Evocação da Grande Guerra

Page 1

Adriano Sousa Lopes, 1914

Evocação ARTE CONTEMPORANEA

Museu Militar de Lisboa Salas da Grande Guerra

LISBOA 2016-2018


Museu Militar de Lisboa & Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa 2016-2018



Adriano Sousa Lopes, 1917. Desenho.

INDICE

Luís Paulo Sodré de Albuquerque, Guerra e Arte

5

Ilídio Salteiro, Evocação

7

JOÃO CASTRO SILVA, Ossos

8

ISABEL SABINO, A Menina (não) fica em casa

18

ROCHA DE SOUSA, Link para memória do esquecimento global

28

ANTÓNIO TRINDADE, Guerra e Espelhos

38

JOÃO PAULO QUEIROZ, Entre o Terra e o Céu

48


A GUERRA E A ARTE A Guerra, enquanto fenómeno de extrema violência e a sua perceção desencadeiam uma quantidade de emoções humanas que acabam por se manifestar de muitas formas. A Arte é assim e, com alguma naturalidade, uma das formas de exteriorizar as emoções a ela ligada. Assim, não é invulgar ver a Guerra retratada pela Arte com as motivações mais diversas, como se pode verificar em muitos museus militares, por exemplo. Isto foi particularmente sensível em relação à I Guerra Mundial, conhecida na altura por Grande Guerra exatamente pelas dimensões que atingiu, os teatros geográficos em que se desenrolou, a escala do sofrimento infligido, a grandeza dos números envolvidos, em material, homens e animais, o inacreditável (para a época) número de baixas. Mas também porque foi enformadora do Século XX, com a afirmação dos nacionalismos e o final de uma Europa de monarquias, substituídas agora por repúblicas. Nasceu uma nova era, marcada pela exaustão dos países envolvidos, a ideia de uma vida demasiado efémera, o poder destrutivo das novas tecnologias utilizadas na guerra, engendrando os totalitarismos, o pacifismo, os loucos anos 20 e a sua vontade de viver tudo de uma vez. Tudo isto levou à produção de obras artísticas marcantes nos mais diversos campos. No Museu Militar de Lisboa estão patentes os painéis de Adriano de Sousa Lopes, ricos do testemunho pessoal do artista na linha da frente. Claro que isso é uma oportunidade rara para um artista, mas mesmo os que não estiveram na frente produziram obras importantes, como “A caminho da posição – peça alvejada” de Delfim Maya, também no Museu Militar de Lisboa. O Centenário da Grande Guerra levou-nos a colocar muitas interrogações - como é que hoje os artistas veem um acontecimento desta magnitude, com consequências tão duradouras que ainda hoje persistem e estão na base de alguns problemas que dominam as nossas preocupações? É possível reinterpretar as obras produzidas na altura com um olhar do Século XXI? Qual a influência do mundo pós 11 de Setembro nesta forma de olhar? Se voltasse a acontecer algo desta grandeza, qual seria a nossa forma de o encarar? Estas questões encontraram eco na Faculdade de Belas Artes, instituição com quem o Museu Militar já tinha, do antecedente, contactos. É assim que nasce esta iniciativa, com o apoio da Direção de História e Cultura Militar e da Comissão Coordenadora da Evocação do Centenário da I Guerra Mundial, destinada a revisitar a Grande Guerra com um olhar contemporâneo, e que nos recorda o sofrimento que a espécie humana foi capaz de infligir a si própria há, APENAS, 100 anos atrás. Luís Paulo Sodré de Albuquerque



EVOCAÇÃO

O Museu Militar de Lisboa em colaboração com a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa realiza um conjunto de exposições de artistas portugueses contemporâneos nas Salas da Grande Guerra com caráter evocativo dos acontecimentos ocorridos entre 1914 e 1918 em todo o mundo. Estas exposições, individuais e por períodos temporários, decorrerão entre 9 de março de 2016, quando do centenário da declaração de guerra da Alemanha a Portugal, e 11 de novembro de 2018, quando do centenário do armistício. Salienta-se o facto das referidas salas e todo o Museu Militar serem detentores de importantes patrimónios. Por um lado um património artístico de autores que alicerçaram a sua formação na Academia de Belas-Artes, como por exemplo Columbano Bordalo Pinheiro, Teixeira Lopes, José Malhoa, Francisco Franco, Veloso Salgado ou Luciano Freire entre muitos outros, e por outro lado um inestimável e precioso património histórico e cultural que todos reconhecemos. A oportunidade desta iniciativa, que decorre durante quase três anos, contando com a participação de vários artistas, procurará demonstrar, através de produções artísticas diferenciadas e concebidas especificamente para as Salas da Grande Guerra, que a arte atualiza o sentido dos acontecimentos e promove sintonias, diálogos e debates, quer sejam sobre ela própria ou quer sejam sobre outras causas. Os convites foram endereçados aos artistas para a participação neste projeto, sob a forma de intervenção, instalação, exposição ou mostragem de obras evocativas das guerras de ontem ou de hoje, pretendendo motivar a conceção de intervenções artísticas contemporâneas em diálogo franco com o espaço museológico, dominado aqui, em grande parte, pelas obras de Adriano Sousa Lopes. A opção por artistas ligados direta ou indiretamente à Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, quer como professores quer como alunos, foi pensada com base em dois pressupostos: o primeiro privilegiou o conhecimento individualizado da obra artística de cada um dos participantes, e o segundo a perceção de que reside em todos estes autores a capacidade para tratar a «evocação» como conceito que hoje, no início do terceiro milénio, pode ser memória concreta reconstituída noutros formatos. Num espaço e numa época onde a história, a guerra e a arte são assuntos sensíveis, os pensamentos, interrogações ou confrontos podem adquirir muitas formas. São os antigos e os novos modos de estar e fazer guerra e arte, as coisas, os seres, as formas e as narrativas, os valores territoriais e os valores culturais, os desenhos de linhas, de limites, de fronteiras, de muros e barreiras na geografia mundial, os desenvolvimentos tecnológicos, as mutações e as arquiteturas dos conflitos, e os camuflados contemporâneos. A programação contará com uma participação de cerca de vinte artistas. A primeira intervenção decorrerá entre 9 de março e 30 de maio de 2016, com uma intervenção do escultor João Castro Silva, professor de escultura da FBAUL, a qual nos remeterá para os incómodos e desconfortos que a imprevisibilidade de guerras acarreta. A última intervenção acontecerá em 11 de novembro de 2018 com uma exposição coletiva de todos os que participaram neste projeto. Ilídio Salteiro


BONES


OSSOS JOร O CASTRO SILVA 9 marรงo - 30 maio - 2016



“O combate das máquinas é tão colossal que o homem está muito perto de, perante ele, se apagar. Já muitas vezes, apanhado nos campos magnéticos da batalha moderna, me pareceu estranho e quase inacreditável que estivesse a assistir a acontecimentos da História humana. O combate reveste a forma de um mecanismo gigantesco e sem vida, recobrindo a extensão de uma vaga destruidora, impessoal e gelada.”() Despojos de árvores, sobras de madeiras várias de origem industrial trabalhada por meios mecânicos. Reaproveitamentos de postes de vedação, desperdícios de poda, fragmentos de mobiliário, pranchas e barrotes reconformados e unificados na construção de uma forma. Madeira torneada e serrada. Um canhão. Madeira de maré, branca pelo sal. Ossos esculpidos em talhe direto a partir de ramos de árvore recolhidos em praias. Cada ramo foi escolhido em função da forma singular que tinha, uma forma que remetia para a forma de um osso. Ossos talhados em madeira branca de maré. Restos mortais que se recolheram num campo de batalha e que não se consegue identificar de quem foram nem em que partes do corpo se situavam. () JUNGER, Ernst, A Guerra com experiência interior, Ulisseia, Lisboa 2005, p. 107. João Castro Silva Lisboa, 15.09.15



