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Milena Nascimento de Souza1 Orientador: Prof. Me. Moisés Oliveira Alves2
– Perder-se em labirintos ou em decepções ou esquecimento do que-sem-pronome fluiria por todos os cantos – riscos fazem parte das escritas. Roberto Corrêa dos Santos, 2015.
Licencianda em Letras – Língua Portuguesa e respectivas Literaturas. E-mail: milenansouza18@hotmail.com Mestre e Doutorando em Literatura e Cultura na Universidade Federal da Bahia. Professor na UEFS e na UNIJORGE
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ABSTRACT This expanded poem elaborates an experimental critique from Virginia Woolf ’s flow in her novel The Waves, proposing to seek the healing from Woolf ’s body-text, permeating clinical territories and instituting an expanded perspective of Art, theory and literary criticism. Therefore, this work is a clinic and raises fundamental processes that relate with the concepts developed by Robeto Corrêa dos Santos that will bring forward the pain from the disorder, in other words, establishing strong bodies, allying surprisingly, with the multiple knowledge and senses. We extend here our aesthetic and political practices that will contemplate Woolf as contemporary of her time and understand her writings take the space in the present, this is a theoretical-critical-experimental essay in which she erases the separation between literature and criticism bringing to her work the powers of experimentation, making it life and work, reality and fiction. Throughout the poem, some concepts are presented, such as clinic and experimentation by Roberto Corrêa (2015); indiscernibility and modes of existence by Peter Pál Pelbart (2016); lines of flight (1998) and the fold (1992) by Deleuze; artist-etc. by Ricardo Roclaw Basbaum (2013); expanded field by Rosalind Kraus (1984); post-autonomous literatures by Josefina Ludmer, which dialogue with the Woolf ’s novel, presenting the experimentation as a possible power to think about the healing process of the afirmative bodies-forces. keywords Desorder. Experimentation. Untimely. Expanded poem. Virginia Woolf.
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RESUMO Este poema expandido elabora uma crítica experimental a partir do fluxo de Virginia Woolf em As ondas, propondo buscar a cura a partir do corpo-texto de Woolf, permeando territórios clínicos e instaurando uma perspectiva expandida de arte, teoria e crítica literária. Essa obra é, pois, uma clínica e ergue processos fundamentais que entram em contato com os conceitos de Roberto Corrêa dos Santos que tratará a dor a partir da desordem, isto é, instaurando corpos fortes, aliandose intempestivamente com os saberes e sentidos múltiplos. Alargam-se aqui, as nossas práticas estéticas e políticas que irão contemplar Virginia como contemporânea do seu tempo e entender que seus escritos ocupam o espaço do presente, ou seja, um ensaio teórico-crítico-experimental no qual ela rasura a separação entre literatura e crítica, trazendo para a sua obra as potências da experimentação, tornando-a vida e obra, realidade e ficção. Ao longo do poema comparecem alguns conceitos como o de Clínica e experimentação, de Roberto Corrêa dos Santos (2015); Indiscernibilidade e Modos de existência, de Peter Pál Pelbart (2016); Linhas de fuga, (1998), A dobra, (1992) de Deleuze; Artista-etc, de Ricardo Roclaw Basbaum (2013); Campo ampliado, de Rosalind Kraus (1984); Escritas pós-autônomas, de Josefina Ludmer (2007) que dialogam com o romance em questão, trazendo a experimentação como uma potência possível para pensar o processo de cura dos corpos-forças afirmativa. palavras-chave Desordem. Experimentação. Intempestivamente. Poema expandido. Virginia Woolf.
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a colisão Antes de iniciar essa perigosa viagem ao inespecífico, gostaria de falar com os corpos que estão diante dessa escrita sobre a minha colisão com Virginia Woolf. Em 2017 eu entrei em contato forte com a obra dela por meio da matéria de literatura Tópicos de Estudos Literários, na faculdade. Senti naquela aula que um encontro estava acontecendo. Lemos o conto Três quadros, de Woolf, onde ela divide-o em três cenas: na primeira, ela diz que para dois corpos distintos não é possível só falar palavras corriqueiras e sair do quadro ao rebentar a moldura, ou seja, se faz necessário promover uma liga entre os corpos, entre os reinos distintos, ir roçando um mundo no outro para potencializar ambos os corpos por meio do contato das suas singularidades, com os vultos, os vultos como o estado precário dos corpos. É o jeito como se veste e coloca as mãos sobre a cabeça, é sobre pensar essa força de poder ir ao reino do outro, potencializarse e voltar mais forte para poder rebentar a moldura e sair por meio das fissuras potentes que foram evocadas pelos dois reinos distintos. Lembro de que algo diferente aconteceu com o meu corpo ao entrar em contato com Virginia. Ao fim da aula eu perguntei sobre ela para o professor e, desde então, eu, Virginia, andamos juntas. Não demorei em procurar saber tudo sobre essa mulher, descobri que era aquariana como eu, que se matou e deixou uma carta para o marido, carta essa que revirou meu reino ao ler. Nesse mesmo dia eu li a carta:
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“Meu Muito Querido: Tenho a certeza de que estou novamente enlouquecendo: sinto que não posso suporta outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Estou começando a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor. Deste-me a maior felicidade possível. Fostes em todos os sentidos tudo o que pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas podiam ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou destruindo a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isso eu consigo escrever como deve ser. Não consigo ler. O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Fostes inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isto – toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém teria sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos. V.”
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Foi um nocaute no estômago, foi como se eu a tivesse invocado há alguns anos e finalmente nos encontramos. A carta conversou comigo. Eu vinha passando por períodos parecidos com o de Virginia, eu pensei em me matar também, mas quando a carta chegou em mim, como força que chega e proporciona vida, passei a perceber o quanto Virginia roçou nos reinos distintos e produziu força para saltar do quadro, isto é, causar as fissuras necessárias para desmontar padrões que a época a colocava. Penso que seja esse o nosso ponto de encontro, a busca por alargar, juntas, a borda do quadro, ou seja, promover uma existência possível para nós duas.
