Bom dia, agressor

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Bom dia, AGRESSOR O ASSÉDIO SEXUAL POR TRÁS DOS MUROS DA ESCOLA

Reportagem: Bianca Brandão, Ana Paula Castro e Ana Luiza Teixeira. Fotografia: Bianca Brandão e Ana Paula Castro Diagramação: Bianca Brandão, Ana Paula Castro e Ana Luiza Teixeira.


o dia 17 de julho de 2016, um assunto tomou conta da rede social Facebook em Belém: acabara de entrar no ar a fanpage Macho na Roda, criada com o objetivo de divulgar histórias de mulheres que sofreram assédio e violência sexual e doméstica para prevenir a ocorrência de novos casos, além de acolher essas vítimas. Poucas horas após a criação da página, os relatos - todos anônimos - de abusos vividos por mulheres belenenses já circulavam pela rede, expondo uma realidade que faz parte do cotidiano de Belém e do Brasil, mas que ainda é muito silenciada: a violência contra a mulher naturalizada na sociedade. Segundo as administradoras da Macho na Roda - que preferem manter suas identidades no anonimato -, no início, a média de relatos recebidos pela página era de 20 por dia. Esse número acabou diminuindo a partir do mês de agosto, mas, em setembro, a página já contabilizava 485 relatos* e mais de 23.500 curtidas. No meio de tantos relatos compartilhados, um certo tipo de narrativa começou a chamar a atenção das leitoras e leitores. Dentre os casos narrados até o mês de setembro, 111 eram sobre professores de escolas e cursinhos assediando suas alunas, em sua maioria adolescentes. Uma dessas jovens

foi Amanda**. Em 2013, ela cursava o segundo ano do Ensino Médio em um colégio particular de Belém. Acostumada a conversar com os docentes para tirar dúvidas sobre os conteúdos do vestibular que se aproximava, ela adicionou, sem pretensão, um de seus professores no Facebook. Durante as férias escolares, no mês de julho, o professor começou a comentar as fotos que ela postava e a enviar mensagens por meio da rede social. No começo, falava apenas de assuntos banais e fazia perguntas que Amanda respondia, desconfortável. “Depois, ele passou a falar coisas impróprias, dizer coisas que queria fazer comigo”, conta. A primeira reação de Amanda foi pedir que o professor parasse com as investidas. “Eu disse para ele não fazer essas coisas, que eu não tinha dado liberdade nem espaço para que ele fizesse aquilo.” Em seguida, a jovem apagou o registro das mensagens e bloqueou o professor na rede social. “Eu fiquei com muita raiva e não queria ter mais nenhum registro dele lá, aí fui apagando tudo”, explica. Com o fim do período das férias, Amanda continuou a ter aulas com o professor, que a observava no pátio da escola e chegou a tentar beijá-la à força enquanto ela andava sozinha pelos corredores, afirmando ter achado que ela também estava interessada nele. Amanda diz que sente-se mal ao pensar que outras meninas sofreram

assédio por parte de seus professores antes dela e outras continuam sofrendo depois dela. Segundo ela, o que mais sentiu na ocasião foi raiva, ao constatar a maneira como alguns professores se aproveitam da posição de autoridade que ocupam para benefício próprio. “Esse não é o papel deles, eles estão lá como educadores e deveriam orientar aqueles adolescentes que estão numa fase difícil como é o ensino médio, com toda a pressão do vestibular”, desabafa.

Amanda teve vontade de denunciar o ocorrido à direção da escola, mas temia que nada fosse feito a respeito e preferiu não levar o caso adiante. Na época do ocorrido, contou apenas para uma amiga e não chegou nem a comentar com os familiares, pois tinha medo da reação deles. Em casos como o de Amanda, de acordo com a legislação, o ideal

seria não apagar as conversas, e sim fazer uma captura de tela e utilizá-las para registrar um boletim de ocorrência em uma delegacia. O artigo 216-A do código penal descreve como crime de assédio sexual “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior

hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.” A pena para este crime é de um a dois anos de reclusão. No entanto, o boletim de ocorrência não é suficiente para que o agressor seja punido. Conforme a lei, é necessário que a vítima ou seu representante legal abra um processo contra o homem que a agrediu. A polícia só pode tomar as providências necessárias se as vítimas prosseguirem com a denúncia até o processo,

*Contagem realizada até o dia 25 de setembro de 2016. O número corresponde aos relatos postados e mantidos na página (alguns foram removidos a pedido das relatantes). ** O nome da personagem foi trocado com o objetivo de preservar a sua identidade.


porém muitas desistem nesta etapa. Mesmo que não dê prosseguimento à denúncia, a vítima, em posse do boletim de ocorrência e, no caso de Amanda, das cópias das mensagens, pode escrever detalhadamente o seu relato e levar todos esses documentos à coordenação da instituição. Apesar de ser o procedimento ideal, muitas vítimas se sentem constrangidas e preferem não compartilhar suas histórias com terceiros. Enquanto algumas escolas e cursinhos podem agir em favor da vítima, muitas instituições tentam minimizar o caso. Essa foi a postura das diretorias de algumas escolas frente aos relatos veiculados pela página Macho na Roda, que envolviam seus professores contratados. A escola em que Amanda sofreu o assédio foi procurada pela equipe de reportagem, mas não se pronunciou sobre o assunto “por ser um tema delicado demais para se tratar”, conforme dito pela assessoria do colégio.