MATÉRIA A obra de João Castro Silva organiza-se em torno de destroços, sargaços e elementos dispersos, e é através desses fragmentos que se revela, adquirindo forma. Esta similitude com a guerra, aqui (com)sentida como fator construtivo, num oposto conceptual, sugere e contribui naturalmente para uma aproximação estruturante a esta evocação. Estas salas, feitas nos anos 30 e revestidas maioritariamente com pinturas de Adriano Sousa Lopes, um pintor que se voluntariou para a frente de combate como pintor de reportagens da guerra, estão imbuídas de uma densidade dramática notável, embora não valorizada pelos eixos modernistas do então, nem muito considerada pelos eixos modernistas do depois. Neste espaço a escultura de João Castro Silva faz evocação dessa guerra e de todas as outras. Uma evocação comandada pela matéria que constitui um organismo que já foi vivo: a madeira da árvore. Essa madeira, aglutinada em arma de guerra, que deveria ser ferro, e indicada como relíquia de muitos, que deveria ser osso, evidencia a metáfora da fragilidade humana, enquanto companheira de muitas guerras universais e individuais. A madeira que finge ser osso e ferro acentua a debilidade dos meios de sobrevivência, a ironia da guerra e a humanização dos beligerantes. Esta obra reflete todas as guerras, desde as pontas de sílex ao nuclear, homenageando acima de tudo a inteligência humana capaz de congeminar soluções que lhe perpetuam o rumo. Ilídio Salteiro Lisboa, 2016





João Castro Silva (01/1966) 1992 Licenciatura em Escultura FBAUL. 1994 Frequência do Royal College of Art Londres. 2001 Mestre em História da Arte ULL. 2010 Doutor em Escultura da FBAUL. É, desde 1995, docente do curso de Escultura na FBAUL. Expõe desde 1992. Prémios (seleção) 1998 2º Prémio do “ll Simpósio Internacional de Escultura em Ferro de Abrantes”. 1999 Menção Honrosa - Prémio Fundação Calouste Gulbenkian - no “lll Concurso de Jovens nas Artes - Francisco Wandscheider” Culturgest, Lisboa. 2005 Prémio Doutor Gustavo Cordeiro Ramos. Academia Nacional de Belas Artes. Escultura pública (seleção) Rotunda da Areia, Cascais. Área de Serviço Repsol – A 20. B. Braun Medical LDA, Queluz de Baixo. Parque do Alto de Sto. António, Abrantes. Heidrick & Struggles, Lisboa. Montauban, França. Novimed, Lisboa. Montjean-sur-Loire, França. Saraiva e Associados, Arquitectura e Urbanismo, Lisboa. Igreja de S. José Carpinteiro, Catujal, Loures. Centro Cultural Eng. Adolfo Roque, Barro, Águeda. Prime Yield, Lisboa. Dr. Horácio Louro, Costa da Caparica. Kolosso, Torres Vedras. S. Pedro, Torres Vedras.



A MENINA (NÃO) FICA EM CASA ISABEL SABINO 15 junho - 30 setembro - 2016



Este projeto de intervenção artística no Museu Militar, nas salas dedicadas à participação portuguesa na 1ª Grande Guerra, por ocasião do centenário desta, assume como perspectiva um olhar feminino. Quando se percorre as salas deste museu surgem diferentes imagens da mulher: começando pelo retrato da jovem rainha D. Maria por Joaquim Rafael, há algumas figuras de mulheres associadas à história de Portugal, tais como a mulher de Egas Moniz com ele a entregar-se ao rei de Castela (por Malhoa), ou Inês de Castro (por Columbano). Mas a maioria da figuração feminina neste museu é, de facto, da ordem do imaginário, um imaginário que, de certa forma, povoa o espírito guerreiro: alegorias da vitória, da fama e da glória ou dos lugares de conquista, guerreiras ou anjos protetores, mas também assombrações do terror, esposas, mães enlutadas e carpideiras, ou ainda deusas, ninfas e Nereides, aparições sensuais de amantes longínquas. Na sombra destas, podem contudo supor-se também mulheres discretas, história invisível nos bastidores dos objetos necessários à guerra e à vida que continua: laborando uma arma, um agasalho, uma maca, um curativo ou uma oração, em especial no contexto da guerra de 14-18. Para além do museu, as histórias reais acumulam-se tanto como as suspeitadas, imaginadas, ou absurdas - como a acusação de espionagem hipotética a Sonia Delaunay, em abril de 1916, por as suas telas abstratas, a secar ao sol na casa da Rua dos Banhos de Vila do Conde, terem sido vistas por alguém como avisos em código aos submarinos alemães que passavam ao largo: no fundo, um outro tipo de participação na guerra que a certas mulheres se poderia imputar. Seguindo à letra a designação corrente da Guerra 14-18 como “guerra das trincheiras”, e sob os exemplos inspiradores da Cruzada das Mulheres Portuguesas, de algumas mulheres das gerações de vanguarda feminista no nosso país e, em especial, das mulheres construtoras de trincheiras na frente do Rio Piave (Norte de Itália), este projeto toma como alegoria a construção de uma trincheira. Assim, a invocação desse reduto bélico expressivo da ação dupla de defesa-e-ataque surge aqui corporizada por gestos ancestrais de labor e de potencial solidariedade feminina e pacifismo na especificidade das linguagens plásticas e pictóricas usadas (pequenas pinturas sobre tela e um objecto instalativo), num tempo em que as trincheiras reais são obsoletas e um outro tipo de guerra menos visível – a de iníquas e recorrentes violências de género, frequentemente associadas ao terrorismo – parece estar de regresso e para ficar, a não ser que as próprias mulheres pensem e ajam mais decisivamente.

Isabel Sabino, abril 2016


A Menina (não) fica em casa, 2016. Acrílico sobre tela, dimensões várias (pequeno formato).


This artistic intervention at the Military Museum, in the rooms dedicated to the Portuguese participation in the 1st World War by its centenary, assumes a feminine look as perspective. When we walk through this museum different images of women appear: To begin with the portrait of the young Queen D. Maria by Joaquim Rafael, there are some women figures associated with the history of Portugal, such as the wife of Egas Moniz with him before the king of Castela (by Malhoa), or Inês de Castro (by Columbano). However, in this museum most feminine figuration comes from imagination, an imagination that, in a way, dwells in the spirit of war: allegories of victory, fame and glory or conquest of places, warriors or guardian angels, but also the ghosts of terror, mourning wives and mothers, or goddesses, nymphs and Nereides, sensual apparitions of distant lovers. In the shadow of all this, nevertheless, we can also glimpse discreet women, invisible stories behind the scenes of the objects needed by war and life going on: labouring a weapon, a coat, a stretcher, a healing or a prayer, especially in the context of war 14-18. Beyond the museum, real stories accumulate as much as the suspected, imagined, or absurd ones – such as the hypothetical espionage charge of Sonia Delaunay on April 1916 for her abstract canvases, drying in the sun in the house of Rua dos Banhos of Vila do Conde, have been seen by someone as coded warnings to passing offshore German submarines: after all, another type of participation in the war that certain women could be ascribed to. Literally following the current designation of WW1 as "trench warfare", and under the inspiring examples of the Portuguese Women Crusade, of some women of the feminist Portuguese avant-garde generation and, especially, of those women who built trenches at the front of Piave River (Northern Italy), this project takes the construction of a trench as allegory. Thus, the invocation of this military device expressive of the dual action of defence-and-attack is embodied here by ancient gestures of labour and potential women’s solidarity and pacifism in the specificity of the used plastic and pictorial languages (small paintings on canvas and an installation object), at a time when real trenches are obsolete and another kind of war – the iniquitous and recurrent gender violence, often associated with terrorism – seems to be back and stay, unless women themselves think and act more decisively.

