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a natureza humana: na antiga tradição confucionista
De uma maneira geral, a razão pela qual as pessoas honram Yao, Yu, e os verdadeiros cavalheiros é porque eles foram capazes de transformar a sua natureza inata e foram capazes de desenvolver a sua natureza adquirida, que, por sua vez, produziu princípios morais. 81
A transformação (hua [化]) é uma operação essencial, contudo superficial, que não altera definitivamente a base das coisas, mas que produz mudanças positivas [ 狀變而實無則而為異者,謂之化] “Transformação significa mudança da forma das coisas sem alterar a sua substância; embora tenham mudado a forma, não são distintivamente novas, porque são as mesmas na realidade, apenas aparentam ser diferentes”, 82 como a crisálida que se transforma em borboleta: continua a ser o mesmo insecto, mesmo que o seu aspeto tenha mudado radicalmente. 83
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De acordo com Mêncio, xing, a natureza inata, pode ser identificada com as potencialidades positivas que o homem alberga no coração quando nasce. De acordo com Xunzi, xing, é uma entidade estática: representa a matéria prima de que o homem é feito, algo que não muda substancialmente com a passagem do tempo; é a base que tem de ser trabalhada para criar uma natureza diferente, fictícia e artificial, contudo completa e perfeita. O termo usado para designar esta conduta é wei [偽], que significa “arte, artificial, fabricado, falso” e “desempenho consciente, esforços acumulados, experiência”. Xunzi usa esta palavra em ambos os significados, e acrescenta um novo: “natureza adquirida”. É por isso através da actividade consciente (wei) que o homem transforma (hua) a sua própria natureza inata (xing) e a sua natureza emocional (qing) em natureza adquirida (wei) a quem é conferido um valor moral completo. Esta operação, embora não altere a substância original não é simplesmente transferida para a criação de uma natureza nova e melhor, que tem de interagir, constantemente, com a natureza inata [性偽合,然後聖人之名,一天下之功 於是就也]. “Só depois da natureza inata e da natureza adquirida se terem unido é que aparece o verdadeiro sábio, e se consuma a tarefa de unificação do mundo”. 84 Com estas palavras, Xunzi sublinha a diferença entre diferentes tipos de natureza.
[ 生之所以然者謂之性,性之和所生,精 合成應,不事而自然謂之性。性之好、惡、 喜、努、哀、樂謂这情。情然而心為之擇謂 之慮。心慮而能為之動謂之偽。慮積焉、能 習焉而後成謂之偽。]
Aquilo que caracteriza o homem desde o nascimento, aquilo que é harmonioso nele, que é capaz de se compreender através dos sentidos e de responder a estímulos, espontaneamente, e sem esforço -- isto chama-se natureza inata. Os sentimentos de gosto e desagrado, de deleite e raiva, de dor e alegria -- é a chamada natureza emocional. A escolha da mente entre diferentes emoções — a isto chama-se pensamento. Quando a mente pensa em algo e a acção chega como consequência --isto chama-se actividade consciente. Quando os pensamentos se acumularam o suficiente, o corpo está bem treinado e a acção é conduzida a bom fim -- a isto chama-se natureza adquirida. 85
[ 性也者、吾所不能為也,然而可化也; 情也者、非吾所有也,然而为為也。]
O que me é impossível criar, mas que, contudo, eu posso transformar -- isto é a natureza inata. O que eu não possuo, mas posso criar -- isto é a natureza adquirida. 86
[ 凡性者、天地就也,不可學,不可事。
禮義者、聖之所生也,人之所學而能,所 事而成者也。不可學、不可事而在人者,謂 之性。可學而能、可事而成之在人者,謂之 偽。是性、偽之分也。]
De uma maneira geral, a natureza inata é a que nos é dada pelo Céu, que não pode ser aprendida e que não exige recurso a um mestre. Os princípios morais, por outro lado, são criações dos sábios. É algo que se tem de estudar para se ser capaz de os seguir e aos quais nos devemos aplicar antes de os conduzir à perfeição. O que não pode ser ganho pela aprendizagem e não pode ser dominado pela aplicação, mas contudo se encontra no homem, a isto se chama natureza inata. O que pode ser aprendido antes que o homem seja capaz de o fazer e ao que ele se deve aplicar antes de o dominar, a isto se chama natureza adquirida. É esta precisamente a distinção entre natureza inata e natureza adquirida. 87
A moralidade, assim, não é inata mas um factor cultural que qualquer pessoa pode adquirir através do estudo e da prática. Própria do homem, contudo, é a capacidade de discernir entre o bem e o mal e a propensão para se ajustar à realidade.