Eu disse para ele não fazer essas coisas, que eu não tinha dado liberdade para que ele fizesse aquilo


Mesmo após o fim das investidas, o professor continuava dirigindo olhares para Amanda em sala de aula. A jovem sentia-se constrangida e chegava a trocar de lugar em sala em todas as aulas dele, sentando-se nas cadeiras mais ao fundo. “Eu tinha receio de andar pela escola sozinha, mas não deixei de fazer as minhas coisas por causa dele. Eu não ia deixar que ele interferisse dessa forma na minha vida, a ponto de ter que ter alguém do meu lado o tempo todo.” Durante um tempo, ela chegou até a perguntar a si mesma se não tinha sido a culpada pelo assédio que sofreu. Ela diz ainda que também passou a desconfiar das atitudes de outros professores e de homens mais velhos em geral. Hoje, Amanda é universitária e, com a ajuda da amiga, passou a compreender que não teve culpa do que lhe aconteceu: “Hoje eu não penso que eu provoquei nada do que aconteceu. Sei que foi um homem de 40 anos se aproveitando de uma garota de 15”. Para a psicóloga Priscilla Mendes Taveira, que trabalha no atendimento à mulher da Fundação Propaz, do governo do Estado, é difícil definir e generalizar

as consequências que casos de assédio e violência sexual deixam nas vítimas, já que cada pessoa reage de maneiras diferentes. Enquanto algumas mulheres conseguem superar o abuso vivido e dar prosseguimento às suas rotinas, algumas necessitam de acompanhamento psiquiátrico, terapia e até mesmo medicações.

A psicóloga diz que a maior parte das vítimas fica ainda mais fragilizada com a ineficiência da justiça e a impunidade dos agressores. Segundo ela, muitas empresas e instituições tentam minimizar as ocorrências, coagindo as mulheres a não levarem as denúncias adiante. Por conta da naturalização da violência contra a mulher na sociedade, muitas vezes as vítimas também são questionadas a respeito da veracidade dos fatos que relatam e são até mesmo culpabilizadas pela violência sofrida.

Hoje eu não penso que eu provoquei nada do que aconteceu. Sei que foi um homem de 40 anos se aproveitando de uma garota de 15


*Contabilizados até 25 de setembro de 2016

485 relatos no total* Aos 26 anos, Lívia Noronha tem muitas histórias para contar. Ela é filósofa, professora da rede municipal de ensino e criadora do (R)existência, cursinho preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que atende estudantes em situação de vulnerabilidade social: pessoas LGBT, mulheres negras, moradores de bairros periféricos e, principalmente, transexuais, público com maior índice de evasão escolar. Criado em maio de 2016, além de ministrar os conteúdos do vestibular, o cursinho também aborda questões relacionadas ao empoderamento dos segmentos sociais aos quais os alunos pertencem. Temas como relações étnico-raciais, identidade de gênero e feminismo são incorporados ao conteúdo programático obrigatório, criando uma grade curricular diferenciada do que se vê na maior parte dos cursinhos. Antes de ingressar na carreira de docente, Lívia Noronha também passou pelos bancos de colégios e cursinhos, nos quais presenciou e viveu o assédio cotidiano, que era tratado como parte da vida de estudante. “Era comum que algumas alunas entendessem que ser tratada daquela maneira

por um professor era algo positivo, que tinha alguma relação de poder, enquanto na verdade elas estavam sendo usadas”, conta. No (R)existência, os abusos cometidos por professores são tratados de maneira diferente: todos os docentes que colaboram com o cursinho passam por um processo de formação antes de começarem a ministrar aulas. Caso o professor não compareça à formação e apresente uma postura preocupante, o cursinho possui uma equipe de mediação de conflitos que é acionada para tentar resolver a situação a partir do diálogo com o professor. Lívia conta que, apesar de todas as iniciativas, alguns colaboradores já tiveram que ser desligados devido à postura inadequada. Ela cita o caso de um professor que compartilhou imagens impróprias em um grupo composto por estudantes em uma rede social e foi afastado por isso. “Nós entendemos que, ainda que indiretamente, isso também é assédio e também fere as mulheres que estão lá. Por causa disso, nós trabalhamos com o desligamento do professor quando a gente percebe esse problema”, explica. Já tendo trabalhado tanto no ambiente do

pré-vestibular quanto no ensino superior, quando foi professora da Universidade Estadual do Pará, Lívia descreve os cursinhos em geral como um refúgio para o educador, um local onde pode-se perceber, efetivamente, como a educação tem o poder de transformar a vida das pessoas. Lívia acredita que a proximidade entre professores e alunos, somada à liberdade para ministrar conteúdos, são fatores de grande importância no processo educacional. Ela afirma que, dentro do (R)existência, os resultados desse poder transformador são nítidos nos estudantes, a exemplo de alunas negras que, depois de um tempo frequentando o cursinho, passaram a assumir os cabelos crespos, usar turbantes e aceitar melhor a estética dos próprios corpos. Para Lívia, essas mudanças são motivo de orgulho: “Eu me sinto realizada percebendo que a educação funciona mesmo, que ela é uma via possível para todas as opressões”.

30.93%

150 são de violência praticada por professores

DOS 150 A RESPEITO DE PROFESSORES 5 PROFESSORES DE CURSOS TÉCNICOS (MAIORIA DE MÚSICA)

2 PROFESSORES ASSEDIANDO COLEGAS PROFESSORAS

1 PROFESSOR DE CURSINHO PARA CONCURSO PÚBLICO

4 PROFESSORES PARTICULARES

2 PROFESSORES DE INGLÊS

16.67% 25 PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS 111 PROFESSORES DE ESCOLAS E CURSINHOS

74%


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