ARTE CONTEMPORÂNEA produção de património cultural Ilidio Salteiro
1
2
3
Titulo: Arte Contemporânea, produção de património cultural. Edição Print on Demand. Autor: Ilídio Salteiro. Publicação: 2017. Edição: Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e Centro de Investigação e Estudo em Belas Artes. ISBN: 978-989-98475-1-4 Contacto do autor: i.salteiro@belasartes.ulisboa.pt Capa: Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (20), 2017. Óleo s. tela, 70x90 cm.
4
ARTE CONTEMPORÂNEA Produção de património cultural
Ilídio Salteiro 2017
5
6
INDICE
Introdução Unidade do conhecimento Belas artes, artes plásticas e artes visuais Academismo, maneirismo e revivalismo Centros de arte contemporânea Tempo presente: inquietação e ansiedade Expressão, estilo e género Sistema Feiras e bienais Produção de património Protagonistas Considerações finais Bibliografia
7
7 15 21 27 31 35 41 47 53 57 61 69 73
8
Introdução
Matéria, tempo e conceitos são uma simbiose com base na qual iremos argumentar a indispensabilidade da arte contemporânea como estrutura cultural da Humanidade. O campo das artes é vasto, e é conveniente deixarmos aqui estabelecido que a nossa investigação se restringe apenas aos problemas levantados e solucionados pelas belasartes, artes plásticas e artes visuais, três denominações atribuídas a um grupo de formas e objetos cuja função extravasa necessidades primárias. Frequentemente associada a elitismos, exotismos e extravagâncias, a arte contemporânea não correspondendo a uma estética, corresponde a um sistema. Para que este se compreenda é necessário identificar os protagonistas da feitura da obra, os contextos e os atores, desde os artistas que a produzem até a todos os outros que as realizam e publicam. A arte sob o ponto de vista de quem a faz é diferente da arte sob o ponto de vista diferente de quem a vê. No primeiro caso estamos perante
um
conceito
aberto
e
substantivo e a uma vontade de integrar e participar. No segundo,
a
arte
corresponde
a
uma
fruição
cultural
indiscutivelmente prioritária, uma vez que, veiculada por juízos de valor, que contribui para crescimentos individuais. Mas entre um ponto de vista e outro, o artista tem de saber estar nos dois lados. Compreender contribuíram
para
que o
os
sistemas
aparecimento 9
de
democráticos academias,
e
consequentemente para o fim dos tratados e dos segredos dos mestres, originando o aparecimento de manifestos e outros comportamentos sociais, profissionais e ideológicos muito particulares, num ambiente novo de liberdade e expansão criativa. Liberdade criativa que encontrou como pedagogia o modelo,
o
cânone,
a
imitação
e
por
conseguinte
o
academismo, o maneirismo e o revivalismo. Compreender que a formação artística é fundamental, não só para futuros profissionais das áreas mas também para todos os níveis de ensino e em todos os ramos do conhecimento. Uns farão, outros usufruem, testemunham, certificam ou legitimam. Por isso cada vez mais é frequente detetarem-se artistas que sabem enquadrar e fundamentar o seu trabalho. A formação artística é fundamental para todos porque falar de arte é falar de cultura e falar de arte contemporânea é “fazer cultura.” Compreender que a arte contemporânea é um sistema complexo de relações entre os vários setores da sociedade que implica sistemas organizativos, meios de produção mas propicia qualidades de toda a ordem. Avaliar de que modo as formas são elevadas a um nível artístico superior. No passado bastaria ao artista comprovar o seu engenho, através de habilidades técnicas e expressivas. Hoje obriga-se também o observador a ser um utilizador informado, portador de uma senha ou palavra-chave como metáfora do conhecimento necessário capaz de lhe permitir penetrar na obra. Apenas por isto, por eventualmente não se ser detentor da palavra-passe, e por se associar as artes visuais a um acontecimento percecionado num “piscar de olhos,” a arte contemporânea é frequentemente acusada de inacessível, incompreensível, elitista. Acusações que podem 10
ser mais ou menos normais uma vez que resultam de se considerar que arte é aquilo que se encontra na história da arte. A crença nesta seleção parte do princípio de que a unanimidade ou o consenso acerca das coisas é uma prova inegável do seu valor. Mas a unanimidade não coabita com a arte contemporânea, e a cada um corresponde uma ideia de arte diferente. Compreender que a arte contemporânea não sendo uma estética é um estado! Uma espécie de idade ansiosa e uma
condição
flutuante,
resultado
das
mudanças
de
paradigmas a que estamos sujeitos constantemente. Hoje as alterações de paradigmas são muitas e constantes. A descodificação da matéria através da tabela periódica e do modelo standard, a descodificação da vida através do DNA, são ocorrências mais do que suficientes para compreender que a humanidade está numa idade ansiosa e que a arte, neste contexto, é simultaneamente um reflexo e uma proposta. Reconhecer na arte contemporânea a dimensão humana que garante a existência perene da civilização. Um milagre! A arte como milagre da existência humana. Seria inimaginável uma humanidade sem arte. Uma época sem arte seria sombria. Compreender que a arte contemporânea tem como único antónimo a arte anacrónica. Para combater estes anacronismos os museus e centros de arte contemporânea são fundamentais com a promoção de atividades que atualizam constantemente
os
seus
patrimónios.
Toda
a
arte
é
contemporânea! Sempre o foi! Teve de ser contemporânea porque de outro modo não a reconheceríamos como arte. Seria um anacronismo.
11
Perceber ainda que todos somos de facto artistas independentemente
das
áreas
profissionais
onde
nos
encontramos. Qualquer um pode ser artista. Até a ironia, as crianças, os ingénuos e os loucos podem sê-lo. Ser artista é apenas perceber os contornos da sua identidade e atuar em consonância. Mas ser artista é diferente de fazer arte. Enquanto um corresponde a uma adjetivação o outro trata de substância, de matéria. Compreender que a obra artística tem duas dimensões. Uma física, outra conceptual. A física, diz respeito à objetualidade, a conceptual diz respeito ao imaterial (Fiz, 1997). A composição da obra, numa relação de contraste entre figura e fundo, matéria e espirito ou tecnologia e pensamento, tem de refletir a expressão, o estilo e o género que o tempo lhe solicitou. Perceber a importância do mecenato como forma de investimento, que quando aplicado à arte contemporânea é participação e forma ativa de construção cultural (1). Compreender que a arte é um meio para atingir um fim. Ultrapassou-se há muito a arte pela arte, a forma pela forma, o belo, a plasticidade ou a visualidade. A arte cumpre uma função
sociológica
e
humanista
imprescindível
para
a
promoção de sinergias entre ideias e tecnologias, entre humanidades e ciências. Assim, consideramos que a hierarquia que vulgarmente se faz quando pensamos nas artes, colocando modalidades
1 Mecenato é uma designação atribuída ao apoio financeiro de entidades singulares ou coletivas a atividades culturais e artísticas. Este modo advém de Caio Mecenas (68-8 a. C.), um conselheiro do Imperador Augusto que manteve sob sua proteção um vasto número de intelectuais e poetas. Existe uma Lei do Mecenato em Portugal cujos estatutos podem ser consultados em Diário Da Republica, mas com uma ampla abrangência. 12
artísticas por uma ordem racional, deve ser relativizada, porque essa ordenação faz sentido num campo profissional muito restrito, associado à conservação ou à análise posterior das obras. Mas no momento anterior à obra, as possibilidades que as matérias oferecem são muitas, os conhecimentos que necessitam são mais e por isso mesmo a transdisciplinaridade e interdisciplinaridade (2) são métodos recorrentemente usados para ajudar a concretizar da obra. Convém também sublinhar que as denominações artes plásticas, belas artes e artes visuais, continuando a estar presentes e a ser aplicadas, tanto nos discursos académicos, críticos ou artísticos como na designação de currículos, instituições ou projetos, refletem sentidos diferentes, mas consentâneos com a contemporaneidade. Por
outro
lado
o
tema
dos
maneirismos,
dos
academismos e dos revivalismos, numa época em que o artista é obrigado a pronunciar-se sobre o que e como faz, reflete a educação cultural democrática que caracterizou o século XX com públicos muito exigentes. Um sistema educativo que se deveria generalizar com mais fulgor por todos os sectores e níveis de ensino. Mas para a prática artística integrada no ensino artístico, pode tornar-se um sistema incómodo, e algumas vezes anacrónico. Neste mundo da arte os museu e centros competem entre si, por vezes até mesmo dentro da mesma instituição como é o caso da Fundação Calouste Gulbenkian (3). Uns e outros, tendo exatamente o mesmo grau de importância,
2 Em 1959 foi introduzido o conceito de interdisciplinaridade pela aproximação entre artes, humanidades e ciências por outro (Snow, 1988). 3 Em 1983 a Fundação Calouste Gulbenkian, para além do museu e de várias galerias para exposições temporárias, inaugura o CAM, Centro de Arte Moderna o qual, atendendo à programação que tem vindo a desenvolver desde essa data, é na realidade de arte contemporânea. 13
cumprem
funções
relevantes,
embora
diferentes,
como
entidades de incentivo à produção artística. A relação entre estética e sistema é complexa porque a estética centraliza naturalmente a sua acuidade na obra artística, enquanto o sistema, discretamente, comanda o mundo da arte contemporânea com repercussões inevitáveis na feitura e no mercado da arte. Nas últimas décadas do século XX testemunhámos o aparecimento da designação «indústrias da cultura» e desse modo a arte como coisa cultural (as últimas vanguardas) deu origem à arte como facto comercial, consequência dessa indústria em florescimento muito apoiada pelas feiras de arte. Já no século XXI, a arte pode também ser vivida como coisa relacional apelando a interatividades de vária ordem (4). Arte contemporânea é geralmente vista como conteúdo histórico dentro de um determinado período de tempo, sempre recente, mas perfeitamente balizado entre uma data passada e hoje. Mas essa designação deve ser atribuída exclusivamente à arte do tempo presente (5) ou seja, à arte de todos os tempos presentes. Neste caso quando a obra com a qual somos confrontados não possui referências que nos assegurem a sua legitimação, exigindo de nós uma capacidade de análise, uma experiência do ver, uma vontade de participar. Então o necessário será apenas vontade de enfrentar o desconhecido, de estudar ou desejar partilhar e participar com o artista, como
4 Nicolas Bourriaud foi fundador e diretor do Palais de Tokyo em Paris entre 1999 e 2006, implementando um programa de atividade de arte contemporânea que espelham claramente o seu pensamento filosófico (Bourriaud, 1998). 5 Robert Storr em 2007é o comissário da Bienal de Veneza que nesse ano teve o titulo Pensar com os Sentidos, Sentir com a Mente – A Arte no Tempo Presente. 14
artista também (6). Uma vontade característica da idade da ansiedade, referenciada por Paolo Barata a propósito da Bienal de 2015, resultante de inquietações próprias da humanidade e do património cultural que vai gerando. O sistema da arte contemporânea é mantido por bienais e feiras de arte, duas tipologias de exposição com estruturas
conceptuais
muito
diferentes.
Mas
ambas
disponibilizam os meios conceptuais e logísticos convenientes para que a produção artística seja entendida por aqueles que estão de fora. Entendida como um bem de primeira necessidade, como produção de património cultural e por conseguinte com valor concreto efetivamente implícito. A arte é hoje uma moeda, e é internacionalmente reconhecida como tal (7). Para além das circunstâncias do meio (espaço e tempo) as circunstâncias das obras em si mesmas fazem pensar
sobre
a
matéria
e
a
sua
transformação.
