Constituição Cidadã vinte anos depois: debater é preciso Entrevista Bete Bete Mendes Mendes
Direito à educação em risco Trinta anos das greves do ABC Cenário político-eleitoral em Angola
DEMOCRACIA VIVA
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Dulce Chaves Pandolfi Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV
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omemorar é festejar, celebrar, lembrar, refletir. Mas é, sobretudo,
não esquecer. Nesta edição da revista Democracia Viva, estamos homenageando e lembrando alguns momentos, personagens e acontecimentos que marcaram a história do nosso país. Por exemplo, estamos comemorando o centenário do pernambucano e cidadão do mundo Josué de Castro, um intelectual ativista no combate à fome. Estamos rememorando os 30 anos das greves do ABC paulista – momento significativo do avanço e do compromisso com as mudanças na vida do movimento sindical brasileiro. Estamos, também, festejando os 20 anos da nossa Constituição, que representou o rompimento com a ditadura militar, implantada no país em 1964, e a retomada do regime democrático. Conhecida como Constituição Cidadã, sem dúvida, proporcionou um alargamento da nossa cidadania. Entretanto, apesar dos grandes avanços, o nosso déficit de cidadania ainda é muito alto. Por isso, ao mesmo tempo que festejamos nossas conquistas, devemos buscar lembrar, entender e refletir sobre nossas deficiências. Nesse sentido, no momento em que começa a ganhar espaço na sociedade brasileira o debate sobre a responsabilização daqueles que cometeram crime de tortura durante o regime militar, nada mais oportuno do que a entrevista com Bete Mendes. Desde muito cedo – quer por meio da arte, quer da política –, ela se engajou na luta pela transformação da nossa sociedade. Por isso, foi presa e barbaramente torturada pela ditadura militar em 1970, aos 20 anos de idade. Certamente, para além do privilégio de conhecer melhor a riqueza e a grandeza da
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o Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
3 ARTIGO
Educação pede socorro no Complexo do Alemão Denise Carreira Suelaine Carneiro 8 DEBATE
Brasil comemora aniversário da Constituição Cidadã Marcello Cerqueira Gisele Silva Araújo Pedro Cláudio Cunca Bocayuva 24 INTERNACIONAL
Paz, governança, reconstrução, democracia e eleições em Angola
entrevista
Bete Mendes
Adão Domingos Adriano; Analdina Silvina Eduardo; Konde Emmanuel; Lourenço Mabonzo; Massamba Ngengo Dominique; e Moises Chiteculo Piedade Festo 28 ENTREVISTA
Bete Mendes 46 ARTIGO
Trinta anos das greves do ABC Marco Aurélio Santana 50 RESENHAS Alvaro Neiva Cláudio Severino cultura
Constituição de 1988
54 CRÔNICA Alcione Araújo 56 ARTIGO
Josué de Castro: um homem e vários legados Teresa Sales
60 OPINIÃO IBASE
Participação cidadã, onde avançamos, onde emperramos?
Sebastião Soares João Guerra Carlos Alberto Afonso Nádia Rebouças Sonia Carvalho
Direção Executiva Cândido Grzybowski Dulce Pandolfi Francisco Menezes João Sucupira
Coordenadores(as)
Ciro Torres Fernanda Carvalho Itamar Silva João Roberto Lopes Pinto Luzmere Demoner Moema Miranda
DEMO C RA C IA V I V A ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral
Diretora Responsável Dulce Pandolfi
Conselho Editorial
Alcione Araújo Cândido Grzybowski Charles Pessanha Cleonice Dias Jane Souto de Oliveira João Roberto Lopes Pinto Márcia Florêncio Mário Osava Moema Miranda Regina Novaes Rosana Heringer Sérgio Leite
Edição
Ana Bittencourt
Subedição
Jamile Chequer
Revisão
Reformas constitucionais na América do Sul
Assistente Editorial
66 CULTURA
Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão Maria Helena Versiani
76 ESPAÇO ABERTO
Um novo olhar sobre as cotas raciais
André Sant´Anna de Oliveira 82 SUA OPINIÃO 84
Conselho Curador
Luciano Cerqueira
Maurício Santoro Para apoiar os projetos desenvolvidos pelo Ibase, escreva para amigos@ibase.br ou telefone para (21) 2178-9400. Doações de pessoas jurídicas podem ser abatidas do Imposto de Renda.
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ÚLTIMA PÁGINA Nani
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política. Os artigos assinados nesta publicação não traduzem, necessariamente, a posição do Ibase.
Flávia Leiroz Flávia Mattar
Assessoria de imprensa Rogério Jordão
Produção
Geni Macedo
Estagiários
Carlos Daniel da Costa Diego Santos
Distribuição
Elaine Amaral de Mello
Projeto Gráfico e Diagramação Mais Programação Visual
Foto de capa
Montagem sobre foto de Duda Bentes / Agil / Acervo Museu da República
Impressão
Morada do Livro
Tiragem
5 mil exemplares
democraciaviva@cidadania.org.br
artigo Denise Carreira*
Suelaine Carneiro**
A Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação1 lançou, em agosto de 2008, relatório final2 da missão realizada em outubro de 2007 sobre a violação dos direitos educativos de crianças, jovens e adultos(as) que freqüentam as escolas públicas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O relatório será encaminhado, em setembro, à Comissão Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Comitê da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU). A missão e o levantamento complementar de informações realizado em 2008 tiveram por
1 A Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação é vinculada à Plataforma Dhesca (Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais), uma articulação de 43 organizações e redes nacionais de direitos humanos. Além da educação, a plataforma conta com mais cinco Relatorias Nacionais (saúde, alimentação e terra rural, meio-ambiente, moradia adequada e trabalho), que atuam com o apoio da Procuradoria Federal do Cidadão e do Programa de Voluntários das Organizações das Nações Unidas. 2 O relatório, na íntegra, está disponível em: <www.dhescabrasil.org.
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objetivo apurar e analisar o que ocorreu antes, durante e após a suspensão das aulas por quase dois meses, decorrente da megaoperação policial contra grupos do narcotráfico ocorrida a partir de maio de 2007 e que levou à morte 19 pessoas. Uma das questões que mobilizaram esse trabalho foi verificar se a situação de confronto armado – como intensificador das históricas violações do direito humano à educação e de demais direitos, enfrentadas cotidianamente pelas populações de comunidades populares – restringiu-se ao período da ação policial ou se é algo permanente na vida da população do Complexo do Alemão. Para compreendermos a situação, visitamos escolas e ouvimos integrantes das comunidades, profissionais de educação, sindicalistas, autoridades públicas, organizações comunitárias do Complexo do Alemão e outras organizações da sociedade civil carioca.
Por dentro do Complexo
3 Segundo estudo do Centro de Promoção da Saúde (Cedaps), realizado em 2003 e baseado em informações obtidas na prefeitura, muitos moradores do Complexo do Alemão não informam o endereço utilizando Complexo do Alemão como bairro de moradia – preferem informar os bairros a que pertenciam suas comunidades antes da existência do Complexo (Inhaúma, Ramos, Bonsucesso etc.). O estudo considera que tal situação decorre do estigma criado sobre o bairro, marcado por uma reputação cada vez pior com relação à violência e à pobreza.
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O Complexo do Alemão é um conjunto de favelas localizado na zona norte do Rio de Janeiro, na Serra da Misericórdia, parte central da região da Leopoldina, abrangendo cinco bairros: Ramos, Inhaúma, Bonsucesso, Penha e Olaria. Em decorrência da falta de pesquisas sobre a área, há dados conflitantes por parte de diferentes fontes governamentais sobre sua população3 e situação socioeconômica. Segundo dados do censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do Complexo em 2000 era de 65.021 habitantes. Atualmente, é estimada por alguns órgãos públicos entre 120 mil e 160 mil pessoas, ocupando uma área de 6.185 hectares, sendo a segunda região mais populosa da cidade. O Complexo é composto por 13 comunidades: Morro do Alemão, Grota, Nova Brasília, Alvorada, Alto Florestal, Itararé, Morro Baiana, Morro Mineiro, Morro da Esperança, Joaquim de Queiroz, Cruzeiro, Morro das Palmeiras e Morro do Adeus. Considerada uma das regiões mais pobres do Rio de Janeiro, o Complexo do Alemão apresenta Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,711, o mais baixo dos 126 bairros do Rio de Janeiro. A expectativa de vida é de 64,8 anos e aproximadamente 14% da população é analfabeta. Nessa região, cerca de 29% da população local vive abaixo da linha de pobre-
za, e a taxa de mortalidade infantil é de 40,15 por 100 mil nascidos vivos, número cinco vezes maior do que na zona sul da cidade, que é de 7,76 por 100 mil. A atividade econômica da região é composta por 6 mil pequenos estabelecimentos, sendo que 87,4% são do segmento do comércio e serviços. Apresenta altas taxas de natalidade, pequena área livre por habitante, pouca oferta de emprego, baixo índice de desenvolvimento infantil e carência geral de atendimento no setor da saúde. Desde o fim da década de 1990, a região do entorno do Complexo do Alemão viveu intenso processo de desindustrialização, que acarretou a perda de cerca de 20 mil postos de trabalho. A missão da Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação nas escolas públicas do Complexo do Alemão revelou a urgência de que a educação naquela localidade seja assumida como uma educação em situação de emergência. Em âmbito internacional, “educação em situação de emergência” é a decorrente de catástrofes naturais ou das chamadas emergências complexas. As “emergências complexas” são situações de gravidade social geradas pelos seres humanos, entre elas, a violência armada. O que vimos demonstra que a violência na qual as escolas estão imersas é permanente e cotidiana e não-episódica, como informado por algumas autoridades. Essa violência tem momentos de pico e é sentida de forma diferenciada nas áreas do Complexo do Alemão e adjacências. Depoimentos apontam que ela se intensificou nos últimos anos em várias áreas, alcançando patamares preocupantes a partir da operação policial de maio de 2007. Grande parte das escolas da região sofre a falta de professores(as), um problema que afeta todo o estado, mas de forma intensa o Complexo do Alemão e outras comunidades populares do Rio de Janeiro. Há escolas com turmas inteiras sem aulas, e há anos não é ministrada a disciplina de matemática. Em decorrência da violência, das precárias condições de trabalho e dos baixos salários, muitos professores e muitas professoras – sobretudo da rede estadual – não permanecem nas escolas. Essas apresentam também infra-estrutura inadequada ou sem manutenção, os recursos são insuficientes para a merenda, há grande demanda por vagas, como no caso das creches, e baixa qualidade do ensino em grande parte
Educação pede socorro no Complexo do Alemão
das unidades educacionais, apesar do esforço heróico de muitos e muitas profissionais da educação. Também destacamos o comprometimento da saúde mental de vários profissionais e estudantes.
Para além da ação policial Entendemos ser dever do Estado restaurar sua autoridade no Complexo do Alemão e em outras comunidades do Rio de Janeiro dominadas pelas forças do narcotráfico que, como apontado pelo relator especial da ONU para Execuções Sumárias, Philip Alston, “dominam comunidades inteiras, submetendo os residentes a uma violência sem sentido e à constante repressão”. Porém, questionamos a forma como vem sendo desenvolvida essa autoridade, baseada no uso arbitrário e excessivo da força, e temos grandes dúvidas sobre a sua eficácia ao identificarmos: • conhecimento limitado por parte das autoridades públicas das dinâmicas sociais e das complexidades envolvidas na constituição do poder, do funcionamento e da reprodução das redes do narcotráfico na região. Essa visão é muitas vezes marcada por preconceitos diversos e pela estigmatização das comunidades; • inexistência de estratégias articuladas entre as esferas de governo (municipal, estadual e federal) e entre áreas de governo (sociais, de segurança e de trabalho) que visem garantir os direitos humanos das comunidades e impactar as causas estruturais do conflito. Dessa forma, o Estado brasileiro, mais uma vez em sua história, apresenta-se para a população de baixa renda com sua face predominantemente repressiva; • inexistência de estratégias de prevenção do conflito e de qualquer outra iniciativa que vise à proteção das comunidades envolvidas; • existência de diversas denúncias de violência cometidas pela polícia e pela Força de Segurança Nacional contra as comunidades, que abarcam casos de abuso de poder, homicídios, tortura e roubos, em fase de apuração pelo Ministério Público Estadual; • visão etapista da intervenção estatal presente nos discursos das autoridades públicas: em primeiro lugar, o Estado chega com as operações de “limpeza” das redes criminais,
seguidas por obras de infra-estrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC das Favelas) e, por último, a garantia de serviços sociais adequados. O objetivo de “reassumir o poder do território” não se realizará por meio somente de políticas de segurança, mas com serviços sociais de qualidade, entre eles, uma educação de qualidade que garanta os padrões básicos previstos na legislação educacional. Além disso, são necessários atendimento de saúde com profissionais e equipamentos e uma política de assistência social consistente e articulada a políticas de trabalho e renda. O Complexo do Alemão e outras comunidades que enfrentam problemas similares de violência e exclusão social acentuada exigem um “choque de política social” que melhore as condições de vida daquelas populações e impacte, de forma estrutural, a reprodução cotidiana das redes criminais nessas áreas.
Nove meses depois
Entendemos ser dever do Estado restaurar sua autoridade no Complexo do Alemão e em outras comunidades do Rio de Janeiro dominadas pelas forças do narcotráfico
Em agosto de 2008, a equipe da Relatoria entregou em audiência o relatório às autoridades do estado e voltou a visitar as escolas do Complexo do Alemão (ler recomendações em destaque). Para a secretária de Estado de Educação, Teresa Porto, e o secretário de Estado de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, há concordância com a necessidade de investimento em serviços sociais. “Nós, da polícia, só ‘enxugamos gelo’. Hoje, tenho consciência de que precisamos de um grande investimento social nessas áreas para combater o crime organizado”, disse Beltrame. O secretário informou que havia acolhido a recomendação de desenvolver um conjunto de orientações às escolas sobre segurança pública. E avaliou que o PAC está contribuindo para articular as ações entre os governos estadual, federal e municipal. A secretária Teresa Porto informou que
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a situação nas escolas estaduais é bem diferente da encontrada pela Relatoria ao fim de 2007. Disse que novos(as) docentes haviam sido contratados(as) e que a secretaria está construindo um sistema de informação que permitirá acompanhar, de forma mais detalhada, a situação de cada escola. A secretária municipal de Educação, Sonia Mograbi, não recebeu a equipe da Relatoria para entrega do documento. A constatação em agosto de 2008 é que os confrontos entre policiais e narcotraficantes diminuíram no Complexo do Alemão. Alguns acreditam que isso decorre das obras do PAC, outros que é resultado de algum “pacto” em época eleitoral, outros acham que tudo pode recomeçar a qualquer momento. Nas escolas da rede municipal Leonor Coelho e Monsenhor da Rocha, localizadas na Vila Cruzeiro, o clima é de temor e expectativa. Desde que uma ocupação policial teve início na segunda semana de agosto de 2008 com 300 policiais, motivada – segundo as autoridades – pelo caso do seqüestro de um grupo de chineses e pelas denúncias de impedimento da presença de políticos e jornalistas na área, grande parte das crianças e dos(as) adolescentes deixou de ir à escola. A escola Monsenhor da Rocha informou que, na segunda quinzena de agosto, quase 40% faltaram às aulas. Na escola Leonor, na
primeira semana de ocupação, a ausência chegou aos 90% e ficou em mais de 50% a partir da segunda semana. “Aqui, a gente vive sempre um sobe e desce. As famílias estão segurando as crianças em casa com medo do que virá”, afirma a diretora Vera Caldas. No Ciep Theóphilo de Souza Pinto, localizado na Vila Brasília, o vice-diretor Kleber Coelho observa que pouco mudou do ano passado para cá. “Continuamos com falta de professores. Temos capacidade para atender 4 mil estudantes e estamos com pouco mais de mil”. Como retrocesso, destaca que não mais consegue fornecer o café da manhã para as crianças do período integral. “O dinheiro não dá, fizemos de tudo. E sabemos que essa alimentação é fundamental para a maioria.” Mais uma vez, a direção pede o apoio da Relatoria para que o consultório odontológico da escola – devidamente equipado – volte a funcionar. “Já não sabemos mais para quem pedir. São tantas as promessas de políticos e tanta a demanda por atendimento. É um absurdo.”
Possibilidades do PAC Recomendamos, enfaticamente, que o PAC das Favelas, iniciativa do governo federal que co-
monitorar e influenciar este que é um dos
meçou a ser implementado no fim de 2007 nas
principais projetos de intervenção pública em
comunidades cariocas do Complexo do Alemão
comunidades populares do país. Sem instâncias
e de Manguinhos, possa ser assumido, não como
de controle social e participação, devidamente
mais um projeto, mas como uma estratégia que
institucionalizadas e com poder efetivo, será
potencialize ao máximo a ação articulada entre
difícil alterar a relação historicamente viciada e
os governos federal, estadual e municipal. Ação
clientelista que marca a relação do Estado com
que permita a melhoria das condições de vida
essas comunidades. Comunidades que, apesar
da população, baseada em participação efetiva
dos grandes desafios, possuem organização, di-
dessas comunidades e de outras organizações
namismo e criatividade imensa na forma como
do Rio de Janeiro.
organizam suas manifestações culturais, redes
Nesse sentido, defendemos também a proposta de organizações do Rio de Janeiro de que seja composto um “Conselho da Cidade” para
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de solidariedade e ações políticas.
Educação pede socorro no Complexo do Alemão
Recomendações
* Denise Carreira
Entendemos que o Estado brasileiro (União, estado e município) viola o direito humano à educação da comunidade do Complexo do Alemão e de outras comunidades similares ao não garantir condições mínimas que permitam a efetivação desse direito. A situação de emergência na qual se encontram exige um conjunto de medidas urgentes a serem implementadas pelo Estado brasileiro, entre elas: • Plano de ação: elaboração urgente de um plano de ação visando garantir o direito humano à educação de qualidade, levando em conta as várias dimensões do documento internacional “Requisitos mínimos para a educação em situação de emergência”. Além da infra-estrutura adequada, especial atenção deve ser dada à necessidade urgente de recomposição do quadro de profissionais de educação com condições de trabalho adequadas, estímulo financeiro e suporte pedagógico para o exercício da função na área. Isso exige estratégias que possibilitem a superação de um quadro marcado por contratações precárias, baixíssimos salários, intensa rotatividade e inexistência de apoio adequado por parte dos órgãos centrais às escolas dessas comunidades. O plano também deve contemplar, de forma sistêmica, a rápida melhora do conjunto dos serviços sociais oferecidos nas comunidades e alternativas de trabalho que garantam condições de vida dignas para jovens e adultos(as) desempregados(as) ou subempregados(as). • Presença de operadores de direito: instalação de postos de atendimento permanentes nas comunidades da área por parte do Ministério Público Estadual e do Federal e da Defensoria Pública. Realização de visitas periódicas por parte dos organismos da ONU, da Cruz Vermelha, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e demais operadores do direito. Observamos que, em decorrência da escalada da violência, vários desses órgãos e várias dessas instituições deixaram de visitar ou diminuíram de forma significativa a presença na área, contribuindo para o abandono total das comunidades à ação de narcotraficantes, tornando-as vulneráveis ao abuso de poder de determinados policiais. Identificamos também que várias empresas prestadoras de serviço de água, luz, correio, telefone, entre outras, diminuíram a presença ou deixaram de prestar atendimento às populações do Complexo e adjacências em decorrência da violência. • Informação de qualidade: enfrentamos muitas dificuldades para ter acesso a dados quantitativos e qualitativos referentes à região. Encontramos informações contraditórias e insuficientes fornecidas pelo poder público. Para se construir estratégias eficazes e efetivas, é fundamental a constituição de um sistema integrado de informações que possibilite uma base qualificada para o planejamento da ação do poder público e da sociedade civil e o monitoramento de indicadores diversos, entre os quais, situação dos
Relatora Nacional para
equipamentos, evasão, repetência, rotatividade de docentes e problemas de saúde. Nesse ponto, também destacamos a importância de que todos os dados e todas as informações públicas estejam disponíveis para consulta pública, vinculadas a uma política de promoção da transparência e de controle social que garanta o direito à informação pública de todo cidadão e toda cidadã. • Articulação e coordenação de políticas: é fundamental a articulação das políticas de segurança e das políticas sociais entre áreas de governo e entre governo federal, estadual e municipal. Essa articulação deve se concretizar por meio de uma instância coordenadora constituída para tal fim, que possibilite o planejamento, o monitoramento e a avaliação das ações e políticas consistentes. • Participação comunitária: a constituição de instâncias institucionalizadas e permanentes de interlocução com as comunidades é fundamental em situações como a vivida pelo Complexo do Alemão e por outras comunidades cariocas. Instâncias baseadas não em uma participação figurativa e nem consultiva, mas em uma participação que efetivamente contribua no processo de tomada de decisões e que reconheça a diversidade inerente à organização comunitária. É importante que o poder público não reduza a convocatória para participação nesses processos somente aos considerados “aliados” dos governos. • Protocolo de segurança escolar: observamos em nossas visitas que não existe nenhuma orientação às escolas e às famílias com relação à segurança em caso de conflito. Como nos foi dito pelo governo estadual, serão realizadas novas operações policiais nas comunidades. Por isso, insistimos ser fundamental a criação de protocolos de segurança, construídos por meio da parceria entre segurança e áreas sociais, de forma a responder a algumas questões: o que fazer quando começa um tiroteio? Liberar ou não as crianças? Como orientar as famílias? Ouvimos depoimentos que mostram a total desorientação diante de tal situação, o que, em nosso entender, aumenta o risco. • Cadastro de demanda: criação emergencial de cadastro de demanda por educação da população do Complexo do Alemão e adjacências. Esse cadastro deve abarcar diferentes graus e etapas da educação brasileira: educação básica (creche, pré-escola, ensino fundamental e ensino médio), e ensino superior e modalidades (educação especial – para deficientes, educação de jovens e adultos(as), educação profissional e educação indígena). Evidentemente, é recomendável que o cadastro seja atualizado para o conjunto da população do município do Rio de Janeiro.
o Direito Humano à Educação; feminista, coordenadora do Programa de Pesquisa e Monitoramento da Ação Educativa e ex-coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
** Suelaine Carneiro Assessora da Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação; integrante de Geledés Instituto da Mulher Negra
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d e b a t e Em 5 de outubro, a Constituição brasileira completa duas décadas. Resultado do trabalho de uma Assembléia Constituinte considerada exemplar por estudiosos(as), realizado de 1987 a 1988, é também fruto da pressão da sociedade civil organizada – que se empenhou para que as reais demandas da população fossem incluídas na nova Carta. Desde sua promulgação, a Constituição Cidadã, como foi batizada pelo presidente da Assembléia, Ulysses Guimarães,
é festejada como o documento que trouxe nosso país de volta à vida democrática e abriu novas possibilidades de exercício da cidadania. Mas nossa legislação mais importante tem sido respeitada? Como vem se dando essa aplicabilidade no cotidiano do Brasil? Onde o sopro de democracia fluiu e onde ficou congelado? Este é um momento especial para fazermos tais reflexões. Para contribuir com o debate, a revista Democracia Viva publica três artigos: um do jurista Marcello Cerqueira; outro da cientista social Gisele Silva Araújo; e outro do especialista em Direitos Humanos, Pedro Cláudio Cunca Bocayuva. Confira a seguir.
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Duda Bentes / Agil / Arquivo Histórico do Museu da República
Brasil comemora aniversário da
De pé, com as mãos para o alto, Ulysses Guimarães. A sua direita, Moreira Alves e, à sua esquerda, Paes de Andrade. (Constituinte – Sessão de 2 de fevereiro
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Vinte anos da Constituição: A Constituição de 1988 marcou a ruptura com a extenuante ditadura militar de 1964 e foi feita por meio de negociações, como a Constituição anterior, de 1946 (ruptura pactuada). Isso a aproximou do modelo espanhol (transición pactada) e a afastou do modelo português (revolucionária, na origem). Os setores mais avançados não queriam repetir o modelo anterior e propunham, como se recorda, “Constituinte livre, soberana e exclusiva”. Livre se auto-explica, e com “soberana” e “exclusiva” queria-se dizer que ela não teria funções legislativas ordinárias e que se dissolveria após a promulgação do novo texto, convocando eleições gerais. A primeira questão que então se apresentava para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) era a convocação da Constituinte, pois ela poderia definir, ou pelo menos fortemente orientar, seu modelo. Sabe-se que uma Constituinte só está vinculada aos termos de sua convocação. Nesse sentido, o então presidente da OAB nacional, o advogado Herman Assis Baeta, levou ao ministro da Justiça, Fernando Lyra, os termos da entidade. O ministro encarregou o consultor jurídico do ministério de redigir o caminho por onde deveria seguir a convocação: Simples projeto de lei ordinária de iniciativa do Executivo submeteria ao Congresso Nacional a outorga de poderes constituintes aos representantes do povo eleitos em 1986. A lei daí resultante seria submetida a referendo popular. Evitava-se a convocação por Emenda Constitucional, já que a sistemática de sua aprovação
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exige quorum de dois terços em ambas as casas do Congresso. Ora, em 1982, foi eleito um terço dos membros do Senado Federal, que em sua maioria gostaria de participar da Constituinte, embora não tivesse poderes originários para tanto. A fixação do quorum de maioria simples contornaria esse obstáculo. Diferentemente, a hipótese de convocação por meio de Emenda Constitucional teria de conciliar-se com a pretensão de senadores residuais (Lobo; Leite, 1989, p. 4).
Tal não se deu e, de certa forma, embaraçou o passo dos trabalhos constituintes. É que, naturalmente, os interesses permanentes de uma Assembléia Constituinte são diferentes dos que pressionam o Congresso no dia-a-dia. De qualquer forma, a Constituição foi promulgada e trouxe aporte significativo de direitos fundamentais e sociais, ao mesmo tempo que seu texto, demasiadamente analítico, incorporou normas que mais bem seriam tratadas em leis ordinárias. Mesmo a lei que criou a Petrobras, por exemplo, alçada à norma constitucional, nem por isso viu protegida a integralidade do monopólio estatal do petróleo.
