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DEMOCRACIA VIVA OUT / DEZ 2004

Arte e educação

Reinaldo Reis e Rogério Chaves

Entrevista

Nina Pacari

Gênero e questão indígena Begoña Fernández

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Cândido Grzybowski Sociólogo, diretor do Ibase

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Ibase, por meio de sua revista Democracia Viva, procura sempre

pautar, para o debate público, os temas e as questões que, nas diferentes conjunturas, indicam as possibilidades e os limites para a cidadania ativa avançar na radicalização da democracia. Nesta edição, estamos trazendo, em primeiro lugar, um olhar atento sobre a insurgência indígena na América do Sul e seu significado para nós, brasileiros e brasileiras. Ao nosso lado, vive um povo quase desconhecido pela maioria de nós. A Bolívia tem um povo diverso e aguerrido, com mais de 60% da população composta por indígenas. Vale ressaltar que capitais brasileiros invadem suas terras e se apropriam delas para plantar soja e obter gás para suas indústrias. Os povos indígenas bolivianos estão no centro de uma cidadania que praticamente impõe uma revolução permanente à democracia no país. Mas vale a pena comparar o que se passa com o Equador, outro país de marcante presença indígena em sua composição, história e identidade. A emblemática Nina Pacari, forjada nas lutas pela causa de seu povo, líder do Movimento Pachakuti, conta-nos sua história e nos dá uma visão da atualidade política no seu país e em toda a região, tendo os povos indígenas no centro. Para completar, há um artigo e uma entrevista sobre os(as) tapebas, povo indígena esquecido no interior do Ceará. O processo das eleições municipais no Brasil, neste ano, acentuou um lado publicitário de venda de candidatos(as) mais do que um confronto de idéias e propostas. Essa forma de construção do poder democrático traz, em si mesmo, o germe de profunda crise política, com riscos para a própria democracia. É inadiável pautar o tema da mídia e de seu uso nas campanhas políticas como parte de um amplo debate sobre partidos e institucionalidade política da nossa democracia. Tal debate é fundamental para uma refundação democrática do Estado. Afinal, precisamos sair da armadilha de uma Lei de Responsabilidade Fiscal que se sobrepõe a tudo, menos ao Banco Central e sua irresponsável política macroeconômica, que só preserva os interesses de especuladores em relação à dívida pública. Uma Lei de Responsabilidade Social parece o contrapeso fundamental para recolocar a “coisa pública” (república), materializada no Estado, no seu devido lugar para a construção de uma democracia substantiva no Brasil. Mas como desmercantilizar a política partidária e eleitoral para desmercantilizar o Estado? A revista não pára aí. Mais uma vez, traz ao debate aquilo que, no Brasil, teimamos em deixar escondido: o racismo cotidianamente impregnado em nossas relações. Uma ampla coalizão de movimentos negros e organizações de cidadania ativa do Brasil, entre elas o Ibase, lançará uma campanha contra o racismo. Aproveitamos a ocasião para apresentar a campanha e mostrar que não dá para continuar dando as costas ao racismo, uma das mais perversas formas de exclusão social e desigualdade entre nós. O Fórum Social Mundial (FSM) se aproxima. Novamente em Porto Alegre, de 26 a 31 de janeiro, vai se reunir o multifacetado movimento da cidadania de dimensões planetárias. Mas quem somos exatamente? O Ibase, em nome da Secretaria Internacional, realizou uma pesquisa sobre o público participante do FSM 2004, realizado em janeiro, em Mumbai, Índia. São dados importantes para pensarmos sobre as possibilidades e os limites que temos para construir um outro mundo.


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3 Artigo

Mídia e política, a metamorfose do poder Davys Sleman de Negreiros 12 Nacional

Para se contrapor ao Estado-facilitador Rudá Ricci

22 Variedades 24 internacional

Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos

Entrevista

Nina Pacari

Miguel Urioste F. de C. 34

Pelo Mundo

36 entrevista

Nina Pacari 50 crônica

182 na cabeça Alcione Araújo

52 resenhas 56 Opinião Ibase

Onde você guarda o seu racismo? Maurício Santoro

62 indicadores

Finda a asfixia, a cidadania tem nome e sobrenome

cultura

A arte na educação por uma nova cultura

Leonardo Méllo 70 cultura

A arte na educação por uma nova cultura Reinaldo Reis e Rogério Chaves 78 especial

Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas Begoña Fernández Gallego 86

espaço aberto

As tapebas: uma história de luta e resistência Begoña Fernández Gallego 92

Última página Marco

Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas Av. Rio Branco, 124 / 8º andar 20148-900 Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852-3517 <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>

Conselho Curador Regina Novaes João Guerra Carlos Alberto Afonso Moacir Palmeira Jane Souto de Oliveira

Direção Executiva Cândido Grzybowski Dulce Pandolfi Francisco Menezes Jaime Patalano

Coordenadores(as) Erica Rodrigues Iracema Dantas Itamar Silva João Roberto Lopes Pinto João Sucupira Leonardo Méllo Moema Miranda Núbia Gonçalves

DEMO C RA C IA VIVA ISSN: 1415149-9 Diretor Responsável Cândido Grzybowski

Conselho Editorial Alcione Araújo Ari Roitman Eduardo Henrique Pereira de Oliveira Jane Souto de Oliveira Regina Novaes Rosana Heringer

Coordenação Editorial Iracema Dantas

Subedição AnaCris Bittencourt

Revisão Marcelo Bessa

Assistentes Editoriais Flávia Mattar Jamile Chequer

Produção Geni Macedo

Distribuição Maria Edileuza Matias

Projeto Gráfico Mais Programação Visual

Diagramação Imaginatto Design e Marketing

Capa Mosaico “Terra é vida”, publicado no livro Alfabetização cultural - A luta íntima por uma nova humanidade

Fotolitos Rainer Rio

Impressão O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política.

J. Sholna

Tiragem 5 mil exemplares

democraciaviva@cidadania.org.br


artigo

Davys Sleman de Negreiros*

Mídia e política, a metamorfose Pode-se aceitar o argumento de que a propaganda/marketing, a mídia e as estatísticas (as polêmicas pesquisas de opinião) impõem-se à medida que se retrai a cena tradicional da política. Na cena brasileira, faltam principalmente os partidos, pelo menos quando se pensa teoricamente.1 Os partidos, desde o fim da década de 1950, entraram em crise de representatividade, acelerada pelo Movimento de 1964. A reabertura política reencontrou, com o nome de partidos políticos, máquinas burocráticas que giram na órbita de seus interesses ou, então, pequenas agremiações com palanques despolitizados, francamente televisivas. Esse fato torna-se compreendido, no caso brasileiro, quando realizamos uma retrospectiva de todo o movimento dos partidos políticos no Brasil, demonstrando todas as dificuldades políticas e institucionais da nossa acidentada trajetória republicana: originalmente oligárquica (1889–1930), oscilou historicamente entre a ditadura (1937–1945 e 1964–1985) e o populismo (1946–1964), até chegar

1 O partido político é uma organização de pessoas que, inspiradas por idéias ou movidas por interesses, buscam tomar o poder, normalmente pelo emprego de meios legais, a fim de nele se conservarem para a realização dos fins propugnados. Em relação a esse tema, ver DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. 2. ed. Brasília: UnB, 1980; SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

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Nesse processo histórico, foram experimentados seis sistemas partidários distintos sem praticamente nenhuma continuidade formal ou política entre eles. Isso não só impediu a existência de partidos fortes, como também inibiu a formação de uma cultura cívica aberta e receptiva à ação dos partidos e favorável à constituição de identidades partidárias estáveis e consistentes ao longo do tempo. Só para se ter uma idéia da falta de tranqüilidade e de continuidade do sistema republicano brasileiro, do “período compreendido de 1930 a 1990, tivemos 1 (um) golpe ou tentativa de golpe a cada 3 (três) anos”.2 Assim, podemos afirmar que há um vácuo de representatividade que, num determinado momento, foi preenchido pela mídia. Como conseqüência, diz Muniz Sodré que [...] nesses espaços mediados, trava-se uma novíssima disputa eleitoral: em vez de plataformas marcantes, vantagens percentuais nas pesquisas, em vez de posições ideológicas, rostos fotogênicos ou telegênicos, em vez de representação, simulação.3

2 Frase proferida pelo professor doutor Francisco de Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP), no “Projeto Fórum de Debates – Periferia, Subdesenvolvimento e Radicalização Antidemocrática”, ocorrido em 2 de setembro de 1998, no Teatro Florestan Fernandes, da UFSCar (São Carlos-SP). 3 Citação retirada do caderno Idéias do Jornal do Brasil, de 3 de janeiro de 1987. 4 CANCLINI, Néstor García. Del espacio público a teleparti­ cipación. In: _____. Culturas híbridas. México, Grijalbo, 1990. 5 SARTORI, Giovanni. Video­po­lí­ tica. Rivista Italiana de Scienza Política, v. XIX, n. 2, 1989. 6 DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 7 Ver LANDI, O. La televisión y el futuro de la política. Comunicação&Política, IX, n. 12, jul./dez. 1990; LANDI, O. Proposiciones sobre la video­política. In: SCHMUCLER, H.; MATA, M. C. Política y comu­nicación. Córdoba: Uni­ ver­sidad Nacional de Cor­do­baCatálogos, 1992. 8 Landi, 1990, p. 46. 9 Idem, ibidem, p. 38. 10 RONCAGLIOLO, R. Los espa­ cios culturales y su onomás­tica. Comunicação&Política, nova série V, n. 1, jan./abr. 1998, p. 31.

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De modo geral, persiste a preocupação de que, no espaço público configurado pela mídia, a política tende a perder o seu conteúdo, e os partidos políticos, sua identidade como mediadores de interesses entre a sociedade e o Estado. Como destaca García Canclini,4 ao ocupar o lugar das mediações que seria próprio da política, a mídia estabeleceria uma nova diagramação dos espaços e intercâmbios urbanos. A contaminação da política pela comunicação não se esgota no deslocamento de poder ocasional pelo monopólio tendencial do ato de publicizar ou na criação de temas/atores/ cenários. A questão da adequação da política às regras e à gramática da mídia, de imediato, coloca-se no centro da análise. Ao aceitar a premissa de incorporação da comunicação como componente e momento da política contemporânea, uma vez que a mídia monopoliza tendencialmente a enunciação pública, pode-se considerar que a política, para incorporar a comunicação (midiática), deve resignar-se às regras e formatações derivadas da mídia, posto que isso não só facilita sua realização, como até se torna inevitável. Longe de ser homogêneo quanto às avaliações e prescrições, o resultado das pesquisas desenvolvidas converge, porém, para um aspecto: a centralidade da mídia e sua influência no cenário da política que passaram a caracterizar as novas democracias latino-americanas a partir

da década de 1980.

Midiatização da política Ao afirmarmos a centralidade da mídia, tanto no Brasil como em outras democracias latino-americanas da década de 1980, os estudos corroboram o fenômeno de videopolítica,5 termo cunhado por Giovanni Sartori, definido pela introdução da cultura audiovisual nas relações sociais e, particularmente, nas de poder. Do ponto de vista institucional, a importância da videopolítica dependeria diretamente de seu contrapeso, os partidos políticos: quanto menor é o grau de institucionalização partidária, maior é o espaço aberto para a expansão e penetração da videopolítica. É possível concluir que, mesmo nas sociedades fortemente institucionalizadas, a videopolítica, em grau mais ou menos acentuado, é presença certa sem limite de fronteiras no cenário “espetacularizado” da contemporaneidade ocidental.6 Landi aprofundou a discussão sobre a videopolítica na América Latina introduzindo o debate sobre a presença de diversos tipos e graus de intervenção sobre a cultura política, que vão além de uma campanha eleitoral e incluem jornais, entrevistas, debate, publicidade, horário gratuito político eleitoral (HGPE) e os comentários.7 Ele critica as velhas e esquemáticas teorias da manipulação informativa, para as quais todo o poder e o sentido da mensagem estão contidos no projeto do emissor. A sua perspectiva adota, em suma, o caminho inverso das análises maniqueístas, advertindo que “a tendência colonizadora da TV na política encontra tensões e contrapesos que compõem um quadro mais complexo do que aquele das profecias apocalípticas”.8 Contra os males da “satanização” da mídia, afirma que “a presença da televisão mantém-se nas transformações profundas da cultura e em certas características do sistema político”.9 Além disso, ele chama a atenção para a necessidade do estabelecimento de novas políticas voltadas para a inovação na utilização da técnica como desafio aos comunicadores: [...] está también en nuestras propias manos subvertir y domesticar aparatos creados para la opresión, a fin de convertirlos en herramientas de liberación... Aunque ya sea un lugar común, conviene recordar que estamos en un cambio de época y no sólo en una época de cambios.10 Em decorrência desses fatores, Landi entende que a televisão garante sua presença


Mídia e política, a metamorfose do poder

em virtude das transformações profundas na cultura e no sistema político. A videopolítica gera um espaço aberto, em que o poder da TV se espraia sem contrapoderes visíveis, colocando em jogo as estruturas e as formas de ação da política. Nos países da América Latina, atua de maneira diferente da observada nos Estados Unidos e de forma peculiar em cada país. Mas algumas alterações comuns podem ser notadas nas campanhas eleitorais, como a introdução do marketing político e das pesquisas de opinião, a diminuição da militância voluntária e a necessidade de volumoso capital. A primazia do aparecer e a personalização da imagem possibilitam trazer à cena políticos de fora dos tradicionais centros urbanos. Outra conseqüência da videopolítica é o desenvolvimento de partidos de baixo tono ideológico, de agregação pragmática de reivindicações e interesses. Aqui, consideram-se os partidos políticos culturalmente despreparados para absorver as mudanças trazidas com a introdução da mídia, particularmente da televisão na política. Rafael Roncagliolo, um analista das relações entre os novos espaços culturais e a democracia, considera que las crisis de representatividad y de los partidos, un tema tan en boga, no se reduce a las llamadas crisis de los paradigmas, sino que se enmarcan en la modificación sustantiva de los espacios culturales. La política de antes estaba tejida en mercados físicos de bienes culturales (local partidario, cédula, plaza pública). Hoy se ha ‘mediatizado’, y el ciudadano no necesita trasladarse al acto político para semblantear al candidato. Quizás, la crisis de la politica y de los políticos tenga que ver con sus limitaciones para actuar (y pensar) en estos nuevos escenarios o espacios culturales de la política.11 Seguindo nessa mesma trilha, Bernard Manin, no texto “As metamorfoses do governo representativo”, elabora uma arqueologia do governo representativo, dividindo-o em três momentos: parlamentarismo, democracia dos partidos e democracia do público. Por meio da análise de cada um desses momentos, contribuiu não somente para a discussão das transformações sofridas pela forma da representação ao longo de sua constituição, mas também com informações sobre o papel exercido pelos meios de comunicação para o (re)desenho da representação.

No parlamentarismo, segundo Manin, a escolha do representante estava relacionada à confiança e aos vínculos locais do candidato, sendo que os eleitos eram sempre os “notáveis”. O representante eleito votava na Assembléia conforme sua consciência. Não existia uma relação direta entre a opinião pública e a expressão eleitoral. As discussões entre os representantes estavam restritas ao Parlamento. Esse modelo se esgotou a partir da ampliação do corpo eleitoral e de um vasto número de pessoas que passaram a ter o direito do voto. Por outro la­d o, a denominada democracia dos partidos surgiu em decorrência do aumento do eleitorado, gerado pela extensão do direito de voto, que impediu, assim, o povo de manter relações pessoais com seus representantes. O eleitorado passou a votar não mais em quem conhecia, mas em um candidato que carregasse as “cores” de um partido. Os par­tidos políticos, juntamente com as suas burocracias e sua rede de militantes, surgiram exatamente pa­ra mobilizar esse eleitorado mais numeroso. Esse tipo de representação era o governo do ativista e líder partidário ou do “chefe político”. Nessa forma de governo, também há outra característica singular, o povo vota em um partido, e não em uma pessoa. O fenômeno da estabilidade do comportamento eleitoral é uma prova disso. As pessoas não só se inclinam a votar constantemente no mesmo partido, como também as preferências partidárias são transferidas de uma geração para a outra: os filhos votam como os pais, e os habitantes de uma localidade votam no mesmo partido durante

11 Idem, ibidem, p. 54.

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12 MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 29, out. 1995, p. 34. 13 Idem, ibidem, p. 7. 14 Um outro autor que também defende a linha propagada por Manin é Patrick Champagne: “O aparecimento, o desenvolvimento e, sobretudo, a difusão dos novos meios modernos de comunicação [...] implicaram um deslocamento progressivo do centro de gravidade do espaço político que passou das assembléias parlamentares para a mídia”. Ver CHAMPAGNE, Patrick. Formar a opinião. Petrópolis: Vozes, 1998. 15 GLASS, David P. Evaluating presidential candidates: who focuses on their personal attributes?. Public Opinion Quarterly, v. 49, 1987, p. 525.

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Por outro lado, essa estabilidade eleitoral deriva, em grande medida, da determinação das preferências políticas por fatores socioeconômicos. Nesse tipo de governo, as clivagens eleitorais refletem as divisões de classe, até porque os setores sociais que se manifestam por meio das eleições estão em conflito entre si, em conseqüência de uma realidade social existente antes da política. Assim, a representação, fundamentalmente, passa a ser uma conseqüência da estrutura social. Outro aspecto que também influencia a estabilidade do comportamento do eleitorado é o fato de, nesse tipo de governo representativo, serem os partidos que organizam tanto a disputa eleitoral como os modos de expressão da opinião pública (manifestações de rua, petições, campanhas pelos jornais). Todas essas formas de expressão são estruturadas ao longo das clivagens partidárias. Os vários órgãos de imprensa mantêm laços com um dos partidos políticos, gerando, assim, uma imprensa politicamente orientada, o que faz com que as pessoas escolham a sua fonte de informação de acordo com as suas inclinações partidárias. Como conseqüência, os fatos ou assuntos são percebidos pela ótica do partido em que votam. Concluindo, Manin sugere que aquilo que está em declínio “são as relações de identificação entre representantes e representados e a determinação da política pública por parte do eleitorado”.13 São essas modificações no próprio campo político que geram uma nova metamorfose do modelo de governo representativo, constituindo um novo “tipo-ideal”, elaborado por Manin e denominado de democracia do público. Porém, nos últimos anos, a partir da década de 1970 principalmente, observa-se uma nítida modificação nas interpretações dos resultados eleitorais. Antes, as preferências políticas podiam ser explicadas pelas características sociais, econômicas e culturais de eleitoras e eleitores. Nesse momento, os resultados eleitorais tendem a variar significativamente de uma eleição para a outra, ainda que se mantenham inalteradas as condições socioeconômicas e culturais do eleitorado. Nessa etapa, diz ele, observa-se o declínio dos partidos e dos programas partidários, pois se transferiu a posição de principal fórum de debates do partido e do Parlamento para os meios de comunicação.14 Nesse processo, os candidatos passaram a cortejar quem vota diretamente por meio dos

meios de comunicação de massa, dispensando a mediação da rede de militantes do partido e estabelecendo uma nova relação entre políticos e eleitorado por meio do uso intensivo de técnicas de comunicação que enfatizam a personalidade da pessoa que está se candidatando. A personalidade de quem se candidata parece ser um dos fatores essenciais na explicação dessas variações: a existência de um eleitorado sem vínculos partidários e que tende a votar de acordo com os problemas e as questões postas em jogo em cada eleição, e não em programas político-partidários, acabou gerando o que se caracteriza como “volatilidade do voto”, ou seja, as pessoas tendem a votar de modo diferente de uma eleição para outra, dependendo da personalidade de quem se candidata e dos temas importantes postos em debate. Cada vez mais, o eleitorado tende a votar em uma pessoa, e não em um partido, em decorrência da presença da mídia no campo político, o que tem aumentando, conseqüentemente, a importância dos fatores pessoais no relacionamento entre representante e seu eleitorado. Podemos notar esse aspecto no seguinte relato: [...] através de várias pesquisas que se vem realizando nos Estados Unidos, ao contrário do que a maior parte das pessoas pensa sobre os eleitores americanos, diferentemente dos anos 40 e 60, nota-se claramente que a identificação partidária não apresenta hoje muita importância como determinante do voto. O número de pessoas que se identifica com partidos políticos atualmente é menor e mesmo essas são muito mais propensas a mudar de lado em eleições presidenciais.15 Nessas novas circunstâncias, de eleitorado volúvel orientado pelos assuntos, há maior necessidade de informação acurada sobre a agenda programática dos representantes. A dependência do noticiário de TV tem sido acusada de ter ajudado a erodir o sistema eleitoral, pois quem se candidata estaria sendo forçado às banalidades da política da imagem, pelo aspecto de corrida de cavalos (horse race) da campanha, realçado pelo noticiário de televisão, ou seja, a mídia (em especial a TV) contaminou a política impondo sua organização e dinâmica. Outra característica da democracia do público é que os canais (jornal, televisão, rádio e institutos de sondagem) nos quais se forma a opinião pública16 são relativamente neutros,


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no sentido de não estarem diretamente ligados a partidos políticos em competição, embora possam apresentar preferências políticas. A neutralidade relativa da mídia na democracia do público é um contraponto para a falta de neutralidade na democracia dos partidos, em que os meios de informação estavam atrelados aos partidos. Manin argumenta que, atualmente, isso não acontece, pois as informações são veiculadas pelos diferentes meios de forma homogênea, não existindo uma diferença gritante entre o que é noticiado em um ou outro veículo.17 O elemento novo é que, embora os indivíduos formem opiniões divergentes sobre os objetos políticos, essas opiniões são construídas sobre elementos identicamente apresentados a todas as pessoas e são percebidas de forma relativamente homogênea. Isso permite que a identificação entre eleitor e candidato se forme a partir de preferências sobre os objetos, e não a partir de preferências partidárias. Uma conseqüência dessa relativa neutralidade na divulgação de informações é a volatilidade do voto, a existência de um novo eleitor indeciso: o sujeito informado, interessado pela política e relativamente instruído. Em função da amplitude do número de eleitores e de temas, os representantes ou candidatos têm que debater no público, constituindo, desse modo, um novo local para a apresentação dos políticos e para o debate: a mídia. Assim, as Assembléias deixam de ser o local por excelência da discussão do político e passam a dividir esse espaço com a mídia. Observe-se, no entanto, que, para Manin, ao contrário de outros autores,18 esses dados indicam uma alteração na prática política, que não significa, porém, uma crise de representação, uma vez que: quando se reconhece a existência de uma diferença fundamental entre governo representativo e autogo­verno do povo, o fenômeno atual deixa de ser visto como sinalizador de uma crise de representação e passa a ser interpretado como um deslocamento e um rearranjo da mesma combinação de elementos que sempre esteve presente desde o final do século XVIII.19 Em suma, observa-se o deslocamento dos partidos políticos como sujeitos da democracia. Apesar do registro da fragilização dos partidos políticos, excepcionalmente, nesta abordagem vislumbra-se uma perspectiva favorável a seu desempenho, sob a condição de que eles consigam adaptar-se aos novos tempos.

El partido de masas, que según los prognósticos emitidos hasta la posguerra sería la forma dominante de organización política en el mundo contemporáneo, está a punto de ser un recuerdo del pasado más que un espejo del futuro.20 A singularidade dessa perspectiva é, portanto, a ênfase na necessidade de aperfeiçoamento dos mecanismos políticos de mediação e agregação de interesses nas sociedades complexas nas quais vivemos, em que pesem a centralidade da mídia e a fragilidade institucional dos partidos políticos, tanto no Brasil como na América Latina. A influência da mídia no campo político, especificamente nas campanhas eleitorais – até porque elas são um dos objetos deste texto –, tem sido item recente de estudos comparativos internacionais: as campanhas eleitorais são descritas por parte da literatura mais informada ora como um processo de “americanização”, ora como um processo de “modernização”. De acordo com Paolo Mancini e David Swanson, as campanhas eleitorais são assuntos difíceis de serem estudados, e o que acontece com elas reflete oportunidades, tradição, personalidades, cultura política e outras coisas. Além disso, nenhuma campanha é exatamente como outra, e, certamente, nenhuma campanha eleitoral de uma nação é exatamente igual a outras de outros países, assim como métodos e práticas usados nas campanhas eleitorais vêm mudando constantemente. Porém, [...] o resultado desta literatura recente é o que poderia parecer um fenômeno curioso: ao redor do mundo, muitas das mudanças recentes nas campanhas eleitorais dividem temas em comum apesar das grandes diferenças de cultura política, histórica e instituições dos países nas quais elas ocorreram.21 Os autores acreditavam, desse modo, que as práticas de campanha mereciam ser examinadas, em parte, como ponto inicial para considerar as mudanças fundamentais que poderiam estar ocorrendo nas democracias ao redor do mundo. Nesse sentido, supunham que a adoção de métodos de campanha americanizada poderia refletir em um amplo e imparcial processo que estaria produzindo, em muitas sociedades, mudanças que seriam difíceis de serem atribuídas a uma simples causa e que iriam além da política e da comunicação. Dessa forma, dizem Man­cini e Swanson:

16 Quando Manin se refere à opinião pública, está falando de manifestações, petições e da nova forma de expressão que é a sondagem de opinião. 17 Essa discussão remete ao que Bourdieu denomina de uniformidade da oferta. Segundo o autor, a concorrência e a lógica de mercado, que são características expressivas do campo jornalístico, levam à homogeneidade do campo, pois trabalham com as mesmas fontes, as mesmas restrições, as mesmas pesquisas de opinião, os mesmos anunciantes. 18 Entre vários, podemos citar: NOVARO, Marcos. O debate contemporâneo sobre a representação política. Novos Estudos Cebrap, 42, p. 7797, jul. 1995; COSTA, S. Do simulacro e do discurso: esfera pública, meios de comunicação de massa e sociedade civil. Comunicação&Política, nova série IV, n. 2, p. 117-136, maio/ago. 1997; DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 19 Manin, 1995, p. 33. 20 MOUCHON, Jean. Política y médio: los poderes bajo influencia. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 107. 21 MANCINI, Paolo; SWANSON, David L. Politics, media and modern democracy: an international study of innovations in electoral campaingning and their consequences. Londres: Praeger, 1996, p. 12.

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§§§artigo

[...] estamos interessados na america­ni­­ zação, na ex­por­ta­ção e na adap­­­tação local das técnicas particulares de cam­ panha, na modernização, no mais amplo e fundamental processo de mudanças que supomos conduzir pa­ra a adaptação destas técnicas nos di­ferentes contextos nacionais.22

22 Idem, ibidem, p. 16. 23 Manin também descreveu as transformações da sociedade (mo­der­nização), porém fazendo a relação com as mudanças no contexto da representação de governo, ao passo que Mancini e Swanson as relacionaram com a questão das campanhas eleitorais.

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Desse modo, as inovações nas campanhas eleitorais dos últimos anos, que parecem ser práticas que foram primeiramente desenvolvidas nos Estados Unidos, resultam fundamentalmente, como já foi notado por Manin, 23 em outra parte deste trabalho, da transformação da estrutura social e da forma das democracias nos países onde as inovações têm sido ado­tadas. Essas trans­formações fazem parte do processo de modernização. Então, quanto mais avançado esteja o processo de modernização em um país, mais provável será encontrarmos inovações nas campanhas eleitorais sen­d o ado­t adas e adaptadas. Assim, é ne­c essário definirmos os conceitos de americanização e modernização, de acordo com Mancini e Swanson. O conceito de americanização é usado para referir-se descritivamente a elementos das campanhas eleitorais e à atividade profissional conectada a elas. Isso foi primeiramente desenvolvido nos Estados Unidos e, agora, está sendo aplicado e adaptado de várias formas em outros países. Esse fato tem ocorrido por duas razões: primeiro, em virtude do grande interesse que as campanhas americanas recebem da cobertura jornalística de todo o mundo; segundo, pelo grande número de especialistas de campanhas que visitam os Estados Unidos para estudar e conhecer o processo eleitoral. A publicação de

livros e manuais sobre o assunto também tem ajudado a espalhar os métodos das campanhas americanas para outros países. Além disso, essa profissionalização é apoiada pelo freqüente envolvimento de consultores políticos americanos em campanhas de outros países. Em decorrência, a disseminação desses elementos tem naturalmente sido descrita como campanha política americanizada em outros países. Já o conceito de modernização diz respeito a um contexto de mudanças mais amplas e induzidas por variáveis que vão muito além da esfera política ou da esfera da comunicação e que dizem respeito à transformação estrutural da sociedade e das formas da democracia. Desse modo, colocando os dois conceitos frente a frente, a americanização das campanhas eleitorais deve ser entendida restritivamente como um conjunto de indicadores específicos de um processo mais geral de modernização da sociedade, cuja difusão vem sendo notavelmente acelerada pelo fenômeno da globalização da mídia que, malgrado as diferenças nacionais de cultura política, vem crescentemente unificando e estabelecendo agendas e comportamentos políticos, econômicos e culturais em escala mundial. Entre as principais caracterís­ti­cas apontadas por Man­­cini e Swanson no pro­cesso de modernização das campanhas eleitorais e a sua americanização, podemos citar cinco. 1. Personalização da política: expressa pelo predomínio da relação entre o eleitorado e quem se candidata em detrimento dos laços tradicionais de confiança e de ideologia entre os partidos, que, dessa forma, perdem substância como agregação simbólica e estrutura organizada. Los paradestinatarios empezaron a aumentar en las mediciones de las campañas subsiguientes y el índice de indecisos comprobó el fin de una era de lealtades y compromisos partidarios con el consiguiente nascimiento de un pragmatismo individualista. Del mismo modo, la incorporación de las herramientas de la ingeniería política: encuestas de intención de voto, a boca de urna, tendencias de imagem positiva, porcentajens de crerdibilidad, personalización y dramatización de las campañas, complejizaron los sistemas de comunicación de los políticos con sus potenciales electores.24 Os candidatos, nesse caso, parecem competir por conta própria ao mesmo tempo


Mídia e política, a metamorfose do poder

em que sua imagem pessoal, construída pela mídia, toma o lugar das ligações simbólicas que antes eram asseguradas pelos partidos políticos, ou seja, não existe mais uma identificação do candidato com o partido. 2. Cientifização da política: o conceito elaborado por Habermas25 é usado nesse contexto para exprimir a crescente preponderância nas campanhas modernas do time da campanha formado por especialistas e técnicos que cada vez mais controlam não só a produção de informações, como também sua interpretação com vistas à tomada de decisões críticas no desenvolvimento da campanha. A expansão da função dos técnicos (experts) nas campanhas reflete, por um lado, os métodos sofisticados e as habilidades que são dadas como necessárias para a condução de uma campanha na política contemporânea dentro do ambiente da mídia (incluindo as habilidades associadas com as pesquisas de opinião pública e outros métodos para monitorar os desejos e as vontades dos eleitores, criando fortes propagandas de televisão, cobertura favorável, positiva e freqüente da mídia para o candidato e obtenção de fundos financeiros) e, por outro lado, o grande enfraquecimento do papel dos partidos, que não são mais capazes, por exemplo, de suprir as necessidades de fundos e de pessoal competente.26 Assim, publicitários, marqueteiros, pesquisadores, cientistas políticos, relaçõespúblicas e jornalistas ganham crescente relevo no interior da campanha e tomam decisões que antes eram processadas dentro do aparato dos partidos pelas lideranças políticas e executadas por entusiastas e militantes. Dessa forma, o objetivo da cientifização é simplesmente a vitória eleitoral, e não encontrar alternativas úteis à política pública. Esse objetivo parece resultar do inevitável enfraquecimento das organizações partidárias e das mudanças que podemos notar nos sistemas políticos. 3. Estrutura autônoma da comunicação: um dos traços mais salientes da modernização é o desenvolvimento de uma poderosa e autônoma comunicação de massa, cuja influência penetra em todas as dimensões da vida social, política, econômica e cultural. No caso brasileiro, a concentração oligopolista da Rede Globo tem sido enfatizada com especial destaque pela sua influência na política no período da transição democrática,

firmando uma tradição de estudos de mídia e política que passou a conferir centralidade à presença da mídia, especialmente da televisão no cenário político da representação contemporânea. De fevereiro de 84, quando se deflagrou a campanha das ‘Di­retas já’, a abril de 85, morte de Tan­credo, são 14 meses de imensa efervescência política, durante os quais os meios de comunicação – em especial a TV Globo, pro­ tagonista principal – de­sempenha­ram papel inédito em sua história e se destacaram por sua capacidade de intervir no quotidiano extraordinariamente rico de uma crise de transição. Aparato criado pelo regime autoritário, e com ele complemente identificado, a TV Globo exerce o inesperado papel de protagonista das oposições, com isso ampliando um arco de alianças inesperadas. Na medida em que legitimava o regime emergente, legitimava-se também junto à opinião pública. Uma nova TV Globo surgia com uma Nova República.27 A mídia, em conseqüência, tende a assumir funções políticas antes exclusivas de organizações partidárias ou de órgãos de imprensa controlados por partidos ou governos, tais como a socialização política e a divulgação de informação para o público sobre política e ação governamental. A autonomia da comunicação de massa torna

24 MURARO, Heriberto. Políticos, periodistas y ciudadanos. Buenos Aires: FCE, 1997, p. 23. 25 HABERMAS, J. A mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. 26 WATTENBERG, M. The decline of american political parties. Cambridge: Harvard University Press, 1984, p. 131.

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artigo

*Davys Sleman de Negreiros Professor universitário, mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp/ UFSCar) davys.negreiros@bol.

os políticos mais dependentes da mídia e provoca, em conseqüência, a profissionalização da comunicação política dos partidos e líderes políticos, bem como do próprio governo na tentativa de manipular a mídia independente. 4. Distanciamento dos partidos em relação aos cidadãos: nas sociedades contemporâneas, a fragmentação social e a diferenciação dos interesses políticos impedem ou dificultam a relação direta entre líderes e partidos políticos e o seu eleitorado, assim como a apreensão de suas preocupações e demandas correntes por meio do contato pessoal. Entre os efeitos deletérios dessa nova situação, encontram-se o progressivo declínio da rede de militantes e ativistas e a perda do sistema de comunicação in­terpessoal que articulava eleitores e eleitoras às organizações partidárias. A pasteurização que nivela a política pela descaracterização do discurso tem sido apontada como um dos resultados reveladores da submersão das identidades partidárias no universo unificador da mídia, no qual é próprio que políticos não se destaquem por sua experiência, pelo programa de seu partido nem mesmo por sua capacidade de liderança no processo po­lítico, mas pela simpatia que seus mar­keteiros conseguem suscitar nos gran­des auditórios.28

28 TREJO DELARBRE, R. Telecracia no es democracia. Comunicação&Política, nova série I, n. 3, abr./jul. 1995, p. 117.

Por outro lado, com a ascendência crescente dos especialistas de campanha, os partidos programáticos foram compelidos a abandonar suas bases ideológicas pelas bases de opinião, que, obviamente, são aferidas por meio de sondagens e pesquisas sob a responsabilidade de empresas especializadas. O resultado final dessas mudanças é o crescente distanciamento dos partidos da vida cotidiana e do eleitorado. 5. Transformação do cidadão em espectador: finalmente, com a centralidade da televisão nas campanhas políticas modernas – em países onde o acesso à TV é pago pelos partidos (como nos Estados Unidos) ou onde é regulado, gratuito e igualitário ou proporcional à força do partido na Câmara (Brasil, França e Inglaterra) –, o evento político deslocou-se das ruas e praças públicas para a sala de quem vota. Podemos ter um exemplo desse fato neste relato sobre o caso da Argentina:

29 GONZÁLEZ REQUENA, Jesús. El espectáculo informativo. Madri: Akal/Comunicación,

Sin embargo, el balcón, que tuvo preponderancia a lo largo de toda

27 GUIMARÃES, I. C. A televisão brasileira na transição (um caso de conversão rápida à nova ordem). Comunicação & Política, III, n. 6, 1986, p. 28.