Da
transformação da matéria resultam as tecnologias e depois resultam o género, o estilo e a expressão. Quatro fatores que nos conduzem ao autor, ao artista ou à marca, num desejo último de nos identificarmos com a pessoa. Finalmente,
para
se
compreender
a
arte
contemporânea, é importante identificar os protagonistas deste sistema e saber qual o papel de cada um deles, porque ao artista caberá apenas estar em sintonia com o seu tempo, livre de maneirismos, academismos ou revivalismos.
6 Cada homem é um artista - a estética é o ser humano, Joseph Beuys - “Organization for Direct Democracy by Referendum” (BodenmannRitter, 2007). 7 David Joselit, After Art, 2014. 15
16
Unidade do conhecimento
A arte contemporânea, aquela a que nos referirmos no contexto destas palavras, abrange unicamente as belas-artes, artes plásticas ou artes visuais, ou seja, um campo restrito dentro do universo das artes, uma vez que não engloba, de entre outras, a música, a dança, o cinema, a literatura e muitas mais. Esta delimitação é apenas metodológica e não contém nenhuma espécie da valorização de umas em relação a outras. No entanto as artes disputam entre si um pódio, fruto de circunstâncias muito particulares, sendo uma delas a determinação de sua origem. A origem da pintura, a origem da música, etc… A procura de uma ordenação das artes, faz sentido no âmbito do estudo da cultura universal englobando investigação,
inventariação,
preservação,
divulgação,
na
procura de uma identidade comum. Mas a relevância desta ordenação não equivale a qualquer valorização de umas em relação a outras. São muitos os exemplos destas disputas, passando pela definição de arte e pela definição de artista, colocando arte e artista em patamares acima das coisas comuns, mundanas e efémeras. Um patamar que encontra na identificação do belo um critério para qualificar objetos produzidos pelo homem. A partir do século XVIII, num período onde o neoclassicismo impera, este critério serve como adjetivo qualificativo dos objetos produzidos no âmbito da pintura e a escultura, enquanto áreas onde se equaciona a questão da mimeses e da representação. 17
Mas o belo e o grau de verossimilhança com a natureza, mesmo ainda no século XXI, continuam a ser um critério comum de avaliação de objetos artísticos. No século XVIII a Enciclopédia Diderot e d’Alembert publicada entre 1772 e 1775, enquadrava quatro artes, a arquitetura,
a
escultura,
a
pintura
e
a
gravura,
num
organigrama do conhecimento universal dividido em três grandes ramos: memória, razão e imaginação Hegel
(Hegel,
1974)
estabeleceu
uma
escala
decrescente e de expressividade crescente, distinguindo seis artes: Arquitetura, Escultura, Pintura, Música, Dança e Poesia. Em 1912, Ricciotto Canudo teórico e crítico de arte, pertencente ao grupo futurista, teve como objetivo retirar o cinema do mundo do espetáculo e elevá-lo ao mundo da arte. Argumenta através da publicação do Manifesto das Sete Artes em 1911, que o cinema é uma sétima arte, e entre 1922 e 1924, é editor de uma publicação periódica intitulada Gazete des Sept Arts, com 10 números, onde estes argumentos são defendidos e explanados. Hoje, com o surgimento de outros modos e meios tecnológicos e conceptuais a ordenação das artes dificilmente encontra consensos, havendo no entanto doze áreas artísticas aceites. A música (som), a dança (movimento), a pintura (cor), a escultura (volume), o teatro (representação), a literatura (palavra), o cinema (integra os elementos das artes anteriores), a fotografia (imagem), a banda desenhada (cor, palavra, imagem), os videojogos (som, cor, palavra, banda desenhada), a arte digital (artes gráficas computorizadas 2D, 3D e programação) e a ciberarte (espaço virtual). A esta numeração correspondem diferentes tecnologias e matérias disponíveis para serem transformadas em formas 18
com diferentes níveis de sensibilidade estética por meio do som, do movimento, da cor, do volume, da representação, da narrativa, da palavra, da imagem, da interatividade, da virtualidade e do espaço. Meios que constituem um universo de especificidades muito próprias que obrigam a diferentes sistemas de organização social e cultural. Fazer pintura não é o mesmo que fazer literatura. Fazer cinema não é fazer escultura. Mas se esta separação fazia sentido numa época em que se exigiam especializações, os especialistas agora, muito por causa de indispensáveis ações de interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade ou transdisciplinaridade, são cada vez maisobrigados
a
reconhecer
a
necessária
unidade
do
conhecimento (Wilson, 1999). Estamos num momento de crise, onde os paradigmas estão a alterar constantemente as sociedades (Kuhn, 1970). O homem nascido no Renascimento e com uma visão do mundo centrada em si mesmo, vitruviana, onde a perspetiva é a confirmação do que vê, dá lugar a um outro modelo baseado no espaço e na relatividade efetiva e comprovada do tempo. As diferentes áreas do saber provam a necessidade de uma
unidade
sistematicamente
do a
conhecimento outras
áreas
quando para
recorrem
aprofundarem
experiências ou partilharem ideias e conhecimentos ou simplesmente poderem usufruir de outros modos de ver (Berger J. , 1982). A aproximação das artes às ciências é evidente pela tecnologia, mas a aproximação das ciências às artes é igualmente evidente pela dimensão conceptual resultante do cruzamento entre formas e ideias sensíveis. Neste sentido o CERN, Conseil Européen pour la Recherche
19
Nucléaire (8), promove residências para projetos procedentes de qualquer área artistica Para Kuhn as ciências evoluem através de paradigmas que se procuram ultrapassar (Kuhn, 1970), do mesmo modo que na arte, quando uma obra pretende ultrapassar o modelo da anterior e ser modelo para a seguinte. Por isto não poderemos ver a arte contemporânea por áreas
artísticas
ordenadas,
uma
após
outra.
Ela
é
transdisciplinar, interdisciplinar e pluridisciplinar, formal e culturalmente hibrida. A
sectorização
ou
a
hierarquização
das
artes
corresponde a um fechamento, não compatível com os seus desígnios. A pintura foi durante muito tempo confundida com a tecnologia do óleo e do acrílico sobre tela ou sobre madeira, mas sendo esses os meios relevantes para a definirem, entre o século XV e XX, é mais do que isso. É visualidade, é perceção, é pensamento. A Pintura «pensa o mundo em lição» (Ferreira, 2014)! E a importância de uma área artística em relação a outras é fator secundário. O relevante é sempre a obra! A unidade do conhecimento, a simbiose entre biologia, física, filosofia e artes, implica um outro Homem, uma outra anatomia, uma outra geometria, espacial e um outro modo de estar no mundo. Um mundo onde a representação pela representação não ocupará um lugar primordial. Esse outro modo,
mais
experimental,
tem
sido
o
que
a
arte
contemporânea nos tem vindo a mostrar através de uma confluência de saberes, de conhecimentos, e do cruzamento constante de áreas disciplinares distintas. Leonel Moura, Marta Menezes, Patrícia Noronha (Noronha, Biopaintings Produced
8 Residências artísticas em contexto de investigação científica: http://arts.cern/ 20
by Filamentous Fungi, 2016) ou Damien Hirst, são alguns artistas que trabalham regularmente com as investigações sobre robótica, medicina, biologia e química, para a conceção e realização
de
projetos
artísticos,
implicando
recursos
provenientes do mundo da ciência, como modelos que irão reorganizar pensamentos. Mas todos fazendo falar a arte (Ferreira, 2014).
21
22
Belas artes, artes plásticas e artes visuais
Como acabámos de ver, a arte é um campo com muitas possibilidades formais, em constante reinvenção devido à multiplicidade de ofertas tecnológicas disponíveis e devido também à constante reformulação dos modelos civilizacionais vigentes. No domínio da arte, a pintura e a escultura são apenas dois ramos que, por transportarem consigo um ideal de beleza, de perfeição, de harmonia, de proporção e de equilíbrio, são designadas de Belas Artes. Em meados do século XIX, tendo como padrão de referência os estudos sobre estética (Hegel, 1974), as academias classificavam as artes em dois tipos: as belas-artes e as artes aplicadas. Assim as primeiras, situadas num nível estético elevado, eram a pintura, a escultura e o desenho, ou seja as artes totalmente concebidas pelos artistas de acordo com os seus ideais, de acordo com o seu sentido compositivo e de acordo com a sua capacidade de realização. Estas obras possuem a nobre capacidade de dignificar quem as possui. O termo belas artes associado a um ideal de beleza, carrega consigo uma noção pré-estabelecida de suporte. A pintura é associada à tela ou à madeira, a escultura ao barro e o desenho ao papel. Mas os três encontram-se associados ao princípio da mobilidade da obra ou à da sua autonomia formal. Por outro lado a designação artes aplicadas, com suportes muito variados e com soluções tecnológicas muito específicas, como por exemplo vitral, cerâmica ou gravura, resolvendo problemas de integração das belas-artes na 23
arquitetura, eram desvalorizadas por serem trabalhos feitos por artesãos com a mera função da resolução de problemas tecnológicos. No entanto os paradigmas alteram-se, e na época contemporânea os dois, artistas e artesãos (Palais de Tokyo, 2016) são colocados lado a lado, em igualdade de circunstâncias, porque o saber tecnológico que se exige para a execução das obras é altamente especializado, capaz de oferecer
hipóteses
formais
impensáveis
para
os
que
conceberam a ideia original da obra (9). Os conceitos de belo ainda são dogma na arte. São fundamentos por vezes quase religiosos, caracterizadores indiscutíveis e inquestionáveis do que é a verdadeira obra de arte, relacionados com a dimensão conceptual e espiritual da obra. Podem ser chamados tanto para fundamentarem a solução pictórica de Mark Rothko em Houston, de 1971, a conhecida Capela Mark Rothko (10), como os retábulos de João Marcos, um bispo que pinta desde os anos 70, regularmente, com imensa obra na zona centro do país (Salteiro I. , 2016). Por um lado um belo laico, filosófico e ecuménico e por outro, um belo católico, desenhado de acordo com o pensamento estético saído do Concílio Vaticano II em 1965 (II, 1999). As Artes Plásticas (11) contêm dentro de si uma ideia de matéria e espaço transformados em «coisa» pela ação do 9 No Palais de Tokyo, em Paris, a exposição Double Je, artisan d’art et artistes, de 24 de março a 16 de maio de 2016, demonstra este novo princípio de complementaridade na resolução final da obra artística. Nesta exposição podemos muitas duplas para além da fotografia de Jorge Molder modificada pelo trabalho de bordado de Capucine Herveau. Para mais informação consultar o site: http://www.palaisdetokyo.com/fr/exposition/doubleje. 10 Capela Rothko, em Houston, de devoção ecuménica, foi edificada nos anos 70, com a participação do pintor na conceção da arquitetura 11 Kant introduziu o termo «bildenden Künste» que foi traduzido para o francês como «arts plastiques». Esta designação valoriza a plasticidade como critério para avaliação ou julgamento estético. 24
homem. Uma coisa, passível de ser arte e passível de estar na origem da obra de arte (Heidegger, 1977). Os anos 10, com o cubismo e o abstracionismo, começaram a fazer apologia à da dimensão física da obra. A exaltação da composição, dos elementos estruturais da linguagem plástica, cor, linha e plano, contribuíram para uma rutura com a perspetiva renascentista, com a representação do visível, com a mimesis. A obra adquire uma autonomia que a liberta da obrigação de ser um veículo de representações de outras coisas que não seja ela mesma. Ceci ne pas une pipe, de Magritte é apenas um dos muitos exemplos emblemáticos deste outro conceito. Não é um cachimbo, é uma pintura! Depois dos movimentos impressionistas e modernistas do início do século XX adquiriu-se uma consciência muito precisa sobre o valor da plasticidade. A plasticidade passa a ser o critério principal que ajuizará sobre a qualidade estética dos objetos artísticos, considerando-se o modo como as matérias
foram
moldadas
e
quais
os
vestígios
das
gestualidades que deixam ver, e considerando-se também o modo como os contrastes entre figura, fundo, cor e contexto se equacionam num todo que valha por si próprio. A valorização absoluta da plasticidade da obra é constatável no White Cube (O'Doherty, 1999) o qual define um conceito de espaço expositivo limpo e neutro, de acordo com o que é usado hoje pelas galerias de arte, principalmente as que costumam estar presentes em feiras de arte. Os artistas plásticos trabalham com matérias (papel, tinta, pigmentos, gesso, argila, madeira e metais e muitos outros recursos) aplicando-se no domínio técnico e expressivo de cada uma delas. A expressividade é possível porque cada matéria tem o seu próprio grau de maleabilidade e plasticidade, 25
indispensável para a construção de formas. Conciliar a expressão, com a plasticidade, com a tecnologia e com a técnica são assuntos exaltados durante o século XX, quando a indústria
passou
a
produzir
novas
matérias
e
muitos
instrumentos. Como exemplo desta transformação podemos referir o surgimento da pintura acrílica que passou a rivalizar com a tecnologia do óleo, dando resposta a uma necessidade deste tempo consumista também da arte, com uma maior e mais rápida produção. Mais recentemente, as designações de belas artes e artes plásticas confrontam-se com a designação de artes visuais que suporta uma ideia ligada à visão, aos novos média e às novas tecnologias com uma multiplicidade de janelas e ecrãs e com uma possibilidade infinita de reproduzir e disseminar comunicação. A questão da reprodutibilidade da arte (Benjamin, 1992) não pára de crescer, desde a última metade do século XX até hoje, em variados e por vezes inusitados e surpreendentes suportes e para os mais variados fins. As lojas dos museus são repletas dessa oferta, com objetivos comerciais específicos, funcionais, lúdicos e culturais como suportes das obras emblemáticas das suas coleções. Mas a própria obra, através do vídeo, da fotografia ou do digital, já nasce feita múltiplo fazendo depender o seu valor apenas do número de edições. Desde a gravura, com tecnologias como xilogravura, calcogravura, litogravura e serigrafia, passando pelo offset, fotografia e cinema e continuando pelo mundo digital, com computadores,
impressoras
3D,
televisão,
câmaras
de
vigilância, telemóveis e smartphones, o espaço real vê-se confrontado com o espaço virtual sem presença física humana,
26
ciberespaço, para onde o nosso mundo pode ser transposto na totalidade como uma reprodução. A paisagem do mundo passa a ser vista em direto, na televisão, no computador, na internet, na moldura digital ou no outdoor
digital.