CONCLUSÃO
As doutrinas de Mêncio e Xunzi representam dois diferentes desenvolvimentos interpretativos do pensamento de Confúcio e estiveram presentes nas épocas seguintes. Sobre a definição de bem e mal, os seguidores de Confúcio podiam ter concordado com Xunzi quando ele afirmou que [凡古 今天下之所謂善者,正理平治也;所謂惡 者,偏險悖亂也] “em regra, desde a antiguidade até aos dias de hoje, o mundo tem chamado de bom à integridade, em conformidade com princípios naturais, paz e ordem social; o que se tem chamado de mal é a parcialidade, transgressão dos princípios naturais, rebelião e desordem social”. 88 E sobre as causas do mal que eles não estão de acordo, mesmo se, na análise final, as suas doutrinas pudessem parecer, embora com diferentes nuances, compatíveis com o pensamento do Mestre. As diferenças são principalmente devidas às diferentes ênfases dadas a aspectos distintos dos seus ensinamentos.
Em particular, ambos mantêm o postulado de acordo com o qual o homem é naturalmente predisposto a amar a família, e ao mesmo tempo é enfatizada a importância dos princípios morais, das convenções sociais e da educação. Mêncio pôs o acento nas potencialidades positivas inerentes ao coração e a necessidade de cultivá--las para evitar a degeneração e a consequente propagação do mal. Ele exalta a doutrina do ren e do yi (por vezes aparecem juntos, renyi, com o significado de “princípios morais”) mais do que a do li, e dá ao papel do si (pensamento, reflexão), um lugar de destaque, sendo visto como base e origem de uma consciência independente autêntica. Xunzi, por outro lado, dá ênfase ao risco inerente nas inclinações mais emocionais e apaixonadas do homem, valorizando, mais do que Mêncio, a doutrina do li e do yi (muitas vezes juntos, liyi [禮義], com o significado de “principios morais”) e insistindo, como Gaozi já tinha feito, no valor cultural do xue (estudo, aprendizagem), a inevitável via entre o homem e a moralidade. Ambos estão, cada um à sua maneira, de acordo com o pensamento de Confúcio. Seria, por isso, desnecessário querer estabelecer qual dos dois filósofos deve ser considerado como o autêntico intérprete do pensamento de Confúcio — ambos o são à sua maneira.
Finalmente, deve também ser referido que na tradição chinesa a complementaridade, intrinsecamente positiva, entre o bem e o mal é aceite sem grandes problemas. Yang Xiong [楊雄] (52 a. C.-- 18 d. C.) tentando um compromisso entre as posições de Mêncio e Xunzi, considerou a natureza humana como um todo indistinto, uma amálgama de bondade e maldade. Antes dele, Dong Zhongshu [董仲舒] (179-104 a. C.) tinha associado a natureza humana que era potencialmente boa ao yang [陽]-o princípio activo, luminoso, masculino -- e os desejos e paixões ao yin [陰] — o princípio passivo, obscuro, feminino. Esta perspectiva que põe de lado a visão antitética dos dois termos, foi mantida durante muitos anos, se bem que com variações e diferentes tonalidades. Pelo contrário, na cultura ocidental, a visão não antitética do bem e do mal seria impensável. O Cristanismo identifica o Bem Supremo com Deus. A origem do mal, a sua coexistência com o bem e a sua personificação no diabo (o que divide) são fontes de dificuldade para especulação teológica e estão envoltas em mistério. A lacuna entre os conceitos de bem e de mal, é contudo anulada no paradoxo dafelix culpa (presente na liturgia da Quaresma). De acordo com a tradição, aceite tanto por S. Paulo como por St. Agostinho e teorizada por Leibnitz, Deus permitiu a existência do mal para obter um bem maior. O pecado original, que deu origem a todo o mal, provocou a queda da humanidade para a condição de sofrimento, mas ao mesmo tempo constituiu a premissa necessária para a vinda de Cristo, com a consequente libertação do homem.
Traduzido do inglês por Iva Flores.
NOTAS
66 Mengzi, 4A. 27.
67 Xunzi, 1.10.
68 Ibid., 8.11.
69 Ibid., 2.11.
70 Ibid., 19.9b.
71 Ibid., 9.16a e 10.4.
72 Ibid., 4.12.
73 Ibid., 19.1a.
74 Horace, I, 3, 68
75 Xunzi, 4.9, 4.11, 5.4 e 23. 1e.
76 Ibid., 10.1
77 Ibid., 23. 1a
78 Ibid., 3. la.
79 Ibid., 23. 1a e 23.2a.
80 Ibid., 23.2a.
81 Ibid., 23.4a.
82 Ibid., 22.2h.
83 Ibid., 22.74
84 Ibid., 19.6. Esta passagem muito provavelmente pertence ao capítulo 23 e foi erroneamente introduzido no capítulo 19.
85 Ibid., 22.1b
86 Ibid., 8.11.
87 Ibid., 23.1c.
88 Ibid., 23.3a.