma alteração pode ser efetuada sem riscos, especialmente que quem quer que interfira com as instituições estabelecidas corre o risco de queimar os dedos. Antes de embarcar em tais empreendimentos, é aconselhável calcular o custo e certificar-se que se possui a habilidade adequada e os recursos necessários (cf. Lc 14.28 e segs.). r) Palavras e feitos (10.11-20) 1. O SÁBIO E O TOLO (10.11-15). Eclesiastes toca aqui sobre a notória prolixidade da estultícia e a capacidade de engano que é inerente a ela. Cf. Tg 3.5-6. Saber como ir à cidade (15) parece ter sido uma expressão proverbial acerca da sabedoria prática da ação eficaz. O tolo pode falar muito, mas é incapaz de agir.


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 23 2. INDOLÊNCIA NA CORTE (10.16-19). Os males se abatem sobre um país quando o sibaritismo prevalece na corte. Filho de nobres (17). Talvez uma double entendre, possível devido a uma expressão idiomática hebraica que emprega a perífrase "filho de" para formar um adjetivo descritivo: quando o caráter e a conduta do rei são de uma nobreza correspondente ao seu nascimento. 3. A REVERÊNCIA DEVIDA AO REI (10.20). Essa advertência contra as conversas sediciosas e contra os "pensamentos perigosos" está bem de conformidade com a atitude de Eclesiastes de imparcialidade para com a política. Não se trata de um conselho para que se aquiesça com a injustiça ou com a opressão, mas antes, uma advertência para que se não incorra em riscos desnecessários. Onde não existe nem a vontade nem o poder de corrigir as coisas, as meras murmurações e desavenças são insensatas.

Eclesiastes 11 s) Orientações sobre a caridade (11.1-6) Se alguns dos conselhos políticos dos capítulos prévios possuem uma certa tonalidade conservadora, aquietadora, "luterana", a dialética de Eclesiastes, agora, toma uma direção ousada, arriscada, "calvinista", como que a mostrar uma vez mais que a conduta da vida não pode basear-se sobre um único princípio, mas que o sábio considera "o tempo e o julgamento". Nos empreendimentos comerciais é preciso correr o risco, e aquele que não se aventura até ter proposições absolutamente seguras terá de esperar para sempre (4). O futuro é sempre imprevisível; acidentes sucederão mesmo nos mais bem controlados negócios; e ninguém sabe, por qual "ato de Deus" (5) os mais cautelosos cálculos podem ser frustrados. O curso da sabedoria é não pôr todos os ovos numa só cesta e não depender de um cartão só, mas reduzir o risco dividindo-o (2).


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 24 Lança o teu pão sobre as águas (1). É regularmente certo que a referência principal destas palavras, como Delitzsch tem demonstrado, é ao comércio de transporte marítimo do trigo. Mas Eclesiastes indubitavelmente usa essa forma de aventura comercial para ilustrar o curso que a sabedoria sugere em outros campos da vida, tal como a prática da caridade não calculada, à qual, segundo se tem entendido geralmente, essas palavras se referem. Cf. Lc 16.9. t) Respice finem (11.7-8) O sábio reconhecimento da incerteza do futuro torna o presente ainda mais importante. O presente é o único momento à nossa disposição. O amanhã está nas mãos de Deus: não sabemos o que o amanhã produzirá. É sobre hoje que cai o "acento da eternidade" (Heim). Tal como as palavras de Cristo: "Não vos inquieteis pois pelo dia de amanhã", estas palavras de Eclesiastes não implicam em desconsideração para com o futuro. Pelo contrário, essa atitude despreocupada só é possível pela verdadeira consideração para com o futuro, ou seja, que o futuro pertence a Deus. A filosofia de Epicuro que diz carpe diem, "colhe as rosas enquanto podes" contêm um elemento de profunda verdade, e não está muito longe daquilo que Paulo diz sobre o "remindo o tempo" (Cl 4.5) e sobre o "servindo ao tempo" (Rm 12.11; lendo kairo em lugar de kurio). u) Conselhos para a juventude (11.9-12.8) 1. REGOZIJA-TE (11.9-10). Um corolário da ênfase dada por Eclesiastes sobre o presente, é seu conselho à juventude para que desfrute do período juvenil, enquanto o possuem, não procurando colocar cabeças idosas sobre ombros jovens, nem tentando prolongar a juventude além de seus limites, mas aceitando a juventude com as suas bênçãos e oportunidades no sóbrio reconhecimento e a juventude e a


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 25 idade avançada são ambas determinadas por Deus e ambas estão sujeitas a Seu julgamento. Alegra-te... pela vista dos teus olhos (9). Nada existe nessas palavras para sustentar a interpretação que Eclesiastes está recomendando aqui que a juventude semeie suas aveias silvestres (dar largas aos impulsos da mocidade); nem podemos deduzir delas qualquer apoio para a atual idolatria da juventude, com suas ridículas ilusões de vestuário. Sabe, porém (9). "O grande Porém" no qual se cristaliza a sabedoria da Bíblia (Barth). "Todos os caminhos do homem são limpos aos seus olhos, mas o Senhor pesa os espíritos" (Pv 16.2).