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la historia en la comunicación de los gobernantes con las masas en la Argentina, sería, dentro del gobierno del mismo Alfonsín, dejado de lado por la utilización de los medios electrónicos. Por otra parte, la ciudadania, hizo abandono de la Plaza de Mayo como espacio de legitimación del poder y de lugar de las representaciones que vin­culaban al dirigente de turno, através del uso de una enun­ciación pedagógica, con una masa todavía inmadura que esperaba de él todas las respuestas.29 Nada, portanto, é mais revelador do fato de a mídia não ser apenas um poder auxiliar, conforme pensa quem a chama de quarto poder. Pelo contrário, a mídia fornece os temas sobre os quais os públicos/eleitorado devem pensar, colocando-os em categorias semânticas determinadas. Além disso, não age apenas como mediadora entre os poderes, mas sim como um dispositivo de produção do próprio poder de nomeação e, no limite, também de funcionamento da própria esfera política. Assim, parece estar havendo um consenso de que a antiga fórmula da centralidade política das comunicações foi substituída por uma proposta de centralização das comunicações na atividade política. Dessa forma, tanto no âmbito do intercâmbio político como no do simbólico, o funcionamento do sistema político nas democracias da sociedade moderna está sendo cada vez mais determinado pela mídia.


O Balanço Social das Cooperativas, uma iniciativa do Ibase em parceria com diversas instituições, oferece às cooperativas um meio para que suas ações internas e externas sejam transparentes e conhecidas pela sociedade em geral. Ao tornar públicas suas ações e seus investimentos – que devem estar de acordo com os princípios cooperativistas definidos pela Associação Cooperativa Internacional e pela Recomendação 193 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) –, as cooperativas estarão ajudando a coibir práticas do setor que não estejam de acordo com os princípios democráticos e distributivos que o caracterizam.

www.balancosocial.org.br www.ibase.br

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nacio

nacional Rudá Ricci*

Para se contrapor ao EstadoA elaboração de uma Lei de Responsabilidade Social não é uma mera contraposição à Lei de Responsabilidade Fiscal ou à sua adequação.1 Não se trata, portanto, da busca 1 A criação de uma Lei de Responsabilidade Social vem despertando a atenção de movimentos e redes sociais envolvidos com a construção de um sistema de controle social sobre a gestão estatal, em especial, sobre a execução orçamentária em nosso país nos últimos anos. Em 2003, passou a fomentar uma articulação mais organizada e foi tema de oficina no Fórum Social Brasileiro, realizado em Belo Horizonte, em novembro, onde uma primeira versão deste texto foi apresentada. O Fórum Brasil do Orçamento (FBO), formado por 34 entidades civis, está organizando uma campanha nacional pela criação da Lei de Responsabilidade Social, que será lançada no próximo Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005. Mais informações em <www.forumfbo.org.br>.

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de equilíbrio político ou de uma disputa que busca a soma zero entre arranjos fiscais e desenvolvimento social. Trata-se de uma elaboração estratégica que procura esboçar um projeto geral de controle social sobre o Estado brasileiro a partir da sociedade civil. Pode, até mesmo, sustentar uma ação mais ambiciosa, filiada ao desenho institucional que movimentos sociais inscreveram na Constituição de 1988, denominada por alguns de “participacionismo” ou, mais recentemente, de governança social. Seria, assim, um passo adiante das conquistas do fim da década de 1980 e do início da década de 1990. Essa proposição, aos poucos, começa a ganhar contornos mais nítidos. No fim de 2003, a partir de uma proposta de lei elaborada pelo deputado estadual


onal o município gaúcho de São Sepé instituiu a primeira Lei de Responsabilidade Social local do país. 2 Este texto procura apresentar as bases desse arranjo institucional, começando pelo cenário político institucional que essa elaboração procura enfrentar. Em seguida, apresenta um esboço dos contornos do que seria essa formulação. Portanto, é um texto-provocação e se apresenta como uma sugestão ao debate das redes sociais engajadas nessa construção.

Limitações estruturais Um estatuto legal que procura normatizar o direcionamento dos gastos públicos para a área social parte, obviamente, da constatação dos percalços crescentes para uma agenda de investimentos sociais em nosso país. Com efeito, o cenário político que se apresenta é de conformação dos investimentos sociais à lógica da estabilidade fiscal, subordinando-se à capacidade de atração de poupança externa – mesmo que esses investimentos sejam voltados apenas para especulações financeiras – e ao rígido controle dos gastos públicos. A subordinação dos investimentos sociais ao equilíbrio fiscal e ao fluxo de capital rompe com qualquer propósito social ou com a histórica agenda nacional que estabelecia, ainda que timidamente, um diálogo entre a dimensão econômica e a dimensão social do desenvolvimento brasileiro. Em alguns momentos da política nacional, esse diálogo, é verdade, beirou o cinismo, quando se sugeriu que seria necessário crescer para depois investir na área social ou promover a distribuição de renda. Mesmo assim, essa busca de relacionamento

entre a agenda econômica e a agenda social era compreendida pelos gestores públicos como base da legitimação da ação governamental. O momento atual parece ser outro. A agenda social passou a ser condicionada, desde a década de 1990. Essa mudança de paradigma na gestão pública é reflexo de uma crise de legitimidade das instituições públicas, fundada na diluição da representação social. Alain Touraine sugeriu a crise de representação com a emergência da globalização econômica num ensaio cujo título revela suas preocupações e perplexidades: Poderemos viver juntos?. No ensaio, o sociólogo francês sustenta a instalação de uma profunda dissociação entre a dimensão cultural e a dimensão econômica globalizada, que colocaria em questão todo sistema de representação construído na modernidade. Para o autor, o mundo da economia globalizada caracteriza-se pelo aumento da competitividade intersetorial, fluidez do tempo e do espaço, pela baixa valorização da memória, do passado e, portanto, dos valores sociais. A dimensão cultural, por seu turno, caracteriza-se justamente pelas referências comunitárias, pelas tradições e pelos rituais morais, pela afetividade e identidade locais, pelo lugar. Ambas as dimensões não contribuem para a construção de regras universais, porque são intrinsecamente excludentes e seletivas. O mundo globalizado possui uma dinâmica particularista e altamente conflitiva. Em parte, os atentados de 11 de setembro de 2001 são expressão desse embate entre um mundo marcado pelas tradições e identidades comunitárias e um mundo da alta competitividade racional, impessoal e excludente. Com tal pano de fundo, qual sua conseqüência direta no que tange às práticas políticas

2 Essa lei sugere uma série de iniciativas e etapas para sua implementação: a) elaboração do mapa social da cidade (diagnóstico anual da realidade social local); b) montagem do Cadastro Social, registro individualizado do público-alvo dos programas e projetos da área social; c) montagem do Mapa da Cidadania, um inventário de todas as organizações do terceiro setor, da iniciativa privada e órgãos públicos envolvidos com ações sociais; d) definição de indicadores de pobreza do município para definição de metas anuais e plurianuais.

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e estatais? Manuel Castells sugere uma hipótese para essa resposta. Num ensaio recente, afirma o autor: [...] seu papel essencial consiste em receber e processar os sinais do sistema global interconectado e adequá-lo às possibilidades do país, deixando que sejam as empresas privadas que assumam o risco [...]. A incapacidade do Estado para decidir por si só, em um mundo em que as economias nacionais são globalmente interdependentes, obriga a adaptação de regulações inaplicáveis [...]. Assim, surge um novo tipo de Estado, que não é o Estado-nação, mas que não o elimina e sim o redefine. O Estado que denomino Estado-rede se caracteriza por compartilhar a autoridade (ou seja, a capacidade institucional de impor uma decisão) através de uma série de instituições. (Castells, 1999, p. 153, 156 e 164) O que, em termos práticos, tal leitura propõe é a emergência de um Estado-facilitador, limitado à indução do desenvolvimento a partir de instrumentos de informação e adequação do ambiente econômico a partir do fluxo de capital internacional. O Estado-facilitador estaria determinado, assim, por uma nova cultura política, extremamente pragmática, destituída de criticidade e utopia, desprovida de projetos estratégicos que seriam substituídos por ações táticas, pontuais. Uma espécie de discurso único da ação política. Orlando Santos Júnior localiza com maior precisão os movimentos políticos que deslocaram e acomodaram a ação estatal nas últimas duas décadas (Santos Júnior, 2001). O autor destaca um documento-referência dessa inflexão no caso da ação municipal: trata-se de Política urbana y desarrollo economico: un paradigma para el decenio de 1990, publicado pelo Banco Mundial. Nesse documento, sugere-se que a pobreza estaria diretamente relacionada à produtividade da economia urbana. A partir de então, são propostos quatro eixos de iniciativas: superação dos obstáculos de infra-estrutura urbana; incorporação das pessoas pobres aos circuitos econômicos; enfrentamento dos efeitos da degradação ambiental; e aumento da capacidade de pesquisa sobre desenvolvimento urbano. Como sugere Santos Júnior: Há um deslocamento conceitual na

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abordagem da questão urbana, anteriormente centrada na problemática da produção e gestão do solo urbano, e dos conflitos redistributivos entre os diferentes agentes produtores e usuários da cidade. Nesse paradigma, cabia ao Estado não só a provisão de bens e serviços urbanos, como também a gestão dos instrumentos de planejamento urbano. [...] No novo modelo, o eixo de análise se desloca para a produtividade urbana, e a identificação dos obstáculos, para a inserção competitiva das cidades nos circuitos globais. As funções do poder público também se deslocam: as da gestão e do planejamento da cidade, para a garantia de um meio ambiente favorável aos negócios e ao desenvolvimento econômico; as da provisão universal de bens e serviços urbanos, para o desenvolvimento de práticas focalizadas que visem reduzir os níveis crescentes de pobreza. (Santos Júnior, 2001, p. 34 e 35) O autor prossegue e afirma que essa orientação transfigurou-se, em 1997, em base conceitual para desenvolvimento das parcerias e políticas de descentralização fomentadas pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico do Banco Mundial, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e pela Fundação Interamericana (IAF, na sigla em inglês). O Programa Parcerias para Redução da Pobreza destacava a necessária articulação do setor público com o privado para ampliar os recursos para redução de pobreza, mas também para ser uma alternativa de desenvolvimento, no contexto das transformações políticas e institucionais em curso, assim como superação das ações estatais tutelares e altamente centralizadas. Nessa perspectiva, descentralização administrativa vincula-se à adoção de um novo modelo gerencial baseado nas parcerias público-privado e, ainda, ao objetivo de aumento de competitividade local. Tal proposição aproxima-se em muito da adoção de um modelo empresarial da ação pública. São eliminados do planejamento local todos os conflitos de interesse. As arenas de elaboração, planejamento e ação pública são de tipo neocorporativo, no qual os interesses empresariais são alçados à condição de demandas públicas.3 Haveria, assim, uma apropriação privada dos fundos públicos. Assim, a construção da ação facilitadora


Para se contrapor ao Estado-facilitador

domesticaria os partidos políticos a partir da agenda estatal, que, por sua vez, teria como fundamento a facilitação do fluxo de capital globalizado. Tal deslocamento reconstruiria as agendas e práticas partidárias, desvinculando-as das relações diretas com a sociedade (reduzida a relação, nesses termos, ao espetáculo e ao discurso mobilizador, de natureza carismática). A ação racional estatal-partidária estaria relacionada à construção de acordos institucionalizados, constituindo anéis de alianças (não necessariamente alianças estratégicas, mas também nem tão fluidas como alianças táticas que são desprovidas de acordos mais duradouros, pois se trata de efetivar um observatório da dinâmica de mercado que define as condutas estatais) que envolvem representações parlamentares, agentes do Executivo e representações empresariais. Mais ainda, os códigos de relacionamento empregados em tais anéis de alianças são prioritariamente os do mercado financeiro, porque aludem ao fluxo de capital internacional. Possuem, portanto, uma natureza normativa, societal. Instrumentos de medida dos ânimos do mercado, tal como risco-país, largamente empregados para sinalizar territórios com estabilidade de lucratividade em investimentos privados, passam a orientar as decisões técnicas de governos.4 Esse deslocamento da ação estatal exige uma profunda concentração de poderes e um processo decisório articulado e centralizado. Com efeito, os processos decisórios não podem se espraiar pela sociedade civil. Ao contrário, são conformados nos anéis de alianças, que muitas vezes se cristalizam em conselhos consultivos – sem nenhuma ramificação direta ou de consulta mais ampla em relação à sociedade civil – que orientam as práticas estatais. A tradição estatal brasileira é, assim, reeditada. Estamos, aqui, nos referindo ao movimento de retorno à centralização orçamentária por parte do Executivo federal. Nesse caso, é uma dupla perversidade, uma vez que debela conquistas inscritas na Constituição de 1988 e é motivada pela subordinação dos gastos sociais ao equilíbrio fiscal. Pode-se aventar a hipótese de que o equilíbrio fiscal é pressuposto de justiça social, porque diminui as pressões inflacionárias. Ocorre que a história recente do país não corrobora tal hipótese. Pelo contrário, o controle fiscal não se vinculou, nos últimos 12 anos, à justiça social, mas apenas à vitalidade do aparelho de Estado e à sinalização de ingresso de capitais externos. Os exemplos que corroboram essa observação são vários.

O estado de Minas Gerais é ilustrativo do que ocorre no país: dos 1.200 projetos em pauta na Assembléia Legislativa de Minas até início de novembro de 2003, apenas 10% haviam sido enviados pelo Executivo. Contudo, são os projetos do Executivo que possuem prioridade na agenda de votações, como é o caso das parcerias público-privado (PPP). O centralismo da política institucional brasileira foi observado, ainda, em estudo de Marta Arretche (2000). A autora sugere que todas políticas sociais descentralizadas surtiram efeito a partir da pressão ou premiação dos órgãos centrais de governo, revelando a permanência da centralidade do Executivo federal na determinação e condução das políticas sociais, mesmo quando descentralizadas. No livro Estado federativo e políticas sociais, Marta destaca a forte presença do poder central, até mesmo como elemento pedagógico no desenvolvimento do participacionismo brasileiro. Seu estudo sobre o novo desenho institucional que surge a partir da década de 1990 e sobre o possível impacto sobre o modelo centralizado até então existente no Brasil revela a permanência do papel indutor do poder central, em todos os estados da Federação pesquisados (Bahia, Ceará, Paraná, Per­nam­buco, Rio Grande do Sul e São Paulo) e em todos os programas de descentralização investigados (municipalização dos serviços de saneamento básico, sistemas estaduais de habitação, instâncias colegiadas de distribuição dos recursos de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço/FGTS), municipalização das redes de ensino fundamental, municipalização da merenda escolar, municipalização da assistência social, Sistema Único de Saúde e municipalização das consultas médicas). A adesão aos programas de descentralização estaria diretamente vinculada ao cálculo político sobre o processo de transferência, tendo como variáveis de análise o legado das políticas prévias, as regras constitucionais e a existência de uma estratégia eficiente desenhada pelo governo central. O fator mais decisivo para a descentralização de políticas é contábil, e não necessariamente ideológico, ou até mesmo o grau de participação e organização popular de uma dada região. As bases sociais dessa herança centralizadora de nossa prática política foram denominadas por Boaventura Santos de ethos barroco (Santos, 2003, p. 97 e seguintes). Esse traço de nossa cultura política, antiinstitucional e antilegalista, é plasmado em práticas “tolerantes ao caos”. Seu caráter aberto e

3 Boaventura Santos, em textos recentes, sugere a disseminação de uma cultura política ultraconservadora que daria fôlego ao movimento de privatização dos espaços estatais, denominando-a de “fascismo societal”. Ver Santos, 2003. 4 Há inúmeros ensaios recentes que sugerem tais articulações entre segmentos do mercado e agências estatais, e algumas delas (por suas múltiplas interseções, são denominadas neste texto de anéis de alianças) avançam sobre estruturas partidárias e sindicais, a partir de fundos de pensão, agências reguladoras e câmaras de negociação setorial. Francisco de Oliveira sugere a emergência de uma classe social, fonte da energia política dessas articulações (ver Oliveira, 2003). A nthony G i dd en s a l u de à necessidade de superação do conceito recente de “Estado asse­gu­rador” da Terceira Via, que não passaria de uma agência facilitadora. Ver a entrevista “Conver­são à esquerda”, concedida por Giddens à revista Primeira Leitura, n. 23, de janeiro de 2004. Boaventura Santos, citando Peter Evans, aponta uma “tríplice aliança”, envolvendo um frágil equilíbrio (que impediria avanços no tratamento de políticas redistributivas) entre burguesia estatal, multinacionais e capital local (ver Santos, 2003). 5 O sociólogo Francisco de Oliveira vem sugerindo a emer-

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gência de uma “nova classe social”, vinculada ao setor especulativo e com fortes laços com as agências estatais, que impulsionaria um ideário empresarial, conformando o que aqui é denominado de Estado-facilitador. Trata-se dos segmentos sociais compostos por intelectuais universitários que são alçados aos órgãos de controle monetário e de política macroeconômica do país e, mais adiante, assumem postos de direção em instituições do sistema financeiro; são também sindicalistas que passam a gerir fundos de pensão. Em suas palavras “a estrutura de classes também foi truncada ou modificada: as capas mais altas do antigo proletariado converteram-se, em parte, no que Robert Reich chamou de “analistas simbólicos”: são administradores de fundos de previdência complementar, oriundos das antigas empresas estatais, dos quais o mais poderoso é o Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, ainda estatal; fazem parte de conselhos de administração, como o do BNDES, a título de representantes dos trabalhadores. [...] É isso que explica recentes convergências pragmáticas entre o PT e o PSDB, o aparente paradoxo de que o governo Lula realiza o programa de FHC, radicalizando-o: não se trata de equívoco, nem de tomada de empréstimo de programa, mas de uma verdadeira nova classe social, que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e economistas doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT” (Oliveira, 2003, p. 146 e 147). 6 Datado de novembro de 2003 e divulgado pelo Ministério da Fazenda, o documento está

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inacabado fundaria um processo permanente de construção/desconstrução, fundando uma paisagem social marcada pela surpresa. Assim, na perspectiva das práticas sociais cotidianas, nossa cultura política seria transgressora, sem romper com a ordem política. Por isso, haveria uma permanente balcanização dos movimentos sociais e dos temas por eles reivindicados. O que poderia ser uma contradição explícita em relação ao poder central é, paradoxalmente, a senha para o aumento da influência do poder central institucionalizado sobre a vida social e, principalmente, as instituições e práticas políticas. O ethos barroco não sustentaria, enfim, um projeto contra-hegemônico porque estimula a balcanização das práticas libertárias. Santos sugere, ainda, o que denomina de “carnavalização das práticas sociais”, antiortodoxas por natureza. Haveria, assim, um constante divórcio entre a dimensão cultural das sociedades latino-americanas e a sua dimensão econômica e política, reeditando a leitura de Touraine. Portanto, somos herdeiros de uma estrutura política que, mesmo sofrendo contínuos movimentos pendulares, retorna ao seu ponto central que é o alto poder de comando das agências estatais federais. Essa estrutura parece estar sendo apropriada nos últimos anos por interesses privados que limitam o papel promotor das políticas sociais a mero exercício de proteção social, sendo que as iniciativas têm seu orçamento submetido à lógica do fluxo de capital especulativo. As determinações estruturais para a redução (ou limitação) dos investimentos nas áreas sociais (mesmo aquelas desfiguradas em seus princípios estratégicos de promoção da eqüidade social) são poderosas e fortemente enraizadas na cultura da gestão pública do país, em parte a partir dessa meia lei que é a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Essa lei carece de sua outra cara-metade sob pena de promover e acirrar o centralismo orçamentário, o clientelismo político, as ações emergenciais na área social, a desarticulação e sobreposição de ações, os casuísmos e o empresariamento dos organismos estatais.5

Limitações conjunturais Mas não são apenas as determinações estruturais que limitam uma ação pública vigorosa na área social. As limitações estruturais completam-se com o cenário político nacional, fortemente desprovido de utopia política ou qualquer planejamento estratégico motivado

pela mudança da estrutura social brasileira, desde a emergência da nova ordem mundial, que se iniciou na década de 1980. Algumas determinações são amplamente conhecidas e fartamente citadas ao longo de 2003 como o mais duro golpe nos gastos da área social: a exigência, por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI), de um superávit primário do orçamento público federal da ordem de 4,25% como garantia de pagamento dos empréstimos contraídos na gestão de Fernando Henrique Cardoso. O impacto dessa exigência foi surpreendentemente mais amplo na gestão Lula que na anterior. O ajuste do poder público federal, de janeiro a setembro de 2003, foi de tal monta que economizou R$ 2,8 bilhões (5,08% de superávit primário) acima do que o necessário para cumprir a meta do FMI. A título de ilustração, o valor adicional é 60% superior ao orçamento do programa social mais festejado do governo federal, o Fome Zero. A exigência tornou-se uma orientação governamental, quase uma política de gerenciamento das ações públicas. Não foi, portanto, um simples cumprimento de um contrato. Para se ter uma noção do esforço e do sacrifício social que a manutenção desse patamar de superávit primário desencadeia, basta analisarmos o percentual de recursos liberados para investimento dos ministérios da área social até meados de maio de 2003. O ministério que mais gastou, do total autorizado pela lei orçamentária, foi o Ministério da Educação: 2,5%. A partir do segundo semestre, essa distorção foi se ajustando, mas demonstra a motivação para execução orçamentária do governo federal. Um empenho dessa envergadura exigiria uma nova diretriz para implementação das políticas sociais federais. A nova diretriz surgiu pelas mãos da Secretaria de Política Econômica, do Ministério da Fazenda. Num documento intitulado Gasto social do governo central: 2001 e 2002,6 afirma-se que a maior parte do gasto público social é oriundo do governo federal. Mesmo assim, e a despeito da carga tributária nacional ser equivalente à média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), admite-se que grande parte da população ainda não tem acesso a recursos suficientes para satisfazer necessidades básicas, num país onde a distribuição de renda é uma das mais desiguais do mundo. O gasto social do governo federal foi, em 2002, de R$ 182 bilhões (13,8% do PIB), segundo o documento, o qual ainda demonstra que o Brasil apresenta-se como exceção internacional, onde alta carga tributária está associada à baixa


Para se contrapor ao Estado-facilitador

desigualdade de renda. Os gastos federais não alteram a realidade social da população mais pobre e indigente, ao longo de quase uma década. Vinod Thomas, diretor do Banco Mundial no Brasil, sustenta que “de todo dinheiro aplicado pelo governo federal em políticas sociais apenas cerca de 20% chegam aos mais pobres”. 7 Um documento mais recente do Ipea aprofunda e operacionaliza essa constatação. Ricardo Barros e Mirela de Carvalho, responsáveis pelo estudo (2003), argumentam que três fatores contribuem para a baixa efetividade das políticas sociais brasileiras: baixa focalização nas pessoas mais pobres; inexistência de avaliações de impacto dos programas; e ausência de integração das diversas iniciativas. O que parece significativo, para a presente discussão, é a apropriação peculiar que Barros e Carvalho fazem do conceito de capital social ou participação das populações na dinâmica dos programas sociais. Em relação à focalização dos programas, sustenta-se que existiria uma baixa repartição dos recursos, proporcional à carência de cada estado da Federação. Barros e Carvalho exemplificam esse argumento com a distribuição dos recursos federais, entre as unidades da Federação, para manutenção de creches. A conclusão a que chegam é: Os resultados mostram que, dentre os estados do Nordeste, seis estão recebendo menos recursos do que sua participação no total de carências do país. Piauí e Ceará estão recebendo, na realidade, uma proporção de recursos muito próxima à carência que têm; no entanto, Rio Grande do Norte recebe bem mais recursos do que sua participação no total de carências. Por outro lado, vemos que todos os estados da região Sul estão recebendo muito mais recursos do que sua participação no total de carências. O mesmo ocorre com dois estados da região Centro-Oeste – Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. No Sudeste, Minas Gerais e Espírito Santo também recebem mais recursos do que sua participação no total de carências. [...] Contudo, nos últimos anos pôde-se observar significativas melhoras na direção de uma focalização geográfica atingida por uma nova geração de programas sociais. Este é o caso, por exemplo, do programa Bolsa-Escola. (Barros e Carvalho, 2003, p. 7) O argumento meramente técnico da ausência de focalização geográfica dos pro-

gramas direciona a exclusão dos programas às instâncias burocráticas do Estado. A linha de argumentação desconhece, portanto, as injunções políticas na gestão dos programas sociais. Há, assim, uma evidente despolitização na leitura que sugerem. Tal despolitização poderia ser superada quando Barros e Carvalho analisam a ausência de um sistema de avaliação de impacto dos programas e políticas sociais. Com efeito, na análise desse tema, citam, pela primeira vez ao longo do documento, o conceito de capital social. Contudo, não incorporam o conceito na elaboração de um sistema gerencial das políticas públicas, como é possível perceber nos seguintes trechos: Por vezes, famílias com igual grau de carência acabam tendo acesso completamente diferenciado a determinados programas, dependendo de seu capital social, principalmente em função das associações de que participam ou participaram e de sua experiência anterior com o programa. Assim, enquanto existe um grande número de trabalhadores que já participou mais de cinco vezes do Planfor, muitos outros nunca tiveram acesso ao programa ou sequer sabem de sua existência. (Barros e Carvalho, 2003, p. 10) A busca por maior adequação enfrenta dois grandes desafios: a) a capacidade do desenho do programa de se adaptar a determinadas condições (flexibilidade do desenho); e b) um bom conhecimento da realidade e ne­ces­sida­des locais. Neste segundo desafio, a participação da comunidade pode ser extremamente útil, pois quem melhor do que a própria comunidade para conhecer as especificidades locais? Ao longo dos últimos anos, a participação comunitária no desenho da política social vem sendo incentivada por dois caminhos. O primeiro deles consiste na criação de uma variedade de conselhos e comissões estaduais e municipais, os quais passam a ser responsáveis por uma série de decisões importantes. O segundo caminho diz respeito a experiências municipais com a utilização de modelos de desenvolvimento local, seja a partir do programa Comunidade Ativa, seja através de outros esforços. (Barros e Carvalho, 2003, p. 12) O fundamento para a participação

disponível no site <www. fazenda.gov.br>. 7 Declaração à revista Carta Capital, n. 267, ano X, 19 nov. 2003, p. 47. 8 Barros e Carvalho, contudo, destacam a importância das

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estratégias de desenvolvimento local (DLIS) e o programa integrado de políticas sociais mexicanas (Estratégia Contigo). Os dois programas, contudo, mereceriam uma análise específica que supera o objeto deste texto. Vale destacar, no entanto, que algumas formulações a respeito do DLIS sugerem que a nova geração de políticas sociais – como seria o caso do DLIS – conformaria uma nova estrutura gerencial do Estado, a privatização e publicização de funções consideradas não exclusivas do Estado, a satisfação do beneficiário como cliente do serviço público, a avaliação de resultados e controle social de programas e ações governamentais. Essa formulação aproxima-se, em muito, da concepção de Estado gerencial, ou nova política pública, elaborada no Reino Unido e transposta para o Brasil pelo ex-ministro Bresser Pereira. Essa proposição se distancia do conceito de governança social porque prioriza os objetivos da reforma de Estado na eficácia e eficiência das políticas públicas, e não no aumento de poder social. Ver Franco, 2003. 9 Essa passagem do documento do Ministério da Fazenda gerou forte reação, tanto do Partido dos Trabalhadores (PT) como da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais (Andifes). Dados da associação contrariam os dados do Ministério: enquanto 34% dos estudantes de universidades públicas fazem parte dos 10% mais ricos da população, nas universidades particulares esse índice saltaria para 50%. Na universidade pública, segundo o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), 12% dos alunos possuem renda mensal inferior a R$ 482; esse índice cai para 5% no caso das universidades particulares. 10 Os países pesquisados foram: Chile (61,7 pontos), México (50,4), Brasil (50,3), Costa Rica (48,8), Nicarágua (46,3),

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comunitária no desenho da política social é o mesmo proposto por documentos do Banco Mundial: o respeito à diversidade cultural e social. Não existe uma clara sinalização para a participação na gestão das políticas sociais, muito mais ampla e declaradamente politizada que a mera participação na definição do seu desenho. A participação comunitária fica restrita, assim, ao fluxo de informação social e cultural para formulação e focalização adequada das políticas sociais gerenciadas pelo Estado.8 Esse é o argumento central que o documento do Ministério da Fazenda adota para sugerir a mudança de rumos nas políticas sociais. A opção, no caso, é do deslocamento de políticas universais por políticas focalizadas. Na página 23 do referido documento, são destacados os gastos federais com o ensino superior. Afirma-se que o gasto médio por aluno é superior à média de países ricos para, finalmente, concluir: “o que, embora esteja de acordo com a competência delegada pela Constituição Federal, acaba beneficiando segmentos de maior renda e restringindo a aplicação de recursos na educação básica, cujo impacto sobre o bem-estar social seria mais expressivo”. 9 Outro aspecto ressaltado ao longo do documento é o necessário reordenamento do gerenciamento dos programas, em especial o de transferência de renda para famílias pobres, além da avaliação sistemática da efetividade das transferências. Embora esse documento esteja investido da tarefa de realizar um inventário dos gastos públicos federais na área social, transparece uma forte intenção de redirecionamento político das iniciativas federais. Surpreendentemente, o mesmo fato não ocorre em relação a outros gastos públicos, como no caso dos gastos com publicidade. Os governos federal, estaduais e municipais consumiram, em 2002, 7,13% de todo gasto com propaganda do país, muito acima dos gastos públicos com publicidade ocorrido nos Estados Unidos (1,6% do total). Essa distorção não aparece como relevante em nenhum documento oficial, justamente porque é condicionada pelo prag­matismo e pela necessidade de construção de opinião pública. Essa seria mais uma lacuna provocada pela meia lei, a LRF. Ao priorizar o controle fiscal e ao não definir os mínimos sociais a serem atingidos pela ação pública, acaba por liberar os agentes governamentais em relação aos cortes de gastos para ajuste orçamentário. Em suma, preservam-se os gastos administrativos, potencializa-se o

empresariamento estatal e aumentam-se os gastos com publicidade, em de­trimento dos gastos na área social. As conseqüências dessa opção política são nítidas e multiplicam-se nos últimos meses. Citemos algumas: a) cortes nos gastos de orçamento aprovado para a área social, como já indicado anteriormente; b) criação de subterfúgios para diminuir gastos sociais e burlar exigências legais de vinculação de gastos públicos. Esse é o caso de várias iniciativas governamentais no segundo semestre de 2003, como a do governo federal e do governo estadual de São Paulo, que procuraram vincular despesas com programas sociais (como Fome Zero, programas de alimentação, assistência social, habitação) como gasto mínimo obrigatório em ações e serviços de saúde e educação; c) lentidão ou corte nos repasses ou liberação dos recursos de fundos especiais gerenciados por conselhos setoriais, como é o caso do Fundo da Infância e Adolescência (FIA). A elaboração de uma rígida Lei de Responsabilidade Social redefiniria o desenho da ação pública no país. Essa lei poderia, assim, criar uma estratégia nacional de articulação de esforços para superação da desigualdade social, definindo padrões mínimos de investimento e de resultado e, principalmente, estabelecendo um amplo sistema de monitoramento e avaliação participativa dos gastos públicos. Pesquisa realizada pelo Ibase que cria o ranking de transparências orçamentárias envolvendo dez países latino-americanos indica a insuficiência de informações e mecanismos disponíveis para se acompanhar a elaboração dos orçamentos públicos. O ranking foi montado a partir de alguns indicadores, criando uma escala de 0 a 100. O Brasil figura em terceiro lugar, atrás do Chile e México, totalizando 50,4 pontos.10 Os coordenadores da pesquisa definiram como índice razoável o valor 75. Os dados disponíveis foram considerados verídicos, confiáveis, mas incompletos e insuficientes. Também foram criticados o acesso e a forma como são disponibilizadas as informações, limitando-se aos que possuem formação técnica. Esse parece ser mais um indicador da necessidade de se incorporarem à formulação de uma lei de responsabilidade social mecanismos de controle social, de monitoramento e avaliação dos gastos sociais.