Os
suportes
são
muitos,
as
janelas
renascentistas multiplicaram-se em ecrãs espalhados pelos mais variados locais dando-nos versões de muitos mundos (Godman, 1995). Ecrãs visuais, tácteis, dentro e fora de casa como as janelas do nosso quotidiano (Friedberg, 2009). A designação de artes visuais, abre um leque de possibilidades expressivas por um espaço imenso, que integra o antigo observador como interveniente, como participante, como utilizador, e até mesmo como elemento componente a quem também é dada a possibilidade de interagir, apesar de frequentemente lhe ser pedido login com palavra-passe. Uma interação muito apreciada e desejada, porque efetiva a sensação de que todos somos artistas, mas que pode reduzir a obra
artística
à
mera
condição
de
espetáculo
ou
entretenimento. Estas três designações, belas artes, artes plásticas e artes visuais, caracterizam no seu todo o universo da arte contemporânea. O primeiro pela permanência e renovação do sentido «belo», o segundo pela investigação sobre as novas dimensões e composições do «espaço» e o terceiro pelo aprofundamento do sentido das «visualidades», não como fenómeno exclusivo da perceção visual, mas como fator interações sociais. É através da conjugação destes três conceitos, o belo, o espaço e as visualidades, que a arte atual se produz com formatos inevitavelmente expandidos. Deste modo, saindo do enquadramento das suas tecnologias tradicionais e apoiando27
se nas novas, ela encontra oportunidades para se formalizar com
modelos
como
o
ready
made,
o
happening,
a
performance, a instalação, ou mesmo o flashmob, na exaltação da plenitude dos 5 sentidos, visão, audição, olfato, tato e paladar. Deste modo a arte atual, expansiva, não pode possuir um formato previsível, porque as circunstâncias em que está a ser produzida, longe de serem estáveis, estão em constante transformação.
28
Academismo, maneirismo e revivalismo
A aprendizagem das belas artes, das artes plásticas ou das artes visuais tem uma história. Os tratados foram os meios mais comuns utilizados nessa história, através de manuscritos várias vezes copiados e acrescentados, que facilitaram a divulgação de processos e a afirmação de critérios de qualidade. Plínio, Cenino Cenini, Leonardo da Vinci, Francisco da Holanda, Filipe Nunes ou Cirilo Wolkmark Machado são apenas alguns dos inúmeros autores de textos sobre pintura (Lichtenstein, 1995). Os tratados foram fundamentais para a disseminação do conhecimento, teórico e tecnológico, sobre como fazer e atingir a dimensão física da obra artística. Mas, quanto à dimensão conceptual, são os manifestos que irão ter um relevo colossal na modernidade de finais do seculo XIX e nas vanguardas do século XX (Danchev, 2011). Mais do que as questões processuais, o que eles equacionam são as causas da obra e a sua questão é a dimensão conceptual. Partindo de pressupostos e de considerandos culturais, sociais e políticos sobre o mundo, perfeitamente explícitos nesses textos, os artistas ou grupos de artistas acrescentam soluções teóricas, fazem obra artística em conformidade
e
assumem
os
comportamentos
sociais
adequados. Estes manifestos foram muito difundidos nos meios de comunicação impressa a partir do século XIX, em jornais, revistas e livros, e foram promotores de discussões intensas.
29
Os tratados, até ao século XIX, valorizando os segredos da profissão e os manifestos, durante o seculo XX e XXI, valorizando os pressupostos ideológicos e conceptuais, foram meios benéficos para a aprendizagem da arte. Todos os textos,
tratados
e
manifestos
entretanto
produzidos,
encontram-se imbuídos de certezas convictas acerca do que é arte e como ela se faz. Por isso as academias e escolas de arte encontram nesses textos a matéria para se fundarem como instituições de ensino e aprendizagem da arte, o lugar onde o desenho, e mais concretamente o desenho de modelo, é praticado como estratégia pedagógica de ensino da composição das artes, sejam belas, plásticas ou visuais. Esta estratégia pedagógica propicia a consolidação de academismos,
maneirismos
e
revivalismos
porque
se
fundamentam em verdades concretas e absolutas sobre o que é arte. A questão de como, porquê, e com que objetivo deve ser formado um artista é tema de longas discussões (Hudson, 2013). Estas instituições, academias e escolas, só podem colmatar esse modo de fazer o presente a olhar para o passado quando, ultrapassadas as fases da aprendizagem, passam à fase do questionamento e da implementação da investigação. Maneirismos, academismos e revivalismos são atitudes opostas à arte contemporânea porque foram apenas a primeira fase
de
uma
aprendizagem
que
não
encontrou
eco
posteriormente. Correspondem a momentos de conformismo, com ausência de interrogações e baseados em argumentos absolutos. Mas para além dos tratados e dos manifestos é relevante sublinhar a importância que teve a revistas de arte na segunda metade do século XX, e tem ainda hoje, como veículo 30
de divulgação de uma ideia homogénea de arte, que se transforma numa espécie de manual da arte, acessível aos mais diversos públicos, com um imenso poder no mundo e no mercado da arte, mas um pouco afastada das academias e escolas. Estamos a referir revistas de arte como Flash Art, Art Forum ou Art Review (12), entre muitas outras, ainda com os seus círculos de influência ativos e alargados ao ciberespaço. No entanto, atualmente, somos confrontados com novas tecnologias e com fascínios que passam não apenas por remediarem ou transporem obras de um formato para outro em múltiplos ecrãs (Manovich, 2001), mas por acima de tudo contribuírem para a alteração de paradigmas. Estamos por isso num tempo em que muitas obras artísticas são reconstituídas noutros formatos por causa de conservação de património cultural,
por
causa
de
redescobertas
tecnológicas
ou
simplesmente por fascínio estético. A
interrogação
sobre
os
modelos
vigentes,
a
investigação e as novas tecnologias são opções que os artistas têm de tomar para produzirem uma obra em sintonia com o seu tempo. Em qualquer espaço de trabalho, atelier, oficina ou empresa, a presença de um computador, de sistema de internet, telemóveis, tablets ou smartphones, são realidades que possibilitam o acesso ao ciberespaço e que ninguém pode negar. Utilizar estes meios como recursos instrumentais, só não será maneirismo, academismo ou revivalismo desde que utilizados a favor de interrogações sobre o tempo presente. A palavra do artista através do tratado ou do manifesto corresponde sempre a um estudo e a uma investigação. Mas ela pode ter a mesma eficácia transformada em slogan de um 12 A Art Review foi fundada em Londres em 1949, a Art Forum foi fundada nos Estados Unidos da América em 1962 e a Flash Art foi fundada em Itália no final dos anos 60 e teve um formato internacional em 1974. 31
pensamento, de uma ideia, como manifesto. Os trabalhos de Joseph Kosuth, Lawrence Weiner, Ben Vautier, Patrick Minram usando uma linguagem poética, filosófica ou politica (13) para escreverem palavras, frases ou textos, são verdadeiramente manifestos públicos e urbanos sobre arte e cultura.
13 Art & Language é a denominação de um grupo de artistas conceptualistas, com origem nos anos 60 no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, tendo iniciado a publicação do jornal Art-Language em 1969. 32
Centros de arte contemporânea
Quando pensamos na relação entre o passado e o presente, entre a história e a contemporaneidade, começam a surgir
coleções
de
arte,
museus
e
museus
de
arte
contemporânea, onde as «coisas» que se guardam e preservam também se expõem. A origem dos museus prende-se com a edificação de um lugar sagrado destinado à salvaguarda de «feitos» culturais e artísticos, individuais ou coletivos. «Feitos» que encontraram o merecimento de alguém para serem entronizados e imortalizados. A origem dos museus de arte contemporânea terá resultado na ideia de fundar museus para artistas ainda vivos. Em Paris, em 1818, inaugurou-se o primeiro Museu de Arte Moderna, no Palácio de Luxemburgo, destinado a artistas ainda vivos, numa exposição com muitas dezenas de obras de David (1948-1925), de Delacroix (1798-1863) e de Ingres (1780-1867) entre muitos mais. Também em Paris, entre 1886 e 1937, funcionou o Museu de Artes Contemporâneas, na Orangerie, permitindo que muitos impressionistas expusessem pela primeira vez as suas obras em espaço público. Portugal, em 1911, também foi pioneiro na criação de um museu de arte contemporânea em consequência da divisão do Museu Nacional de Belas-Artes em Museu Nacional de Arte Antiga e Museu Nacional de Arte Contemporânea cujo acervo foi constituído por obras posteriores 1850, e instalado numa área
33
do Convento de S. Francisco na Escola de Belas Artes, atual Faculdade de Belas Artes, com entrada pela rua Serpa Pinto. No entanto essas designações foram polémicas por causa da falta de sintonia estética entre esses acervos e os movimentos
modernistas,
não
reconhecidos
por
uma
sociedade alheia sobre o que se passava à sua volta e acima de
tudo
conformada
convenientemente
com
argumentados
os e
dogmas
estéticos
enquadrados
pelos
sistemas sociais vigentes. A designação de arte contemporânea num museu, inédita e pioneira no início de século XX,
acarretou a
obrigação de definir uma época histórica, mas correndo o risco de estar permanentemente desatualizado. É este facto que levará a que que os museus, em vez de exporem o acervo, optem
por
uma
programação
baseada
em
exposições
temporárias, comissariadas, sempre com visões atualizadas, abdicando de ser museu, para ser centro, reservado a eventos de arte contemporânea ou moderna (14). A constatação de que a arte contemporânea é produção cultural relevante para a sociedade em geral, suscitou a construção de um número crescente de museus dedicados às obras de artistas vivos e até mesmo em início de carreira, umas vezes por iniciativa pública, outras por iniciativa privada, geralmente associados a políticas culturais e a missões de mecenato ou filantropia, com uma clara exposição
14 Durante o século XX muitos museus e centros, de arte moderna ou contemporânea, foram criados. Em Nova Iorque, em 1929 foi fundado o MoMA, Museum of Modern Art. Em Paris, em 1977, foi inaugurado em o Centro George Pompidou como um cento cultural pluridisciplinar. Em Portugal podemos referir o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão inaugurado em 1983, como a extensão do Museu Calouste Gulbenkian para o presente.