Isabel Sabino, April 2016




Mulheres de Armas, 2016. Acrílico sobre tela com medalha, pequenos formatos

ISABEL SABINO, CV N, Lisboa, 1955. Formada em Artes Plásticas-Pintura (ESBAL, 1978). Docente no Ensino Secundário (1976-1982, estágio em 1979) e em Belas Artes (ESBAL/FBAUL) desde 1982, atualmente professora catedrática. Diretora artística das exposições na Amascultura/Teatro da Malaposta (1993-1995) e docente convidada na ESTC (Cinema) em 2002 e 2003. Membro dos centros de investigação Cieba (FBAUL) e i2ads (FBAUP), da ANBA (Academia Nacional de Belas Artes) e da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. Trabalho artístico mais recente Individuais – Logo se vê (2007); E os pássaros cantam (2009); São rosas, meu (2011); Talvez bombons (2014): G. Arte Periférica, Lisboa; E os rios nascem no mar (2015, Lugar do Desenho – Fundação Júlio Resende). Colectivas – Arte&Natureza (Jardim Botânico/Reservatório Patriarcal/FBAUL, Lisboa, 2009); D’Aprés Nuno Gonçalves (Museu Nacional Arte Antiga, Lisboa, 2010/2011); Parergon (Galeria Municipal de Torres Vedras, 2013); De braços abertos: A sala de Ruth. Ruth’s room (Casa das Artes de Tavira, 2015). Textos publicados (sel. títulos): A Pintura Depois da Pintura (FBAUL, 2000); O Homem que queria ser um artista (Cieba, 2006); Uma (In)certa Natureza (Cieba, 2009); Rosas em Janeiro: Algumas Notas sobre Arte Política e Colectivismo (Assíro & Alvim/Cieba, 2010); As flores na nossa mesa (a propósito da política na arte) (Trajectos, ISCTE, 2011); A cadeira (FBAUP/i2ads, 2011); Surfing, sob um céu cor de tinta. Algumas notas sobre a melancolia na pintura contemporânea (Universidade Nova, 2011); COLABORARE: a few thoughts on expanded authourship. (Transforma, 2012); Se eu fosse uma Guerrilla Girl #2 (Cieba, 2012); Com ou sem tintas: composição, ainda? Coord., e Tinta: nojenta. Cor: abjeta. Pintura? Bleahh... (Cieba, 2013); Como a poeira no ar e no rastro de uma nuvem: Mapeando a pintura contemporânea. (2014); And Painting? A pintura contemporânea em questão. Coord. e A Pintura que falta (2014); A pintura depois da pintura: novos desenvolvimentos (2015); She sells sea shells: notas para uma poética (e uma política) em pintura (2015); Maria Keil: traços discretos para um espaço público (2015). Mais: http://umbrapicturae.blogspot.pt http://www.isabelsabino.com


Miss Maria, 2016.


LINK TO MEMORY OF THE GLOBAL FORGETFULNESS


LINK PARA MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO GLOBAL ROCHA DE SOUSA 6 outubro – 15 novembro - 2016


Prisioneiro, 1980. Com a participação de Lima Carvalho, 23’28’’. Atelier do Pintor, 1983-1984. Com a participação de Rogério Ribeiro, 20’41’’. Tempestade, 1991. Com participação de Fátima Mendonça, 26’29’’. Praga, 1989. Com a participação de Ana Machado e Fátima Mendonça, 26’05’’.


A ESCRITA DENTRO DA IMAGEM Portanto a urgência de dizer. Dizer apesar dos limites, contra ou por dentro das convenções. Mesmo quando não se refazem, as convenções podem sobrepor-se ou misturar-se. Fernando Pessoa dizia imagens com palavras e usava as convenções, inteiras ou distorcidas, adequadas à forma expressiva de cada heterónimo, poetas diferentes que o habitavam, emergindo misteriosamente para a vida. Sento-me, exausto, e penso na metamorfose da escrita em imagem ou da imagem em escrita. No meu livro “AS COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS” tentei dar a ver esse fenómeno, sobretudo o da pintura brotando da escrita, entre composição, ritmo e ressurreição plena do espaço adjectivante. E à medida que participava na guerra, olhando mais tarde para os desastres principais, personagens ilustrados no limite da morte, tudo se fazia imagem, absurda ou conceptual, e mesmo há dias cheguei a perceber que a globalização atual cercando o mundo, é um espaço que desfaz culturas e não nos oferece alternativas. Ainda nem todos perdemos a memória. A memória que resta, é ainda dimensão de serviços sem conta. Na vida e na arte. Sem conta, reinicia a consciência do ver, não explica o que se vê: abre caminho ao lugar das coisas, confunde-se com elas. E é então que tudo começa: a dicotomia da imagem e da palavra, por exemplo. Um homem, sentado na fonteira do mundo sem o saber, inventa-se pelas imagens aparentemente perecíveis ou inúteis. O cenário aparente: terra solta, arbustos, a nuvem que passa (imóvel) por cima da sua cabeça, além de uma casa ardida, ruinas de outros tempos, a carcaça de um barco naufragado. O homem olha e não sabe se chega a ver, apropriando-se do sentido das coisas, como fazem os pintores pelo testemunho e pela revolta das suas representações. É através de um certo olhar, de um certo ver, do mundo conceptual e do imaginário interior que muitas coisas se podem reinventar e estimular a resistência da nossa espera. A região das palavras/imagens leva o homem a estremecer, imaginando outra verdade, símbolos e mitologias. Como nos sonhos. Como entre corpos. Assim digo e imagino a minha pintura, inquieto perante o mundo que me rodeia e cujo sentido se perde cada vez mais. Por isso escrevo as imagens, arbustos, a aparente permanência na vida e os detritos das últimas batalhas. E, embora muitos corpos estejam já retidos na margem do pó, consumindo devagar as raízes no milagre da vida. Quem fica, e sobretudo os artistas, inventam outros contornos, palavra a palavra, reiterando a cosmografia de novos símbolos — como se o olhar, cavalgando pela perceção a nuvem efémera, pudesse esboçar novos limites de opacidade, improváveis lugares. João Rocha de Sousa, Lisboa, julho de 2016





Vitrina 1, Mobilidades, 1970-2016. Vitrina 2, Famílias, 1981. 7 Pinturas / colagem.

A Cruz de Cinco Pontas, 1998. Técnica mista, Pintura / colagem, 90 cm x 90 cm.

A Morte da Inocência, 1997. Técnica mista, Pintura / colagem, 90 cm x 90 cm.

Força de Interposição, 1998. Técnica mista, Pintura / colagem, 90 cm x 90 cm.

Lembrança Branca, 1998. Técnica mista, Pintura / colagem, 90 cm x 90 cm.

Morada de Deus, 1997. Técnica mista, Pintura / colagem, 90 cm x 90 cm.

Medo e o Ferro, 1998. Técnica mista, Pintura / colagem, 90 cm x 90 cm.