Eclesiastes 12 2. LEMBRA-TE (12.1-8). O homem é uma criatura do tempo. No fim, sua situação de criatura se evidencia inequivocamente em sua dissolução. Certamente que é sabedoria elementar tomar em consideração esse "horizonte" último (Heidegger) em qualquer tentativa de traçar o padrão da existência. Eclesiastes recomenda o franco reconhecimento de nosso estado de criaturas, mesmo na juventude, o período em que isso parece menos evidente e quando a vida parece inextinguível. É somente quando vista nessa perspectiva é que a juventude pode ser corretamente entendida e corretamente desfrutada. O "problema da juventude" que tem assumido proporções tão grandes em nossa época é, em grande escala, conseqüência de uma falsa perspectiva, em que o horizonte fica indefinido, é a brincadeira de um homem cego com a morte, o que é uma das principais estultícias de nossa era. Lembra-te do teu Criador (1). É notório como Eclesiastes mostra sua mão aqui. A visão da idade e da morte produz nele não memento morti (lembra-te que deves morrer), mas memento Creatoris (lembra-te do teu Criador). Por esse conceito ele se distingue claramente de todos os céticos, cínicos e epicureus, com quem ele freqüentemente tem sido confundido.


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 26 Os versículos seguintes (2-7) contém uma descrição figurada da decadência e da dissolução da vida, mas o quadro é difícil de ser interpretado detalhadamente. O quadro da tempestade que se avizinha (2) talvez tenha a intenção de sugerir a aproximação da morte de modo geral ou, mais particularmente, à decadência das faculdades internas. A imagem dos vv. 3 e 4 mui provavelmente tenciona representar a decadência dos órfãos corporais: os guardas da casa seriam as mãos, os homens fortes seriam as pernas, os moedores seriam os dentes, os que olham pelas janelas seriam os olhos, e as duas portas seriam os ouvidos. As cláusulas restantes do verso 4 parecem referir-se todas à decadência dos poderes da fala e do canto. E se levantar à voz das aves (4). Se o ele (oculto) significa um homem idoso, isso envolveria a inserção abrupta de uma declaração literal no meio de uma alegoria elaborada. Mas, excetuando isso, não é verdade que o indivíduo idoso se levante à voz de um pássaro. Os idosos são menos facilmente despertados que os jovens, especialmente em vista que freqüentemente são surdos (as duas portas da rua se fecharem)! É provável que o texto tenha sido corrompido e que o original dissesse que a voz do indivíduo idoso se torna débil e tende a parecer-se com o trêmulo gorjear de um pássaro. A alegoria é abandonada no verso 5, e a descrição literal toma o seu lugar: as pessoas idosas têm medo das alturas, e têm receio de aventurar-se seja no que for. Em vista da grande e fantástica variedade de interpretações que têm sido sugeridas para a amendoeira, o gafanhoto e o apetite, parece melhor seguir Wetzstein e Hertzberg, e tomar literalmente as três cláusulas como descrições dos fenômenos da primavera e do verão: a amendoeira floresce, o gafanhoto se carrega (de alimento), e quanto ao "apetite", nem todas as versões dão tal sentido a essa palavra, mas consideram-na também uma árvore - mas todas essas alegres visões nada significam para o homem de idade, que após a


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 27 dissolução de sua casa terrestre (3; cf. 2Co 5.1), segue para sua habitação eterna. A alegoria é reiniciada no verso 6. As figuras da cadeia de prata quebrada e do copo de ouro despedaçado parecem referir-se à dissolução da alma e do corpo. A vida de um homem se assemelha primeiramente a um copo de ouro (contendo azeite para a lâmpada), suspenso por uma corrente de prata; e então é comparada com um cântaro despedaçado com o qual a água é tirada de um poço. A lâmpada e o cântaro eram símbolos familiares da vida, na antiguidade. O espírito volte a Deus, que o deu (7). Parece que Eclesiastes avançou um tanto além da posição assumida em 3.21, mas suas palavras aqui, apesar de sugestivas, não são de tal ordem que formem o fundamento de uma esperança de imortalidade. Ele está vendo a dissolução do corpo e do espírito do ponto de vista "debaixo do sol", e ele simplesmente declara que cada qual volta à origem onde teve início o corpo para o pó e o espírito para Deus (Gn 2.7). Quanto ao destino final do espírito, depois do retorno a Deus, Eclesiastes não se ocupou a falar disso. Vaidade de vaidades... (8). O autor "fez todas as coisas terrenas ficarem pequenas, e finalmente permanece sentado nesse montão de poeira de vanitas vanitatum" (Delitzsch). Seu argumento, tal como todas as coisas debaixo do sol (1.3-11), deu uma volta completa, e ele repete o teorema que se abalançou a demonstrar (1.2) com um ar de finalidade, como que a dizer: quod erat demonstrandum. v) Epílogo (12.9-14) O restante do livro consiste de um pós-script editorial, na forma de um "atestado de recomendação" (Plumptre) ao escritor, e na tentativa de sumarizar as conclusões de seu ensino. Essa porção se originou na mesma mão que escreveu o resto do livro, ou foi adicionada por algum outro? A questão tem sido muito debatida. A alteração, da primeira para