Divergências e insensatez Pouco tempo após a sua celebração e a pretexto do fim do socialismo real – que teve a queda do muro de Berlim como ponto de maior expressão e exploração –, setores inconformados com os inegáveis avanços da Constituição de 1988 já reclamavam sua “revisão”, brandindo
d e b a t e dispositivo do Ato das Disposições Transitórias que chamava a plebiscito o eleitor para decidir entre a forma de governo (presidencialismo ou parlamentarismo) e a nostálgica volta ao passado com outro exótico império nos trópicos. Isso se o eleitor pudesse escolher entre um sistema desconhecido (o parlamentarismo, com vida efêmera com Jango) e a forte atração messiânica do presidencialismo. Marx, no 18 Brumário, ao comentar o golpe do II Bonaparte – que, de alguma forma, aqui se reproduziria com a recandidatura de Fernando Henrique –, dizia que um parlamento eleito estava em relação metafísica com o povo, ao passo que o presidente eleito mantinha com ele relação direta. Recorda-se que, presidente eleito, Tancredo Neves constituiu comissão de estudos para oferecer um anteprojeto de Constituição, que restou conhecida pelo nome de seu presidente, professor Afonso Arinos. A Comissão Arinos inclinou-se para o semipresidencialismo (ou o semiparlamentarismo), nos moldes já praticados na França, desde De Gaulle, e em Portugal (mais mitigado), após Constituição nascida da Revolução dos Cravos (e que permanece, mesmo após as reformas liberais que aproximaram o país da Comunidade Européia). Já assumindo a cadeira presidencial, e em face de divergências com o texto da Comissão Arinos, sobretudo com a adoção do semipresidencialismo – que sugeria uma nova eleição para um novo governo –, o presidente José Sarney limita-se a publicar o relatório Arinos no Diário Oficial da União, e não o envia como proposta do governo para a nascente Constituinte. Razoável que no projeto Arinos constasse a “medida provisória”, que vai buscar raízes na “ordenanza” italiana, cultura tão a gosto do saudoso professor. Só que, naquele contexto, a medida é expedida por um primeiro-ministro dependente do Parlamento que o escolheu, e que a qualquer momento pode derrubá-lo com uma moção de desconfiança. Transplantá-lo para um regime presidencialista (forte) foi insensatez, da qual se paga o preço da desorganização legislativa e mesmo do desequilíbrio entre poderes (Executivo versus Legislativo), pedra angular do princípio de separação deles. O excesso de poderes do presidente da República enfraquece e desorganiza o Legislativo, além de abrir passo para situações de exceção (como esse arremedo de “estado policial” que ora se apresenta desenvolto e
incontrolável). Mal entrava em vigor e a nova Constituição já enfrentava a arremetida de setores conservadores dentro e fora do governo. Logo em seguida, veio a investida do “emendão” do governo Collor, que já usara o remédio amargo da “medida provisória” para confiscar a poupança. Depois, cláusula perempta do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) seria ilegalmente ativada na pretensão inútil de operar uma ambiciosa “revisão constitucional” – instituto, como se sabe, estranho ao direito constitucional brasileiro, que só reconhece o poder de emenda ao seu texto. A “revisão” seria convocada na forma do art. 3º do ADCT, mas sua fonte material estava no anterior art. 2º do mesmo diploma. Ou, em outras palavras: na hipótese de o eleitorado sancionar o sistema “parlamentarista” ou a “monarquia”, então a norma seria ativada, mas apenas para compatibilizar o texto constitucional com a novidade (parlamentarismo e monarquia). Os demais dispositivos da Constituição restariam intocados. A pretensão de votar uma “revisão” ampla da Constituição (espécie de terceiro turno constituinte) iria esbarrar na dificuldade de operar interesses que se repeliam. No início, observou-se até certa euforia envolvendo setores que desejavam reformas para servir exclusivamente a seus interesses. No curso dos debates, entretanto, verificou-se a impossibilidade de agradar a todos. Naturalmente, uma modificação atendia a uma parte, mas prejudicava outra que, por sua vez, entrava em conflito com uma terceira, e assim sucessivamente. A reforma, aparentemente inovadora, é contida pelo conservadorismo. O espírito que animou a Constituição brasileira parcialmente já deixou seu corpo. As reformas a mutilaram. As vicissitudes políticas afastaram a aplicação prática dos ideais que a escreveram. A proposta da criação de um Estado Democrático de Direito, fundado na soberania, na cidadania, na dignidade, nos valores sociais do trabalho e no pluralismo político, foi substituída por um estado liberal. Os objetivos fundamentais da República, grafados no art. 3º da Carta Magna, mais parecem, agora, motivo de triste ironia: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
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Duda Bentes / Agil / Arquivo Histórico do Museu da República
A Constituição de 1988, além de retomar e ampliar a ordem democrática, antes ferida de morte pela ditadura militar, consolida como direitos – e também os amplia – aquilo que era um misto de conquistas populares e concessões das elites na esfera social. Ela adiciona à cidadania civil e política a dimensão social. Desde a Revolução de 1930, um pacto não-escrito, impregnado de contradições, a que não faltaram períodos demorados de autoritarismo, dava curso a um projeto nacional. Seu conteúdo era a busca do desenvolvimento, às vezes acelerado, outras lento. Mas sempre buscado. A longa e penosa construção do pacto envolvia a coesão das mais diferentes forças sociais e políticas. O conflito entre essas forças, contudo, era menor do que o consenso na implementação do pacto. Militares, por exemplo, desferem o golpe de Estado de 1964, do qual resultaria a longa e amarga ditadura. E, mesmo assim, dão seqüência, em parte, a um projeto que antes era conduzido por seus adversários, embora os governos militares exacerbassem o lado perverso do desenvolvimento capitalista no Brasil: a concentração de propriedade e de renda, que agravou a já secular discriminação
Solenidade de entrega de um dos substitutivos do relator Bernardo Cabral a Afonso Arinos e Ulysses Guimarães (Constituinte – Gabinete do Presidente – 26 de agosto de 1987)
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social. A Constituição teria vindo para conduzir o mesmo processo, mas de forma a reduzir os aspectos negativos. Afinal, uma nação efetivamente para todos. Essa utopia foi frustrada pelas “reformas” que, mutilando o corpo da Constituição, afastaram seu espírito.
Economia desprotegida O desmanche do pacto constitucional produzido pelas forças do mercado e seus subalternos operou-se em fraude à Constituição. A acumulação democrática e social que o processo constituinte (constituição material) fez desaguar na Constituição em vigor é subtraída pela vontade do governo federal, conjugada à maioria congressual de três quintos – que modifica o texto ao sabor dos interesses do mercado, de conveniências políticas casuísticas e, sobretudo, da insuportável pressão norte-americana. No que diz respeito à soberania nacional, foram suprimidas da Constituição significativas normas de proteção à economia do país: controle da remessa de lucros do capital estrangeiro; conceito de empresa nacional; domínio da União sobre o subsolo; monopólio do petróleo, monopólio sobre a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica; monopólio ou controle estatal sobre as telecomunicações. Tratou o texto constitucional de proteger a economia de aberturas tão insensatas quanto apressadas que, afinal, ocorreram, acentuando a dependência externa que o país terá enorme dificuldade de reverter. As privatizações selvagens alienaram o patrimônio público e empenharam o futuro, visto que haveremos de sofrer indefinidamente a remessa para o exterior de lucros de empresas que não exportam bens ou serviços. No limite, a ameaça mais grave foi a tentativa de privatização de nossos rios, que agora parece afastada. Os rios existem sem hidroelétricas, mas estas não podem viver sem os rios. O ar, as florestas e os rios não são bens do Estado e nem de particulares. São bens públicos, constitucionalmente indisponíveis; são direitos difusos, pertencem a toda a população. Quanto aos direitos do cidadão e da cidadã, sua dimensão dá bem a medida do regresso a que o país continua, até hoje, sendo submetido. Como se sabe, um dos grandes esforços dos socialismos deste século consistiu em desmercantilizar aspectos essenciais da relação de trabalho. A educação universal e gratuita, o
sistema público de saúde, as várias formas de previdência e seguridade consagraram direitos que passaram a fazer parte significativa da remuneração do trabalho; o mercado, ou seja, a força patronal, deixou de ser a principal reguladora do comportamento dos seres humanos como trabalhadores. Compatível com esses progressos da humanidade, a Constituição de 1988 consagrou esses direitos, especificamente em seu Capítulo II. As “reformas” realizadas, ou ainda em andamento e, agora, sob novo patrocínio, objetivam reduzir ou suprimir esses direitos. Trata-se regressivamente de empreender um esforço global de remercantilização das relações de trabalho. Tornam-se mercantis as prestações de educação, a saúde pelo sistema de seguro privado, a previdência comandada por fundos de pensão, apenas para citar alguns exemplos. Os direitos sociais são substituídos pelo perfil da demanda de serviços em um mercado em expansão. O mesmo processo de encolhimento ocorre com a cidadania política. As formas clássicas de supressão dos direitos políticos são as ditaduras ou tiranias. Desgraçadamente, nosso país experimentou todas. Mas o neoliberalismo, oferece soluções mais sutis. Os anuários políticos revelam que nunca houve um número tão grande de democracias liberais na história contemporânea como agora (excetuando episódios em curso na França e na Itália). Para alguns comentadores, trata-se de uma avassaladora onda de democratização que penetrou na América Latina, na África e nos antigos países do Leste Europeu. Contudo, nunca a forma democrática esteve tão dissociada da substância democrática que a ela dá vida. A elite do poder busca impor um sistema político que se assenta em chefias de governo identificadas com a “globalização” predatória, uma administração pública baseada em agências regulatórias que, a experiência de outros países nos permite afirmar, se tornam independentes de tal forma que sobre elas não recaem controles de nenhuma natureza E, finalmente, um Poder Legislativo esvaziado de suas atribuições, submetido ao garrote vil das medidas provisórias, ameaçado por reformas partidária e eleitoral restritivas à soberania popular e pela imposição da perda de mandato por “infidelidade partidária” imposta por um Judiciário ao qual falecem poderes para tanto. A economia mundial se retrai, e os novos
romanos já demonstram sinais de exaustão ao manter suas conquistas guerreiras no Iraque e no Afeganistão. A chamada “Ata Patriótica” é o santo e a senha para ampliar as perseguições em Guantánamo aos suspeitos de sempre, e também sempre em prejuízo das liberdades civis na América. O petróleo alcança preços inesperados, e a carência de alimentos assombra o mundo (“Um fantasma ronda a Europa...”).1 Aqui, em nossas praias, temos a constante ameaça à soberania da Amazônia e a Colômbia de Uribe como ponta-de-lança dos interesses norte-americanos, já agora respaldados pelo ressurgimento da desarquivada 4ª Frota. Internamente, a ação macarthista da Polícia Federal e do Ministério Público, às quais setores do Judiciário se associam.
Vida que segue Releio o texto e verifico que imprimi a ele um tom pessimista, longe da minha forma habitual de ver e sentir o mundo. Com isso, pareceu-me ter desconsiderado as conquistas democráticas e sociais que vieram com a redemocratização e a Constituição em vigor. De certa forma, ao realçar os recuos da Constituição, posso passar a impressão de que, longe de minha vontade, “anistiei”, por assim dizer, os que revogaram, pela força, a Constituição de 1946, os quais, entretanto, não foram anistiados pelas sucessivas leis de anistia: é que a anistia não foi recíproca e os torturadores, ou o que resta deles, não foram anistiados. Os subúrbios do autoritarismo se expressam não apenas nas milhares de escutas policiais, muitas e muitas clandestinas, na espetacularização das prisões, sempre cobertas por uma rede de televisão, ou na “denúncia” do Ministério Público do Rio Grande do Sul contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que procura restaurar procedimentos próprios da ditadura militar – tentativa canhestra de repristinar a revogada lei de segurança nacional do regime militar. É claro que sonhamos com “a volta do irmão do Henfil” e devemos render nossas homenagens aos que lutaram pela redemocratização do país. E ficar alertas. Vida que segue.
1 Primeira frase do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado em 1948.
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Florestan Fernandes, a Revolução Burguesa e a Força Normativa da Constituição Gisele Silva Araújo
“Das invenções humanas, ela é a mais complexa e sutil, mistificadora e hipócrita, verdadeira e cruel. Ostenta os rasgos utópicos – mesmo os que nascem para serem gestos e símbolos –, oculta os vínculos ideológicos – até os mais necessários – e dissimula a sua essência: o poder, na forma que ele é exercido por pessoas, instituições e formações sociais do tope.” (Fernandes, 1989, p. 360)
1 Embora o § 1º do Art. 5º da Constituição determine que todos os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata, a doutrina jurídica legitima o descumprimento dos direitos sociais em função de restrições orçamentárias. Cf. Araújo, Santos, 2008.
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É bastante razoável que um artigo sobre a Constituição de 1988 relembre as expectativas que sobre ela recaíram desde a sua promulgação e lamente as frustrações relativas ao seu descumprimento até então. A universalização dos direitos sociais ali prevista não se realizou sob o falso argumento da impossibilidade financeira do Estado, e mesmo os direitos de origem liberal – vida, liberdade e propriedade – se aplicam à parcela da população que possui meios privados para defendê-los.1 A ineficácia das Constituições na sua pretensa função de ordenar a vida social não é entretanto uma novidade. Desde o Império, a dicotomia “Brasil Legal versus Brasil Real” anima
as análises sobre este país, embora o tema não constitua em absoluto uma particularidade nacional. Ainda no século 19, Ferdinand Lassalle denunciava as cartas constitucionais como meras “folhas de papel”, reunião de propósitos retóricos que nada podem diante das “forças reais de poder” (Lassalle, 1933). O problema não estaria então no descaso com a legalidade, mas nas irreais exigências e esperanças que sobre ela se depositam. Dizer das perdas e ganhos da sociedade brasileira com a Constituição de 1988 remete portanto ao seu confronto com a realidade que lhe deu origem e que a opera. Trata-se de invocar o chamado processo de modernização através do qual várias sociedades incorporaram o modo de vida e as instituições desenvolvidas de forma pioneira na Europa Ocidental, e a elas adaptaram suas tradições. Ler a Constituição de 1988 sob a ótica da modernização brasileira se torna tarefa relativamente fácil quando o autor de uma das obras capitais no tema da passagem do Brasil à ordem moderna foi também membro da Assembléia Constituinte de 1987-88. Florestan Fernandes, mais de uma década depois de pu-
d e b a t e blicar A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica (1975), foi Deputado constituinte pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e seus artigos de jornal da época foram reunidos na coletânea A Constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político (1989). No último artigo ali publicado, Florestan Fernandes atesta a ineficácia das Constituições. Seu diagnóstico é de que as classes dominantes – ou simplesmente “os de cima”, nos seus termos – têm acesso privilegiado ao Estado, e podem então agir ignorando a existência de preceitos constitucionais sem serem importunados, ou mesmo “desconstitucionalizar a Constituição”. Florestan seguia assim toda uma tradição de leitura do Brasil pela dicotomia “Legal versus Real”. Sabia ele, entretanto, que esta não era uma especificidade de 1988, nem tampouco do Brasil. Ontem e hoje, aqui e alhures, as formas políticas continuavam inúteis quando confrontadas com substância social refratária. Os tempos então pareciam não ser outros. Depois dos esforços constitucionais, dos quais ele participara em aparente paradoxo com sua própria apreciação, conclui que permanecia “Tudo como dantes no quartel de Abrantes” (Fernandes, 1989, p. 371). No entanto, se a legalidade não produzia as mudanças que dela se esperavam, ela tampouco era inócua. As Constituições serviam de fato para encobrir as reivindicações seculares de igualdade, cumprindo a função inversa de preservar o status quo hierárquico e desigual. Ter uma Constituição avançada significava dar uma resposta meramente simbólica, uma sublimação de desejos insatisfeitos de descolonização, “a melhor maneira de manter intocável o ‘país real’” (Fernandes, 1989, p. 350). Por que Florestan Fernandes participaria da Constituinte de posse de diagnóstico tão definitivo? Ao que tudo indica, aquela era uma face persistente da história, mas não uma condenação sumária. Seus vários artigos de jornal, escritos ao sabor das derrotas e vitórias na Constituinte, expõem avaliações ora mais, ora menos pessimistas. O fio da meada destas oscilações não está neles, mas na tese da Revolução Burguesa no Brasil (1975), obra também elaborada em diálogo com uma realidade em transformação: uma parte escrita antes do Ato Institucional Nº 5, a outra depois. A análise de Florestan Fernandes para o processo de modernização do Brasil tem relevância em si, mas é também importante porque
ruma contra a maré. Ela se opõe a teorias que pareceram mais interessantes a alguns setores, que têm hoje largo trânsito na mídia e que identificaram o Estado como o grande vilão dos males do Brasil. Retomar Florestan ilumina aspectos pouco ressaltados sobre a Constituição de 1988, e permite corrigir o alvo da crítica.
Burgueses: os donos do Estado Segundo a interpretação mais difundida e que tem como livro seminal Os donos do Poder (1958), de Raymundo Faoro, as carências do país têm origem na herança ibérica. Portugal teria sido uma porta de entrada torta para o moderno, condenando-nos à perpétua reprodução de um Estado ampliado, cujo funcionalismo público se apropria das energias libertárias da iniciativa privada em proveito pessoal. Não é esta a conclusão de Florestan. Embora a sociologia tomasse como modelo clássico de modernização uma revolução com revolução, à moda da França de 1789, o sociólogo paulista via aqui um andamento reformista, já apontado por personagens do Império e da 1ª República. Para Florestan, a “vinda da Família Real” – outra efeméride deste 2008 em que se comemoram os 20 anos da Constituição – teria precipitado uma revolução sem revolução: a Independência “transformística” realizada em 1822. Sem mostrar-se como tal, e portanto “encapuzada”, a revolução da independência fincou a primeira estaca da modernidade no Estado e nas instituições jurídicas brasileiras, enquanto na sociedade só havia o latifúndio, o senhor de engenho e a escravidão.2 Ao Estado caberia pois estar à frente de uma sociedade que, pela sua iniciativa privada, reproduzia a dominação patriarcal típica da ordem senhorial. Era ele, portanto, o único portador da novidade. A revolução encapuzada da Independência, entretanto, teria ainda outro efeito. A internalização da metrópole em 1808 trazia ao Brasil as práticas de importação e exportação de mercadorias que antes eram monopólio português. Iniciou-se um lento processo de transformação do senhor de terras em agente capitalista – em burguês, nos termos de Florestan. Seria fraca, no entanto, uma burguesia que não rompia com a ordem senhorial e que se inseria no capitalismo internacional em posição subserviente, exportadora e importadora, agente interno do renovado estatuto colonial. Incapaz então de estabelecer seu domínio di-
2 Sobre as duas correntes na interpretação do Brasil, ver, de Luiz Werneck Vianna, “Weber e a interpretação do Brasil”. Para uma excelente leitura do Brasil que retoma e vai além de Florestan Fernandes, ver, do mesmo autor, A Revolução Passiva: Iberismo e americanismo no Brasil, em particular, o capítulo “Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira” (Werneck Vianna, 1997) e A Transição: Da Constituinte à Sucessão Presidencial (Werneck Vianna, 1989).
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3 Embora Florestan não mencione, a literatura aponta, neste sentido, a criação do IL – Instituto Liberal, do IEDI – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial e do PNBE – Pensamento Nacional das Bases Empresariais.
retamente no plano econômico e promover a modernização, valer-se-ia da política. Ocupou então as estruturas do Estado, tornando-o instrumento do desenvolvimento capitalista dependente e do controle das demandas dos de baixo. A transição para a ordem social competitiva no Brasil, se fez, portanto, através da autocracia burguesa: a modernização seria obra de um Estado fechado à democratização, privatizado pelos interesses dominantes nada libertários (Fernandes, 1975). Para Florestan, portanto, não era a burocracia do Estado – como se esta pudesse se isolar totalmente das forças econômicas –, que roubava a cena da iniciativa privada; ao contrário, era a própria burguesia que erguia um Estado autoritário para levar a frente seus interesses sem o incômodo assédio das classes dominadas. Houve evidentemente variações neste arranjo ao longo do século 20. A 1ª República liberal teve como protagonistas os fazendeiros de café paulistas que controlaram os de baixo pela polícia e pela política dos governadores. Vargas são dois: o da ditadura do Estado Novo e o eleito democraticamente, morto pelo fechamento da política já em curso. No período subseqüente recrudescem as demandas sociais, repelidas pelo autoritarismo que se instala com a ditadura militar. Não é o caso de detalhar aqui este histórico. O importante a ressaltar é que 1964 responde por mais um ciclo da autocracia burguesa: a ocupação do Estado pelas classes dominantes
Eleição para presidente da Assembléia Nacional Constituinte (Constituinte – Sessão de 2 de fevereiro de 1987)
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para promover nova rodada de desenvolvimento capitalista. A Constituição de 1988, ao reunir de forma praticamente pioneira os direitos civis, políticos e sociais, parecia então pôr um termo a tal andamento.
1988: sublimação ou disputa A Assembléia Constituinte de 1987-1988 tinha por missão reconstruir o “Brasil Legal”: a ditadura militar parecia ter domesticado a mobilização popular, extirpando suas energias revolucionárias, de modo que a Constituição poderia cumprir a sua tradicional função simbólica de manter tudo como antes. No entanto, “as lutas sociais, que pareciam dormitar no subconsciente de uma massa silenciosa de cidadãos apáticos, estavam de fato fervilhando no substrato da sociedade. Subiram rapidamente à superfície” (Fernandes, 1989: p. 89), e ameaçaram construir institutos jurídicos capazes de modificar o coração do “país real”, como os que pretendiam a facilitação da secularmente obstada reforma agrária. A Constituinte tornou-se um campo de disputa. Dizia Florestan, que “enquanto as elites econômicas e políticas das classes dominantes querem brecar o processo constituinte”, os de baixo não só querem “explodir a bastilha”, mas também “partir de uma posição avançada na prática de uma democracia de participação ampliada” (Fernandes, 1989, p. 308). Embora o Legislativo fosse montado majoritariamente pelo poder econômico, as classes dominantes perceberam que os parlamentares podiam sucumbir às pressões populares. Assim, lançaram mão de organizações especialmente criadas para influir na Constituinte, como a União Democrática Ruralista (UDR), a União Brasileira dos Empresários (UBE) e o Centrão, entre outros expedientes,3 de forma que “a Constituição ficasse contida em uma camisa-de-força, pela qual a reprodução do ‘país real’ permanecesse inatingível” (Fernandes, 1989, p. 351). Não havia, por parte das classes dominadas, a visão utópica de que poderiam exercer de pronto a soberania do povo, ditando a si mesmas suas próprias leis. Mas assediaram a Constituinte através de institutos como o da iniciativa popular, pretendendo construir bases democráticas para as lutas pela universalização dos direitos. A Constituição deveria, então, refletir todas as classes e ser extensa, contendo um “rol máximo de normas constitucionais”, protegendo de forma exaustiva os estratos
mais sacrificados do país (Fernandes, 1989, p. 88-89). Os avanços da Constituinte foram obstados ainda por fatores externos. O país periférico e satelizado sofreu forte intervenção dos Estados Unidos quanto aos termos de sua Constituição. “As regras vêm de fora e são estabelecidas pelo sistema capitalista mundial de poder.” Ocorre que aqui elas encontram solo fértil. O “particularismo cego, entreguista e egoísta dos estratos dirigentes das classes dominantes” (Fernandes, 1989, p.365), resultante do modo como se desenrolou a revolução burguesa no Brasil, não oferece resistência e aceita de bom grado aquelas imposições. O pêndulo, então, haveria de balançar muitas vezes contra a democracia, anulando rupturas fundamentais que podiam ter tido lugar na Constituinte. O resultado concreto, no entanto, não foi uma ”peça homogeneamente conservadora, obscurantista ou reacionária” (Fernandes, 1989, p. 360). Conciliadora, a Constituição contém ameaças aos privilegiados. “Sem perderem qualquer regalia, eles assistem horrorizados à rotinização de liberdades individuais e coletivas ou de direitos sociais, e à universalização do acesso a meios legais que a exclusividade convertia em fonte de odioso despotismo” (Fernandes, 1989, p. 360-1). Tratava-se, doravante, de garantir que a Constituição – parcialmente ganha em disputas minuciosas – não se “convertesse, em seus aspectos mais promissores, em letra morta” (Fernandes, 1989, p. 309-310).
Tempestade e esperança Passados 20 anos da Constituição, e embora os meios legais inéditos tenham sido acionados,4 várias daquelas normas foram anuladas explícita ou tacitamente. Logo após a promulgação, Florestan vê no horizonte nuvens que anunciam tempestade. A “internacionalização da economia pressupõe que as burguesias nativas e a comunidade internacional de negócios caminhem juntas” (Fernandes, 1989, p. 371). Renovavam-se os meios autocráticos, de forma a permitir que os rumos do país continuassem a ser dirigidos de fora. Além disso, desrespeitando os direitos constitucionalizados e negligenciando o Estado Social desenhado pela Constituição, as classes dominantes optaram pela “violência institucional”, pelo controle policial das classes populares, e pelo aumento exponencial do encarceramento (Fernandes, 1989, p. 361).5 Parte
dos juristas do país se esmera em justificar o injustificável: constroem princípios extra-constitucionais para legitimar o descumprimento de normas expressas na Constituição, baseando-se na alegação tecnicista da restrição financeira. Para Florestan, já que o próprio parlamento – representação do povo – não defende a Constituição, cabe à sociedade civil resistir diretamente à “sabotagem constitucional” das elites no poder (Fernandes, 1989, p. 371). A Constituição não vale em si e por si. Ela só será um recurso para a extinção da autocracia burguesa caso os de baixo, despertando uma “consciência de classe crítica”, convertam a Constituição em valor, mobilizando-a nas suas lutas políticas cotidianas (Fernandes, 1989, p. 362). Para refutar o argumento de Lassalle de que as Constituições são meras “folhas de papel”, Konrad Hesse sustentou a existência de uma “vontade de Constituição” (Hesse, 1991). Hesse, no entanto, não desmente Lassalle. A força normativa da Constituição depende de agentes reais que sustentem tal vontade. No Brasil, diante da autocracia burguesa que se apropriou do Estado, esta tarefa está nas mãos dos de baixo. “Só em semelhante contexto 1934, 1946 ou 1988 deixarão de provocar paralelos melancólicos, que fazem prever acontecimentos indesejáveis” (Fernandes, 1989, p. 362). REFERÊNCIAS ARAÚJO, Gisele Silva. Democracia substancial e procedimental como fundamentos da legitimidade constitucional: a utilização de argumentos sociológicos da clássica teoria constitucional nas teorias políticas contemporâneas. 2005. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. . e SANTOS, Rogerio Dultra dos. A doutrina jurídica e a legitimação do descumprimento da Constituição, 2008, mimeo. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 1958. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. . A Constituição inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1933. Disponível em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html. Acesso em 23 de agosto de 2008. WERNECK VIANNA, Luiz. A Transição: Da Constituinte â Sucessão Presidencial. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1989. . A Revolução Passiva: Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997. . “Weber e a Interpretação do Brasil”, disponível em http://www.acessa.com/gramsci/?id=85&page= visualizar, acessado em 10 de agosto de 2008.
4 Florestan já indicava a judicialização da política como sendo causada, entre outras coisas, pelo uso dos meios previstos na Constituição, como Ação de Declaração de Inconstitucionalidade e Ação Popular. 5 No artigo “A Constituição de 1988: conciliação ou ruptura?”, publicado originalmente na Folha de São Paulo em 04/10/1988, Florestan Fernandes afirma: “... os de cima terão de recorrer à violência institucional ou deverão aprender, por fim, a conviver com e a respeitar os de baixo.” (Fernandes, 1989, p. 371).
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À espera da real revolução democrática Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Assessor do Núcleo de Direitos Humanos da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase)
A transição política brasileira da ditadura para a democracia, que se desdobrou na Anistia, na Constituinte e nas eleições diretas, acabou marcada por ambigüidades e ambivalências por causa das tentativas de refluxo e reciclagem da contra-reforma por parte do antigo “Centrão” e da tutela das Forças Armadas. Apesar das contenções e amarras que marcaram o processo de transição, a presença de forças populares e a incidência de movimentos sociais no plano da institucionalidade deixaram marcas no conteúdo e no caráter programático da nossa Constituição. Esse componente popular se projeta como uma sombra, um espectro de democracia que ronda uma revolução democrática inconclusa. O que explica os diversos ziguezagues, como o que levou ao impedimento de Collor e à nova carga de energia popular na eleição de Lula, sempre amortecida entre as continuidades das seqüelas do domínio neoliberal, dos intentos de golpes institucionais e da morbidez corruptora da pequena política arrivista. A recomposição das bases de nosso capitalismo não conseguiu anular o impulso nascido do poder constituinte das lutas pela democratização fundamentado na extensão de direitos. A luta pela cidadania integral e a dinâmica progressiva de superação das desigualdades ainda encontram referências positi-
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vas e afirmativas para a mobilização do poder soberano das classes populares como única sustentação para a progressão de direitos e a radicalização da democracia no Brasil.