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Durante esses anos na faculdade, ouvi muito de um professor que as forças se invocam por meio dos nossos corpos, mesmo sem nos darmos conta disso. Cheguei a conclusão de que foi assim comigo e com ela. No mesmo ano eu tive a oportunidade de dirigir e atuar em uma peça de teatro, não deu outra, Virginia Woolf estava lá e eu estava lendo a carta dela em público. Essa foi a tal colisão que me fez lembrar como eu fui capturada pelo corpo de Virginia, “trocamos a mútua aprovação de nossos corpos. [...] e o meu acaba(va) de ser apresentado a ela”. (WOOLF, 2016. p.48) Quando eu li uma frase em que ela fala sobre o ato nomear alguma coisa. A frase diz que a nada deveria ser dado um nome, porque ao dar um nome corre-se o risco de transformar a coisa. Depois eu li essa frase completa no livro As ondas: “Nada deveria ser nomeado, a não ser que, agindo assim, estejamos transformando alguma coisa [...]” (WOOLF, 2004. p.61) e passei a pensar em agenciamentos de corpos, isto é, o meu e o de Virginia estavam sendo preparados para colidir. Essa frase fez meu corpo movimentar-se. Eu também penso que ao nomear alguma coisa estamos dando um limite a ela, 8
é como se não fosse possível transbordar a moldura, havendo um impedimento de ser mais que “uma única” coisa, limitando o poder de ser outra, que leve em conta os outros modos de pensar, de agir, de fazer tocar o outro. Penso que essa era uma angústia presente nas escritas de Virginia. A angustia de poder escrever e não ser entendida, de produzir algo que nem ela pudesse reconhecer: “O que escrevi na noite passada não foi poesia? Escrevo com rapidez excessiva, demasiada facilidade? Não sei. Às vezes, não sei de mim mesmo, nem como medir ou nomear ou somar os fragmentos que fazem tal como sou.” (WOOLF, 2004. p.62) Falar com a indecisão e não nomear aquilo que não quer ser nomeado ou não deveria ser, é um ato de potência dessa escritora. Portanto, passei a pensar a potência das escritas dela, as linhas de fuga que ela traça para alinhar o corpo que produz força até mesmo na dor. Eu coloquei a obra de Virginia na geladeira durante um tempo, isto é, eu fugi dela (há encontros que acontecem e a gente não entende, vai acontecendo e acontecendo, sempre no gerúndio, nessa trajetória até ela e com ela). Ouvi dizer que as forças se boicotam, acredito que com o nosso choque foi assim, fui me boicotando ao encontrar Virginia. Eu sabia que, de alguma forma, havia algo nesse encontro que me faria buscar respostas para a minha dor, mas eu permaneci na dor durante um tempo, sem tratá-la e sem entender o porquê destas produções, dos contatos que chegavam até a mim pela dor. Eu sabia como meu corpo movimentava-se na dor de um jeito que ia me curando, porém tudo muito confuso. “É tão estranho como, a cada crise, alguma frase que não combina insiste em voltar em nosso socorro – é a desgraça de viver com um caderno de notas em meio a uma civilização” (WOOLF, 2004. p.137), é a desgraça de viver por representação. (Uma atriz não precisa colocar a vida de lado para dar espaço à obra.) Então permaneci fugindo, 9
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fugindo mesmo, mas ao mesmo tempo o corpo pedia a força de Virginia para continuar. Ler os poemas dela produziu em mim forças que eu não sabia que tinha.
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Em um processo de construção de um personagem no teatro, eu estava sofrendo muito com a minha relação quanto atriz/ vida pessoal, que eu considero “vida e obra”, mas que às vezes fico sem saber como introduzir o corpo da atriz para a vida. Foi neste momento, passando a produzir escritas na dor, que descobri que vida e obra se contaminam e juntas intensificamse e desdobram outras forças antes esquecidas, reprimidas por formas de fazer que nos limitam.
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o poema expandido Eu produzo para devolver a Virginia outro corpo, um corpo contemplado por uma ética de existência. Devolvo por meio deste ensaio/devir/obra/poema e proponho rasuras no padrão da escrita através de outros relacionamentos com textos e obras de arte, a fim de praticar a expansão dos sentidos de maneira a experimentar diversos modos de misturar as formas, ou seja, no lugar de ser poema ou crítica literária, passar a ser os dois, alargando-se e tomando outros rumos que deem espaço à escrita que está quente, aos fluxos que a movimentam e que ferve no presente. Agamben (2009) pontua que o artista que atua na contemporaneidade está em uma produção de fraturas, isto é, a produção de uma escrita que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber, no lugar da luz, a escuridão, capturando as forças do vulto de um corpo precário, tornando-se obra para alargar os sentidos ao máximo, até não saber se é teoria OU poema, vida OU ficção, mas teoria E poema, vida E ficção, isto é, ir expandindo as bordas do quadro até sua potência máxima. Virginia conversa diretamente com o que é essa escrita expandida, ela se apropria desta escrita e fala com as coisas, em vez de falar sobre. No romances As ondas, o livro mais experimental da escritora, ela vai pensar a escrita como fluxo e deriva, ficção e vida, sua existência como parte do processo criativo, ao modo em que a vida vai acontecendo e o mundo pedindo outro jeito, outro corpo e outras formas de vida. “A verdade é que preciso do estímulo de outras pessoas. Sozinha diante do fogo apagado, inclino-me a ver as partes fracas de minha história. O verdadeiro romancista, o ser humano perfeitamente simples, poderia continuar imaginando indefinidamente.” (WOOLF, 2004. p.60) 11
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No romance, são apresentados personagens que, à medida que vão falando, são povoados por muitas vozes que dialogam pelas linhas de forças estabelecidas entre esses corpos, em que já não se sabe se é o personagem que fala ou possíveis músicas-vozes que procuram a si mesmo, são pensamentos que ora se comunicam, ora se esvaem como ondas de fato, e esses pensamentos não param nunca, quebram no meio, vão, voltam, espumam, não espumam. Não há um diálogo em que um fala e o outro responde com a resposta esperada, eis o indefinido presente na obra que prevalece fortemente podendo ser transportado para a vida, já que não existe na vida um início-linha sem desvios, há sempre alguma coisa que vai acontecendo e brilhando fraco, em meio a desordem da vida.