Currículo breve: Rocha de Sousa, nascido em Silves em 1938, é artista plástico pintor e professor Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e crítico de arte. Foi professor convidado da Universidade Aberta, onde investigou e lecionou Tecnologia do Vídeo. É membro correspondente da Academia Nacional de Belas-Artes, da Associação Internacional da Crítica de Arte e tem uma larga participação na programação da Sociedade Nacional de Belas Artes. Com uma larga atividade artística, expôs no país e no estrangeiro, em centenas de exposições coletivas e realizou cerca de vinte exposições individuais. Tem participado em diversos campos de criação artística e em espaços culturais de periódicos como Diário de Lisboa, Colóquio Artes, Seara Nova, Sinal, Artes Plásticas e atualmente o Jornal de Letras. Participou em muitas conferências, visitas guiadas, em paralelo com trabalho de pesquisa e ensaio em cinema e vídeo, com diversos filmes realizados. Nos anos 70 participou na Bienal de Veneza. Colaborou em várias séries sobre arte para a RTP como por exemplo Arte Portuguesa, As Coisas e as Imagens, A Mão, o Homem em Desenvolvimento entre outras. Publicou tanto estudos de carácter pedagógico, didático e técnico como por exemplo Didáctica Educação Visual, Ver e Tornar Visível, Desenho: Textos Pré Universitários 19, Introdução às Artes Plásticas, como ensaios monográficos de artistas portugueses seus contemporâneos como Pedro Chorão, Eduardo Nery ou Dourdil, No plano literário tem uma extensa bibliografia publicada: Amnésia (teatro), Angola 61 - uma Crónica de Guerra, A Casa, Os Passos Encobertos, A Casa Revisitada, A Culpa de Deus, Belas Artes e Segredos Conventuais, Coincidências Voluntárias, Talvez Imagens e Gente de Um Inquieto Acontecer, Lírica do Desassossego, Narrativas da Suprema Ausência e Os Fantasmas de Lisboa. Para mais informações sobre Rocha de Sousa: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rocha_de_Sousa http://rochasousa.blogspot.pt/ FERRÃO, Hugo, Rocha de Sousa: ser sem heterónimos. In: Arte Teoria. - Lisboa, 2000. - Nº4 (2003). ISSN 1646-396X, p. 73-99.



WAR AND MIRRORS


GUERRA E ESPELHOS ANTÓNIO TRINDADE 29 novembro – 30 janeiro - 2017


GUERRA E ESPELHOS

Nas Salas da Grande Guerra do Museu Militar, a proposta por mim apresentada tem como objetivo criar um jogo de espelhos mediante a sugestão de pequenas aberturas ou rompimentos virtuais dentro do espaço real interventivo. Nesses rompimentos do espaço do Museu confrontam-se em conjunto uma série de pinturas que se agregam a espelhos formando com estes novos objetos de confrontação óptica. As pinturas mostram-nos imagens icónicas e representativas da melancolia, da saudade, da ausência, da viuvez, do medo, do horror, da morte, do instante da morte, do sofrimento em ação. O caracter monocromático pelo seu tom neutro desta série de pinturas inéditas, nunca antes expostas mas realizadas entre 2000 e 2002, foi selecionado de forma a contrastar e a integrar de forma mais eficaz o espaço e as outras obras envolventes que integram permanentemente o Museu, já de si rico de formas, tons e cores diversas, ao mesmo tempo que os espelhos que se agregam nas pinturas prolongam estas virtualmente e simetricamente, refletindo ao mesmo tempo outros espaços virtuais. Criam-se assim fragmentos de outros microespaços que se desmultiplicam consoante a mobilidade do observadorespectador à medida que deambula pelo espaço expositivo. Os espelhos foram também eles objeto de intervenção onde o gesto pictórico neles assinalado com derrames de manchas “de sangue” remetemnos para a má memória da violência, da guerra e do ato do sofrimento e da morte em plena ação. A mancha sanguínea sobreposta aos reflexos pictóricos que se articulam ao mesmo tempo com os reflexos do espaço envolvente cria uma tensão, característica que é paralela e é metáfora da dinâmica da própria guerra em ação. Esta tensão que desmultiplica o espaço envolvente criando outros subespaços virtuais e outros espelhos, digamos assim, requerem a mobilidade visual do espectador que é transformadora do espaço imóvel do Museu mediante o confronto de representações reais e virtuais, de reflexos oculares, de novas pinturas justapostas a pinturas e a arquiteturas preexistentes. Todo este jogo de reflexos e de derrames pictóricos de imagens de saudade, luto e sofrimento suscitam e aceleram uma anamnese no espectador que em última instância reivindica a aparente utopia do estabelecimento da paz no mundo em que vivemos. António Trindade, 9/10/16








António Trindade Vive e trabalha em Lisboa. É professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa desde Outubro de 1996. Licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da universidade de Lisboa, 1992. Mestrado em Arte, Património e Restauro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002. Doutoramento em Belas Artes, especialidade em Geometria Descritiva, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2008. Membro do Departamento de Desenho da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa Exposições individuais 2016 – Afastamento, Galeria Arte Periférica, C.C. de Belém, Lisboa. 2014 – Living Landscapes (Paisagens que Vivem), Galeria Arte Periférica, C.C. de Belém, Lisboa. 2012 – Talk With Flowers, Galeria Arte Periférica, C.C. de Belém, Lisboa. 2010 – Talking, Walking, Sleep and Dream, Galeria Arte Periférica, C.C. de Belém, Lisboa. 2008 – Room Temperature, Galeria Arte Periférica, C.C. de Belém, Lisboa. Exposição integrada no circuito Lisboa Arte Contemporânea. 2006 – Burning Mirror. We Want to Be but We can’t find Ourselves, Galeria Sala Maior, Porto. 2004 – A Mulher e a Máscara, Galeria Arte Periférica, C.C.de Belém, Lisboa, Exposição integrada no circuito Lisboa Arte Contemporânea. 2002 – Ambiente X, Black Velvet, Verão de 99, pintura e instalação, na Galeria Conventual, Alcobaça. Black Velvet, Galeria Arte Periférica, C. C. de Belém, Lisboa. 2000 – “Imagens de Arquivo”, Galeria Arte Periférica, C. C. de Belém, Lisboa, integrada no circuito Lisboa Arte Contemporânea. 1999 – Habitar outros Suportes, Galeria Arte Periférica, C. C. de Belém, Lisboa. 1998 – Fósseis para as Gerações Seguintes, Galeria Arte Periférica, C. C. de Belém, Lisboa. 1995 – Pintura, Galeria Arte Periférica, C. C. de Belém, Lisboa. 1994 – Da Velocidade da Vida à Persistência da Memória, Galeria Arte Periférica, C. C. de Belém, Lisboa. 1993 – Projecto individual de Pintura para os escritórios da Telecel do Lumiar, Lisboa. 1993 –Arquivo de Memórias, Galeria Arte Periférica. Massamá-Queluz. 1991 – Inauguração da loja Cardilium em Torres Novas. Seleção de participação em exposições coletivas e outros trabalhos: 2016 - "PERIPLOS/ Arte portugués de hoy". Colectiva de pintura portuguesa Fevereiro e Maio de 2016, Centro Cultural de Málaga, CAC Málaga. Exposição patrocinada pela Fundação Luciano Benetton. 2013 - “Haverá Sol”, colectiva de Arte Contemporânea dos Países de Língua Portuguesa, Macau, Museu Casa da Taipa, Outubro e Novembro de 2013. 2012 - ART Lisboa, Novembro, 2012, Feira de Arte Contemporânea de Lisboa, Stand da Galeria Arte Periférica, F. I. L., Lisboa, Parque das Nações. 2011 - ART Lisboa, Novembro, 2011, Feira de Arte Contemporânea de Lisboa, Stand da Galeria Arte Periférica, F. I. L., Lisboa, Parque das Nações. 2010 - ART Lisboa, Novembro, 2010, Feira de Arte Contemporânea de Lisboa, Stand da Galeria Arte Periférica, antiga F. I. L., Lisboa, Alcântara. Artista integrado no Projecto Terraço com curadoria de Filipa Oliveira. 2009 - Exposição colectiva com obras de acervo em Alcobaça no espaço Armazém das Artes, a convite do escultor José Aurélio, Junho/Setembro de 2009. ART Lisboa, 18 a 21 de Novembro, 2009, Feira de Arte Contemporânea de Lisboa, Stand da Galeria Arte Periférica, F. I. L., Lisboa, Parque das Nações. 2008 - Exposição Colectiva em homenagem a António Inverno, no Espaço Mais, Município de Aljezur, 2 de Agosto a 28 de Setembro de 2008. ART Lisboa, Novembro, 2008, Feira de Arte Contemporânea de Lisboa, Stand da Galeria Arte Periférica, F. I. L., Lisboa, Parque das Nações. Encomenda particular da empresa Cooperativa Frubaça e da Associação dos produtores de maçã de Alcobaça para o certame da Apple Parade. 2005 - FAC 2005, Feira de Arte Contemporânea de Lisboa, Stand da Galeria Arte Periférica, F. I. L., Lisboa, Parque das Nações. 2004 - ARCO’O4 – Madrid, Stand da Galeria Arte Periférica. Colectiva, Galeria Arte Periférica, C.C. de Belém, Lisboa.