O dilema Não podemos avançar na autoconsciência e na organização autônoma dos sujeitos coletivos sem passar pelo resgate e pela interpretação prática dos elementos de transformação contidos na versão original da Carta Magna de 1988. Ao afirmarmos que vale o que está escrito, nos colocamos na linha de resgate e libertação das potencialidades presentes, na perspectiva de ampliação e reconhecimento de direitos como resultados ainda presentes, como forças inerciais da intensa participação popular organizada no processo constituinte. Refletir sobre as restrições, os avanços e os retrocessos ligados ao processo da Constituição é a única condição de repensarmos a centralidade do acesso e da promoção dos direitos, fundamentais para uma estratégia de ampliação da democracia como valor universal. Os elementos de farsa e restrição gerados e transformados por força das lutas deixam um legado, uma base de reconhecimento de direitos políticos, econômicos, sociais e culturais, que serve para o questionamento mais fundo
d e b a t e da nossa dinâmica institucional – que vai muito além da substituição do “entulho autoritário” pela judiciarização da política e pela privatização e mercantilização da coisa pública.1 A criminalização de movimentos sociais, a defesa da impunidade dos torturadores, a apropriação dos fundos públicos, a degradação dos direitos e a desnacionalização fazem parte de um processo que só pode ter resposta na via da Constituição e dos atores políticos capazes de resgatar o potencial e a trajetória de lutas pela democracia. A atual relação de forças entre as classes dominantes e as classes populares exige práticas de resistência e construção de alternativas cujo potencial de avanço se relaciona com os novos direitos inscritos na Constituição Cidadã. Levantar essa perspectiva de reflexão necessária não nos livra de exame mais profundo das limitações e contradições que encerram a polêmica sobre o processo constituinte. As formas restritivas, que derivam do poder da chamada “República Constitucional”, bloqueiam, na estrutura do Estado e na sociedade civil, a progressão do potencial emancipatório e do poder constituinte popular. No meio da fragmentação e da precarização da vida social, a única ponte para ligar uma frente única dos sujeitos populares, para realizar as reformas sociais estruturais e garantir a ampliação dos direitos reside no caráter unificador do sentido programático e no valor ético normativo expresso nas lutas inconclusas que se escrevem nas ambivalências de nossa Constituição. O fundamento de legitimidade do arcabouço institucional e legal deve sair das formas abstratas dos princípios para o terreno de normas efetivas, condicionando a ação estatal de maneira mais favorável para a redefinição de políticas. A luta contra as desigualdades depende de realizarmos o federalismo de lugares, de modo a garantir a cidadania integral. O projeto político de democracia progressiva só se realizará por meio de plataformas e políticas sustentadas por um bloco popular, que precisa da autoconsciência e da reflexão sobre as questões da ordem republicana para nos ajudar a romper com a “nostalgia imperial” e a lógica do estado de exceção permanente. A ênfase na mercantilização da vida social desenvolve-se contra uma cultura democrática (com base no exercício e na promoção de direitos) e promove o fascismo social a partir da construção de contextos e imagens que barram a demanda coletiva por direitos. O
corpo das multidões destituídas é visto como ameaça pelos dispositivos que tentam impedir a passagem para um período popular e democrático em nossa história republicana.
O que vale do que está escrito? O aniversário de 20 anos da chamada Constituição Cidadã pode e deve ser um momento de reflexão. Diante de tantas emendas (mais de 62 até março de 2008), que geram um “mal-estar da Constituição”, segundo Samuel Rodrigues Barbosa (1999), deveríamos arriscar a emenda da revisão geral, precedida de plebiscito? Por força de todo o ataque ao patrimônio estatal que solapa as bases materiais do desenvolvimento autônomo nacional, nos restaria apenas assumir o esgotamento da força normativa de longa duração da Constituição? Nessa linha, Fábio Konder Comparato (2008) insiste no caráter patrimonialista e na lógica oligárquica aberta na década de 1990, que alienou a população do processo de decisão em matérias decisivas, tais como as questões trabalhistas e previdenciárias ou o tempo de duração dos mandatos eletivos. A maioria das mudanças usadas para desqualificar os princípios constitucionais foi resultado legal do intento de superação do “nacional desenvolvimentismo” e do “getulismo” – processo no qual Fernando Henrique Cardoso foi muito mais longe do que Fernando Collor de Mello. Desde então, o uso da prerrogativa das medidas provisórias, o espetáculo das CPIs e a disputa de ações diretas de inconstitucionalidade fazem parte de um quadro mais geral de morbidez, corruptibilidade e casuísmos, que representa o cenário material e político do império do globalismo financeiro e do individualismo possessivo. A esse processo da sociedade política corresponde, na sociedade civil, a substituição do cidadão e da cidadã pelo consumidor(a), o proletariado pelo precariado e a transformação da questão social urbana e da questão agrária em “casos de polícia”. A cultura do medo se instala com mais facilidade num ambiente de exploração da economia da insegurança, mobilizada pelo discurso dos jogos de guerra contra as periferias e os(as) jovens (conduzido por torturadores, paramilitares, tropas de elite e especialistas em tecnologia) que ganha as telas e a audiência. Pode parecer a conseqüência lógica de um raciocínio crítico, necessariamente pessi-
1 Para essa reflexão, podemos sugerir a recuperação das reflexões de Raymundo Faoro (1981).
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instituinte e o controle democrático, é preciso buscar os elementos contraditórios e uma correta avaliação das disputas em crise, como a crise de hegemonia dentro de uma transição democrática inconclusa, em um quadro de transição paradigmática global. Devemos buscar a resposta que relacione o poder constituinte à soberania popular, como base de uma democracia participativa, dentro das disputas reais e da dinâmica processual da crise de hegemonia. Isso significa um tipo de crise que não pode ser resolvida no plano de uma batalha só, pela guerra de manobra direta. Para o bem ou para o mal, a questão do valor da Constituição só pode ser medida em sua relação com o processo histórico da transição democrática. Cabe – como fará a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no seu congresso nacional em novembro deste ano – medir o papel da Constituição de 1988 na qualidade de instrumento de defesa e ampliação de direitos diante dos problemas da democratização, no quadro da atual reestruturação capitalista global, com todas as implicações e todos os processos de
André Dusek / Agil / Arquivo Histórico do Museu da República
mista, que tenhamos de propor uma saída na direção de uma nova Constituinte, uma vez que o processo da anterior esteve marcado pelas restrições da sua soberania, em um quadro de derrota da emenda das “Diretas Já”. Até mesmo porque uma reforma restrita da política, ou uma continuidade de reformas do tipo da tributária, só deve levar água ao moinho da contra-reforma constitucional permanente. Na dialética negativa do argumento crítico mais sólido, o vício de origem marca a fragilidade da criatura (a Constituição de 1988), que se converteu numa caricatura. Será que, por isso, podemos realizar uma manobra institucional, por dentro da lógica das emendas, para deter, em definitivo, esses atentados ao poder soberano do povo? Bastaria estabelecer o instituto da revisão geral e, por meio desse, realizar um plebiscito, de modo a convocar uma Assembléia Constituinte com funções exclusivas, eliminando o vício de origem do Congresso Constituinte de 1986, que produziu a Constituição de 1988. Como veremos, mesmo que esse objetivo possa ser logicamente correto, para ampliar o poder
Residência oficial do presidente da Câmara dos Deputados – 24 novembro de 1987
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crise do Estado e dos paradigmas políticos clássicos. Isso exige percepção da luta pelos direitos sob a ótica do pragmatismo radical, da acumulação de forças e das contradições que fazem com que a crise não gere estabilização da dominação. Em vez de vermos um problema no caráter programático da Constituição, não devemos ver aí a sua força? Em vez de vermos, nos impasses, a força oligárquica e corporativa, não podemos identificar elementos de uma crise de legitimidade? Em vez de vermos apenas os recuos, não podemos perceber disputas e conquistas? De todo modo, não se resolvem as batalhas sobre os direitos coletivos e a democracia, sobre os modos de governar e organizar o poder do Estado, sobre as políticas e o gasto público, sobre a tributação, as desigualdades, a propriedade, o trabalho e a previdência sem antes definir um patamar de conquistas que foram obtidas, mesmo que permeadas de recuos e derrotas parciais. A construção da democracia e a potência política da cidadania não podem prescindir das conquistas parciais escritas no texto original. Aliás, esse esclarecimento sobre o que foi escrito pelo constituinte sob a pressão da cidadania (movimento pela participação popular) abriu brechas decisivas, sem as quais não se pode avançar. Controvérsia semelhante marcou o debate sobre as reformas de base e a ampliação da democracia antes de 1964, face aos limites e às restrições da Constituição do pós-guerra. Existe o risco de se tentar avançar sem ter por base a superação sustentada real, o que pode produzir mais regressão que avanço. A questão da mobilização para o resgate das conquistas democráticas passa pela capacidade de defesa organizada de direitos. O conhecimento se entrelaça e amplia o interesse. Por isso, as bases subjetiva e objetiva da Constituição dependem do arco de forças capaz de lhes dar sustentação material e simbólica. Os direitos são sustentados se pudermos responder aos questionamentos sobre quem tem interesse em defender o artigo 6 (dos direitos sociais), quem tem interesse em defender a função social da propriedade, quem tem interesse em defender o instituto da lei de iniciativa popular. As derrotas não se resolvem por saltos sem que as forças sociais estejam em movimento. Estamos longe de uma frente única de mobilização popular, estamos longe de um cenário sem contradições e opacidades. A nitidez é boa para ensinar lições reais, muitas
vezes amargas, como a que aprendemos no referendo sobre o estatuto do desarmamento/ comércio de armas. Para avançar na cultura dos direitos, é preciso aprender a defendê-los e conhecê-los, conhecer e se apropriar da Carta, conhecer seus princípios, reafirmar sua base normativa potencial de caráter programático. Precisamos reagir contra o esbulho perpetrado pela sanha neoliberal das emendas questionando os defeitos de base, o que só pode ser realizado com uma cultura política que ponha na ordem do dia o ato de fazer valer o que foi escrito, única condição de avançar e superar.
Resgate necessário No aniversário da Constituição Cidadã, o que vale é resgatar o poder e a legitimidade que lhe foi dada por uma potência soberana sempre contraditória, sempre em gestação, que precisa se pôr em movimento, tendo à mão o que foi escrito 20 anos atrás. Porque, para a Constituição do espaço da cidadania, vale o que está escrito! O Congresso Nacional, a magistratura, o Ministério Público e as organizações sociais devem assumir a responsabilidade de avaliar os resultados da implementação do programa democrático, expresso na Carta de 1988. Esse programa foi o resultado de grandes mobilizações pela participação popular e de grandes disputas sobre a natureza e o caráter das normas que refundaram a institucionalidade do regime democrático depois de mais de 20 anos de ditadura. Como ponto de corte da transição democrática, o processo constituinte inseriu o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais no centro das normas orientadoras do funcionamento das instituições do Estado e dos direitos e deveres da cidadania. Avaliar o resultado substantivo dos direitos e a legitimidade de nossas instituições exige leitura crítica do quadro de desregulamentação, de descumprimento e da não-efetivação dos direitos nascidos da Assembléia Constituinte. A questão da universalização do acesso aos direitos como fundamento e objetivo de realização de um projeto nacional baseado na soberania democraticamente realizada, na forma representativa e nas formas participativas, é o principal indicador para a avaliação do estado da democracia no Brasil. Outro indicador importante deve ser construído para avaliar as tensões imanentes
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ao compromisso democrático de 1988, advindas dos golpes e das revisões sofridas pela Constituição por força das políticas de ajuste, das medidas provisórias e das modificações substantivas derivadas da agenda de abertura internacional, sob a égide das contra-reformas conservadoras em favor do modelo neoliberal. Na comemoração de 20 anos da Constituição Cidadã, são necessárias mobilizações e audiências públicas que levem em conta todo o esforço histórico realizado pelas forças sociais engajadas na defesa de direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. As atividades sobre a questão social e o estado dos direitos no Brasil devem pautar o questionamento sobre a consistência e a legitimidade de nosso ordenamento constitucional, na perspectiva de reconstrução de estratégias para implementar um desenvolvimento fundamentado na efetivação da justiça social. Os temas do pacto federativo, do orçamento, dos fundos e das políticas públicas, da participação democrática, do sistema de proteção, da garantia e promoção dos direitos humanos, do acesso ao sistema de justiça, dos conflitos e da violência do Estado e na sociedade, da crise do Estado, dos problemas da representação política, do colapso e da crise do modelo de desenvolvimento concentrador de renda e poder, do direito à informação e à comunicação, das questões da ciência e da tecnologia, dos problemas das discriminações racial, sexual, de gênero e de geração devem ser postos em debate. Relacionam a estrutura e os processos de nossa democratização inconclusa sob o olhar crítico da reflexão sobre a qualidade de nossa democracia. A questão das desigualdades e das segregações social, espacial, étnica, de gênero e de geração devem servir de guia para o debate sobre a Constituição como instrumento material e simbólico, objetivo e subjetivo, de viabilização da transformação das realidades encontradas em nossa vida cotidiana. O problema da legitimidade e da legalidade do ordenamento jurídico-político se traduz nos conflitos sobre o cumprimento e o descumprimento do estado democrático de direitos, nos termos definidos pelo compromisso com a ampliação da cidadania como conjunto de práticas. A questão constitucional da democracia depende do poder vivo da sua apropriação permanente pela soberania popular como fundamento das ações pela exigibilidade e pela justiciabilidade do direito ao desenvol-
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vimento, baseadas na realização do bem-estar individual e coletivo. O impulso da democratização se relaciona à afirmação prática do direito a ter direitos, da tradução concreta do ideal da igual liberdade como fator simbólico e objetivo da democratização. A questão da efetivação do Estado e do estatuto dos direitos deve guiar a ação ético-política, tomando como princípio o sistema de garantias e a orientação normativa do processo de efetivação material e da publicização das práticas de uma cultura democrática enraizada na vida social e política de um país. A agenda dos movimentos de direitos humanos e da cidadania organizada deve incluir a tarefa de avaliação do estado de cumprimento dos direitos, de enfrentamento dos desafios lançados em 1988, de modo a produzirmos a mudança de rumos para avançar, efetivamente, na democratização. Essa deve ser uma maneira de superarmos as desigualdades, a segregação, a discriminação e a injustiça social em todas as suas formas, no plano do poder decisório e na vida cotidiana, nos diferentes contextos territoriais da cidade e do campo.
Referências FAORO, R. Assembléia Constituinte: a legitimidade recuperada. São Paulo: Brasiliense, 1981. BARBOSA, S. R. O mal-estar da constituição. Adunicamp – Revista da Associação de Docentes da Unicamp, Campinas, v. 2, 1999. Disponível em: <http://br.geocities.com/profpito/ omalestardaconstituicao.html>. Acesso em: 14 ago. 2008. COMPARATO, F. K. E agora, Brasil? Folha de São Paulo, São Paulo, 3 mar. 2008. Opinião. Disponível em: <http://www1. folha. uol.com.br/fsp/opiniao/fz0303200809.htm>. Acesso em: 14 ago. 2008.
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intern internacional Dos amigos angolanos do Ibase*
Paz, governança, reconstrução, democracia e eleições em Angola encontra-se em um momento de consolidação da paz e de transição política, econômica e social, vinda de um contexto de guerra e destruição para um de reconstrução e desenvolvimento. Para isso, conta com os investimentos do Estado angolano e de doadores internacionais e multinacionais. Espera-se que a transição de um modelo de gestão pública centralizada para uma gestão descentralizada produza, a curto e médio prazos, mudanças que possam refletir na melhoria das condições de vida das populações dos municípios e regiões mais pobres e distan-
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Mais PV
acional
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internacional
tes, e que as próximas eleições sejam capazes de legitimar os(as) titulares de cargos políticos.
Em busca da paz Angola viveu um processo político complexo, principalmente a partir de 1975. Nessa época, apesar da independência, não conseguiu organizar o processo eleitoral quando havia apenas três partidos nacionalistas (MPLA, FNLA e Unita). Seguiu-se um período de guerra após a independência e, em 1992, organizou-se um processo que permitiria que as diferentes formações políticas concorressem, possibilitando o jogo de alternância do poder por meio das eleições. O processo correu bem do ponto de vista organizacional, mas acabou mal pela não-aceitação dos resultados. Conseqüentemente, houve uma nova guerra civil, que terminou há seis anos. Desde o fim dessa guerra, que devastou o país, começaram a ser lançadas as bases para Angola caminhar em busca da paz duradoura e encontrar um modelo de desenvolvimento que proporcione à população oportunidades de realização pessoal em função das suas aspirações sociais. Para isso, a promoção da cultura de tolerância e do respeito às diferenças tem sido estimulada internamente. Hoje, a nação parece estar madura. Essa conquista do povo angolano é, também, resultado de uma vivência e do aprendizado por conta própria. Por isso, acreditamos que o país tem condições de avançar. Os principais elementos do Estado (Forças Armadas e Polícia Nacional) estão quase consolidados. O que falta é a legitimação dos(as) titulares dos cargos políticos, e isso depende do processo eleitoral em curso.
Governança Existe certa preocupação e empenho em relação à melhoria do sistema de governança do país, que sempre funcionou de forma muita centralizada – até recentemente, todas as decisões eram tomadas pelo Governo Central, com alguma participação, nos últimos anos, dos governos provinciais. As instituições administrativas locais (municipal e comunal) eram, nesse contexto, extensão e reprodução das estruturas centrais do Estado, quer nas suas formas organizativas, quer no modo de funcionamento. A manutenção da segurança pública e o controle sobre toda a extensão territorial
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estiveram, até agora, como preocupação prioritária do governo. Com a publicação dos Decretos-leis 1/07 (para Cabinda) e 2/07 de 3 de janeiro (para todo o país), sobre a descentralização administrativa, começa a haver maior clareza sobre as responsabilidades governamentais locais. Tais decretos criaram as bases e constituem um passo visível para a descentralização administrativa. Neste contexto, cidadãos e cidadãs, bem como grupos organizados da sociedade civil, podem participar das atividades de desenvolvimento da zona territorial, desde que bem treinados e interligados. Por outro lado, tal participação proporciona à população mais experiência em processos de análise da situação do município, na elaboração de planos plurianuais de desenvolvimento municipal, na eleição dos(as) representantes e em debates permanentes de análise sobre o progresso (fator a ser considerado em todo o programa de reforma administrativa por constituir um dois eixos do sucesso do desenvolvimento municipal).
Reconstrução Nos últimos anos, o processo de reconstrução de Angola tem caminhado a passos largos. Aos poucos, por todo o país, vão se erguendo escolas, postos de saúde, estradas vão sendo reabilitadas. Enfim, está em andamento um intenso programa de reabilitação e reconstrução estrutural. Andando pelo país, seja nas áreas urbanas ou rurais, é visível a quantidade de construções já prontas ou em curso. A esta altura, ninguém critica o governo em relação ao volume de investimento para essas obras. As críticas são direcionadas à questão da sua qualidade e durabilidade, bem como do possível aproveitamento político que o partido no poder pode tirar dessas realizações.
Democracia e eleições Muito ainda precisa ser feito para o estabelecimento e a normalização do sistema democrático no país. Foram aprovados os partidos e as coligações partidárias que irão concorrer às próximas eleições marcadas para setembro próximo, encerrou-se a primeira legislatura angolana (Assembléia Nacional), a Comissão Nacional Eleitoral está avançanda na organização do próximo pleito e os partidos entraram, oficialmente, em 5 de agosto, na fase da campanha eleitoral. Em 15 de julho, realizou-se a última
sessão parlamentar da legislatura vigente, que esteve no poder por 16 anos. Nesse período, 209 deputados, sendo 179 homens e 30 mulheres, freqüentaram a casa, aprovando, em média, 13 leis e 31 resoluções por ano. A principal dificuldade apresentada foi a questão das residências dos deputados e, sobretudo, o seu funcionamento, em tempo de guerra. Entretanto, para a população angolana, o fim da primeira legislatura representa (e deve representar), seguramente, o início de um novo ciclo político, que começa após as próximas eleições – que, se espera, cumpra a normalidade constitucional de quatro anos de mandato. As listas dos partidos políticos que irão participar das eleições já foram fechadas e divulgadas. Inicialmente, o Tribunal Supremo (TS) angolano apresentou à Comunicação Social uma lista com 98 partidos políticos devidamente legalizados. Na ocasião, a instituição divulgou também um total de 29 siglas de formações políticas que não foram considerados legais. Em 25 de julho, por despacho presidencial, foi criado o Tribunal Constitucional (TC) com objetivo de se encarregar dessa matéria jurídico-constitucional. Dos 98 partidos políticos legalizados pelo TS, 34 partidos e coligações apresentaram candidaturas para disputar o pleito eleitoral. Desses, apenas 14 partidos e
coligações foram aprovados. Para estas eleições, os partidos receberão um financiamento, aprovado pelo Conselho de Ministro, avaliado em 1 milhão 275 milhões de kwanzas – equivalente a US$ 17 milhões. As figuras Rafael Massanga Sakaita, filho do falecido fundador da Unita, Jonas Savimbi, e Welwitchia dos Santos Pego (Tchizé), filha do atual presidente de Angola e do partido no poder/MPLA, José Eduardo dos Santos, serão outro ponto de forte interesse e que merecerá a atenção do público quando for constituída a próxima legislatura. Ambos estão em posições nas quais, dificilmente, deixarão de ser eleitos deputados. Por outro lado, devemos admitir que paira entre parte da população angolana e mesmo de estrangeiros (poucos) certo receio sobre os resultados das próximas eleições. Aterrorizados com a experiência de 1992, do Quénia e do Zimbabwe, algumas pessoas pretendem coincidir as férias com a data das eleições. Contudo, até o momento, isso tem ficado apenas em conversas de bastidores porque, segundo algumas fontes, na TAAG e em outras companhias de viagens que operam em Angola, ainda existem poucas reservas e muitos lugares disponíveis.
* Dos amigos angolanos do Ibase Adão Domingos Adriano; Analdina Silvina Eduardo; Konde Emmanuel; Massamba Ngengo Dominique e Moises Cheteculo Piedade Festo, funcionários(as) da ONG Development Workshop (DW), e Lourenço Mabonzo, responsável pela área técnica da Administração Municipal de Cabinda
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ENTRE VISTA Entrevista
Bete Mendes
Quem é Elizabete Mendes de Oliveira? Pergunta difícil de responder, mas pensar em coragem, resistência e contradição podem ser boas pistas. Muito cedo, a aprendiz de ativista percebeu a cultura como valioso instrumento para fortalecer sua ação política e expressar sua emoção, evidente ao primeiro olhar. E foi o que ela fez pela vida afora. Queria ser promotora pública, filósofa, socióloga, bailarina e pianista. Poderia ter sido escritora. Mas foi como atriz que a jovem, com cerca de 20 anos, filha de um militar, reuniu forças para lutar contra a ditadura e, paralelamente, trilhar uma carreira de sucesso. Deputada federal por dois mandatos, Bete participou da Assembléia Constituinte que criaria, há 20 anos, nossa Constituição mais festejada. No fim da década de 1980, denunciou para a Presidência da República e para a mídia seu torturador da época de revolucionária. O episódio trouxe à tona o debate que hoje esquenta o Congresso e a sociedade sobre uma possível revisão da Lei da Anistia. “Seria interessante um debate sobre uma possível revisão constitucional, e não só para essa matéria. Deveria haver um movimento buscando mais participação da sociedade. Acho interessante que haja um
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Democracia Viva (DV) – Fale um pouco sobre sua infância e família. Bete Mendes – Nasci em Santos, uma cidade da qual me orgulho muito, porque foi uma cidade de resistência pela sua organização sindical. Foi uma das últimas cidades a ter eleições diretas, era considerada área de segurança nacional no período da nossa redemocratização. Nasci em 11 de maio de 1949, vou completar 60 anos em 2009. Nasci Elizabete Mendes de Oliveira, era gêmea. Meus pais batizaram minha irmã de Izabel, ela faleceu com 1 mês de idade porque tinha insuficiência cardíaca. O interessante é que Elizabete e Izabel significam o mesmo.
DV – Seu pai trabalhava em quê? Você tem irmãos? Bete Mendes – Meu pai era suboficial da Aeronáutica, ele servia na Base Aérea de Santos, e depois foi transferido para a Base Aérea do Galeão, no Rio, de onde foi transferido para a Base Aérea de São Paulo, no Campo dos Afonsos. Moramos também um período em São Vicente, cidade limítrofe de Santos. Tenho um irmão, Marcos Mendes, 13 anos mais novo, e uma irmã do segundo casamento da minha mãe. Minha irmã tem um nome muito especial: Ptsiqui, por minha responsabilidade. Quando minha mãe e seu marido quiseram batizá-la, pediram que eu escolhesse o nome. E eu – já entrando um pouco no meu ativismo –, absolutamente anárquica e espontaneísta, estava muito ligada à causa indígena e era amiga dos irmãos Villas Bôas. Fui à casa deles em São Paulo e pedi uma lista de nomes indígenas. Ptsiqui é masculino e significa fada da floresta na língua da nação Gê. Hoje, ela é médica, cirurgiã plástica, e todos a chamam de Pit.
DV – Seu pai era um militar de esquerda ou de direita? Qual a origem de sua família? Bete Mendes – Ele não tomava partido, vem de uma família tradicional de São Paulo, e minha mãe é filha de índia. Cheguei a conhecer minha avó, tenho verdadeira paixão por ela, que era guarani, linda. Meu pai nunca foi uma pessoa repressora, autoritária. Ele se espantava muito com minhas reações, eu tinha um galope muito pessoal. Desde muito pequena, o amor pela arte e pela política caminharam juntos.
DV – Quando isso começa? Bete Mendes – Com 5 anos de idade, quando morávamos em São Vicente, meu pai era muito fã dos musicais e da música norte-americana, e eu escutava e gostava muito.
Aprendi a ler com 3 anos, com a ajuda de uma senhora que tomava conta de mim. De São Vicente, fomos morar na Base Aérea de Santos, na Ilha do Guarujá. Eu morava perto da escola pública Marcílio Dias, estava no primário. O estudo era excelente e fazíamos também muitas festas. Eu participava de todas elas, criando e produzindo. Aí, já aparecia essa veia artística.
DV – E a política? Bete Mendes – Acho que veio dessa vivência na escola pública. Estudei nos melhores colégios do Brasil, todos públicos. Estudei em Santos em escola pública, vim para o Rio para o colégio Mendes de Moraes, voltei para Santos para a escola pública e depois ingressei numa universidade pública. Eram professores maravilhosos, o ensino era maravilhoso. Lá, tínhamos uma vivência mais próxima com as pessoas, era muito grupal. Fui representante de turma várias vezes. Fiz prova para cursar o ginasial no Colégio Canadá, em Santos, e passei. Cursei, lá, o primeiro e o segundo ano do ginásio. Depois, meu pai foi transferido para Ilha do Governador, Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, e fui para o colégio Mendes de Moraes. Repeti o terceiro ano e isso, pra mim, foi mortal porque eu era traquina, mas estudiosa e concentrada.
DV – Mudar várias vezes de cidade a incomodava? Bete Mendes – Bastante. Entre Santos e São Vicente, não foi sentida essa perda porque as duas cidades são tão próximas que não percebemos a diferença. De Santos para o Rio, fiquei apavorada. Mas quando cheguei ao Rio, me apaixonei pela cidade de maneira surpreendente, tanto que, quando meu pai teve que voltar para São Paulo, eu chorava desesperadamente, não queria voltar. Claro, estava com 12, 13 anos, começando a namorar, essa mudança foi traumática. Mas para uma pessoa com vida militar, meu pai até que mudou pouco, serviu em poucas praças. No colégio Mendes de Moraes, no Rio, tínhamos aula de Canto Orfeônico, uma matéria muito importante. O ensino de música nas escolas é um assunto em pauta hoje – até mandei um e-mail para o presidente da República porque o projeto de lei foi aprovado no Congresso e espero que seja sancionado.2 Quando fui parlamentar e secretária de Cultura do Estado de São Paulo, batalhei bastante para isso e não tive sucesso. Agora, tive essa notícia boa. Principalmente para os homens, isso era muito importante, era uma libertação dos
1 Assista também ao vídeo com os principais trechos da entrevista, disponível no Portal do Ibase: <www. ibase.br>. 2 Nota da edição: alguns dias após esta entrevista, realizada nos dias 6 e 8 de agosto, o presidente Lula sancionou o projeto de ensino de música nas escolas públicas.
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tinha, peças manuscritas para Oduvaldo Viana Filho. Ele, tão generoso, respondeu para mim. Em uma das minhas peças, o povo ia para o Palácio de Governo, na época o governador era Carlos Lacerda, e a polícia metralhava todo mundo. O Vianinha respondeu que a peça era quase impossível de encenar, mas ele observou que havia um personagem, uma professora, que tinha uma história bonita e que poderia ser aproveitada. Esse personagem foi inspirado em uma amiga do colégio. O Vianinha me deu uma sugestão bacana, que não segui: ele achava que eu escrevia bem e que deveria tentar traduzir alguns livros para a linguagem cênica. De fato, sempre me dei bem nas aulas de redação. Mas, na época, eu queria fazer Direito para ser promotora pública, queria julgar todo mundo.
constrangimentos através da voz. A formação pela música abre campos inimagináveis. Nessa escola, montamos um grupo de teatro espontaneamente, estimulados e apoiados pela professora Regina Carvalhal. Desse grupo, fizeram parte, além de mim, Bemvindo Sequeira e Ângela Leal. Encenávamos tragédias gregas, tínhamos atividades nos fins de semana, tínhamos uma liberdade de ação incrível. Eu era uma estudante aplicada, esportista esforçada e participava do grêmio estudantil. Aí, já começava a juntar ação política (de forma quase rudimentar) e cultura.