34
do patrono no nome da instituição, como são os casos de Pompidou, Gulbenkian, Rainha Sofia ou Guggenheim. No entanto a designação de arte contemporânea acrescentada ao nome do patrono, dá-lhe uma dimensão estética fundamentada num pensamento histórico situável em 1850 ou início do século XX, ou depois da 2ª Guerra Mundial, ou depois de 1989, ou início do século XXI. Os centros de arte contemporânea, transportando consigo o património herdado dos museu de arte moderna, são acima
de
tudo
centros
de
investigação,
experimental,
provocadora, ativista e cúmplice, que caracteriza a produção artística no presente. A divisão da arte em arte antiga, moderna ou contemporânea, não é muito relevante para o artista, nem para a produção artística, uma vez que o passado é um todo homogéneo e nunca é uma linearidade cronológica. Essa divisão é relevante para a investigação histórica, museológica e cultural como resultado de uma necessidade de sistematização do conhecimento. A arte contemporânea não possui nenhuma definição, nenhuma tipologia. Basta que seja feita e disseminada em função da sua atualidade. Por
isso
quando
estamos
a
falar
de
arte
contemporânea, não estamos a falar de história nem de estética, mas sim do presente que envolve e enquadra a produção artística. Referimo-nos à arte do nosso tempo, do tempo que vivemos, do presente em constante transformação, em constante movimento. Referimo-nos apenas aos assunto sobre os quais ainda falta passar os olhares da história. Os museus e os centros de arte contemporânea, mais do que locais de exposição de passados recentes, deveriam 35
assumir de uma forma clara o seu papel de centros de investigação
artística.
programação
geral
do
Como Palais
exemplos de
Tokyo
salientamos em
Paris
a e
especificamente uma publicação editada em 2001, com um conjunto vasto de respostas provenientes de vários sectores da sociedade internacional a uma pergunta muito simples: o que espera de uma instituição artística no século XXI (Tokyo, 2001). São locais de perguntas, de experimentação de hipóteses e de apresentação de soluções construtoras de futuros, contribuindo sempre para uma consciência coletiva da importância da atividade artística no presente.
36
Tempo presente: inquietação e ansiedade
O tempo é uma entidade física concreta em torno da qual se relacionam o espaço, a matéria e a energia. Da conjugação destas quatro fatores resultam os ciclos das coisas e dos acontecimentos, a repetição, a sequência, a procura, a investigação, num movimento perpétuo, contínuo e infinito. O tempo como coisa cíclica, fluida e deambulante contrasta com o tempo histórico, cronológico e linear. Parece-nos relevante referir as diferenças entre a análise de quem constata e avalia o já produzido, e quem faz, produz e realiza. A conceção de passado, presente e futuro advém de uma compreensão histórica do mundo, baseada numa reta seccionada em três partes, denominadas antes, agora e depois. O tempo como coisa cíclica corresponde a um entendimento
da
atualidade
como
o
somatório
dos
conhecimentos adquirido. Como a perceção do tempo igual a um todo espacial, sem distâncias temporais, sem perspetivas e pontos de fuga. Como matéria em permanente adequação em consequência da energia que lhe é intrínseca. A arte contemporânea é feita e produzida ao nosso lado e no mesmo tempo. O oposto da arte contemporânea é somente a arte anacrónica.
37
A obra artística é concebida, produzida e feita sempre em contexto contemporâneo, ou seja, em sintonia com o seu tempo. Quando isto não acontece sucedem os anacronismos. Como exemplo pensemos como seria interpretada uma obra tão emblemática da cultura ocidental, como é a Mona Lisa de Leonardo da Vinci se tivesse sido feita em 2016. E qual seria o sentido do quadro Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, pintado em 1500? Se isto tivesse acontecido, as duas obras não seriam assinaladas como coisa artística porque lhes faltavam as premissas próprias do tempo de cada uma delas. Seriam verdadeiros anacronismos! Em 1500 Les Demoiselles d’Ávignon seria invisível e transparente e irreconhecível, em 2015 Mona Lisa seria um exercício de habilidade, de técnica, demonstrando somente muitas competências profissionais. Mas
se
considerarmos
que
eventualmente
seriam
reconhecidas, que efetivamente se teria detetado a dimensão estética que possuem, ou outra, então nesse caso estaríamos certamente num mundo diferente deste. Um outro exemplo, com o qual estamos habituados, é o universo das falsificações em arte. Um universo composto por anacronismos, por obra feita fora do tempo. Estas obras, por maior qualidade estética e formal que tenham, não possuem o seu “tempo presente”, não qualquer têm filiação. Os
preconceitos,
os
tabus,
enchem
a
arte
contemporânea. Esta tem sido definida como um período histórico, pelos mesmos modelos formais e conceptuais aplicados à arte que não é contemporânea, ou seja com um enquadramento estético estabelecido. Este enquadramento estético assim definido, não é uma realidade que pertença à arte contemporânea.
38
Os parâmetros que definem a arte contemporânea são estabelecidos pelo meio geográfico, social e relacional, em todos tempos, sem passados, presentes e futuros, porque só existe presente, em sintonia com a obra produzida. Sem esta sintonia a obra está, fora do tempo, é extemporânea, não é contemporânea. Não se pode delimitar a designação de arte contemporânea, sob o ponto de vista da produção de património cultural, dentro de um período histórico delimitado por «um aqui / agora» e qualquer passado. Um dos acontecimentos mais relevantes no universo da arte contemporânea tem sido a Bienal de Veneza, cuja história se iniciou em 1895 e se mantém viva, com uma periodicidade nem sempre regular por força das circunstâncias sociais e políticas que assolaram a Europa durante o século XX. Mas entrou no século XXI com um fulgor e uma dinâmica que ilustra bem a importância da arte contemporânea como sistema dinâmico que promove relações culturais e propõe outros olhares. A Bienal de Veneza é uma instituição que organiza periodicamente eventos de cinema, teatro, arquitetura, dança, música e artes visuais, mantendo a agenda cultural de Veneza repleta de motivos que justificam peregrinações culturais constantes. A Bienal de Veneza é, enquanto instituição, uma obra em desenvolvimento, que traz a essa cidade um público diversificado, interessado e consciente, tanto do seu papel na conservação desse património cultural, como na atualização constante do «estado da arte». Se não fora esta azáfama de arte contemporânea, englobando várias áreas, provavelmente Veneza não estaria como está, ativa, continuando a ser uma encruzilhada de culturas ao mais alto nível, promovendo debates, e por conseguinte gerando pensamento novo e 39
reformulando
paradigmas.
Estes
debates
/
exposições,
formalizados em redor dos conceitos de belas artes, artes plásticas
e
artes
visuais,
vêm
transformando
a
arte
contemporânea. Em 2001 o debate foi sobre a Plateia da Humanidade, em 2003 sobre Sonhos e Conflitos – Ditadura do Observador, em 2005 sobre Experiência da Arte – Sempre um pouco mais longe, em 2007 sobre Pensar com os Sentidos, Sentir com a Mente – a arte no tempo presente, em 2009 sobre Fazer Mundos, em 2011 sobre IlumiNações, em 2013 sobre Palácio Enciclopédico, em 2015 sobre Todos os Futuros do Mundo. Recentemente foi anunciado pelo diretor Paolo Barata que, depois da edição em 2015 centrada nas fraturas e divisões que assolam o mundo de hoje e na constatação de que o tempo presente corresponde a uma idade da ansiedade, a edição de 2017 deverá ser sobre a valorização dos “universos criados pelos artistas” porque eles são fatores que fomentam, generosamente, a vitalidade necessária no mundo que vivemos (Venezia, 2016). Arte
contemporânea,
quando
balizada
por
uma
cronologia histórica, é confortável para o observador porque a obra surge legitimada pelos mais variados enquadramentos, desde a moldura até ao espaço museológico, desde as instituições até aos agentes promotores. Vê-se a obra, percebemo-la em função do que vivemos. Encontrando-se catalogada, classificada, argumentada ou instituída, tudo será mais fácil. Mas quando existe uma produção artística que é feita no tempo presente (15) e que nos confronta, sem qualquer
15 2007, Pensar com os Sentidos, Sentir com a Mente – A arte no tempo presente. Comissário Robert Storr. 40
referência que nos assegure a sua legitimação, exige de nós uma capacidade de análise, uma experiência do ver, uma vontade de participar, de aprofundar outros conhecimentos, de estudar (16) ou desejo simultaneamente de partilha e de participação, ao lado do artista como artista também (17). Esta vontade
é
característica
dessa
idade
da
ansiedade,
referenciada por Paolo Barata a propósito da Bienal de 2015, resultante das inquietações da humanidade no presente e do património cultural que vai infinitamente gerando. Entre o início da obra, a sua concretização ou exposição e o tempo presente, vai a idade ansiosa da obra, numa contagem sem fim determinado. Uma obra com 2, 20, 200 ou 2000 anos, quando está a ser vista, está sempre a ser revitalizada, atualizada e por isso será sempre contemporânea. Temos idades, temos estilos, temos culturas diferentes mas somos todos contemporâneos.
16 Lawrence Weiner, Learn to Read Art, 1991. Numa entrevista dada a Marjorie Wellish para a BOMB magazine em 1996, Lawrence Weiner explica “That phrase is advertising a particular means with which you can go through life, it doesn’t tell you that if you don’t learn to read art you’re going to be fined, it just says: Learn to Read Art. I don’t see that as an imperative. All artists are attempting to communicate, in whatever form, and if you can learn to read that form then you can either accept it or reject it. If you can’t read it, then it doesn’t mean shit to you.” 17 (Bodenmann-Ritter, 2007). 41
42
Expressão, estilo, género
Ni le classicisme, ni l’expressionnisme ne seront supérieure l’un à l’autre. Chacun exprime un aspect différent de notre être : le premier, la discipline de l’esprit, le second, le tumulte du cœur, mais tous les deux nous touchent quand l’artiste atteint, avec la maîtrise d’un Poussin, la puissance d’un Soutine, au chef-d’œuvre (Berger R. , 1963).