Vigilância necessária


Para se contrapor ao Estado-facilitador

Para finalizar essa proposição, indicamos a seguir os contornos do que seria um sistema de monitoramento e avaliação social, elemento central do sistema de governança social a ser constituído pela Lei de Res­pon­sabilidade Social. O desenho aqui apre­sentado se inspira diretamente nas elaborações da ONG Visão Mundial (Sistema Regional de Monitoreo, Evaluación y Planeamento; World Vision Partnership Program Mo­nitoring and Evaluation Standards) e nos sistemas de monitoramento desenvolvidos pela Oxfam/Inglaterra, cujos autores são Pratt Oakley e Andrew Clayton. Parte-se da necessidade do monitoramento para medir mudanças qualitativas, usando metodologia e instrumentos que não demandem tempo e possam ser apropriados pela população dos territórios. O próprio processo de monitoramento gera, portanto, empoderamento e controle social. O monitoramento é contínuo porque é flexível, adaptando-se às mudanças conjunturais e às avaliações das populações a partir de valores específicos e reformatando as ações a partir da experiência concreta de implementação de ações. A Tabela 1 auxilia a compreender o que se mede quando se monitora ou avalia uma política pública: Oakley e Clayton (2003) propõem uma síntese das intenções de todo processo de monitoramento e avaliação. Para eles, as intenções devem: a) indicar se um projeto está sendo implementado conforme o planejado; b) identificar problemas e dificuldades de implementação; c) tratar dos recursos utilizados (prestação de contas); d) verificar se os pressupostos de cada etapa do que foi planejado são realmente válidos ou relevantes à comunidade beneficiada; e) avaliar se uma ação continua relevante à comunidade. Um dos princípios de um sistema de monitoramento para aumento de empoderamento de comunidades é a articulação dos processos de planejamento-monitoramento-avaliação, integrados num mesmo sistema que se alimentam mutuamente. Por isso, a execução de um planejamento deve incorporar elaboração de relatórios e amplas discussões e análises com participação efetiva das comunidades. Em projetos que visam ao empoderamento social, é fundamental a ampliação dos indicadores, priorizando os de caráter

qualitativo, que procurem captar as intenções subjetivas, o ideário e imaginário das comunidades, além das mudanças de comportamento social e político, a partir do desenvolvimento de cada etapa de uma ação ou projeto de po­ lítica pública. Ainda segundo Oakley e Clayton, se o objetivo de uma política pública é o empoderamento ou desenvolvimento organizacional da comunidade, os indicadores de cada etapa de um projeto são definidos e nítidos: • para o monitoramento de resultado, os indicadores devem captar a formação da organização, a construção da capacidade de crescimento organizacional, a freqüência e o tipo das atividades organizacionais e as ações planejadas e executadas; • para o monitoramento de efeitos, os indicadores devem captar a emergência e os fortalecimentos das comunidades, além do envolvimento crescente da organização em assuntos vinculados ao desenvolvimento territorial; • para a avaliação de impactos, os indicadores devem captar a consolidação de organizações autônomas envolvidas no desenvolvimento territorial. Assim, os indicadores devem expressar mudanças culturais e de comportamento social significativas. A título de ilustração, apresentamos a Tabela 2, que foi construída para institucionalizar um sistema de monitoramento do orçamento participativo da cidade de São Paulo (OP-SP).12 A tabela apresenta os indicadores de empoderamento, exemplificando mudanças desejáveis com a prática do OP que podem e devem ser captadas pelos indicadores de monitoramento e avaliação eleitos. É possível armazenar os dados a partir de um gradiente (ou diagrama) que classifica o grau de empoderamento observado. Um exemplo é a adoção de um gradiente a respeito do aumento de redes locais, que podem iniciar com “poucas lideranças locais”, passando por “aumento de participação e baixa rotatividade em plenárias e reuniões temáticas”, chegando à “criação de estruturas permanentes de organização por território” e finalizando com “formação de redes locais de gestão territorial”. Tal expediente facilita a análise com maior segurança na interpretação de dados coletados. A elaboração de uma Lei de Responsabilidade Social merece uma formulação técnica muito mais sofisticada que a LRF, porque parte de pressupostos mais ousados e abrangentes. Seu fundamento é a radicali-

Peru (44,5), Colômbia (44,2), Argentina (44,0), El Salvador (40,3) e Equador (30,5). 11 O autor sustenta que o terceiro setor, por si só, pode sucumbir ao autoritarismo de

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nacional

Critérios para elaboração da Lei de Responsabilidade Social

Estado ou de mercado, não se constituindo necessariamente num agente de reforma democrática do Estado. 12 As tabelas do OP-SP aqui apresentadas foram produ-

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Os critérios para elaboração dessa lei devem dar sustentação para um novo tipo de contrato social. Assim, deve envolver e orientar as ações não apenas do Estado, mas de outras instituições de natureza pública e que desenvolvam projetos em parceria com o Estado, como ONGs, organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips) e sindicatos. A seguir, apresentam-se os quatro princípios que se destacam para constituição da Lei de Responsabilidade Social. • Pagamento da dívida social Este princípio sugere um contraponto em relação à manutenção de superávits primários para pagamento de dívidas públicas. Sua efetivação pressupõe a construção de indicadores de mínimos sociais, que elegerão as prioridades sociais de cada território, de micro e macrorregiões e do país. Os indicadores de mínimos sociais poderão sustentar, assim, a definição de metas anuais e plurianuais a serem inscritas nos planos plurianuais e nas leis de diretrizes orçamentárias. Para composição dos indicadores, é necessário articular elementos quantitativos e qualitativos de qualidade de vida e capital social, sugerindo uma noção de democratização plena, tanto social como política, dos territórios. • Publicização do Estado Uma Lei de Responsabilidade Social, pelo seu caráter integrador e promotor sociopolítico da cidadania brasileira, deve pautar-se pelo acesso direto das populações sobre os dados, resultados e avaliação das metas atingidas em cada instância de governo do país. Deve-se, nesse caso, articular o controle técnico em relação à sua execução, com o controle social e político. Assim, faz-se necessário construir um sistema de monitoramento e avaliação social participativo, descentralizado e integrado que promova instâncias territoriais participativas de gerenciamento das políticas sociais. Esse sistema deve ser compreendido como parte integrante da Lei de Responsabilidade Social. • Empoderamento social O item anterior sugere que o princípio fundante da Lei de Responsabilidade Social é o empoderamento social. Adota-se, neste caso, a referência política emancipatória das políticas sociais, assim como a promoção social, em detrimento do caráter assistencial, clientelista e meramente protetivo que caracteriza os contornos das políticas adotadas no país. O empoderamento social assenta-se, por sua vez, na construção de um sistema de governança social, no qual as populações beneficiadas participam de cada etapa de implementação e execução da Lei de Responsabilidade Social: definição dos mínimos sociais do seu território, elaboração de metas anuais e plurianuais, definição de indicadores de avaliação de resultados e participação ativa no sistema de monitoramento da execução da lei. Na prática, o sistema de governança social sustenta-se por conselhos de gestão territorial da lei, apoiados por comitês técnicos (que compõem o sistema de monitoramento de avaliação social). Trata-se de um mecanismo de

empoderamento social que avança em relação aos instrumentos nacionais de democracia participativa existentes no país (orçamento participativo e conselhos de gestão) porque possui a capacidade de controlar as diretrizes governamentais, gerir e monitorar políticas, integrar demandas sociais num projeto estratégico de desenvolvimento e, ainda, promover a articulação gerencial de vários territórios (como seria o caso de articular instâncias de governança social de vários municípios para constituírem um sistema de controle sobre a execução da Lei de Responsabilidade Social de uma macrorregião). • Construção de sistema de governança social O sistema de governança social, já indicado no item anterior, é composto por comitês de monitoramento e avaliação de resultados e conselhos de gestão territorial da Lei de Responsabilidade Social. Trata-se, portanto, de uma nova engenharia política, de gestão das políticas públicas da área social, que se orienta pela superação das estruturas especializadas e fragmentadas do Estado brasileiro. Tal proposição supera, ainda, a noção de parceria entre sociedade civil e Estado no controle e gerenciamento de políticas públicas. Não se pauta por uma mera troca de responsabilidades, nem por substituições de instâncias. Trata-se da criação de uma nova estrutura que se instala no interior do Estado. Boaventura Santos já havia proposto a refundação democrática da administração pública que fosse além da crença ingênua no papel transformador do terceiro setor (Santos, 1999).11 O autor cria, como referência, o conceito de “Estado-novíssimo-movimento-social”: Na busca de uma relação virtuosa entre a lógica da reciprocidade própria do princípio da comunidade e a lógica da cidadania própria do princípio do Estado desenham-se os caminhos de uma política progressista neste final de século. O Estado-novíssimo-movimento-social é o fundamento da orientação de uma luta política que visa transformar a cidadania abstrata, facilmente falsificável e inconseqüente, num exercício de reciprocidade concreta. Mas para que tal luta tenha alguma possibilidade de êxito é necessário que a tarefa da refundação democrática da administração pública seja complementada pela tarefa da refundação democrática do terceiro setor. [...] Abundam experiências de promiscuidade antidemocrática entre o Estado e o terceiro setor, em que o autoritarismo centralizado do Estado se apóia no autoritarismo descentralizado do terceiro setor e cada um deles usa o outro como álibi para se des­res­­­pon­sabilizar, perante os respectivos constituintes, os cidadãos no caso do Estado, os membros ou as comunidades no caso do terceiro setor. (Santos, 1999, p. 269)


Para se contrapor ao Estado-facilitador

Tabela 1 Objetos de avaliação e monitoramento de políticas públicas A variável de medida

O que mede

Qual indicador

Resultados

Esforço

Implementação de ações

Efeito

Efetividade

Uso de resultados e sustentabilidade

Impacto

Mudança

Diferenças entre situação inicial e final

zação da democracia participativa em nosso país, para além da justiça social e do equilíbrio dos gastos públicos. Conforma uma nova engenharia política e sugere um novo arranjo estatal, mais poroso à sociedade civil. É uma ousadia política, portanto, filiada às inovações políticas construídas pela sociedade brasileira no processo de democratização do país dos últimos 20 anos.

*Rudá Ricci Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, professor da PUCMinas e diretor do Instituto Cultiva. É consultor do Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais (Idene), da Emater-MG e da Coordenadoria do Orçamento Participativo da cidade de São Paulo. <ruda@inet.com.br>

Tabela 2 Exemplo de indicadores de empoderamento do OP-SP Antes do ciclo de OP

Depois do ciclo de OP

Poucas lideranças locais

Formação de redes locais de gestão territorial

Dependência política

Estruturas de tipo autogestionário territorial

Participação por interesse específico

Aumento do capital social

Avaliação impressionista e críticas difusas às ações públicas

Monitoramento e acompanhamento das ações públicas

Apropriação de obras e serviços por parte das autoridades e lideranças instituídas

Apropriação de obras e serviços por parte da comunidade do território

Gestor público como agente estatal

Gestor público coletivo

Isolamento político

Instâncias e fóruns territoriais permanentes e capacidade de relacionamento social

Referências bibliográficas ARRETCHE, Marta. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. São Paulo: Fapesp, 2000. BARROS, Ricardo Paes; CARVALHO, Mirela. Desafios para a política social brasileira. Brasília: Ipea, 2003. (Texto para Discussão n. 985). CASTELLS, Manuel. Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na Era da Informação. In: PEREIRA, L. C. Bresser; WILHEIM, Jorge; SOLA, Lourdes. Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: Unesp, 1999. FRANCO, Augusto. Três gerações de políticas sociais. Brasília: AED, 2003.

OAKLEY, Peter; CLAYTON, Andrew. Monitoramento e avaliação do empoderamento. São Paulo: Pólis, 2003. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. SANTOS, Boaventura de Sousa. La caída del Angelus Novos. Bogotá: Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos/ Universidad Nacional de Colômbia, 2003. ______. Para uma reinvenção solidária e participativa do Estado. In: PEREIRA, L. C. Bresser; WILHEIM, Jorge; SOLA, Lourdes. Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: Unesp, 1999, p. 243-271. SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves. Democracia e governo local: dilemas da reforma municipal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

zidas pela equipe técnica do Instituto Cultiva para a Coordenadoria do Orçamento Participativo de São Paulo (COP).

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v a r i e v

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Flávia Mattar

Quem avisa amigo(a) é

Fundo cidadão

Memória viva

A organização Justiça Global denunciou ao relator especial sobre moradia adequada do Centro de Direitos Humanos da ONU, o indiano Miloon Kothari, a operação “cata-tralha”, realizada pelas subprefeituras do Rio. Antes que fosse enviado o ofício a Genebra, a organização Médicos sem Fronteiras (MSF) tentou encontrar solução doméstica para o problema que afeta a população em situação de rua da Cidade Maravilhosa: o recolhimento de seus pertences pela Comlurb com a ajuda da Guarda Municipal e acompanhamento, muitas vezes, da Polícia Militar. Mas, apesar do esforço, a operação ainda não foi suspensa. A iniciativa teria sido criada com o objetivo de impedir que pessoas se fixem nas ruas. A MSF faz algumas colocações que mostram que o objetivo vem sendo perseguido de maneira equivocada. Denuncia que a “perda” de documentos, laudos médicos, cobertores, roupas, fotografias e demais pertences só prejudica a inclusão da população de rua nas estruturas públicas. Além disso, o recolhimento de remédios, com a interrupção de tratamentos, acarreta problemas em termos de saúde pública. E lembra que até mesmo objetos de trabalho estão sendo descartados como lixo na operação. Acorda, prefeitura!

Partindo de uma idéia do Comitê Organizador do Fórum Social Mundial, o Ibase está estimulando que seus(suas) funcionários(as) contribuam com 0,5% de seus salários, mensalmente, para um fundo de solidariedade. Não se trata de ação filantrópica, mas de estímulo à participação ativa. A idéia é propiciar a ida de pessoas de baixa renda para o V FSM, em Porto Alegre, entre 26 e 31 de janeiro. As bases têm estado de fora dos debates nas edições do FSM realizadas no Brasil. O coordenador do Ibase, Itamar Silva, chama a atenção para a armadilha que a permanência de tal situação criaria: “O Fórum só tem sentido se conseguirmos integrar a base ao processo. Caso contrário, esse outro mundo que o Fórum propõe fica capenga, um mundo que carrega a exclusão, reproduzindo o que já vivemos”. O Ibase também destinou uma parte de sua receita para o fundo, que beneficiará lideranças de comunidades da Grande Tijuca, Zona Norte do Rio; da favela Santa Marta, em Botafogo, Zona Sul; e da Cidade de Deus, na Zona Oeste. As pessoas físicas interessadas em contribuir podem depositar qualquer quantia, em nome do Ibase, na conta 6950-7, agência 1629-2, Banco Bradesco.

A Biblioteca Jenny Klabin Segall, do Museu Lasar Segall, em parceria com a Cinemateca Brasileira, está debruçada sobre um importante projeto: a restauração e a digitalização das coleções completas das primeiras revistas brasileiras de cinema, A Scena Muda (1921–1955) e Cine­ arte (1926–1942). Com o trabalho, o acervo de 1.820 fascículos, da primeira, e de 884 números, da segunda, poderão ser consultados na Web, bem como artigos sobre cinema nacional. Essas publicações são os exemplos de maior longevidade na imprensa cinematográfica brasileira. Além disso, são os títulos mais representativos dos mecanismos de produção e comercialização de filmes no Brasil. Fontes para a recuperação da memória do cinema nacional, da exibição e da crítica cinematográfica brasileira, esses documentos possuem valor histórico inegável. O projeto será executado durante 2005 com a participação de diferentes profissionais: pesqui­sa­ do­­­­res(as), bibliotecários(as), es­pe­­­ ci­­alistas em digitalização, web de­ signers, especialistas em infor­má­tica e em conservação de papel. O custo total é de R$ 400 mil. A maior parte foi aprovada pela Petrobras, mas a biblioteca está buscando complemento à verba, o que permitiria a microfilmagem dos títulos e reen­cadernação dos originais.

Mais informações: rodrigues@ ibase.br

Tel.: 11 5574-7322 <http://www.museusegall.org.br>

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Violência de gênero Uma vida sem violência é um direito nosso! Esse é o slogan de 2004 da Campanha Brasileira dos 16 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, que terá início em 25 de novembro (Dia Internacional da Não-violência contra a Mulher) e finalizará em 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos). O objetivo da iniciativa é sensibilizar a opinião pública e contribuir, de forma educativa, para a prevenção, punição e erradicação do problema. Para isso, a campanha pretende inserir o assunto no marco dos direitos humanos, mobilizar a mídia e cobrar das autoridades e esferas políticas soluções para a violência de gênero. A campanha é realizada, em âmbito internacional, pelo Centro Global para a Liderança da Mulher, desde 1991. Mais de 1.700 organizações, de aproximadamente 130 países, apóiam a iniciativa. O comitê gestor da campanha no Brasil fica sob a responsabilidade da Agende – Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento.

Mais informações: Agende: (61) 273-3551 agende@agende.org.br

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Cultura quebra barreiras Coordenado pelo Grupo Cultural AfroReggae e pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, o Projeto Juventude e Polícia começou a ser desenvolvido em agosto, em Belo Horizonte. Foi idealizado com o objetivo de melhorar a relação, muitas vezes estereotipada, entre jovens, principalmente das favelas e periferias, e policiais. O projeto aposta que apresentações musicais e oficinas culturais de percussão, vídeo, circo e teatro – ministradas por jovens moradores(as) da comunidade carioca de Vigário Geral nos batalhões – são importantes instrumentos para quebrar as barreiras entre os dois grupos. Para difundir o resultado do trabalho – motivando a discussão nacional sobre o tema e o desenvolvimento de novas experiências em outras regiões do Brasil –, será desenvolvido documentário, exposição de fotos e cartilha. “A expansão da iniciativa caberá ao poder público. Nossa missão é fazer o piloto e mostrar os resultados”, diz José Junior, coordenador execu­ tivo do Grupo Cultural AfroReggae. Ainda não há previsão de quando esse material estará pronto.

<www.afroreggae.org.br>

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Merenda turbinada Estudo elaborado pela Secretaria Municipal de Educação de Nova Hartz, município do interior do Rio Grande do Sul, comprovou a redução de 7% da taxa de obesidade e de 5% na desnutrição entre 3.500 estudantes dos ensinos infantil e fundamental. O avanço foi possível graças à substituição de alimentos tradicionais por integrais, que possuem propriedades que não só auxiliam no combate à desnutrição e à anemia, mas melhoram o desempenho físico e psicológico. A mudança no cardápio ocorreu gradativamente, a consolidação se deu apenas depois de um ano e meio. Para estimular a aceitação por parte dos(as) alunos(as), foram promovidas peças teatrais, gincanas e hortas escolares. A merenda integral custa 50% a mais do que a tradicional. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) repassa R$ 0,15 por aluno(a)/dia e a prefeitura complementa com R$ 0,15 por refeição para o ensino fundamental. Na educação infantil, o município arca com 80% dos custos, já que são servidas cinco refeições diárias. O projeto Merenda Escolar Integral, de autoria da nutrici­onis­ta Giceli Soares Siebra, iniciado em 1999, foi um dos seis apresentados no 1º Encontro Nacional de Ex­pe­ riências Inovadoras em Alimentação Escolar, promovido pelo FNDE, em meados de setembro.

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intern internacional Miguel Urioste F. de C.*

Bolívia –

da

Não é possível entender a profunda reconfiguração das hegemonias políticas e territoriais da Bolívia sem fazer referência ao processo democrático de 1982. A Bolívia vive, desde aquela época, seu mais longo período de história democrática – 22 anos –, com uma alternância de partidos sistêmicos no governo, a cada quatro anos. Esta é a etapa de maior liberdade política de que se tem conhecimento na era republicana. De fato, o período democrático iniciado em outubro de 1982 abriu um leque de possibilidades para a construção da cidadania, no decorrer das duas décadas posteriores. A partir desse momento, a sociedade civil organizada, sindicatos, grêmios, corporações e especialmente [Tradução: Ana van Eersel]

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os partidos políticos e os meios de comunicação tiveram um papel determinante.


acional Nos últimos anos, esses partidos políticos expropriaram a representação cidadã, enlamearam-se na corrupção e na sinecura, como formas sistemáticas de assalto ao erário público, e desonraram, até limites inacreditáveis, o exercício de servidores e servidoras públicos. Por sua vez, hoje, muitos meios de comunicação – e especialmente as emissoras de rádio e canais de televisão – abusam, de forma extrema, da liberdade de informação, manipulam e desorientam a opinião pública e perderam o sentido de responsabilidade e ética jornalística. Transformaram-se em atores sociais e políticos protagônicos, sem qualquer controle cidadão. Tudo é válido para aumentar os índices de audiência. Apesar do papel monopólico e exclu­ dente da maioria dos partidos, é necessário ressaltar que o processo de construção da cidadania teve uma dinâmica ascendente e foi mar­cado por acontecimentos fundamentais. O primeiro deles foi o governo da Unidad Demo­ crática Popular (UDP), do presidente Hernán Siles Zuazo, que teve a lucidez de nunca utilizar a força pública para reprimir os movimentos sociais emergentes daquela época. Paradoxalmente, o líder da Central Obrera Boliviana (COB), Juan Lechín Oquendo, inimigo pessoal de Siles Zuazo, levou trabalhadores e trabalhadoras da poderosa central operária a um grau extremo de polarização, lutando por reivindicações trabalhistas que não podiam ser atendidas. As ditaduras anteriores tinham deixado o erário nacional na mais completa falên­cia, e a inflação monetária foi incubada em gas­tos dispendiosos, especialmente durante o irascível governo do ditador García Meza (1980–1981). Essa atuação dos movimentos sociais radicalizados acabava concordando com os setores mais conservadores da sociedade boliviana que eram representados, naquele momento, por uma ampla maioria no parlamento do Movimiento Nacionalista Revolucionário (MNR), de Víctor Paz Estensoro, e da Acción Democrática Nacionalista (ADN), de Hugo Bánzer Suárez.

Outro aspecto importante, no início do desenvolvimento democrático, que deve ser recordado, é o processo de responsabilidades iniciado contra o ditador e ex-presidente Luis García Meza, por um pequeno grupo de advogados, dirigidos pelo deputado Juan Del Granado, que, atualmente, é prefeito da cidade de La Paz. Esse processo finalizou com uma sentença histórica – 30 anos de prisão para o ditador, sem direito a indulto – e converteu-se em um caso inédito na história de toda a América Latina. García Meza é o único presidente golpista, ex-general da República, que está preso em uma prisão de segurança máxima, onde ficará até o fim de seus dias. A hiperinflação de 8.000%, em 1985, acabou com a UDP um ano antes da finalização de seu mandato, abrindo as portas para que a cidadania em geral aceitasse o programa de ajuste estrutural e de estabilização monetária, que o governo de Victor Paz Estensoro implementou em agosto de 1985. Nessa oportunidade, entrou em cena uma disposição legal emblemática – o Decreto Supremo 21.060 –, que, sintetizando o declínio de uma economia que, até esse momento, era quase totalmente estatal e baseada nas empresas públicas, promoveu o desenvolvimento de uma ortodoxia neoliberal. O principal efeito dessa disposição, no plano monetário, foi imediato: a inflação parou bruscamente e, a partir de então, a paridade cambial do peso boliviano em relação ao dólar aumentou gradativamente até atingir, 19 anos depois, a relação de oito pesos bolivianos por um dólar. Paradoxalmente, o peso boliviano é uma das moedas mais sólidas e estáveis da região, em um dos países mais pobres e atrasados do mundo.

O “milagre” do ajuste Quando, em 1982, o governo da UDP iniciou seu mandato, a proporção de ajuda externa à Bolívia era praticamente nula. No entanto, a partir da estabilização monetária, em 1985, houve um

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aumento notável de recursos financeiros, que chegaram a mais de 10% do Produto Interno Bruto de apenas US$ 8 bilhões. A cada ano, aproximadamente US$ 800 milhões são outorgados, à maneira de concessão em empréstimos, a prazo muito longo ou sob a forma de doações, cujo objetivo é manter vivo o “milagre boliviano”. Enquanto isso, foram criados diversos fundos de investimento social, de geração de emprego eventual, de investimento na in­fra-estrutura educativa, de saúde e também alguns serviços básicos que modificaram definitivamente as condições materiais de muitos serviços públicos. Contudo, os gastos habituais de funcionamento desses serviços nunca puderam atingir os níveis requeridos para garantir novos recursos provenientes do Tesouro Geral da nação. Fre­qüente­ mente, encontram-se belas escolas nos lugares mais afastados do país sem professores ou professoras ou com pequena quantidade de estudantes, apesar da força da inter­culturali­da­de da reforma edu­ca­ti­va i­ni­ ciada em 1994, que acompanha a modificação da Constituição Política do Estado, definindo a Bo­lívia co­mo um país multi­étnico e pluricultural. Como resultado do sucesso da “estabilização monetária”, alcançada com a aplicação do famoso Decreto 21.060, a Bolívia foi eleita pela comunidade internacional como um modelo bem-sucedido que devia ser acompanhado, fortalecido e consolidado. Os organismos multilaterais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional e a cooperação bilateral apostaram na Bolívia. Verdadeiros enxames de consultores, assessores, especialistas e cooperantes praticamente invadiram o país e, em certos casos, substituíram funções públicas. Começou,

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dessa forma, um período de “africani­za­ção” no estilo das relações de cooperação perante um Estado boliviano fraco, desmantelado, sem instituições públicas próprias e cooptado, a cada quatro anos, pelos partidos políticos.

Empobrecimento da população rural-indígena A acelerada expulsão migratória do campo em direção às cidades, diretamente estimulada pela total abertura às importações, sobretudo à de produtos agrícolas e de alimentos tradicionalmente produzidos pelas populações indígenas e camponesas do mundo rural, é a demonstração mais evidente de que a abertura comercial destruiu qualquer possibilidade de desenvolvimento no âmbito agropecuário-rural. Por esse motivo, tanto os relatórios sobre desenvolvimento humano, elaborados periodicamente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), como os diferentes estudos e diagnósticos do Banco Mundial coincidem ao assinalar que a extrema pobreza tem se concentrado nas áreas rurais, especialmente naquelas mais afastadas das cidades intermediárias e dos centros urbanos. Mais de 90% da população rural indígena da Bolívia vive em condições de extrema pobreza e tem desenvolvido estratégias de sobrevivência que combinam diversas iniciativas para criar emprego temporário e complementar a renda familiar, por meio do comércio, da produção artesanal e, especialmente, da venda de sua força de trabalho fora de seu lugar de origem. Oficialmente, calcula-se que só na Argentina vivem mais de 1 milhão de cidadãos e cidadãs bolivianos. Muitos camponeses e camponesas indígenas das terras altas abandonam suas comunidades para trabalhar sem nenhuma garantia trabalhista e com salários que oscilam entre US$ 2 e US$ 3 por dia. A precariedade das economias camponesas do ocidente andino está provocando fluxos migratórios contínuos em direção às terras baixas das planícies e da Amazônia. Essas regiões enfrentam uma enorme pressão em relação ao acesso aos recursos naturais e ao controle deles, especialmente no que se refere à terra e à floresta. O conflito pelo acesso à terra é agora um dos principais elementos de confronto social entre movimentos indígenas e camponeses sem terra e grandes proprietários de terras improdutivas das planícies. A reforma agrária de 1953 eliminou definitivamente o regime de servidão e devolveu a terra às pessoas que legitimamente são as


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proprietárias: indígenas e cam­po­ne­ses(as) do altiplano e dos vales. Entretanto, essa mesma reforma agrária construiu uma estrutura de propriedade e de produção de dois tipos: minifúndio no ocidente andino e latifúndio nas planícies orientais. A maior parte das planícies da Bolívia fora outorgada em propriedade, por meio de doações, a simpatizantes do regime que estavam no poder no momento ou, também, como pagamento em troca do apoio aos regimes ditatoriais, especialmente durante a ditadura do general Hugo Bánzer, entre 1971 e 1978. Bánzer distribuiu cerca de 12 milhões de hectares nas planícies da Bolívia. Nas terras baixas, El Chaco e na Amazônia boliviana, o conflito pelo acesso às terras está atravessando grandes tensões resultantes de processos contraditórios.

Santa Cruz: a nova hegemonia A cidade e o departamento de Santa Cruz converteram-se no centro hegemônico do poder econômico, sustentado basicamente pela expansão das plantações de soja, pelo crescimento da pecuária e, de forma menos signi­fica­tiva, pelas plantações de algodão e de ca­na-de-açúcar. Atualmente, essa localidade tem importantes campos de reservas de gás natural e é, sem dúvida alguma, a região mais possante do país, razão pela qual atrai mão-de-obra em virtude das possibilidades de emprego. No entanto, justamente nessa região, os povos indígenas originários dessas terras, sob o amparo da Lei das Terras (Lei Inra), aprovada em 1996, avançam lentamente na conquista de títulos dos vastos territórios indígenas de propriedade coletiva. Ao mesmo tempo, camponeses e camponesas indígenas provenientes das zonas altas do ocidente literalmente se despencam das montanhas e estabelecem assentamentos em qualquer pedaço de terra disponível. Entretanto, essas terras têm donos ou existem pessoas que se atribuem sua propriedade, com documentos outorgados pelo Estado de forma pouco clara. Essas terras constituem a base do patrimônio fundamental da fortalecida, e cada vez maior, burguesia regional do oriente. De fato, existe, de forma oculta, nessa região, uma guerra subterrânea em relação ao acesso à terra e às florestas que coloca em confronto – de maneira quase irreconciliável – grandes proprietários de terras, com indígenas orientais e da Amazônia de um lado e as migrações de colonizadores da região andina (collas) de outro.

Poder local = poder indígena Os movimentos indígenas emergentes da Bolívia encontraram, na aprovação da Lei de Participação Popular (1994), um instrumento adicional que os fortalece em sua identidade étnica e territorial e também na reconstituição de suas formas de poder local. Essa medida, a descentralização municipalista com pleno reconhecimento jurídico das autoridades originárias e das circunscrições territoriais de suas comunidades, tem despertado um renovado sentimento de perten­cimento, auto­governo e apropriação indígena da instituci­ona­li­dade pública local. Mais de mil prefeitos e vereadores afirmam ser indígenas. Dos 318 municípios que existem na Bolívia, 280 são rurais, e muitos governantes são prefeitos e vereadores de origem indígena e camponesa. O surgimento das lideranças de Evo Mo­­ra­les, ligado ao Movimento al Socialismo (MAS), e de Felipe Quispe, ligado ao Movimento Indígena Pachacuti (MIP), é o resultado direto da conquista do poder estatal local por parte da sociedade rural organizada, por meio da aplicação da Lei de Participação Popular. Hoje, pela primeira vez na história da república, praticamente um terço dos representantes nacionais no Congresso Nacional é indígena. Sua presença é uma afronta aos partidos tradicionais e às oligarquias mestiças que, até pouco tempo, controlavam hegemonicamente o poder político e econômico. Esses personagens, enfraquecidos, intolerantes e racistas, que chegam ao Parlamento em listas de partidos sistêmicos, estão agora obrigados a compartilhar, discutir e conviver com camponeses e camponesas indígenas, que, pela primeira vez, têm a­ces­so de forma direta à

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função legislativa. Há cerca de cinco anos, simultaneamente ao processo de participação popular municipal (1994) e à aplicação da nova Lei de Terras (Inra1996), tem surgido no mundo rural boliviano uma forte demanda de apropriação plena dos recursos naturais. Se, no século XIX, foi a prata de Potosí e, no século XX, o estanho, fica claro que, no século XXI, a forma de aproveitamento dos hidrocarbonetos, especialmente do gás, configurará todo o

cenário político, social e econômico boliviano. Os novos poços de exploração estão, justamente, no meio dos territórios indígenas reconhecidos pela nova Lei de Terras. Esses povos apelam para o cumprimento das disposições do convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), visando exercer plenamente seu direito de serem consultados em relação ao apro­veitamento dos recursos naturais. Não estão dispostos a deixar que aconteça o mesmo que ocorreu com a prata

A rebelião de outubro de 2003 Levando em conta todos os antecedentes mencionados, a deposição de Gonzalo Sánchez de Lozada, em outubro de 2003, foi o resultado de um conjunto de fatores, entre os quais podemos sintetizar: 1. a enorme fragilidade e, sobretudo, a ilegitimidade das alianças parlamentares entre o MNR, o Movimento de Izquierda Revolucionaria (MIR), de Jaime Paz, e a Nueva Fuerza Republicana (NFR), do ex-prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, permitiram a constituição desse governo com uma esmagadora maioria no Congresso, mas somente em termos aritméticos. Aqueles que, poucas horas antes, tinham se agredido sistematicamente, chegando muitas vezes ao extremo do insulto personalizado durante a campanha eleitoral prévia, apareceram governando conjuntamente numa obscena repartição de cargos públicos e de sinecuras na administração estatal; 2. a persistência de uma profunda recessão econômica, como resultado das crises anteriores das economias do Brasil e Argentina. A desvalorização do real em 1998 gerou condições muito desfavoráveis às exportações bolivianas para o Brasil. O índice de desemprego aberto na Bolívia chega atualmente a 14% da População Economicamente Ativa (PEA), certamente uma das mais altas da história boliviana. Não há trabalho. Essa situação atinge não somente camponeses e camponesas indígenas ou ex-operários(as) que perambulam pelas ruas em busca de qualquer fonte de renda, mas também amplos setores

das classes médias profissionais, que sofrem como nunca uma diminuição absoluta em seus níveis de renda e bem-estar econômico; 3. a percepção cidadã negativa, especificamente da enorme cidade indígena-camponesa El Alto, em relação a acordos não muito transparentes que foram realizados pelas administrações de Bánzer, Quiroga e Sánchez de Lozada para exportar o recém-descoberto gás natural nos “megacampos” da região de El Chaco, através dos portos chilenos; o lema da campanha antichilena inculcado nas escolas desde a Guerra do Pacífico em 1879; os conflitos pelo aproveitamento de um manancial de água potável que nasce em território boliviano (o manancial Silala) e que, por meios artificiais, foi desviado e chega sem que seja pago qualquer tipo de tributo até a cidade de Arica; a persistência chilena de manter em suas fronteiras com a Bolívia mais de meio milhão de minas antipessoas, transgredindo todos os tratados internacionais; especialmente o lema da campanha a favor da industrialização do gás antes de sua exportação provocou uma forte coesão dos movimentos sociais populares. A utilização da força pública, como resposta do governo ao levantamento popular de outubro, teve como resultado um cruel massacre de 59 pessoas.

e o estanho.

Os primeiros seis meses de Carlos Mesa Nos primeiros seis meses de governo, de outubro de 2003 a abril de 2004, o presidente Carlos Mesa, que subiu ao poder por mandato consti-

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tucional, tinha conseguido um frágil ambiente de tolerância e de relativa paz social. Seu governo não possui representantes no Parlamento, a estrutura do Executivo não se sustenta em nenhum partido político, e o presidente não conseguiu modificar nenhuma das cotas de cargos dos partidos do regime anterior que monopolizam a administração pública. Em meio a todo esse complexo cenário,


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a persistente exigência da embaixada dos Estados Unidos em relação à erradicação forçada das plantações da folha da coca tem um papel preponderante. Esse é um aspecto altamente delicado, especialmente para a população indígena, que vive desse cultivo nas regiões de Chapare, em Cochabamba, e dos Yungas, em La Paz. Mesmo que a superfície das plantações de folha de coca tenha diminuído dramaticamente nos últimos anos – estima-se que atualmente não existem mais do que 20 mil hectares cultivados com coca, dos quais 12 mil são legais, de acordo com as disposições vigentes –, a pressão norte-americana para utilizar a força pública e reprimir as pessoas que cultivam a folha de coca constitui uma das principais ameaças à estabilidade do governo do presidente Mesa e à própria democracia boliviana. Tanto para os Estados Unidos como para as elites tradicionais da Bolívia, é simplesmente impossível admitir que um indígena, ex-dirigente cocalero e atualmente líder de amplos setores nacionais – Evo Morales – alcance uma importante ascensão eleitoral nos comícios municipais de dezembro deste ano e se projete como possível vencedor das futuras eleições presidenciais de 2007. Por sua vez, as empresas petroleiras, que realizaram importantes investimentos na exploração de hidrocarbonetos, com base nas normas legais de capitalização que o governo de Sanchez de Lozada impulsionou no primeiro período de governo (1993–1997), exercem enorme pressão para manter suas expectativas de lucros com a venda direta de gás natural liquefeito (GNL) para mercados internacionais. A Bolívia tem atualmente mais de 55 quinti­ liões1 de pés cúbicos de gás de reservas dadas como certas, e é provável que esse valor possa tornar-se facilmente o dobro se as explorações continuarem. De fato, a Bolívia converteu-se, da noite para o dia, numa potência de gás no continente e é o centro de atenção dos países vizinhos, empresas transnacionais e mercados de ultramar, especialmente a Califórnia e o México, ávidos de energia pura e barata.