DV – Participou do movimento de cultura popular da época? Bete Mendes – Quando morava na Vila Militar, no Rio, fiquei amiga de uma família de vizinhos cujo sargento era comunista. Ele faleceu, e sou apaixonada até hoje por ele. Minha primeira informação político-cultural foi nessa casa. Com a filha dele, que era um pouco mais velha que eu, e uma outra, comecei a freqüentar a UNE [União Nacional dos Estudantes]. Estava com apenas 13 anos.
DV – Como seu pai, sendo militar, reagiu diante de suas incursões na política? Bete Mendes – Meu pai ficava nervoso, preocupado e, ao mesmo tempo, tínhamos uma relação afetiva tão forte que, apesar de ele dizer para eu não me meter naquilo porque poderia ser perigoso, a gente debatia os assuntos. Ele dizia que eu estava errada e eu, sendo muito abusada, o questionava. A gente tinha todo esse debate, mas ele não era do tipo agressivo nem punitivo, era só discussão mesmo.
DV – De novo, estava unindo arte e política, não? Bete Mendes – Sim, e a partir daí, isso se fortaleceu. Na minha volúpia de leitura, comecei a ler sobre todos os trágicos gregos, passando pelos grandes teatrólogos mundiais, e enveredei pela leitura de livros políticos. Na minha casa, comprávamos poucos livros. Mas tinha uma família de outro sargento que comprava muitos livros. Então, li a obra inteira do Dostoievisk. Foi assim que comecei a escrever peças de teatro. Numa das idas à UNE, levei, numa pas-
DV – Você já falou algumas vezes sobre o seu pai. Como era a relação com a sua mãe? Bete Mendes – Era uma relação de idolatria e desejo de chegar a ela. Minha mãe era um furacão de beleza, meu pai não era bonito. Minha mãe, ainda hoje, é bonita. Ela era de parar o trânsito na rua, era um violão, eu ficava alucinada com a beleza dela e me achando feia. Mas me identificava mais com a forma de pensar da mulher do vizinho comunista. Ela não era comunista, só o marido, mas me identificava com ela. Com a mãe, era mais a questão afetiva, ela era muito afetuosa.
Arquivo Bete Mendes
DV – Você estava com 15 anos quando foi dado o golpe militar de 1964. Como foi esse impacto na sua vida?
Com o amigo Bemvindo Sequeira em 1979
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Bete Mendes – Nessa época, estudava no Mendes de Moraes e a diretora fez a ordem unida, mandou os alunos entrarem em forma e cantarem o Hino Nacional. Eu saí e não cantei. Ela me chamou, e eu disse: ‘Não vou cantar o Hino Nacional porque aconteceu um golpe de Estado!’. Ela me suspendeu por três dias e chamou meu pai na escola. Eu tinha essa ou-
Arquivo Bete Mendes
Arquivo Bete Mendes
Bete Mendes
O irmão Marcos e a irmã caçula, Ptsiqui
sadia da inconsciência jovem. Na época, estava como área de influência do Partido Comunista Brasileiro (PC), meu contato era o Bemvindo Sequeira. Já estava lendo Marx, Engels, Lenin, estava com a cabeça a mil. A mulher jovem, atraente, não existia. Eu tinha um namorado, mas era muito severa, muito preocupada com a moral e tinha uma rejeição à mulher-objeto. Isso é algo que me seguiu durante a vida, me fazendo ter posturas avessas a isso, mesmo artisticamente. Quando aconteceu o golpe, meu pai chegou em casa apavorado. Ele era especialista em hélices, era um técnico e foi chamado para plantão. Todo mundo estava assustado, e fui me instruir, buscar informações, na casa do meu vizinho, que foi preso imediatamente. Eu estava assustadíssima.
DV – Você participou do Comício da Central em favor do Jango? Bete Mendes – Não, esse foi um momento de sofrimento. Queria ir, minha vizinha ia, mas meu pai me proibiu. Ele ficou de plantão por vários dias, e fui sentindo a mudança pelo medo das pessoas, apesar de não participar diretamente. Conversava muito com minha vizinha, e meu pai visitava o marido dela na base onde ele estava preso. Ao mesmo tempo, teve a minha resistência no colégio, meu pai brigou comigo, mas eu era a melhor aluna da classe, então isso facilitava um pouco. Aconteceu o golpe, mas alguma coisa resistia. Em 1966, assisti à
Bete aos 4 anos
peça “Liberdade, liberdade” e também a uma montagem maravilhosa do Agildo Ribeiro, “As aventuras de Ripió Lacraia”.
DV – Foi a primeira vez que foi ao teatro? Bete Mendes – Não, tinha tomado conhecimento do teatro em Santos, ainda pequena. A primeira peça teatral profissional a que assisti foi com meu pai. No palco, estava a extraordinária Dercy Gonçalves. Mas, no geral, fui pouco ao teatro, ia mais ao cinema. Não ouvia novela de rádio, que era comum na época, nem assistia às novelas de televisão. Foi também em Santos que participei da minha primeira peça de teatro infantil, de um autor comunista, também santista, Oscar Von Full, “A árvore que andava”. Eu fazia a coelhinha Naná.
DV – Depois do golpe, vocês se mudaram novamente, não foi? Bete Mendes – Meu pai voltou para São Paulo, e eu e minha mãe fomos para Santos, eles já estavam se separando. Fui para o Colégio Canadá. Nessa época, conheci Ney Latorraca, que estudava comigo, e Nuno Leal Maia, que estudava em um colégio particular, o Santista. Entrei para o grupo de teatro do Colégio Canadá, para o grêmio, para o grupo de esportes do Nuno Leal Maia na praia, participava do Cineclube de Santos e de um grupo do Clube de Xadrez de Santos, todos eram mais velhos, a única estudante era eu. Enfim, estava numa volúpia de fazer muitas coisas ao mesmo tempo,
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entrevista
sempre na correria. Ney Latorraca definia bem essa situação: dizia que enquanto ele queria soltar plumas e paetês no teatro, eu estava lá reivindicando melhor horário para os alunos, questionava o colégio, que estava se fechando para a participação. Eu era uma ativista e ele era um ator.
DV – Quando começou a trabalhar? Bete Mendes – Foi em Santos. Eu queria ganhar dinheiro, fiz um curso de datilografia, no qual não me saí muito bem. Primeiro, trabalhei como secretária de um advogado, foi ótimo porque ele ficava com os clientes e eu lia o dia todo. Depois, fui para o Sindicato de Motoristas em Guindaste do Porto de Santos. E adorei. Eram brutamontes, homens das docas, carregadores de peso, e me tratavam com uma gentileza, com uma consideração, mesmo quando eu errava.
DV – Mas você ainda não estava totalmente engajada? Bete Mendes – Não, eu era área de influência do PC no Rio e quando fui para Santos, não houve transferência. Mas acabei me aproximando dos comunistas de Santos. Não tinha ainda uma convivência organizada com eles, mas já era amiga de todos. Eu fazia parte do grupo dos fedelhos que estavam chegando.
DV – E quando começou seu ativismo realmente? Bete Mendes – Quando fui para São Paulo procurar emprego. Estava com 17 anos, no terceiro clássico, e consegui a única vaga disponível no Colégio de Aplicação. Eu era uma argumentadora de marca maior, foi aí que comecei o ativismo estudantil. O diretor do
colégio, que era maravilhoso, foi deposto por motivos políticos. Assumiu uma nova diretora, e fizemos algumas manifestações contrárias. Ela tentou nos punir, e participei do movimento de greve. Ficamos na porta do colégio fazendo piquete para não deixar aluno nenhum entrar. Estava hospedada na casa de uns amigos e estudava à tarde. Um colega da peça infantil que fiz em Santos, Carlinhos Silveira, estava encenando uma peça dirigida por Ademar Guerra, o espetáculo “Marat-Sade”, e eu assistia toda noite, nessa época já era rata de teatro. Armando Bogus interpretava Marat e Rubens Correa, Sade. Era sobre a revolução francesa, eu ficava babando. Mas era muito tímida, era um problema.
DV – Pelo que relatou, você também era atirada. Como conciliar ousadia com timidez? Bete Mendes – Não sei. Para você ter uma idéia, durante a aula, só sentava na frente, arrumadíssima, os lápis bem-apontados, fazia tudo com primor. Mas era amiga da turma bagunceira que ficava lá atrás, não suportava as coleguinhas iguais a mim, era amiga da tropa que matava aula, que falava sacanagem. Essa é uma confusão que nunca consegui entender. Se chegasse para uma conversa, pedia para entrar, ficava quieta num canto, até alguém falar uma besteira, aí eu entrava.
DV – Por que você deixou de morar com sua mãe? Bete Mendes – Minha mãe ficou em Santos, ela estava com um novo casamento, e eu não quis morar com eles. Meu pai foi morar sozinho e eu fui para São Paulo, mas me dava bem com os dois. Eu resolvi ir à luta mesmo.
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DV – E como começou a trabalhar profissionalmente em teatro? Bete Mendes – Pedi ao Carlinhos Silveira para me apresentar ao diretor da próxima peça que ele fosse fazer. O diretor era o Antunes Filho, fiz o teste e passei. Era “Cozinha”, peça de Arnold Wesker, com tradução do Millôr Fernandes. Ele tinha como assistentes, Stênio Garcia e Eva Wilma, e no elenco estavam Juca de Oliveira, Irene Ravache. Eu tinha o último papel da peça, sem fala, só desfilava com uma bandeja. A menina que ficou com o penúltimo papel teve hepatite, fiquei com o papel dela. Estávamos ensaiando, a Eva Wilma pega minha mão e diz: ‘Nasceu uma atriz’.
DV – E a vontade de ser promotora, onde ficou? Bete Mendes – Até aquele momento, eu não tinha idéia de que era uma atriz. Fui tra-
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balhar porque precisava e conseguia conciliar o horário do teatro com o do colégio. Nessa época, eu não queria mais ser promotora pública, queria ser filósofa. Tentei conciliar o cursinho pré-vestibular com o Colégio de Aplicação, mas não deu. Então, esperei terminar o clássico e fiz teste para conseguir bolsa no cursinho Equipe. Ganhei bolsa integral. A peça foi um sucesso de público e eu briguei com Antunes.
DV – Por que vocês brigaram? Bete Mendes – Porque eu ganhava menos de um salário mínimo, e pelos ensaios, ganhava a metade. A peça era um sucesso e eu queria ganhar o salário mínimo. Depois do espetáculo, houve uma reunião de elenco. A peça tinha estreado há um mês e o Antunes perguntou se alguém queria falar. Eu disse: ‘Não falo em nome de ninguém, falo por mim, quero aumento de salário’. Começamos a discutir e ele me despediu, mas disse para eu ir embora só no dia seguinte, depois do espetáculo. Nessa época, eu morava numa pensão, passei aquela noite em claro: como iria fazer sem aquele dinheiro? Meu primeiro registro em carteira de trabalho foi fazendo essa peça. No dia seguinte, Antunes, com Juca de Oliveira, que na época era presidente do Sindicato dos Artistas, veio falar comigo. Na verdade, o Juca falou pelo Antunes: ‘Daqui a três meses, pagamos 10% de aumento, mais os 10% pendentes do mês atual; no 4º mês, damos os 10% do mês mais os pendentes do 2º mês; e, a partir do 5º mês, está incorporado o aumento, está legal pra você?’. Eu disse: ‘Não! Vocês estão ganhando milhões e estão se recusando a me dar um aumento para que eu possa comer dignamente?’. Fiz todo um discurso, os dois saíram e ficou aquele mal-estar, as atrizes todas falando que eu não deveria ter feito aquilo. Dali a meia hora, antes do espetáculo começar, entra o diretor de cena no camarim e diz: ‘Bete, você venceu, seu aumento será dado’. E todo mundo ganhou aumento.
DV – Mesmo com o sucesso da peça, você continuou no cursinho? Bete Mendes – Eu estava conciliando as duas atividades e a peça tinha que vir para o Rio. Isso foi próximo do fim do ano, e se eu viesse para o Rio, perderia o vestibular. Aí, já havia mudado de novo: não queria mais ser filósofa, queria ser socióloga. Ia prestar vestibular só para a USP, porque o dinheiro não daria para fazer inscrição para provas em outras universidades. Por isso, pedi substituição na peça.
DV – Mas você não podia ficar sem
trabalho. Como resolveu isso? Bete Mendes – Pedi a Irene Ravache para me apresentar a alguém da TV, que tinha horários mais flexíveis (hoje, já não é mais assim). Poderia continuar trabalhando como atriz, tendo um salário. Para minha sorte, no dia da discussão com o Antunes, Cassiano Gabus Mendes, diretor da TV Tupi, que estava na platéia, ouviu e a Irene falou com ele para me levar para a TV. Assinei contrato de um ano, com o dobro do salário que ganhava no teatro, que para mim era muito, e, no ano seguinte, tive um aumento de quase o dobro.
DV – E como conciliava o ativismo com a vida de atriz? Bete Mendes – Foi complicado. Enquanto estava no cursinho, já participava de uma organização revolucionária, Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, a Var-Palmares. No cursinho, o Joel Rufino dos Santos era meu professor de História e usava o nome de guerra, Pedro Ivo, porque ele estava foragido (só tive essas informações mais tarde). Depois de terem matado o Edson Luis aqui no Rio, lá em São Paulo, presenciei a tomada da Maria Antônia3 pelos militares e paramilitares, no qual se incluíam alguns estudantes da Faculdade Mackensie, que ficava quase em frente aos cursos de filosofia, ciências e letras da USP. Eu já freqüentava os barzinhos ao lado da universidade e tomava caipirinha e debatia até de madrugada com os universitários e os pré-universitários. A tropa que invadiu a Maria Antônia pegou todos os livros e fez uma grande fogueira. Àquela altura, a situação já estava bem pesada. Eu estava na porta do Instituto de Filosofia da USP quando um estudante secundarista subiu pelo telhado da Mackensie. Alguns estudantes de lá, que participavam do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), atiraram nele. Eu vi o corpo cair e ser carregado. Fomos para o centro da cidade berrando ‘Mataram um estudante, podia ser seu filho!’, e a tropa veio atrás da gente. Fui salva por um triz, entrei em uma padaria e o dono baixou a porta. Foi assim que escapei.
DV – Qual foi o desfecho dessa situação? Bete Mendes – Fizemos uma loucura. Resolvemos seqüestrar um cara do CCC. Eu tinha que voltar para a USP e fiquei esperando escondida, porque os policiais estavam com pastores alemães perseguindo todo mundo, colocando em caminhões. Fui para a cidade universitária tarde da noite, fizemos outra assembléia e decidimos
3 Nota da edição: em 1968, integrantes do CCC, do qual faziam parte alguns estudantes da Faculdade Mackensie, atacaram estudantes secundaristas e universitários que fizeram um pedágio na Rua Maria Antônia para arrecadar fundos para a realização do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE).
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que não tínhamos como manter aquele cara, não tínhamos estrutura para isso. Nossa idéia era trocá-lo por pessoas que estavam presas, mas acabou não dando certo e tivemos que liberá-lo. De lá, fomos acompanhar o corpo do estudante, que foi levado para o Instituto Médico Legal. Fomos juntando pessoas para um cerco em volta do IML, mas eles fizeram o enterro na madrugada, pressionando a família que era muito simples, para liberar o corpo, evitando manifestações.
DV – Isso foi de 1968 para 1969? Bete Mendes – Isso, eu fiz o vestibular e passei. Com meu salário de atriz, pude alugar um apartamento e, nessa época, já estava na organização clandestina. Entrei para a USP em 1969. Fernando Henrique Cardoso, professor maravilhoso, estava saindo para o exílio. Tive uma professora, Gioconda Mussolini, que vi morrer do coração por causa da repressão. Ela era uma professora de antropologia extraordinária. Foi velada na capela da USP. Também Eder e Emir Sader estavam se exilando. Enfim, percebíamos que o cerco estava se fechando no ambiente universitário.
DV – Como você entrou para a Var-Palmares? Bete Mendes – Na USP, que era considerada uma das grandes universidades da América Latina, praticamente só entrava gente rica. O pessoal da classe média ou pobre estudava muito para ter condição de entrar. Tinha muita gente rica na organização e eu fiquei amiga desse povo. Foi dessa amizade que surgiu a conversa para eu entrar na organização. E, ao mesmo tempo, entrava na TV. O movimento estudantil me chamava, mas eu recuei, não fazia mais nada porque já estava em outro pólo e não queria me mostrar participando.
DV – Era uma vida clandestina e pública ao mesmo tempo? Bete Mendes – Sim, o meu ativismo era clandestino, mas eu ainda não era perseguida, era considerada uma pessoa legal. Eu acredito nos deuses, nos orixás e em todos os santos, só assim para entender essa história. Estava fazendo a novela “Beto Rockfeller” na Tupi, que estourou no país inteiro. O público adorava o personagem Renata, que eu interpretava. Dividia uma quitinete com uma companheira da organização e fazia novela. Eu não assistia, mas fazia.
DV – Foi fácil se adaptar à vida na TV? Bete Mendes – Eu não estava preparada para a TV, mas precisava trabalhar. Foi um co-
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meço muito difícil, estava assustada. A sorte foi monstruosa, o Lima Duarte, que era o diretor, me chamou para conhecer o autor, Bráulio Pedroso, na casa dele. E o autor pegou todas as minhas inseguranças e transformou na linha da minha personagem. Eu era quieta, discreta, cheia de olhares, e a personagem explodiu. Estudava na USP, participava da organização revolucionária e estava trabalhando em televisão. Foi uma confusão geral.
DV – Qual era o seu papel na Var-Palmares? Bete Mendes – Era mais apoio. Estava em um núcleo pequeno; desse núcleo, passei à direção estadual, me reunia com os dirigentes estaduais e federais. Certa vez, nos reunimos na casa de um amigo que era da organização, daquelas famílias ricas, no Guarujá. E para que ninguém soubesse quem eu era, colocaram um guarda-sol na minha frente, e eu ficava sentada lá, só falando, mas ninguém me via. Tínhamos essas infantilidades. Eu analisava os documentos, redigia e cuidava da estrutura da organização, inclusive financeira. Era uma espécie de coordenadora e não podia ir para a ação direta. Tive uma divergência com a companheira de apartamento e saí de lá. Tinha um namorado que também era da organização e fomos para um apartamento em uma região melhor de São Paulo. Eu já estava ganhando mais. Ele é de família muito rica, mas não aceitei que o pai dele pagasse o apartamento. Eu mesma aluguei, ele foi meu fiador. Essa característica de ser auto-suficiente sempre foi forte. Isso me ensinou muito a não depender e a não me acostumar com as benesses, que podem ser perigosas. Elas nos envolvem, nos aconchegam e depois a situação muda. A minha dureza me ajudou muito a chegar até aqui. Recebi a notícia de que aquela companheira havia sido presa e que todo mundo estava caindo. Comecei a preparar minha fuga. A novela “Beto Rockfeller” começou em 1968 e terminou em 1969. Nessa época, já participava de uma segunda novela do Bráulio, “Super Plá”, uma novela linda.
DV – Foi difícil conciliar uma vida assim tão pública com uma vida clandestina? Bete Mendes – Isso é muito interessante. Claro que naquela época não havia transmissão via satélite, era videotape, a TV não tinha a abrangência de hoje. Mas a novela explodiu no Brasil todo. Na época, já morava nesse apartamento melhor e e lá recebia os companheiros
da organização com boa comida e boa música. Ao mesmo tempo, saía na rua e me assustava. Entrava numa loja para comprar um sapato e começava a tocar a música-tema do meu personagem. Ficava paralisada, com medo, não só pela clandestinidade, mas me assustava com o que estava acontecendo comigo perante a sociedade. Para proteger minha identidade – e em geral, dentro das organizações, nós não sabíamos os verdadeiros nomes dos companheiros –, saí de um núcleo de simpatizante para ativista e depois para um núcleo da direção regional, no qual só os dirigentes regionais e o dirigente nacional sabiam quem eu era. Não podia ter contato com mais ninguém. Mas sempre fui discreta, ninguém sabia nada da minha vida.
Arquivo Bete Mendes
Bete Mendes
DV – Você disse que tinha problemas com sua aparência na adolescência. Nessa época da TV, você se considerava uma mulher bonita? Bete Mendes – Não me achava, e quando começaram a me achar, a barra pesou demais. Era o horror da mulher-objeto, instrumento sexual. Briguei muito contra isso, queria que gostassem de mim pelo meu talento e pela minha inteligência. Não me sentia bem com essa coisa de ser objeto de desejo. Irene Ravache foi minha madrinha de profissão, ela me defendeu muito. Era uma coisa braba e eu me sentia insegura, me achava frágil para enfrentar. Ao mesmo tempo, repelia tudo isso porque minha parada era revolução.
DV – Em que situação você foi presa pelos militares? Bete Mendes – Da primeira vez, aconteceu uma coincidência. A Irene Ravache havia sido casada com o tenente Maurício, de quem tinha um filho. Ele a procurou e a convenceu a me apresentar a ele. Ela me consultou, e concordei com o encontro, achando que seria o melhor a fazer no momento. Ele se encontrou comigo e me convenceu que eu só iria dar um depoimento, para ficar livre de suspeita e me levou a então Operação Bandeirantes, onde me seqüestraram e onde fiquei incomunicável por quatro dias. Nesses quatro dias, neguei tudo. Não houve tortura física, só psicológica. Nesse período, só bebi água, não conseguia comer, emagreci quatro quilos em quatro dias. Aí, me acarearam com minha companheira de moradia, que estava presa. Disse que a gente tinha se separado porque eu tinha outros projetos na vida, que eu estava namorando. Inventamos aquela
A ativista em 1976
história e ela não abriu nada, nem sob tortura, e eu escapei. Aí, percebi que a situação estava ficando perigosa e decidi fugir.
DV – E conseguiu? Bete Mendes – Estava participando da novela “Simplesmente Maria”. Fui na casa do Wálter Avancini, que era o diretor da novela. Não sabia que ele era comunista, mas abri o verbo. ‘Estou sendo perseguida, sou de uma organização revolucionária, tenho que sair da novela, tenho que fugir e preciso de dinheiro’. O Avancini resolveu tudo para mim. Marquei com ele e pedi ajuda a minha mãe e a meu irmão. Nessa época, eles já estavam controlando tudo, conta de banco. Pedi dinheiro ao Avancini porque queria sair do país por terra. Já estavam anunciando que as fotografias dos “terroristas” seriam divulgadas nos aeroportos e em todos os lugares. E como eu já tinha estado lá, eles sabiam quem eu era. Marquei com meus companheiros, fui para uma casa, para onde éramos levados vendados para, em caso de tortura, não sabermos a localização, e fiquei lá trancada. O pessoal tinha marcado às cinco da tarde e eu entendi que era às quatro, esperei até quinze para as cinco e fugi. Fui levada também vendada para Vila Maria. Ali, eu iria sair por terra para o Chile, o Allende ainda estava no poder, e de lá iria para
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e o “bombeiro”. Eles trabalhavam 24 horas e descansavam 48 horas, e a gente ficava dia e noite sem ter a menor noção da hora, porque eles pegavam a gente na cela, levavam para a tortura, devolviam para a cela. A gente perdia a noção de tudo. O “bombeiro” vinha para enrolar, fingir que era compreensivo, que queria dialogar, e o Albernaz dava muita porrada, ferrava com a alma da gente.
DV – Você falou de militares e bombeiro. Quais forças faziam parte do DOI-CODI?
Cuba ou talvez para a França. O Avancini, além de me dar dinheiro e apoio, me deu perspectivas de trabalhar fora como atriz. Mas o cerco estava mesmo pesado. Eles detiveram a minha mãe por um dia. Meu irmão era seguido com freqüência durante o dia, cercaram a minha madrinha. E eu estava nessa segunda casa esperando contato, há três dias não comia, só bebia água. Nesse dia, pedi para trazerem alguma comida porque estava com fome. Combinamos às seis horas e, dessa vez, esperei um pouco mais, ao contrário da primeira vez quando antecipei minha saída. Estava num lugar que tinha quartos para alugar, no fim do corredor, havia um banheiro. Eu só fazia o movimento do quarto para o banheiro, nada mais. Fizeram o sinal combinado de companheiro, quando abri a porta, eles [os militares] me levaram, soltando tiros. E eu rezava e pedia: ‘Por que não desmaio, por que não desmaio?’. Queria apagar, mas não conseguia.
DV – E o que aconteceu lá? Bete Mendes – Uma festa, no pior sentido possível. Entrei na tortura braba. Eles, os torturadores, disseram, enquanto me torturavam, que haviam dado choques elétricos em minha mãe, que meu irmão tinha sido perseguido, enfim, soube que minha vida estava arrebentada. O coronel Brilhante Ustra era major na época e dirigia o DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna]. Tinha também o capitão Beroni de Arruda Albernaz, um facínora; o tenente Maurício,que era da equipe de busca,
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Bete Mendes – O DOI-CODI juntava tudo: Exército, Marinha, Aeronáutica, bombeiros, polícias. Foi uma criação dos serviços de inteligência da ditadura militar. O governador Abreu Sodré, para colaborar com o governo central, criou a Operação Bandeirantes, Oban, que passou em 1970 a DOI-CODI. Fui presa da primeira vez na Oban, foram só alguns meses de diferença. Na segunda vez, já era DOI-CODI. O governador criou a Oban e o Ministério da Guerra unificou as ações de busca e captura e fizeram os “DOIS”, então cada Exército tinha o seu DOI-CODI.
DV – Você teve contato com o delegado Sérgio Paranhos Fleury, famoso torturador de São Paulo? Bete Mendes – Não, o Fleury era do Dops [Departamento de Ordem Política e Social], as duas organizações, na verdade, concorriam para ver quem matava mais, quem machucava mais. Na época, se dizia uma coisa horrorosa: que o DOI era mais científico; no Dops, eles davam porrada agressivamente, com violência, paixão, e matavam por acaso; no DOI, a tortura era estudada. Quer dizer, mais ou menos, não é? Porque o Vladimir Herzog foi preso e morto no DOI, Manoel Fiel Filho também. Eles e inúmeros outros.
DV – As Forças Militares sempre trocaram informações. Nesse sentido, era possível que houvesse um estudo científico a respeito, não? Bete Mendes – Os Dops, em geral, tinham isso, mas o Fleury tinha uma ação absolutamente dele. Quando falei do capitão Albernaz, esse cara era muito pior que o Fleury, se é que se pode dizer pior. Fleury era o bandido que tinha prazer nas coisas que fazia, que gostava de retalhar. O Albernaz era igual. Ele era tão arrogante que andava com roupa civil, sapatos brancos e saía sozinho, sem guarda nenhuma,
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ia para onde queria. Tinha uma ciência, tinha uma técnica, claro, mas quando falo do Fleury e do Albernaz, falo dos brutamontes que estavam a larga, não havia ciência, eles eram bandidos. Não digo “cana” porque se falamos assim parece que todo policial é ruim, e isso não é verdade. Fleury era bandido mesmo. Ele fazia parte do tráfico, ia para a Colômbia buscar traficantes, ele morreu rico. O Albernaz era a mesma coisa. E eu falo deles, mas podemos falar de muitos. Esse tipo de comportamento era estimulado.
DV – Então, eles não eram obrigados a fazer aquilo, como dizem? Bete Mendes – Eles eram escolhidos, faziam uma opção, eram de uma tropa de elite. Era um pessoal que ganhava mais, ganhava pontos e ascendia na carreira militar fazendo parte dessa elite de repressão e tortura. Não dá para vir com esta conversa: ‘Não podia fazer nada, só cumpria ordens!’. Muitos se recusaram a participar e perderam as patentes, foram expulsos ou perseguidos. Eram grupos escolhidos que optavam por essa ação.
DV – Mas, antes de tudo, tratava-se de uma política de Estado, não acha? Bete Mendes – Sim, era uma política de Estado nacional, não era apenas um grupo de malucos que torturava pessoas. Mas acho importante falar do Abreu Sodré que, quando era governador do estado de São Paulo, criou essa ação de repressão espontaneamente. E também como muitos da sociedade civil se encantaram com essa ação repressora e foram aliados do Estado e fomentadores, mesmo financeiramente, desses atos de exceção. Ainda hoje, existe um movimento do qual eles todos participam e acham que deveríamos ser punidos. A questão é que há uma sociedade que apóia, subvenciona e quer que eles continuem. Aí é que está o perigo.