BETWEEN THE LAND AND SKY


ENTRE A TERRA E O CÉU JOÃO PAULO QUEIROZ 9 março - 30 abril - 2017


João Paulo Queiroz (Portugal). Licenciatura de Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Mestre em Comunicação no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Doutor em Belas-Artes na Universidade de Lisboa. Coordenador dos Congressos Internacionais CSO e Matéria-Prima. Diretor das revistas Estúdio, Matéria-Prima, Gama e Croma. Realizou diversas exposições individuais e coletivas de Pintura. Em 2004 recebeu o prémio de Pintura Gustavo Cordeiro Ramos pela Academia Nacional de Belas-Artes.


Entre a Terra e o CĂŠu, 2009-2016, 64 pasteis sobre papel, 29 cm x 21 cm





JOÃO PAULO QUEIROZ E A PROCURA DA GNOSE Hoje a vida desenvolve-se em volta da felicidade fácil dos sorrisos do facebook. Toda a gente é feliz, a vida é sorridente! O planeta não é redondo, é apenas superfície. Superfície polida de preferência, brilhante, sorridente! Essa felicidade excedente de si própria é contagiante, viral! Pandémica! O esgar do riso entranhou-se, estático durante os segundos necessários, já sem necessitar de ensaios. Toda a gente o articula com um jeito que parece inato, tal como o ator que se obriga a viver o riso do personagem que encarna. Parece não haver dúvidas sobre a felicidade que todos demonstram. Parece até que ninguém se sente infeliz, desamparado, ignorado, frustrado, envergonhado, vencido, esfomeado, doente, sem morada. Parece que neste planeta ninguém tem medos, ninguém sofre, ninguém é consciente. Parece que todos querem parecer iluminados pela vida, pelas divindades, pelo conhecimento! Mas para que servem essas iluminações? Para nos sentirmos felizes? Existem hoje incomensuráveis equívocos acerca do que é ser ente. Considero que esses equívocos se repercutem em conceitos como o de humanidade, o do sentir, o de conhecer, assim como em todas as declinações dos verbos ser e haver, muitas já em desuso na comunicação corrente… Mas para que serve interrogarmo-nos, para que serve percebermos, ou apenas conhecermo-nos, aos nossos limites máximos e mínimos, como, o quê e porquê temos sentimento ou “pré-sentimento”? Por regra, o conhecimento adquire-se quando se consegue identificar padrões. Quando se encontra a coerência da reconstrução de mundos, elos que unem elementos até aí desconexos, quando se entende a interligação do que é móvel e cíclico no ente, do espelho e da transparência do eu e do outro. E, este reflexionar, é já aquilo que normalmente se designa por ciência, por gnose ou por êxtase. Deveria ser apenas a partir deste ponto que à vivência da vida era dada autoridade para sorrir. Interiormente fascinados poderíamos então sorrir. Sentir a amplitude do regozijo, rindo. João Paulo Queiroz pinta ao usar a pictoralidade como meio de aproximação a um território modelo onde o seu ente se reflete em recolhimento. Esta expansão espiritual contida, como um artista-asceta na procura do não visível na visibilidade das coisas onde se transmuta. Porque o ver do olhar concentrado do pintor acaba por ser uma transmutação do ente na coisa que vê. O autor torna-se no que pinta desvelando os padrões mentais que unem ente e mundo natural. Porque o desenho é um ato mental. Este autor inicia um percurso laboratorial ontogénico sobre um determinado ecossistema complexo existente num determinado território de cerca de 300 m2 e reanalisando-o ciclicamente, num período em que o eixo da terra está perpendicular ao sol. Esta proximidade sugere-nos que o seu objeto fundamental seja a luz ou a sua incidência sobre as superfícies do mundo e as modificações que lhes provoca. Se é verdadeiro que a nossa espécie é cega para além dos 370-750 nm (nanómetros), também acontece que a variação daquilo que vemos e que existe perante o nosso olhar está em permanente mutação devido à impermanência da luz natural. É apenas esta pequeníssima faixa de 380 nm do espectro electromagnético que se tem quando se trabalha com a visualidade do mundo, portanto, estamos a falar de um trabalho altamente contido e analítico que tem de se submeter a uma metodologia muito rigorosa com o agravo de exigir precisão e rapidez na captação das gradações lumínicas devido à fugacidade da modelação dos momentos de incidência da luz sobre as superfícies. Como um pensador cujas ferramentas são os olhos e a luz, JPQ desenvolve uma pintura metódica, analítica e imparcial. Referenciando-se por um calendário antiquíssimo, cósmico, o autor procura a qualidade da luz visível, investigando as materialidades com que modela as formas. Perceber a luz, impossível de ver diretamente ou na sua máxima intensidade mas apenas através da reflexão nas coisas que ilumina, é perceber e comungar a essência das coisas, neste caso, do território eleito. Um território mítico, estranho e misterioso, quanto mais não seja pela especificidade que lhe foi incorporada pelo pensamento, fé ou imaginação ativa de tantos milhões de seres humanos. Uns 300m2 eleitos na imensidão do planeta, escolhidos para ensaiar a reflexão da luz. Como um sorriso interior de comunhão com o mundo. O riso, no ente, ilumina-o! Porque vibra, modela-o indeterminávelmente como luz invisível para os olhos. É nele que se revela o milagre da conjunção do ente com um todo, qualquer que este seja, e que naquele instante se


transforma em entusiasmo de recompensa. Ao riso não se olha para o ver mas para se percepcionar a iluminação que provoca. Por isso é contagiante. O riso, o sorriso, comunga-se! É apenas por isto que os rires e sorrires ataráxicos dos Facebook são tão morbidamente visíveis aos nossos olhos… Fixados como esgares não iluminam rostos, modelam-nos apenas através da forma… Evocar a tragédia coletiva fruto da ignorância, avidez e oportunismo de uns sobre outros é trazê-la à superfície da consciência, repensá-la e reorganiza-la metaforicamente ao nível da catarse. Evocar os antepassados, honrá-los e apaziguá-los é uma tradição muito antiga que a Oriente ainda tem grande importância. Nunca se há-de saber quantas vítimas causou a 1ª Grande Guerra mas foram muitas, demasiadas. E não apenas gente humana porque todo o ser vivo foi nela martirizado. Os equídeos, “recrutados institucionalmente”, os cães e os pombos foram os que mais diretamente intervieram no drama. Mas quantas florestas não foram dizimadas, quanta terra não foi esventrada exatamente como se corpos humanos fossem… Neste ano de 2017 completam-se 100 anos sobre o auge deste conflito sob a indiferença do nosso atual riso cristalizado, ou “petrificado”, do Facebook. Talvez já não se consiga atingir o sentimento, talvez tenhamos desistido da humanidade que nos calibrava e definia como “seres humanos”, talvez seja já uma das visibilidades do Antropoceno. Talvez as tragédias tenham sido maiores e mais injustas do que era possível. Evocar este primeiro grande conflito global não é apenas relembrar a dor e os atos de bravura ignorada mas também reconhecer a dor e a valentia com que estamos obrigados a viver. A guerra escraviza o sentido da civilidade com tal enraizamento que torna muito difícil refazermo-nos íntegros. Num território modelo, através da árvore, JPQ tenta encontrar qualquer sinal de humanidade evocativo dessa integridade perdida. Apenas a natureza no seu correr, a árvore, está ainda apta a ser um elemento redentor. Um elo entre as tragédias dos humanos e a indiferença do tempo. Árvores como um pequeno exército, árvore como um soldado desconhecido. Árvore como elemento que une a terra ao céu – tal como cada ente se deveria reconhecer. Qualquer atitude parece sempre pequena para evocar o drama coletivo, apenas o ser-se mártir dessa dor, da dor do Outro que somos nós próprios, a pode resgatar e possibilita que cada um de nós seja incorrupto. Como a luz que irradia da energia que se reflete das superfícies dos corpos e que varia de momento a momento… Por isso o riso é libertador, assim como as obras que João Paulo Queiroz apresenta na Sala da Grande Guerra do Museu Militar de Lisboa, numa exposição que intitulou Entre a Terra e o Céu, umas das muitas ações de arte atual comissionadas pelo pintor Ilídio Salteiro e que constituem a evocação da 1ª Grande Guerra no Museu Militar de Lisboa. Dora Iva Rita Lisboa, 21 de março de 2017