Nacionalização do gás Em outubro de 2003, o lema da campanha dos setores populares era “não à exportação de gás pelos portos chilenos”. Em seis meses, esse lema mudou, e o elemento centralizador dos protestos sociais do mês de maio de 2004 foi a “nacionalização do gás”. A Bolívia nacionalizou os hidrocarbonetos em dois momentos singulares do século XX.

Em 1937, nacionalizou os campos da Standard Oil e, em 1969, os da Bo­livian Gulf Com­pa­ny, pa­gando as correspondentes indenizações pelas ex­pro­priações. Contudo, nas duas oportunidades, apesar de os oleodutos já terem sido construídos e os mercados estarem assegurados, os valores que deviam ser pagos pelas indenizações foram pequenos. Hoje, a situação é completamente diferente. Se a Bolívia quisesse nacionalizar o gás, utilizá-lo e aproveitá-lo para si própria, precisaria pelo menos de US$ 5 bilhões para que a expropriação rendesse frutos econômicos dentro de quatro anos. Por um lado, as empresas estrangeiras teriam que ser indenizadas por inversões que beiram os US$ 3 bilhões – sem se levar em conta suas expectativas de lucros futuros –; por outro lado, teriam de ser investidos outros US$ 2 bilhões para a instalação de dutos, usinas de bombeamento e estações d e l i q u e f a ção do gás para exportação. Nesses valores mencionados, não estão incluídos os grandes investimentos que deveriam ser realizados para o aproveitamento industrial. Esses US$ 5 bilhões equivalem a mais de 60% do PIB. Em conseqüência, técnica e financeiramente, a nacionalização do gás – como foi realizada em períodos anteriores – atualmente é inviável. O governo do presidente Mesa, no início do mês de maio, submeteu à consideração da cidadania um projeto de lei de hidrocarbonetos, que volta a criar a empresa estatal de petróleo, Yaci­mi­en­tos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), e, sem consultar com antecedência as empresas petroleiras, aumentou progressivamente os impostos em até 50%. As empresas transna­cionais rejeitam esse aumento, ameaçam paralisar suas operações e impugná-lo

1 55 seguido de 18 zeros.

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perante tribunais internacionais. No entanto, os movi­mentos sociais mais radicais exigem a nacionalização imediata das empresas estrangeiras sem nenhuma indenização, o que significaria o isolamento da Bolívia no contexto internacional. Alguns movimentos sociais radi­calizados lançaram, no fim de abril, o le­ma da greve geral indefinida e o bloqueio dos caminhos em todo o país. Esse é um lema conhecido e utilizado quando se quer depor um governo. Alguns setores muitos bem organizados e controlados por movimentos de ultra-esquerda, como o magistério, algumas universidades e setores mineiros, exigiam, e continuam exigindo, a nacionalização do gás ou a renúncia do presidente. Esse lema de setores minori­tá­rios, porém muito ativos, costuma ser sustentado por análises pouco sérias, elaboradas por instituições não-especializadas no assunto, que desacreditam o projeto de lei do governo e o acusam de dar continuidade ao anterior.

Novo papel protagônico das Forças Armadas Em 7 de maio, o Tribunal Constitucional ditou sentença a favor de familiares das vítimas nas revoltas do motim po­licial de fevereiro de 2003 e estabeleceu que os militares envolvidos nas mortes de civis devem ser julgados pela justiça ordinária, e não pelo Tribunal Militar. O alto comando militar desacatou a sentença do Tribunal Constitucional e, pela primeira vez em 22 anos de democracia, publicou um pronunciamento de índole eminentemente política. Após 22 anos de vida estritamente institucional, as Forças Armadas converteram-se temporariamente em atores políticos centrais.

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Assim, como ocorreu em 1985, os setores da vanguarda social entraram no jogo da embaixada dos Estados Unidos, das empresas de petróleo e dos setores mais conservadores dos terras-tenentes do oriente. Esses setores de poder já se manifestaram, afirmando que o gás deve ser exportado, o mais rapidamente possível, através de qualquer porto, e também rejeitaram a convocatória ao referendo vinculante, além de se oporem abertamente à realização da futura Assembléia Constituinte. O governo do presidente Carlos Mesa rompeu o equilíbrio que tinha conseguido manter durante meio ano, até o mês de abril, e decidiu formar um novo gabinete, que inclui destacados profissionais comprometidos com uma visão humanista, de eqüidade social e econômica e de defesa de indígenas. Pelo Decreto Su­premo, convocou para o referendo sobre o gás no dia 18 de julho, diante da negativa dos partidos políticos de aprovar a lei respectiva. (Essa lei foi aprovada poucos dias antes da realização do referendo.) O governo do presidente Mesa pendeu sutilmente para a esquerda. O dirigente Evo Morales fez um chamado à sensatez e à preservação do regime democrático. Enquanto isso, tem surgido, de maneira tímida, dispersa e sem liderança visível, uma corrente cidadã que pretende mobilizar-se buscando conservar cenários democráticos para o exercício pleno da cidadania em termos de respeito à lei, à democracia, à convivência cidadã e à justiça social. Não se pode saber ainda se esse movimento conseguirá traduzir em apoio político a simpatia de 70% da população que ainda concentra o presidente Carlos Mesa.

Greve geral indefinida As relações entre o Chile e a Bolívia chegaram a um ponto de enorme deterioração, e a campanha eleitoral chilena para presidência inclui, pela primeira vez em sua história, o debate em relação à demanda marítima da Bolívia e seus requerimentos energéticos para responder à sua crescente atividade produtiva e industrial. Aparentemente, o presidente Lagos já tomou a decisão de não depender do aprovisionamento de gás de nenhum dos países vizinhos, mesmo da Argentina. O Chile estaria disposto a comprar gás de países asiáticos pagando um valor três vezes superior ao que poderia negociar com a Bolívia ou a Argentina. As reivindicações sociais são rigorosamente setoriais e pontuais, em um ambiente de generalizado desacato à autoridade e às normas


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vigentes. Não só os movimentos sociais estão fragmentados, mas também o Estado, suas instituições e seus operadores. Há muitos anos, os movimentos sociais vêm sendo acostumados, pelas esferas governamentais, a pensar que a única forma de obter “conquistas sociais” é por meio da pressão e do bloqueio dos caminhos. Existem somente dois projetos políticos com uma visão de Estado e de sociedade. Por um lado, o autodenominado movimento Nación Camba (ou da meia-lua, porque inclui todos os departamentos e províncias andinas), que aglutina setores do oriente e do Chaco boliviano, e, por outro, a proposta de reconstituição Aymara del Collasuyo no altiplano de La Paz. Essas duas propostas nacionalistas, racistas e conservadoras baseiam-se na exclusão, na rejeição e na negação do “outro”, de quem é diferente. Nenhum dos movimentos era favorável ao referendo sobre o gás nem à realização da Assembléia Constituinte no próximo ano. Essas posições têm radicalizado os comportamentos da sociedade boliviana até graus de intolerância extrema. Maio de 2004 foi um mês de definições que marcaram um novo rumo da história boliviana. O governo do presidente Carlos Mesa não foi deposto pela ação combinada das forças de extrema esquerda que coincidem com os interesses das empresas de petróleo, da embaixada norte-americana e dos grupos tradicionais de poder.

Conspiração contra o referendo do gás Obviamente, não existem provas das conspirações. Analisando em detalhe, é possível chegar à conclusão de que a declaratória de greve geral indefinida, em maio de 2004, foi o ponto culminante de uma conspiração contra o governo do presidente Carlos Mesa. Essa greve, decretada pela Central Obrera Boliviana, dirigida por Jaime Solares – um líder obscuro, conhecido por sua vinculação com a ditadura do general García Meza –, foi o centro de confluência das ações desestabilizadoras dos setores mais duros do governo deposto em outubro de 2003. Grupos ultra-radicais, trotskistas e do magistério conseguiram paralisar as atividades em toda a educação fiscal boliviana durante três semanas. No entanto, cometeram o gravíssimo erro de seqüestrar um vice-ministro de Educação de origem indígena, vexá-lo e humilhá-lo através das emissoras de televisão do país inteiro, gerando uma grande rejeição da cidadania em relação a essa greve.

O dirigente indígena Felipe Quispe, por sua vez, não conseguiu generalizar o bloqueio dos caminhos como tinha feito em 2002, mesmo quando um de seus seguidores, Rufo Calle, manteve a região do altiplano norte, especialmente a estrada de exportação dos portos do Pacífico, completamente paralisada durante duas semanas. Ao mesmo tempo, os setores mais conservadores da sociedade boliviana, relacionados a movimentos cívicos do oriente, proclamavam tentativas separatistas e a formação de governos autônomos. Provavelmente, essas iniciativas procuravam não só a ruptura da ordem institucional democrática, como também da própria configuração esta­tal boliviana. No mês de junho, o presidente Mesa enfrentava o momento mais precário de sua gestão de governo. Os boatos sobre um golpe de Estado eram permanentes, e as ocupações de terras li­deradas por outro diri­­g ente obscuro, Ángel Duran, multiplicavam-se por to­ do o país. Muitos prefeitos, questionados pelo eleitorado, iniciaram protestos exigindo o descongelamento de suas contas. Em 15 de junho, no mu­nicípio de Avo-Avo, o prefeito foi seqüestrado, trasladado pa­ra diversas comunidades do altiplano, tor­turado, assassinado e, finalmente, queimado e exposto aos meios de comunicação aos pés do monumento a Tupak Katari. As ameaças de queimar as urnas, boicotar o referendo, exigir a nacionalização dos hidrocarbonetos, entendida como confisco sem indenização, a demanda da renúncia de Carlos Me­sa, as inúmeras sugestões para que as eleições fossem antecipadas e a sistemática

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ação entorpecedora dos partidos sistêmicos hegemô­nicos no Congresso faziam parte do dia-a-dia. Em 14 de julho, dois dias antes das festas de efemérides da cidade de La Paz e quatro dias antes da realização do referendo, o Palácio de Governo recebeu três visitas de alto nível. Os três emissários do governo norte-americano coincidiam numa mensagem: “Presidente Mesa, tem de tomar cuidado e proteger sua vida porque existe uma conspiração e pretendem assassiná-lo na noite do desfile de tochas, no dia 16 de julho”. Com esse a­núncio, colocava-se em funcionamento a tentativa final para impedir o referendo e, dessa forma, depor o presidente Mesa, colocando, em seu lugar, o presidente da Câmara de Senadores, Hormando Vaca Di­e z, do MIR, para que convocasse as eleições em dezembro do mesmo ano. Somente a firme convicção do presidente, e especialmente de seu ministro de governo Alfonso Ferrufino, impediu o sucesso da conspiração. O presidente e seus colaboradores mais achegados decidiram arriscar tudo e levar adiante a realização do referendo.

Participação cidadã maciça No dia 18 de julho, pela manhã, milhares de cidadãos e cidadãs compareceram para responder sobre o destino do gás. As pessoas iam até os locais de votação com enorme incerteza, receio e in­segurança. Na cidade El Alto – epi­centro da rebelião popular de outubro de 2003 –, a presença cidadã foi maciça e alteños e altenãs, habitantes da cidade, expulsaram, com gritos e pedradas, dirigentes radicais, como Roberto de la Cruz.

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Dos 4 milhões de pessoas regis­tra­das, participaram desse primeiro referendo mais de 2,5 milhões, ou seja, mais de 60%, e a opção “SIM” ganhou nas cinco perguntas, em praticamente todo o país. As três primeiras, que se referiam à ab-rogação da lei de hidrocarbonetos do presidente Sanchez de Lozada, à recuperação da propriedade dos hidrocarbonetos pelo Estado e à nova fundação de Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, obtiveram uma resposta positiva de mais de 85%, ao passo que as perguntas 4 e 5, relativas à utilização do gás como recurso estratégico para a negociação da recuperação marítima da Bolívia e sua exportação depois de satisfazer o consumo interno, obtiveram uma maioria de 55% dos votos. Às 21 horas de 18 de julho, o país já sabia que a participação cidadã fora maciça, que a maioria da população votara por uma opção mais afastada dos extremos e, sobretudo, que respaldava ativamente a gestão do presidente Mesa. Nos fatos, o referendo constituiu um plebiscito, que transformou a percepção das pesquisas relacionadas com a aprovação da gestão presidencial em um voto explícito e direto da maioria de bolivianos e bolivianas que deram apoio ao governo e sua política. Os grandes derrotados da fracassada conspiração foram algumas empresas de petróleo e líderes mais conservadores do oriente boliviano. Os mais vencidos, porém, foram os setores mais radicais dos movimentos sociais. Antes do decorrer de 24 horas da publicação dos resultados oficiais, proporcionados pelo Tribunal Nacional Eleitoral – que, durante todo esse tempo, desenvolveu um papel impecável, independente e autônomo –, o governo tomou duas iniciativas importantes. Por um lado, transcreveu o texto das perguntas do referendo a um novo projeto de lei de hidrocarbonetos, respeitando, assim, seu caráter vinculante e enviou-o ao Congresso, solicitando-lhe que antecipasse suas sessões para tratar da lei; por outro lado, nomeou os magistrados da Corte Suprema, do Conselho da Judicatura e do Tribunal Constitucional e Fiscal, tarefa que, há dez anos, o Congresso Nacional não cumpria. O presidente também ratificou o convênio de exportação de gás para a Argentina.

Aprovação da nova lei de hidrocarbonetos A agenda que o governo tem pendente inclui: aprovar uma nova lei de hidrocarbonetos, guiar


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as eleições municipais do mês de dezembro, promover a instalação de uma Assembléia Constituinte para o ano 2005, reduzir o déficit fiscal de 9%, criar novas fontes de emprego e reativar a economia nacional. Até o momento, o cenário está sendo dominado pelo debate sobre o caráter da Lei de Hidrocarbonetos que o Parlamento deverá aprovar nas próximas semanas. O movimento MAS, de Evo Morales, contesta o projeto de lei do governo porque considera que não reflete os resultados do referendo. Evo Morales é favorável à nacionalização, na tentativa de recuperar uma parte de sua base social de esquerda. Contudo, a atenção dos partidos está especialmente concentrada ao redor das iminentes eleições municipais do próximo dia 5 de dezembro. Com a aplicação da nova Constituição Política do Estado, reformulada no início do ano, houve mais de 800 requerimentos de agrupações cidadãs e de povos indígenas solicitando a apresentação de candidatos independentemente dos partidos. A Bolívia está viven­ciando uma “revolução da cidadania”, que questiona novamente o sistema político tradicional e interpela os partidos na busca de uma representação cidadã mais direta.

Certamente, muitos desses 800 requerimentos não poderão cumprir com as exigências legais em um prazo tão curto (6 de setembro), mas também é provável que mais de uma centena dessas agrupações consiga ser reconhecida legalmente e postule seus próprios candidatos. A Lei de Convocatória à Assembléia Constituinte do ano 2005, segundo o crono­ grama proposto pelo Tribunal Nacional Eleitoral, deverá ser promulgada em outubro de 2004. No entanto, tudo leva a pensar que os partidos políticos que controlam o Congresso esperarão até conhecer os resultados da eleição municipal para, só então, aprovar a Lei de Convocatória à Constituinte nos termos que forem mais convenientes. Os povos indígenas, em especial, estão demandando uma ampla participação como assembleístas em função de cotas étnicas. O censo demográfico e habitacional de 2002 determinou que 62% da população boliviana se define como indígena. Várias instituições, comissões parlamentares, movimentos sociais e centros de investigação ensaiam complicadas fórmulas para equilibrar demandas étnicas regionais, corpo­rativas e cidadãs, objetivando sua futura participação na Assembléia Constituinte.

* Miguel Urioste F. de C. Diretor da Fundação Tierra, presidente da diretoria da Asociación para la Ciudadania Apostamos por Bolívia

Uma associação para a cidadania Apostamos por Bolívia é um projeto conjunto da Asociación para la Ciudadania, entidade formada pela Acción Cultural Loyola (Aclo), Centro de Promoción de la Mujer Gregoria Apaza, Centro de Investigación y Promoción del Campe­sinado (Cipca) e Fundación Tierra, quatro organizações não-governamentais de desenvolvimento (ONGDs) que têm o interesse expresso de apoiar o processo da Assembléia Constituinte. Os objetivos de Apostamos por Bolívia são: contribuir para que homens e mulheres da população camponesa e indígena, rural e urbana do país possuam informação suficiente para participar, dentro das melhores condições, no processo da Assembléia Constituinte; que os temas centrais dos direitos camponeses e indígenas formem parte da agenda; que sua representação seja adequada e legítima e que constituintes, camponeses e indígenas eleitos(as) contem com o apoio técnico necessário que potencialize seu papel como porta-vozes de seus direitos. Para saber mais: <http://www.ftierra.org/> <http://www.cipca.org.bo>

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MUNDO

P ELO MUNDO Jamile Chequer Colaboração: Maurício Santoro

Terra, preconceito e política A Organização International Crisis Group (ICG) divulgou recentemente informações a respeito de tensões sobre terra e raça no sudeste da África. “Tensões que já contribuíram para o colapso político e econômico no Zimbábue estão começando a existir, também, na África do Sul”, declarou a organização. O documento Blood and soil é fruto de pesquisa de campo, que abrange desde trabalhadores(as) em fazendas a pessoas do quadro governamental, examina os desafios da política da terra e redistribuição em ambos os países e os apresenta dentro de contextos político, social, econômico e histórico. Aponta que os(as) perdedores(as) nesse “escândalo internacional” são os(as) negros(as) do Zimbábue – em qualquer situação, seja trabalhando em fazendas, na oposição e aqueles(as) que não fazem parte da elite. Algumas considerações são feitas para ambos os países. Por exemplo, para o Zimbábue, o documento sinaliza a necessidade urgente de uma Comissão da Terra com um mandato claro e tempo para ter resultados. “As partes interessadas não devem se iludir achando que um acordo com a elite apenas vai resolver o problema da terra”, diz o documento. E sobre a África do Sul, o conselheiro especial da ICG, John Prendergast declarou que “ainda há tempo para uma reforma agrária e para impedir no futuro a violência e a insegurança relacionadas com a terra”.

O documento está disponível em <www.icg.org>

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Aproximação sul–sul

Perspectivas urbanas

O projeto Diálogos entre os Povos Africanos e Latino-americanos foi lançado oficialmente no início de setembro em Johanesburgo, África do Sul. Contou com a presença de 50 pessoas de 40 organizações de 14 países dos dois lados do Atlântico, como Brasil, Uruguai, Angola, Mawi, Moçambique, entre outros. A coordenação foi do Ibase e do Alternative Information and Development Centre (AIDC). O objetivo é construir pontes sobre o Atlântico, ligando os movimentos sociais e organizações da sociedade civil das duas regiões. Durante o seminário de lançamento, foram debatidas estratégias de ação comum em questões trabalhistas, de gênero, meio ambiente, comunidades rurais, comércio e indústria. Outro ponto discutido foi a necessidade de que América Latina e África se conheçam melhor. O Diálogos aproveita o fato de que, em junho, estabeleceu-se a aliança Ibsa – Índia, Brasil e África do Sul, um bloco trilateral sul–sul para o fortalecimento da capacidade política nas negociações comerciais com os países ricos do Norte. Um novo encontro foi marcado. Será no Fórum Social Mundial 2005, que ocorrerá em Porto Alegre de 26 a 31 de janeiro.

Até o ano 2030, 60% da população mundial estará vivendo nas cidades, diz o relatório The state of the world´s cities 2004–2005 divulgado pelo Habitat durante o segundo Fórum Mundial Urbano, ocorrido entre os dias 13 e 17 de setembro. Publicado a cada dois anos, o documento serve de ferramenta e manual de como as cidades estão crescendo, tanto positiva como negativamente. O documento explica que quase todo o crescimento populacional será absorvido pelas áreas urbanas dos países menos desenvolvidos. Mas os frutos da globalização – cidades multiculturais, crescimento econômico, maior longevidade – estão sendo rapidamente contrabalançados pelos aspectos negativos da urbanização rápida: aumento da pobreza, diminuição da rede de segurança social e expansão dos bolsões de pobreza, que, de acordo com o relatório, serão o lugar de moradia de 2 bilhões de pessoas até 2020. Um aspecto discutido foi a imigração – os países desenvolvidos foram os destinos da maioria das 77 milhões de pessoas que imigraram do Leste Europeu e das Repúblicas Soviéticas (33 milhões), Ásia e Pacífico (23 milhões) e África (21 milhões) – e planejamento urbano. Também foi descutida a necessidade de produzir cidades inclusivas, quando em alguns lugares os(as) imigrantes estão condenados(as) a viver em bairros separados. “O planejamento urbano pode ser a base para uma cidade decente”, disse a diretora-executiva do UN-Habitat, Anna Tibajuka, em entrevista à IPS.

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LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO

Antena em Porto Alegre

Contra-espetáculo

De olho no Chile

Quem estiver fazendo as malas para o Fórum Social Mundial 2005, em Porto Alegre, pode aproveitar para chegar mais cedo. O Fórum Social das Migrações que ocorrerá nos dias 23 e 24 de janeiro, tem nessa edição o lema “Travessias na De$ordem Mundial”. O assunto merece atenção cada vez mais delicada, afinal, em 1990, o número de migrantes era de 90 milhões de pessoas. Hoje, são mais de 175 milhões. “Se considerarmos o volume de recursos financeiros que enviam para seus países, nós nos daremos conta não somente da dimensão do fenômeno migratório, mas em especial da pertinência da realização de um Fórum Social sobre as migrações”, explica-se no site do evento. Além disso, só de pessoas refugiadas o planeta contabiliza mais de 16 milhões, e cerca de 25 milhões de pessoas que fugiram de desastres naturais, e da violência e estão deslocadas internamente em seus países e não são consideradas refugiadas. Algumas propostas de temas a serem debatidos pelo Fórum são: ética e migrações no contexto mun­ dial, migrações e a guerra na or­dem mundial e impactos da globalização na redistribuição espacial da população. As inscrições já estão abertas e podem ser feitas pelo site <www. migracoes.com.br>. O processo de cadastramento começa em 22 de janeiro, à tarde, na Rua Barros Cassal, 220 – Porto Alegre, RS. Quem colaborar com R$ 10 recebe uma bolsa com o material do Fórum.

O Fórum Social Chileno, que acontece entre 19 e 21 de novembro, vem como um contra-espetáculo à reunião do Conselho Econômico Ásia-Pacífico (Apec). “No encontro estarão reunidos os países mais poderosos dessa parte do planeta, que, em conjunto, produzem mais de 50% da riqueza mundial”, denuncia a organização do Fórum. O Fórum pretende ser um espaço aberto, participativo e democrático para que se conheça, compartilhe e se debata os problemas do país e se possam elaborar e propor caminhos e alternativas que tragam a possibilidade de um Chile melhor, baseado em um modelo econômico e sustentável que respeite a diversidade e inclua todo o povo chileno. Como o encontro da Apec terá a presença do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, o tom da organização do Fórum é de indignação. Primeiro, porque não poderão se manifestar pelas ruas em virtude do aparato de segurança que envolve essa visita. “Não é possível que o Chile receba com honras um homem que representa a dor de pessoas inocentes, devastadas pela intervenção militar amparada em premissas que não podem ser sustentadas com coerência”, argumentam.

Santiago do Chile é a Capital Americana da Cultura este ano. A idéia, que nasceu em 1997, está dirigida aos países das Américas e tem o objetivo de ser um instrumento de integração interamericana a partir do âmbito da cultura, contribuir para um melhor conhecimento entre os povos do continente americano, respeitando sua diversidade nacional e regional. Quer destacar, ao mesmo tempo, o patrimônio cultural comum e promover as cidades nomeadas como Capital Americana da Cultura no continente americano e no resto do mundo. A idéia também visa estabelecer novas pontes de cooperação com a Europa, o outro único continente que tem estabelecida a iniciativa das capitais culturais. O delegado no Brasil da organização da Capital Americana da Cultura, Mario Vendrell, diz que os benefícios da iniciativa para a cultura são muito importantes: “Permite que toda a cidade e o país possam se sentir partícipes de um mesmo projeto comum que aumente a coesão social e a auto-estima da população. Possibilita o resgate e a valorização do patrimônio cultural material e imaterial e o desenvolvimento dos setores educacional, desportivo, artístico e urbano”. A próxima cidade foi anunciada em 29 de outubro: Guadalaraja, no México. Podem ser candidatos os territórios dos países da América. Para isso, é preciso preencher o formulário de candidatura, solicitado pelo e-mail <info@cac-acc.org>

As inscrições para o Fórum Chileno estão abertas no <www. forosocialchileno.cl>

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ENTRE VISTA Entrevista

Por Iracema Dantas e AnaCris Bittencourt Colaborou: Maurício Santoro

Nina Pacari

A equatoriana Nina Pacari é líder do movimento indígena Pachakuti e dirigente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). Dona de uma trajetória que começou ainda na juventude, como militante e advogada popular, Nina integrou durante seis meses o ministério de Lucio Gutierrez, presidente do Equador. “Não nos aliamos a Gutierrez depois da vitória, participamos de comum acordo no processo eleitoral, ganhamos e, por isso, formamos parte do governo. Mas, quando o aliado não cumpre com o prometido, nós somos definitivamente partidários da ruptura.” Como ministra das Relações Exteriores, viveu experiências que ajudam a aprofundar o debate sobre alianças da sociedade civil organizada com governos. “É preciso estar consciente do desgaste, dos custos políticos que existem numa parceria. Grave seria pensar que poderíamos sair imaculados. Se tivéssemos um aliado razoavelmente disposto a cumprir com o combinado, com mais visão, mais projeto político, haveria uma grande mobilidade social, seria a opor­tunidade para gerar as mudanças”, analisa. Nina concedeu esta entrevista à Democracia Viva durante o Fórum Social das Américas, que ocorreu em julho, em Quito, no Equador. Sobre o processo Fórum Social Mundial (FSM), propõe: “Creio, sim, como propõe o FSM, que um outro mundo é possível. E oxalá seja possível, para que o adotemos e para que ele permaneça nas esferas do poder. E me pergunto: assim como há uma globalização de um fun­da­ mentalismo econômico, por que não globalizar a tarefa social?”.

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A senhora nasceu em Quito? Nina Pacari – Não. Nasci na província de Imbabura, no norte do Equador. Toda minha vida juvenil e estudantil foi passada nessa província. Vim para Quito no fim da década de 70 para estudar Direito na universidade. Na época já existia a Ecuarunari [Confederação de Povos da Nacionalidade Quíchua do Equador] e também uma outra organização que acabaria por dar origem à Conaie. Logo me envolvi com essas instituições e me integrei aos debates da época. Depois que me diplomei, mudei-me para a região mais central do país e passei a atuar, já como integrante da Conaie, na defesa das terras e dos direitos sociais; eu era uma advogada que defendia o setor popular, mormente o indígena. Mas por conta das nossas normas, nossa legislação, o que eu fazia era também lutar para que a resolução dos problemas não dependesse apenas das esferas das cidades e das autoridades. Então eu atuava para que os problemas fossem resolvidos na própria comunidade, ou seja, para fortalecer as comunidades, e não ser apenas uma advogada que gosta de angariar casos e seguir avante com outro processo. Além disso, ainda que fosse inevitável estar nos tribunais de justiça, também dava treinamento nas comunidades sobre legislação e processo legal, para que as pessoas não se deixassem enganar por advogados inescrupulosos em outras ocasiões. Assim, dedicava-me também à ca­pacitação, e esse vínculo com a organização e a comunidade foi ficando cada vez mais forte.

Não militava no movimento indígena antes de entrar na universidade? Nina Pacari – Desde minha juventude eu militava. Uma vez que fazíamos parte de grupos indígenas, era totalmente necessário consolidar a nossa identidade, especialmente diante de uma sociedade que nos discriminava. Quando tinha 15 anos, já fazia parte de uma organização juvenil; e nossas reivindicações se referiam ao respeito e à voz da juventude assim como dos povos indígenas. Era necessário que, no âmbito estudantil, por exemplo, nós pudéssemos influir com o pensamento dos povos indígenas. Também pertenci ao conselho estudantil do meu colégio e era dirigente dentro dessa organização juvenil. Toda essa atividade estava vinculada à identidade e à cultura indígenas e acredito ter sido toda essa experiência na juventude que permitiu que, uma vez formada advogada, eu pudesse exercer a profissão na província de

Chimborazo, que fica no centro do Equador e tem 73% de população indígena.

Como foi essa experiência? Nina Pacari – Quando fui trabalhar como advogada, havia sempre a vinculação com as organizações indígenas. Somos um povo que trabalha unido, o que permitiu que continuássemos com todas as reivindicações de povos, de nacionalidades, de recuperação de territórios, olhando para além do horizonte dos povos indígenas, a fim de poder traçar uma proposta de projeto político nacional. Foi um trabalho paulatino com a identidade dos povos. Em nossa organização não somos uma agremiação nem uma associação de camponeses lutando apenas pela terra, tampouco artesanal. Não é uma agre­m iação nem um sindicato; é uma organização que parte de sua identidade como povo que teve uma continuidade histórica desde antes da época da colônia. Agora procuramos fazer com que o princípio da diversidade cultural seja reconhecido e possa, ao mesmo tempo, ser exercido num ambiente de entro­s amento cultural. Esperamos que isso permita pelo menos construir novas propostas para os povos indígenas e para os setores populares.

Por que deixou de advogar? Nina Pacari – Em 1989, a Conaie pediu que eu regressasse a Quito para assumir o posto de assessora política. Em 1993, o movimento indígena em Chimborazo propôs minha candidatura para a direção da Conaie.

E por que optou pela carreira política? Nina Pacari – Essa também foi uma decisão da organização e é uma das questões características do movimento indígena. Não há uma candidatura individual de um candidato, e sim em função do que decide a organização, que pede a uma pessoa que assuma essa responsabilidade. Dessa maneira, em 1993, fui eleita dirigente de terras e territórios da Conaie. Depois, em 1997, participei da Constituinte do Equador pela província de Chimborazo e ganhei as eleições universais gerais. Após ganhar nessa eleição, fui can­ didata a deputada federal em 1998. Também ganhei em âmbito nacional e, de 1998 a 2000, fui vice-presidente do Congresso do Equador. Ganhamos o processo eleitoral em 2002 e fui membro do atual gabinete nos primeiros seis meses, em função da aliança que havíamos adotado com o governo de Lucio Gutierrez. Exerci o cargo de ministra das Relações Exteriores do Equador.

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Qual foi a causa do rompimento com o atual governo? Nina Pacari – Em agosto de 2003, o presidente mandou um projeto de lei que atentava contra os direitos dos trabalhadores e que não era o projeto que havia sido decidido por consenso pelos aliados. Logo em seguida, comprometeu-se a retirar esse projeto e a substituí-lo pelo consensual, mas em vez disso fez um pronunciamento público declarando que os deputados deveriam votar a favor do projeto enviado, pois, se não o fizessem, seriam punidos. Respondemos que não aceitávamos ser chantageados, que apro­­v ar e s s e projeto de lei atentava contra os direitos dos trabalhadores, que vo­taríamos contra o pro­jeto e, se isso sig­n i­f icasse uma rup­­t ura, que assim fosse. Deu-se então a ruptura, e todos os membros do gabinete, com exceção de dois ou três funcionários de escalões inferiores, se afastaram com seis meses e 20 dias. É importante relembrar que a aliança foi feita em função de pontos programáticos ligados ao modelo econômico e político e à luta contra a corrupção e à necessidade de promover o desenvolvimento dos excluídos e o investimento social. Se, uma vez no governo, o aliado não cumpre sua promessa e adota uma política econômica neoliberal, comprometida com os setores da direita e com um discurso totalmente voltado para a direita, obviamente surgem atritos entre os membros dessa aliança. Os primeiros problemas surgiram bem antes da ruptura final. Logo nos primeiros 15 dias, quando foi assinado o primeiro memorando de intenções com o FMI [Fundo Monetário Internacional], um dos custos políticos para o movimento, a

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situação ficou delicada. Embora o custo político fosse conhecido, avaliamos que romper a aliança nos primeiros 15 dias era como sair correndo – era preciso esperar um pouco.

Outros ministérios estavam com o movimento? Nina Pacari – O movimento assumiu quatro ministérios importantes para o desenvolvimento – Agricultura, Educação, Turismo e Relações Exteriores – e teve a oportunidade de projetar um diálogo com novos atores. Mas constatamos que, com um aliado que não é coerente para cumprir o compromisso que motivou a aliança, é impossível lograr a viabilidade e a concretização de nossos projetos. No caso do Equador, o presidente da República é a cabeça, e, se essa cabeça não funciona, nada funciona por mais que tenhamos ministérios-chave. Perceber isso foi muito importante porque agora nosso objetivo é assumir a liderança a partir da cabeça. E, mais ainda, construir a sustentabilidade em âmbito geral, o que depende dos governos locais. Se não tivermos sustentabilidade perante a estrutura existente, os grupos de poder econômico exercem toda a pressão possível para impedir o funcionamento de um novo modelo. Isso foi também o que pudemos constatar. São razões que nos levam a perscrutar um horizonte mais claro de possibilidades e limites e a constatar a existência das malhas do poder que impedem o funcionamento dos projetos. Mas avalio que foi sumamente importante chegar a conhecer, por dentro, esse esquema de poder e saber por onde temos que agir e melhor nos preparar para os desafios a enfrentar. Por causa dessa experiência, estamos debatendo nossa sustentabilidade. Para um projeto como o nosso ser sustentável, é preciso lutar com a adversidade das hegemonias políticas e econômicas de caráter estrutural e também consolidar as bases. E nesse sentido caberá, por um lado, aos governos locais e, por outro lado, às organizações que se empenhem na luta extra-institucional, funcionando de forma organizada. Apesar dos atritos, pudemos demonstrar que é possível mudar; é possível trabalhar com espírito nacionalista. E é possível também romper com certos estereótipos em relação à política exterior. No momento em que cheguei, não havia absolutamente a consistência de uma relação com o país que temos internamente para projetar para o mundo. Então, é preciso procurar as lacunas ainda existentes nessa estrutura, ver o que é


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possível mudar, o que é possível discutir no plano internacional, por exemplo, com a tese dos povos. Por mais que sejamos governo, é possível inserir os temas dos povos porque há razões e coerência suficientes, e isso nos serviu de lição. Por exemplo, nas reuniões do Grupo do Rio ou nos debates com a União Européia ou nos debates da Comunidade Andina, meu discurso era abrangente porque havia uma representação governamental, mas havia também um componente do setor popular e do setor excluído. Ainda que tenha fracassado toda a construção do que poderia ter sido feito como aliança, valeu a pena para detectar limites e potencialidades dessa experiência.