DV – Quanto tempo você ficou presa? Bete Mendes – Um mês. Já era o final da organização. O DOI-CODI ficava atrás de uma delegacia, que funcionava normalmente. Da primeira vez que fui presa, o Walter Foster, o Cassiano Gabus Mendes e o Wálter Avancini foram me procurar. Eu conseguia vê-los da minha cela, mas disseram a eles que eu não estava lá. A prática do seqüestro era também a negação de prisões, e foi o que eles responderam aos diretores. Da segunda vez, minha prisão também não teve nenhuma divulgação, nem nacional,
nem internacional, eu simplesmente desapareci, foi um desespero.
DV – Como a sua família reagiu? Bete Mendes – Minha irmã ainda não era nascida, meu irmão e minha mãe perceberam logo porque, até então, eles seguiam o meu irmão. Todos os dias, eles o buscavam pela manhã em casa e voltavam à noite. De repente, eles pararam de fazer isso. E eles não foram atrás do meu pai porque, sendo militar, foi mais fácil ainda para eles acompanharem a vida pacata dele, que nem estava mais na ativa, já estava na reserva.
DV – Como ficou sua vida depois que foi solta? Bete Mendes – Fiquei em liberdade condicional. Saí arrebentada, física e psicologicamente. Estava com 20 anos. Não voltei para a faculdade por causa da Lei de Segurança Nacional na qual estava inscrita. Eu era o “cão” para eles, bandida, terrorista, perigosa. Os amigos, a família e a classe artística, aos poucos, me ajudaram a levantar. Nessa época, a organização já estava no fim, muita gente morreu. Era amiga da Iara Iavelberg, esposa do Carlos Lamarca. Ela havia sido minha professora de francês no cursinho Equipe. Um dia, encontrei com Iara, que estava foragida, na casa de uns amigos, nos despedimos, ela ia para a Bahia. Ela acabou morrendo. Adorava a Iara, conhecia a família inteira. Em outra ocasião, o filho de Carlos Marighella veio me procurar porque precisava de apoio para fugir. E, muito depois, a mulher dele, Clara. Ou seja, eu continuava com alguma ação, mas não era mais organizada. Tinha consciência do que acontecia em volta e havia o medo de encontrar com os caras da repressão em qualquer lugar. E eu ainda estava em processo no tribunal militar.
DV – Você ficou em São Paulo? Bete Mendes – Não, fui para a casa da minha mãe, em Santos. Precisava voltar a trabalhar. Os policiais que foram me pegar em casa roubaram tudo o que eu tinha, dinheiro, as coisas que guardei em um depósito, tudo. Por exemplo, aquelas peças que escrevi para o Vianinha se tornaram peças-crime contra mim. Não sei se ainda existem ou se foram destruídas. Roubaram perfumes, roupas. Eles cercaram a família, o guarda-móveis onde deixei minhas coisas, os lugares para onde eu poderia ir. Eles faziam esse cerco com todas as pessoas que lutavam contra a ditadura. Fiquei muito mal. Depois de um tempo, voltei para São Paulo, para a casa de uma amiga, para tentar arrumar trabalho.
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DV – E conseguiu? Bete Mendes – Quem me ajudou foi Carlos Zara, na época casado com Eva Wilma, que também tinha um parente foragido, Ricardo Zaratini. Ele brigou com a direção da TV Tupi, com representantes do Estado-Maior das Forças Armadas, para conseguir me recontratar. Só soube disso tempos depois. Ele foi meu grande defensor. Estava em processo de julgamento e toda semana tinha que ir ao Dops. Várias vezes, era cercada nos lugares onde ia, encontrava um torturador, um carcereiro, um cara da equipe de busca, a perseguição continuava igual. E, se antes de entrar na prisão, tinha conseguido um bom salário e um contrato de trabalho anual, quando voltei, tive que aceitar um salário pela metade e contrato por obra.
DV – Como se deu o processo judicial?
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Bete Mendes – O primeiro julgamento foi realizado no II Exército, em São Paulo. O processo era a posteriori. Eles pegavam a pessoa, acabavam com ela, a machucavam, e depois abriam um processo para dizer que se tratava de uma pessoa criminosa. Então, tinha que mostrar, depois de tudo o que eles fizeram comigo, que era uma pessoa legal, que não estava fazendo nada errado, que não era terrorista. Pedi a Eva Wilma para ser minha testemunha de defesa. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida e de dívida com a Eva. Éramos todos muito jovens, 90% estudantes da USP, e estávamos em um julgamento conjunto. O promotor da Justiça Militar chamou a Eva para me defender, e começou a dizer: ‘Essa classe artística que só
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tem homossexuais, drogados, imorais, pessoas que denigrem a família brasileira, que aquela prostituta...’, ele se referia assim a Eva que estava ali para me defender. Enfim, ele acabou com a alma da Eva antes mesmo de ela abrir a boca. Fiquei desesperada, comecei a chorar de vergonha e não deram a ela o direito de dizer uma palavra para me defender. Foi atacada e pediram para ela sair. Mas o advogado de São Paulo, Paulo Rui de Godoy, conseguiu recorrer e teve outro julgamento, dessa vez no Ministério da Guerra aqui no Rio, só com generais. O advogado era o Lino Machado, maravilhoso. Ele me defendeu, os generais me passaram um sabão, e ganhei a absolvição. Isso foi em 1971.
DV – Nesse período todo, a imprensa não noticiou nada? Bete Mendes – Saiu uma notinha nos grandes jornais, Folha de São Paulo, O Globo, O Estado de São Paulo, no pé de uma página no meio do jornal, letra minúscula: ‘A atriz Bete Mendes respondeu processo na justiça militar...’. Só. Não saía nada. A maioria das pessoas não sabia de nada disso. E nada era noticiado justamente porque, assim, poderíamos sumir e ninguém ficar sabendo. Mas, oficialmente, eles utilizaram a mídia contra nós. Ainda quando estava presa no DOI-CODI, pouco antes de ser solta, fui chamada em uma sala, e lá, eles me convidaram para ir à televisão, para participar de um programa de entrevistas e dizer o que eles queriam. Dizer que estávamos sendo desencaminhados pelos professores da USP e que éramos pessoas de família decente. Eles me perguntaram se eu topava e disse: ‘Topo com algumas condições’. Queria que o programa fosse ao vivo, quando relataria o que estava acontecendo com todos nós. Levei tanta porrada nesse dia. Fiquei com medo do que poderia acontecer com meus companheiros. Na sala, éramos levados um por vez e ninguém aceitou falar. Só um aceitou ir à televisão e, posteriormente, se suicidou. Então, resolveram chamar nossos pais para fazer o que não fizemos, inclusive minha mãe. E os pais falaram: ‘A gente não sabe o que está acontecendo, meu filho é tão bom, não sei porque foi preso’. O que os militares queriam era fazer um programa para manchar a imagem da universidade brasileira, queriam desacreditar o trabalho dos professores e intelectuais junto à população. Foi uma vitória nossa, estávamos desestruturados, arrebentados, machucados e ninguém teve o pensamento, a dúvida do porquê estava ali. Achei incrível, porque éramos
todos muito novos.
DV – Como foi a sua volta à vida, a partir de 1972, 1973? Bete Mendes – Acho que foi uma vida de teimosia, de resistência e de vamos em frente. Depois que o Zara e a Eva me acolheram na volta à vida artística, pensei: ‘Agora, vou ser só atriz, vou trabalhar só com cultura’. Evidentemente, tive apoio psicológico para curar as feridas, também passei por tratamento médico e fui me readaptando à vida normal. Comecei a fazer aula de canto e de dança, que já havia feito antes, fui fazer teatro também. Em 1974, fui chamada pelo Antônio Pedro para fazer uma peça substituindo a Marieta Severo em São Paulo, “Desgraças de uma criança”, de Martins Penna, direção dele, com Eduardo Dusek, Camila Amado, Marcos Nanini. A peça foi um sucesso absoluto e resolvemos viajar para encená-la no interior de São Paulo. Era abril, Semana Santa. Estava dirigindo o carro do Nanini, um fusca, o pneu dianteiro estourou, a gente capotou. Eduardo Dusek não sofreu nada e Marcos Nanini teve torção no pescoço. Tive traumatismo craniano, quase morri.
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Bete Mendes
No especial de fim de ano da TV Tupi, em 1973
DV – Como você ficou depois disso? Bete Mendes – A audição do ouvido esquerdo, que já havia sido prejudicada pelos “telefones” dados pelos torturadores no DOI-CODI, ficou bem pior. A classe artística foi maravilhosa, fizeram revezamento para cuidar de mim. Viver era o principal. Fui para um hospital em Bauru que não tinha o equipamento necessário para detectar a gravidade do trauma. Os amigos conseguiram um neurologista muito bom e o levaram para Bauru. Ele conseguiu, de forma ética, convencer o pessoal do hospital que eu podia ser transportada para São Paulo. Lá, determinaram que eu teria de ser operada. Quando vieram raspar minha cabeça, fiquei furiosa, e gritava: ‘Seus filhos da puta, querem me torturar. Vocês podem fazer o que quiserem, eu não direi nada!’. Tiveram que me sedar. Quando saí do hospital, aconteceu algo interessante. A Tupi estava renovando meu contrato e a Globo me procurou e me ofereceu muito mais. Tentei renegociar com a Tupi, mas eles não aceitaram. Então, fui para a Globo. Entrei em uma novela do Bráulio Pedroso, “O Rebu”, que questionava os valores da época, foi maravilhoso. A partir daí, minha acomodação acabou. Não estava satisfeita sem a minha vida de ativista. Comecei a procurar os movimentos. Anistia, movimento feminista, solidariedade ao povo uruguaio, argentino, chileno, em defesa
da população negra, emancipação dos índios do Brasil etc. Onde tinha um movimento, eu estava lá, me metendo em tudo. Voltei para a agitação nessas atividades da sociedade civil.
DV – Poderia destacar algumas dessas atividades? Bete Mendes – Comecei a ter uma atividade sindicalista da melhor qualidade, me envolvi na luta pela regulamentação da profissão dos artistas, que só foi acontecer em maio de 1978. Ainda nesse ano, fui para o ABC participar de greve. Estava na coordenação do show dos artistas pela greve. A mesma coisa em 1979, 1980. Participei dos três movimentos de greve. Em 1979/1980, já estava em São Paulo. Saí da Globo, que não renovou meu contrato, e fui para a Bandeirantes. Estava fazendo o filme “Eles não usam black-tie”, envolvida com a estruturação do PT e no apoio à greve dos metalúrgicos. Estava tão íntima que ficava em São Bernardo. Ia para a casa do Lula e da Marisa. Saía do movimento de greve e ia gravar na Band. Chegava com camisetas, botons etc., fazia reunião com os funcionários e contava como estava o movimento etc. Nesse período, comecei a ter problemas no emprego porque estava muito envolvida na questão sindical.
DV – Como foi seu envolvimento na fundação do PT?
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Bete Mendes – Isso foi em 1981. Participava de um núcleo de artistas e jornalistas. Éramos José Dirceu, Vladimir Palmeira, Luís Travassos, Lélia Abramo, entre outros. Tivemos uma reunião para a estruturação do organograma do partido. Queríamos que fosse um partido aberto que se mesclasse com os movimentos sociais, o que, de certa forma, aconteceu. Naquele dia, pedi apoio à Lélia Abramo para sugerir a criação de uma secretaria de cultura ligada diretamente à estrutura geral do partido. Essa idéia surgiu de uma conversa com o Henfil. Dessa troca de idéias, saiu o que imaginávamos que seria uma ação cultural em um partido político. A idéia era ir para um bairro, uma escola etc. e criar um grupo para discutir o problema principal do lugar. Isso seria trabalhado teatralmente e, assim, seria revelado o talento para música, pintura. Sempre fui palanqueira, o próprio presidente Lula fala isso de mim. Então, fui para a tribuna da assembléia falar sobre isso. Fiz minha defesa da secretaria de cultura e a idéia foi aprovada por unanimidade. Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Começamos um núcleo na casa da Lélia, que se reunia toda semana. Ficávamos discutindo que tipo de corpo daríamos para essa secretaria de cultura.
DV – O que a levou a se candidatar a deputada federal?
Arquivo Bete Mendes
Bete Mendes – Em 1982, estava em Santos, na casa da minha mãe, durante o carnaval. Aí, morreu o grande companheiro
Travassos em um acidente de carro, e voltei a São Paulo na quarta-feira de cinzas para o enterro dele. No cemitério Israelita, estavam todos os companheiros. O Lula chegou para mim e disse: ‘Companheira, você quer ser deputada federal?’. Sempre gostei de participar dos movimentos, mas nunca havia pensado nisso. A mãe e a esposa de Travassos me abraçaram e disseram: ‘Continua a luta por ele’. Fui louca e disse para o Lula: ‘Topei!’. Foi de emoção.
DV – E deu para conciliar essa nova atividade com a carreira de atriz? Bete Mendes – Nessa época, fazia trabalhos esporádicos em televisão. Fazia debates nas faculdades e no fim dizia: ‘Sou do Partido dos Trabalhadores, sou uma atriz desempregada. Quem quiser colaborar participando da campanha, deixa o telefone...’. Apareceram quase 30 jovens, dos quais 10 ou 12 ficaram comigo. Era o “Exército de Brancaleone”. Eram jovens maravilhosos que vestiram a camisa, e fazíamos tudo junto. Nessa época, viajava pelo estado com companheiros proporcionais, como Eduardo Suplicy, ou com os candidatos a cargos majoritários, e o Lula era candidato a governador. Uma vez, estava em Presidente Prudente, e o Lula estava atrasado. Segurei o povo por uma hora e vinte minutos. Por causa disso, o Lula me criou um problema sério. Estávamos em uma reunião da organização e ele disse: ‘Companheiros, vocês têm que fazer como a Bete, que é palanqueira’. Conclusão: na capital de São Paulo, não tive condições de falar mais em nenhum comício. Cada região da cidade era reduto de um candidato, e eu não tinha um reduto, mas tinha o beneplácito de ser famosa. Então, não me deixavam falar. Eu me virei, sou teimosa e resistente. Ia para as portas das fábricas etc. Fui nessa batida para valer e fui eleita.
DV – Nessa eleição, a votação geral do PT foi baixa, mas você conseguiu uma votação enorme. Como foi isso? Bete Mendes – Fiquei muito orgulhosa. O mais votado do partido foi Djalma de Sousa Bom, metalúrgico, companheiro de Lula, que teve mais de 170 mil votos. Foi o único que passou do coeficiente eleitoral. O segundo foi Eduardo Suplicy e a terceira fui eu. O Suplicy teve apenas 33 votos a mais do que eu.
Bete palanqueira
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DV – Em 1979, quando o PT surgiu, houve um grande debate na esquerda. Alguns achavam um absurdo o PT ser legalizado nesse momento. Achavam que a
Arquivo Bete Mendes
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Bete Mendes
Em 1987, na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo
esquerda toda deveria ficar unida no PMDB. Como foi isso para você? Bete Mendes – Um dos meus sofrimentos foi por aí. Em 1982, quando Franco Montoro foi eleito governador de São Paulo pelo PMDB, havia um convite para o PT aceitar três secretarias: a Secretaria de Educação, com o Paulo Freire; a Secretaria de Assistência Social, com um deputado estadual por São Paulo; e a Secretaria de Justiça, com o Hélio Bicudo. Eram três secretarias da área social da maior importância. Os companheiros que vieram com a notícia diziam que o PMDB propunha portas abertas, tudo divulgado, ou seja, o PT entrava no governo do Montoro com tudo esclarecido. Não aceitamos, e achei isso muito ruim.
DV – Como foi sua participação no processo da campanha pelas “Diretas Já”, que culminou, mais tarde, com as eleições indiretas para a Presidência da República e com sua saída do PT? Bete Mendes – Nessa época, foi uma loucura. Em um curto período de tempo, viajei por trinta e poucas cidades, participando de vários comícios: Rio, Minas, São Paulo, Porto Alegre, era só multidão, era maravilhoso. E a gente perdeu por uma votação ínfima, iníqua, foi um movimento lindo no Brasil. Mas perdemos.4 O PT decidiu fazer uma consulta às bases porque não queria ir ao Colégio Eleitoral para participar das eleições indiretas para presidente da República. Achei o resultado errado e fiz uma
Em campanha, com Lula e o jornalista Tarso de Castro
outra consulta. Meu resultado deu diferente. Coloquei meus companheiros, jovens estudantes, no Morumbi, em porta de restaurante, na porta de show no Ibirapuera, em porta de fábrica, foi uma consulta massiva. Houve um debate muito acirrado durante a convenção da Executiva Nacional do partido por causa disso. Decidiu-se que ninguém do partido iria ao Colégio Eleitoral votar para presidente da República, e quem participasse do processo eleitoral seria obrigado a sair do PT. Por isso, eu, José Eudes e Airtons Soares, que participamos, fomos convidados a sair do partido. Sofri muito. Foi desesperador porque o partido era a minha paixão, mas eu não abria mão dessa divergência. Na época, achei mais correta a posição do PDT, que era contra o Colégio Eleitoral, mas deixou a decisão para cada parlamentar. Fiquei magoada porque alguns companheiros verbalizaram dúvida quanto à minha correção ideológica.
DV – Essa mágoa já foi superada? Bete Mendes – Superadíssima. Continuo eleitora, fazendo campanha, fazendo tudo pelo PT. A mágoa é porque era o meu partido, trabalhei para a sua fundação. Podia até estar errada, mas minha posição tinha de ser respeitada.
DV – E, depois dessa divergência, teve outra, mais tarde, envolvendo a Luiza Erundina,5 não é? Bete Mendes – Dei uma entrevista por telefone quando ela foi suspensa, declarando a minha solidariedade e que considerava equivo-
4 Nota da edição: a emenda constitucional Dante de Oliveira, propondo instaurar eleições diretas para presidente da República, foi votada no dia 25 de abril de 1984. Dos deputados, 298 votaram a favor, 65 contra, três abstiveram-se e 113 parlamentares não comparecem ao plenário. Para aprovar a emenda, seriam necessários mais 22 votos, que somariam dois terços do total. Por isso, a emenda foi rejeitada. Diante desse quadro, setores da oposição lançaram a candidatura de Tancredo Neves para disputar indiretamente. No Colégio Eleitoral, as eleições presidenciais foram marcadas para janeiro de 1985.
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cada a decisão do partido de suspendê-la. Para mim, ela era o maior quadro do partido. Ela ganhou de Maluf em São Paulo sem estrutura nenhuma. Existem três eleitorados no Brasil em termos de quantidade: o país, o estado de São Paulo e a cidade, que é o terceiro eleitorado massivo quantitativo. E essa mulher conseguiu derrubar essa estrutura. No momento da entrevista, o jornalista lembrou que ela tinha votado pela minha expulsão do partido. Eu falei: ‘Não tem problema, continuo solidária e admiradora dela’. Acho que a suspensão da Erundina foi um desastre.
DV – E você foi para outro partido? Bete Mendes – Fiquei nove meses sem partido nenhum. Não pude ter filhos, mas, ironicamente, fiquei nove meses sendo “namorada” pelo PSB, PDT, PMDB. Na época, o PCB e o PCdoB ainda não estavam legalizados.
DV – Você conheceu o lado mais duro da ditadura. Como foi para você vivenciar o Movimento pela Anistia? Bete Mendes – Tive um período muito sério de perseguição depois da liberdade condicional e da absolvição pelo Superior Tribunal Militar. Eram ameaças por telefone muito pesadas, isso até há pouco tempo. Há poucos anos, cheguei com a minha mãe de Santos e às onze e meia da noite, tocou o telefone, eu atendi e ouvi ameaças terríveis. Mas nunca tive o desespero, até porque se tivessem que matar mesmo, já teriam matado. Quando começou o Movimento pela Anistia, eu participava do Movimento dos Artistas pela Anistia. Tive o orgulho e a honra de redigir com um grande amigo, Mário Lago, o documento pela anistia. Foi um momento histórico. No movimento, a gente lutava pela anistia ampla, geral e irrestrita, mas só conseguimos a parcial. Era a única anistia possível na época.
DV – Por que você acha que a anistia foi parcial? Bete Mendes – Essa anistia não só não identificou os dois lados da moeda, como foi feito na Argentina e no Uruguai, como também não resolveu a situação de muita gente até hoje.
DV – Como você reencontrou o coronel Brilhante Ustra, que a torturou no DOI-CODI? 5 Nota da edição: em 1993, Erundina foi convidada pelo então presidente Itamar Franco (1992-94) para ser ministra-chefe da Secretaria de Administração Federal. Ela aceitou, à revelia do PT, e foi suspensa por um ano.
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Bete Mendes – Isso foi brabo. Saí do PT e fui reeleita deputada federal pelo PMDB em 1986. Logo depois que fui ao Colégio Eleitoral, em 1985, o presidente do Uruguai foi eleito democraticamente. Foi a primeira eleição de-
mocrática depois de anos. Como na Argentina, no Chile e no Brasil. Sarney, presidente da República, foi convidado a ir à posse e convidou alguns parlamentares para acompanhá-lo, e eu topei. Quando chegamos ao Uruguai e descemos no aeroporto, havia toda uma cerimônia de recepção, todo um ritual. E eu dei de cara com meu torturador vestido com roupa de gala, ele me apertou a mão e sorriu. Ali, veio um desespero e parei para pensar: ‘E agora. O que eu vou fazer?’. Ele havia sido diretor do DOI-CODI do II Exército quando fui presa, era agora adido militar do Brasil no Uruguai. Fiquei apavorada. Ficamos lá durante quatro dias, eu não agüentava dormir, tomava banho frio e estavam 10 graus, estava em pânico. Fiquei pensando que tinha de denunciar. Fomos a uma festa de confraternização do povo uruguaio e do povo brasileiro, onde estavam Miguel Arraes, Bocaiúva Cunha, enfim uma equipe muito linda de parlamentares. E chega ele novamente para conversar comigo, me apresentar a sua esposa. Ela faz um sinal para ele se afastar e fica sozinha comigo. Diz que gostou do meu gesto de perdão, de eu ter apertado a mão do marido dela, que ela sempre apoiou tudo o que ele fez e estava ao lado dele. Pirei de tal maneira que pedi a dois ou três parlamentares amigos meus pra me tirarem dali, fomos pra outro restaurante e tomei um porre de vinho.
DV – Você contou a alguém? Bete Mendes – Não até aquele momento, pedi segredo absoluto. Fiquei preocupada com o tipo de conseqüência que poderia haver com uma denúncia como aquela em uma viagem de um presidente visitando o país vizinho, ambos saindo de período cruel e entrando em processo democrático. Decidi que faria a denúncia quando voltasse. Na despedida, voltando para o Brasil, o pessoal da comitiva brasileira já estava de orelha em pé, estranhando o comportamento do Ustra, sempre me cercando.
DV – Qual foi a sua atitude quando voltou ao Brasil? Bete Mendes – Redigi um documento e enviei ao Sarney denunciando o adido militar, dizendo que era a minha obrigação como deputada, representante do povo, evitar que pessoas como aquela fossem premiadas. Denise Sarraceni havia me convidado para participar de uma série e vim para o Rio gravar. Esperei 24 horas por uma resposta do presidente para depois abrir para a imprensa. Estava gravando em um lugar longínqüo de
Jacarepaguá quando veio um carro da Presidência da República para me levar a um lugar mais próximo da Globo, onde pudesse falar com o presidente por telefone. Sarney disse que não sabia que eu tinha passado por isso – não sei se era verdade. Lembro que havia feito minha campanha à deputada federal pelo PT sem dizer: ‘Fui torturada, fui presa’. Achava que não devia usar o que sofri na ditadura para me eleger. Ao fim dessa conversa por telefone, Saney disse: ‘Não se preocupe, vou cuidar dessa situação’.
Marcus Vini
Bete Mendes
DV – O que ele fez? Bete Mendes – A situação era a seguinte: quando se é promovido a adido militar, volta-se para o país de origem com a perspectiva de ir para a reserva como general. Isso é um prêmio! Além disso, um adido militar recebe um excelente salário. Em nenhum momento da nossa conversa, Sarney pediu para eu não comentar o caso, para ser sigilosa, e em nenhum momento ele se justificou pelo que não poderia fazer. Disse apenas que iria cuidar daquilo. Ele não deu a promoção para o Brilhante Ustra, que voltou ao Brasil como coronel da reserva. Todo ano, ele entrava no topo da lista do Almanaque do Exército para o generalato, instituição que indica os prováveis nomeáveis para o prêmio, mas nunca foi nomeado.
DV – Qual foi o impacto da denúncia no Congresso? Bete Mendes – Após falar com Sarney, levei a denúncia para a imprensa. Eu fazia parte da Comissão de Relações Exteriores, com José Genoíno e outros companheiros. Sabíamos que havia um adido militar em situação semelhante na França, outro no Peru e outros em cargos da maior importância na representação brasileira no exterior. Nossa idéia era fazer um pedido de informações à Presidência da República, para que nos abrissem os nomes de todos os funcionários, pois isso era secreto. Genoíno foi torturado pelo Ustra também, vários foram, pois ele serviu em São Paulo, no Rio e no Nordeste. Mas a direita veio contra com todo furor. Sebastião Curió [coronel Sebastião Rodrigues de Moura], que também havia torturado Genoíno, e seus companheiros começaram a dizer que Genoíno era um terrorista, que matou gente, que eu era uma puta. Nós murchamos, não tivemos força política dentro do Congresso.
DV – E a repercurssão na imprensa? Bete Mendes – Dei entrevistas para todos os jornais, foi uma explosão. No momento em que fiz a denúncia, o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, foi para os jornais dizendo que eu estava mentindo, que o Brilhante
Ustra era um militar de altíssima qualidade e que estranhava minha postura como parlamentar. Tomei um avião, voltei para Brasília, a Denise suspendeu uma gravação por minha causa, coisa rara de acontecer no meio artístico. Redigi uma resposta para o Leônidas e mandei para a imprensa. Disse que achava muito estranho aquele tipo de declaração, primeiro por ele estar duvidando de mim, o que não era nada respeitoso, que achava que ele estava equivocado, talvez por alguma relação de proximidade com a pessoa denunciada. Disse achar estranho que dentro do Exército brasileiro não fossem beneficiados e escolhidos para representar o Brasil no exterior militares que tivessem sua história defendendo a população e não torturando ou matando. Disse ainda que, ali, estava colocando o ponto final no que acreditava ser meu dever, que era denunciar. Minha visão era que não houvesse uma vulgarização com a relação de atriz e torturador. Tanto que nas entrevistas, tinha de me segurar para não me emocionar e ficar na posição formal de parlamentar. As pessoas perguntavam se eu tinha sofrido muito, o que ele tinha feito, mas não detalhei nada. Não queria passar uma visão de vítima e algoz, mas de uma representante do povo brasileiro contra um facínora de um governo que já havia sido destituído, e isso ficou muito claro.
DV – E qual foi a reação do denunciado? Bete Mendes – Um ou dois anos depois, Ustra escreveu um livro se defendendo. Distribuiu a todos os parlamentares do Congresso Nacional, menos a mim. Não li. E, agora, ele escreveu um segundo livro. Atualmente, ele vive
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tado do Rio de Janeiro. Como cidadã e como profissional, não posso ficar vendo a banda passar. Tenho que estar envolvida, participando. Fui convidada, há alguns anos, a fazer parte do Movimento Humanos Direitos, composto por alguns atores e intelectuais que lutam contra o trabalho escravo, a prostituição infantil, em defesa do ecossistema. Hoje, o meu tesão está na arte. Uma experiência muito rica no Executivo foi como secretária de Cultura. Foi importante para conhecer a máquina do Executivo. Fiquei muito frustrada, queria permanecer por lá 15 anos, gostaria de estar envolvida com o desenvolvimento de uma ação. O Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, não quer ter soluções e foge de quem tem soluções a partir da cultura. A Espanha deu um nó e, depois de várias crises econômicas, resolveu por meio da cultura. Portugal faz a mesma coisa. A Argentina, por exemplo, que está nesse buraco agora. Estive lá em janeiro do ano passado e fiquei embasbacada com a forma como eles conseguiram desenvolver o turismo cultural, trazendo dinheiro para o país. O Rio de Janeiro fica nessa discussão sobre violência, mas poderia copiar idéias geniais. Para fazer um trabalho de desenvolvimento no estado, tem de ser a partir da cultura como forma de produção de economia e de desenvolvimento. A atriz em 1980
em Brasília. Nessa época, eu já estava fora do PMDB, não me entendia em nenhum partido.