HOLY LAND


CAMPO SANTO MANUEL GANTES 7 novembro – 7 dezembro- 2017


Manuel Gantes (Figueira de Castelo Rodrigo, 1967).Licenciado pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa - FBAUL em 1990, Mestre em Pintura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa em 2004. Foi professor na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha e atualmente é professor de Desenho na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Tem um currículo bastante extenso de exposições coletivas e individuais e está representado em inúmeras coleções públicas e particulares.


Campo Santo 1/20, 2017. Óleo sobre tela, 20 cm x 16 cm





MANUEL GANTES – CAMPO SANTO, TERRA QUEIMADA Cristos das trincheiras. Céu negro, sem luz, linhas de sombra. A pintura como evocação de um tempo transversal, um tempo que nunca se repete e no entanto é um tempo de desgaste. Sombra celeste.

Flandres, vale da ribeira de La Lys, dia 9 de Abril de 1918, os soldados portugueses são massacrados pela máquina de guerra alemã. A consciência, as trincheiras do medo e da impotência que se abatem penosamente sobre este pequeno país, o fogo, as chamas, a guerra, as vítimas, no limite todos vítimas mas uns mais que outros. Os outros. Écran branco ou negro? Rarefação ou saturação? Natal, Páscoa, Carnaval ou Quaresma? Pontuação, valor estrutural? O quadro, o enquadramento é limitação necessária. O quadro dentro do quadro. Visível e legível. Inconsciente? Um conjunto. O todo e as partes. Vasos comunicantes. Quadros de guerra. Linha de fogo. Fio de tempo. Sempre fora de campo mesmo nas imagens mais fechadas – porque existe a imagem espiritual. Ou a imortalidade cósmica (Borges) ou o infinito azul (Poe). Que realidade espiritual? Espaço e tempo (para Borges, em pensamento, podemos prescindir do espaço mas não do tempo). Os sentidos… O tempo flui… O tempo é movimento perpétuo… somos coisas nos espaços do tempo… A memória é feita, em boa parte, de esquecimento… a memória é morte (el olvido es la muerte)… A invenção da eternidade… A memória: o presente do passado. Para Platão o tempo era a imagem móvel da eternidade… No entanto o ser é mais que o universo, mais do que a eternidade. Tudo é superfície… e a economia? A economia da superfície… O momento presente: o presente contínuo fora do tempo … Presente contínuo. O outro nós. O outro em cada um. Fora de campo. Enquadramento: a ordem do visível?...geometria da guerra. Divisão, deriva. Divisível. Cristo nas trincheiras… Perspectiva no tempo, horizonte, ponto de vista… estado primitivo. a tendência escondida, plano destruído. Linhas de luz. Luz negra. Sombras de luz. Restos de Luz. Rastros de luz. Morrem amando. Fuga para a frente. Maternatura. Alma Mater. Ver a luz. Restos de luz. Luz morta. Memória de luz. Linhas de Lys. Céu sem cor, cristos de guerra, cristos da guerra. Cristos das trincheiras. Nós fomos os outros. “ (…) Fala-se antes e sobretudo de desvios, de escapatórias, de falsos caminhos. E quem hoje vive num país europeu sabe como muitos não resistem à tensão atroz – uma tensão que se estende do conflito pessoal entre a necessidade de repouso e a capacidade de decisão, que se estende da necessidade material mais simples e inadiável às questões mais gerais e no entanto prementes da política, do futuro económico, social e cultural – uma tensão a que ninguém escapa ileso. E se, não obstante, a juventude tenta escapar ilesa, por conscienciosa que seja no modo como interprete a sua fuga, ainda assim traz na testa a marca de Caim, a marca de quem traiu o irmão.”(1) A exposição consta de cerca de duas dezenas de pequenas pinturas criadas expressamente para a ocasião, instaladas provisoriamente no espaço do Museu Militar. Manuel Gantes, Roma-Lisboa, Agosto/Setembro de 2017.

(1) Annemarie Schwarzenbach, “Morte na Pérsia”, p.14. Tradução de Isabel Castro Silva, tinta-da-china, Lisboa, 2008.




GRAVITY


GRAVIDADE JOSÉ TEIXEIRA 12 dezembro – 11 fevereiro- 2018



GRAVIDADE Cai chuva, granizo e neve. Uma chuva diluviana e gélida. Não sinto os pés. A roupa encharcada cola-se ao corpo. Se ao menos pudesse trocar as peúgas e enxugar as botas. Chove há meses. A trincheira acumula a água. Vivemos num charco nauseabundo. Chove e o frio glacial sobe das falanges até à nuca. Às vezes ficamos submersos até à canela. Quando a chuva cessa e a água escoa, é a lama. A trincheira é um pântano que, ao movermo-nos, nos cola ao chão. Descalçamos as botas. Torcemos as meias esburacadas. Voltamos a calçar as botas descosidas e rôtas de tanto esperar. Porque esperamos? Às vezes deseja-se a morte - imagino-me a saltar a trincheira e a correr louco e desesperado em direção à linha de fogo do inimigo que está entrincheirado cinquenta metros à frente. Uma bala num órgão vital e num segundo tudo se consuma. Acaba-se a espera infindável, o medo, a morrinha nos ossos, o lento apodrecimento nesta metamorfose da lama. Lama, eis o que somos. Foi para isto que alguém insuflou de vida o pó primordial. O sofrimento é tanto que nos deixa o corpo dormente. Perdemos a noção do tempo. Que dia é hoje? A cabeça zune com o fragor dos estampidos. Quantos dias se passaram desde que nos enterraram aqui vivos? É de novo noite. E nós aqui encurralados debaixo do ensurdecedor silêncio. Uma trégua. Passo a passo percorre-se o caminho (às vezes sem sair do mesmo sítio) que conduz cada um ao seu destino. Gravidade, com tudo o que tem de ambíguo, consta de uma instalação escultórica, que contou com a participação de setenta e sete pessoas, homens, mulheres e crianças entre os dez e os oitenta anos. O projeto, iniciado em Abril de 2016, partiu da ideia de representar um centésimo das vítimas portuguesas na grande guerra. A evocação dos que morreram há cem anos serve para lembrar, no presente, os milhares de migrantes, os refugiados, oriundos de zonas de conflito bélico, as crianças soldados recrutadas por grupos extremistas e, simultaneamente, para celebrar a vida simbolicamente representada nos setenta e sete participantes que comigo colaboraram na elaboração deste trabalho. Segundo a estatística pereceram 7700 portugueses durante o conflito. José Teixeira, 2017



JOSÉ TEIXEIRA (1960) escultor, professor e investigador, é professor de Escultura na Faculdade de Belas-Artes de Universidade de Lisboa desde 1998. Paralelamente à atividade docente desenvolve trabalho como conferencista e ensaísta nas áreas da escultura e arte pública. Enquanto escultor expõe regularmente desde 1980. Realizou algumas obras em espaço público. A partir de 1995 dedicou-se também à medalhística (tem cerca de meia centena de medalhas editadas) e à numismática (autor de duas das moedas do Euro 2004, do Mundial 2006 e dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008, dos 40 anos do 25 de Abril, 2014).