Existem critérios para as alianças do movimento Pachakuti? Nina Pacari – Definimos a necessidade de alianças naturais, alianças estratégicas e alianças conjunturais. As alianças naturais, geralmente entre povos indígenas, têm que estar ligadas a esse projeto macro de de­li­n e­ a­m ento de atividades políticas. Mas os problemas dos povos indígenas não se resolvem apenas entre indígenas; aí entram as alianças estratégicas. São questões que têm que ser resolvidas em dimensão nacional e fazer parte do projeto político do país que queremos. Nesse sentido, temos que contar com outros atores: atores sociais urbanos, não-indígenas, mulheres, juventude, novas formas de organização que estão surgindo através da defesa dos direitos humanos, ecologistas, movimentos antiglo­balização e outros. São aliados estratégicos na construção de um processo. Quanto às conjunturais, avaliamos se essas alianças podem colaborar para o nosso projeto maior. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso da aliança com Gutierrez. Mas há um risco grande que é o aliado não cumprir o prometido. É uma aliança mais arriscada, mas temos que correr o risco. O problema não é o tipo de aliança; ela é uma ferramenta. O problema é a falta de cumprimento; por conseguinte, o que temos que acusar é a conduta de quem não a cumpriu. Neste sentido, a coisa tem que ficar bem clara porque, do contrário, poderemos terminar culpando a ferramenta e ignorar outras possibilidades que possam ocorrer em outros momentos conjunturais.

Houve alguma resistência por parte da população não-indígena? Nina Pacari – Nem eu nem o movimento havíamos pensado que assumiríamos o Ministério de Relações Exteriores. Mas meu trabalho e meu desempenho internacional

são conhecidos há muito tempo no Equador. Houve muitos pronunciamentos dos setores populares e dos setores de classe média na mídia, nos quais meu nome era indicado como uma possibilidade para representar o Equador como chanceler; havia um sentimento nacional nesse sentido. Gutierrez não queria assumir essa indicação. Foi o peso da população – e não só da população indígena – e da mídia que terminou forçando minha designação. Durante os seis meses em que estive no governo, acompanhei pesquisas mensais sobre o desempenho dos ministros e, até minha saída, sempre fui a ministra que encabeçou a lista do melhor desempenho, nunca com menos de 83% de aceitação nacional e reconhecimento de boa gestão. Isso me pro­p orciona u m a satisfação porque representei não só os indígenas, mas representei o país em seu conjunto como mulher, como indígena, como equatoriana; isso foi sumamente importante.

Como foi sua recepção no ministério? Nina Pacari – É claro que havia um temor sobre o que eu faria. Não sou funcionária de carreira e havia a tradição de políticos que chegam e mudam tudo, o que dá razão ao surgimento de disputas entre blocos que se formam internamente. Mas deixei logo clara a minha mensagem: vou cumprir a lei e vamos trabalhar pelo país. Afirmei que não tinha grupos dentro da chancelaria e o que tínhamos a fazer era cumprir nossa obrigação com a política exterior do país. Era tudo muito dinâmico. Todos os funcionários de carreira tiveram que reconhecer que foi uma das gestões onde mais se sabia

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qual era o rumo do país, onde o Equador era considerado em todo o seu conjunto. Não descansamos um só momento. Havia mais de dois anos e meio que os processos estavam acumulados e tínhamos que trabalhar ao máximo.

reconhecimento e com abertura; e até minha saída, com valorização.

Em tão pouco tempo, foi possível planejar uma ação de longo prazo?

Nina Pacari – De acordo com a Constituição, a condução da política exterior pertence ao presidente da República, e sua execução, ao chanceler. Mas, quando não coincidiam nossos pontos de vista, havia atritos. Isso aconteceu, por exemplo, no tema da guerra contra o Iraque. O movimento Pachakuti queria a paz; meu pronunciamento tinha que ser pela paz; o presidente tinha outro critério. A população exigia um pronunciamento sobre a guerra, e eu fiz um pronunciamento com a posição da chancelaria assinalando as linhas da paz. O presidente, então, se adiantou para dizer que era ele que determinava a política exterior, mas nada mais disse. E a mídia lhe perguntava: “Mas, então, como é? É a favor da guerra?”. E ele respondeu: “Sou eu quem dirige!”. E nisso ficou. Eu também não voltei atrás e reafirmei que é preciso estar com a paz. Outro ponto sensível na política externa foi o Plano Colômbia. Foi necessária muita sabedoria para entender que o mandato constitucional e a soberania envolvem questões de interdependências, de solidariedade, sendo preciso diferenciar e ver muito claramente o conteúdo a ser dito sobre determinados temas. Nesse caso, fui muito enfática em meus pronunciamentos para não nos subordinarmos nem aos Estados Unidos, nem a Álvaro Uribe, o presidente da Colômbia. Queriam que o Equador qualificasse os guerrilheiros de terroristas e estavam pressionando o governo para que fizesse isso. Mas decidimos que esse é um assunto da Colômbia; não temos que qualificar qualquer setor que esteja em outro país. Essa foi a posição da chancelaria, no sentido de não acatar a linha de ação desejada pelos governos da Colômbia e dos Estados Unidos. Então, isso marcou. Como havia um apoio por parte dos cidadãos, não restou ao presidente senão a atitude de não dizer nada...

Nina Pacari – Uma falha que encontrei no ministério foi, por exemplo, o peso dado à cooperação inter­nacional. Se havia alguma coopera­ç ão internacional, era em função de projetos que envolviam tráfico de influência de um de­terminado grupo. Projetei uma estratégia de trabalhar com todas as províncias equatori­a nas. Preparamos uma ação para quatro anos com sete províncias por ano para visitar, tomar conhecimento das aspirações e planejar. Em função dessas demandas, seria orientada a cooperação internacional, e não em função de amigos, de influência e do setor unicamente de elites. Foi possível trabalhar com cinco províncias nos primeiros seis meses, no âmbito de cooperação internacional. Como exemplo, posso citar que o máximo que o Equador conseguiu em cooperação internacional, num ano inteiro, foram US$ 270 milhões, em 2002. Consegui subscrever, em 620 dias, em torno de US$ 350 milhões de cooperação internacional. Queríamos que não fossem projetos pontuais pequeninos, e sim pensando na dimensão do país, assim como em suas demandas. Trabalhar com essa linha, é claro, causou assombro a muitos porque não havia espaço que não tivesse sido considerado. Pensávamos no país e não havia grupos sobre os quais recaíssem privilégios. Foi uma experiência sumamente importante e, por isso, digo que desde a minha designação atuei com 40

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Diferenças políticas com o presidente Gutierrez não limitaram seu papel como chanceler?

E quanto à Área de Livre Comércio das Américas, a Alca? Nina Pacari – Sobre a Alca, vivi uma situação sui generis. Nossas organizações votavam “não”; os setores produtivos, “sim”. E como governo, o que fazer? Apoiar apenas um lado? O que implicava esse desacordo? Que não havia uma proposta do país? Que não havia consenso? Em muitas ocasiões nem uns, nem


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outros sabiam quais eram as implicações de um projeto de livre comércio. Então, o que fizemos foi dialogar com todos e não partir nem de uma determinada posição contrária nem favorável à Alca. Optamos por debater políticas internas muito além de um simples “sim ou não”. Tínhamos que zelar pelo desenvolvimento do país para não sermos somente um mundo de consumistas, tendência da Alca. Para chegar a isso, porém, teríamos na realidade que começar a dialogar. Então, havíamos planejado como estratégia dizer que no momento a Alca não é viável, que o Equador não possui as condições necessárias para ingressar no livre comércio. Seria preferível que procurássemos construir as alternativas adequadas para o país e que nesse entretempo pudéssemos orientar acordos com o Mercosul, acordos que se consolidassem com a Comunidade Andina. Respeitando os pronunciamentos que existiam, tentamos construir uma terceira possibilidade que se coadunasse com a realidade e as necessidades do país. Estávamos encaminhando uma série de diálogos com o Parlamento, os setores sociais e os setores produtivos, quando tivemos que abandonar o caso. Depois da nossa saída, o governo decidiu partir para um tratado de livre comércio bilateral, e não mais para o acordo coletivo das Américas, o que na realidade era nossa posição.

Como evitar que uma aliança com o governo interfira na autonomia de um movimento social? Nina Pacari – Defendemos que fazer parte do governo por acordo posterior às eleições é vetado. No entanto, nosso projeto político – implementar um programa político econômico que questione o modelo do Estado para que seja mais includente – requer que saibamos agir como seja possível. Não nos aliamos a Gutierrez depois da vitória, participamos de comum acordo no processo eleitoral, ganhamos e, por isso, formamos parte do governo. Mas, quando o aliado não cumpre com o prometido, somos definitivamente partidários da ruptura. Durante as negociações da Alca, por exemplo, sempre insisti que não era o fato de o movimento estar no governo que deveria influenciar a tomada de posição. Não cabia dizer o que convinha ao movimento ou influenciar para que não fosse contrário à Alca. Pelo contrário, insistia para que o movimento continuasse lutando com seu “Não à Alca”, ou não teríamos o respaldo para continuar avançando na construção de uma nova possibilidade.

E quanto aos desgastes dessa ruptura? Nina Pacari – Se o fato de fazer parte do governo debilitou as organizações sociais, o motivo foi que a tese aplicada pelo governo era diferente da que constava do discurso. Depois da ruptura, ficou claramente identificado quem era o incapaz, o inepto e que, por isso, ocorreu a ruptura. Mas, por outro lado, ficou-nos como lição que, para assumir custos em outra ocasião, não há de ser com aliados, e sim entre nós mesmos. É preciso estar bastante consciente do desgaste e dos custos políticos que existem numa parceria. Grave seria pensar que poderíamos sair imaculados. Se tivéssemos um aliado razoavelmente disposto a cumprir com o combinado, com mais visão, mais projeto político, haveria uma grande mobilidade social, seria a oportunidade para gerar as mudanças. Nenhum governo anterior do Equador teve a base social daquele momento, era a primeira vez que movimentos sociais chegavam ao poder.

Como está hoje a atuação do movimento? Nina Pacari – Nosso movimento está organizado dentro da perspectiva dos povos, não é uma agremiação artesanal, não luta por salários, não é setorial. Essa é a

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identidade dos povos. Portanto, aqueles que fazem uma leitura de que o movimento indígena está acabado estão equivocados. O projeto político que levamos avante mantém a perspectiva dos povos; vai além do que poderia ser qualquer agremiação ou qualquer sindicato. O movimento Pachakuti foi fundado para ser uma ferramenta, e não um objetivo. Sempre assumimos que, se essa ferramenta não se revelasse positiva para o movimento indígena ou se trouxesse dispersão e desestruturação orga­n iza­c ional, poderíamos voltar atrás. Simplesmente dissolveríamos o movimento político. Essa é uma questão que precisa ser esclarecida. Em 1996, quando criamos o movimento Pachakuti, delineamos a luta também dentro do terreno institucional, por meio da disputa das eleições nos governos locais, e pudemos, em territórios pequenos, materializar a proposta política de Estado plurinacional. O caráter includente, participativo, a questão de orientação dos recursos e de novas formas de desenvolvimento são as linhas gerais do que é um projeto político como nós concebemos. Desde então, há experiências sumamente importantes, que aprofundam uma verdadeira democracia. Desse ponto de vista constatamos que, no nível dos governos locais, o trabalho, embora mais lento, é mais sólido. Nesse processo, tivemos altos e baixos e não nos assustamos, pois isso é parte da dinâmica dos povos. Hoje o movimento continua trabalhando por uma reconstituição interna, e estamos fazendo uma avaliação de nossa participação política desde 1996. Não podemos avaliar apenas a partir da aliança

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com o governo, pois há outros fatores na lida política que o próprio sistema limita. Para podermos avançar mais, estamos em uma etapa de pré-avaliações, análises e estratégias a adotar. É preciso avaliar com responsabilidade, com serenidade. É preciso avaliar no âmbito da década, porque os impactos não podem ser medidos em dois ou três anos. Atualmente, o movimento continua articulado em âmbito nacional. Fizemos, como já disse, uma certa pausa para poder refletir e poder voltar e retomar as coisas que são necessárias nas lutas com os movimentos sociais. Esses foram os motivos que nos levaram a organizar a Cúpula Indígena, realizada dias antes do Fórum Social das Américas. Assim como há 14 anos, no ano de 1990, traçamos o primeiro encontro continental em Quito e delineamos diretrizes para a década, agora também seria necessário fazer isso e pela mesma razão. Nessa reunião de cúpula, além de haver denunciado e socializado as problemáticas, identificamos não só os eixos comuns que encontramos nas problemáticas, mas também estratégias comuns para combater em cada um de nossos países e, portanto, ter orientações continentais sobre como será a nossa ação. Conseqüentemente, o movimento continua com vitalidade, continua trabalhando, sobretudo em virtude dessa reconstituição interna, que é de grande importância. Em todo o continente, o movimento indígena, de maneira geral, está avançando com estratégias em sua luta – sejam elas extra-institucionais, com greves, paralisações, mobilizações, levantes, ou institucionais, o que, no caso do Equador, com os go­vernos locais, teve mais êxito.

Qual a proporção de indígenas no Equador? Nina Pacari – Há uma população representativa da população indígena no Equador, mas não há dados oficiais confiáveis. O movimento indígena julga que seja em torno de 40% da população, mas o Estado reconhece 20%. Houve um último censo, mas foi mal-interpretado e não incluíram as zonas rurais. Na Bolívia, por exemplo, a população indígena, em termos oficiais, é de 62%. Embora as organizações afirmem chegar a 80%, ter esse dado reconhecido pelo Estado é sumamente importante. Antes da última eleição, há quase dois anos, havia uma representação esporádica de indígenas. Agora os bolivianos têm em torno de 22


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representantes indígenas, num Congresso de cerca de 200 membros. Se olharmos a composição do país e dos novos atores, esse Congresso obviamente teria que ter outra representação. Assim como no caso do Equador, o Congresso tem que ter outra representação, onde não estejam presentes apenas as elites nem que seja unicamente a população dominante que esteja no Parlamento.

É possível comparar a discriminação que a população indígena sofre no Equador com a que a população negra sofre no Brasil? Nina Pacari – A c r e d i t o q u e s i m . A discriminação ocorre pelo fato de sermos diferentes – indígenas ou população negra. Somos discriminados pela cor, e o racismo é um instrumento de dominação. E o mais grave é que, embora a discriminação racial tenha sua origem nas elites, ao ser assumida em uma linguagem mais popular, torna-se uma prática cotidiana ainda mais injusta e mais dura e, por vezes, inconsciente. No Equador, por exemplo, é comum a população em geral, e não só as elites, revelar essa discriminação contra os indígenas. Em alguns casos, a discriminação assume feições modernas. A partir de 1996, quando irrompemos no cenário político, pudemos experimentar a nova forma de discriminação racial. Na época da colônia, discutia-se se os índios tinham alma ou não. Porém, naquele ano, e até nos últimos processos eleitorais, discutia-se se os indígenas seriam ou não capazes de desempenhar atividades políticas. Isso é discriminação! É como dizer: “Para começar, como índio, você não é capaz”. Um de nossos primeiros esforços foi romper com esses estereótipos e demonstrar não só capacidade, mas também que podemos ir mais longe que os outros. Foi um enorme desafio sermos aqueles que abriram o caminho. Entre os casos concretos que ocorreram, houve um indígena economista que se candidatou a prefeito e que, claro, representava um perigo para as elites brancas ou mestiças. Em seus discursos nas comunidades rurais, o can­didato das elites dizia: “Vo­cês não po­dem votar nesse indígena porque ele é um profissional, não é igual a vocês. Ele já pertence às elites”. Mas esse mesmo candidato das elites ia à zona urbana discursar para seus pares bran­cos e mestiços e dizia: “Não devem votar nele porque, mesmo sendo um profissional, é índio”. Felizmente,

isso não bastou para impedir a eleição desse indígena. Ele ganhou a eleição em Cota­cachi e teve uma gestão maravilhosa, de 1996 a 2000. Em 2000, foi reeleito com 80% dos votos e agora a população voltou a pedir que se candidate a um terceiro período contínuo. Podemos dizer que coube a nós romper com a discriminação e com o racismo, demonstrando com ação, com a prática, não só a capacidade e a eficiência, mas a coerência com a origem. E essa coerência com a origem implica não o fato de ser indígena, mas sim o fato de pertencer aos setores excluídos, aos setores pobres e de poder reagir a uma orientação sobre a necessidade de mudanças.

E quanto à população negra equatoriana, que representa apenas 1% da população total? Nina Pacari – São bastante discriminados pela cor. Quando começamos a traçar a proposta do projeto político e da construção de um Estado includente e plurinacional, estávamos cientes de que não se tratava apenas de indígenas; tínhamos que incluir também povos brancos, mestiços e também a população negra. Ain­d a na década de 80 e, sobretudo, no início da década de 90, organizamos contatos com os po­v os negros e verificamos que não havia processo organizativo. Havia muita dispersão e nós lhes mos­t ramos as eta\ de seu espaço ter­ritorial e definiram a necessidade de seu território chamar-se co­mar­ca. No ano 2000, apresentaram no Congresso Nacional uma proposta de reconhecimento dessas comar­ cas. Chegar a isso, partindo do que eram há

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20 anos, é muito. E progrediram também na formação de uma federação ou confederação do povo negro. Mais recentemente, em 1998, na Assembléia Nacional Constituinte, queríamos que houvesse também um capítulo específico para o povo negro, mais amplo e permanente. Mas um membro da assembléia – que não pertencia aos povos negros, mas que era negro e havia sido eleito por um partido político – acabou impedindo a criação desse capítulo. Segundo ele, agregar a expressão “afro-equatorianos” era o suficiente. Com isso, os artigos 83 e 84 – que rezam que os povos indígenas e afro-equatorianos são parte constitutiva – indicam que os direitos compreendidos dentro dos direitos dos povos indígenas também serão aplicados ao povo negro. Infelizmente, é muito pouco. Mas, de qualquer maneira, está na Constituição e creio que progrediram bastante e fizeram um grande trabalho para denunciar a discriminação contra a cor e recuperar sua auto-estima, baseados em sua identidade, o que é sumamente i mp orta n te; ma s , de fato, continua havendo discriminação. Na lista de candidaturas dos partidos políticos, raramente há um negro, o que significa que os partidos políticos não têm em sua perspectiva a variabilidade cultural ou a diversidade. Também continua havendo discriminação no mercado de trabalho, mas creio que já há uma maior consciência pelo menos quanto ao princípio da diversidade.

No Brasil há muita discussão sobre a implantação de cotas étnicas. Há no Equador alguma discussão

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semelhante para os povos indígenas e afrodescendentes? Nina Pacari – No Equador, não. Mas sei que existem experiências de cotas para povos indígenas nos Parlamentos da Colômbia e da Venezuela. No caso da Colômbia, são dois senadores por instituições nacionais especiais de povos indígenas e mais dois deputados provinciais por circunscrições especiais. No caso da Venezuela, como há uma câmara única, está indicado que serão três representantes. Ou seja, são as duas únicas Constituições em que há cotas étnicas para a representação no Parlamento das posições próprias do movimento indígena. A mesma coisa acontece no caso da Colômbia com a população negra: também há uma cota étnica de dois representantes no Senado – parece-me que é a única Constituição que tem a cota étnica em relação ao povo negro. No caso do Equador, chegamos à conclusão de que não era o caminho mais viável. Somos 12 nacionalidades indígenas, com idiomas diferentes. A quíchua é a maior, re­ pre­s entando 80%. Além das considerações de número, creio que no Parlamento deve estar representada pelo menos uma das 12 nacio­ nalidades e do movimento dos quí­c huas, levando em conta o número populacional e o número da representação no Parlamento. Então, se tivermos um representante por nacionalidade, deveria haver 12. Como os quíchuas são muito mais numerosos, deveria haver, pelo menos, de 15 a 20. Estabelecer cotas étnicas de representação não é viável porque conseguiríamos no máximo três ou quatro representações. Por conta disso, a estratégia que adotamos foi de participar criando um movimento político. O movimento Pachakuti disputa nos mesmos espaços de eleições gerais e já conseguimos eleger oito legisladores indígenas. Conseguimos mais do que se houvesse a cota. Porém, agora estamos trabalhando sobre como apresentar a proposta de uma nova distribuição distrital eleitoral. Na província de Chimborazo, por exemplo, há 73% de população indígena. Digamos que haja quatro distritos eleitorais; dois poderiam ser de povos indígenas. Então, estamos estudando no momento para ver se, em distritos eleitorais que considerem a variável étnico-cultural, poderá ser permitida uma maior garantia para que haja a representação mais ampla dos povos indígenas. Creio que nos próximos anos estaremos apresentando essa proposta


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como parte de uma reforma política.

Como está a discussão sobre soberania e segurança alimentares no movimento indígena? Nina Pacari – São pontos centrais do movimento indígena. Em 1994 fizemos uma mobilização para impedir a privatização das terras – aqui no Equador, por pressão da direita e pelas diretrizes do Banco Mundial e do FMI, pretenderam privatizar as terras comunitárias. Articulamos uma proposta não só de defesa da terra, mas do ponto de vista político do exercício do direito territorial ligado à segurança alimentar dos equato­r ianos. Argumentamos que não se trata de como garantir a alimentação apenas para os indígenas, e sim a segurança alimentar dos equatorianos. Outro elemento que temos insistido em debater é a cultura da alimentação. A pretexto de modernidade ou ajuda humanitária, promovem uma alimentação que não é própria das nossas culturas. Tentam substituir os cereais, as gramíneas, o talharim, o feijão, a ervilha e a lentilha por atum e enlatados, por exemplo. A segurança alimentar implica não só comer bem, não só ter uma alimentação nutritiva, mas também respeito aos códigos culturais. Toda vez que percebo um boom de comida vegetariana, internacional, moderna e sadia, logo penso: “e cara!”. Temos que examinar com cuidado toda essa dimensão da segurança alimentar. Não se trata apenas de dar comida a todos, e sim de garantir políticas direcionadas à produção. E isso tem a ver com políticas agrárias, com a qualidade da alimentação e também com a cosmovisão das culturas. São elementos que se entrecruzam e, por isso, em vez de falarmos apenas da segurança alimentar, também mencionamos a soberania alimentar.

O que pensa sobre os movimentos cocalero da Bolívia e piquetero da Argentina? Nina Pacari – No caso da Bolívia, o movimento cocalero está diretamente relacionado com povos primitivos e envolve conceitos delicados. Se para o mundo ocidental, a coca se constituiu no grande perigo, pelo processamento e pela industrialização, na cosmovisão dos povos indígenas não há delito. O uso do que para alguns povos é a planta sagrada, empregada até em rituais cerimoniais, faz parte consubstancial e inseparável ou indivisível da cosmovisão dos povos indígenas. Em relação a isso, na verdade, os verda-

deiros problemas não são debatidos porque escondem um grande negócio. A ilegalidade é uma bandeira, um escudo que protege os que realmente estão envolvidos com esse grande negócio. No século passado, na década de 30, o álcool era o foco do grande debate da ilegalidade até que foi legalizado – aí pode estar o grande cerne do problema. Creio que, pelo menos do ponto de vista da corrupção e dos povos indígenas, um debate sobre a legalização da coca diminuiria enormemente o grande negócio. A suposta luta contra o narcotráfico não deixa de ser um escudo para implementar a militarização, a subordinação, que envolve estratégias geopolíticas, especialmente em relação aos Estados Unidos, visando a uma hegemonia unipolar. É preciso dar outro sentido a esse debate e, por isso, apoiamos a luta que levam avante os povos indígenas da Bolívia, sobretudo na área dos cocaleros. No caso dos piqueteros, a luta também tem a ver com a condição humana, com a luta pelo trabalho, pelo salário e é inerente ao ser huma-

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no. Por isso, estou totalmente de acordo com a luta que estão empreendendo e que constitui a nova forma de emergência social. Têm que ser considerados como indivíduos, como atores, e não de acordo com as circunstâncias que têm que atender. Creio que são dimensões políticas que estão envolvidas e que alimentar esse outro conceito também traz grandes perspectivas à luta. O movimento dos piqueteros é tão combatido e ameaçado pelas estruturas e elites que a solidariedade é o mínimo que se pode oferecer.

E os movimentos sociais brasileiros? Nina Pacari – Temos relações com três atores brasileiros fundamentais: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o movimento indígena e o movimento de mulheres. Acompanhamos o MST e sabemos da realidade da luta dos camponeses. Sabemos da luta do movimento indígena pela defesa de seu patrimônio ancestral e da necessidade de obter títulos de suas terras; sabemos da luta para que se cumpra a Constituição e se conclua a demarcação das terras indígenas. No movimento das mulheres, nossa ligação é especialmente com organizações de mulheres discriminadas pela sua condição econômica.

E quanto ao governo Lula? Nina Pacari – Nossa relação é anterior

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ao governo Lula, é com o Partido dos Trabalhadores (PT) mesmo antes de ele estar no governo federal. Temos muita simpatia pelo PT, pela ação dos governos locais, toda a discussão do orçamento participativo, que são experiências locais extremamente importantes e que nos deram força porque sonhávamos em fazer o mesmo. Em muitos momentos pudemos partilhar experiências das realidades desses espaços no Brasil. Admiramos o PT que vem empreendendo uma luta há pelo menos 20 anos para chegar aonde chegou. Quanto ao presidente Lula, eu só o conheci pessoalmente depois da eleição, em um encontro oficial. Antes disso, porém, eu já o admirava pela sua trajetória. Como presidente, considero importante a forma como vem tratando a política internacional. Pelo menos externamente, Lula tem divulgado a necessidade de estender as fronteiras do Brasil de maneira solidária numa direção mais para o sul. Também os acordos firmados com a Argentina, por exemplo, chamam a atenção para esse protagonismo. Se Brasil e Argentina formarem o eixo para esquematizar o sul e procurem outras rotas como a China, poderão impedir o avanço de uma hegemonia unipolar. Não sei como isso repercute internamente, mas para fora, nos setores sociais, sobretudo em outros países como o nosso, temos muita esperança que os espaços oficiais possam produzir uma questão dessa natureza – que não signifique uma subordinação aos Estados Unidos. Quanto a questões de âmbito interno, não tenho como entrar em detalhes, salvo quanto às denúncias que nos chegaram das organizações indígenas sobre suas terras estarem sendo afetadas da mesma maneira como se fosse qualquer outro governo de direita. Nesse sentido nós também mandamos de nossa organização uma nota dirigida ao próprio presidente Lula, indicando nossa preocupação e exortando-o ao respeito às terras indígenas. E numa oportunidade que tivemos na reunião do Grupo do Rio, pudemos conversar e reiterar nossa preocupação. Mas, como nessa ocasião tinha havido uma só comunicação, corríamos o risco de não ter certeza se era verdade ou não. Ele me disse “vou ver”, “isso não deve acontecer”, isso em termos gerais. Mas depois houve um número maior de denúncias e, com o intuito de comunicar como era importante nossa preocupação, reiteramos nossa exortação quanto à necessidade de


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respeitar os direitos dos povos indígenas.

Como parte dessa política internacional, Lula viajou recentemente a países que flagrantemente desrespeitam os direitos humanos, como Cuba, Líbia, Índia e China. Isso não é preocupante? Nina Pacari – A política internacional é muito complexa. Se formos impor um purismo, não teremos relação com nenhum país; então é preciso vê-la como parte da estratégia política. O mundo das inter-relações é importante para que se produza um eixo multilateral. É uma questão muito complexa para o país e para os governantes e diria que há também a necessidade de abrir mercados e vender produtos. É preciso ver sua complexidade, mas também suas várias facetas. Creio que essas experiências nos ficam como lição. É preciso conhecer a proposta que está sendo apresentada, o objetivo traçado e estar preparado. Eu não me atreveria a julgar se um país fez bem ou mal, é preciso ver com clareza as estratégias adotadas, tendo sempre em mente os cidadãos do próprio país.

E a cooperação entre outros países da América Latina? Nina Pacari – Acredito em possibilidades de consolidar as perspectivas sul-sul. Por vezes se pensa que o grande negócio está nos Estados Unidos, é assim que pensam as elites do Equador. Quando ocorreu a grande crise de 1999, os estudos econômicos apontaram que, ao contrário do que se imaginava, nossos empresários encontraram seu nicho de mercado na América Central. Então, creio que o que precisamos é procurar estratégias para, por exemplo, fortalecer a Comunidade Andina. Deveria haver essa solidariedade por parte de governos e uma convicção quan­ to ao desenvolvimento de seu próprio país, mas isso pouco acontece. Porém, malgrado todas essas dificuldades, é preciso persistir e en­contrar outras possibilidades e alternativas, seja na Co­m uni­d a­d e Andina ou no Mer­c osul. É preciso abrir outros espaços, e não necessariamente pensar que o único salvador são os Estados Unidos e, por acreditar nisso, ficar em condição de subordinação. Isso é o que nós não admitimos. Como po­v o, acreditamos que no âmbito da so­b erania há lugar pa­ra abrir outros horizontes e outras pos­s ibilidades.

E quanto a Hugo Chávez? Nina Pacari – De acordo com as infor-

mações que tivemos por meio dos povos indígenas, em algumas reuniões realizadas no âmbito internacional e das quais participaram outros atores que não são necessariamente indígenas, Chávez é reconhecido pela população da classe média e do setor popular. É claro que as elites que concentraram o poder não cederiam nem permitiriam que lhes tirassem privilégios; isso tem que ficar muito claro. Na realidade, o próprio fato de os Estados Unidos estarem liderando o apoio aos opositores de Chávez, no mínimo, me deixa com uma suspeita. E, apenas vendo que os Estados Unidos estão com os opositores, sabemos de que lado devemos ficar.

Como avalia a postura do atual governo estadunidense em relação à América Latina? Nina Pacari – A política de Estado que os Estados Unidos sempre praticaram é: “A América para os ame­ricanos” e, por­tanto, todos os demais são subordinados a eles. É ne­ ocolonialismo pu­ro. Ao longo de todas estas centenas de anos e especialmente nas últimas décadas, essa postura foi mo­tivo de luta permanente. Essa mes­m a política imperialista de hegemonia adquiriu novos matizes com o discurso do terrorismo. São os fundamentalismos econômicos, os fundamentalismos que não deixam de ser essa supremacia racial hitleriana com a qual se aco­b ertam os que manipulam a política dos Estados Unidos, sobretudo sob a liderança de Bush. E creio que na medida da soberania, do respeito aos países, deveria existir outro tipo de relação entre os Estados. Mas, se os governantes são timoratos, pelo menos que

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possamos em cada um de nossos países ter a voz dos setores sociais para batalhar a necessária mudança.

E o que pensa sobre o regime político em Cuba? Nina Pacari – Cada povo e cada país têm que decidir o sistema que os definem. Não existe uma posição única a ser acatada, não há uma forma perfeita mesmo na democracia. Quando nos encontramos com os povos indígenas dos Estados Unidos, eles disseram: “Não há democracia no meu país porque os povos indígenas são discriminados e não têm seus direitos reconhecidos”. Então de que tipo de democracia se está falando? Por isso, creio que é preciso respeitar o que definem os povos com o destino de sua gente. Devemos respeitar o que possa significar para um povo o seu sistema econômico e político de convivência.

Quais seriam as principais conseqüências do uso do militarismo para resolver os conflitos sociais? Nina Pacari – O caráter militarista presente na América Latina é parte de um controle geopolítico, e não somente parte de uma repressão a possíveis explosões sociais. É uma estratégia de domínio do mundo. Nesse sentido, preocupa-me também a informação de que o sistema educacional dos Estados Unidos está ensinando que toda a Amazônia é americana. Isso pode implicar que daqui a 20 anos talvez ajam de acordo com essa presunção. Por isso nos preocupam as declarações de que a Amazônia é patrimônio da humanidade. Por que não dizem que Manhattan e Paris também são patrimônio

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da humanidade? Parece estar tudo em função dos interesses vorazes, não somente dos Estados Unidos, mas também das empresas transnacionais – militaristas privatizados que são as que lhe impõem inclusive esse modelo de Estado. Então, é parte de toda essa estratégia que concentra maiores hegemonias políticas, econômicas e, certamente, militaristas.

O Plano Colômbia é um exemplo disso? Nina Pacari – De fato, é parte de todo esse projeto. As estratégias apontam que há a intenção de se regionalizar o conflito colombiano, mas sabemos que uma saída política negociada é viável. Porém, como estão envolvidos outros interesses que se chocam com os das transnacionais, lançam mão de soluções militaristas. Por isso, a luta dos povos é tão crucial.

Mas quais seriam as alternativas? Nina Pacari – As alternativas existem e estão nos setores mobilizados. Precisamos nos compreender também como setores econômicos, e não apenas setores sociais. Não somos apenas o agente social, somos também atores econômicos e podemos influir nas mudanças que queremos. Algumas experiências debatidas, como o orçamento participativo, são estratégias que já estão funcionando. Por exemplo, dizem que somos os mais pobres dos mais pobres; é verdade, mas também temos possibilidades em nossas mãos. No caso do Equador, por exemplo, 64% da produção agrícola é interna; isso cobre o mercado interno do país. Então, não se trata de estarmos no zero. Não es­ta­mos no vácuo e depende das possibilidades de influência dos setores sociais para que haja uma maior participação da cidadania atuando nos eixos de pressão. Desde a parte mais baixa, precisamos pressionar para que sejam adotadas as mudanças que se fazem necessárias. Comparado com o que éramos há duas décadas, diríamos que progredimos muito. É certo que permanece a situação de extrema pobreza, mas, malgrado isso, há potencialidades. Há dez anos, seria difícil pensar que haveria um Fórum Social Mundial (FSM) ou um Fórum Social das Américas, que mobilizariam milhares de pessoas para dizer “não à guerra”. E não se trata apenas da ade­são de setores organizados, sabemos que há muitos indivíduos nesse processo. Esse é um tipo de pressão que ainda deixará muitos governantes com insônia. É


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uma grande tarefa, um grande trabalho para os setores organizados latino-americanos.

Como avalia o processo FSM?

Transcrição de fitas e tradução: Carlos Peixoto Fotos: Arquivo Ibase

Nina Pacari – O FSM está em permanente construção; haverá momentos de mais dissensões que em outros e talvez seja melhor que nos acalmemos, pois de repente as coisas funcionam bem e nos conformamos. Tudo depende de como reagimos, mas tudo é um processo. O FSM é também um espaço para compartilhar problemáticas, para socializar, mas também para construir horizontes e intercâmbios de estratégias operacionais. Não se trata de copiar simplesmente o que outras organizações mundo afora estão fazendo, mas de adaptar essas estratégias às nossas necessidades. É um grande espaço para compartilhar, para definir linhas de conteúdo político e também de ação operacional. Na realidade, não significa que a cada edição do FSM vamos nos reunir para fazer uma mobilização ou decidir como atuaremos em cada país. Não. Creio que são sempre boas oportunidades para tecermos diretrizes. Tanto para aqueles do país-sede do evento co­mo para os membros que vieram de outros lugares, fica a experiência de debater contribuições de diferentes atores participantes que só são oferecidas num espaço dessa natureza. Creio que o FSM é também um instrumento de pressão e de guerra psicológica que temos que desencadear com mais freqüência. Re­c or­do-me de que, quan­do o G-8 se reuniu, em 2001, na Itália, houve uma mobi­lização tal que tiveram que fazer a reunião em alto-mar. Esse é um significado e uma estratégia do FSM. Se houvesse uma mobilização social em todos os níveis, po­d e­r íamos deixar sem espaço aqueles que muito mal fizeram à humanidade, limitando-os, consumindo-os na pobreza, na exclusão e na desesperança. Creio, sim, como propõe o FSM, que um outro mundo é possível. E oxalá seja possível, para que o adotemos e para que ele permaneça nas esferas do poder. E me pergunto: assim como há uma globalização de um funda­m entalismo econômico, por que não globalizar a tarefa social?