Em consequência da liberdade para a exaltação da nossa individualidade, consequência natural da revolução francesa, estruturada pelos valores da liberdade, igualdade, fraternidade e da caminhada até à definição legislativa da Declaração Universal dos Direitos do Homem, este adquire uma importância como entidade individual nunca atingida até então. No início da época moderna, Miguel Ângelo teve autoridade suficiente para impor a sua obra estabelecendo a forma de Deus igual à forma do Homem, interpretando à letra a mensagem bíblica (18). A sensibilidade, intrínseca na atividade artística, é algo que se exige ao artista. Trata-se de uma capacidade que o obriga o estar de sobreaviso para as questões dos sentidos. Os sentidos que nos mantêm sintonizados com o mundo. O olfato, a visão, o paladar, o tato e a audição são as janelas da sensibilidade por onde passa toda a atividade artística, num vai 18 Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gênesis 1:26). 43
e vem neuronal e sináptico, entre a procura e o encontro, como variáveis de uma mesma equação: só se encontra o que se procura e se não se procurar dificilmente se encontra. Para além da dimensão física, suporte e tecnologia, a obra tem uma dimensão conceptual baseada no estilo, género e na expressão, domínios que garantem espaço para o Homem expressar a sua individualidade, para continuar a afirmar a sua capacidade de ser cidadão e de ser autor. Devido a estes fatores a expressão foi o fator a sobressair, a enaltecer, a valorizar na arte do seculo XX. Os cânones do Academismo fundamentados no Classicismo foram quebrados e a democracia inicia os seus primeiros passos na arte através da exaltação da dimensão expressiva individual. O carácter expressivo na obra artística é sempre evidente, porque sem ele não existiria arte. Sem expressividade, a obra de arte não passará de uma obra à procura de autor (Berger R. , 1963), à procura de uma dimensão expressiva. Neste caso haveria apenas uma obra inexpressiva, somente a tecnológica. Mas uma obra inexpressiva é irrelevante! Foi a exaltação da expressão que fez surgir o expressionismo. Uma expressão visivelmente explícita em Bosch, El Greco, Rubens, Velasquez, Goya ou Turner, atravessando estilos e géneros, que se salientou claramente nos movimentos vanguardistas. O expressionismo dos inícios do
século
XX,
o
abstracionismo
expressionista
e
o
expressionismo figurativo dos anos 80, exaltam o individuo como algo de particular e relevante para o mundo. No expressionismo exalta-se a multiculturalidade da humanidade, em todos os géneros, em todos os estilos. Desta exaltação sobressai a identidade da obra, com o seu autor / artista, com
44
aquele que a fez, sem necessidade de assinaturas, marcas, provas ou certificações adicionais, porque a forma visual basta. Enquanto a dimensão expressiva da obra tem um sentido profundamente individual, denunciando a identidade humana da obra de arte, o estilo tem um sentido coletivo, social, grupal e temporal. O Gótico sucede-se ao Românico, o Barroco ao Maneirismo, o Cubismo ao Naturalismo, o Pós-modernismo ao Modernismo, um modo a outro modo. Por outro lado a arte europeia difere da arte africana, a arte portuguesa da italiana, o Renascimento de Lisboa do Renascimento de Coimbra. No estilo existe alguma unanimidade civilizacional ou cultural, em relação aos processos compositivos que passam pelo modo como os elementos são estruturados e organizados. Têm características próprias que unificam trabalhos de artistas, de grupos ou movimentos, em função do tempo e do espaço, estabelecendo datações e proveniências. Se a datação e a proveniência são as possibilidades imediatas que o estilo deixa ver, o género corresponde a uma categoria
artística
ao
nível
compositivo
que
origina
agrupamentos de obras baseados em critérios formais e temáticos. Em pintura são vulgarmente reconhecidos com género, o retrato, a paisagem, a natureza morta, a arte religiosa, a pintura de história, a vanitas. Estes agrupamentos não se baseiam na autoria, nem no tempo nem no espaço. Baseiam-se apenas na composição formal com objetivos definidos. Retrato, natureza morta e paisagem são géneros frequentemente
agrupados
em
exposições
temporárias,
tornando-se momentos de grande relevância porque implicam uma conjugação de vontades e possibilidades de agrupar peças dispersas por várias coleções, públicas e privadas. 45
O género situa-se no âmbito profissional relacionado com as competências do autor, próximo do conceito de encomenda, e de grande utilidade para a inventariação, catalogação, arquivo ou exposição. A definição de género depende das circunstâncias sociais que enquadram o tempo de cada obra, de cada autor. No
tempo
presente,
estes
géneros
artísticos,
separados em retrato, paisagem ou natureza morta e associados aos princípios da representação do mundo visível, fundem-se entre si em obras onde prevalece a objetualidade associada à expressividade. Os retratos que tinham uma composição perfeitamente definida num retângulo ao alto, com uma figura central sobre um fundo escuro, que às vezes se abria com uma janela, dão origem ao retrato fotográfico composto como capa de revista ou outdoor, como podemos ver em Alex Kats. Aquela fusão deu origem a uma outra lista de géneros artísticos,
vulgarmente
designadas
por
categorias,
não
baseada em questões formais, mas baseada nos suportes materiais da obra: desenho, pintura, escultura, body art, performance, happening, ready made, instalação, fotografia, vídeo, web art, etc…. A expressão, o estilo e o género são fatores de caracterização e catalogação. O estilo é relevante pelo processo e pelo modo de fazer, e a expressão pela identidade da obra e o género pela diferenciação formal e compositiva. Em consequência deste elevado grau de complexidade tecnológica que a transformação das matérias e feitura das novas
formas
exigem,
a
produção
artística
conjuga
recorrentemente três processos oficinais: um deles é a mão do 46
artista, em todas as fazes da obra, desde a conceção até aos acabamentos. Um segundo processo é o recurso ao saber fazer artesanal e técnico como complemento da obra final. E por último um processo que recorre ao fazer industrial quando se deseja grande rigor tecnológico, superável pelo trabalho com equipas especializadas e com máquinas. A atualidade está no contexto da arte, do artesanato e da indústria. Este último transmuta rapidamente o artista em marca (19), colocando num outro patamar a dimensão expressiva, o estilo e o género como meios identificadores do caracter da obra de arte. Este processo de trabalho é utilizado por imensos artistas como por exemplo Jeff Koons (1955) ou Anish Kappor (1954). Neles o processo industrial é seguido sofisticadamente, através da admissão de operários, sob a designação e estatuto de assistente de artista estagiário, uma profissão muito cobiçada e desejada por muitos jovens recém formados na procura de integração no meio artístico (Petreycik, 2013). Mas este processo constitui momento de reflexão para a arte em geral e para a arte contemporânea em particular, como podemos comprovar pela realização da exposição Double je, comissariada por Jean de Loisy a partir de uma novela de Franck Thilliez, Double je, en quête de corps, que decorre no Palais de Tokyo em Paris, onde artistas e artesão são colocados lado a lado (20).
19 (Foulcault, 2012) (Barthes, 2004) 20 Double Je, Palais de Tokyo, Paris, de 24 de março de 16 de maio de 2016. Consultado em http://www.palaisdetokyo.com/fr/exposition/double-je em 24 de maio de 2016. 47
48
Sistema
A arte contemporânea pode ser avaliada em função de vários pressupostos. Um deles radica no grau de semelhança com a natureza, relacionada com a capacidade que o homem possui de a imitar (mimesis). A obra é vista como uma espécie de duplicado, de cópia do real, valorizando-se a obra pela questão da habilidade. Um segundo pressuposto coloca o observador no desejo de encontrar na obra uma forma significante com capacidade de lhe gerar emoções estéticas. Um terceiro, será a capacidade de o artista dominar e transformar matérias em função da expressão das suas emoções íntimas, pelo gesto ou pela performance. O seguinte considera a arte um conceito aberto, plural, dominado sobretudo
pela
dimensão
conceptual
das
formas,
ultrapassando muito as suas dimensões físicas. Um quinto pressuposto a ter em conta é o peso das instituições, promotoras,
cúmplices
da
atividade
artística,
autênticas
parceiras no plano da produção (Warburton, 2007). Estamos pois na presença de um sistema complexo, cuja função é a contextualização da obra com base nestes fatores que a legitimam. Fatores com repercussões diretas na produção artística e por conseguinte na produção cultural. Todavia mimesis, emoção estética, expressividade, conceito e contexto constituirão sempre a estrutura de análise e fruição de toda e qualquer obra contemporânea. Como já ficou explicito anteriormente quando falamos da arte contemporânea, não falamos da história da arte 49
recente. Falamos da produções artísticas do nosso tempo. Queremos referir artistas ou pessoas (21), que produzem neste preciso momento, em resultado das suas investigações e estudos sobre aspetos e pontos de vista do quotidiano, quase sempre inusitados, porque movidos pelos domínios da sua própria sensibilidade, plenos de autonomia criativa. A arte contemporânea é exclusivamente a produção artística em sintonia com o seu tempo, com o seu lugar, resultante
de
todos
os
acontecimentos,
de
todos
os
pensamentos, de todas as motivações que nos assolam, independente de maneirismos, academismos e revivalismos. Não tem fronteiras geográficas, que a compartimente em regional, nacional ou internacional, nem cultura hegemónica de algum continente sobre os outros. O que possui são valores civilizacionais e culturais com tradições e comportamentos e modos de vida diferentes de lugar para lugar. No entanto, devido à grande facilidade de conexões em rede global, facilitando aproximação entre povos, surge uma cultura globalizante contrária a uma multiculturalidade, com benefícios e riscos na mesma percentagem e por isso mesmo polémica e mesmo fraturante. Mais do que estética, o que se verifica na arte contemporânea é o funcionamento de um sistema com um peso cultural evidente. Um sistema que envolve muitos intervenientes e agentes, uma vez que os produtos resultantes da
atividade
artística
contemporânea,
integram
mundos
diferentes no mesmo espaço-tempo. Há mundos que os assimilam somente como produtos culturais, mas há outros que 21 Martin Kippenberger contrapõe à maxima de Joseph Beuys, everyone – each person – is an artist, a seguinte afirmação: every artist is a person. Estas duas afirmações são complementares.
50
os usam como uma moeda realmente internacional. É este o conceito
que
se
encontra
presente
na
afirmação
frequentemente ouvida ou lida sobre quando alguém, ou alguma instituição, diz possuir dois Picassos, três Cézannes, e um Miró (Joselit, 2013), para referir apenas alguns dos mais comuns artistas / moeda. Desde os primeiros anos do século XX, assistimos à produção artística como coisa exclusivamente cultural, com a intervenção de movimentos de vanguarda e a realização de ações experimentais, com apoios públicos ou privados, movidos por vontades intensas de participação no contexto cultural do seu tempo (22). Posteriormente a produção artística assume a sua posição como bem de consumo comum, numa lógica comercial efetivada em feiras de arte disseminadas pelo mundo (23). Como outra via, mais recentemente, assistimos a uma lógica relacional em que o observador passa a ser utilizador com palavra passe, envolvido por acontecimentos culturais muito interativos e por vezes muito complexos. O espectador faz parte de um contexto que mistura cultura e entretenimento, com limites de difícil delimitação porque na realidade o hedonismo corresponde a um ponto balizar na vida quotidiana e por conseguinte na cultura. Podemos assim determinar três modos distintos de caracterizar a arte contemporânea como sistema: A arte como coisa cultural (vanguardas e criticismo).