DV – Você não tem vontade de se filiar mais? Bete Mendes – Não, mas a palavra “nunca” é muito perigosa. Tenho a política no meu sangue e falo de maneira bem vulgar: tem de ter tesão para fazer. Se não for entrega total, não dá. Não tenho interesse de seguir carreira política, de ter cargo público. Amo minha vida de atriz e sou apaixonada pela função de agir politicamente.
DV – E onde estaria o tesão hoje na dimensão política do Brasil? Bete Mendes – O meu tesão é complicado. Desde pequena, fico entre a arte e a participação política de alguma maneira. Mas tenho o maior orgulho da minha profissão. Tenho orgulho de ser ligada às artes. Ao mesmo tempo, não posso ver algo errado na rua que quero me meter e fazer algo. De 1999 a 2002, presidi a Funarj [Fundação de Artes do Rio de Janeiro], ligada à Secretaria de Cultura do es-
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DV – Há um debate dentro do governo federal, que já está ganhando a sociedade, sobre a Lei da Anistia. Qual sua opinião a respeito? Bete Mendes – Sinceramente, não tenho uma posição clara. Se estivesse no Congresso ou em alguma função pública ligada ao assunto, teria mais argumentos para fechar uma posição. Por sentimento, concordo totalmente com o Tarso Genro [ministro da Justiça]. Ele está sendo profundamente habilidoso e perspicaz e, ao mesmo tempo, correto. Porque não foi crime político e sim crime comum o que foi cometido e ele, como ministro, tem mais condições de saber as gravidades e as nuances da situação para decidir se mexe ou não na Lei da Anistia. Acho que é cabível, mas é uma idéia, não um posicionamento, até porque não tenho elementos para me posicionar. O que acho é que deveria haver uma revisão constitucional e a Lei da Anistia caberia bem no caso.
DV – Por quê? Bete Mendes – Foi uma matéria discutida em uma Constituição militar, que conseguiu avançar por pressão da sociedade, mas ainda
Bete Mendes
no regime militar. E a Constituição de 1988 não mexeu nisso. Seria interessante um debate sobre uma possível revisão constitucional, e não só para essa matéria. Deveria haver um movimento buscando mais participação da sociedade. Hoje, temos muita comunicação e as pessoas têm mais informações. Acho interessante que haja um desejo da sociedade de discutir a Constituição.
DV – Quais outros temas não foram aprofundados suficientemente e deveriam ser revistos? Bete Mendes – Não havia condição, a Constituinte de 1988 foi a melhor possível. Ela é excelente no corpo duro, nas leis perenes que propõe, mas alguns pontos ficaram circunstanciais. O movimento constituinte foi uma das coisas mais lindas que já aconteceram neste país. Houve um movimento de vamos fazer, vamos participar, vamos discutir. Acho que ela é excelente, mas ficou muito ordinária em alguns artigos. No caso da Anistia, veja bem, denunciei o Brilhante Ustra em 1985, a Constituinte foi em 1988. É uma matéria muito delicada, os militares que não foram anistiados viveram nessa época. O período foi muito curto para resolvermos tantas coisas duras que aconteceram no país.
DV – Acredita que haja risco de perdermos algumas garantias e direitos conquistados em 1988? Bete Mendes – Não gosto de pensar muito em risco, acredito que temos de ser responsáveis. A sociedade tem de saber gritar. Falamos de movimentos maravilhosos como as “Diretas Já”, a Constituinte... Mas ainda falta participação. E não podemos ter o risco como temerário. Tivemos uma evolução desde 1964, nós fomos para a guerra, uma luta contínua, e chegamos aonde estamos hoje. Acho que mudamos para melhor, principalmente com um presidente operário. Eu sou fã dele! E eleitora.
DV – Há um apelo da sociedade para o governo abrir os arquivos da ditadura. É possível que se criem mecanismos para que os documentos desapareçam?
dos. É função desta sociedade trazer o maior número de pessoas para o debate. Se não for assim, a gente não avança. Por isso, acredito no trabalho organizado.
DV – A Constituição de 1988 foi uma grande emoção para a sociedade brasileira. Como foi participar desse processo? Bete Mendes – Dr. Ulysses era um homem sábio, professor, sabia dizer as coisas certas na hora certa. Aliás, se não fosse Ulysses presidindo a Constituinte, teríamos muito mais dificuldades pra chegar ao fim. Hoje, estamos com carência de grandes líderes no Congresso Nacional. Foi uma emoção muito grande, embora tenha traído a Constituinte por um período. Fui convidada pelo Orestes Quércia para ser secretária de Cultura do estado de São Paulo. Aceitei, abandonei a Constituinte, fui para São Paulo, fiquei um ano e oito meses na secretaria e voltei para a Constituinte. Foi uma experiência muito rica também.
DV – Você citou diversas vezes sua admiração pelo Lula. Como você avalia os dois mandatos dele? Bete Mendes – Sou uma entusiasta do Lula, adoro o fato de ele estar na Presidência, e também acho que ele comete erros. Mas é um operário, inteligentíssimo, e tem um projeto de governo para o Brasil. Isso é evidente e nós estamos vendo resultados. Tenho várias divergências, porém elas são menores que a minha admiração pelo governo dele. No mais, só posso continuar aplaudindo o Lula. Acho que ele tem, mais uma vez, o que nós chamamos de inimigos bem-informados, tem contra ele o peso da mídia. Tenho uma alegria muito grande porque esse presidente fala a língua do povo. É muito gostoso ouvir as pessoas falando de suas conquistas, tem uma relação de identidade real, que não é aquela de príncipe no Olimpo.
Participaram desta entrevista Metade do corpo de funcionários(as) do Ibase (cerca de 25 pessoas) fez questão de conhecer Bete Mendes pessoalmente e acompanhar os dois dias de entrevista – por se tratar de uma extensa lista, excepcionalmente, não citaremos seus nomes.
Realização Entrevistadores(as) Ana Bittencourt Carlos Tautz Dulce Pandolfi Fernanda Carvalho Flávia Mattar Francisco Menezes Jamile Chequer João Roberto Lopes Pinto Decupagem Ana Bittencourt Diego Santos Jamile Chequer Edição Ana Bittencourt Fotos atuais Marcus Vini Fotos de arquivo Reproduzidas do livro Álbum de retratos, Bete Mendes por Fátima Guedes, editado pela Trio de Janeiro Produções Artísticas. Não há crédito a fotográfos, pois todas as fotos são do arquivo pessoal de Bete Mendes. Produção Geni Macedo Vídeo Flávia Mattar
Bete Mendes – A responsabilidade é da sociedade. Em 1964, a sociedade quis o golpe militar. Muitas pessoas que quiseram não sabiam porque queriam, mas achavam que faltava lei e ordem, organização, criticavam o governo Jango. Depois, muitas recuaram, mas o erro já estava feito. A sociedade tem de ter consciência. Por isso, cumprimento vocês, do Ibase, e outros movimentos sociais organiza-
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artigo
Marco Aurélio Santana*
Trinta anos das
greves do Em 2008, comemoram-se 30 anos das chamadas “greves do ABC”. O movimento dos trabalhadores brasileiros de fins da década de 1970 teve papel importante no processo de redemocratização da sociedade brasileira, contribuindo fortemente para o desfecho do regime
Montagem sobre cartaz – Arquivo Histórico do Museu da República
militar instaurado no Brasil pós-1964. Motor e fruto da “abertura política”, o sindicalismo brasileiro caminhou a passos largos para a retomada de seu lugar no cenário político nacional. Essa base serviu de preparação de terreno para um de seus momentos de ouro em termos organizativos e mobilizatórios, ocorrido na década de 1980. Pode-se dizer que, direta ou indiretamente, a partir das greves ocorridas no ABC paulista, entre 1978 e 1980, e de suas reverberações e composições com outros atores resultaram: um projeto sindical (o “novo
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artigo
sindicalismo”), um partido político (o Partido dos Trabalhadores) e uma central sindical (a Central Única dos Trabalhadores). Após dez anos de trabalho silencioso, passadas as greves de Contagem e Osasco, em 1968, os trabalhadores reapareciam na cena pública de forma vigorosa, indicando que era possível enfrentar a ditadura com base em suas próprias organizações e mobilizações.
Lenta e gradual A partir de meados da década de 1970, o regime militar revê suas estratégias. O esgotamento do “milagre brasileiro” – precipitado pela alta internacional dos preços do petróleo no plano econômico – e a derrota eleitoral de 1974 frente ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB) impuseram à ditadura um momento de inflexão e de alteração de rota. Vencida a luta armada, ainda que os resquícios da máquina repressiva ficassem expostos em ações que provocaram mortes e desaparecimentos, o governo militar, com a chegada do general Ernesto Geisel (1974–1979) à Presidência, se propôs à estratégia da “abertura” política. Esse processo, que garantiu a sobrevivência do regime, se daria de forma “lenta e gradual”. Mas o movimento dos trabalhadores traria maior complexidade ao quadro. Eles irromperam na cena e estremeceram os arranjos que se pensavam sem eles. A sociedade brasileira reconquista seus espaços de participação política. Vivendo em um ambiente de efervescência, ela verá surgir inúmeros movimentos sociais que pavimentarão o caminho para o processo de redemocratização, acelerando a crise do regime militar. Dentre esses movimentos, podem ser listados o estudantil, o de mulheres, o de bairros e o contra a carestia. Articulados ou não ao movimento sindical, os movimentos sociais, que fizeram com que novos personagens entrassem em cena, engrossaram a luta democrática do período, tendo nos trabalhadores um forte apoio. Quando os metalúrgicos do ABC paulista entraram em greve em 1978, abrindo caminho para a paralisação que se seguiu em outras categorias, eles romperam com os limites estreitos da lei de greve, com o “arrocho salarial” e o silêncio geral ao qual havia sido forçada a classe trabalhadora. Com isso, impactaram alguns dos pilares de sustentação política e econômica da ditadura militar.
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As greves iniciadas no ABC paulista em 1978 podem ser vinculadas não só ao movimento de resistência geral da classe trabalhadora brasileira, no período da ditadura, mas também às iniciativas e aos impactos dessa resistência no próprio ABC. Os vínculos da mobilização grevista alcançaram, também, as tentativas do Sindicato dos Metalúrgicos que, já de algum tempo, tentava ao menos refrear o “arrocho” salarial e o aumento da exploração no trabalho. Isso já ficava claro ao longo de uma série de tentativas nas campanhas salariais no início da década de 1970. O sindicato caracterizava-se por certa contradição em termos de ações. Ao mesmo tempo que se desvinculava da Federação dos Metalúrgicos de São Paulo, buscando desempenho autônomo nas campanhas, desestimulava greves e paralisações, como as tentadas na Ford e na Mercedes. Em 1974, realizou-se o I Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Esse encontro definiu as orientações futuras do órgão relacionadas à liberdade e autonomia sindical, a uma lei básica do trabalho que contemplasse seus direitos fundamentais e à contratação coletiva de trabalho. É com esse tipo de definição que Luiz Inácio da Silva, o Lula – que já participava como membro da diretoria da entidade –, chega à presidência do sindicato em 1975. Os procedimentos, em termos de campanhas salariais, não se alterariam tanto nos anos seguintes. Apesar de algumas conquistas no varejo, no atacado, eram relativas a mobilização e a validação dos índices oficiais. O quadro em 1977 seria o mesmo, com a agravante do elevado número de demissões empreendido pelas empresas. Outro fator determinante, segundo analistas e atores, foi a revelação pelo Banco Mundial de que o regime militar manipulara, em 1973 e 1974, os índices de inflação, mascarando o verdadeiro custo de vida. Isso levou os trabalhadores a serem penalizados em 34,1%. Nesse momento, o sindicato começa uma campanha pela reposição salarial em busca daquilo que lhes havia sido retirado. Ainda que experimentasse o pouco interesse dos patrões e do governo no sentido da reposição, essa campanha teve grande peso no quadro das mobilizações posteriores. A campanha salarial de 1978 terminou como as anteriores, homologando-se os índices oficiais. Os representantes de governo e empregadores estranharam muito o fato
Trinta anos das greves do ABC
de o sindicato não ter incluído o índice de reajuste salarial na pauta de negociação, já que o índice, como sempre, seria o indicado pelo governo. Porém, o sindicato tinha como estratégia desmascarar todo o processo e, assim, se recusou à negociação tutelada pela Justiça do Trabalho, abrindo mão de sua participação no dissídio. A política do sindicato, então, era jogar por terra o que seria a falácia de participação gerada pelo governo militar e deixar um vazio em termos da parte referente à representação dos trabalhadores. O sindicato, que – ao longo da campanha pela reposição que precedeu a campanha salarial – já vinha batendo na tecla do “roubo” efetuado pelo governo, preparava o caminho para uma desilusão ainda maior ao término dessa campanha. Em fins de março, os trabalhadores da Mercedes-Benz já haviam paralisado o trabalho por não terem recebido o aumento que a empresa costumava conceder. O desenvolvimento da paralisação em vários setores da fábrica levou à demissão de 17 operários, fazendo o movimento refluir. A própria postura da empresa, posteriormente, indicava certa alteração nos padrões de negociação. O endurecimento era sensível. Em 12 de maio de 1978, os trabalhadores da Saab-Scania entraram em greve. Na verdade, a Scania passara, em fins de 1977, por tensões internas com seus empregados, o que resultara na demissão de alguns operários. O sindicato reverteu as demissões na justiça, mas elas acabaram prevalecendo na prática. A greve de maio de 1978, deflagrada diretamente pelos trabalhadores da fábrica, estendeu-se por quatro dias, ao fim dos quais a diretoria do sindicato arrancou um acordo “de boca” da direção da empresa. Depois, pressionada pelos outros setores da indústria automobilística, a Scania não cumpriu o acordo, trocando os 20% das reivindicações por parcos 6,5%. Nova mobilização foi tentada, mas, mediante as práticas repressivas da empresa, não se efetivou. Contudo, as mobilizações por fábrica já se alastravam pelo ABC paulista. No dia 15 de maio, pára a Ford, e no dia 16, a Volkswagen. Já se contavam cerca de 20 mil trabalhadores em greve. Apesar do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) considerar as greves ilegais, foi o início de uma onda mobilizatória que alcançou grandes, médias e pequenas empresas, desenvolvendo tipos variados de greve e com durações diversas, chegando a alcançar outros municípios, como
Osasco e São Paulo. Os militares acusaram infiltração comunista na greve. A oposição saiu em apoio ao movimento. A mobilização acabou por atingir outros setores da economia. Apesar de não conseguir os índices reivindicados, os operários em greve conseguiram aumentos salariais acima daqueles oferecidos originalmente pelos empregadores.
*Marco Aurélio Santana Coordenador do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Década sindical Sem sombra de dúvida, esse movimento significou o passo fundamental para a retomada do movimento operário e sindical brasileiro em termos da cena política mais geral. Em entrevista dada à revista Visão, em 3 de abril de 1978, antes da greve, Lula dizia que “o caminho ficou muito tempo fechado, o mato cresceu e está impedindo os trilhos. Agora, estamos apenas cortando o mato e desobstruindo a linha”. Apesar da importante atuação do sindicato, vale ressaltar as ações dos trabalhadores na base das empresas. O fato é que, de uma só vez, os trabalhadores colocavam em xeque tanto a política salarial como a política antigreve do governo, chocando-se com o conjunto da política de “arrocho” empreendida, de longa data, pela ditadura militar. Com isso, abriram terreno para muitas outras paralisações que ocorreram naqueles anos, demonstrando a insatisfação operária e a vontade de estabelecer um novo estado de coisas, tanto dentro das empresas como no seio da sociedade brasileira. Os movimentos se repetiriam em 1979 e 1980 de forma muito mais organizada e articulada, transformando os metalúrgicos do ABC em verdadeira ponta de lança de uma luta muito mais ampla, empreendida nos mais diversos setores econômicos e em todas as regiões do país. A pujança desses movimentos foi reiterada na década de 1980, que se configurou como uma “década sindical”, ficando marcada na história recente do país.
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Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil? César Ricardo Siqueira Bolaño Paulus 124 págs.
1 Apesar de haver controvérsias sobre o assunto, oficialmente, a primeira rádio brasileira foi a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada em abril de 1923. 2 O Código Brasileiro de Telecomunicações foi instituído pela Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962. 3 Fundada naquele mesmo ano de 1962, a Abert é, até hoje, a principal entidade representativa dos empresários da radiodifusão.
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O livro do pesquisador César Bolaño tem como grande mérito jogar luz sobre a lógica que permeia a definição das políticas públicas de comunicação no Brasil nas últimas décadas. Neste momento, em que a sociedade começa a incorporar o debate sobre a democratização da comunicação por meio de questões como a introdução da TV digital, a criação da TV Brasil e a polêmica em torno da questão da classificação indicativa, o livro não poderia ser mais adequado. Fruto de um trabalho de pesquisa do Observatório de Economia e Comunicação da Universidade Federal de Sergipe, o livro tem um caráter bem didático e é bem acessível para o público que não acompanha tão de perto os debates acerca das políticas de
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comunicação. Para alcançar o objetivo geral – refletir sobre o modelo de regulação das comunicações –, o autor traça um histórico da legislação sobre o tema desde o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, até o primeiro governo Lula. A análise é feita com base na perspectiva da economia política do setor das comunicações no país, por meio da observação da estrutura do mercado e das relações de poder. Embora o trabalho seja mais focado na radiodifusão, especialmente no mercado de televisão, ele dá conta de esclarecer o que se passa em todo o macrossetor das comunicações. Para isso, não perde de vista, em nenhum momento, o processo de convergência tecnológica. Embora já existisse alguma legislação sobre a radiodifusão desde a década de 1920,1 o primeiro marco legal das comunicações no Brasil foi o Código Brasileiro de Telecomunicações2 (CBT), culminância de um complexo processo de disputas. A legislação aprovada no Congresso atendia claramente aos interesses do empresariado da comunicação e tinha como eixo central a liberdade de atuação da iniciativa privada no setor. À época, a sociedade não estava voltada para o tema, e praticamente a única oposição ao projeto partiu do então presidente João Goulart, que vetou 52 itens do código. Contudo, em um fato histórico, o Congresso derrubou todos os vetos presidenciais. O autor destaca o fato de que esse primeiro marco legal foi elaborado e aprovado sob os cuidados do empresariado do setor, reunido na Associação Brasileira de Emissora de Rádio e Televisão (Abert).3 Aquele momento, portanto, abre espaço para a consolidação de um sistema comercial privado de rádio e televisão a partir de concessões públicas. Esse modelo é bem diferente, por exemplo, do que ocorreu na Europa, onde, na maior parte dos países, a televisão foi implantada e
consolidada por emissoras públicas. A ditadura militar fez alguns ajustes na regulação do setor, mas, de modo geral, aquela legislação permaneceria em vigor por décadas. O primeiro momento em que se começa a debater as bases para um novo modelo de regulação do setor é no processo da Assembléia Nacional Constituinte. Esse debate foi polarizado por dois blocos: um, influenciado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), lutava por maior controle sobre a radiodifusão, com participação direta da sociedade civil; o outro, hegemonizado pela Abert, defendia uma idéia mais liberal, que privilegiava o mercado, com regulação frouxa por parte do Estado. Essa e outras questões fizeram do capítulo sobre a comunicação social o mais polêmico da Constituinte: foi a única área que não encaminhou relatório final à comissão de sistematização. Depois de árdua negociação, o capítulo da Constituição que tratava da comunicação social trouxe significativos avanços democráticos, como a criação de um Conselho de Comunicação Social, a proibição do monopólio e do oligopólio nos meios de comunicação, o estímulo à produção independente e complementaridade dos sistemas privado, estatal e público de comunicação. Mas a pressão da Abert ainda não havia terminado: a maior partes desses dispositivos não seria implantada por falta de regulação posterior.4 César Bolaño indica que a primeira ruptura significativa com o modelo regulatório estabelecido no CBT ocorreu durante o processo de reestruturação do setor, efetuado no governo Fernando Henrique Cardoso. Para viabilizar as privatizações das telecomunicações, o governo criou a Lei Geral de Telecomunicações (LGT).5 Naquele momento, houve a separação da regulação das telecomunicações e da radiodifusão. Esta deveria ser regida por uma Lei Geral da Comunicação Eletrônica de Massa, que,
novamente por pressão do empresariado, jamais se tornou realidade. A radiodifusão permanece, até hoje, regulada pelo Código Brasileiro de Telecomunicações. Um dos principais motivos da resistência da Abert à nova legislação era a possibilidade de criação de um órgão regulador independente. A idéia de criação de uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual voltou a surgir no primeiro governo Lula, mas – imediatamente bombardeada pela mídia – tornou a ser abandonada. Ao trabalhar com esses – e muitos outros – exemplos do “engessamento” da regulação das comunicações, o autor sinaliza que a posição hegemônica do empresariado em nenhum momento foi seriamente abalada. Um mercado caracterizado por enorme concentração da propriedade dos meios de comunicação está relacionado a um modelo de regulação também concentrador. Os mesmos grupos mantêm a hegemonia da radiodifusão há décadas, por conta de um sistema autoritário e nebuloso de concessões, perpetuado graças a interesses políticos regionais e nacionais. Apesar do balanço negativo, o autor esclarece que a situação não é imutável. Em função de diversos fatores globais – de caráter tecnológico, econômico e social –, está aberta a necessidade de um novo modelo de regulação. Os rumos que essa nova regulação tomará ainda dependem da disputa entre os atores envolvidos. A possibilidade de avançar na democratização da comunicação depende da construção de uma nova hegemonia, comprometida com os interesses públicos e a diversidade cultural.
Alvaro Neiva
Jornalista, mestrando em Políticas Públicas e Formação Humana na Universidade do Estado
4 Desses, o único implantado foi o Conselho de Comunicação Social; mesmo assim, só foi instaurado em 2002 (ou seja, 14 anos depois de promulgada a Constituição Federal), em uma negociação que permitiu a abertura do mercado brasileiro de radiodifusão ao capital estrangeiro. 5 A Lei Geral de Telecomunicações foi aprovada em 7 de julho de
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Agraristas políticos brasileiros Raimundo Santos Fundação Astrojildo Pereira / IICA / Nead 200 págs.
1 No prefácio à 3ª edição do livro Raízes do Brasil (1968), Candido diz que Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio B. de Holanda, e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado, passaram “uma mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social” aos intelectuais da geração pós-1930.
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No atual contexto de celebração do centenário de nascimento de Caio Prado Junior e da propalada “crise da esquerda”, resulta por demais oportuna a reflexão proposta no livro de Raimundo Santos, recém-publicado pela Fundação Astrojildo Pereira, em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para Agricultura (IICA) e o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead). O autor estuda o pensamento social brasileiro relacionado ao nosso mundo rural. Neste momento de “crise da esquerda”, a interpelação das suas próprias matrizes, dentre as quais o marxismo político do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ganha muita importância. Reconstruir essas e outras raízes constitui o trabalho de Raimundo Santos no
Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Originalmente, o termo agrarismo remete às organizações dos camponeses (ligas, associações, sindicatos etc.). O autor explora outra acepção de agrarismo, destacando a produção de discursos relativos à transformação do mundo rural com base na ação dos atores sociais. Para isso, ocupa-se de intelectuais que produzem textos destinados ao debate político, por ora autores do campo da esquerda comunista. Anuncia esse ensaio como parte de um trabalho maior, no qual a matriz comunista será comparada a um agrarismo mais contemporâneo, tendo por referências principais obras de José de Souza Martins, no campo intelectual, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), no campo da mediação política. A primeira parte do livro é dedicada à analise de três comunistas. O primeiro é Caio Prado Junior, nome de relevo na vida intelectual e que, desde o célebre elogio de Antonio Candido, vem sendo reverenciado como um dos intérpretes do Brasil.1 Raimundo Santos evidencia as reflexões “caiopradianas” sobre a questão agrária segundo a sua questão-chave: a valorização do trabalho e o sindicalismo como caminho para a transformação do mundo rural. Mesmo com restrições, as idéias de Caio Prado seriam adiante utilizadas pelo PCB. Era uma aceitação tácita (e parcial), visível, desde meados da década de 1950, na “tática” de fundar sindicatos rurais como meio para atingir as massas camponesas – diferentemente de Caio Prado, que conferia centralidade estratégica aos assalariados e semi-assalariados e a seus sindicatos. O segundo autor analisado é Alberto Passos Guimarães, conhecido como protagonista do debate sobre o tema do feudalismo
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(ou seus restos) no campo brasileiro, com seu livro Quatro séculos de latifúndio (1963). Sobre esse ensaio acerca da história do monopólio territorial no Brasil, recaiu a fama de equívoco metodológico por visualizar resquício de algo que não existiu. Raimundo Santos desloca o foco para outros aspectos dos textos de Alberto Guimarães mais pertinentes à construção do agrarismo comunista. Relembra que Guimarães usa o conceito de feudalismo com um sentido instrumental. Raimundo Santos destaca que esse autor também recorria à conceituação de Lenin sobre as vias de evolução do feudalismo ao capitalismo. Alberto Passos Guimarães punha seu interesse na “via prussiana”, assim diferenciando sua visão das abordagens então dominantes no PCB. Conforme Raimundo Santos, em Alberto Passos Guimarães, a associação do feudalismo ao conceito de via prussiana estimularia a busca do caminho brasileiro rumo ao socialismo, naquela época aspirado por grupos comunistas. Com relação a Ivan Otero Ribeiro, autor de um “agrarismo inconcluso” – interrompido por sua morte no acidente aéreo que também vitimou o ministro da Reforma Agrária do governo Sarney, Marcos Freire, e parte da sua equipe –, Raimundo Santos realça o sentido de uma renovação da tradição comunista brasileira nesse jovem pesquisador. O ponto desse ensaísta estaria na interpretação da questão agrária com base no reconhecimento (ao contrário de Alberto Passos Guimarães) de que a modernização conservadora da agricultura realizada pelos militares não cancelava a função da reforma agrária. Ivan Ribeiro não negava a importância dos grandes setores da agropecuária – nos quais se devia incentivar associativismo de tipo “caiopradiano” – e, ao mesmo tempo, dizia que a redistribuição de terras traria ganhos importantes aos vastos contingentes
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de pequenos produtores. Em um contexto de lutas por redemocratização – como após a Anistia de 1979 –, essa perspectiva abria caminho para os tais grupos “camponeses” se incorporarem à vida nacional. Para a segunda parte do livro, o autor selecionou textos dos próprios agraristas. Assim, de Caio Prado destacou o texto de 1963 sobre o “Estatuto do Trabalhador Rural”. De Alberto Passos Guimarães, o artigo “As três frentes da luta de classes no campo brasileiro” (1960). Para ilustrar a contribuição de Ivan Ribeiro, escolheu “A agricultura e o capitalismo no Brasil”, publicado em 1975, sob pseudônimo, na revista Études Brésiliennes, editada pelo PCB em Paris. Por fim, na terceira parte do livro, é reproduzida a Declaração de Março de 1958, com a qual o PCB concluiu os debates sobre o stalinismo, anunciando a chamada “nova política”. Ao destacar as contribuições de expressivos intelectuais do comunismo brasileiro – e considerando a hipótese de que são autores de interpretações da sociedade brasileira, cujas heranças são visíveis em nossa esquerda ativista –, refletir sobre seus avanços e limites pode facilitar a compreensão de impasses atuais. Afinal, os debates sobre “políticas públicas para agricultura familiar” deste início de século 21, às vezes, parecem impregnados de idéias semelhantes às “medidas parciais de reforma agrária”, como se dizia nas décadas de 1950 e 1960. Da mesma forma, o fortalecimento de uma “via camponesa” parece justificar a retomada dos debates sobre “revolução brasileira”, “revolução agrária”, “revolução camponesa” ou “não-camponesa”. Por tudo isso, retornar aos nossos agraristas políticos é uma prioridade. Cláudio Severino
Doutorando no Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura
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O poeta esconde a poesia sob a É tão raro ir ao centro da cidade que nunca vou de carro. É salutar tornar lazer um dever que me tire do Leblon. Tal idiossincrasia criou a ocasião em 1978 ou 1979, não me lembro bem. Voltando para casa, num fim de tarde, tomo um ônibus no ponto de partida. Sento-me à janela, estico as pernas e me rendo ao prazer do ar-refrigerado. Acompanho passivamente o movimento na calçada, alheio ao que se passa no ônibus. Ambientado ao silêncio e ao conforto, começo a ler um livro. Mas não me escapa que o ônibus é ocupado aos poucos. Ao virar uma página, olho à volta, de relance, e deparo-me, atônito, com o inesperado. Avança pelo corredor, à procura de um lugar vago, ninguém menos que o poeta. Meu coração se acelera num ritmo caótico. Volto ao livro sem nenhuma pretensão de ler. As idéias rodopiam ao sabor das emoções. Ao meu lado, uma poltrona vazia. Quase passo a mão sobre o assento, à guisa de limpá-lo, mas, na verdade, sugerindo-a ao poeta. Falta-me coragem para o gesto. Não consigo mais fingir que leio. Volto a olhar através da janela, agora, tentando me passar por um desses tipos aéreos, que se mantém em quieto silêncio, perdido nos próprios pensamentos. Embora olhe para fora, todos os canais de percepção estão voltados para o poeta que, afinal, senta-se. Eis que o impensado, o jamais sonhado, para o qual nunca me preparara, acontecia. Eu, sentado ao lado de ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade. Se o coração já me escoiceava o peito, agora as pernas tremiam.