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Os personagens pensam as impossibilidades, o lugar que queriam chegar, mas não chegam, há sempre um espaço da negação objetiva da vida, um lugar onde se formam laços fortes, elos de corpos que se conectam por linhas de fuga e força.
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as ondas Sei que o mar tem uma alta voltagem e sei como essa forte voltagem é presente em meu corpo e no corpo de Virginia Woolf. Os encontros não se dão porque têm que se dar. Penso que os encontros acontecem porque os corpos estão na mesma voltagem, na mesma “onda”, no mesmo fluxo, por isso a carne pede um corpo a altura para suprir a fome. Descobri, ao entrar em contato com esse romance, que a minha fome pedia o corpo de Virginia, senti que foi a chave que eu precisava para entrar na intensidade de uma escrita que contemplasse os meus fluxos de pensamentos vibracionais e inquietos. O fato de Virginia pensar por fluxos, já é no mínimo prazeroso, então comecei a ler e percebi que meu corpo sentiu necessidade de falar em voz alta, o corpo começou a inquietar-se, comecei a pensar que era exatamente isso que eu queria ouvir, senti que as coisas foram colidindo em mim. Foi como se começassem a lançar rochas em minha direção e eu tivesse que recebê-las ou desviar delas, e eu ao preferi receber toda a força presente na escrita de Virginia, fui percebendo que há em mim muito dela, não só pelo fato de possuirmos astrologicamente o mesmo sol, mas pelo fato de que as angústias permeadas por nós percorrem na parte dos nossos corpos que pedem sempre um alargamento das coisas. Há certa indecisão que paira sobre nós. A liberdade que Virginia alçava quando estava viva tem a mesma voltagem que a liberdade que eu invoco incansavelmente em vida. Penso que ela não foi compreendida, captada, eu diria. A força que permeou o corpo dessa mulher ficou por muito tempo vagando em busca de uma liga, um visgo. Essa força esteve sozinha por muito tempo e produziu muitas fugas afirmativas, e que estão presentes em As ondas, onde eu consigo ver Virginia falando como se toda a solidão acumulada falasse com o seu corpo 13
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preconizado e se quebrasse em fluxos como as ondas do mar, operando no indefinido, indo até o abismo para instaurar uma saída necessária.
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Eu sou uma “artista sensorial”, isto é, opero na produção do real e no mesmo espaço-tempo, proponho uma experimentação “sensorial e conceitual”. Basbaum (2013) diz que no trabalho de arte se exerce a capacidade de funcionar como um ponto de atração. Esse ponto de atração contempla a experimentação sensorial com o texto. Há nesses escritos uma sensibilidade impressa pelas mãos que escrevem, onde muitas intervenções de sensações não se desvinculam do conceito, mas negociam com ele e colocam em ação suas conexões possíveis. Quero ocupar com o meu corpo esse campo de escrita para tornar visíveis as forças que atravessam, tanto o meu corpo quanto o de Virginia: corpos que se tombam e se conectam por meio das potências presentes nas margens dessa estrutura-carne-corpo-escrita. A depressão que me afeta e que a levou a morte nos faz ficarmos próximas. Faz-me querer responder perguntas que ela talvez não tenha obtido resposta. A frase que melhor descreve esse encontro de corpos famintos pela força da outra, é quando Virginia Woolf fala sobre os duros contatos e colisões: “Agora minha mente pode despejar-se para fora de mim. Posso pensar em armadas singrando altas ondas. Estou livre de duros contactos e colisões. Singro solitária sob recifes alvos. Ah, mergulho, porém; caio!” (2004, p.20) Esse nosso encontro é duro, me coloca diante do espelho e me convida a pensar como uma escritora-clínica, uma artista-clínica.
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eu, virginia devir. sobrevir em milhares de corpos-força: moveram - se. virginia surge em meio ao caos da convocação. traçando uma linha: partindo, evadindo. no processo de invocação ouvi Deleuze sorrir: “Partir, se evadir, é traçar uma linha.” 3 fugir não será fugir de algo, alguma coisa, fugir de ti, do bicho, do medo, da dor. fugir: o objeto-coisa levita quando vai evadindo-penetrando-metendo-infiltrandoperfurando em outra vida desterritorializada: eis a fuga. “Fugir. Nada mais ativo que uma fuga.” 4 de deleuze para a fuga contrário do imaginário intitula-se a carta. corpo que contempla: # contemporânea. “O sentido se foi” 5 Woolf ! Ao invés de entender o texto atravessá-lo Experimentá-lo: “Opera-se a experiência pelo processo de dispor-se a, e, no ir “trabalhando”” 6
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notas de rodapĂŠ
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furar vazar o sistema. furar o cano atira-se no alvo com o porvir: só descobri mundos outros, porque quebrei a fuga. ruptura[s]. tudo em Virginia é devir. Eis então a produção de um encontro entre dois reinos eu, ela: partida, tentam-se modificar, se encontram, invocam-se - duas espécies: escritora-atriz: 7 ........................................................................................................................ traçar uma linha com delirar outros modos-coisas. ao mesmo tempo em que eu falo de algo, virginia fala do contrário desse algo8, eis a potência estabelecida pela troca de reinos. saltar o demônio relacionar-se com passagem de fora eis o nós, eu, ela: “Duros contatos e colisões” 9 “Ao invés de seguir as linhas de fuga, traçá-las, prolongá-las” 10 alarg/ ar. A questão de tornar-se não para de acontecer, esse encontro produz força e mudança no corpo da outra. Capturei as forças do reino distinto, a força que eu não sou. estabelecemos então a quebra de um modelo “O que esta por vir existe nela” 11 uma saída possível, de emergência: provisória, precária de toda forma que nos foi dada. 17
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O romance As ondas, de Virginia Woolf, me convida a traçar outra linha de escrita, linha que ocupa outras formas de contaminar-se. Por isso devolvo a Virginia em forma de um poema expandido, isto é, com a claridade e a obscuridade, já que atravesso as margens de um ensaio e proponho que o espaço permita-se ir tornando-se outra coisa. Virginia me convida a trabalhar o poema-ensaioexperimento-arte-teoria-expandida e por ele ir captando as forças afirmativas, estilhaçando-as, pois há uma vontade nossa, minha, de Virginia, de estilhaçar a força lírica, pois se trata de um ensaio além de, quer dizer, um poema expandido carrega em si a força de fissurar uma forma, isto é, aquilo que não se classifica mais em uma só linguagem. Esse outro espaço que ocupamos, vem com uma sintaxe que mistura obra e vida, que convida a pensar o sentimento em poema, no lugar de falar de sentimento, neste espaço sou convidada a criar saberes alternativos, criar um espaço onde se captura corpos-forças afirmativas que propõem alargar os campos da escrita literária. G. Deleuze e C. Parnet, Diálogos, trad. bras. de Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998, p.30. 3
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* sobreviventes - as ondas *
pensar o sobrevivente como aquele que não faz por obrigação mas aquele que pensa a potência como ato que se realiza e se esgota, veemência não afirmativa, isto é, do não pensar, do não agir: ficar parado em um banco de praça pensando em como estaria se estivesse em outro lugar também é potência, pensar na morte com alegria pensar nas forças contrárias de um modo de ser, é uma virtude.
