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de Han Shan
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Antes de falecer, Zhuang Zi disse:9 “Que céu e terra sejam meu caixão!” Ao chegar a minha hora, serve-me uma simples mortalha. Meu corpo pode alimentar as moscas, não preciso de grous a chorar por mim. Melhor morrer de fome na montanha Shouyang.10 Quando se vive honradamente, a morte é sempre justa.
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A casa descansando sob a falésia verde, não corto mais a erva do jardim. Gavinhas e caules enroscam-se uns nos outros, rochas antigas suspendem-se nos penhascos. Macacos roubam fruta na montanha, no bico, grous levam peixes do lago. Um ou dois livros sobre os imortais, debaixo das árvores, leio, leio.
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As quatro estações sempre em movimento, um ano vai, outro vem.
As dez mil coisas murcham, renascem mas os nove céus não mudam, não apodrecem. Muita luz a leste, muita sombra a oeste, desabrocham as flores, emurchecem as flores. Só quem viaja para as Nascentes Amarelas11 entra na escuridão e não mais regressa.
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Chicoteio o cavalo, atravesso a cidade deserta, a cidade deserta perturba o viajante. Elevadas, baixas as velhas muralhas, grandes, pequenos os túmulos antigos. Estremecem as sombras de teixos solitários, o vento assobia em árvores sepulcrais. Suspiro diante de tantos ossos esquecidos, na história dos imortais, nem um destes homens.
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Os papagaios habitam nas terras do ocidente, são caçados com redes, trazem-nos para cá. Mulheres bonitas brincam com eles, de manhã à noite, deixam-nos esvoaçar entre as cortinas da alcova. De presente, oferecem-lhes aprimoradas gaiolas de ouro mas, fechados, os papagaios rasgam o manto de penas. Melhor ter nascido ganso ou grou e poder voar até às nuvens, ao sabor do vento.
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Esplendoroso o caminho de Han Shan, ausência de marcas de carros e cavalos. Serpenteantes os regatos, insondáveis os trilhos, elevados os cumes, incontáveis as cristas dos montes. Ervas por todo o lado, o orvalho como lágrimas, muitos os pinheiros, a brisa sempre a cantar. Se alguém se perder nestes caminhos, pergunte à sua sombra: “Para onde vamos ?”12
Notas
1 Em quase toda a China, o Outono é a mais bonita das quatro estações do ano. Quase não há vento, o ar é límpido, puro, o céu mantêm-se azul, pintalgado de nuvens brancas, as folhas demoram a cair, não faz frio, não faz calor.
2 As mulheres da dinastia Tang tinham grande apreço pelos papagaios.
3 As flores do hibisco têm vida breve, desabrocham no início do Outono.
4 Han Shan estará provavelmente a recordar uma história muito conhecida da dinastia Han. Passo a contar: O imperador Han Wudi (157 a.C.- 87 a.C.) entrou um dia na sala onde se guardavam as armas do seu palácio. O quarteleiro era Yen Si, um velho de cabelos brancos, pobremente vestido. O imperador perguntou-lhe: “Há quanto tempo está aqui, isto não é lugar para um homem da sua idade!” O ancião respondeu: “Entrei para a guarda imperial no reinado de Han Wendi (202 a.C.-157 a.C.). O avô de Vossa Majestade gostava mais de letrados, eu era um homem das artes da guerra. O vosso pai Han Jingdi (188 a.C.-141 a.C.), preferia os velhos, eu era ainda jovem. Vossa Majestade prefere os jovens e eu já sou um velho. Não sou promovido há três reinados.” Impressionado com as palavras do velho quarteleiro, o imperador Han Wudi deu-lhe o comando de uma das regiões militares do império. Ver toda a história em Lu Hsun, A Brief History of Chinese Fiction, Pequim, Foreign Languages Press, 1976, pag. 32.
5 Mang Zhong, o “Grão na Espiga”, uma das vinte e quatro divisões do ano agrícola chinês. É o tempo das colheitas. Ocorre aproximadamente entre 10 e 25 de Junho.
6 Li Qiu, o “Início do Outono”, outra divisão do ano agrícola chinês que cai entre 10 e 25 de Agosto nos nossos calendários ocidentais.
7 Para o budismo chan (zen), o céu é um símbolo da iluminação da mente.
8 Estes zishi 紫芝, os cogumelos púrpura, eram transformados numa droga que melhorava o qi, a “energia vital”, fortalecia os músculos e ossos, e prometia uma longa vida.
9 Zhuang Zi (369 a.C.-286 a.C.), depois de Lao Zi, o maior teórico do taoísmo filosófico, antevendo o seu funeral, escreveu: “Quando a morte se aproximou do mestre (ele próprio, Zhuang Zi ), os discípulos prometeram fazer-lhe um faustoso funeral. Zhuang Zi não concordou e disse: Como caixão terei céu e terra, o sol e a lua serão os meus anéis de jade, as estrelas, as minhas pérolas. Todas as formas de vida me apresentarão condolências. Está ou não está tudo já pronto para o meu funeral? Porque se preocupam?” Livro de Zhuang Zi, cap. 32. Ver o texto completo na tradução de Ana Cristina Alves, em A Sabedoria Chinesa, Cruz Quebrada, Casa das Letras, 2005, pag. 147.
10 Conta-se que no início da dinastia Zhou, dois homens virtuosos de nome Bo Yi e Shu Qi preferiram retirar-se para a montanha Shouyang (na actual província de Shaanxi), a servir o príncipe de Wu que havia usurpado o trono. Quase só se alimentavam de fetos e acabaram por morrer de subnutrição. Ver a história tal como é contada por Sima Qian, Mémoires Historiques, (trad. Jacques Pimpaneau), Arles, Ed. Philippe Picquier, 2002, pag. 37.
11 As Nascente Amarelas são a mítica morada dos mortos situadas algures no ocidente distante, na montanha Kunlun, na actual região autónoma de Xinjiang.
12 Referência a um famoso poema de Tao Yuanming (365-427) ou Tao Qian, intitulado “A essência, a sombra e o espírito”. Para uma excelente tradução inglesa deste longo poema, ver Robert Hightower, The Poetry of T’ao Ch’ien, Oxford, Clarendon Press, 1970, pp. 42 a 47.