22 Para melhor se entender o que aqui se afirma aconselha-se a leitura do livro Obra, de Émile Zola, na qual se retrata uma época, focada lateralmente em Cézanne e no mundo em seu redor (Zola, 1886). 23 Em contraponto com a Obra de Émile Zola aconselha-se a leitura de O Mapa e o Território de Michel Houellebecq, como exemplo de uma realidade mais próxima dos tempos atuais (Houellebecq, 2010). 51
A arte como coisa comercial (indústria, mercado e feiras de arte). A
arte
como
coisa
relacional
(interatividade
e
ciberespaço). A arte contemporânea faz parte de um sistema que transforma as matérias que a natureza oferece, tanto físicas como
conceptuais,
em
património
cultural,
em
riqueza
verdadeira, como elemento que garante a autonomia individual ou politica.
Sendo fator
de
fortalecimento
cultural, de
dinamização de atividades comerciais e contribuindo para um relacionamento social saudável, é correntemente assumida como moeda internacional de circulação comum e cotada em bolsa, passando por processos de legitimação da obra ao nível artístico e ao nível económico. Esta ligação explícita e clara entre estes dois universos é usada como projeto artístico pela artista Sarah Meyohas (24) quando faz depender o “desenho das suas pinturas a óleo sobre tela” de investimentos financeiros que a própria artista faz na bolsa. Trata-se de um formato resultante de um jogo inusitado que o mundo da arte consome fácil e rapidamente. É pois um sistema que pode ser entendido até ao ponto de nós mesmos participarmos nele, como é o caso desta jovem artista, correndo os riscos inerentes. Enquanto uns se valorizam
outros
desvalorizam-se
e
podem
originar
desesperos. Este contraste pode ser exemplificado pelo caso de António Manfredi, diretor do Museu de Arte Contemporâneo de Casoria, que promoveu em 2011, uma queima de obras do acervo do museu com o fim de chamar a atenção do estado italiano para a necessidade de se conservar o património
24 Entrevista dada https://vimeo.com/158686629
por
52
Sarah
Meyoha
na
CNBC:
artístico uma vez que se encontra em fase crítica de conservação (25). Assim constata-se que produção cultural advinda da arte contemporânea balanceia num sistema muito flexível e sinuoso entre alguns dos aspetos atrás referidos: o desejo constante das novas vanguardas e criticismos associados tanto a um romantismo nostálgico como a um futuro ficcionista, uma utilização
partilhada
da
arte
como
um
medium
de
relacionamentos sociais diversos, e a arte como meio para mover as economias e as finanças.
25 «The final aim of artistic production is the work of art, unique and untouchable, an extension of human self-consciousness meant as an understanding of the human condition in contemporary society. To destroy it with fire means to deny its intended function, almost an act of vandalism modifying its original meaning and turning it into means of social protest. When artists to do with a sense of solidarity, this gesture becomes a protest against the status quo. CAM Art War is peaceful revolution engaged in by artists and the intellectuals to fight against homogenization the cultures. We live in a period of heavy social and political movements. Peoples protests, especially so in this historical period. It is a movement against the ravages of unbridled capitalistic greed to and an outcry for freedom against their repressed exasperation». Ler mais em: http://www.casoriacontemporaryartmuseum.com/blog/en/cam-art-warmanifesto. 53
54
Feiras e bienais
Os museus enquanto fiéis depositários de acervos resultantes de doações, aquisições e de heranças, são polos centralizadores e marcos culturais nos meios urbanos, em paralelo com a arquitetura monumental construída em função de
muitas
causas,
religiosas,
desportivas
ou
políticas.
Costumam gerir um património, público ou privado, através de exposições temporárias com o objetivo de serem espaços de debate
cultural
e
não
apenas
repositórios,
procurando
promover dinâmicas que façam com que o mesmo público se desloque ao museu com regularidade. Que o utilize! As exposições temporárias fora do contexto do museu surgem a partir das exposições universais, dos salões, de concursos e de bolsas, associadas a uma política cultural dos estados mais desenvolvidos promovendo relações comerciais e culturais entre eles e o mundo, seguros do valor económico que a atividade cultural origina. Assim, periodicamente, eventos culturais determinam os calendários de muitas cidades em todo o mundo. Destes eventos, episódicos e momentâneos, aqueles que sobressaem no mundo da arte contemporânea são as feiras e as bienais. As feiras traduzem bem a ideia de mercado como motor de economias e finanças. Os museus colocando em segundo plano a sua função de depósito de obras, através de exposições temporárias passam a desempenhar a função de centros culturais e locais de relacionamentos sociais. Por fim as bienais desempenham a função de debater os momentos 55
presentes e propondo soluções advindas da investigação feita por comissários, curadores e artistas. Neste contexto nasce a Bienal de Veneza, em 1895, nesta data ainda com uma grande incidência nas artes decorativas, mas cujo perfil se foi adequando ao longo do seculo XX, caminhando para um âmbito completamente internacional. Hoje, no século XXI, as bienais têm contribuído para uma dinâmica cultural, que as colocam num dos centros de construção do pensamento contemporâneo. As feiras de arte, por sua vez resultam do incremento comercial da produção artística contemporânea do pós-guerra, que culmina na assunção das indústrias da cultura nos anos oitenta, sabendo retirar partido de novas tecnologias e agitando substancialmente todos os paradigmas sociais. As feiras de arte são estruturas expositivas que, antes de mostrarem os artistas que expõem, privilegiam em primeiro lugar a estrutura que representam: as galerias de arte e os seus galeristas. Estas, muito apoiadas pelas revistas de arte (26) e pelo campo editorial, constituem núcleos promotores de diversas áreas da produção artística e as disseminam no espirito de atividades industriais ligadas à cultura (27). As feiras de arte são excelentes momentos para intercâmbios de obras ou de artistas, estabelecendo diálogos, acordos e contratos. São espaço para os colecionadores 26 Entre as imensas revistas de arte que hoje circulam no mundo da arte e no mercado da arte destacamos a Flash Art, uma revista mensal focada exclusivamente na arte contemporânea desde 1967 ano da sua primeira publicação. Fundada em Itália, pelo Giancarlo Politi, teve um papel importantíssimo para a firmação da Arte Povera, transformando-se em 1978 na Flash Art International, um espaço de comunicação e informação europeu e norte-americano, mas objetivado para dar uma perspetiva europeia da arte norte-americana. http://www.flashartonline.com/about/ 27 Recomenda-se um aprofundamento sobre a história da Saatchi Gallery fundada em 1985 por Charles Saatchi, irmão de Maurice Saatchi. Não desenvolvemos mais este tema porque se o fizéssemos extravasaria o contexto deste texto. 56
ajuizarem sobre as suas coleções e tomarem decisões sobre investimentos
futuros.
São
momentos
para
os
artistas
encontrarem pares e soluções estéticas que certamente não encontrariam nos seus lugares de origem, e também para contactarem
com
marchands,
curadores,
comissários,
colecionadores ou público em geral. Nestes primeiros anos do século XXI as bienais têm sido realizadas em torno de um tema (31ª Bienal de São Paulo, Como usar coisas que não existem, 2014), enunciado por um diretor ou comissário e concretizado por curadores (28). Tem sido também esta a metodologia da bienal de Veneza que sobretudo tem sido um lugar de debate, de experimentação e de circulação de ideias, artistas e visitantes ativos. Não se trata de reconhecimento de carreiras artísticas, fazendo confirmação de louvores, mas antes um lugar de encontro de pontos de contacto conceptual com a obra, com o tempo e com os seus pares. Trata-se de uma sintonia e uma coerência que caracteriza a arte contemporânea quando participada num ambiente de bienal, focada no tempo presente e na relevância da função da arte contemporânea, como possibilitadora de 28 20th Biennale of Sydney: The future is already here – it’s just not evenly distributed, foi comissariada por Stephanie Rosenthal. Francseco Bonani, em 2003 foi comissário da Bienal de Venza: A Ditadura do observador. Jochen Volz, com Gabi Ngcobo, Júlia Rebouças, Lars Bang Larsen e Sofía Olascoaga, é o comissário da 32ª Bienal de São Paulo intitulada Incerteza viva. No texto de apresentação refere-se: Aprender a viver com a incerteza pode nos ensinar soluções. Compreender diariamente o sentido da Incerteza Viva é manter-se consciente de que vivemos imersos em um ambiente por ela regido. Assim, podemos propor outras formas de ação em tempos de mudança contínua. Discutir incerteza demanda compreender a diversidade do conhecimento, uma vez que descrever o desconhecido significa interrogar tudo o que pressupomos como conhecido. Significa, ainda e também, valorizar códigos científicos e simbólicos como complementares em vez de excludentes. A arte promove a troca ativa entre pessoas, reconhecendo incertezas como sistemas generativos direcionadores e construtivos O debate-titulo da edição anterior proponha Como usar coisas que não existem, uma espécie de invocação poética do potencial da arte e da sua capacidade de agir e intervir nos locais e nas comunidades 57
remodelações remodelações
de serão
paradigmas benéficas?
(Kuhn, Umas
1970). vezes
Estas sê-lo-ão
certamente, outras não, mas esse pode ser o perigo da arte e o risco de se fazer arte. Entre feiras de arte e bienais, entre mercado da arte e debate, entre feira e fórum, encontra-se o universo da arte contemporânea vinculado ao tempo presente, desvinculado de obrigações estéticas unânimes, desvinculável de criticismo académico, disponível para muitas seleções e eleições, numa espécie de fim da «ditadura do observador» num período em que se expõe uma vasta polifonia de vozes e pensamentos diferentes e independentes.
58
Produção de património
A produção artística transforma-se naturalmente em património cultural, quando existe uma fundamentação que a justifica e um enquadramento que a valoriza em maior ou menor escala. O tempo presente (29) necessita de ícones (30) que afirmem o seu poder pelo constante equacionamento dos modelos anteriores. Trata-se simplesmente da necessidade básica e primordial que caracteriza a humanidade. Esses ícones são aquilo que se salienta, são o mundo dos sinais, dos objetos, das coisas e dos acontecimentos imbuídos das verdades dos seus tempos presente. Mas antes de serem meios para muitos fins, foram o resultado de muitas interrogações e desejos, de muitos investimentos, de muitas sintonias e partilhas. Geralmente estes investimentos e sintonias não têm visibilidade porque antecedem a apresentação pública da obra e ficam subliminarmente encobertos, atrás da visibilidade do ícone. É importante refletir-se sobre o período anterior à feitura da obra, como um espaço para investimentos na arte contemporânea porque é o momento em que o património cultural está a ser estrutrado. Esta não pode continuar a ser 29 Em 2007, Robert Storr foi o comissário da Bienal de Veneza intitulada Pensar com os Sentidos – Sentir com a Mente. Arte no Tempo Presente. 30 «Ícone é o signo que se relaciona ao seu objeto por possuir uma qualquer semelhança com este, quer esse objeto exista ou não. Podem ser ícones as imagens, as fotografias, mas também os mapas, os diagramas e as metáforas, que apresentam uma semelhança estrutural com o que significam». (Gardim, 2006). 59
entendida como uma atividade excêntrica, causadora de despesa dispensável, como um luxo supérfluo. Muitos estados compreendem claramente a dimensão económica desta riqueza, com investimentos culturais avultados, e com a certeza de que os benefícios colhidos são a curto prazo muito maiores, como por exemplo é o caso dos investimentos no Centro George Pompidou no último quarto de século XX e o Palais de Tokyo, na primeira década do século XXI (31). Esta importância, há muito reconhecida, é constatável em inúmeros outros espaços que passaram a dedicar-se á arte contemporânea, transformando museus em centros, através da tomada de consciência de que um investimento na arte contemporânea
é
uma
contribuição
para
produção
de
património cultural novo. Quando se fala de arte que pertença a um tempo que não o presente, a obra possui uma dimensão histórica, apresenta-se autorais,
identificada,
devidamente
com
referências
contextualizada
temporais
com
e
exposições,
catálogos, ou livros. Neste caso, com o conhecimento desvendado, com mais ou menos trabalho, está facilitada a sua fruição estética e o seu entendimento conceptual. Mas se o trabalho artístico surgir sem estes dados, desconhecido e mesmo anónimo, sem referências, por ter sido feito no tempo presente, esse entendimento e fruição serão difíceis. Esta dificuldade é natural e especifica da arte contemporânea exigindo daqueles que desejem entende-la e usufrui-la um trabalho acrescido de aproximação progressiva que os conduza a uma aliança estética entre eles e a obra. 31 Dois centros artísticos promotores de dinâmicas culturais na cidade de Paris: o Centro Nacional de Arte Contemporânea George Pompidou, inaugurado em 1977, foi uma ideia de André Malraux. O Palais de Tokyo / Site de Création Contemporaine foi inaugurado por Lionel Jospin no dia 21 de janeiro de 2002, teve Nicolas Bourriaud na direção entre 1999 e 2006. 60
Este trabalho de aproximação progressiva à obra, ao qual poderemos chamar de ajuizamento, pode ser auxiliado através de muitos protagonistas do mundo da arte, como críticos, galeristas, curadores e comissários. No entanto acreditar nestes ajuizamentos será privilegiar a centralidade, a hegemonia, a globalização, a uniformidade e por conseguinte a descaracterização individual. Mais relevante será cultivar-se uma autoridade individual fundamentada num estado da arte.