ERANOS Bang! Bang! SELF-CONSCIOUSNESS


ERANOS Bang! Bang! A CONSCIÊNCIA DE SI HUGO FERRÃO 11 abril – 20 maio- 2018



ERANOS – BANG! BANG! A CONSCIENCIA DE SI. Eranos é um termo grego (erano) que significa banquete frugal entre amigos, em que cada um dos comensais se serve e partilha os alimentos trazidos por todos. Esta palavra encantatória é capaz de atingir diretamente a essência dos rituais praticados na juventude, que nos permitem inventar o futuro, questionar todas as visões que possam significar a existência. Podemos pressentir em eranos, uma ambivalência subtil, pois evocamos a materialidade do alimento para o corpo e também a imaterialidade da consciência de si, entendida como veículo do conhecimento, capaz de criar palavras e ideias transformadoras, como aquelas que faziam parte da imagética vivenciada em casa do Agostinho Sanches (1953-2009), onde se partilhava alguma coisa que se comia, mas onde se discutia e se especulava sobre livros, revistas, discos, textos pacifistas, desenhos, pinturas, máquinas fotográficas, fotografias mal impressas, e se combinavam idas aos cinema, às livrarias, à Fundação Calouste Gulbenkian, à Sociedade de Naturalogia de Lisboa para assistir a uma conferência de algum «mahatma», que nos trouxesse o perfume da Índia mística, ou à Sociedade Nacional de Belas-Artes de Lisboa na esperança de reconhecer atualidade e identidade nos novos artistas portugueses como aconteceu com a nova figuração em sintonia com a irreverência da Pop Art. Na década de 70, vivíamos intensamente os últimos estertores do Estado Novo, protagonizados pelas conversas em família do Marcelo Caetano, teledifundidas a preto e branco, assistíamos aos embarques dos mancebos para as províncias ultramarinas, com o firme propósito de manter uma guerra a distância que se iniciara em 1961 e anunciava o fim do Império e dos altos desígnios impostos a um povo pobre de tudo. O regime político «orgulhosamente só», teimosamente afirmava a «mitologia lusitana» (António Ferro) que passava pelo sacrifício e pela resignação instaurados nas medalhas recebidas no Terreiro do Paço (10 de Junho), espécie de amputações devastadoras que criavam uma dimensão de irrealidade só suspensa pelo som das vozes de comando dadas aos «meninos da luz» (Colégio Militar) que desfilavam com todo o aprumo evocando o «zacatraz» e a divisa: «um por todos, todos por um». O respeito e a amargura desses tempos heroicos está sinalizado no meu imaginário pelo «silêncio escultórico» emanado dos claustros do Colégio, associado à generosidade do batalhão perfilado que chamava pelos alunos que haviam morrido em África, respondendo a uma só voz «presente!», para que o seu supremo sacrifício nunca fosse esquecido. As mistificações que podem «justificar» a necessidade de uma guerra passaram a ser testemunhadas (informação-desinformação) pelas imagens fotográficas, pelos filmes mais ou menos ficcionados, pelos documentários, pela investigação académica (dissertações e teses), pelos imensos ensaios, pelas coleções dos museus militares, pelos arquivos, pelos desenhos, pelas gravuras, pelas pinturas, pelas esculturas, pelas medalhas comemorativas, pelos monumentos, pelas exposições de todo o tipo e natureza, que criam uma densidade especulativa e espetacular, aparentemente tranquilizadora, perante a instantaneidade dos conflitos armados que testemunhamos quotidianamente (terrorismos), e que «justificam» viver-se num estado de exceção perpétuo (Giorgio Agamben), onde todas as opacidades repressivas são permitidas. Lembro-me dos olhos da humanidade vitrificarem com os cogumelos atómicos de Hiroxima e Nagasaki, marcando o advento da total militarização das sociedades. Para trás


ficavam os horrores e a barbárie «artesanais» das I e II Guerras Mundiais, onde milhões de militares e civis foram imolados. Passivamente assistimos à industrialização da morte (campos de concentração), e aos conflitos regionais que continuam a alimentar e a orientar os destinos da humanidade com a cumplicidade mercantil da ciência e da tecnologia. O impacto da Guerra Colonial (1961-1974), eternizava-se e era indissociável do serviço militar obrigatório ou da deserção para parte incerta, no entanto chegavam-nos notícias fragmentadas, desfasadas, vigiadas, censuradas de um admirável mundo novo (Aldous Huxley), dos movimentos pacifistas como os Beatniks, assumindo a figura do «anti-herói» na marginalidade das obras de William Burroughs, de Allen Ginsberg e de Jack Kerouac, ou dos Hippies com o seu grande «guru», Timothy Leary, que elaborava alucinadas miscigenações entre psicologia, sociologia, antropologia e arte (psicadélica), do amor livre, das manifestações pacifistas antiguerra (I wont’t fight in Vietnam), das alternativas comunitárias radicalizando o abandono da sociedade de consumo (Jean Baudrillard), dos assassinatos dos Kennedy (John 1963 e Robert - 1968) do Martin Luther King (1968), da personagem mítica de Che Guevara fotografado pelo Korda (Alberto Diaz Gutierrez) com uma Leica M2, da Leni Riefenstahl e os filmes nunca vistos, do maravilhoso Picasso com a Guernica a infernizar o Franco, das latas do Andy Warhol, do Roy Lichtenstein e a banda desenhada transformada em obra de arte, do IKB (International Klein Blue) de Yves Klein, da imagética consumista da Pop Art, da sedução do Maio de 68, com toda a utopia estudantil contestatária da ordem internacional estabelecida, enchendo Paris de barricadas e maravilhosos slogans (L’obéissance commence par la conscience et la conscience par la désobéissance) e das viagens em motas velhas que nos levassem para bem longe, para o sul da Grécia. Faziam parte do nosso imaginário, entre muitos autores como Gaston Bachelard (A Terra e os Devaneios da Vontade), Herbert Marcuse (e o homem unidimensional), Carl Yung (com a ideia dos arquétipos e do inconsciente colectivo), Claude Lévi-Strauss (e o pensamento selvagem), René Guénon e o Titus Burckhardt (a paixão pela sophia perennis), Mircea Eliade (e as imagens e os símbolos), Gilbert Durand (a imaginação simbólica), Jean-Paul Sartre (os homens servis), Noam Chomsky (a dignidade do individuo em relação ao estado), Guy Debord (sociedade do espetáculo), Jean Baudrillard (sociedade de consumo) e o Roland Barthes (com o sistema da moda), discutidos com a música de fundo do Wagner para nos lembrar da condição humana e dos mitos que nos habitam, ou ouvindo os protestos alternativos da Janis Joplin, do Jimi Hendrix, do Bob Dylan, do Zeca Afonso, do Ravi Shankar, da Joan Baez, do Miles Davis, dos Beatles, dos Led Zepplin, os Pink Floyd, os Doors, do Adriano Correia de Oliveira, do Leonard Cohen, do Otis Redding e do Léo Ferré, cujas letras e musicas nos inflamavam e nos faziam reconhecer a necessidade de assumir posicionamentos de resistência (Ni Dieu Ni Maître) como era o caso da objecção de consciência fervorosamente e calorosamente discutida em casa do Agostinho. Estas inquietudes sobre a consciência de si, evitaram em mim o consentimento, o esquecimento e a resignação, em grande medida, porque tive figuras tutelares como a Hannah Arendt (Desobediência Civil), o Henry David Thoreau (A Desobediência Civil) o Martin Heidegger (Carta sobre o Humanismo) e o Mahatma Ganghi (e os protestos pacifistas) que eram capazes de descarnar os protocolos de sacrifício impostos aos outros esvaziando e mumificando (Mário Perniola) qualquer horizonte de humanidade. O espectro da Guerra Colonial marcou profundamente a minha geração, o nosso imaginário estava habitado por imagens que geravam uma tensão conflituosa insuportável, que não era possível apaziguar que tinha inevitavelmente de acabar.