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182 na cabeça Brasil: 182 anos de independência, diz a história, e 182 milhões de brasileiras e brasileiros vivos, diz o IBGE. Na conta do cronista doido, teríamos criado 1 milhão de nativos independentes por ano! Pena não ser essa a conta. Independência política não é um ato, mas um processo. Não se conta, mede ou pesa. Só pode ser qualificada. Ou monitorada: a nossa avança. Mas é passível de recuos súbitos... Toc, toc, toc! Já a população, como ela cresce! Dobramo-nos em 34 anos! Em eterna crise de identidade, somos ciclotímicos. Nossa auto-estima ora rasteja como minhoca envergonhada, ora voa soberba como águia. Sem saber o que realmente somos, não identificamos o que em nós é vício ou virtude. Não realizamos sequer que somos um grande país em população. A custo percebemos que temos extensão territorial continental – os coloridos mapas da infância ajudam na comparação visual de áreas e

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fronteiras. Mas o número de habitantes – verdade que números, quanto maiores, mais abstratos são – não ganha concretude. Os atuais 182 milhões de brasileiros e brasileiras são 18 vezes a população de Portugal, cinco vezes a da Argentina, quase o dobro da do Mé­xico! França, Itália e Inglaterra têm, cada um, um terço disso! Fruto de um pacto de elites, no grito “Independência ou morte” havia mais bravata retórica do que risco de morte. Nesses quase dois séculos desde aquela gritaria às plácidas margens do riacho Ipiranga, raramente exibimos ao mundo a altivez de nação, de fato, independente. Um povo que não lutou pela independência não sabe aquilatar o seu valor – dizem uns. Não vale nada a independência política para quem é economicamente dependente – dizem outros. É irrefutável: a independência se desvanece se a soberania é minada por dívidas em moeda estrangeira. E


vamos nós! Com a salsicha tecnológica diante dos olhos, queremos aviões a jato, imagens digitalizadas, televisão de alta definição, computadores de última geração e internet de banda larga para pagar as contas sem sair de casa. Deslumbrados ao orgasmo diante do caixa eletrônico, digitamos operações sofisticadas e, sem ganhar salário, fazemos as tarefas do bancário que perde o emprego – eis o monstruoso ornitorrinco. Cerca de 40 milhões vivem como se fossem suecos. Cento e quarenta milhões como se fossem africanos. E vamos nós! Na copa de 70, cantávamos: “Noventa milhões em ação, pra frente, Brasil do meu coração! De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão! Vamos juntos, vamos, pra frente, Brasil, salve a seleção!”. Ao militarizar o patriotismo, a ditadura furtou-nos o sentimento de amor à pátria que, sem outras formas de se expressar, se deslocou para o futebol. Os militares não vacilaram: patriotizaram o futebol! Até hoje, a tal “corrente pra frente” se incendeia nas disputas internacionais. O hino nacional infla

o verde-amarelismo que, açulado por marqueteiros, locutores e o sentimento de pátria fora do lugar, induz à arrogância, à xenofobia e à truculência. Pena que, enrolados na bandeira, somos apenas 182 milhões de fanáticos, não 182 milhões de cidadãos conscientes, nem 182 milhões de patriotas! Se fomos sempre vulneráveis ante o mundo, tampouco conseguimos criar, em 115 anos de República, um Estado democrático, capaz de realizar o mínimo de justiça, de equidade e de equanimidade. E também não somos livres ante o Estado, sequer temos assegurados os direitos de plena cidadania. A história mostra que avançamos com estabilidade de bêbado, fustigados pelas contradições entre o moderno e o arcaico, o público e o privado, o legal e o justo, com a maioria destituída puxando a minoria, que segura as rédeas. E lá vamos nós, um dos países mais ricos e mais belos do mundo, rumo aos 200 anos de independência e aos 200 milhões dos mais alegres e generosos habitantes do planeta! E vamos nós... Até quando?

Alcione Araújo alcionaraujo@uol.com.br

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Rio – A democracia vista de baixo Diversos(as) autores(as) Ibase 88 págs. Da sociedade brasileira do início do século XIX, dizia-se: “Vida social não existia, porque não havia sociedade; questões públicas tão pouco interessavam e mesmo não se conheciam; quando muito sabiam se havia paz ou guerra”. Esse relato do viajante inglês Lindley, citado por Capistrano de Abreu, fez o jornalista e diplomata Gilberto Amado observar, em 1919, no ensaio Grão de areia: “É claro que não era para essa gente que se ia iniciar o regime constitucional no Brasil. Era somente para as chamadas camadas superiores do país...”. “Essa gente”, “camadas superiores” e um Estado constitucional: eis a matéria bruta da qual se fez o Brasil. Rio – A democracia vista de baixo, livro publicado em julho de 2004 pelo Ibase, 52

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tem o objetivo de navegar pela sociabilidade “dessa gente”, investigar o seu lugar na cidade do Rio de Janeiro do início do século XXI e vasculhar os dilemas de sua organização e ação coletiva na luta por direitos e reconhecimento. É resultado dos trabalhos da Agenda Social Rio, grupo organizado para refletir e atuar em favelas produzindo políticas públicas locais, como se esclarece no artigo de Patrícia Lânes. O livro, no entanto, realiza muito mais. Em 88 páginas de linguagem clara, o público leitor adquire uma visão lúcida e crítica do que foi feito daquela argamassa novecentista. Depois de um século de história, olhar a luta “dessa gente” das favelas cariocas nos faz ver que “é do Estado que se trata”, como afirma Cândido Grzybowski, diretor do Ibase, na apresentação da publicação. No Brasil, o Estado foi ente ativo na construção da nação. O mercado – e se pode ver isso mais do que nunca em tempos neoliberais – nunca realizou sozinho a tarefa da integração. As “camadas superiores do país” lutam para manter o Estado sob seu controle, mas “essa gente” mostrou, desde cedo, a “sociedade dos de baixo”, e o Estado a incorporou de forma parcial e controlada, por meio dos direitos sociais da década de 1930. Já no início do século XX, a realidade do habitante do Rio de Janeiro, mão-de-obra barata para a riqueza da cidade, se torna incomodamente visível para o “cidadão” pelas mãos de um cronista como João do Rio. Durante décadas, a “cidade dominante” planejaria cinicamente o espaço urbano para remover do alcance de sua visão o sustentáculo das indústrias locais e a fonte dos serviços prestados às “camadas superiores”. Como diz Luiz Antonio Machado, a favela venceu. Mas, se ainda é segregada pelo “asfalto”, hoje também é fragmentada internamente. “O Rio não é mais a ‘cidade partida’”, diz em seu artigo o sociólogo Paulo Magalhães, usando


a alcunha criada por Zuenir Ventura para falar da oposição “morro/asfalto”. É uma “cidade fragmentada”, “guetificada”. “Há varias cidades, ou melhor, cidade nenhuma.” Resultado da globalização? Do crime e da violência? Não se espere um tratamento ingênuo de autores e autoras para essas questões, como se pode antever desde a introdução do livro, escrita por Itamar Silva e Moema Miranda. Em poucas páginas, Luiz Antonio Machado reconstrói, com uma clareza ímpar, o percurso das diferenças às políticas sociais, passando pelas hierarquias e pela democracia. Diferenças não são por si sós nefastas, mas, ao contrário, colorem as cidades. Associadas a relações de força, as diferenças são transformadas em hierarquias que constituem posições desiguais nas quais se distribuem as pessoas. O autor não se furta em chamá-las “superiores” e “inferiores”, optando por não amenizar a “iniqüidade que é tratar hierarquicamente as diferenças”. Numa democracia, pretende-se que a hierarquia seja posta em questão num conflito pacífico. A menos que se trate de uma democracia de fachada, a negociação das hierarquias não pode ser predeterminada pelas hierarquias vigentes, donde a intervenção do Estado sobre a vida privada sob a forma de política social se torne condição da negociação democrática e da expansão da cidadania. Democratizar o Estado é estabelecer o círculo virtuoso entre alargamento da esfera pública e a legitimidade que somente essa inclusão lhe pode conferir. Não bastasse a efetividade da democracia ser desafiada “de fora”, há a realidade interna da “violência urbana”. A explicação dos impasses da construção da cidadania nas favelas cariocas não se esgota na globalização nem na sociabilidade violenta. Moema Miranda e Paulo Magalhães reconhecem: “As políticas em curso têm limitações intrínsecas: são

incapazes de garantir a inclusão maciça da população brasileira no mercado e nas esferas de poder”. Assim, o acesso à “cidade de di­reitos” fica restrito aos “superiores”, que continuam a “canibalizar” o Estado em proveito particular. Por outro lado, o privilégio conferido a ações pontuais por meio de “parcerias” do Estado com a sociedade civil organizada se faz em detrimento de “políticas públicas” de caráter universalista, despolitizando as reivindicações e cooptando as lideranças locais. Em 1996, Herbet de Souza, Betinho, perguntava-se como poderia o Rio de Janeiro acolher as Olimpíadas em 2004, se a cidade não incorporava à cidadania boa parte dos(as) habitantes, em particular mo­r a­d o­r es(as) da favela. A indagação deu origem à Agenda Social Rio. As Olimpíadas não vieram, e estão aí os Jogos Pan-americanos em 2007. A reflexão proposta por Betinho há oito anos está na ordem do dia. Rio – A democracia vista de baixo é um mergulho na “gente” do Rio de Janeiro que não sucumbe às armadilhas da complexidade e da exaustão, sem perder em densidade e qualidade. De leitura acessível e agradável, destrincha as dificuldades da sociabilidade urbana, sem nos deixar esquecer que ver a democracia “de baixo” é ver a questão do Estado sob o ângulo da sociedade. Gisele Silva Araújo Professora de Sociologia da PUC-Rio gsaraujo@iuperj.br

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Fome: um tema proibido. Últimos escritos de Josué de Castro Anna Maria de Castro (Org.) Civilização Brasileira 240 págs. “Um dos maiores documentos humanos da história.” Desse modo é tratada a obra de Josué de Castro. Assim, parece que não há mais palavras para falar desse homem – que foi geógrafo, biólogo, sociólogo, médico e antropólogo – sem correr o risco de repetir elogios sobre sua humanidade e grandeza acrescidos de clareza e rigor científico de seus escritos. Pode-se, ainda, concluir, com algum pesar, que seus últimos escritos, datados das décadas de 1960 e 1970, sobre a fome, suas causas e conseqüências, continuam atuais. Publicado por ocasião dos 30 anos 54

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de sua morte, Fome: um tema proibido, já na quarta edição, traz artigos publicados na Europa durante os anos de exílio em Paris. A idéia de sua filha Anna Maria de Castro, doutora em Sociologia e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de reunir esses textos foi ensejada pelo momento mundial, no qual as questões alimentares e, principalmente, o fenômeno da fome estão na pauta dos debates políticos, econômicos e sociais. Mas do que trata esse livro, que aborda um tema, à primeira vista, superado? Aqui, refiro-me a sua característica de “tabu” ou de ser tema proibido, haja vista tudo o que vem sendo debatido na última década no Brasil sobre fome e, mais recentemente, sobre segurança alimentar e nutricional (SAN). Esse livro trata, sobretudo, de desnaturalizar o modelo (que adotamos ou que nos foi imposto) de desenvolvimento mundial, que impede uma grande parcela da humanidade de alcançar condições dignas de vida. Certamente, tal modelo – que dividiu o mundo entre as pessoas que comem e as que não comem, em grupos desenvolvidos e “subdesenvolvidos” – tem como suas maiores expressões a fome, a miséria e a desigualdade. Na primeira parte do livro, estão reunidos artigos repletos de elementos direcionados para a compreensão das causas da fome e suas conseqüências dramáticas para o desenvolvimento de uma nação, revelando a fome a partir de questões de raízes históricas e, portanto, estruturais. Josué de Castro acreditava que esse desvendamento da realidade e seu conhecimento propiciavam a criação de novas formas de pensar: “um pensamento novo, uma nova consciência política à base de uma nova escala de valores surgidos de uma nova experiência”. No fundo, os movimentos sociais, as organizações não-governamentais e as entidades envolvidas com as lutas sociais


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lutam, sobretudo, para mudar valores. Com essa abordagem, são construídos os argumentos apresentados na segunda parte do livro, dedicados ao desenvolvimento mundial. Nessa parte, a edu­cação popular pautada no conhecimento e na compreensão dos processos sociais é tida como a grande saída para a transformação social. O autor acredita que isso deverá consistir em facilitar progressivamente sua reestruturação econômica e social a partir de princípios mais humanitários, que coloquem a humanidade como centro do interesse social. Permeado pelos debates sobre desenvolvimento no Terceiro Mundo, na última parte, estão artigos que sinalizam para a necessidade de se apresentarem soluções conjuntas de caráter local, global e sustentável que tenham como princípio a idéia de desenvolvimento como sinônimo de ascensão humana. Os artigos certamente ajudam nesse exercício de desnaturalização dos cenários de fome, primeiro passo para de fato tornar a alimentação um direito humano e alcançar plenamente as tão almejadas segurança e soberania em termos de alimentação e nutrição. Aceitar esse exercício é reconhecer, mesmo com espanto, que ainda hoje a fome é um tema proibido. Josué de Castro alertou-nos para aquilo que ele classificou genialmente de “fome oculta”, ou seja, caracterizada por carências nutricionais. Segundo o autor, “existem duas maneiras de morrer de fome, não comer nada e definhar de ma­n eira vertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar em um regime de carências ou deficiências específicas capaz de provocar um estado que pode também conduzir a morte”. A maneira pela qual o autor compreendeu a fome possibilitou-nos refletir sobre o tema e ampliá-lo. Hoje, a fome está incorporada à noção de SAN, que, por sua

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vez, abrange variadas questões relacionadas à alimentação e à nutrição. Contudo, sem o receio de restringir essa noção à fome, afirma-se que insegurança alimentar e nutricional é, sobretudo, fome. Fome exprime falta, ausência, privação. Assim, chega-se à conclusão de que, se eu não como, sinto fome. Se eu como – mas pouco –, passo fome. Se como muito, mas não do modo que quero ou quando quero, tenho fome. Se como muito, quando eu quero, mas sem qualidade, também passo fome. Se me é imposto algum tipo de alimento que não compreendo como comida, também sinto fome. E, ainda, se o que eu como prejudica a alimentação de alguém ou algum grupo no presente ou em suas condições futuras de alimentação, também tenho fome. Com alguma reflexão, é possível perceber que há fome por toda parte, mas não visibilidade suficiente para que deixe de ser “oculta” e passe a se tornar um problema enfrentado em suas muitas expressões. Para além de resgatar alguns fundamentos essenciais das teorias sobre a fome, que estão na gênese da noção que se tem hoje de SAN, essa leitura fortalece valores pautados na solidariedade, na humanidade, na cidadania e na democracia. Valores que precisam ser traduzidos em formas de pensar e agir, essenciais no combate a inúmeras desigualdades vivenciadas diariamente e que, segundo o consagrado autor, de­v em guiar o modelo de desenvolvimento que almejamos. Vívian Braga Pesquisadora do Ibase

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Ibase opinião Maurício Santoro*

Onde você guarda o seu

racismo? “Uma campanha contra o racismo? Mas você acha que esse é um problema sério no Brasil? A questão é a desigualdade econômica, não a cor da pele.” Ouvi muita coisa desse tipo ao longo dos últimos meses, sempre que comentava com amigos e amigas que estava trabalhando com o tema da discriminação racial. A maior parte das pessoas que me diziam isso era composta de cientistas sociais, jornalistas e economistas que tinham preocupações com relação à sociedade brasileira e impecáveis credenciais progressistas. Por que a dificuldade em encarar o racismo? O movimento negro faz duras – e merecidas – críticas à elite política do Brasil pela recusa em encarar o racismo como um dos principais problemas nacionais. Durante muito tempo, essa questão foi encoberta pelo mito da democracia racial e pela crença de que o desenvolvimento econômico geraria emprego e oportunidades para todas as pessoas, independentemente da cor da pele. Felizmente, esse quadro de auto-ilusão já começou a mudar. O governo Lula inovou ao criar uma secretaria para a promoção da igualdade racial, e a discussão sobre cotas e ação afirmativa

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está no centro do debate público. O Ibase se junta a esse movimento participando do grupo Diálogos contra o Racismo e preparando uma campanha contra o racismo. É uma história que remonta a 2001. Durante os debates que antecederam a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, formou-se no Brasil uma rede de organizações da cidadania ativa que pretendia discutir esses temas. O grupo foi batizado como Diálogos contra o Racismo e realizou quatro encontros desde então. Uma das principais preocupações desse grupo é destacar que o combate ao racismo é importante para a população não-negra e não pode ficar restrito ao movimento negro. Dessa perspectiva, surgiu a idéia da criação de uma campanha contra a discriminação racial que tivesse como público-alvo essa população. O sociólogo Florestan Fernandes, pioneiro dos estudos sobre o tema, observou que, no Brasil, as pessoas não se acham precon­ ceituosas. De fato, uma recente pesquisa da


Fundação Perseu Abramo mostrou que 87% da população brasileira acredita que existe racismo no país, mas apenas 4% da população admite que é racista.1  O problema é sempre alheio ou, então, é atribuído à sociedade, de maneira abstrata. Seríamos um país de “racismo sem racistas”? Como abordar um problema que ninguém sequer admite que tem? A opção foi criar uma campanha provocadora, para incomodar e fazer pensar. O mote – “Onde você guarda o seu racismo?” – parte do pressuposto de que todas as pessoas são um pouco racistas. Podemos não ter atitudes que mostrem isso abertamente, mas, por alguma razão, mantemos a bizarra crença de que a cor da pele torna as pessoas melhores ou piores do que outras. A equipe da campanha foi a diversos locais do Rio de Janeiro – shoppings, praias, Feira de São Cristóvão, Lagoa Rodrigo de Freitas – e perguntou a mais de 200 pessoas onde guardavam seu racismo. As respostas foram transformadas em comerciais de TV e também serviram de base para a preparação de cartazes, folhetos e outdoors. As reações à pergunta seguiram quase todas o mesmo roteiro. Começaram com olhos arregalados e uma expressão de surpresa. Em seguida, a pessoa entrevistada garantia que não era racista, de jeito nenhum. Às vezes, até mostrava sua indignação com o problema da discriminação racial. Graças à habilidade da jornalista Helena Rocha, que conduziu as entrevistas, essa fachada de frases politicamente corretas ruiu diante dos exemplos concretos. O que você faria se estivesse numa rua escura e aparecesse um negro? E se seu filho namorasse uma negra? Ahn, bem... Após o constrangimento inicial, as pessoas começavam a se mostrar mais à vontade e a falar abertamente do racismo que continuam a guardar, mesmo que, em muitos casos, soubessem que é uma atitude errada. Houve quem dissesse que herdou esse comportamento de

pais, mães ou avós e, agora, lutava para deixar de lado esse legado familiar. Às vezes, a discriminação se manifesta em pequenos gestos e expressões que, à primeira vista, podem até parecer carinhosos. Por exemplo, foi comum a menção a um(a) ne­gro(a) que “foi criado(a) quase como alguém da família”. Em geral, um eufemismo que significa alguém que prestava serviços de faxina, arrumação e cozinha. Como observa a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Liv Sovik, uma das organizadoras da cam­panha, “quando no Brasil alguém diz que uma pessoa é ‘quase da família’, podemos ter certeza de que essa pessoa não é branca”. O mote da campanha é tão provocador que estimulou um debate entre as pessoas da equipe coordenadora. Nas reuniões de organização e nos bastidores das filmagens dos comerciais, nós nos perguntávamos onde guardamos nosso racismo – afinal, não somos melhores do que as pessoas que entrevistamos. Dessas discussões surgiu a idéia de fechar os anúncios e os cartazes com a frase “Jogue fora seu racismo”, pois ninguém gosta de guardar uma coisa ruim.

1 “Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil”. Pesquisa realizada em setembro e outubro de 2003 e disponível em <www.fpa.org.br/nop/racismo/preconceito.htm>.

Algumas respostas à pergunta “Onde você guarda o seu racismo?” • • • • • •

“Nas piadas.” “Não sou racista, mas a sociedade me obriga a ser.” “No passado, isso é algo da escravidão, não existe mais.” “Como é que vou ser racista se minha noiva é morena?” “No medo.” “Eles são muito piores. Quando conseguem um bom emprego, pisam na gente.” • “No inconsciente.” • “Não sou racista. Talvez eu simplesmente não goste de gente que faz coisas erradas.”

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opinião

Contudo, há quem considere que, embora existam casos de discriminação racial aqui e ali, o Brasil não é um país racista. Ou seja, para essas pessoas, é um problema ocasional, fruto de atitudes equivocadas de alguns indivíduos, mas que não tem impactos gerais na sociedade. Para elas, a questão é mesmo pobreza e desigualdade social. Desse modo, o fato de que a maioria da população pobre é formada por afrodescendentes não passaria de mera conseqüência dos quatro séculos da escravidão no Brasil, apesar de já terem se passado mais de cem anos desde a Abolição. No entanto, as estatísticas mostram que a cor importa.

Em números

2 PAIXÃO, Marcelo. A hipótese do desespero: a questão racial em tempos de frente popular. Observatório da Cidadania 2003: população pobre versus mercado. Rio de Janeiro: Ibase, 2003, p. 62. 3 TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003, p. 202 e 203. 4 HERINGER, Rosana (Org.). Sonhar o futuro, mudar o presente: diálogos contra o racismo, por uma estratégia de inclusão racial no Brasil. Rio de Janeiro: Ibase, 2002, p. 13. 5 TELLES, op. cit., p. 238.

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Um dos indicadores sociais mais respeitados do mundo é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Criado pelo Nobel de economia Amartya Sen, reúne dados sobre educação, esperança de vida e renda. O sociólogo Marcelo Paixão, coordenador do Observatório Afro-brasileiro e professor da UFRJ, calculou o IDH brasileiro separadamente, para a população branca e negra – todos os dados apresentados neste artigo incluem pre­tos(as) e par­dos(as) na categoria ne­gros(as), que são cerca de 45% dos(das) habitantes do país. O resultado é que, em 2001, o IDH da população branca foi de 0,820, ao passo que o da negra alcançou somente 0,712. A disparidade se mantém quando os dados são desagregados para as regiões brasileiras, tanto as mais ricas como as mais pobres. No Sul, por exemplo, os números são respectivamente 0,837 e 0,753. No Nordeste, 0,739 e 0,704. Para se ter uma idéia do que isso representa em termos de desigualdade, é preciso imaginar a realidade de países diferentes: “O IDH da população negra é equivalente ao que fica entre El Salvador e China, na 107a posição (em 175 nações)... Já a branca apresentou IDH equivalente ao Kuwait, 46a posição”.2 É comum o argumento de que a pobreza da população negra seria explicada pelo patamar educacional. Se afrodescendentes tivessem boa instrução formal, em escolas e universidades, conseguiriam melhorar de vida tanto quanto qualquer pessoa de pele clara. Isso se refletiria em salários mais altos e empregos de prestígio, incluindo posições de destaque nas Forças Armadas, na diplomacia, nas grandes empresas etc. Primeiro, os indicadores da desigualdade. Enquanto 11% da população branca completou um curso universitário no Brasil, entre a parcela negra esse percentual é de apenas 2,6%. No extremo

oposto da escala educacional, 7,5% dos brancos e brancas são analfabetos, mas o número cresce para cerca de 20% dos afrodescendentes.3 As estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, mesmo quando têm a mesma quantidade de anos de estudos da população branca, negros e negras ganham salários mais baixos. Com o ensino médio completo, um(a) branco(a) tem rendimento de R$ 870 contra R$ 655 de ne­gros(as). Para quem passou pelo funil do diploma universitário, esses valores são de R$ 2.003 e R$ 1.278.4 As dificuldades para negros e negras ascenderem no sistema educacional está ligada ao círculo vicioso da pobreza, mas também, de modo fundamental, à violência do racismo nas escolas: piadas, insultos, agressões, desvalorização sistemática da cultura e da história da população afrodescendente. Mas “normalmente é provável que ela [a discriminação] se concretize por meio de uma ‘profecia’ auto-realizável, que leva os professores a investirem mais nos estudantes brancos”.5  É fácil compreender os efeitos desses comportamentos na auto-estima de negros e negras, acostumados a ouvir desde criança que as grandes oportunidades na vida estão reservadas para pessoas de pele clara. Um padrão semelhante ocorre no mercado de trabalho. Ninguém ignora que anúncios de emprego que pedem “boa aparência” quase sempre significam a exclusão de afrodescendentes, sobretudo quando se trata de ambientes freqüentados pela elite, como shoppings, hotéis luxuosos ou lojas sofisticadas. A discriminação também se reflete em programas de TV e comerciais. Estrelas negras, como Taís Araújo e Camila Pitanga, são uma bela novidade na televisão brasileira, mas grande parte dos atores e atrizes afrodescendentes ainda está relegada a papéis de serviçais, como se sua cor fosse um pecado. O racismo também se manifesta no cotidiano das empresas. A exemplo do que acontece nas escolas, negros(as) sofrem com piadas e agressões e são, com freqüência, pre­teridos(as) nas promoções, com base num código implícito de que não é “apropriado” para uma grande empresa ter executivos(as) afrodescendentes em posições de comando. Segundo os dados do Balanço Social Ibase, negros(as) são apenas 13,7% do total de pessoal efetivo das empresas e ocupam somente 4,3% das posições de chefia. Co­mo afirma o coordenador do projeto, João Su­cu­pira: “O simples ato de informar a quantidade de negros e negras existente na empresa virou um pesadelo... Um empresário chegou a dizer que, se fosse incluído o item ‘número de trabalhadores negros’, ele


Onde você guarda o seu racismo?

não apoiaria a campanha pela divulgação do balanço social”.6 Além do trabalho e da escola, há outro campo no qual as conseqüências do racismo podem ser, literalmente, fatais. Trata-se da ação da polícia. “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, diz uma canção da banda Rappa. A cor da pele já é suficiente para indicar um “comportamento suspeito” e garantir revistas em batidas policiais, abordagens truculentas e até mesmo a morte. Flávio Sant’Ana, o dentista negro assassinado pela PM paulista em fevereiro de 2004, teria sido confundido com um ladrão se fosse louro e tivesse olhos azuis? O caso ganhou destaque por se tratar de uma vítima de classe média, mas qualquer adolescente negro(a), em especial se for morador(a) de favela ou de periferia, sabe que essa é apenas a ponta do iceberg, com a maioria dos casos submersos abaixo da linha da pobreza. No Brasil, o número de homicídios por ano é comparável ao de um país em guerra. Só em 2000, foram 40 mil assassinatos, a maioria de homens (90%) e concentrados na faixa etária de 15 a 24 anos (230 mortes por 100 mil habitantes, contra uma média nacional de 27). Desses assassinatos, grande parte é de negros, a ponto de que, para alguns especialistas, “o que está ocorrendo é um genocídio de jovens, e negros em particular”. Na faixa dos 14 aos 19 anos, os homicídios de negros são 17,2% superiores aos dos brancos.7  As estatísticas provam uma realidade incômoda. A raça importa. Não é apenas a condição socioeconômica, ser afrodescendente significa ser submetido(a) a discriminações brutais e sistemáticas, e não apenas ao racismo ocasional dessa ou daquela pessoa. Não é por acaso que governos autoritários, como foi a ditadura militar brasileira, têm dificuldades em lidar com a questão racial. Os generais de 1964 tiraram as perguntas relativas à cor da pele do Censo de 1970, porque sabiam que os resultados seriam contrários ao mito da democracia racial. Mesmo hoje, a maioria dos países latino-americanos deixa de fora dados sobre raça em seus censos, o que torna mais complexa a tarefa dos movimentos antidiscriminação. Sem informações precisas a respeito dos efeitos do racismo, é mais árduo o esforço para combatê-lo.

Políticas contra o racismo Apesar de todos os problemas, a luta contra o racismo no Brasil avançou muito ao longo dos últimos anos. Embora a legislação anti-racismo remonte à década de 1950 (Lei Afonso Arinos), é notoriamente difícil condenar alguém com base nela, até mesmo pela resistência de juízes

e juízas em aplicar penas rigorosas nesses casos. A Constituição de 1988 trouxe inovações, como o reconhecimento das terras de quilombos e a defesa dos “direitos difusos” por instituições como o Ministério Público, que se tornou um importante agente nas campanhas contra a discriminação racial. Também se consolidou, entre as organizações de cidadania ativa que atuam na área, o recurso de recorrer aos tribunais internacionais de direitos humanos, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). A ONU é um fórum especialmente relevante para o combate ao racismo. Durante décadas, a posição do Itamaraty foi a defesa da suposta “democracia racial” brasileira como um modelo de tolerância a ser adotado por outros países. Com o co­lapso desse mito, a diplomacia começou a mudar, embora num ritmo lento. O Brasil poderia ter sediado a Conferência Mundial contra o Racismo, que acabou ocorrendo na África do Sul, mas o governo FHC avaliou que seria alvo de ataques do movimento negro durante o evento. O medo de ver as mazelas nacionais expostas diante dos países desenvolvidos, um dos grandes horrores da elite brasileira, falou mais alto do que o compromisso com a justiça racial. Contudo, a estratégia oficial não adiantou muito. O movimento negro se mostrou competente e bem-articulado internacionalmente e utilizou a conferência de Durban para denunciar as condições aviltantes da população negra no Brasil. Nesse processo, foi vital o trabalho de uma série de cientistas sociais dedicados ao estudo do racismo (as notas deste artigo citam alguns desses homens e mulheres), cujas análises e pesquisas têm ajudado muito na compreensão da seriedade e da profundidade do problema.

6 SUCUPIRA, João. Balanço social: diversidade, participação e segurança do trabalho. Democracia Viva, Rio de Janeiro, jun./jul. 2004, p. 59. 7 LEMGRUBER, Julita; RAMOS, Silvia. Urban violence, public safety policies and responses from civil society. Social Watch 2004: fear and want. Montevidéu: Instituto del Tercer Mundo, 2004, p. 136. Ver também LEMGRUBER, Julita. Violência, omissão e insegurança pública: o pão nosso de cada dia. Disponível em: <www.cesec. ucam.br/publicacoes/textos. asp.> Acesso em: 3 set. 2004.

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opinião

* Maurício Santoro Pesquisador do Ibase

8 Devo esses esclarecimentos a uma palestra de Hédio Silva, doutor em Direito e diretor do Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdade (Ceert), no I Encontro Brasileiro de Bolsistas do Programa Internacional de Bolsas da Fundação Ford, ocorrido no Rio de Janeiro, em 16 de junho de 2004.

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O governo acabou recuando e estabelecendo, pela primeira vez, programas de ação afirmativa, como o do Ministério das Relações Exteriores, que concede bolsas para can­d i­d a­t os(as) afrodescendentes à carreira diplomática. O Ministério da Justiça foi mais longe e es­ta­beleceu cotas para negros(as) em seus pro­cessos de seleção de pessoal. Com a posse de Lula na Presidência da República, a questão racial ganhou importância, ocupando espaço iné­dito na agenda política brasileira. Em 21 de março de 2003, Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), que coordena a ação go­ver­ na­mental nessa área. No Congresso, circulam 25 projetos ligados à ação afirmativa, incluindo o Estatuto da Igualdade Racial. Essa proposta, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), abarca áreas como saúde, educação, mercado de trabalho e regulamentação de terras quilombolas. Cria ouvidorias para receber queixas ligadas à discriminação racial e um fundo para financiar políticas de ação afirmativa. A medida mais controversa adotada nos últimos anos é o estabelecimento de cotas para estudantes afrodescendentes nas universidades públicas, como aquelas implantadas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pela Universidade de Brasília (UnB), às vezes por iniciativa das assembléias legislativas estaduais, como no Rio de Janeiro. As críticas a esses projetos foram variadas. Para algumas pessoas, as cotas são uma tentativa de aplicar no Brasil um modelo pensado para a realidade dos Estados Unidos. Para outras, ferem o princípio do mérito na

entrada para a universidade e prejudicam principalmente a população branca e pobre. Há também quem afirme ser impossível dizer quem é negro(a) num país com a miscigenação do Brasil. A primeira objeção cai por terra quando se examina a tradição jurídica brasileira – as cotas são aplicadas desde a era Vargas, utilizadas na educação, serviço público, mercado de trabalho e, mais recentemente, até em partidos políticos para diversas categorias que enfrentam maiores dificuldades: deficientes, mulheres, filhos(as) de agricultores (que têm cotas em escolas de agronomia) e até para pessoas nascidas no Brasil, para se protegerem da concorrência de estrangeiros(as). Acordos diplomáticos como a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, de 1965, também determinam que sejam implantadas políticas que corrijam situações de discriminação racial.8 É evidente que cotas raciais são somente uma das medidas necessárias para diminuir a desigualdade e democratizar as universidades e é preciso pensar em políticas específicas também para brancos(as) pobres. Mas é injusto e cruel dizer à população negra que tenha paciência e espere mais algumas gerações até que se resolva permitir seu acesso ao ensino superior. Também é lógico que se devem planejar programas de acompanhamento para afrodescendentes que ingressem no terceiro grau por cotas, para que possam permanecer na universidade e recuperar eventuais deficiências de formação educacional. Também se afirma que não é fácil saber quem é negro(a) no Brasil. Isso é curioso, pois, quando se trata de discriminar, agredir e humilhar, sabe-se muitíssimo bem. O critério mais usado, em todo mundo, é o da auto-identificação. Considera-se afrodescendente quem assim se declara. Claro que podem ocorrer abusos e talvez, pela primeira vez na história brasileira, brancos(as) queiram se passar por negros(as) para obter vantagens. Com a prática e a experiência, serão formuladas maneiras de amenizar esses problemas. O debate sobre o racismo no Brasil mal começou e, com certeza, ficará muito melhor. Por ora, paremos por aqui. Para um país racista, mas supostamente sem racistas, este artigo já está de bom tamanho.


O Jornal da Cidadania é distribuído para pessoas que têm pouco ou nenhum acesso à informação crítica e comprometida com a democracia. Nossos leitores e leitoras são, especialmente, estudantes e professoras e professores de escolas públicas de todo o país. Mas também trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais, líderes comunitários, moradoras e moradores de comunidades pobres. São 60 mil exemplares distribuídos gratuitamente. Participe de mais esta iniciativa do Ibase. Você pode ajudar com contribuições financeiras ou organizando um núcleo de distribuição.