61
62
Protagonistas
Os protagonistas da arte contemporânea localizam-se em dois tempos distintos: um primeiro tempo antes da realização do trabalho artístico, com uma origem determinável numa ideia, e um outro depois do trabalho artístico realizado, todavia sem um fim determinado ou com um presente sempre adiado. Entre essa origem e o presente vai a idade dessa obra com muitos intervenientes, uns mais protagonistas do que outros. Os artistas, aqueles cuja sintonia com a arte resulta de um vocação advinda de inúmeros fatores, acrescentada com uma formação artística ou académica, são os responsáveis diretos pela obra. Uma obra com uma dimensão física e tecnológica e uma dimensão não material, do domínio das ideias, do pensamento e dos conceitos. Entre estas duas dimensões compete ao artista fazer a conjugação do conhecimento com a intuição, da matéria com o espirito. Deste modo os artistas trabalham num período inicial sozinhos, em isolamento, em análise sistemática, para logo de seguida surgirem outros intervenientes. Mas é necessário perceber que o trabalho de atelier, é considerado isolado apenas por definição académica, porque na prática pode ser um trabalho de oficina, de laboratório, de fábrica ou de empresa, assessorado, monitorizado e assistido por muitos, tanto no âmbito das pesquisas e investigações, como no âmbito da viabilidade e da realização da obra.
63
Depois da obra feita, o passo seguinte é mostrá-la e como mostrá-la, o desenvolvimento que este processo desencadeia
é
continuado
por
marchants,
galeristas,
conservadores de museus e centros culturais, curadores, comissários, jornalistas e críticos assim como jornais, revistas, editoras, rádios, televisões, internet (sites, blogues e redes sociais) e ainda leiloeiras, colecionadores, público em geral como potencial comprador, convidado ou visitante. Na época contemporânea os comissários e os curadores adquiriram um protagonismo maior que o dos próprios artistas, porque se tornam decisivos na escolha, no como e quando se expõe. Se isto pode parecer conter aspetos negativos para o artista, por de algum modo condicionar as suas soluções formais, também lhe dá espaço de manobra para todos os aspetos ligados à realização do seu projeto artístico. Na última metade do século XX a produção cresceu em todos os domínios, participando também a área artística na ascensão da sociedade de consumo que todos conhecemos e vivemos hoje. Como exemplo, podemos referir a pintura que, com o aparecimento de outros modos tecnológicos de pintar capazes de responder melhor às solicitações do mercado em crescimento e com o aparecimento da tecnologia do acrílico, à base de polímeros, com os médiuns aquosos de secagem rápida, viu aumentar a produção artística a níveis impensáveis ou impossíveis com a tecnologia a óleo (32). Também os novos meios tecnológicos gerados pelo computador, cada vez mais vulgarizado e simplificado, com a
32 Enquanto com a tecnologia do óleo se pode produzir, dependendo no entanto dos processos artísticos de cada autor, uma média de vinte pinturas por ano, com o acrílico pode haver uma produção de vinte pinturas por mês. 64
capacidade de descobrir e penetrar no ciberespaço (33), uma realidade virtual sobreposta ao mundo concreto, um espaço de vivências sociais de todo tipo que abdica da presença física do Homem (Gibson, 1988).
Esta nova realidade trazida pela Internet, com os seus sites, blogs e sistemas de redes sociais, exige que estes protagonistas, artistas, comissários e curadores, tenham de recorrer a empresas especializadas como parceiros para concretizarem as solicitações do mercado da arte internacional. Estas empresas, no mundo de hoje tendencialmente global, possuem meios capazes de realizar projetos em todo o mundo, tais como feiras, bienais, exposições e qualquer outro tipo de eventos, quer tenham como objetivo representar um país, dar resposta a uma encomenda ou simplesmente concretizar uma ideia. Como exemplos deste tipo de empresas com trabalhos espalhados por muitos países podemos cita a Neonlauro, Eva Albarran, Expoactual (34) e em Portugal podemos também referir a Vera Cortez Agency. Os críticos, tradicionalmente muito próximos dos artistas e envolvidos nas suas cumplicidades estéticas, deixaram de ter um papel de avaliadores diretos do que presenciam, para serem analistas de arte com argumentos suficientes para uma fundamentação credível, desejável tanto para
o
artista
como
para
todos
os
outros,
porque
corresponderá a um elemento de legitimação indispensável para quem esteja fora dos domínios da feitura. Mas dispensável para os que estão por dentro, porque a procura de 33 O termo ciberespaço foi utilizado a primeira vez por William Gibson, em Neuromancer, em 1984. 34 A Expoactual é gerida pelas curadoras Maria de Curral e Maria Martinez , que em 2005 foram responsáveis pelo comissariado da 51ª Bienal de Veneza intitulada A Experiência da Arte e Sempre um pouco mais longe. 65
motivos, assuntos ou pretextos para a conceção de obras encontra-se na diversidade formal, estética e cultural que compõe o quotidiano de cada um de nós. Os críticos passam a ser analistas quando os artistas começam a saber enquadrar o seu trabalho artístico como um projeto, com uma estrutura própria, fruto da formação académica que fizeram. A atividade artística deixou de ser um trabalho exclusivamente manual e empírico para passar a ser consequência de estudo, investigação e saber. O público também deixou de estar colocado na posição de observador passivo, contemplativo, para ser elemento componente da estrutura da obra, como utilizador com palavrapasse ou seja, como cúmplice dos atos criativos para os quais necessita de informação adicional. As instituições culturais desempenham um papel importantíssimo na valorização da obra, tanto no fornecimento de informações como apoiando a produção através de financiamentos de projetos, de bolsas de estudo ou através de políticas de aquisições e exposições dos patrimónios dos quais são detentores. Mas instituições não culturais, também podem fazer parte deste processo como parte integrante da disseminação da obra e dos conceitos implícitos. Enquanto os apoios advindos de algumas, podem ter um peso meramente institucional, mas de significativa importância, os apoios advindos
de
outras,
podem
possuir
uma
dimensão
exclusivamente financeira capaz de viabilizar a realização artística pretendida. Ambos correspondem a modos de apoiar e participar nas atividades culturais, retirando disso diversos proveitos e dividendos, consoante os acordos formulados
66
previamente, dos quais o mais imediato e evidente é o prestígio (35). Mas num mundo onde o dinheiro comanda todas as iniciativas, e as culturais e artísticas também, aqueles que entendem a arte como a única e a verdadeira moeda internacional (Joselit, 2013), investem claramente nesse «produto»
tendo
como
base
a
leitura
das
cotações
internacionais, com capacidade para estabelecerem valor monetário acrescido, controlado e balizado pelo sistema de venda pública em leiloeiras. Estas, desde as tradicionais Sothebys’ e Christies’ até às modernas leiloeiras alojadas na Internet como por exemplo a Artprice, a Artnet ou a portuguesa Bestnet Leilões, cumprem a lei da venda e da procura e estabelecem cotações, e rakings de artistas, num processo que culmina no colecionador, ou colecionadores sucessivos, como etapas finais do contínuo percurso da obra. Todo este percurso, que se inicia no artista, e prossegue pelos técnicos, assistentes, artífices ou artesãos, é estruturado
por
comissários
e
curadores,
exposto
e
comercializado por marchants e galeristas, com apoios mecenáticos ou outros, de instituições públicas ou privadas, legitimado pela critica, imprensa e opinião, avaliado pelas leiloeiras, comprado pelo colecionar e usufruído pelo público, envolve muitos pontos de vista, muitos interesses. Alguns culturais outros artísticos, outros financeiros. Para o artista saber estar neste percurso é necessário apetrechar-se da uma capacidade de resistência e persistência de elevado grau de dificuldade e difícil obtenção
35 Um prestígio que os museus nascidos no século XX souberam tirar partido quando atribuem dos seus patronos como designação oficial. Como exemplos poderíamos citar Calouste Gulbenkian, Rainha Sofia, George Pompidou, Gugenheim ou Marguerite e Aimé Maeght. 67
Comprar ou investir em arte é muito diferente de comprar ou investir em arte contemporânea. Enquanto investir em arte equivale a investir com base em referências ajuizadas pela historia da arte, recente ou não, por estudos críticos e históricos tornados públicos através trabalhos de investigação académica, em revistas, catálogos ou livros, e por conseguinte com
riscos
calculados
e
previsíveis,
investir
em
arte
contemporânea pressupõe e envolve uma aprendizagem em aproximação aos artistas, e por conseguinte uma participação cúmplice
no
ato
criativo
como
estímulo,
de
valor
incomensurável para arte contemporânea, ou seja para aquela que está a ser feita hoje, sem lugar, sem tempo e sem perfil pré-definidos. Estes protagonistas, resultantes desta multiplicidade de fatores, de ordem social, politica e pessoal, ladeiam e desenham os perfis dos artistas contemporâneos. Na produção de arte contemporânea, tudo é espectável e imprevisível. Mas, podendo-se esperar tudo, somos sempre surpreendidos. Os processos de trabalho, individual, em atelier ou estúdio, alargaram-se a outros campos, com resultados inusitados, como por exemplo em laboratórios, fábricas, oficinas ou empresas. Este alargamento envolve em certos casos a apresentação de uma ficha técnica onde se encontram registados a totalidade dos elementos das equipas veiculadas à realização do trabalho. Do atelier, oficina ou laboratório com largas centenas de metros quadrados, até ao simples telemóvel, como síntese ínfima de um espaço de trabalho de hoje exemplificativo das redes de contactos implícitos ao sistema global da arte contemporânea, passando pelo dimensão artesanal do atelier 68
amansardado do século XIX, cada processo de trabalho, devidamente apetrechado com os novos media, fotográficos, videográficos ou informáticos, tem possibilidades ilimitadas de dar forma a uma produção artística atual. Deste modo coabitam no espaço da arte tanto autores como empresas, num contexto onde o nome do artista se confunde com a marca e é posteriormente tratado como moeda.