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 28 a terceira pessoa sugere uma troca de autores, mas, visto que o nome do autor - Qoheleth (Eclesiastes) - é um pseudônimo, afinal de contas, essa alteração pode meramente indicar que ele agora se adianta e apresenta uma breve peroração de apresentação, digamos assim, em seu próprio nome. Podemos comparar isso às anotações editoriais de Kierkegaard às obras escritas sob seu próprio pseudônimo. Não há alteração no vocabulário e no estilo do epílogo, que tem extrema semelhança com o restante do livro (mesmo na obscuridade da metáfora do verso 11). Tem sido posto em dúvida que um escritor fale de si mesmo nos termos dos vv. 9 e 10, o que, parece sugerir, trai a mão de um seguidor admirado. Mas isso é atribuir os costumes literários de nossos dias a uma época em que eles eram muito diferentes. No mundo antigo a autoria era considerada uma questão sem importância, tão sem importância, realmente, que os nomes de muitos dos autores da antiguidade se perderam. A pergunta que um homem fazia a respeito de um livro não era: "Quem o escreveu?", mas antes: "Que diz ele?", e não havia necessidade de um autor fazer profissão de modéstia, visto que sua obra não era considerada uma realização pessoal ou um feito de virtuosidade. Mesmo em nossa época tem havido exceções no que tange ao costume da modéstia literária (que é geralmente artificiosa), notavelmente o Sr. Bernard Shaw, que algumas vezes falava sobre si mesmo em termos mais lisonjeiros que Eclesiastes, e com menos motivos. As palavras dos sábios são como aguilhões... (11). Embora aceitáveis, elas ferem. A comparação seguinte é tipicamente obscura. Os pregos geralmente são entendidos como os colchetes da tenda, e os mestres das congregações, que são comparados com aqueles, são os grandes mestres ou os grandes ensinos acumulados em suas obras; o único Pastor dificilmente poderá deixar de ser o próprio Deus, que é o autor e a fonte da verdadeira sabedoria. A idéia geral parece ser que é o ensino dos mestres, originado na fonte principal, que dá estabilidade e poder à vida. Uma advertência final é feita contra o intelectualismo (12),


Eclesiastes (Novo Comentário da Bíblia) 29 dirigida na primeira instância talvez contra as pretensões exageradas da "sabedoria", na literatura que recebe esse nome. Eclesiastes não despreza o intelecto (9.17-18), mas está cônscio de suas limitações (8.17). A questão mais importante é se os vv. 13-14 são tão somente um sumário do ensino do livro, ou, como alguns alegam, uma simplificação tendenciosa, feita com o alvo de recomendá-lo aos leitores ortodoxos. É certamente difícil perceber como qualquer declaração de um dever positivo para o homem poderia ser logicamente deduzida da premissa que todas as coisas debaixo do sol são vaidade. Essa, entretanto, não é a lógica de Eclesiastes; pois ele não busca as premissas do dever humano na teoria humana ou dos valores morais na "idéia" de Deus. Pois, por mais que saliente as dificuldades que o homem tem para crer sobre Deus, ele sabe (8.12) que essas dificuldades não suspendem nem ab-rogam o dever requerido do homem por Deus; e talvez tenha sido com o propósito de corrigir qualquer indiferença apressada que possa ser originada nessa conclusão teórica que o autor põe sua ênfase final no dever prático do homem. O enigma da vida pode ser insolúvel para a sabedoria, mas solvitur ambulando. O dever de todo o homem (13-14), ou melhor, o dever total do homem. Não se trata da prática da teoria que tudo é vaidade. Mas Eclesiastes sabe que a prática não dependerá da teoria, nem a vida dependerá do entendimento. A teoria e a prática permanecerão em desacordo enquanto estivermos debaixo do sol. A reconciliação, a solução da discórdia, aguarda o tempo quando a fé der lugar à vista, e todas as coisas ocultas serem reveladas. Por conseguinte, podemos dizer a respeito das últimas palavras de Eclesiastes: spirant resurrectionem (prenunciam a ressurreição). G. S. Hendry


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