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Cruzei-as, para prender uma à outra. Porém, o poeta me ignora. Simplesmente não me vê. Se olhasse pela janela, poderia me perceber, pelo menos, de soslaio. Mas ele age como se ali não houvesse ninguém. Abre o livro e lê, nariz quase colado ao papel. O ônibus parte. Olho pela janela, fingindo ensimesmamento. Na verdade, atento a cada movimento do poeta, à sua respiração, até ao seu olhar. O poeta não sabe, nem pode saber, que ao seu lado, quase lhe roçando o braço, está um leitor de seus versos, que compartilha tanto de sua sensibilidade que se sente cúmplice do olhar, de retinas fatigadas, que pousa sobre homens e coisas. O poeta não sabe, nem pode saber, que este que ele ignora a seu lado, leu todos os poemas, de todos os seus livros, assim como todos os livros sobre os seus livros e que, agora, espicha o pescoço para espiar que livro ele lê. O poeta não sabe, nem pode saber, que ao seu lado está um mineiro, que também viveu em Belo Horizonte, que um dia também saiu de Minas, e que também veio para o Rio de Janeiro, e cessam aí as analogias. O poeta não sabe, nem pode saber, que ao seu lado não está um poeta, mas um escritor, a quem não foi dado o verso. Recosto a cadeira e ganho liberdade para observá-lo de viés. Usa paletó sobre a camisa esporte, abotoada no colarinho. No colo, uma pasta preta sem alça pode confundi-lo com um advogado, um professor ou mesmo um cobrador. A mão, de dedos longos, é de
uma brancura quase transparente, que deixa à mostra finas veias azuis. Contrasta com o livro, que segura aberto – pequeno, fino, antigo, de capa dura vermelha. Olho através das lentes dos seus óculos. Somados os graus dele aos meus, o mundo se entorta e deforma. Para ler e ver de perto, ele aperta os olhos por trás dos óculos. É de olhos quase fechados que vê o mundo. É sob a pálpebra que o poeta esconde a poesia. Comecei a ser beliscado pela idéia de puxar conversa. E se eu dissesse – conjeturei – “Conheço o senhor”. Fiquei envergonhado só de pensar. Desisti. A idéia retornou com outra forma: “E aí, Drummond?”. Outra vez me envergonhei com a insinuação de uma intimidade que jamais tivemos. Como reagiria se o chamasse de Drummond? – pensei. Ele olharia para mim, não diria uma palavra, não moveria um único músculo e, ato contínuo, voltaria a ler. E eu saltaria pela janela do ônibus em movimento. Ocorreu-me, então, utilizar o que tínhamos em comum: Minas. Eu perguntaria, em tom de pilhéria: “Então, o senhor acha que a nossa Minas não há mais?”. Pergunta mais ridícula, meu Deus! E o tratamento? Nunca falei senhor Shakespeare, senhor Goethe, senhor Whitman! Mas não conseguiria dizer: “E então, Carlos...?” Melhor esquecer essa idéia. Voltei a poltrona à posição vertical, abri o livro. Não consegui ler, mas mantive o olhar fixo na página aberta. Até que me ocorreu que se ele me visse lendo, quem sabe, não puxaria conversa? Talvez perguntasse pelo livro, se leio sempre, o que gosto de ler, etc., até se declarar poeta e se identificar. Eu, então, na euforia de conhecê-lo pessoalmente, confessaria minha admiração e recitaria uns três ou quatro poemas que sei de cor. Bastou intuir o interesse do poeta no que lia para concluir que ele jamais tiraria os olhos daquele livreco e olharia para mim. Foi o que aconteceu. O homem não
deixou de ler um instante. A certa altura, convencido de que não devia importuná-lo, eu também voltei a ler, agora com interesse. Em Ipanema, o poeta desembarcou. Afastou-se, empertigado, pasta à mão, sem olhar para trás. Segui no ônibus para o Leblon, me mordendo por ter perdido aquela oportunidade. Passaram-se os anos. Uma tarde, na sede da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais para receber direitos autorais, reencontro o poeta do mesmo lado do balcão, também recebendo seus direitos. Atendidos ao mesmo tempo, o funcionário se confunde e troca os nossos cheques. No curto tempo até o engano ser corrigido, soubemos o quanto o outro recebera. E o poeta comentou, prosaico: “Você ganha muito dinheiro! É dramaturgo? Fico até com vergonha de você ter visto a mixaria que recebi”. Rindo às gargalhadas, saímos juntos para o elevador. E eis que o poeta, de voz aguda e frases rápidas, torna-se, aos meus olhos, um mortal falante, espirituoso e divertido. Culpado e envergonhado por ganhar mais do que o genial Carlos Drummond de Andrade, me empenho em explicar-lhe que uma peça minha estava fazendo sucesso, fato raro, nada rotineiro, absolutamente excepcional. No ônibus de volta, lado a lado, voltados um para o outro, falamos sobre teatro, poesia, crônica, tradução, Itabira, Minas, Academia, etc. Quando a conversa chegou à pura galhofa, criei coragem e contei-lhe a história do nosso encontro de anos antes. E ele concedeu que voltássemos a rir como se fôssemos amigos. Como se fôssemos velhos amigos. Em Ipanema, o poeta despediu-se e desembarcou. Afastou-se empertigado, pasta à mão. Quando o ônibus passou por ele, acenou. Segui para o Leblon pensando em seus versos: “Que milagre é o homem? Que sonho, que sombra? Mas existe o homem?” Sim, existe.
Alcione Araújo alcionearaujo@uol.
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artigo Teresa Sales*
Josué de Castro: um homem e Este ano de 2008, comemora-se o centenário de nascimento de Josué de Castro. Pernambucano ilustre, cidadão do mundo, Josué de Castro deixou vasta obra publicada, na qual se destaca o livro Geografia da fome, traduzido para mais de duas dezenas de idiomas pelo mundo afora. Geografia da fome ultrapassa as fronteiras do Brasil não somente pela tradução do livro para outras línguas, mas também porque Josué de Castro utiliza a mesma metodologia para estudar a fome em outras partes do mundo por meio da Geopolítica da fome. Enquanto esteve em Roma como presidente do Conselho Executivo da FAO (Organismo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), entre 1952 e 1956, Josué de Castro abriu diálogo com o mundo das artes, e seus escritos suscitaram o interesse de cineastas do neo-realismo italiano. Como resultado disso, em 1958, Roberto Rossellini veio ao Nordeste com a intenção de realizar um filme baseado em Geografia da fome – projeto que, infelizmente, não se realizou. Por essa mesma época, o escritor e roteirista Cesare Zavattini (imortalizado com o filme
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Ladrões de bicicleta), de quem Josué de Castro era amigo, pensou também em fazer um filme-painel sobre a fome no mundo inspirado em Geopolítica da fome e composto por vários segmentos, representantes dos países nos quais a fome se apresentava de forma mais aguda naquele momento, que seriam realizados por diferentes diretores. O único dos segmentos realizado foi perdido, por essas fatalidades da vida, sobrando dele apenas fragmentos. Esse filme foi O drama das secas, de Rodolfo Nanni, cineasta brasileiro que havia sido convidado por Josué para realizar o segmento brasileiro do projeto de Zavattini. Para falar sobre o filme, dou a palavra a Rodolfo Nanni: 1958 foi um ano de seca rigorosa. Partimos de Recife, com uma primeira parada em Caruaru, onde encontrei Mestre Vitalino em uma praça, cercado de imagens de barro expostas no chão. Ficou-me, desse breve encontro, a lembrança do grande artista e a imagem de um touro esculpido por ele, para mim, até hoje, o símbolo da resistência do povo nordestino. Na etapa seguinte das filmagens, em Garanhuns, começamos a entrar em contato com uma realidade muito mais trágica do que esperávamos: retirantes depauperados, na beira de estradas. Daí em diante, nos quatro mil quilômetros que rodamos pelas estradas cheias de pó, encontrávamos centenas e centenas de homens, mulheres e crianças, num misto de desespero e desesperança, à procura de um destino desconhecido. Foi o que filmamos, o tempo todo. Assim nasceu o filme O drama das secas , o único segmento realizado do projeto inicial de Zavattini (press release escrito por Rodolfo Nanni para a apresentação de seu filme O retorno no festival de cinema de Pernambuco, em maio de 2008, onde ele recebeu o prêmio de melhor diretor).
mente, no Rio de Janeiro, onde ele morou por mais tempo no Brasil e onde estão seus restos mortais; na França, onde ele viveu seu exílio, depois de 1964, até sua morte em 1973; e no Recife, sua cidade natal – tem trazido à luz muitos aspectos de sua vida e de sua obra. Preferi, neste escrito, começar apresentando um Josué de Castro vivo e imortalizado por seu diálogo com a arte. A arte de Josué de Castro está também em seus livros, resultados de pesquisa científica rigorosa, porém escritos com maestria e beleza. Quando escreveu Geografia da fome – publicado pela primeira vez em 1946 pela editora O Cruzeiro –, o tema era tabu, segundo palavras do próprio Josué.
Pensamento e ação Médico de formação, Josué decide estudar a fundo as causas da fome que ele viu de perto quando, no Recife, entrava em contato com as populações pobres dos manguezais, cujas imagens ficaram indelevelmente marcadas em sua vida e em sua produção intelectual. A cidade do Recife foi motivo de um livro pouco conhecido de Josué de Castro, cuja edição está esgotada, mas que, felizmente, está sendo reeditado pela Editora Massangana, com lançamento previsto para este ano. Trata-se do livro Fatores de localização da cidade do Recife, publicado em 1948 e escrito como tese para efetivação de
Fotos: Acervo Centro Josué de Castro
Meio século depois, Nanni retorna ao Nordeste para novas filmagens, que resultaram no filme O retorno, a ser lançado, em breve, em circuito comercial. No Recife, como parte das comemorações do centenário de nascimento de Josué de Castro, tivemos o privilégio de assistir, em primeira mão, a esse documentário, com a presença de Rodolfo Nanni, do diretor de fotografia, Roberto Santos Filho, e da responsável pela trilha musical e paisagem sonora, Anna Maria Kieffer. O centenário de nascimento de Josué de Castro – comemorado, principal-
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artigo
Josué de Castro como professor na cátedra de Geografia Humana da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, em 1947. Ninguém conhecerá a cidade do Recife sem ter passado por esse belo livro. Josué de Castro era um homem de pensamento e ação. Radicado no Rio de Janeiro, clinicando, lecionando e estudando, teve atuação destacada em políticas públicas: nos movimentos em prol do estabelecimento do salário mínimo (que passa a vigorar por decreto-lei de Getúlio Vargas em 1940); na fundação do periódico Arquivos Brasileiros de Nutrição, editado sob a responsabilidade do Serviço Técnico da Alimentação Nacional e da Nutrition Foundation de New York, em 1941; na fundação da Sociedade Brasileira de Alimentação, em 1940, constituída de futuros dirigentes do Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps), criado em agosto do mesmo ano por iniciativa do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. A década de 1950 reservaria muitas atividades públicas na vida de Josué de Castro. Foi deputado federal por Pernambuco em duas legislaturas, 1955 e 1959. Em 1952, foi eleito presidente do Conselho Executivo da FAO. Reeleito por unanimidade pelos delegados dos países que formam o Conselho das Nações Unidas, permaneceu no cargo até o fim de 1956. Nesse conselho, impulsionado pelo sucesso de seus livros, sobretudo Geografia da fome, pelo prestígio do órgão e pela aceitação de suas posições científicas, Josué de Castro empreendeu uma série de trabalhos de combate à fome no mundo, buscando unir os conhecimentos científicos e a ação. Ao deixar a FAO, em 1957, fundou a Associação Mundial de Luta contra Fome (Ascofam), visando despertar o mundo para o problema da fome e da miséria e promover projetos demonstrativos de que a fome pode ser vencida e abolida pela vontade das pessoas. A figura humana de Josué de Castro como homem de ação para além da reflexão está presente desde o início de sua carreira, como médico que retorna ao Recife depois de formado no Rio de Janeiro. Foi Josué quem realizou o primeiro inquérito de consumo alimentar do Brasil, em 1935, que contemplava minuciosa descrição das despesas domésticas com moradia, alimentação, saúde, educação e transporte. Desse inquérito, resultaram as bases para a instituição do salário mínimo no Brasil – efetivamente implementado no governo Vargas. O inquérito, ao estimar 50% dos gas-
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tos para a compra de 12 alimentos básicos que compunham a cesta alimentar, constituiu enorme avanço sobre a legislação mundial no assunto, permitindo a cobertura das necessidades biológicas de calorias e nutrientes. Salário mínimo, merenda escolar e criação da Comissão Nacional de Alimentação – precursora do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) – são algumas das ações de Josué de Castro no Brasil, além da atuação internacional, na qual se destaca o período como presidente do Conselho Deliberativo da FAO.
Obra inesquecível Pode-se dizer que a obra de Josué de Castro é grande em quantidade e qualidade. Não fosse a truculência do golpe militar, em 1964, e dos governos ditatoriais que lhe seguiram – ele e tantos(as) outros(as) ilustres intelectuais brasileiros(as) foram expulsos(as) de nosso país para o exílio –, não fosse esse período vergonhoso de nossa história, os resultados da atuação desse homem público em nosso país seriam ainda mais expressivos. Quem sabe até chegaria ao tão cobiçado Prêmio Nobel da Paz, para o qual foi indicado duas vezes? Quem melhor do que ele para representar o Brasil nessa honraria com a qual o país nunca foi brindado? Um dos estudiosos da obra Geografia da fome, Ricardo Abramovay, traz Josué de Castro para os dias atuais em seu artigo, ainda inédito, “Integrar sociedade e natureza na luta contra a fome no século XXI”. O autor de Geografia da fome passa a dialogar, pelas mãos e arte do professor Abramovay, com autores e temas que estão, hoje, na academia. Enfatizando a abordagem interdisciplinar de Josué de Castro, duas dimensões são ressaltadas: a biodiversidade (“embora a noção não esteja claramente formulada, Geografia da fome encontra-se entre os mais belos elogios já produzidos no Brasil a respeito de sua biodiversidade”) e a reunificação daquilo que a constituição das ciências contemporâneas separou, qual seja, a natureza e a sociedade. Ou, em outros termos, o meio-ambiente e o desenvolvimento. Nessa perspectiva interdisciplinar, Ricardo Abramovay permite a Josué de Castro dialogar com uma instigante e atual bibliografia de autores contemporâneos identificados com a economia ecológica, que procuram ligar sistemas sociais e sistemas ecológicos. Para Abramovay, é nessa ligação que está a chave para compreender e enfrentar os desafios alimentares do século 21.
Josué de Castro: um homem e vários legados
Segundo ele, o mais importante na obra de Josué de Castro não é o tema sobre o qual ele se debruçou, e sim o método que empregou para estudá-lo (ao qual o próprio Josué chamou de método geográfico), sendo um verdadeiro precursor da abordagem socioambiental dos problemas de nosso tempo. Também aqui, e não apenas no diálogo com autores atuais, Ricardo Abramovay convida Josué de Castro a tomar assento nos dias de hoje, no caso, na sua atuação de homem público que não apenas estudou, mas propôs soluções. Pois é exatamente esse método que permite não apenas compreender, mas, sobretudo, traçar as políticas necessárias para enfrentar o desafio do aumento da população mundial dos 6,5 bilhões de habitantes atuais para um horizonte de estabilização de 9,2 bilhões em 2050. E mais. Temas tão atuais e candentes, que ocupam as páginas da imprensa quase
todos os dias, tal como a explosão dos preços dos alimentos, são reflexos não somente do aumento da renda dos países emergentes ou da opção norte-americana de dedicar parte de sua produção de milho ao etanol. Essa elevação dos preços dos alimentos deve ser também interpretada pela ótica da oferta, tal como propôs Josué de Castro, a partir das condições ecológicas em que essa oferta se realiza. Josué de Castro morreu no exílio. No exílio, sentiu agudamente a falta do Brasil, a ponto de declarar que “não se morre apenas de enfarte ou de glomerulonefrite crônica, mas também de saudade”. Faleceu em Paris, em 24 de setembro de 1973, quando esperava o passaporte que o traria de volta ao Brasil.
*Teresa Sales Socióloga, presidenta do Centro Josué de Castro, é professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
O centro Em fins da década de 1970, alguns intelectuais pernambucanos da área de Ciências Humanas, que estavam igualmente exilados em Paris, faziam planos para o seu retorno ao Recife. Nasceu desse diálogo uma idéia que se concretizaria em 1979, quando foi fundado, no Recife, o Centro de Estudos e Pesquisas Josué de Castro. A escolha do nome foi motivada pela identidade intelectual e humana com esse pensador, especialmente a independência, o espírito crítico e o compromisso com o processo de conhecimento e a transformação da realidade. Trata-se também de uma homenagem ao grande humanista pernambucano que se dedicou à luta contra as causas que originam a fome e a pobreza no mundo. As principais áreas de estudo e intervenção social do Centro Josué de Castro têm sido a análise da realidade brasileira, especialmente da região Nordeste, por meio de pesquisas e intervenções nos diversos ramos das ciências humanas; a atuação em várias frentes voltadas para o conhecimento e a superação das causas da fome e da pobreza; a capacitação de cidadãos e cidadãs para a participação na formulação de propostas, controle e acompanhamento de políticas públicas; o fortalecimento de redes e articulações voltadas para essa finalidade; e a atuação em fóruns e debates sobre políticas econômicas, sociais e culturais. Em 1987, o centro recebeu da família de Josué de Castro todo o seu acervo documental, que hoje é parte integrante da biblioteca do Centro Josué de Castro. Conheça mais sobre o trabalho do centro em <www.josuedecastro. com.br>.
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Ib a s e opinião Luciano Cerqueira*1
onde avançamos, onde emperramos? O fim dos regimes ditatoriais na América Latina foi acompanhado pelo surgimento de novas formas de organização dos grupos sociais excluídos pelas elites hegemônicas, que até então governavam. As novas organizações se destacavam não apenas por seu ativismo político, mas também pelo intenso envolvimento dos(as) participantes no processo decisório. Comunidades eclesiais de base, movimentos sociais urbanos e conselhos de 1 Este artigo foi baseado na dissertação de mestrado que, sob a orientação do professor Renato Boschi, foi apresentada ao Programa de Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), no ano de 2004.
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fábrica desempenharam papel importante na transição para a democracia, em função do atendimento de reivindicações populares e do fato de haverem se tornado autênticas “escolas” de prática participativa para a sociedade civil. A importância atribuída a esses experimentos colaborou para que fossem incluídas no
texto constitucional garantias da participação cidadã no controle das ações governamentais e na tomada de decisões concernentes às políticas públicas. Descentralização, cidadania e participação cívica tornaram-se referências obrigatórias nos discursos dos mais variados atores políticos. A Constituição Federal Brasileira de 1988 é considerada um marco da participação cidadã. Foi a partir dela que a discussão sobre participação ganhou espaço na nossa realidade, passando a ser vista como imprescindível para que o Estado pudesse garantir o mínimo de condições de sobrevivência a uma parcela da população. A partir de então, privilegiam-se as relações sociedade-Estado, os mecanismos criados para ampliar a autonomia dos municípios e os espaços de participação da sociedade. Adotou-se um modelo descentralizado, pensado inicialmente para permitir o desenvolvimento de novas formas de gestão, com a intenção de tornar mais eficazes o atendimento das necessidades dos diferentes grupos sociais, especialmente daqueles tradicionalmente excluídos dos processos decisórios. Embora a participação nos processos de gestão municipal seja uma preocupação anterior ao marco histórico da Constituição de 1988, é a partir daí que ela se institucionaliza, ajudando a ampliar as discussões sobre poder local, cidadania e processos de gestão. A Constituição define, em seu artigo primeiro, parágrafo único, a natureza e a finalidade do Estado que se está instituindo, bem como seus fundamentos: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (Brasil, 1994, p. 3).
O processo de ampliação da chamada esfera pública se deu por meio da combinação
de dois mecanismos de participação fornecidos por duas formas de democracia distintas. Elas não devem ser vistas como excludentes ou concorrentes, mas como complementares. São elas: Democracia representativa – Cada uma das formas assumidas pela representação política decorrentes do direito ao voto. Se traduz na representação política delegada aos membros eleitos no legislativo e no executivo, em qualquer nível de governo (federal, estadual e municipal). Democracia direta – Conjunto de todas as formas de participação junto ao poder público, no qual a sociedade se apresenta para fazer sua própria representação política nos espaços dos conselhos, nas audiências públicas, nos próprios fóruns colegiados, onde os chamados grupos de interesse elegem seus delegados e se utilizam de instrumentos, como o plebiscito e o referendo (ver Solidary Community Council Brazil; Instituto Brasileiro de Administração Pública, 2002, p. 19).
No quadro da democracia representativa (a que vivemos), a direção do governo pode ser partilhada com a sociedade, mas não integralmente delegada. Até para as pessoas mais otimistas, é difícil imaginar que o governo, na prática, abra mão de todo seu poder de decisão. Com a aprovação da Constituição de 1988, a participação no Brasil adquiriu dimensão institucional, provocando a ruptura do modelo clássico de democracia representativa pura para introduzir, no ordenamento jurídico-constitucional do país, a concepção de democracia participativa. Os(as) constituintes entenderam, portanto, que o regime político brasileiro deveria ser uma democracia semidireta, combinando elementos de participação indireta (representação) e de participação direta. Segundo o princípio participativo, foram acolhidos, na Constituição, diversos institutos jurídicos nos capítulos referentes ao planejamento e à gestão de políticas públicas, fiscalização da administração pública, defesa e garantia de direitos coletivos (seguridade social; ensino; cultura e atendimento aos direitos da criança e do adolescente), gestão de empresas privadas e da vida política em geral. Foram estabelecidos com a Constituição: referendo; iniciativa popular; plebiscito; colegiados de órgãos públicos; planejamento público. As constituições estaduais e leis orgânicas municipais, de acordo com as normas
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da federação brasileira, seguiram os princípios fundamentais da Constituição Federal. A supremacia da Constituição atua em dois sentidos – a conformidade do ordenamento jurídico de todos os entes da federação às normas constitucionais e a obrigação de aplicar tais normas, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade por omissão. Foi a partir dela que o Estado brasileiro passou a ser constituído de estados, municípios e do Distrito Federal.2 Com o estabelecimento da proposta (o debate com a sociedade civil e a realização efetiva dos sistemas de parceria), melhora-se a estratégia para amenizar as desigualdades existentes, além do déficit de cidadania de milhões de pessoas que vivem em situação de risco social total ou parcial. O governo percebeu que o enfrentamento da pobreza deve ser entendido como uma questão de construção de cidadania, de democracia, de empoderamento, de dar voz e vez às populações em situação de pobreza. [...] e que é importante estimular e apoiar o surgimento de entidades comunitárias autônomas, redes e movimentos próprios da população em situação de pobreza e evitar que os governos e as organizações não-governamentais as substituam. Neste sentido, é essencial que as organizações comunitárias sejam reconhecidas enquanto tais, sem maior preocupação com a sua profissionalização. Deve-se evitar, portanto, a criação de novos mecanismos que possam vir a substituir essas mesmas organizações a pretexto de maior eficiência (Camarotti; Spink, 1999 (ou 2003), p. 192).
Mecanismos de participação
2 Os municípios, em que pese sua esdrúxula colocação entre os entes federativos, o que torna a Constituição brasileira única no mundo, continuam a ser divisões dos estados, estes sim, os verdadeiros núcleos do pacto federativo.
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Um dos principais mecanismos de participação nas grandes cidades brasileiras é o conselho municipal. Esse canal de comunicação direta com a população surgiu e deu início a um processo de desmistificação existente em setores da população brasileira, que acreditavam que a sociedade não estava preparada para participar, que não se deveria compartilhar governabilidade com a sociedade (pois esta já participa votando) e que esses fatores atrapalhariam as tomadas de decisão. Hoje, os conselhos municipais são instâncias públicas de formação de opinião, de vocalização de demandas, de manifestação de vontade política, muito mais do que meros instrumentos do governo ou da sociedade.
Como espaço institucional de representação de interesses, os conselhos atribuem o status político aos grupos ali representados, e devem assegurar a participação principalmente dos segmentos sociais que não têm espaço nos canais tradicionais de influência na tomada de decisão (como a mídia comercial) e nos canais próprios do exercício da democracia representativa (como o Legislativo). Hoje, os conselhos já representam uma cultura institucional e política no processo cotidiano da tomada de decisão na esfera pública. Além dos conselhos, variadas formas de relação estabelecidas entre a sociedade e o Estado, embora não signifiquem participação direta nas decisões, correspondem a processos que (por tornarem o Estado mais permeável à conquista de direitos) podem ser entendidos, em sentido amplo, como momentos de partilha do poder. São os casos, por exemplo, de audiências públicas democráticas, processos de consulta, fiscalização sobre ações de governo em canais formais, em reuniões ou assembléias de bairros e entidades. Mas o objetivo de uma gestão democrática envolve, necessariamente, conferir à população que participa o real direito de decisão, e não apenas consulta. Há diferença qualitativa entre espaços de deliberação e consulta que não pode ser subestimada. A formalização dos canais de participação cidadã, de acordo com Renata Villas-Bôas (1994), passa pela clara definição de atribuições, critérios de representação e regras de funcionamento, e sua riqueza dependerá da dinâmica de funcionamento cotidiano que vai transformando a própria experiência (Villas-Bôas, 1994, p. 60). Com relação a esse ponto, normalmente, enfrentamos os problemas decorrentes do grau ainda incipiente de organização da sociedade civil, que dificulta a criação dos canais e prejudica a capacidade de ressonância das representações. Já para Bolívar Lamounier (1981), os canais de representação devem se tornar mais densos e encontrar novas fórmulas de participação mais ágeis e diferenciadas, capazes de suplementar, mas não de substituir, a participação por meio de eleições clássicas. Por outro lado, lembra que não pode haver democracia sem processos formais de representação, embora esse discurso resulte, com certa freqüência, no estímulo a fórmulas corporativistas de consulta, úteis como veículo de informação antecipada aos que formulam políticas públicas, mas escassamente eficazes como mecanismos de controle sobre elas (Lamounier, 1981, p. 255).
Participação cidadã, onde avançamos, onde emperramos?
O objetivo principal da participação deve ser o de possibilitar o contato mais direto e cotidiano entre as pessoas e as instituições públicas, de forma a possibilitar que estas considerem os interesses e as concepções político-sociais daquelas no processo decisório. A participação envolve conduta ativa de cidadãos e cidadãs nas decisões e ações públicas, na vida da comunidade e nos assuntos de interesse das coletividades de que sejam integrantes. Além disso, a participação na gestão pública, pretendendo-se democrática, não pode se limitar a este ou aquele segmento ou classe social. Ela deve garantir direitos iguais a todas as pessoas, pois não existe critério possível para a exclusão a priori.