Artista,
marca
ou
moeda
são
uma
questão
pacificamente aceite, bastando reconhecermos o modo como se encara um investimento económico em arte quando, como já atrás referimos, constatamos que numa determinada coleção existem dois picassos, três cézannes e um miró. Este caso recorrente está claramente a associar um autor, a uma marca e a uma moeda de cotação verdadeiramente internacional. A
multiplicidade
de
processos
tecnológicos,
indispensáveis para a produção artística, pode estar a transformar os artistas em empresas com competências demasiado específicas. Fruto das novas tecnologias e do surgimento de novos paradigmas em constante debate, a produção artística no tempo presente, como vimos ao longo desta exposição, não responde a nenhuma estética. Responde sim a uma adequação da pessoa com a obra e com cada tempo presente.
69
70
Considerações finais
Na arte contemporânea não existe uma estética estabelecida baseada em aspetos formais ou conceptuais, nem baseada em quaisquer outros. Então o que se espera que o artista faça hoje? A racionalidade dirá nada, a vida dirá tudo. Mas o que é então a arte contemporânea?
A arte contemporânea é a unidade dos conhecimentos. A arte contemporânea interage com todos áreas do saber sem exceção, filosofia, biologia, medicina, engenharias, economia, etc. Os ramos do conhecimento destinados às artes sobreporse-ão a todos os outros ramos. A arte contemporânea pode ser transdisciplinar,
pluridisciplinar
e
interdisciplinar,
sem
encasulamentos processuais, sem hierarquias ou ordenações, indo buscar matéria a todas as áreas.
A arte contemporânea é mundo enquadrado pelas belas-artes, artes plásticas e artes visuais, designações com o mesmo significado, mas com uma história que nos remete para a relevância que dá às questões do belo, da forma e da visualidade.
Trata-se de
uma delimitação
baseada
em
categorias estéticas, em estruturas de matérias e coisas, e em representações ou apresentações de visões ou versões do mundo (Godman, 1995). E podemos entendê-las como desenho, escultura e pintura porque estas áreas são apenas conceitos, volumetrias e texturas visuais.
71
A
arte
contemporânea
é
hibridismo
cultural,
multiculturalidade e miscigenação entre um academismo que responde aos desejos de ser e fazer arte, um maneirismo que justifica um desejo de estar de acordo com uma lei globalizante do gosto e da moda e um revivalismo que vive a nostalgia romântica do tempo.
A arte contemporânea é acontecimento estético, creditado, ajuizado e legitimado por museus e centro culturais. Fora deste contexto, pelo facto de ser contemporânea e não haver distanciamento, pode não ser reconhecida. Deste modo museus e centros de arte contemporânea são imprescindíveis para uma consolidação cultural e para valorizar o trabalho do artista como investigação em arte.
A arte contemporânea é a inquietação e ansiedade do tempo presente. Ela trata apenas do presente, ou seja, da vida. Toda a arte é contemporânea, basta que faça parte do seu tempo. O tempo presente é a idade da inquietação e da ansiedade entre o stress do apocalipse e da perenidade, os ícones das nossas referências, a memória que se esvai se não se preservar e os mapas que traçam os percursos de cada um de nós (Salteiro I. , 2013). Como contraponto à arte contemporânea, apenas se pode evocar a arte anacrónica ou seja aquela que é feita fora do seu tempo, não se pode evocar a arte antiga, clássica ou moderna.
A arte contemporânea é expressão, estilo e género. A expressão identifica a autoridade estética do artista, o estilo refere a envolvente cultural e o género especifica a forma. Os géneros artísticos, claramente definidos como paisagem, 72
natureza morta e retrato encontram hoje, em resultados dos meios tecnológicos, outros modos de ser género: exposição, instalação, performance, vídeo, fotografia, pintura, desenho, happening, arte de rua, animação ou escultura entre muitos outros.
A arte contemporânea é um sistema. Não pode ter uma estética, tem de se limitar a ser um sistema aberto de manutenção de um processo que vai transformando as atividades artísticas do presente em património cultural.
A arte contemporânea são feiras e bienais, eventos periódicos e episódicos nos quais dois mundos confluem. O mundo da arte mais focado nos diálogos artísticos entre culturas e o mundo do mercado da arte com trocas de caracter comercial. O mundo da arte e do mercado da arte são simultaneamente dicotomias e complementaridades, ou seja, aparentemente nada têm em comum, mas complementam-se.
A arte contemporânea é produção de património cultural.
A arte contemporânea é uma obra com muitos protagonistas, identificáveis na ficha técnica de muitos catálogos, com tantos quantos a obra necessitar. Constituem uma equipa apesar de no final sobressair apenas o “artista”. Atuam segundo cumplicidades que podem ir desde as de ordem
mais
conceptual
até
ao
encontro
de
soluções
tecnológicas ou à participação na disseminação da obra por acervos ou coleções. Um coletivo que transmuta o artista, para a marca e para a moeda. 73
Pintar, esculpir ou desenhar não é difícil, necessita apenas de aprendizagem, prática e focagem. As duas primeiras correspondem a um período de dependência em relação aos modelos e à habilidade, a terceira, a mais difícil, corresponde saber o que se pintar, esculpir ou desenhar. Mais difícil porque estabelecer e definir causas obriga a sintonias e afastamentos sucessivos. Exige ao artista que esteja desperto para o espaço-tempo que coabita, porque este mundo precisa de contributos que garantam a energia capaz de o manter em movimento. São os artistas, uns após outros ao longo de todos os “tempos e espaços presente” que desenham os mundos que vivemos sem que, quotidianamente, demos conta disso. Poderse-ia imaginar atualmente este Mundo Ocidental sem William Shakespeare, Mozart ou Leonardo da Vinci?
74
Bibliografia
31ª Bienal de São Paulo, Como usar coisas que não existem. (6 de Setembro de 2014). Obtido de www.31bienal.org.br/ Barthes, R. (2004). A Morte do Autor» (1968). In O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes . Benjamin, W. (1992). A Obra de Arte na Era da sua Reprodutilidade Técnica. In W. Benjamin, Sobre Arte, Tecnica, Linguagem e Politica. Lisboa: Relógio d'Água Editores. Berger, J. (1982). Modos de Ver. Lisboa: Edições 70. Berger, R. (1963). Connaissanse de la Peinture, A la Rencontre de la Peinture (Vol. 1). Paris: Spadem. Bodenmann-Ritter, C. (2007). Every man an Artist: Talks at Documenta V by Joseph Beuys. In C. M. Michely, Joseph Beuys The Reader (pp. 189-198). Londres: I.B.Tauris Co. Ltd. Bourriaud, N. (1998). Esthétique relationnelle. Dijon: Les press du réel. Danchev, A. (2011). 100 Artists' Manifestos From the Futurists to the Stuckist. Londres: Penguin Classic. Ferreira, A. Q. (2014). A Pintura é uma Lição. In I. Sabino, And Painting? Pintura Contemporânea em Questão. Lisboa: CIEBA- FBAUL.
75
Fiz, S. M. (1997). Del arte objectual al arte de concepto, epilogo sobre la sensibilidad postmoderna. Madrid: Ediciones AKAL. Foulcault, M. (2012). O Que é um Autor (1969). Lisboa: Nova Vega. Friedberg, A. (2009). The Virtual Window, from Alberti to Microsoft. Londres: The MIT Press. Gardim, A. (2006). Comunicação e Ética. O Sistema Semiótico de Charles S. Pierce. Covilhã: Universidade da Beira Interior. Gibson, W. (1988). Neuromante. Lisboa: Gradiva. Godman, N. (1995). Modos de Fazer Mundos. Lisboa: Edições Asa. Hegel. (1974). Estética - Pintura e Musica (Vol. VI). (Á. Ribeiro, Trad.) Lisboa, Portugal: Guimarães & C.ª Editores. Heidegger, M. (1977). A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70. Heinich, N. (2016). Pour en finir avec la querelle de l'art contemporaine. Paris: L'Échoppe. Houellebecq, M. (2010). La Carte et le Territoire. Paris: Éditions Flammarion. Hudson, A. D. (2013). Contemporary Art, 1980 to the present. Malden: John Wiley & Sons, Inc., Publication. II, P. J. (1999). Carta do Papa João Paulo II aos Artistas. Obtido de http://www.edms.pt/data/_uploaded/file/documento s/carta_aos_artistas.pdf 76
Incerteza Viva é o titulo da 32ª Bienal. (8 de Dezembro de 2015). Obtido em 20 de janeiro de 2016, de http://www.bienal.org.br/post.php?i=2355 Joselit, D. (2013). After Art. New Jersey: Princeton University Press. Kuhn, T. (1970). The Structure of Scientific Revolutions (2ª edição ed.). Chicago e Londres: University of Chicago Press. Lichtenstein, J. (1995). La Peinture. Paris: Larousse. Manovich, L. (2001). The Langague of New Media. Massachussetts: MIT Press. Melo, A. (1994). O Que é a Arte. Lisboa: Difusão Cultural. Melo, A. (2012). Sistema de Arte Contemporânea. Lisboa: Documenta. Moulin, R. (2009). Le Marché de l'art, mondialisation et nouvelles technologies. Paris: Éditions Flammarion. Noronha, P. (2011). Yeast Biopaintings: Biofilms as an Artistic Instrument. Leonardo, 44, nº 1, pp. 38-42. Noronha, P. (2016). Biopaintings Produced by Filamentous Fungi. Leonardo, 49, n.º 1, pp. 14-18. Obrist, H. U. (2002). Uma Breve História da Curadoria,. São Paulo: BEI São Paulo. Obrist, H. U. (2014). Ways of Curating. Londres: Peguin Books Ltd. O'Doherty, B. (1999). Inside the White Cube, the Ideology of the Gallery Space. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California Press. 77
Palais de Tokyo. (26 de Março de 2016). Double Je, artisants d'art et artistes. Obtido de Palais de Tokyo: http://www.palaisdetokyo.com/fr/exposition/doubleje Pereira, J. C. (2016). O Valor da Arte. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. Petreycik, K. (29 de janeiro de 2013). Hyperallergic. Obtido em 20 de 12 de 2015, de http://hyperallergic.com/64304/why-not-to-work-forjeff-koons/ Rouge, I. d. (2002). L'Art Contemporaine. Paris: Le Cavalier Bleu. Salteiro, I. (2013). O Centro do Mundo. (I. Salteiro, Ed.) Lisboa. Salteiro, I. (abril de 2016). D. João Marcos. Bispo e pintor de retábulo hoje. Estúdio 14. Snow, C. P. (1988). The Two Cultures. Cambridge: Cambridge University Press. Thea, C. (2009). On Curating: Interviews with Ten International Curators. Nova Iorque: Distributed Art Publishers. Tokyo, P. d. (2001). Qu'Attendez-vous d'une instituition artistique du 21e siècle? Paris: Palais de Tokyo. Venezia, l. B. (21 de 1 de 2016). Nomina del curatore della Biennale Arte 2017. Obtido em 15 de 2 de 2016, de La Bienalle di Arte: http://www.labiennale.org/it/arte/news/23-01.html Warburton, N. (2007). O Que é a Arte? Lisboa: Editorial Bizancio.
78
Wilson, E. o. (1999). Consilience - The Unity of Knowledge. Nova Iorque: Vintage Books a Division of Random House, Inc. Zola, É. (1886). L'Oeuvre. Paris: G. Charpentier et Cto. Éditeurs.
79
80
© Ilidio salteiro Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser publicada ou transmitida por qualquer forma ou meio, eletrónico ou mecânico, incluindo fotocópia, registo ou qualquer outro modo de armazenamento de informação ou de pesquisa, sem o prévio consentimento por escrito do autor.
81
FBAUL
CIEBA Lisboa 2017 ISBN: 978-989-98475-1-4
82