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Indicadores Leonardo Méllo *

Finda a asfixia, a cidadania tem nome e O Fórum Social Mundial (FSM) se constitui hoje no maior encontro da sociedade civil mundial organizada. Apenas no âmbito de uma perscrutação superficial, este artigo se propõe a trazer informações sobre os(as) participantes desse grande evento de promoção da cidadania, de resistência e contraposição à globalização. As informações apresentadas a seguir são fruto de uma consulta feita a mais de 3.500 pessoas das 115 mil presentes ao FSM da Índia (2004), com algumas comparações em relação ao que ocorreu em 2003 em Porto Alegre. Nos dois eventos, foram realizados trabalhos que pretendiam captar a identidade dos(as) participantes. Na Índia, quisemos criar elementos de comunicação daquele trabalho com o realizado anteriormente, mas, ao mesmo tempo, pretendemos avançar e apreender os temas e questões considerados importantes para a construção desse outro mundo que acreditamos ser possível.

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Nesse sentido, sugerimos uma consulta ao questionário entregue ao público durante o evento. No questionário, pedia-se que fossem indicadas questões temáticas que o(a) entrevistado(a) considerava de maior ou menor importância para a construção de um outro mundo (pág. 68). Dada a limitação que um artigo desta natureza impõe, escolhemos não utilizar todo o espaço apenas com nossa percepção e análise, mas outorgar ao público leitor a chance de elaborar suas próprias. Para tanto, serão reproduzidas tabelas originais dos dados tabulados e ponderados. Ao fim, esse trabalho poderá se constituir em um primeiro passo para que se possa construir uma sociologia do(a) participante, um perfil de quem são, quais suas convicções e o que querem as pessoas que concretizam aquilo que conhecemos como o maior encontro de lideranças sociais que já se viu. Todo o mundo está atento ao que se passa no Fórum, não apenas porque se constitui no mais importante contraponto ao Fórum Econômico Mundial (Davos), mas porque, se há um espaço onde aparecerão propostas e pessoas dispostas a discutir a construção de um outro mundo, de pensar uma alternativa àquilo que em Davos é apresentado como inevitável, esse espaço é o FSM. Para entendermos um pouco do FSM, é importante voltar nossa atenção ao processo que engendrou sua formação, em poucas palavras, saber o que o FSM é significa compreender o contexto no qual ele foi formado e o significado do próprio Fórum de Davos. Davos se propõe ser um espaço onde líderes mundiais se encontram para discutir diferentes visões da sociedade, as mudanças em curso ou esperadas, cenários para o qual o desenvolvimento econômico será levado, em que ocorre uma intensa troca de experiências e opiniões. Davos está para o mundo no seu potencial de influenciar governos e pessoas em uma medida que não há paralelo na órbita da sociedade civil organizada.

O Fórum Social Mundial, por sua vez, emerge na forma de um contraponto, catalisador do dissenso, ou melhor, uma caixa de ressonância para a diversidade de vozes que não é convidada a participar do Fórum de Davos, trazendo as pessoas de todo o mundo para que se encontrem e dialoguem. Não foi – e não tem sido – um grande Woodstock ou turismo social, como querem detratores(as). Ao contrário, tem sido o espaço de expressão de opiniões que se contrapõem à idéia de pensamento único, de fim da história, de que não há outra alternativa senão a de arcar com o ônus de um modelo de sociedade que provoca a deliberada exclusão de centenas de milhares de seres humanos por todo o mundo. De posse dos dados oficiais, esperamos poder cumprir com a promessa que ficara implícita no último artigo escrito sobre esse evento1 e trazer mais luzes sobre a quantidade e a qualidade da participação no FSM.

Participação diferenciada Estiveram presentes no FSM 2004 aproximadamente 115 mil pessoas, das quais quase 100 mil indianos(as), representando mais de cem países, cobrindo todos os continentes do globo. O mapa a seguir oferece uma noção da participação dos(as) delegados(as). É interessante notar o déficit de globalidade do Fórum quando olhamos a África ou os países do Leste Europeu. Por outro lado, países como França e Estados Unidos mais uma vez aparecem entre os dez mais. A captação das informações sobre a presença no Fórum não se deu apenas por meio da nacionalidade das pessoas. Em se tratando de um evento cujo maior objetivo foi justamente o de debater as alternativas à forma pela qual o mundo caminha e propor a discussão de temas e prioridades para a construção de um outro mundo, é importante considerar que a natureza da participação foi diferenciada. Nesse sentido, existia a possibilidade de as pessoas participarem como delegados(as), obser­va­dores(as) ou acampados(as).

1 Artigo de minha autoria em parceria com Silvana de Paula, publicado na Democracia Viva nº 20 (fev./mar. 2004).

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indicadores

Delegados(as) – Presença no FSM 2004 por nacionalidade

Países presentes: 106

Ausente

Total de delegados(as): 71.506

1–9 10 – 99 100 – 854 Índia, Paquistão e Nepal

Essas três formas de inserção, assim como no Brasil, identificavam as pessoas entre aquelas que teriam ido ao Fórum para debater propostas, preparadas e articuladas previamente para contribuir no debate da construção de um outro mundo, outras pessoas que naturalmente se sentiriam atraídas para conhecer o evento – o que atende a uma das preocupações da organização do Fórum (tornar o evento próximo da pessoa comum), além das pessoas comprometidas principalmente com os eventos e debates que ocorrem nas dependências do Acampamento da Juventude. Entre delegados(as), observadores(as) e acampados(as), a proporção da presença foi a seguinte (Tabela 1): Nesse ponto, há uma significativa diferença para o Fórum de Porto Alegre ocorrido em 2003, quando delegados(as) representavam 23% e acampados(as), 27%. Isso se explica na Índia pois os(as) responsáveis pela organização buscaram meios específicos para aumentar esse tipo de participação. O Fórum se propõe a ser um espaço de reflexão, troca de experiências e discussão de alternativas, mas, para tanto, são os(as) de­lega­dos(as)

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Democracia Viva Nº 24

que desempenham o papel mais importante. Sendo assim, centraremos nossa atenção sobre esse grupo, para tentar vislumbrar qual é o perfil do núcleo duro da militância contra a globalização na forma que conhecemos hoje. Tabela 1 Participação por categoria de inserção (em%) FSM 2003/2004 Porto Alegre 2003 Delegados(as)

Índia 2004

23 62

Observadores(as) 50 36 Acampados(as) 27 2

Delegados(as) corresponderam a mais de 70 mil pessoas, das quais quase 60 mil de indianos(as). Das demais nacionalidades nesse grupo, destacam-se entre os dez países mais presentes, cinco da própria região: Paquistão, Nepal, Bangladesh, Tibet e Sri Lanka, além da Índia. Os demais quatro são Brasil, Estados Unidos, França e Alemanha. É interessante lembrar que França e Estados Unidos também foram


Finda a asfixia, a cidadania tem nome e sobrenome

os países mais presentes no Brasil em 2003. A seguir, são apresentados os números relativos à presença de delegados(as) dos 20 países mais presentes (Tabela 2). Em relação às três principais formas de inserção, para todas as nacionalidades houve muito mais delegados(as) inscritos(as) do que observadores(as) e acampados(as), o que diferencia o Fórum da Índia do último ocorrido no Brasil, em que os(as) brasileiros(as) eram em sua maioria acampados(as), e os(as) estrangeiros(as), delegados(as).

Em relação ao sexo, delegados(as) possuíam uma proporção maior de homens (55,2%), inferior até do que asiáticos(as) (62,5%), e muito inferior aos dos demais países (45%). Essa maioria feminina aparecia também no acampamento (52% de mulheres), mas não entre obser­vado­ res(as) (48,3%), ou seja, quase um equilíbrio, se considerada a diferença dos demais grupos. No Fórum da Índia, houve o que já se esperava e que ocorria quando no Brasil se realizou o evento: uma maciça presença de pessoas do país-sede, indianos(as), seguido

Tabela 2 Total de delegados(as) País de moradia

Total

%

% sem Índia

Índia

59.817 83,7

Países asiáticos

5.298

7,4

45,3

Paquistão

1.249 1,7 10,7

Nepal

1.081 1,5 9,2

Bangladesh

785 1,1 6,7

Tibet

532 0,7 4,6

Sri Lanka

425

0,6

3,6

1.226

1,7

10,5

6.391

8,9

54,7

Demais países asiáticos Restante do mundo Brasil

854 1,2 7,3

Estados Unidos

772

França

661 0,9 5,7

1,1

6,6

Alemanha

471 0,7 4,0

Itália

411 0,6 3,5

Demais países Total

pelos países da região, em especial o Paquistão e o Nepal. Muitas outras questões foram feitas para que pudéssemos identificar as características e a inserção social dos(as) participantes. Não será possível expor todas neste espaço; portanto, privilegiaremos as relativas à idade, à formação educacional e à participação política. Quanto à escolaridade, ao contrário do que se previu e do que se falou durante o evento, houve maior participação de pessoas com mais anos de estudo na Índia. Isso se explica, em parte, pelo peso pequeno que a participação de pessoas acampadas teve nesse evento e pelo peso muito maior dos(as) delegados(as) (Tabela 3). A faixa etária aponta que um terço da participação foi de pessoas de 14 a 24 anos, outro terço de 25 a 34, e o restante com 35 anos ou mais, um peso superior ao verificado

3.222

4,5

27,6

71.506 100 100

no Fórum de 2003 (Tabela 4). Essa informação é coerente com a de escolaridade, em que há mais pessoas com formação superior, mestrado e doutorado. Por outro lado, a pequena Delegados(as) – Presença por continentes – exceto Índia (em %) – FSM 2004

Ásia 46% Europa 27% América do Norte 10% América do Sul 9% África 6% Oceania 2%

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indicadores

participação de pessoas no Acampamento da Juventude em 2004 é retratada na menor participação das faixas etárias mais jovens (31% em 2004 contra 37,3% em 2003). Finalmente, é interessante verificar a substantiva diferença da filiação a partidos políticos que esse Fórum aponta. A redução é muito grande, mesmo se consideramos a categoria de participação em que há maior filiação, a dos delegados(as) não-asiáticos(as), que é de 25,9% (Tabela 5). Sobre o engajamento político do(a) participante, outras perguntas foram feitas. Em primeiro lugar, a idéia foi medir o envolvimento das pessoas em movimentos/organizações soTabela 3 Escolaridade do público (em %) FSM 2003/2004

Ação e reação

Total 2003

Total 2004

Até 8 anos

4,7

9,5

9 a 12 anos

21

10,4

Superior incompleto

36,2

13,6

Superior completo

27,5

21

Mestrado ou doutorado

9,7

42,2

Outros – NS/NR*

0,9

3,3

Total

100 100

*não sabe/não respondeu

ciais, em seguida, medir a participação desses movimentos/organizações sociais em atividades prévias ao Fórum e seu envolvimento em redes. Em termos gerais (na média), aferimos uma pequena redução na intensidade com que as pessoas estariam se engajando, ou seja, menos pessoas participando de organizações ou movimentos sociais, com menor participação em atividades prévias ao Fórum e menor inserção em redes. Mas se olharmos com cuidado como se desdobram esses dados, veremos que em relação aos(às) delegados(as), na verdade houve Tabela 4 Faixa etária do público (em %) FSM 2003/2004 Total 2003

Total 2004

37,3

31

25 a 34 anos

25

32,1

35 a 44 anos

19,9

18,1

45 a 54 anos

12,6

13,1 5,4

14 a 24 anos

55 anos e mais

4,9

NS/NR*

0,3 0,3

Total

100 100

*não sabe/não respondeu

66

Democracia Viva Nº 24

um aumento significativo. O que “puxa” esse engajamento “para baixo” é a participação de observadores(as) e acampados(as). Estima-se que do total de observadores(as), aproximadamente 95% tenha sido de indianos(as). Só para dar um exemplo, sobre a questão da participação em eventos prévios ao Fórum, se considerarmos apenas os(as) delegados(as) não-asiáticos, verificamos um valor superior a 44%, contra 33,6% em 2003 (Tabelas 6, 7 e 8). Em geral, quando olhamos como o grupo de delegados(as) se desdobra, verificamos que há uma tendência a aumentar o engajamento quando passamos de delegados(as) indianos(as) para não-asiáticos(as), sendo os(as) asiáticos(as), em geral, um valor intermediário.

Uma parte importante do questionário, e da qual não poderíamos deixar de falar, são as perguntas abertas sobre os temas que deveriam ser tratados para a construção desse novo mundo postulado pelo processo do Fórum. Foram sugeridos 43 temas pré-definidos para que o(a) entrevistado(a) apontasse o grau de importância do mesmo na construção de um outro mundo (página 68). Como resultado, elaboramos um “mapa” de temas que os(as) participantes do Fórum vêem como prioritários, o qual pode ser lido e agregado pelo continente de origem do mesmo ou até seu maior ou menor engajamento político. Essas informações estão sendo processadas e em breve serão divulgadas. No entanto, imaginamos que, mesmo havendo muitas opções, é sempre bom dar espaço para a dúvida. Assim, foi pedido às pessoas entrevistadas que sugerissem temas que consideravam importantes, mas estavam ausentes da lista apresentada. Essa pergunta deu origem a 2.924 sugestões, a bem da verdade, nem todas exatamente novas. Essa foi a primeira experiência em que se perguntou às pessoas participantes do Fórum sua opinião sobre os temas discutidos, sobre as prioridades. As pessoas aproveitaram essa oportunidade e reagiram das mais variadas formas. A cada uma era permitido fazer sugestões de até três novos temas. Algumas deram até cinco palpites, mesmo tendo sido orientadas em contrário. Naturalmente, não foram todas sugestões novas, o que nos leva à questão seguinte. Em um trabalho em que mais de 3.800 pessoas são entrevistadas, quase a metade optou por fazer sugestões espontâneas, 1.400 pessoas, sendo o resultado um conjunto de


Finda a asfixia, a cidadania tem nome e sobrenome

Tabela 5 Filiação a partido político (em %) – FSM 2003/2004 Categorias selecionadas FSM 2004

Total 2003

Total 2004

Delegado indiano

Delegado asiático

Delegado não-asiático

Sim 35 12,7 13,5 23,4 25,9 Não 63 84,5 83,9 75,2 73,3 NS/NR* 3 2,8 2,7 1,4 0,8 Total

101 100

100

100

100

*não sabe/não respondeu

Tabela 6 Participação em organização/movimento social (em %) – FSM 2003/2004 Categorias selecionadas FSM 2004

Total 2003

Total 2004

Delegado indiano

Delegado asiático

Delegado não-asiático

Sim 64,9 60,4 70,2 69,4 80,6 Não 35,1 39,6 29,8 30,6 19,4 Total

100 100

100

100

100

Tabela 7 Participação em atividade prévia (em %) – FSM 2003/2004 Categorias selecionadas FSM 2004

Total 2003

Total 2004

Delegado indiano

Delegado asiático

Delegado não-asiático

Sim 33,6 29,1 32,8 37,7 44,5 Não 66,4 66 62,3 60,1 52,6 NS/NR* - 4,9 4,9 2,2 2,9 Total

100 100

100

100

100

*não sabe/não respondeu

Tabela 8 Participação de movimento/organi­zação social em redes (em %) FSM 2003/2004

Total 2003

Total 2004

Sim

33,6 29,1

Não

66,4 66

NS/NR* - 4,9 Total

100 100

*não sabe/não respondeu

quase 3 mil sugestões. Essas idéias refletem exatamente o que é a proposta do Fórum, não só para fora, de promover a inclusão, bem como em sua prática interna, de aproximação entre a organização e os(as) participantes, e dos(as) participantes entre si. Mas, como afirmamos anteriormente, delegados(as) seriam as pessoas com maior

compromisso em relação a essa formulação de alternativas e debate, o que se reflete também na maior intensidade pela qual esse grupo fez suas sugestões, 882 pessoas, mais do que a soma dos demais grupos. Qual a natureza das sugestões registradas, uma vez que em escala tão grande? Em primeiro lugar consideramos prudente que o público leitor conheça as opções disponíveis no questionário (pág. 68). Só assim obterá uma compreensão mais abrangente dos resultados que serão apresentados. Há pelo menos duas perspectivas que podemos adotar para perscrutar as informações geradas. A primeira é do conteúdo das sugestões, e a segunda é das ações que as pessoas entrevistadas gostariam que fossem tomadas. As idéias mais citadas, e que parecem refletir as preocupações dos(as) participantes, encontram-se ao lado (Tabela 9). Devemos res-

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indicadores

* Leonardo Méllo

saltar que essa tabulação é apenas uma referência das pessoas entrevistadas, e não a opinião de todas as pessoas presentes ao Fórum. O Fórum caminha a passos largos para a construção de mecanismos de consulta e de democracia interna que, cada vez mais, aproximam o evento do caminho de construção de consensos e de potencialização da discussão sobre as alternativas para a construção de um outro mundo. Esse trabalho que por ora apresentamos é apenas um arranhão na superfície daquilo que as pessoas pensam, acreditam, discutem. Esperamos ter a oportunidade de levar adiante esse trabalho e tornar pública toda a riqueza de dados que ajudará ou­tros(as) pesquisadores(as) a entender e construir esse outro mundo mais radicalmente democrático.

Coordenador do Ibase e da pesquisa FSM 2004, elaborada e aplicada com Silvana de Paula <lmello@ibase.br>

Tabela 9 Idéias/temas mais citados nas questões abertas – FSM 2004 Direito 337 Jovens 266 Mulher e gênero

216

Paz e guerra

163

Globalização 139 Sexualidade 138 Educação 137 Emprego 136 Meio ambiente

125

Temas locais

113

Negação (contra/não/anti)

107

Violência 105

Questão 16 da consulta Em resposta à globalização neoliberal, o Fórum Social Mundial afirma: “Um outro mundo é possível”. Para a construção desse outro mundo, indique o grau de importância que você atribui ao debate dos temas abaixo, de 1 a 5, sendo 1 o menos importante e 5 o mais importante. 1. Acesso à terra / Reforma agrária

21. Fundamentalismo / intolerância religiosa

2.

22. Gênero e eqüidade

Acesso, controle e democratização da informação

3. Água

23. Hiv-Aids

4. Alternativas ao neoliberalismo

24. Juventude, trabalho e participação

5. Bens públicos globais

25. Monopolização dos meios de comunicação

6. Combate à pobreza

26. Multiculturalismo

7. Comércio e financiamento internacionais (FMI, OMC, Banco Mundial)

27. Multilateralismo e a questão da ONU

8. Cooperação internacional / Relações sul-sul

29. Participação social e cultura cidadã

9. Corporações econômico-financeiras

30. Partidos políticos e outras formas de fazer política

10. Democracia representativa / Democracia participativa

68

28. Narcotráfico

31. Paz / Militarização / Guerra

11. Desenvolvimento e sustentabilidade

32. Povos indígenas

12. Desigualdade / Exclusão social

33. Preservação ambiental / Biodiversidade

13. Dhesca – direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais

34. Privatização (bens coletivos e serviços públicos)

14. Direito ao trabalho / Desemprego

36. Racismo / Intolerância étnica

15. Dívida

37. Segurança alimentar e nutricional

16. Economia solidária

38. Taxas Internacionais

17. Educação / Escola / Acesso ao conhecimento

39. Terrorismo

18. Energia: crise e alternativas

40. Transgênicos / Biotecnologias / Bioética

19. Erradicação da fome

41. Tribunal Internacional de Justiça

20. Estados nacionais / Ordem internacional

42. Valorização da diversidade

Democracia Viva Nº 24

35. Questão urbana


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cul c u lt u r a

Reinaldo Reis* e Rogério Chaves**

Um ano antes de 11 de setembro de 2001, uma loja que não existe mais, ao lado das torres gêmeas do World Trade Center. Essa instalação anuncia roupas americanas modernas (para trabalho) desde 1818. Inconscientemente ou não, está registrando sua contribuição para renovação do projeto liberal, ao propor uma atualização dos uniformes que serão usados por tra­ba­lha­dores: em lugar de cabeças, computadores

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Democracia Viva Nº 24


ura A arte

na educação

por uma

nova

cultura Qual o papel das artes nos tempos atuais? Qual o desafio da educação na evolução do indivíduo, da sociedade local e global? Há interseção possível entre as artes e a educação para a criação-transformação deste mundo em outro mais solidário? Sim, esse cruzamento já é fato em vários lugares, mesmo no Brasil. Iniciaremos esta reflexão usando um dos recursos da arte-educação, propondo um conjunto de imagens-conceito. Para situar historicamente a arte-educação no tempo e no espaço, destacamos alguns pontos importantes entre tantos que propiciaram o desenvolvimento da educação em arte no Brasil.

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c u lt u r a

Podemos citar os movimentos culturais do século XIX, eventos culturais e artísticos, como a criação da Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro, a passagem da missão francesa por estes trópicos, somada à participação de artistas europeus importantes, a Semana de Arte Moderna de 1922, a criação de universidades na década de 1930, o surgimento das bienais de arte de São Paulo a partir de 1951, os movimentos universitários ligados à cultura popular (décadas de 1950 e 1960), o movimento da contracultura (década de 1970), a constituição da pós-graduação em ensino de arte, a mobilização profissional e os debates sobre conceitos e me­todologias do ensino de arte realizado tanto em caráter nacional como internacional (década de 1980), a perseguição sofrida na década de 1990 para que o ensino da arte não constasse da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e só após muita luta foi possível reverter o problema. Podemos dizer que as práticas sociais de movimentos sociais estão ligadas ao ensino de arte e à produção de arte, desde a sua introdução e expansão por meio da educação formal e de outras experiências (museus, centros

culturais, escolas de arte, con­ser­vatórios, escolas formais, movimentos, par­t idos políticos etc). Acreditamos que são nesses espaços educacionais que se colocam o maior desafio, já que neles ocorrem a formação ou a deformação das pessoas. A arte-educação tende a cumprir um papel importante nas relações sociais e educacionais. Tirada de seu foco principal, visa a outros propósitos, como o desenvolvimento da cri­a­tividade de homens e mulheres para o mercado, relegando ques­tões fun­damentais, entre as quais o diálogo, valores éticos e respeito às diferenças. Na década de 1970, durante a ditadura militar – período conturbado da história brasileira que durou até 1984 –, ocorreu, no Brasil, a implantação da disciplina educação artística nas escolas, de acordo com a LDB 5.692/71. O caos, a falta de foco, os conflitos, o tecnicismo e a dependência cultural delinearam o ensino de arte nessa época. Passados 30 anos do fim do regime autoritário, ainda sofremos do mal da dependência cultural. Curiosamente, em relação ao ensino da arte, a história parece seguir um caminho um pouco diferente. Na década de 1980, retomaram-se os debates, mobilizações e lutas de pro­f es­s o­r es(as), pes­q uisa­d o­r es(as), estetas e artistas em prol da emancipação, ou seja, agentes que procuram co­laborar para a mudança da situação de penúria em que vive a educação pública e popular, buscando encontrar formas de a arte contribuir decisivamente para a autonomia e auto-estima. Isso é ir além

Jovens de Santa Catarina de­ monstram o seu futuro em uma oficina cultural

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A arte na educação por uma nova cultura

Um outdoor em Florianópolis, mas poderia estar em qualquer região do país. Ele anula as considerações regionais culturais e retrata jovens saudáveis de uma sociedade de ficção

dos medíocres limites impostos pela vexatória condição de “decoradores” e “decora­doras” de ambientes escolares para fins de comemorações cívicas e folclóricas. É importante lembrar que, em períodos anteriores da história, o povo brasileiro testemunhou movimentos artísticos que gestaram o momento atual de luta pelo reconhecimento das artes como instrumento de evolução histórica como já citado anteriormente.

Dependência e cultura de autodeterminação Como dependência cultural, consideramos o conjunto da dependência política, econômica, ideológica, tecnológica e militar vivida pelo Brasil, em plena Guerra Fria, sob forte influência norte-americana. Estamos no século XXI e ainda sofremos de forma crônica tais vulnerabilidades. A questão da dependência econômica

vem à tona com maior freqüência e destaque, porém consideramos a dependência ideológica a mais relevante, pois influencia e direciona as demais. A proposta não é hierarquizar essas dependências, pois elas se influenciam, mas localizar a problemática da nossa discussão na questão cultural. “A sociedade brasileira se encontra sob a hegemonia cultural estrangeira, em especial da produção cultural norte-americana, que decorre das estruturas de mercado que se criaram ao longo do tempo, devido à incompreensão, miopia e omissão dos governos em relação à política cultural, de comunicação e educação”, observou Samuel Guimarães.1 A educação traz, em si, possibilidades de lidar com a questão da dependência, pois atua diretamente no campo da cultura. Subestimar esse conhecimento é um erro cometido freqüentemente por profissionais de educação, dirigen-

1 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia. Rio de Janeiro: Con­tra­ponto, 2004.

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c u lt u r a

Uma bela imagem contrapõe estereótipos consagrados dos povos indígenas: uma mulher da aldeia Barra Velha, onde moradores(as) reconstroem sua língua pataxó. Compromissos de resgate da cultura indígena

2 Idem, ibidem.

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Democracia Viva Nº 24

tes e governantes, sem falar dos agentes que atuam em movimentos sociais, ONGs, sindicatos, igrejas, associações e até em empresas. Como estourar a bolha do iso­la­mento e experimentar o diálogo ho­ri­zontal, sem medo? Sabemos que a arte como conhecimento e linguagem ainda requer apro­fun­damentos teóricos e práticos. No Brasil, são poucos os departamentos acadêmicos criados a partir dos avanços e acúmulos alcançados, mas estamos no momento de considerar a arte nas discussões por au­to­de­ter­minação, soberania e diálogo. Vamos pinçar como exemplo a questão da visualidade. O que você sentiu interpretando as imagens-conceito que selecionamos? Hoje, sabemos que, de longe, o sentido da visão é cada vez mais utilizado na sociedade contemporânea. Há estudos que falam na exploração da visão em 80% em detrimento dos demais sentidos que giram em torno de 20%. Basta dar uma olhadela nas formas de comunicação ao nosso redor: outdoors, vídeo, cinema, televisão, Internet, sistema de telefonia celular, entre outras.

A maior parte das imagens que indivíduos formam sobre as experiências humanas individuais e coletivas e que constituem a base para as ações não decorre de sua experiência direta, mas sim são o resultado de informações que se transmitem pela mídia escrita e audiovisual e que utilizam recursos artísticos culturais. A maior parte dos valores sociais é construído, elaborado, transformado e destruído através da influência de um fluxo contínuo de manifestações culturais transmitidas pelos meios de comunicação e difundidas socialmente.2  Qual será, então, a forma pela qual podemos interferir propositivamente no universo da visualidade? Será que temos técnicas desenvolvidas para ler e interpretar as imagens que compõem o nosso atual universo visual? Estamos preparados para interpretar as influências que as imagens projetam em nós e na sociedade? Como estão sendo lidas essas imagens pelos vários agentes sociais? Qual


A arte na educação por uma nova cultura

é a representação formada por esse universo imagético? A pedagogia da pergunta (pedindo licença ao mestre-educador Paulo Freire) nos orienta e demonstra a gama de possibilidades de análises e caminhos da arte. Essas são questões encontradas em uma das suas esferas, as artes visuais. São perguntas que precisam ser respondidas. E são respostas que nós, arte-educadores, arte-educadoras e militantes culturais, estamos pre­p arados para buscar. A proposta de construção da identidade cultural de um povo, em princípio, pode parecer que é nadar contra a maré da mun­dialização (globalização é um conceito que consideramos advindo das forças de mercado). Porém, no processo de construção de identidade, encontra-se o poder de autodeterminação da sociedade. Desde a produção de manifestações culturais às atividades da imprensa (informação versus publicidade) até a elaboração científica e artística, destacamos em especial as manifestações visuais. Não é nosso desejo lidar de maneira

“Apropriação cultural: a cultura indígena amazônica é apropriada num relance para insinuar consciência, ética de preservação e legitimidade por parte da Coca-Cola, ‘refrigerante oficial da Mostra do Redescobrimento’”, Dan Baron

Diálogos íntimos proporcionados por uma oficina de arte-educação, na qual desafios de raça e gênero emergem no palco, por meio de processos de sensibilização para leitura e construção de uma nova cultura

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c u lt u r a

contrária à diversidade cultural e ao diálogo entre culturas. Queremos, sim, trabalhar com o conceito de mul­ti­c ulturalidade, 3 que considera todas as contribuições sem privilégio. Infelizmente, vivemos sob o domínio dos códigos europeus e do código branco norte-americano, frutos da dependência ideológica que se desdobra na dependência cultural. Na arte-educação, encontramos as ferramentas favoráveis para superar essa condição. A democratização da educação passa pela questão da cultura, tendo como eixo a multiculturalidade, considerada por movimentos da atualidade em todos os cantos do mundo. Assim, nas palavras de Ana Mae Barbosa, “somente uma educação que fortaleça a diversidade cultural pode ser entendida como democrática” .4 É nosso papel promover a diversidade

cultural e atingir toda a sociedade, estimulando as manifestações culturais, a formação do imaginário social e a auto-estima, quesitos indispensáveis a um projeto de desenvolvimento. Propomos, pois, a arte para apreender a realidade, desenvolver a percepção, a imaginação e a capacidade de análise, o que permitirá ao indivíduo relacionar-se com a realidade percebida e desenvolver a criatividade transformadora. Fica aqui o convite, forte abraço!

Relação horizontal: curtindo o processo de construção de um mosaico coletivo, a filha ensina à mãe; propostas de novas relações humanas 3 BARBOSA, Ana Mae. Leitura de mundo, letramento e alfabetização: diversidade cultural, etnia, gênero e sexualidade. São Paulo: Secretaria Municipal de Educação, 2003. (Caderno Temático de Formação I). 4 Idem, ibidem.

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A arte na educação por uma nova cultura

* Reinaldo Reis Arte-educador, graduando do Centro

Detalhe do mosaico “Terra é vida”, 20 mil peças, 6 m x 3,5 m. A qualidade do trabalho foi possível graças ao respeito do tempo próprio da comunidade envolvida

Universitário de Belas Artes. Leciona artes no ensino fundamental da rede pública na periferia de São Paulo.

** Rogério Chaves Sociólogo pela PUCSP, é editor do livro Alfabetização cultural – A luta íntima por uma nova humanidade, de Dan Baron

Jovens de um assentamento do MST da Escola Agrícola 25 de Maio (SC) construindo uma nova cultura dialógica, aprendendo e ensinando por meio de uma pedagogia de libertação, que deseja incluir todas as pessoas

As imagens-conceito presentes neste ar­tigo fazem parte do livro Alfabetização cultural – A luta íntima por uma no­va humanidade (Alfarrábio, 2004), do arte-educador Dan Baron. O livro traz as experiências de Baron no Brasil, com comunidades de sem-terras e de indígenas, organizações sindicais e universitárias. Documenta a construção coletiva de oito monumentos culturais em Santa Catarina, Pará, Bahia e São Paulo. Sua capa foi baseada na performance “Desenterrando o Fu­turo” ocorrida em Santa Catarina, motivada pela arte-educação e construída por jovens solidários(as) com a questão da terra como tema-chave para descolonização e emancipação.

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Entre especial

Por Begoña Fernández Gallego *

Maria Celeste e lideranças indígenas

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Margarida

maria celeste

e v i s ta

Qual é o sentimento mais forte: ser indígena ou brasileiro(a)? As dificuldades enfrentadas por uma aldeia indígena são semelhantes às de outras comunidades pobres no Brasil? Como os povos indígenas vêem os nãoindígenas? Nesta entrevista, duas mulheres que fugiram aos padrões seculares indígenas e resolveram estudar e trabalhar, analisam a situação desses povos sob a ótica de suas próprias trajetórias e de sua comunidade. Maria Celeste Pessoa Guimarães, 37 anos, agente de saúde, e Margarida Teixeira Gomes, 35 anos, professora de arte e cultura na escola diferenciada indígena, desde que nasceram, moram na Lagoa dos Tapebas II, no município de Caucaia, Ceará. Itapeba, em tupi-guarani, significa pedra chata, mas, por conta de um erro gráfico histórico, o nome acabou virando tapeba. Elas falam sobre saúde, educação, cultura, identidade, valores, trabalho, questão fundiária, violência e preconceitos, entre outros assuntos.

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especial

Qual é a importância da lagoa na sua vida?

índio é viver em contato com a natureza e fazer dela seu habitat. Mas sem deixar de se preparar para encarar a realidade lá fora, porque a sociedade é muito cruel com a gente. Sempre imagina que o índio tem que estar no mato, deve ser analfabeto e não precisa conhecer as leis. Nós temos que ser índios acima de tudo e estar preparados para encarar essa realidade. Temos que entender – e fazer com que a sociedade entenda – que o índio de hoje não é como o índio de 500 anos atrás, que era inocente, quando os não-índios chegaram, invadiram nosso país e tomaram tudo. A sociedade tem que entender que 500 anos se passaram e que, hoje, estamos nos preparando para receber o que a sociedade tem de bom a nos oferecer e rechaçar o que ela nos trouxer de ruim.

Maria Celeste – A lagoa é um ponto histórico, tem uma importância muito grande. Nossos antepassados falavam muito da Lagoa dos Tapebas. Naquela época, quando começamos a luta, meu avô dizia: “Minha filha, nós somos índios, somos tapebas, os verdadeiros donos”. Mas, por causa dos posseiros, começamos a abandoná-la. Hoje, dou a maior importância à lagoa porque é uma referência para toda a tribo.

O que significa ser uma pessoa indígena? Maria Celeste – Ser índio é sempre conhecer o meu valor, conhecer o meu povo e ser uma “pessoa” acima de tudo, ser a natureza, porque índio é natureza. Meus avós sempre diziam: “Ser índio é conhecer as nossas raízes, saber quem somos. Somos a natureza, somos um povo, um povo diferente acima de tudo”. Margarida – Ser índio, em primeiro lugar, significa me identificar como índio, ser identificada como índio pelo meu povo, pela minha aldeia e também ser reconhecida pela cidade em nosso entorno. Hoje, já melhorou por causa da nossa luta, mas, há uns dois anos, as pessoas nos reconheciam como índios e, ao mesmo tempo, negavam. Muitas vezes, a sociedade dizia que não existia índio, mas se contradizia quando era levada a pensar a questão da terra. Também é importante a gente saber que descende de um povo pré-colombiano. E é preciso estar em contato com a natureza, porque nós, índios, já vivemos da natureza, ela nos oferece tudo. O índio olha para a natureza e encontra seu remédio, ele se vê na natureza. Ser

O que querem dizer com o lema impresso em suas camisetas (“Eu posso ser quem você é sem deixar de ser quem sou”)?

lagoa dos Tapebas

Margarida – Estou querendo dizer que, acima de tudo, sou índia. Que posso ser advogada, professora, tudo que você é, sem deixar de ser o que eu sou, no caso, índia. As pessoas sempre vêem o índio como uma pessoa incapaz. Não somos incapazes, pelo contrário. Fomos capazes de conseguir chegar até hoje, brigando, lutando para defender nossa cultura, nossas terras, nossos interesses. Somos capazes até demais. É preciso lembrar que 500 anos não são 500 dias. Nós temos mais de 500 anos de invasão e estamos aqui mostrando que somos capazes de defender o que é nosso. E vamos estar aqui quantos anos forem necessários, lutando pela demarcação dessas terras, para que os nossos direitos sejam realmente cumpridos como está na Constituição Federal.

