VA LO N
Iatã Cannabrava José Roberto Torero
– Veio fazer o quê aqui no Valongo? – Umas fotos.
– Ah, um lambe-lambe. Lamber é uma coisa importante.
– Você vem sempre aqui?
– Aqui eu não venho. Eu vivo. Mas “vivo” é uma força de expressão, é claro.
– Sabe por que esse lugar se chama Valongo?
– Sei. Porque o porto está num vale longo.
– Acertou. E estragou minha fala. Eu queria parecer inteligente.
– Então é melhor não dizer nada. A gente sempre pensa que as pessoas caladas são inteligentes. Mas às vezes é só timidez. Ou laringite.
– À noite, isso ainda ferve, não é?
– Sim. Mas não como no tempo da velha Boca. – Lembro dela como um lugar alegre, cheio de luzes e música.
– Também tinha sombras e gritos. A Boca beijava, mas também mordia.
– Chegou a conhecer a boate Love Story?
– E bem. Vi começarem ali muitas histórias de amor. Sem trocadilho. – Histórias com finais felizes?
– História de amor, se tem final, é triste.
– Se não me engano, naquele lugar tinha um tatuador.
– Era o Jesus. Um espanhol. – Esse mesmo!
– Ele me fez uma tatuagem. – No braço?
– No coração. Mandei que escrevesse: “Cuidado. Perigo”.
– Tenho uma tese: tudo o que a gente faz faz para agradar nossos olhos e nossa bunda. – Aprofunde.
– É que, no fim e ao cabo, o que a gente quer é ver coisas bonitas, sejam quadros ou vistas. E, de preferência, sentados em cadeiras macias.
– Neste vale longo há gente boa.
– Mas os únicos santos são as estátuas.
– Aqui, passado, presente e futuro se encontram.
– Na verdade, acho que só o passado e o presente. O futuro sempre se atrasa.
– Quando eu era pequeno, olhava para o céu tentando ver Deus.
– Eu também. Aprendi que quem olha muito para o céu acaba pisando onde não deve.
– Vendo todas essas janelas, lembrei daquela poesia que diz: “O todo sem a parte não é todo, a parte, sem o todo, não é parte”.
– Pois eu lembro de uma outra que inventei agora. Ela é assim: “O todo, quando uma parte parte, já não é todo, e, quanto aos que partem, quero que vão todos aos raios que os partam!”.
– Isto aqui mudou muito. Me sinto como um peixe fora d’água.
– Então não está tão ruim. Se fosse como um barco fora d’água, seria muito pior.
– Às vezes você até que fala coisas interessantes.
– Transparência e reflexão são o meu segredo.
– Por aqui tem muitos seres invisíveis: garçons, frentistas, fantasmas.
– Você acredita em fantasmas?
– Não. São todos mentirosos.
– Falando nisso, quem é você?
– Não respondo. Mas dou opções. Posso ser o fantasma de uma prostituta da Boca que está enterrada aqui pertinho, no Cemitério da Filosofia; posso ser um velho estivador que não consegue parar de vagar por essas ruas, porque nunca fez outra coisa na vida...
... posso ser a fotografia, que finalmente veio ter uma conversa cara a cara; posso ser o próprio Valongo, que veio lhe cobrar ou agradecer; ou posso ser um outro você, um pouco mais mal humorado, o Cannabrava do Iatã; ou dois misturados, três, todos. Você escolhe.
Valongo – ou “que barulho é esse?” Historicamente, o som que melhor representa os portos brasileiros é o do passado. Ou da memória. Um rugido grave que atravessa os tempos sem desaparecer por completo, ora de uma embarcação a vapor chegando ou partindo, ora de um indefinível maquinário rangendo sob o peso da história, quem sabe o de uma ruína em formação. O Valongo, na zona portuária de Santos, é desses lugares onde soa o tempo em ação. Pautado pela impermanência de suas partidas e chegadas, a transformação que opera é em camadas, depósito sobre depósito, a cidade como um palimpsesto em que a degradação urbana revolve o terreno para novas manifestações de sua existência. O encontro das fotografias de Iatã Cannabrava com as palavras de José Roberto Torero, do passado, presente e futuro numa dobra da paisagem que se vê aqui, é apenas uma destas muitas manifestações. – Você ouviu esse barulho? – a realidade pergunta. – É o Valongo resistindo – sorri a ficção em resposta. (Ou vice-versa). Tato Coutinho
ISBN: 9786588934067