Ao intitularmos esta instalação como: «Eranos – Bang! Bang! A Conciênca de Si», pretendemos evocar um mitema libertador, intuído no enigma ocasional da negação de uma cultura de sacrifício e esquecimento. O processo de «coisificação - industrial» desta exposição tenta acentuar intencionalmente a dimensão de «colectivo-anónimo», de «linha de montagem» e da precariedade dos seres, a forma de o expressar passou pela criação de desenhos que foram tratados em computadores e projectados por intermédio de ampliadores analógicos (Durst 138 S), utilizando-se cartão reciclado canelado em painel (Proforma-Guimarães), com uma espessura capaz de manifestar a fragilidade do corpo na presença das balas, este cartão foi serrado e posteriormente pintado recorrendo a moldes (seleção de cores) que obrigavam ao nivelamento das formas (apagamento da individualidade) provenientes da matriz fotográfica utilizada. As cores são lisas, uniformizadas, impessoais e foram aplicadas com pistola, rolo, trincha, spray e outros instrumentos feitos especificamente para que não existisse grande controle actuante, mas que instaurassem as cadências monótonas da produção industrial. O balão «Bang!», é uma apropriação fragmentada do Roy Lichtenstein e colado acidentalmente sobre o corpo das figuras. Os números e letras (código de série) são riscados e pintados por intermédio de alfabetos em chapa e nas costas de cada um dos soldadinhos, estão inscritos números do balanço estatístico dos países envolvidos na I Guerra Mundial, dos mobilizados, dos mortos, dos feridos, dos desaparecidos e dos prisioneiros (Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes). Pretendia conceber um dispositivo imagético convocando as imagens dos soldados impressos em cartolinas que se recortavam e se colocavam em pé dobrando a base e com os quais se brincava às guerras. Estes soldadinhos adquiriram a escala real, representam jovens do Colégio Militar do curso (1966-1973), portadores de números que lhes foram atribuídos e os identificavam, mas que ao longo dos anos foram simbolicamente atingidos (Bang !) por todas as desilusões e imagens de guerra a que estiveram expostos. Estas «coisas efémeras» com a configuração «meninos da luz» são simultaneamente um tributo aos jovens que na sua candura e generosidade participaram morrendo ou sobrevivendo na I Guerra Mundial, ao meu saudoso amigo Agostinho Sanches, com quem partilhei as angustias dos «dias de chumbo» e as alegrias da inexistência do serviço militar obrigatório, aos camaradas do curso do Colégio Militar, presentes como árvores frondosas, portadores de códigos e valores espartanos transmitidos e vividos durante toda a existência, à ligação inquebrantável gerada entre eles, forjada na endurance das «firmezas», nas idas a Mafra, nas formaturas, nas praxes, na instrução militar, nas salas de estudo, no toque de alvorada que nos despertava para as manhãs luminosas anunciadoras do futuro (carpe diem). É também o reconhecimento pelo engenho e arte dos militares como o meu avô, que profissionalmente prepararam milhares de jovens para olharem a morte de frente sendo capazes de a saudar com um sorriso, testemunhado por estas pinturas que nos cercam e nos olham dizendo na sua visibilidade: «Lembrem-se !…». Termino reconhecido pelo enorme contributo dado pelo Director do Museu Militar Coronel Luís Paulo de Albuquerque e pelo pintor Ilídio Salteiro ao realizarem um conjunto de exposições subordinadas à evocação da I Guerra Mundial como actos de memória que só a dimensão da arte nos pode fazer sentir e compreender.

Casa das Três Colunas Amieira do Tejo – 2018 Hugo Ferrão




Hugo Martins Gonçalves Ferrão (Maputo-1954)

Doutor em Belas-Artes, especialidade de Pintura – FBA/Univ. Lisboa (2007). Equiparação a Doutoramento - Agregação ao 5º Grupo – ESBAL (1996). Mestre em Comunicação Educacional Multimédia – Univ. Aberta (1995). Pós-Graduação em Sociologia do Sagrado e do Pensamento Religioso – Univ. Nova de Lisboa (1992). Licenciado em Artes Plásticas-Pintura - ESBAL (1985). Prof. Associado em Pintura na FBAUL, onde cria as disciplinas de Ciberarte e Realidade Virtual, fundador do Centro de Investigação em Ciberarte, e do CIEBA – Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (Director; Invest. Principal da Ciberarte; Presid. do C. Científico (20062012); Presid. Coord. do Doutoramento da Fac. de Belas-Artes. Membro do Conselho Geral da Univ. de Lisboa (2011-2017). Membro do Conselho Geral da Esc. Artística António Arroio (2011 2018). Investiga e publica nos domínios da pintura, simbolismo, tapeçaria, ciberarte, cibercultura, hipertexto, realidade virtual e seu impacto na formalização do discurso artísticopintura. Tem desenvolvido um projecto artístico no âmbito da nova figuração, participando em várias exposições colectivas (desenho, pintura, tapeçaria e fotografia) e realizou 10 exposições individuais (Pintura e desenho) e foram-lhe atribuídos dois prémios em Pintura.


PROGRAMA 2016-2019

1º Exposição / JOÃO CASTRO SILVA, OSSOS 9 de Março 2016 a 30 de Maio de 2016 9 de Março de 1916: A Alemanha declara guerra a Portugal.

2ª Exposição / ISABEL SABINO, A MENINA (NÃO) FICA EM CASA 15 de Junho a 30 de setembro de 2016 15 de Junho de 1916: O governo britânico convida Portugal a participar nas operações militares dos aliados.

3ª Exposição / JOÃO ROCHA DE SOUSA, LINK PARA A MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO GLOBAL 6 de Outubro 2016 a 15 Novembro de 2016 4-8 de Outubro de 1916: Combate de Maúta, rio Rovuma, Moçambique.

4ª Exposição / ANTÓNIO TRINDADE, GUERRA E ESPELHOS 25 de Novembro de 2016 a 30 de Janeiro 2017 22 A 28 de Novembro de 1916: o cerco de Nevala.

5ª Exposição / JOÃO PAULO QUEIROZ, Entre a Terra e o Céu 9 de Março a 30 de Abril de 2017

6ª Exposição / MANUEL GANTES, Campo Santo 7 de novembro a 7 de dezembro de 2017

7ª Exposição / JOSÉ TEIXEIRA, Gravidade 12 de dezembro de 2017 a 25 de Janeiro de 2018

8ª Exposição / HUGO FERRÃO, Eranos, Bang! Bang! A Consciência de Si 11 de abril a 28 de maio de 2018 9 de abril: Batalha de La Liz

9 ª exposição / ARTUR RAMOS Junho – Setembro 2018

Conclusão do projeto Evocação da Grande Guerra: novembro 2018 - julho de 2019


EVOCAÇÃO - Projeto de arte contemporânea evocativo da I GUERRA MUNDIAL Curadoria Luís Paulo de Albuquerque Ilídio Salteiro Assistentes de curadoria: Margarida Vinhais, Mariana Scarpa, Sandra Ramos, Silviana Rocha Transcrição/Digitalização: VHS / U-Matic / BETACAMl: Fernando Fadigas Montagem: Luís Soares 2016 – 2018 Web evocacao14-18.blogspot.pt/ facebook.com/evocacao Morada Largo do Museu da Artilharia, Lisboa (Santa Apolónia) Horário 3ª Feira a domingo das 10h às 17 h. Aos sábados e domingos encerra entre as 12h30 e as 13h45 Apoios Museu Militar de Lisboa. Comissão para a Evocação da Grande Guerra. Direção de História e Cultura Militar Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Centro de Investigação e Estudo em Belas-Artes. Galerias Abertas das Belas-Artes.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.