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Vocês se consideram brasileiras? Há diferença entre ser brasileira e ser índia? Maria Celeste – Nós somos do Brasil, moramos no Brasil, não há grande diferença, não. Sou do Brasil, sou uma índia brasileira. Margarida – Acredito que somos povos nativos. Não chegamos ao Brasil, foi o Brasil que chegou a nós, somos os verdadeiros donos da terra. Infelizmente, com a chegada do não-índio, a nossa terra virou Brasil, eles chegaram aqui e invadiram. Se alguém chegar à sua casa e tomar tudo que você tem, não estará descobrindo nada, estará invadindo. O Brasil não foi descoberto, foi invadido. E, no ca­so, mudaram até o nome, que não era Brasil. Eu me considero brasileira, mas faço parte de uma nação que já existia antes do Brasil. A sociedade não leva em conta os 10 mil anos, 20 mil anos


Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas

que já estávamos aqui. Trata o índio como se ele existisse aqui apenas há 500 anos, e isso não é verdade. Há 500 anos existe o Brasil, mas os índios já estavam aqui quando o Brasil chegou.

Vocês se sentem discriminadas pelo povo brasileiro não-índigena? Maria Celeste – Eu me sinto, sim, não por todos os brasileiros, mas por muitos. Hoje, estamos sendo reconhecidos por esse povo branco. Antigamente, o povo branco não queria fazer uma entrevista ou conversar com a gente. Os índios estavam escondidos, com medo da exploração que acontecia – e que ainda acontece. Mas hoje já está bem melhor. Margarida – A discriminação tem sido tão grande que fez com que o índio fundasse sua própria escola diferenciada, seu próprio magistério. Mas nada neste mundo é totalmente bom nem totalmente ruim. Essa discriminação fez com que o índio procurasse seu caminho, ou seja, essa história do magistério, da escola diferenciada, para manter a cultura. Se não existisse a discriminação, não seria preciso fundar escolas diferenciadas. Se tivessem respeito por nós, não seria preciso. Se o governo tivesse responsabilidade, não seria preciso lutar por algo que é direito nosso. Sabemos que está na Constituição, mas isso também foi uma luta. E, ainda que nosso direito esteja lá, a lei não é cumprida. Por isso, há muita discriminação.

Qual é o principal problema que essa discriminação traz para as populações indígenas? Maria Celeste – A pior coisa que o branco faz com o índio é não o aceitar do jeito que ele é. Nós sofremos muita discriminação, mas a pior é essa aí. Margarida – O não-índio é muito engraçado, não quis ver o índio nu, mas, agora, depois que o índio se habituou a andar vestido, quer ver. Ele também cobra muito a questão da língua. Nós falávamos nossa língua nativa, mas chegaram aqui e nos empurram o português. E agora querem que a gente fale tupi. A gente está falando tupi não para agradar o branco, mas para ter conhecimento da nossa língua. Hoje, podemos falar qualquer outra língua e continuar sendo índio. Existem muitas culturas, não existe cultura inferior ou superior, existem culturas diferentes. A real cultura brasileira é a cultura indígena. Posso dizer isso como índia e não tenho medo de que alguém me discrimine por isso, meus antepassados sofreram tanto, foram mortos por causa disso, mas eu digo. As outras culturas chegaram quando nós já

estávamos aqui, então a nossa cultura é a real cultura brasileira.

Poderia destacar uma preocupação principal dos povos indígenas hoje? Margarida – Uma das maiores preocupações hoje de todo povo indígena, não apenas dos tapebas, mas de todas as tribos do Ceará, é a questão da terra. É da terra que o índio sobrevive, tira o alimento, faz seu colar e seu cocar. Sem a fauna e a flora – e tudo isso vem com a terra –, o índio não tem como sobreviver. Índio sem terra é como peixe fora d’água.

A tribo tapeba tem ou já teve problema com fazendeiros? Margarida – Temos problemas com fazendeiros e com posseiros que, hoje, vivem dentro da área indígena. É um problema sério, não só com os fazendeiros, mas também com os políticos que estão atrás deles. O antigo prefeito, que atualmente é deputado federal, José Gerardo Arruda, é nosso inimigo número um. Eu falo isso, mesmo que ele me mate amanhã. Ele prega nas campanhas políticas e pega mais terras da gente em troca de voto. A sociedade nunca esclareceu a situação para nós, é lógico, porque também quer a terra do índio. Por isso, aceita e faz desse homem um santinho. Ele é o vilão, mas vira o santinho da história. Ele se candidata a prefeito da cidade, pega as terras dos índios e doa.

Vocês acham que as igrejas estão tentando colonizar os povos indígenas outra vez? Margarida – Com certeza, continuam fa-

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posto de saúde local

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zendo isso. Não conhecíamos o cristianismo, ele chegou sem pena e sem dó, dizendo o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E nos trouxe fome, miséria, sarampo, todas as doenças que não conhecíamos e passamos a conhecer. E tentaram tirar nossa cultura, empurraram o português goela abaixo. Tudo isso em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, não é? Com certeza, não fazem como antigamente, mas continuam tentando. Não só a Igreja Católica, mas todas as outras. Chegam às aldeias, chamam os índios para entrar nas igrejas e dizem que o ritual do índio é maldito, que o índio vai para o inferno se dançar o toré, que o índio não pode usar o cocar porque isso é coisa do passado. Ainda hoje isso acontece, infelizmente, é o cúmulo! Temos que ser muito bravos para continuar lutando contra isso.

Por que você quis ser agente de saúde? Maria Celeste – Meu sonho é ajudar a nossa comunidade. Mas as minhas condições para fazer isso eram mínimas. Só em 1991 tive essa oportunidade, quando surgiu em Caucaia o curso de agente de saúde. Foi quando vi que tinha oportunidade de ajudar meu povo. Desde pequena tenho vontade de ajudar na saúde. Sou agente indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), há mais de seis anos.

Poderia citar as doenças mais freqüentes na tribo? Maria Celeste – As principais doenças aqui são diarréia, doenças respiratórias e verminose. Isso tudo acontece porque não temos água encanada. Nossa água é da pedreira, e 82

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sabemos que está poluída. Há pouco tempo, apareceram casos de hepatite relacionados à água. Temos também problemas sérios entre os idosos, principalmente hipertensão e diabetes.

O que leva à grande incidência de alcoolismo entre os povos indígenas? Margarida – É a falta de perspectiva de vida, por não ter trabalho, não ter onde morar, não ter terra. Mas o alcoolismo não acontece só entre os índios, existe na maior parte do mundo. A pessoa se sente vulnerável e acaba indo para um caminho que muitas vezes não tem retorno. No nosso caso, não temos a terra em nossas mãos. Tudo isso é muito complicado para a cabeça do índio, saber que ele foi o verdadeiro dono da terra, dono de tudo, e hoje se sente como se fosse nada. Isso enfraquece o pensamento das pessoas que ficam sem perspectiva, não estão nem aí para nada, tanto faz morrer ou não.

Por que escolheu ser professora de uma escola diferenciada? Margarida – Meu trabalho é voltado para a cultura indígena. Não digo que tento resgatar essa cultura – porque a gente não resgata o que não existe –, mas temos uma cultura que precisa ser autovalorizada. Empenho todo meu tempo para que as crianças possam ter acesso ao repasse da cultura e possam trabalhar essa autovalorização. E também para que possam manter a identidade. Hoje, nós a mantemos, mas quem garante que daqui a 500 anos vamos conseguir, com toda essa globalização, toda essa sociedade que sempre tenta nos excluir? Temos que manter nossa identidade acima de tudo e, para isso, temos que trabalhar com as criancinhas, elas são o nosso futuro. Se não trabalharmos com elas hoje, amanhã, provavelmente, não poderá ser melhor do que hoje.

Quantas pessoas são alfabetizadas na aldeia? Margarida – Na comunidade, é fácil falar, mas, no geral, em todo o povo, é complicado, porque, mesmo estando no magistério, sabemos que há uma deficiência muito grande, principalmente entre jovens e adultos. A criança é mais palpável, é mais fácil trazê-la para a sala de aula, 90% estão em sala de aula. Já o adulto, dependendo da religião, vem com outra mentalidade, e fica difícil moldá-lo. Mas estamos tentando trazer as pessoas analfabetas para as escolas para ver se diminui o analfabetismo.

Qual é a principal fonte de renda


Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas

da tribo tapeba? Maria Celeste – Nossa principal fonte de renda é a agricultura, a plantação de mandioca, milho, feijão. A maioria dos índios trabalha como agricultor, outros empregos são mínimos. Margarida – Com a história do magistério, das escolas diferenciadas, a profissão de professor se fortaleceu. A comunidade tapeba, hoje, tem 90 professores em formação e cerca de 40 a 45 professores formados. Com a educação indígena, surgiram empregos de professores para os índios, o que não havia antes. Também surgiram os agentes de saúde indígenas, alguns trabalham. Fora isso, é como Celeste falou: plantação e artesanato. Existe a pesca, mas está escassa. E também há venda de frutas de época, alguns cultivam, levam para cidade e vendem. A caça é só para alimento mesmo, não gera renda. E agora está proibida aqui, porque os pássaros estavam acabando, e tivemos que barrar a pesca e a caça por um tempo para que eles se reproduzam, senão vão entrar em extinção, e não queremos que isso aconteça.

Como é a realidade das mulheres na tribo tapeba? Maria Celeste – Eu tenho a minha realidade, cada uma tem a sua. A maioria das mulheres vive em casa cuidando dos filhos e do marido. Muitas vezes, a mulher não tem emprego, e o marido também está desempregado. É uma realidade muito difícil, e muitas vezes os dois pegam o dinheirinho que arranjam para beber. Margarida – As mulheres, principalmente as tapebas, estão de parabéns em questão de luta, porque nós estamos na frente. Geralmente, quando se chega a uma aldeia, em qualquer situação, sempre se esperam homens na frente. Na aldeia, temos lideranças mulheres, lideranças homens, e trabalhamos divididos. Em relação a isso, o maior problema é cultural, é a história da maternidade, da mulher ter filho muito cedo. Mas, por ser cultural, é um problema e, ao mesmo tempo, uma solução. Em 1820, os tapebas eram uma tribo enorme. Passados quase dois séculos, contamos apenas com 5 mil índios. O que é problema pode ser a solução, porque, se as mulheres têm filhos muito cedo, significa que vão ter muitos filhos e assim a tribo vai aumentar. Por outro lado, é um problema, porque ela vai ser mãe muito cedo, e isso mexe com a estrutura física da mulher. A Funasa tentou fazer um controle, mas não funcionou. Elas realmente têm filho muito cedo. Outro problema é a questão do homem. Mesmo as mulheres estando à frente da luta,

acontece na aldeia de o homem ter três mulheres. Isso também é um problema cultural, vem de muito tempo, não é de agora. Era normal, antigamente, eles terem duas ou três mulheres, principalmente o cacique tinha várias mulheres, e isso ainda acontece. Não sei se para o não-índio é traição. Para o índio, é uma coisa natural. Mas penso no fato de as mulheres poderem também ter dois ou três homens, os direitos vão ter que ser iguais, porque estamos num país que se diz democrático e, fazendo parte das pessoas que habitam esse país, temos que seguir a democracia.

Você é casada? Já tem filhos? Margarida – Sou solteira até hoje, graças a Deus! Tenho dois filhos, não precisei casar para ter filhos. Eu me considero casada com meu trabalho. Sou considerada uma guerreira e, para conseguir um marido que queira viver ao meu lado e me segure para que eu não saia e viva na corrida, como eu vivo, vai ser difícil. Não era para eu estar aqui hoje, tive que viajar mais de 200 quilômetros para falar com você. Minha vida é uma correria, já me acostumei com isso. E os homens, independente de raça ou religião, têm medo de mulher assim. Eles têm medo porque, na verdade, as grandes idéias no mundo são das mulheres. Os homens às vezes ocultam. Acredito que, no dia em que o nosso país for governado por uma mulher, talvez seja a solução.

Todas as mulheres solteiras são respeitadas? Margarida – Não, acho que sou privilegiada por conta da luta, por ser uma guerreira, por batalhar muito pela comunidade. O povo vê a

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luta e me respeita por isso. Mas nem todas as mulheres solteiras têm o respeito que eu tenho. Aliás, o respeito que tenho como solteira nesta comunidade só eu mesma tenho. Se as outras solteiras saírem com um homem, vão ficar falando. Até de mim, se eu sair, vão falar. Mas eu procuro sempre ter cuidado para evitar a falação porque, com certeza, é uma discriminação.

Como agente de saúde, você sabe se dão entrada no posto de saúde mulheres com sinais de violência doméstica? Maria Celeste – Por conta de maus-tratos dos maridos? Isso aqui não existe, se eles estiverem bravos, são eles que apanham. Se bater na mulher, apanham também porque, na tribo, há uma diferença na nossa sociedade: todos somos família. Se alguém bate na mulher, vem tio, primo, sobrinha, avó, todo mundo. Tem que ter muito cuidado com briga na aldeia, porque, quando acontece, não morre um ou dois, morre muita gente, uma briga na aldeia envolve a aldeia toda. Há esse cuidado. Se houver algum caso de espancamento, é algo muito isolado. Não tenho conhecimento de nenhum.

Mas você me disse que, quando um homem espanca uma mulher aqui, isso é falado com naturalidade. Maria Celeste – Existem casos raros. No meu caso, levei um tiro do meu ex-marido. E hoje, graças a Deus, não vivo mais com ele, até perdi um olho. Ele é meu primo, é de uma família muito chegada à minha, e minha mãe, uma mulher que eu amo tanto, fez meu casamento com esse primo. Quando o problema

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aconteceu, ela achou melhor isolar o caso. Por isso, não dei parte, não levei para a delegacia. Com o tempo, comecei a ver que não dava mais para conviver com ele e acabei deixando-o.

Na sua aldeia, em um casamento, quando o homem quer manter relações sexuais e a mulher não quer, e mesmo assim a relação acontece, isso seria considerado estupro? Maria Celeste – Nesse caso, concordo que é estupro. Eu sofri isso muitas vezes com meu ex-marido, de ele querer e eu não, mas mesmo assim acabava acontecendo. Margarida – Acho que a mulher deve usar do homem quando ela o ama. Se ela não o ama, ele a procura e ela não quer, tem que fazer como a Celeste: tratar de sair. Não sei se era o caso, mas ela casou com um homem de quem ela não gostava porque a mãe quis. Eu fugi quando tinha 13 anos porque minha mãe também queria que eu me juntasse com outro homem e não aceitei. Eu não gostava. Se a pessoa não gosta e não sente vontade de ficar com a outra que quer impor isso, com certeza é um estupro.

Há casos de gravidez na adolescência, com a nãoresponsabilização dos meninos? Maria Celeste – Acontece, e não é apenas pela questão da gravidez. Muitas vezes, nem a menina nem o menino, com 12 ou 13 anos, estão preparados. Nem nós, adultos, estamos preparados para uma gravidez, quanto mais um adolescente. Em geral, o menino se sente coagido por conta da questão da responsabilidade e costuma sumir. Eu não acho que a mulher seja a coitadinha da história. Se ela vai, vai porque quer, os dois têm culpa. Com certeza, uma gravidez indesejada é um ato de irresponsabilidade das duas partes, do homem e da mulher.

Se você se casasse com um branco ou namorasse um, o que o resto da tribo acharia? Margarida – Qualquer outra índia poderia fazer isso, mas, no meu caso, não seria ignorado por causa da questão da luta. Não iriam aceitar uma guerreira casada com um branco, como aconteceu com uma colega minha. Ela casou com um branco, e, no Brasil inteiro, em todas as tribos, falavam dela. Isso não é de agora. Existe também a história de José de Alencar, da tal de Iracema com seu grande amor. Longe de mim ser uma Iracema, porque ela traiu o próprio povo para amar um branco. Eu jamais faria isso, nem que esse branco estivesse se desmanchando em ouro.


Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas

Apaixonar-se por um branco significa trair o povo indígena? Margarida – No caso da Iracema, sim. Ela traiu a ponto de se virar contra o próprio povo. Eu li a história. Mas, no meu caso, não sei. Não mando no meu coração, mas não me casaria com um não-índio.

Qual é seu principal sonho, como mulher, batalhadora e indígena? Maria Celeste – Meu principal sonho é ter nossas terras demarcadas e o nosso povo todo com condições de trabalho. Também sonho em ter nossa Farmácia Viva, com plantas nativas, nossos medicamentos. Sei que um dia esse sonho vai ser realizado dentro das comunidades indígenas. Margarida – Como sempre trabalho com o povo, meu sonho é coletivo. A questão da terra é, sem dúvida, um sonho coletivo. E também querer ver o povo independente, ter sua própria geração de renda, explorar, com respeito e responsabilidade, toda essa cultura, todos esses baús que temos dentro da comunidade

que hoje não são explorados, principalmente, em relação à cultura. No artesanato, por exemplo, por falta de contato com o povo lá fora, não há quem compre o que a gente produz, e isso é muito desestimulante. Um dos meus sonhos é ver esse povo ter autonomia, trabalhando e vivendo da sua própria cultura. Quando a gente fala de trabalho hoje, o índio sempre imagina sair e trabalhar lá fora. O meu sonho é mantê-lo dentro da comunidade para que possa explorar sua própria cultura e viver dela sem depender de trabalho externo.

* Begoña Fernández Gallego Cooperante espanhola no Ibase, é licenciada em Filosofia pela Universidad Autónoma de Madrid, Espanha Fotos da autora. Desenhos feitos por estudantes indígenas para a cartilha Memória viva dos índios Tapeba

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e s pa ç o a b e rt o Begoña Fernández Gallego1*

As tapebas:

uma história de luta e Na Grécia Antiga, mais precisamente na época dos pré-socráticos, o filósofo era (referindo-se ao termo etimologicamente, no seu sentido mais primitivo) aquele que observava de longe, mesmo estando presente. Era o emissário que tomava distância das coisas, ainda que delas participasse ativamente, tendo como uma das suas atividades principais a tarefa de ser “um tipo de embaixador”, convidado aos grandes eventos, como festas, rituais e celebrações. Assim, o teorós (termo grego que significa o observador, a saber, primeira denominação do ser filósofo) era uma espécie de antropólogo que visitava culturas alheias, participando delas, compartilhando com elas e, ao mesmo tempo – em virtude da distância que se impunha pelo 1 Com especial agradecimento a Diego e Ana Heredia e a Marcos Arcanjo e a sua equipe: porque, nos momentos de escuridão, sempre a luz resplandece.

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fato de pertencer a uma cultura diferente –, tendo um olhar agudo e uma perspectiva mais profunda das diversas situações que presenciava.


aberto O primeiro labor, para nós, filósofas e filósofos – constantes aprendizes da filosofia, sempre à procura do conhecimento ou na busca daquele saber que nos faça completar nosso eu carente que quer se assemelhar ao sumum conhecimento, seja qual for seu nome: mente divina, arquétipos transcendentais, idéias platônicas, paradigmas do pensamento cientista-ilustrado-racional etc. –, é a de observador(a) que sempre fica surpreso(a) e chocado(a) com as diferenças caracterizadoras das plurais formas de vida e, portanto, das diferentes cosmovisões com as quais se apreende o mundo. Sempre lembrando que não estamos aptos(as) a julgar, somos se não meros(as) espectadores(as) que temos como obrigação uma forma de agir, a saber, a empatia, e uma máxima que guie nosso olhar que se resume na seguinte frase: “faz da diferença uma igualdade”. Portanto, a tarefa ou atividade propriamente original do(a) filósofo(a) se manifesta com maior força e definição no trabalho de aprendizagem e troca intercultural do(a) antropólogo(a). Mas você, que está lendo este texto, deve estar, neste momento, se perguntando para que tanto rodeio (ainda que Hegel fale, na obra Fenomenologia do espírito, que “o rodeio é o caminho do espírito”), já que aquilo que esperava era, quase com certeza, mais um texto sobre indígenas, sendo o objetivo da autora escrever um artigo mais ou menos decente sobre as reivindicações dos povos indígenas – aqueles moradores anteriores (anteriores, sim, apesar de muitas pessoas terem problemas em reconhecer sua anterioridade e preferirem ignorar sua sobrevivência, depois de um lento, frio e trágico etnocídio ou até mesmo genocídio) daquela vasta extensão de terra, que depois se nomeou território brasileiro. Explicar qual é o objetivo a perseguir, a finalidade ou teleologia e importância de mais um texto sobre a situação atual das comunidades indígenas, assim como quais são as preocupações vitais dessas populações, pres­supõe uma descrição anterior do modus

operandis do agente externo e estranho que se aproxima dessa realidade. Agente que, de alguma forma, quer dar visibilidade a alguma coisa ignorada que considera importante e fundamental, de tal forma que aqui aparece o primeiro erro em que incorrem não poucos(as) jornalistas, antropólogos(as), sociólogos(as), filósofos(as) e demais hermeneutas do mundo: o grave pecado de projeção, a pressuposição das problemáticas que afetam o cotidiano de certa população. Sendo assim, a pergunta e a predisposição são “malévolas”, pois possuem intenções subjacentes: a pergunta prevê a resposta e dirige intencionalmente a conversa, de modo que a resposta já esteja dada de antemão. Então, vem a pergunta: para que mais um artigo sobre a questão indígena, quais são a novidade e a relevância? Lembremos: na acepção original, a pessoa dedicada à filosofia era aquela com a mente limpa de preconceitos (ou, ao menos, lutava contra eles), capaz de se surpreender, aberta à aprendizagem, observadora, crítica e disposta a trocar e compartir; ela não perguntava procurando uma resposta que verificasse ou confirmasse as argumentações que sustentavam seu petrificado columba­ rium de conceitos (com efeito, essa era a boa intenção dos pré-socráticos, ainda que depois, com Platão e sua arte da maiêutica, esse inocente labor antropofilosófico tenha sido envenenado). Assim, a única, a verdadeira motivação de uma matéria com essas características responde à necessidade de dar visibilidade àqueles grupos majoritariamente discriminados, isolados e esquecidos. Grupos que são afastados do processo de criação de um espaço democrático plausível, com os respectivos valores de justiça, igualdade e liberdade, ou, também, carentes do direito de representação real e factível como indivíduos que são pertencentes a um Estado democrático. Assim, as novidades, as relevâncias ou o interesse de mais um artigo sobre a questão indígena se resumiriam em algumas questões.

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e s pa ç o a b e rt o

Uma delas diz respeito ao fato extraordinário, em todos os seus sentidos, tanto no sentido da especialidade como no sentido de ser uma coisa fora do comum e da norma, regra ou generalidade que particulariza, diferencia e caracteriza a vida, a cotidianidade e a realidade das pessoas da tribo tapeba. O que diferencia essa tribo é a feminização do setor político e do setor produtivo – em outras palavras, a tomada do espaço público por parte das mulheres indígenas no seu labor de lideranças políticas e até espirituais (a figura do pajé, da liderança político-religiosa, sempre foi uma atividade vetada à maioria das mulheres nas tribos indígenas). Esse fato é alentador já que denota a saída da escuridão da domus, do cuidado da casa e tudo o que isso pressupõe: cuidado do lar, fogão e atividade procriadora, com a posterior obrigação própria da mulher, reduzida, mediante uma artimanha naturalista e essencialista, ao papel de mãe e educadora dos(as) filhos(as). Sem dúvida, até agora a mulher foi excluída do processo de construção da história. Sendo assim, o rumo dos avanços, das mudanças e das transformações sociais, políticas, econômicas, científicas e artísticas parecia pertencer exclusiva e privilegiadamente às mãos dos homens. Mas, mesmo que o ser feminino tenha sido visto ao longo da história como sujeito passivo, sempre foi motor fundamental das transformações históricas. Porém, em virtude da imposição da cultura patriarcal ou andro­cêntrica, essa participação foi velada, apagada, submetida, subjugada, ignorada e até literalmente aniquilada. Mas, pouco a pouco, já que a cultura falocêntrica infelizmente ainda não foi superada, a mulher está se tornando

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visível. E o caso das índias tapebas é um bom exemplo disso: lutando contra muitos fatores adversos, elas decidiram, de uma vez por todas, deixar a esfera imposta – a reprodutiva – para sair em direção ao luminoso espaço produtivo. Com efeito, não se pode falar da história da humanidade em masculino, do mesmo modo que da história do povo tapeba.

Paulatina tomada do espaço público Margarida Teixeira, professora de arte e cultura indígena, e Maria Celeste Pessoa, agente de saúde, são só uma mostra do que acontece no aldeamento tapeba, já que praticamente quase todas as lideranças políticas nas diferentes aldeias povoadas por tapebas são mulheres. Seu testemunho como mulheres batalhadoras, guerreiras (como elas mesmas se definem), que resistem a um legado que posiciona a mulher em um estado de subjugação, discriminação e ocultação, nos leva a refletir sobre a real e factível possibilidade de uma transformação na fatal concentração do poder ainda residente na figura masculina. As mulheres indígenas são objeto de dupla discriminação: primeiro como mulher e depois como indígena, ou, também, primeiro como indígena e depois como mulher (dependendo do contexto de atuação, há uma mudança no foco principal de discriminação). Por isso, a identidade feminina das tapebas é indissolúvel da formação e do reconhecimento da identidade étnica e racial. A partir da década de 1980, começou-se a resgatar a questão do recadastramento (quem é indígena?), assim como a questão da identidade indígena (o que significa pertencer a tal etnia?), em virtude de uma forte crise pela qual passava o povo indígena, a ponto de alguns membros renegarem seus traços e suas origens étnicas. Mas o processo de identidade feminina, assim como a tomada de consciência da perspectiva de gênero, se desenvolveu de forma bem diferente. Apesar dos logros e das conquistas das mulheres, a resistência masculina é forte. A luta das mulheres é diária, mas suas forças são inesgotáveis. É difícil ser indígena, principalmente no Ceará (estado onde se fala que não existem indígenas), mais ainda sendo mulher e pior ainda sendo mulher com consciência do seu ser feminino e da responsabilidade que isso representa.


As tapebas: uma história de luta e resistência

Escola diferenciada: resgate da cultura indígena A iniciativa inovadora de criação do magistério indígena e de seu desdobramento nas escolas diferenciadas (coordenadas obrigatoriamente por indígenas e dirigida a seus povos) supõe a criação de um espaço privilegiado de delimitação da identidade indígena. Esse espaço deve servir para revalorização e reafirmação da cultura, do idioma (nesse caso, o tupi-guarani2, da religião e costumes do povo indígena – injustamente exterminado ao longo da história brasileira por diferentes grupos: forças políticas, religiosas e pressões sociais que, na maioria dos casos, respondiam a interesses econômicos e territoriais), que representam, mais uma vez, uma perversa ação que remonta a um novo etnocídio, umas vezes velado, oculto, e outras, óbvio, explícito. É fundamental lembrar o processo de desaparecimento do idioma materno dos povos indígenas, assim como questionar a relevância do resgate das línguas indígenas em geral. A partir de 1757, por meio da legislação indígena implantada com o Diretório Pombalino, proíbe-se o uso de línguas indígenas, tornando obrigatório o uso da língua portuguesa nas escolas e nos povoados. Tal ação tinha como objetivo não só fazer desaparecer as línguas indígenas, mas também aniquilar uma determinada forma de apreender e conceitualizar o mundo, ou seja, fazer desaparecer as comunidades indígenas, com suas visões peculiares do mundo. Atualmente, nos diferentes aldeamentos povoados por tapebas, pouquíssimas pessoas falam tupi-guarani, só as mais velhas lembram de algumas expressões ou palavras. Um dos grandes desafios enfrentados por esses povos é o de encontrar professores e professoras que possam ensinar a língua tupi, impedindo que ela caia no esquecimento e também que mais uma língua indígena esteja fadada ao desaparecimento. As palavras da professora indígena Margarida Teixeira Gomes resumem, perfeitamente, a importância da criação do magistério indígena e das escolas diferenciadas:

A história da nossa escola foi publicada em uma coletânea escrita pelo povo tapeba, Memória viva dos tapeba: terra demarcada, vida garantida: “Foi assim que nós, indígenas, resolvemos fazer alguma coisa por nós mesmos, vimos a necessidade de termos uma escola, na qual o principal objetivo seria trabalhar a autovalorização do índio, preparando-o para enfrentar a sociedade lá fora, resgatando

Fortalecer a participação das mulheres na política é uma prioridade fundamental nesta nova era em que se procura (ou ao menos se diz que se procura) a representatividade do total da população. Assim, fomentar a liderança das mulheres para assegurar o status que dispõem de igualdade, para fazer ouvir a sua voz e

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toda uma cultura que nunca deixou de existir, mas que se encontrava um pouco fechada, porque não era fácil ser índio no Ceará, principalmente em Caucaia, onde a maior oposição aos índios tapebas era e continua sendo os políticos, empresários, latifundiários e empreendedores. Começamos nossa luta pela escola diferenciada em 1990, pois a mesma existia embaixo de um pé de cajueiro, sendo construído um espaço físico em 1992. Começamos esta luta porque a discriminação contribuía para que o analfabetismo reinasse em nosso meio. Acreditávamos que essa escola viesse a fortalecer a nossa luta”. Diante da visão exótica e romântica que se conforma no imaginário popular – índios e índias pelados e não-civilizados, felizes na sua ignorância, ausentes e afastados do processo de “evolução” da nossa sociedade tecnocrática e, portanto, dos suportes técnicos e avanços científicos da era pós-moderna –, encontramo-nos diante de uma realidade bem diferente: a comunidade indígena, e mais concretamente o aldeamento do povo tapeba, baseia-se e articula-se em torno de valores humanos fortes e sólidos, misturados com riquezas naturais, culturais e artísticas que manifestam, mais uma vez, o esquecimento do conjunto social e o esvaziamento de valores da cultura contemporânea. Se pararmos para pensar, a valorização da educação e a busca dos direitos da mulher são dois itens fundamentais no reconhecimento da sociedade moderna de pontos de desenvolvimento e evolução de uma sociedade. Então, como é possível ainda olhar os povos indígenas com superioridade, acusando-os de serem arcaicos, primitivos e recalcitrantes? Direta ou indiretamente, sejam realmente procuradas ou simplesmente encontradas sem determinação prévia, como talvez seja o caso, deixando espaço à ação, a procura da igualdade de gênero e a reafirmação cultural por meio da revalorização da educação são mostras do estado evolutivo da tribo indígena tapeba.

contribuir na configuração das políticas que afetam as suas vidas ainda é uma tarefa a realizar: as mulheres continuam amplamente sub-representadas nas esferas políticas nacional, estaduais e municipais e, em âmbito mundial, ocupam apenas 15% dos postos nos parlamentos nacionais. A eqüidade de gênero só se construirá de forma certeira quando as

Aberto 2 Embora o termo tupi-guarani refira-se a uma família lingüística do tronco tupi e não a uma língua propriamente, é assim que integrantes da tribo tapeba denominam a língua falada por essa comunidade.

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*Begoña Fernández Gallego Cooperante espanhola no Ibase, é licenciada em Filosofia pela Universidad Autónoma de Madrid, Espanha

mulheres receberem apoio como candidatas e votantes, quando forem viabilizadas propostas de políticas públicas que reconheçam a importância da igualdade de direitos e dos direitos específicos de gênero – traduzindo, o grande sonho do empoderamento da mulher e da realização dos seus direitos e suas aspirações.

A pedra chata Depois de compartilhar uma maravilhosa experiência com a aconchegante, generosa e transparente tribo tapeba, o que fica cla­ro é que a luta se desenvolveu e se desenvolve por meio de detalhes sutis, na maioria das vezes sub­valo­rizados ou que passam despercebidos. Portanto, a luta é diária, ou melhor, é uma luta do cotidiano e pelo cotidiano. Porém, nessa troca de experiências, idéias e saberes vitais, também fica claro, a partir dos depoimentos das índias e dos índios tapebas, que a luta se compõe de pessoas que, unidas e movidas por um interesse comum e coletivo, derramam toda a sua energia para mudar, trans­formar e inverter um passado injusto e construir, mediante um paulatino processo de transformação, uma realidade mais favorável, sustentável e melhor, isto é, adequada às necessidades reais e dando respostas às precariedades que ainda estão por ser superadas (por exemplo, a questão fundiária). Segundo as pes­­soas mais velhas da tribo tapeba, seu povo se originou principalmente de três etnias: poti­guaras (que vivem na Paraíba), cariris (que moram com outra parte do povo potiguara na região de Crateús) e tremembés (que residem no município

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de Itarema). O povo tapeba procurava terras férteis e de difícil acesso. Depois de muito tempo e de uma busca exaustiva, esse grupo chegou a uma grande, paradisíaca e bela lagoa, com águas límpidas e cristalinas. O entorno era exuberante: carnaubais, árvores frutíferas, pássaros e animais que moravam em liberdade e, no meio de tudo isso, havia uma grande lagoa com um peculiar elemento da natureza que nomearia a tribo tapeba: uma pedra chata, símbolo real que, misteriosamente, um dia desapareceria. Como viram tanta beleza e riqueza, esses índios resolveram morar às margens dessa lagoa. Eles mesmos batizaram a lagoa e sua nova tribo de Tapeba (pedra chata), pois temiam que um tempo depois os brancos chegassem novamente e os extermi­ nassem. Assim, o no­me tapeba iria reinar eternamente naquele lugar. (Ricardo Weiba N. Costa, professor tapeba) As índias e os índios tapebas acreditam na sua luta, porém o mais importante de tudo é que demonstram que agem com coerência – premissa fundamental que talvez tome como base a pedra chata que ficava emergente na lagoa e que, depois da colonização, desapareceu ou afundou enigmaticamente. Porém, com vigor, coragem e energia, essa comunidade quer se reconstruir e fazer emergir essa pedra que uma vez sumiu da lagoa indo quem sabe aonde, lugar que possivelmente todos nós procuramos desesperadamente – significa essa carência originária, a saudade daquilo que sempre nos pertenceu e ao qual ainda pertencemos, mas que parece nunca encontramos, tornando essa busca trágica e dolorosa. Fico me perguntando se o povo tapeba talvez não a encontrou, renascendo cada dia na alegria de viver nietzschiana, nesse reencontro com os valores centrais do ser humano, nessa confiança e reencontro com nossa Mãe Natureza e ante toda a sim­bo­logia que se traduz naquela pedra chata que ficava no meio da paradisíaca lagoa em torno da qual esse povo fundou seu alde­amento, símbolo de vida, símbolo das suas vidas, com essa força característica, pois, sem dúvida, a história da comunidade tapeba é uma história de amor vital, de luta e resistência.

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