crítica performativa x dramática
a escrita torna-se o espaço de enunciação entre: arte.vida.escrita.pensamento.afeto.letra eis um conto e ensaio e crítica “Vi árvores crescerem da semente que lancei.” 12 há possibilidades de uma articulação poética-crítica acúmulos: de coisas corpos potências complementando-se.contemplando-se.coagulando-se entre si começos-parados: se cria no meio onde há fluxos acontecimentos passagens berros: o muro, eis aqui.
* derivas *
inventar um povo que falta: gritou Deleuze. julgar potência o invento do porvir, criar outras formas de, outros modos de. a vontade de vida parte do meio, do caos e dos desvios. a ordem é relativa: desviar então.
* desvios *
há outro modo de os encontros se darem, o pensar surge em meio à tentativa do não estabelecer fins, mas inícios imprevistos, caminhos descruzados desmedidos: trata-se pois do nascer da obra a partir do vagar.estranhamento.terreno. movediço. o que quer o que pensa o que pretende o que? 19
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Ibid
Virginia Woolf estabelece pontos de fugas em As Ondas, quebrando frases, usando pontos finais em meios. Coloca os pensamentos inacabados acabando com ponto final, a escrita trabalha em expansão, é dilatada, inacabada, o compromisso é com “um sentido possível”, precário que traça intensivos gestos de cura com a letra ancorada na unidade de “um ser”, Virginia faz cair por terra toda uma unidade fundamentalista de um ser, vai caindo também o círculo fechado que se transforma no círculo vazado e possui outra forma de ser círculo, desdobra em eu, eus, eu e eus possíveis. Virginia Woolf, As ondas, trad. bras. de Lya Luft. Rio de Janeiro: Ed. 2, Nova Fronteira, 2004, p. 16.
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* a clínica de virginia * eu, virginia colidindo-se: encontro de duas escritoras famintas de: fluxos insistindo em fazer dos duros contatos: colisões. Compactuamos desejos, vontades. Agora nossos corpos estão próximos e eu, Virginia, produzimos e pensamos com a dor, não há gesto mais potente que produzir nessa condição. Nosso compromisso está no campo do movimento contrário aos inícios previsto e isso nos torna artistas dos meios: a obra começa em algum ponto qualquer, em cima do muro, onde a fertilidade presentifica o corpo e nesse campo expandido, nada põe em xeque o status do literário, é necessário abrir os anéis, como um quadro em que não se sabe onde começa nem onde termina, mas que captura as forças do acontecimento transbordado pela moldura. A frequência clínica de Virginia se dá nas marcas de radicalidade da obra e na horizontalidade, que é onde as frequências ampliam o parágrafo indecidível, sendo também enunciado teórico para as camadas de “eus” e seus cruzamentos, “eus” pluralizados que tornam-se obra no meio do caminho, quebrando a identidade e investindo nos começos confusos e não binários. Cabe aqui, portanto, isto, aquilo e outros-outro-outros-tantos: o poema, o buraco, a clínica, sendo afirmações de forças, estratégias que contribuem para desmontar forças não afirmativas, propondo então a captura das forças ao seu modo, produzindo vetores micro temáticos, agir no imprevisível, na deriva, em fluxos movidos por um conjunto de forças que nos arrastam para as direções de grandes quantidades de alguma coisa: camadas. literatura fora de si. abertura dos anéis – (trans)disciplinar sair da moldura – causar desestabilização: repito corpo dobrado – desdobra-se! 13 os acontecimentos maus é preciso serem aceitos, é um acontecimento necessário. o mal constitui a força divina – o diabo está com deus.
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O romance salta na experimentação para produzir saúde, ou seja, Virginia vai fazendo vagorosamente. Experimentando, “experiment(ação)” em As ondas acontece a partir do contato com, não com o contato para, a obra demanda uma resposta para o acontecimento do presente, não existe a experiência do antes, na experimentação é preciso provar. Isso me faz pensar o teatro e como é preciso mudar a chave e passar a agir por experimentação, ou seja, com o gesto, o contato, a intensidade, o corpo precário que age na ordem do improviso. Os corpos de teatro ainda estão pensando com a experiência, isto é, relacionando-se com a memória, com o passado, àquilo que já aconteceu, engana-se quem acredita que para viver uma personagem é preciso ter experiência, pelo contrário, é preciso experimentar, ir experimentando a vida, ação, deriva- fluxo. Existe uma larga diferença entre experiência e experimentação: experiência está fora do contemporâneo, ainda atua no moderno, visto que experiência vai pensar uma forma de conhecimento específico, sistemático e o contemporâneo propõe o inespecífico, ou seja, provar sem saber o gosto, não se sabe se é isto ou aquilo e vai fazendo, a experiência limita o corpo que está produzindo no campo contemporâneo, que propõe experimentar a obra, sentir, atuar dentro e com a obra, experimentação é ser a própria obra, é o instante que ocasiona tombamentos, contágios e trabalha na ordem do corpóreo, age com o querer fazer e impulsiona o ato que impera o gesto afetivo, concreto, palpável. Roberto Corrêa dos Santos, Cerebro-ocidente/ cérebro-brasil. Rio de Janeiro: Circuito, 2015 p. 39.
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a força demoníaca para os gregos era afirmativa, então Virginia Woolf expande de tal modo à coisa a não saber o que é e a potencializa promovendo a força desestabilizadora para mover, provocar movimento de instauração de corpos com outros modos de vida. Instaura-se a esperança de poder explorar os perigosos da vida. * artista do contemporâneo * o campo é expandido e está na ordem da sensação. Em As ondas vale-se a experimentação dos corpos em processamento, instaurando coisas - potências intensivas: 14 as ondas <<<<<<<<< virginia-comer a dor ter fome fazer da fome: poder>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> maior>menor-fome: potência da escrita. afirmar o que é força encontrar forças afirmativas em um corpo precário, pensar o processo, o “campo ampliado,15 as escritas pós-autônomas” 16 o acontecimento: é nesse campo que há fertilidade. fertilidade, pois. ir descartando o desperdiço de energia, descartar o querer início e fim linear, sugerir o ato de escancarar a primeira porta à frente e desviar-se experimentando, investigando o porvir. alcançando desvios.
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Ao me esbarrar com o manual de artista-etc, de Basbaum, encontro aqui um aliado para meus escritos. Para ele, o artista-etc é aquele que se deixar tomar pela arte em seus variáveis caminhos e direções intermináveis e o mais importante, explica as suas escolhas traçadas. Desmorona de uma vez por todas a questão de ser isto ou aquilo. Com Basbaum, eu concretizo os sentimentos de que posso ser várias e que há muitos modos de praticar a escrita. Trago neste poema as fugas, os combates, as trajetórias para chegar até aqui e tudo isso potencializa a artista. Como um diagrama, se forma a imagem desse poema, trago a tona o meio de tornar visível a liga entre uma arte e outra. Basbaum diz que um diagrama não segue teorias já escritas, na verdade as teorias propostas aqui se abrem para fora, eu diria para fora da margem que nos é dada. Quando movemos uma obra nesse campo do artista-etc, o querer se dá nos modos de experimentação, trabalhar com os possíveis objetos, palavras, imagens, fortificar o discurso deslocar essas forças para abrir os espaços estáticos, para que esses espaços se movimentem em arte e texto que vai se desdobrando em outros estados/ sentidos e permitem as outras possibilidades de entendimento que podem roçar entre si. Esse lugar do caótico e inespecífico propõe corpos inventivos que trabalham coletivamente, em bando. Há uma necessidade desse bando, de buscar outros jeitos de relacionamento com a arte-escrita e como essa escrita pode desenvolver a expansão de um campo que já se faz inabitável, isto é, os sentidos parados não produzem forças, esses artistas-etc propõem expandir, alargar os sentidos, fazer surgir interesse, criar e pertencer não só exclusivamente ao campo de criatividade, mas pensar que o artista na sala de escritório pode produzir criatividade. O artista-etc, portanto está engajado em outros modos de escrita, compromete-se, pois, com uma forma diferente de tempo-espaço, sendo outros tantos, é o que Basbaum chama de “prospectiva”, a potência está em subverter a tradição e o padrão tradicional, os textos interatuam em junção para enfatizar o pertencimento ao presente, agregação de sentido e sentir, instaurando outras sensações diante da escrita. Ricardo Roclaw Basbaum, Manual do artista-etc, Rio de Janeiro: Ed. 1, Beco do Azougue, 2013.
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* a queda * sintaxe dos desvios para trazer a vida necessária do corpo-objeto. 17 a escrita pede desvios, queda das linhas retas das coisas, da língua: experimentação e inespecificidade: vocábulos do contemporâneo. expandir as ondas-romance-obra-coisa, capturando imagens da palavra que vão além da palavra escrita, desestabilizando alargando a coisa. trans/moldando a moldura do quadro. * experimenta/ação, virginia * isto é: virginia-experimentadora do processo, provadora do corpo que falta: desviadora, movimentadora, criadora de modos de aliar-se conquistadora de “uma” maneira de ser: “Obras manifestam-se por meio da potência de um corpo. Para que se forme um corpo, mil forças foram acionadas, incluindo-se as do deixar-se afetar, dar-se às ciências da arte de ceder, estar mais móvel, mais curvo, mais dobra de dobra de dobra de dobra – esculpiu Deleuze assim os devires; o você e o eu, pronomes-dobras: dobras dele, deles, dela, delas. obras requerem vento; o vento situa-se como o elemento “natural” a permitir considerar no é o mesmo diferindo, diferindo: diferindo-se sempre diferindo-se: sou você não o sendo; por isso, podemos manter relações em dobras. O vento e o leque, dobras! – avocou o clínico Deleuze.” 18
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O livro As ondas compactua com a complexidade dos corpos, “vida-arte-amor-etc.” Virginia Woolf é uma contaminadora de Basbaum, ela já atuava como artista-etc em seus escritos. O novo é algo que está acontecendo a todo o momento em As ondas, os parágrafos abrem e às vezes não fecham, são monólogos de muitas vozes e ao mesmo tempo quebram no meio como ondas que ora espumam ora não. Há passagens de grandes ondas e há momentos de fumaças apenas. Na complexidade, as vidas tornam-se outras. Há profundidade e surpresa nos escritos de Virginia, por isso ela é uma escritora-etc, isto é, produz corpos potentes, que se pergunta a todo tempo o que tais corpos são de fato? Não tendo respostas às vezes, então propõe seguir fazendo: nada mais potente que um corpo produzindo e ecoando em passos desatentos.
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9 Virginia Woolf, op. cit., p. 20. G. Deleuze e C. Parnet, op. cit., p. 31. 11 Virginia Woolf, op. cit., p. 109 12 Ibid., p. 144.
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* a ordem da experimentação é * gerúndio reversão-horizontalidade: desejo do contemporâneo asujeitar-me não, verticalizar-me não. contemporaneidade: rasura a verticalidade: portanto: ir fazendo a coisa dobrando e desdobrando pede-se um corpo precário, o corpo não espera algo, vai processando os desvios da escrita, não se prepara o processo de experimentação: tenta-se, pois. “Não há a obra a ser, se não se deixar o corpo atravessar-se por fluxos; entre eles fluxos de outros: beleza, vigor, cruezas: permitir à coisa seu modo de oferecer a coisa crua – uma das partes da obra. Talvez daí, para ser obra, o exercício à bondade da carne, pois pertencente ao campo matérico do amor, esculturas da clínica. Trata-se, na clínica, de política e de história a um só tempo.” 19 Tudo é, tudo pode, teoria e poesia juntas, forças que se revertem, alteram-se entre si, como as forças que submetem as outras forças. * virginia: artista contemporânea * é contemporânea, pois: está comprometida com a produção de saberes alternativos, sai do definido para o indefinido, sai da verdade para “uma” verdade, tornar-se obra, ativa as forças afirmativas de um corpo, realça um corpo em decadência, questiona qual a potência desse corpo, questiona qual a força de um corpo drogado, recorre, portanto à clínica, 27
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13 Há dobras em todo lugar, nas pedras, nos corpos, nos órgãos, o mundo está dobrado em cada vértice e cada corpo possui sua inflexão, seu próprio feixe de luz, portanto produz afirmações de vida com o próprio corpo e quebra as percepções de dor, de descriminação, trazendo texturização àquilo que está curvo no mundo propondo se descurvar dos velhos caminhos, construindo uma teoria do acontecimento. Existe então no corpo, a possibilidade de inclinar-se para infinitas possibilidades de montagens e desmontagens das coisas, isso é a prega do pensamento que permeia no processo do subjetivo, visto que cada um tem sua voltagem, seu nível de intensidade, existirá sempre a possibilidade de se ter um caminho plano, mas há quem opte por desvios, por caminhos esburacados, eis então a potência de um corpo aberto ao por vir. G. Deleuze, Conversações, 1972-1990. Trad. bras. de Peter P. Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 194.
Virginia usa o fluxo do pensamento precário como potência intensiva, como sua comida para saciar a fome da escrita. A solidão fazia morrer o corpo, então ela usa a solidão para fazer viver o corpo, a solidão saciando a fome, fazendo o corpo movimentar-se no lugar de paralisá-lo. Ela promove a instauração de vocábulos que fazem da solidão, uma aliada para continuar inflando a existência. O modo saudável de manifestar aquilo que faz adoecer, é instaurando a multiplicidade desse corpo, que não crê na linha contínua da vida: infância, velhice, ir crescendo, ir morrendo, mas acredita que esse corpo tem força para escapar de uma história linear de existência individual e coletiva.
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compromete-se com as fraquezas do corpo. o contemporâneo não está nem gramaticalmente definido, ele está acontecendo. gerúndio – repita-se: o que é força é mais difícil o que não é visível é à força do fraco as forças das ruas corpo a deriva: produz ética. capturar as sombras, os rastros é o nosso compromisso. dizer não ao corpo constituído simbolicamente, mas pensar as foças do vulto desse corpo há seres que povoam esse corpo, não são nem objetivos nem subjetivos, reais ou irreais, são seres virtuais, invisíveis, metamórficos, moventes. * são os seres que virginia coloca em circulação * os loucos os poetas os amantes os que pensam por via de dúvida, incerteza, indiscernibilidade o ser que alarga as bordas que desnaturaliza discursos prontos usa a língua para berrar a dor e fazer dela aliada movimenta-se com um corpo em decadência, precário atravessa e rompe crenças vive fora do núcleo vive na saúde, produz saúde no fora, se faz obra explica a coisa pela coisa e pronto responde o que é isso com: é isso e pronto empenha-se pelo grau de entendimento e não pelo esforço o ser que come-prova-apalpa. é um corpo que vem e não está pronto, não é o produto final, é o processo de instauração, de existência da obra, não é movido pelo ato institucional como na linguagem comum, mas move-se pelo ato em processamento. 29
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“Campo ampliado”, conceito desenvolvido por Kraus, é um vocábulo do contemporâneo, que seria o campo dos alargamentos, onde a arte contemporânea está sendo produzida. Virginia trabalha no campo ampliado. Em As ondas, ela alarga o presente, opera na vibração do devir, ou seja, a escrita vai tornando-se alguma coisa, vai ampliando-se até o seu máximo de indecidibilidade. Esse campo propõe a dúvida de ser e não ser, que a escrita-arte opere na instabilidade, evocando sempre a deriva, as aberturas e fissuras possíveis e potentes a este campo-corpo, instaurando, portanto, um novo ciclo de escritas e entendimentos de leitura, ou seja, outros modos de fazer literatura. Virginia em As ondas atravessa mares de “isso e aquilo”, em que lugares do indecidível são presentes em todo o corpo-letra-escrita do romance, sendo o sentido sempre atravessado pela deriva, monólogos que parecem Virginia falando com ela mesma, para os seus desejos, para os seus possíveis escapamentos do real. Rosalind kraus, a escultura no campo ampliado. Rio de Janeiro: Ed.1, Gávea, revista do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, PUC-Rio, 1984, p. 87-93. 15
A escrita pós-autônoma atua dentro e com a realidade dos meios das coisas, como a ficção e a realidade, a escrita de Virginia, no romance em questão é, pois, escritas pós-autônomas, visto que ela trabalha dentro e fora, atravessa as fronteiras da literatura e da ficção, formulando as realidades em uma realidade possível. Ludmer diz que essas escritas tomam formas de jornais, receitas, e-mails, diário íntimo e penetram no cotidiano realidade como um tecido de palavras e imagens de diferentes velocidades, graus e densidades, interiores-exteriores a um sujeito que inclui o acontecimento, mas também o virtual, o potencial, o mágico e o fanstasmático. Josefina Ludmer, Literaturas pós-autônomas, Ciberletras - Revista de crítica literária y de cultura, n.17, julho de 2007.
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* fluxos, derivas * o limbo. nada menos do que a novidade aquilo que não consegue falar: fala, fala, fala em nós a todo o momento. os fantasmas eis aqui, com a gente, os traumas eis aqui, com a gente: dor elas voltam, caso não pensem nelas deixar o acontecimento grandioso, do tamanho da força do corpo lembrar de Clarice L: barata-come-se. elaborando lugares de acontecer de experimentar de fuçar de comer, o lugar de por o acontecimento. contaminada pelo acontecer, pela deriva: contágio. vocábulos do contemporâneo: coabito coopero convivo compactuo. há um grande terrorismo, ele é feito para mim, para nossos corpos sobreviventes: é o que eu, Virginia queremos não o que o outro quer. é um perigo sonhar o que não é seu: o acontecimento não é escolhido, mas o que se faz do acontecimento. abismo incertezas possibilidades: instauração da zona de indiscernibilidade. “indiscernibilidade entre a potência de ser (ou de fazer) e a potência de não ser (ou de não fazer, suspensão, epoché, deslocamento da linguagem do dizer para o puro anúncio [...]” 20 não há razão aqui. há potência e vontade. razão pelo que existe em vez de não existir. exista, então. ser potência, não ser potência ser potência de outro jeito 31
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A língua como forma de desviar, eis Virginia, eu: o lado informe da língua, um caso de vir a ser, de tornar-se um movimento ininterrupto, passagem de vida que atravessa para outro formato, eu, ela usando a língua com esse poder de deslocar as linhagens, de apurar as fugas, encontrando zonas vizinhas ao ponto de não se importar-se muito com o quê, mas intensificar o que está entre ou no meio dos caminhos traçados. Algo permeia os nossos sexos, meu, de Virginia como reinos vizinhos que se fortificam ao ato do encontro. Há um artigo indefinido entre nossos corpos, eis a potência, já que usamos despojadamente a língua para traçar o inacabado: começa, para, volta, refaz, pontua, não pontua, deixa-se ir. Eu, Virginia, por meio da escrita-física-matérica-corpórea-esquisográfica usamos a sintaxe para causar desvios possíveis. 17
Roberto Corrêa dos Santos, op. cit., p. 97. Ibid., p. 99. 20 Peter Pél Pelbart, O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento.p. 336. 21 Ibid., p. 337. 18 19
A contemporânea Virginia nos traz outros tipos de corpos, isto é, corpos que pensam outros modos de movimentar-se, outros modos de aliar-se à vida, que instauram outros modos de existência, ou seja, instauram corpos capazes de ser o seu próprio espaço clínico, capazes de conquistar maneiras diversas de ser. Os corpos contaminam a vida, se fazem no fracasso, na perda. É preciso continuar mesmo nesses estados de precariedade, se faz necessário abrir os círculos, mesmo que a tendência seja fechar os campos de amplitude, retrocedendo para a homogenia dos corpos. Esses seres ainda vivem no escuro dos corpos, são ilusórios. Portanto, Virginia chama esses seres para um banquete do fazer, da obra do fazer, da própria carne humana sendo obra, para abrir os buracos impenetráveis, fazer surgir questionamento, desafios imprevistos, atravessar o caos e instaurar nos encontros, nos vários encontros essa potência de viver, de modos de ser, visto que a incerteza é a única potência desses corpos que se colapsam, se esbarram, se encontram, esses encontros tratarão de falhar, mas o por vir, o modo de existir haverá de ser instaurado. (PELBART, 2013. p. 391).
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outro modo outro cheiro outra cor outro olho outro corpo, outra voz. * potência-impotência * os personagens-as ondas: atravessados por incertezas da vida, incertezas de quem é e o que vira a ser, instauram potência na impotência da vida, pensam e entram no escuro dos sentimentos e se nutrem para se tornarem obra, para alargar os processos da vida, inflada de subjetividades e intensidades. sujeito atravessado: sujeito das forças isto é poder: contingência contingência: sujeito. “Por contingência eu entendo não algo que é nem necessário nem eterno, porém algo cujo oposto poderia advir no momento mesmo em que ele advém. Essa contingência, essa maneira pela qual a língua vem a um sujeito, não se reduz à sua proferição ou não proferição de um discurso em ato, ao fato de que ele fala ou então se cala, que ele produz ou não produz enunciado. Ela diz respeito, no sujeito, ao seu poder de ter ou não a língua. O sujeito, portanto, é essa possibilidade que a língua não seja, não aconteça – ou melhor, que ela não aconteça senão através de sua possibilidade de não ser, sua contingência. Um mundo desprovido da contingência, onde tudo é necessidade e impossibilidade, é um mundo sem sujeito, pura substancialidade.” 21
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23 Virginia Woolf, op. cit., p. 146. 24 Virginia Woolf, op. cit., p. 150. 25 Ibid. 26 Ibid., p. 151. 27 Ibid. 28 Ibid., p. 154 29 Ibid., p.147 30 Ibid., p. 162 31 Ibid., p. 165
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* abrir a possibilidade da encarnação * da existência, daquilo que é impossível. desterritorialização dos vocábulos, ou seja, não sentido próprio partir da construção do objeto, isto é, um objeto inexistente esgotar as possibilidades para obter uma certa possibilidade incorporam a necessidade-contingente criando uma possibilidade inexistente injetam, portanto: “realidadecriação” não imaginação não separação vão coexistindo. embalam o prefixo “des”: desfazem a organicidade des-criam des-organizando: histerizando a vida colocam-se em crise, portanto virginia: coloca a obra em crise. instauram o limbo e espremem os nutrientes dele: indo ao deserto de si. instauram os diferentes “modos de existência.” 22 Afetam-se, pois, pelo pensamento.afeto.sensível.desafio.potência de ir, afetando e potencializando o inconsciente, tornando a obra doente e instaurando outra vida, outra consciência, outro fluxo como potência de repouso. o corpo não espera algo, vai processando os desvios da escrita, não se prepara o processo de experimentação: tenta-se, pois. teoria e poesia juntas, forças que se revertem, alteram-se em si, submetem outras forças. é um corpo que vem, não está pronto, não é o produto final, é o processo de instaurar a obra, de instaurar a existência da obra, é o ato em processamento. 35
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corpo e letra virginia – “Quero subir à superfície e ficar imóvel, ereta [...] Quero chamar com gesto firme um taxi cujo motorista me demonstrará com indescritível alegria que entende meus sinais. Pois ainda desperto cobiça. Ainda percebo as mesuras dos homens na rua como a silenciosa inclinação dos trigais quando o vento sopra leve, conferindo-lhes frêmitos rubros.” 23 milena – Quero continuar em processamento, a antiga corrosão perdeu sua força, pretendo, portanto, lançar um grito desumano. virginia – “Minha tarefa, meu ônus, sempre foi maior do que o de outras pessoas. Colocaram uma pirâmide sobre meus ombros. Tenho tentado executar um trabalho colossal.” 24
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milena – Alguém diz coisas ditas tantas vezes que hoje uma palavra só basta para mover o peso do corpo. Velhas mágoas estão se tornando densas, eu quero abrir as coisas, as portas, girar as chaves. Quero que a fertilidade atravesse as coisas para as coisas se alargarem, porque o acontecimento esta pedindo lugar de passagem. Quero que as forças fantasmáticas estejam entre nós, geralmente elas não estão, mas precisam estar Virginia. Quero olhar para meus buracos e conciliar-me com a solidão. O poder que percorre o corpo pede para ser usado – como usar o poder do corpo Virginia? virginia – “Tenho dirigido uma equipe violenta, desregrada, corrupta. Com meu sotaque australiano, sentei-me em restaurantes e tentei fazer os funcionários de escritórios me aceitarem, mas nunca esqueci minhas severas convicções e as discrepâncias e incoerências que tem de ser resolvidas.” 25
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milena – Todo o resto, todo mofo, todo pedaço de parede descascada, todo resto de café e água, toda a margem que resta é uma força. A vida tem sido um problema terrível para mim. Estou insaciável aqui, já tentei arrancar as forças paradas, imóveis daqui, tenho fracassado menos depois desse encontro, queria te dizer. virginia – “Conheci pouca felicidade natural, embora tivesse escolhido uma amante que, com seu sotaque suburbano, me deixasse à vontade. Mas ela apenas encheu o chão do meu quarto com roupa íntima suja, e a arrumadeira e os meninos de recados que me chamam uma dúzia de vezes ao dia zombam da minha maneira de andar, afetada e desdenhosa.” 26 milena – Por aqui também não tem sido diferente, zombam da minha maneira de andar afetada e desdenhosa, minhas costelas doem, eu tenho sorrido pouco lá fora, tenho penetrado fortemente para dentro do corpo, tenho tramado muitos rompimentos, meu dia tem sido tumultuado pelos corpos fracos. virginia – “Suponhamos que eu elabore uma explicação para tudo isso – um poema de uma página – e depois morra. Posso assegurar que não irei relutante. Tenho de viver para me tornar sombria e insensível, para caminhar pelas calçadas da cidade, respeitada com minha bengala de castão de ouro. Talvez eu nunca morra, e não obtenha nem mesmo essa continuidade e permanência.” 27
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milena – As vidas humanas tem me interrompido bastante, teu contato me deixou esquisita. Passei a pensar como roubaram de mim espaços de produção de força maior que a dor. Tenho tremido de raiva, tenho chorado de raiva, os corpos gordurosos tem me feito sentir sono, o bocejo é o primeiro a atacar minha boca. virginia – “Meu buquê de flores na onda que se espraiava te diz: Consomeme, carregue-me até o limite mais distante. A onda quebrou-se; o ramo feneceu. agora, raramente eu penso na morte. Agora escalo essa colina espanhola; vou imaginar que este lombo de mula é minha cama e que estou deitada nela, morrendo. Há apenas um infinito lenço entre mim e as infinitas profundezas. As saliências do colchão amaciam-se sob mim. Seguimos aos tropeços – para cima, para adiante. Meu caminho foi sempre para cima, em direção a alguma árvore solitária com um tanque de água ao lado, bem no alto. Dividi as águas da beleza à noite, quando as colinas se fecham, como pássaros de asas dobradas, desabei sozinha na turfa e resolvi entre os dedos algum osso antigo, e pensei: quando o vento baixar para roçar estas alturas, talvez não encontre mais que uma pitada de pó.” 28
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milena – O peso da terra me assusta, mas esse será o nosso ponto de encontro e quando estivermos juntas, formaremos o desenho de mudança da ordem do ser e não haverá remédio mais curador do que o choque do nosso encontro.
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virginia – “Querem uma trama, não querem? Querem uma justificação? Esta cena comum não lhes basta. Não é suficiente aguardar que a coisa seja pronunciada como se fosse escrita; ver a frase colocando no lugar certo seu pedacinho de argila, dando-lhe forma; perceber subitamente um grupo um grupo delineado contra o céu. Mas, se quiserem violência, tenho visto morte e crime e suicídio, tudo numa sala só.” 29 milena – acreditar. É só isso? Agora sei o que contêm nas casas; e não me interessa muito. virginia – “Uma frase. Uma frase imperfeita. E o que são frases? Deixaramme muito pouca coisa para colocar na mesa.” 30 milena – abro meu caminho e os meus olhos são selvagens agora. Isso rompe o fio que estou tentando tramar. virginia – “Sentei-me diante de um espelho como você se senta escrevendo, somando algarismos em escrivaninhas. Assim, diante do espelho no tempo do meu quarto, avaliei meu nariz e meu queixo; meus lábios que se abrem demasiadamente e mostram gengivas em excesso.” 31 milena – Eu também analiso meu corpo em excesso. As divisões das nossas vidas poderiam ser resolvidas esta noite, apenas em um toque, penso que nos toraríamos tão fluidas, que até o uivo do lampejo tombaria em êxtase no nosso corpo.
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referências A carta de suicídio que Virgínia Woolf deixou para seu marido https://www.updateordie. com/2015/06/08/a-carta-de-suicidio-que-virginia-woolf-deixou-para-seu-marido/ LIMA, Laura. EU NUNCA ENSAIO Entrevista concedida à revista Arte & Ensaios , com a participação de Ronald Duarte, Inês de Araújo, Felipe Scovino, Daniel Toledo, Simone Michelin e Analu Cunha, no Rio de Janeiro, em 19.10.2010. AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. BASBAUM, Ricardo Roclaw. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Ed. 1, Beco do Azogue. 2013. DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter PálPelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles e PARNET, Claíre. Diálogos. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. KRAUS, Rosalind. A escutura no campo ampliado. Rio de janeiro: Ed. 1, Revista do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC-Rio, 1984. LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas. Ciberletras – Revista de crítica literária y de cultura, n. 17, julho de 2007.
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