Questão de atitude Com a criação de vários canais de participação, não se pretende que a sociedade assuma as responsabilidades do poder público. Pretende-se formar uma parceria na qual o Estado, entretanto, continue a exercer papel central de regulação social e redistribuição da riqueza e da renda. Uma vez que a pobreza e a exclusão social são conseqüências dos impactos de políticas públicas, de prioridades e de escolhas, a superação delas também depende de ação incisiva no campo das políticas públicas (ver Lamounier; Weffort; Benevides, 1981, p. 10). Mas ainda falta atitude mais propositiva de cima para baixo, desbloqueando os impasses que, ao não distribuir adequadamente as oportunidades, acabam por reproduzir – quando não produzem – a desigualdade e a exclusão social. Hoje, a busca de novas estratégias para a superação da pobreza requer novas relações com o Estado, com as diferentes organizações da sociedade civil e o setor privado. Com o surgimento de novos atores orientados para a promoção de iniciativas conjuntas, são estabelecidas novas formas de diálogo, favorecendo a construção de um espaço que é, claramente, de interesse público. Entretanto, há um longo e difícil caminho a ser percorrido. Com base em experiências passadas, pode-se afirmar que os elementos de tensão presentes são constitutivos do próprio processo de busca de radicalização da democracia. E apesar da idéia de democracia direta já ser discutida há muito tempo no Brasil, sua prática ainda é algo inusitado. Para se alcançar a cidadania ativa, teremos que vencer vários obstáculos. Por exemplo: a apatia do eleitorado;
a pouca educação política; uma frouxa definição das atribuições, dos critérios de representação e das regras de funcionamento, pouco claros; um grau incipiente de organização; número insuficiente de pessoas dispostas a participar; o funcionamento precário dos canais de participação criados pelo Estado, entre outros. Em um país como o Brasil, com altíssimos patamares de desigualdade social, a democracia tem de ser vista como um processo contínuo de lutas por novas conquistas sociais, por novos direitos de cidadania. Assim, só será possível enfrentar e diminuir os problemas de distribuição de renda, além de implementar políticas sociais que visem à melhoria da qualidade de vida por meio de formas criativas e inovadoras, com a participação, a intervenção periódica, refletida e constante nas definições das políticas públicas. Embora nossa “Constituição Cidadã” traga muita esperança para quem acredita na radicalização da democracia, ainda temos muitos problemas para resolver. O texto constitucional não estabelece distinção entre referendo e plebiscito, não especifica, também, se as consultas são obrigatórias ou facultativas, assim como não estabelece se o resultado das consultas traduz compromisso vinculante ou é meramente indicativo. Da mesma forma, não esclarece quais matérias podem (ou devem) ser objeto de consulta e, conseqüentemente, o que deve ser excluído. Esses argumentos são irrefutáveis. Mas é preciso ver, também, o lado positivo dessa nova fase, pois com a redemocratização do país surgiram novos movimentos sociais a partir da organização da sociedade e da eclosão das pressões e das demandas populares, que já produzem avanços na construção de formas democráticas de gestão pública. Só conseguiremos transformar a sociedade juntos e por meio da participação cidadã. E a participação democrática real só pode existir com a presença de duas condições: um conjunto de cidadãos(ãs), entidades e movi-
A participação envolve conduta ativa de cidadãos e cidadãs nas decisões e ações públicas, na vida da comunidade e nos assuntos de interesse das coletividades de que sejam
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*Luciano Cerqueira
mentos sociais dispostos a participar e canais de participação criados pelo Estado.
Cientista político,
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Reformas constitucionais na América do Sul3 Maurício Santoro Jornalista, pesquisador do Ibase
3 Até o fechamento desta edição, os processos constituintes no Equador e na Bolívia ainda não haviam sido concluídos. Na próxima edição, em dezembro, publicaremos um artigo internacional mais aprofundado sobre o tema. 4 Pesquisa realizada há 12 anos pela Corporación Latinobarómetro, ONG chilena, com sede em Santiago, que pretende medir as percepções das populações latino-americanas a partir de sua realidade econômica e social.
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No século 19, a América do Sul viveu guerras civis que opuseram liberais e conservadores em temas como relações de poder central/ províncias e Estado/Igreja. Ao fim de cada conflito, os vencedores promulgavam nova Constituição. No século 20, direita e esquerda se enfrentaram nas urnas e, com freqüência, as forças de mudança social foram solapadas por golpes militares. Neste início de século 21, os confrontos políticos se dão na Bolívia, no Equador e na Venezuela, em batalhas por novas Constituições que procuram consolidar as mudanças sociais que estão em curso nesses países. Embora tais processos ainda estejam em andamento, já é possível identificar pontos comuns entre eles. O primeiro é a insatisfação dos movimentos sociais locais com os mecanismos tradicionais da democracia representativa, e seu desejo de complementá-los e fortalecê-los com instrumentos de participação popular. O caso boliviano é exemplar e remonta às mobilizações da década de 1990 pela valorização da comunidade rural indígena, o ayllu, e dos sistemas de governo e de justiça dos povos aymara e quéchua. Outro ponto crucial é a distribuição dos lucros oriundos da exploração dos recursos naturais: Equador e Venezuela são grandes produtores de petróleo, a Bolívia, de gás natural. No passado, tais riquezas foram apropriadas por pequenas elites. Nas reformas atuais, ganha destaque a luta para o controle social
dos hidrocarbonetos, até mesmo no que toca as relações entre as regiões. Que parcela da riqueza deve se concentrar nas regiões em que são produzidas, como o oriente boliviano, a Amazônia equatoriana ou o litoral venezuelano? Quanto deve ser distribuído para áreas mais pobres ou usado para financiar políticas sociais para toda a população? O aspecto mais polêmico das três reformas diz respeito à ampliação dos poderes que serão concedidos ao presidente e ao número de vezes que será permitida sua reeleição. Muitos temem o enfraquecimento dos papéis que o Legislativo e o Judiciário devem desempenhar como fiscais dos direitos e das instituições democráticas. Tais controvérsias são particularmente fortes na Venezuela, em função da centralização política que aconteceu no país desde que Hugo Chávez se tornou presidente, em 1999. Conflitos políticos são parte da democracia, e a capacidade de resolvê-los pacificamente é uma das medidas da saúde desse sistema. Nesse sentido, cumpre observar que pesquisa do Latinobarômetro,4 realizada em novembro de 2007, mostrou alto grau de satisfação com o regime democrático na Bolívia, no Equador e na Venezuela – entre 65% e 67% da população. Como comparação, a Argentina está com 63%, taxa baixa para seus padrões históricos que, em geral, estiveram acima de 70%. No Brasil, no México, no Chile, na Colômbia e no Peru, o índice registrado foi entre 43% e 48%.
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cul c u lt u r a Maria Helena Versiani*1
Constituição de
a voz e a letra do A instalação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 no Brasil não foi uma medida política “ofertada” à sociedade brasileira por alguns parlamentares comprometidos com a redemocratização do país. A decisão de convocação da Assembléia respondeu a um amplo movimento social, que recolheu experiências e iniciativas por todo o Brasil, mobilizando entidades e pessoas as mais diversas.
reconhecimento da necessidade de construção de uma nova ci1 As fotos e os cartazes que acompanham este texto são parte do Acervo Museu da República. Os desenhos integram o acervo particular do Henfil /Ivan Cozenza de Souza.
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dadania no país, inclusiva e de completa ruptura com a ditadura militar que assumira o governo com o golpe de 1964. Por 21 anos, o governo militar impôs crescente centralização, incutindo a necessidade de intervenção do Estado na vida social e econômica do país, com ações
André Dusek / Agil / Acervo Museu da República
A proposta de uma nova Constituição veio atrelada ao
ura
Encontro conflituoso entre trabalhadores do MST e representantes da União Democrática Ruralista, no Salão Verde do Congresso, em 12/6/1987
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André Dusek / Agil / Acervo Museu da República
O presidente da Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes discursa, sob o olhar vigilante de representantes de escolas particulares, em 7/4/1987 Zuleika de Souza / Agil / Acervo Museu da República
como a criminalização dos movimentos sociais, a suspensão dos direitos políticos e as restrições ao exercício da cidadania. A resposta a quem se opunha ao regime era a repressão, a censura e, em muitos casos, a tortura e o assassinato. Com a nova Carta, pretendia-se a superação da Constituição representativa dos ideais e valores da ditadura instituída. De fato, a Constituição de 1967 serviu ao propósito de remodelar o sistema constitucional, incorporando os atos institucionais decretados pelo governo golpista pós–64. Em outras palavras, conferiu caráter constitucional a uma legislação especial ou, ainda, ‘constitucionalizou’ o arbítrio.
Emenda nº 1
Ailton Krenak defende emenda popular sobre os direitos dos índios, pintado de guerra, perante a Comissão de Sistematização, na tribuna do Congresso em 4/9/1987
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À Constituição de 1967, seguiu-se o Ato Institucional nº 5 (AI-5), decretado em 1968, o mais perverso instrumento de “endurecimento” do regime militar brasileiro, que concedeu poderes ilimitados ao presidente da República, independente dos demais poderes do Estado e da própria Constituição. Já em 1969, os termos do AI-5 seriam incorporados ao texto constitucional por meio da Emenda nº 1. Predomina, entre analistas, a opinião de que a incorporação da Emenda nº 1 à Constituição de 1967 serviu, na verdade, como meio de outorga de uma nova Carta, pois reformulou o texto essencialmente, até mesmo lhe conferindo novo título: Constituição da República Federativa do Brasil, antes denominada Constituição do Brasil. Afirma-se que a Emenda nº 1, embora tenha sido reputada pelo governo militar como emenda constitucional, foi antes um ato político que, em lugar de emendar a Constituição em vigor, a substituiu. Era, então, contra a ilegitimidade da Constituição de 1967 que se apresentava a defesa de uma nova Carta. O apelo pró-Constituinte foi lançado em documento, pela primeira vez, no ano de 1971, constando da Carta de Recife, elaborada em reunião do Movimento
Duda Bentes / Agil / Acervo Museu da República
Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão
Manifestação do MST em frente ao Congresso, em 6/10/1987
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Democrático Brasileiro (MDB), o partido de oposição que discutia sua autodissolução como forma de protesto contra o regime militar. A partir daí, a idéia de uma campanha nacional pela convocação da Constituinte desenvolveu-se num crescente, extrapolando a agenda dos novos partidos criados a partir do fim do bipartidarismo no Brasil, em 1979, e insuflando o entusiasmo de vários outros grupos da sociedade civil.
Diretas Já
2 Presidentes do Brasil / Departamento de Pesquisa da Universidade Estácio de Sá; organizador Fábio Koifman, São Paulo: Cultura, 2002.
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Acervo Museu da República
Dentro da mesma linha de denúncia da ilegitimidade de um governo imposto pela força, em 1984, explodiu a campanha “Diretas Já”. A população saiu às ruas, em multidões, para reivindicar eleições diretas para presidente, ocupando, principalmente, as grandes cidades do país. Votada no Congresso em 25 de abril de 1984, a Emenda das Diretas Já foi derrotada. A partir de então, cresceria substancialmente o movimento pela Constituinte Já. Na disputa presidencial indireta, em novembro daquele ano, venceram Tancredo Neves, do Partido do Movimento Democrático
André Dusek / Agil / Acervo Museu da República
Brasileiro (PMDB), e o vice, José Sarney, dissidente do Partido Democrático Social (PDS). Em seu primeiro discurso, o presidente eleito reafirmaria a necessidade de convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana: Convoco-vos ao grande debate constitucional. Deveis, nos próximos meses, discutir, em todos os auditórios, na imprensa e nas ruas, nos partidos e nos parlamentos, nas universidades e nos sindicatos, os grandes problemas nacionais e os legítimos interesses de cada grupo social. É nessa discussão ampla que ireis identificar os vossos delegados ao poder constituinte e lhes atribuir o mandato de redigir a lei fundamental do País. A Constituição não é assunto restrito aos juristas, aos sábios ou aos políticos. Não pode ser ato de algumas elites. É responsabilidade de todo o povo.2
Em 15 de março de 1985, José Sarney tomou posse na Presidência, após adoecimento e posterior morte de Tancredo Neves, e, em 28 de junho, enviou proposta ao Congresso de convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. A proposta, vitoriosa, previa a formação de uma Constituinte congressual, composta pelos deputados federais e senadores a serem eleitos no pleito previsto para 1986. Esses parlamentares deveriam, assim, acumular as funções legislativa e constituinte, o que contrariava a idéia de uma Constituinte exclusiva, defendida pelos movimentos sociais. Não obstante, a partir do compromisso do novo governo com a convocação de uma Constituinte, irromperam iniciativas para a criação de entidades com a função específica de incentivar a participação da sociedade no processo. No Rio de Janeiro, ponto alto dessa mobilização foi o lançamento do Movimento Nacional pela Participação Popular na Constituinte, que reuniu cerca de 7 mil pessoas em Duque de Caxias, com a presença do bispo
Zuleika de Souza / Agil / Acervo Museu da República
O presidente da Assembléia Nacional Constituinte Ulysses Guimarães recebe as emendas populares que reclamam eleições presidenciais diretas em 1988 em 13/8/1987
O presidente da CNBB entrega as emendas populares da Igreja ao presidente da ANC Ulysses Guimarães em 29/6/1987
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Dom Mauro Morelli e de diversas organizações sociais, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Ibase e o Instituto de Estudos de Religião (Iser), entre outras. O objetivo era fomentar a criação de núcleos pró-participação na Constituinte em vários municípios do país. Em São Paulo, foi criada, também, importante matriz da participação da sociedade na Constituinte, o Plenário Pró-Participação Popular. Seu propósito maior era consolidar a criação de instrumentos de participação popular no processo de elaboração da nova Carta que fossem, depois, incluídos como regra política no texto constitucional.
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Emendas populares
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A partir dessas iniciativas, multiplicaram-se comitês e plenários por todo o país. O entendimento era de que só com a sociedade mobilizada a democracia participativa poderia avançar. Caberia à população tomar parte, exigir, auxiliar e controlar o poder público. A Assembléia Nacional Constituinte foi instalada em 1º de fevereiro de 1987, sendo eleito seu presidente Ulysses Guimarães, do PMDB. A instituição de formas participativas diretas na elaboração da Constituição foi discutida regimentalmente e, a partir de forte pressão dos movimentos sociais, foi aprovada por meio das emendas populares. Garantia-se a possibilidade de qualquer indivíduo apresentar emendas ao projeto de Constituição, contanto que subscritas por 30 mil brasi-leiros(as) e referendadas por três entidades da sociedade civil. Durante o processo constituinte, foram contabilizadas em torno de 12 milhões de assinaturas, subscrevendo 122 emendas populares. A institucionalização da forma participativa direta teve grande impacto no crescimento da participação popular na Constituinte. Um elevado grau de mobilização para recolhimento de assinaturas envolveu universidades, sindicatos, órgãos do poder público, associações de mães, aldeias indígenas, religiosos e religiosas,
organizações de vítimas, estudantes, idosos e idosas, pessoas com deficiência e muitos outros. As diversas entidades envolvidas produziam grande volume de materiais didático, textual e audiovisual, em torno dos temas “Constituição” e “Participação cidadã”. Esses trabalhos foram distribuídos por todo o Brasil, em localidades urbanas e rurais. Basicamente, buscavam esclarecer sobre a importância do cidadão e da cidadã participarem na elaboração da nova Constituição e na definição dos rumos que o país tomaria a partir de sua promulgação. No Congresso, compunham o corpo de constituintes 487 deputados federais e 72 senadores, parte deles eleitos indiretamente em 1982, os chamados “senadores biônicos”. Identidades partidárias e matrizes ideológicas diversas deram o tom dos debates. No jogo de forças, os grupos nem sempre apresentavam unidade de comportamento, movendo-se de acordo com os temas em discussão e os interesses do momento, e formando grupos suprapartidários, como o conservador “Centrão”. O texto constitucional refletiu, em conteúdo, os confrontos e as contradições da bancada constituinte, também presentes, aliás, na sociedade. Apresentou importantes avanços na área dos direitos humanos. Entre outros pontos, foram criados instrumentos para a defesa dos direitos, como o habeas data; o racismo foi consagrado crime imprescritível; foram estabelecidas orientações expressas de proteção à pessoa idosa, à portadora de deficiência e à criança; foi reconhecida a igualdade de direitos entre os gêneros e o respeito preservacionista à cultura indígena. Como objetivos da República, foram identificadas a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais e a promoção do bem de todas as pessoas, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e cor. Valores éticos foram resguardados em políticas relativas aos direitos à saúde, assistência social, educação e cultura. Entretanto, é incerta a perspectiva de
Acervo particular do Henfil / Ivan Cozenza de Souza
Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão
efetividade, hoje, com relação aos direitos consagrados na Constituição de 1988, muitos deles ainda aguardando dispositivos para sua aplicação. Os direitos humanos referendados na Constituição encontram-se, em larga medida, limitados ao papel, faltando ainda internalizá-los nas práticas políticas e sociais brasileiras. Quanto à dinâmica da elaboração de seu texto, a Constituição de 1988 tem o valor simbólico de reintroduzir a possibilidade de
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negociação política na vida social. Representou rica experiência de alargamento da cidadania. A lição foi clara: elaborar um texto constitucional é tarefa de todas as pessoas, a ser permanentemente reavaliada e confrontada com a realidade.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MICHELLES, C.; WHITAKER, F.; COELHO, J. G. L.; VIEIRA FILHO, E. G.; VEIGA, M. G. M. da; PRADO, R. P. S. (Coords.). Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 26. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
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Exposição histórica Hoje, às vésperas de se completarem 20 anos de vigência da Constituição Federal de 1988, tendo sido a ela incorporadas 56 emendas constitucionais, é expressiva na sociedade brasileira a desconfiança com relação ao Estado e às instituições políticas, e surgem balanços, análises e propostas. O debate sobre o presente e o futuro do ordenamento jurídico do país não foi encerrado com a promulgação da Constituição, no dia 5 de outubro de 1988. Novas análises e proposições de alternativas são necessárias e salutares à democracia. Nesse sentido, o Museu da República inaugura, com apoio da Fundação Ford, no mês de setembro deste ano, uma grande exposição no Palácio do Catete, denominada “Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão”, e outras cinco ‘exposições-irmãs’, dentro do mesmo conceito, em diferentes estados brasileiros. A idéia é transbordar a memória histórica desse processo e fazer um balanço da luta popular na Constituinte. Trazer a experiência vivenciada, o envolvimento de ativistas, a complexidade, o idealismo, as conquistas. Observar o que ficou por fazer, quais aspirações não foram
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‘promulgadas’, quem ficou à margem e qual é, hoje, o nosso desafio. Ao lado das exposições, será realizada, complementarmente, uma programação múltipla, envolvendo a organização de seminários e ciclos de debates, projeções de filmes e atrações culturais, publicações e a implantação de um serviço de esclarecimento ao público sobre temas relativos ao ordenamento jurídico brasileiro. O conceito prioritário que embasa todo o trabalho é o da inclusão social e igualdade de direitos entre as pessoas. Nesse sentido, as ações desenvolvidas foram pensadas visando à participação de todos e todas, incluindo pessoas com deficiências. Com essa programação, o Museu da República procura não só reafirmar-se como espaço de fomento ao pensamento crítico, mas também partilhar a compreensão de que a história está em permanente movimento, recriando-se a partir das ações humanas, sendo de todos(as) nós a responsabilidade de tornar o mundo mais justo, humano e habitável.
Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão
*Maria Helena Versiani Assessora em Pesquisa Histórica do Museu
Duda Bentes / Agil / Acervo Museu da República
da República
Também crianças vão ao Congresso pressionar por seus direitos. Na foto, crianças gaúchas recebidas por Ulysses Guimarães em 12/11/1987
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Um novo olhar sobre as
cotas 1 Este texto foi produzido com base no trabalho monográfico “Cotas para negro na Universidade Estadual do Rio de Janeiro”, apresentado, em dezembro de 2007, ao curso de graduação em pedagogia do Centro Universitário Celso Lisboa, no Rio de Janeiro, e orientado pela professora Zilda Guapyassú, leitora da revista Democracia Viva.
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As discussões relacionadas à questão etnorracial tiveram grande destaque a partir do nazi-facismo, criado na Europa entre as décadas de 1930 e 1940. Desde então, embates ferrenhos foram realizados acerca das diferenças existentes entre as diversas etnias, nos campos científico; social; educacional; psicológico etc. No Brasil contemporâneo, os debates sobre as diferenças raciais tomaram novo fôlego com o advento das cotas sociais/ educacionais destinadas a minorias desfavorecidas. Nesse contexto, a Lei 4.151/03 foi sancionada, no estado do Rio de Janeiro,
com intuito de reservar nas universidades públicas estaduais 45% das vagas a pessoas oriundas de escolas públicas e pertencentes às minorias étnicas, sendo 20% dessas vagas destinadas a estudantes negros(as). A partir de sua sanção, a lei tornou-se objeto de estudo da sociedade carioca, polarizando a população em dois grupos distintos: os pró-cotas e os anticotas. De um lado, pessoas defensoras dos ideais cotistas vêem as cotas como um direito historicamente construído e forjado na desigualdade social e no racismo latente. De outro, pessoas opositoras que acreditam na inviabilidade de
aberto tal sistema por considerar o Brasil um país de mestiços. No que se refere à lei, salientam que o único objetivo é atestar inferioridade inexistente.
Negritude e educação O Brasil – Colônia, Império, República – teve, historicamente, postura permissiva diante da discriminação e do racismo para com os(as) africanos(as), estendida a seus(suas) descendentes até os dias de hoje. O Decreto 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas públicas do país não poderiam estudar pessoas negras, sendo a instrução da pessoa adulta negra dependente da disponibilidade de professores. Em 1878, o Decreto 7.031-A dava aos(às) negros(as) o direito de estudar no período noturno. No entanto, diversas estratégias foram montadas para impedir o acesso pleno da população negra aos bancos escolares. Durante a evolução histórico-social do Brasil, foi possível constatar a existência de diversos mecanismos dissimulados – criados pela elite brasileira – cujo escopo principal era o de impedir o acesso ou a permanência do “cidadão de cor” (termo depreciativo utilizado para denominar a pessoa negra) na escola. Christian Baudelot e Roger Establet, no livro L´École capitaliste en France (1971), elaboram um viés ideológico – denominado posteriormente por Demerval Saviani, no livro Escola e democracia (2006), como Teoria da escola dualista. Segundo os autores da epistemologia, a escola que, a priori, se caracteriza por sua aparência unitária e unificadora é, na verdade, dividida em duas redes, as quais estão em conformidade com a divisão da sociedade capitalista: a burguesia e o proletariado. O pensamento desenvolvido na teoria da Escola Dualista salta aos olhos da sociedade no desenrolar do processo histórico brasileiro, em especial na contemporaneidade, com o aparecimento de dois tipos de escola para a educação básica: pública e particular. Por causa dos padrões adotados no processo seletivo das universidades do Brasil, a educação básica figura como o mais poderoso meio de aquisição de competências e habilidades necessárias para a aprovação no vestibular. Nesse contexto, fica evidenciado
que o ensino público, com suas limitações, mutilado, sucateado e destruído pelo Estado capitalista, configura-se como barreira quase intransponível para estudantes da rede pública – haja vista os diversos entraves que dificultam a evolução da aprendizagem plena (escolas abandonadas; professorado mal-remunerado; greves), impedindo, assim, o acesso desses(as) estudantes a cadeiras universitárias. Em contrapartida, nas escolas particulares, o ensino de qualidade – livre das obstruções dos mecanismos capitalistas perversos – visa à aprovação nas grandes instituições de ensino superior, favorecendo o acesso de grande parte da prole burguesa a cursos extremamente valorizados no âmbito social. Parafraseando algumas idéias explicitadas na teoria de Christian Baudelot e Roger Establet (1971), torna-se evidente a função da escola (pública ou particular) como instrumento ideológico do Estado burguês a serviço de seus interesses capitalistas. Com efeito, a rede pública escolar, longe de ser instrumento de equalização/eqüidade social, é, na verdade, fator de marginalização cujo único objetivo é deixar à margem da sociedade todas as pessoas que ingressam no ensino público, em especial as pessoas negras, que, segundo Ricardo Henriques (2001), compõem a maioria da população pobre e miserável do país e têm a escola pública como via única de acesso aos bens culturais. Baseado nesses aspectos, Kabengele Munanga (2003) inferiu que: Se, por um milagre, os ensinos básico e fundamental melhorassem seus níveis para que os alunos pudessem competir igualmente no vestibular com os alunos oriundos dos colégios particulares bem abastecidos, os alunos negros levariam cerca de 32 anos para atingir o atual nível dos alunos brancos. Isso supondo que os brancos ficassem parados em suas posições atuais, esperando a chegada dos negros, para juntos caminharem no mesmo pé de igualdade (Munanga, 2003, p. 119).
Uma hipótese improvável, ou melhor, inimaginável. O que se pode vislumbrar, na prática, é a supremacia cada vez maior de pessoas brancas nos cursos universitários do Brasil. Ricardo Henriques (2001) evidencia claramente essa disparidade ao afirmar que
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97% dos universitários brasileiros são pessoas brancas, 2% negras e 1% descendentes de orientais.
Discriminação positiva As políticas afirmativas têm um histórico recente no cenário mundial. Seu caráter ideológico-racial despertou sentimentos sociais antagônicos em países que adotaram o sistema de cotas (Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Malásia e, mais recentemente, o Brasil) como um viés compensatório para a população etnicamente discriminada. No Brasil, o tema veio à tona com o advento de leis distrital e estadual, por exemplo, a Lei 4.151/03, do estado do Rio de Janeiro, que reserva percentual de vagas para afrodescendentes nas universidades públicas cariocas. O objetivo dessas medidas seria o de compensar 119 anos de discriminação e preconceitos sociais baseados na etnia que impediram a pessoa negra e seus(suas) descendentes de ascenderem para classes mais
Por dentro da lei Para análise mais aprofundada, segue a transcrição de dois artigos da Lei 4.151/03, do estado do Rio de Janeiro, de reserva de vagas nas universidades públicas para afrodescendentes: Art. 1º – Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes: I – oriundos da rede pública de ensino; II – negros; III – pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas. Art. 5º – Atendidos os princípios e as regras instituídos nos incisos I a IV do artigo 2º e seu parágrafo único, nos primeiros 5 (cinco) anos de vigência desta Lei, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer vagas reservadas aos estudantes carentes no percentual mínimo total de 45% (quarenta e cinco por cento), distribuído da seguinte forma: I – 20% (vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino; II – 20% (vinte por cento) para negros; e III – 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas.
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abastadas da sociedade brasileira. A esse respeito, Ricardo Henriques (2001) afirma que dos 22 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% são negros(as), e dos 53 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem na pobreza, 63% são negros(as). A aprovação da lei da “discriminação positiva” pelo poder Legislativo do estado do Rio de Janeiro suscitou na elite carioca – em especial, na classe média – um sentimento de indignação e descontentamento, haja vista que 45% das vagas nas universidades estaduais deixaram de ser disputadas “democraticamente” e em condições “iguais” por estudantes egressos(as) do ensino médio. A postura das classes média e alta com relação às cotas pode ser historicamente elucidada, uma vez que as cadeiras universitárias são consideradas, desde o Estado burguês até os dias de hoje, um patrimônio sociocultural indissociável da sua condição de classe hegemônica. Jean-Jacques Rosseau (1991), no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, escrito originalmente em 1750, advertia que as desigualdades não refletiriam atributos congênitos de tais ou quais grupos, mas sim construções socialmente produzidas, racionalmente explicáveis e, em alguma medida, controláveis pela ação do Estado (Rousseau, 1991). No momento em que informações relativas às cotas foram massificadas pela mídia de forma alienante e fragmentada, a sociedade carioca polarizou-se em duas vertentes distintas: a dos defensores e a dos opositores das cotas. Os opositores vêm sendo beneficiados por meio de apelos tendenciosos da imprensa elitizada e dissimulada que, utilizando o poder de persuasão característico dos meios de comunicação de massa, molda e manipula a opinião pública. Dessa forma, cumpre um perverso papel social como aparelho ideológico a serviço das oligarquias dominantes. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o professor de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), José Jorge de Carvalho, afirmou que “a elite não quer perder o poder. Vagas nas universidades públicas boas são cotas de poder. E a elite não quer concorrentes negros” (Collucci, 2006). A consolidação das leis de reparação
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discriminatória à população afrodescendente e os fecundos debates realizados em âmbito estadual contribuíram para o florescimento de novos e abrangentes pensamentos na Câmara e no Senado Federal. Segundo o que vem sendo divulgado amplamente pela mídia, tramitam, somente no Congresso Nacional, 130 projetos de lei sobre a questão racial.
Reconstruindo a história Com o objetivo de corrigir os erros cometidos durante 500 anos de colonialismo, escravidão, extermínio físico, psicológico e simbólico de negros(as) africanos(as) e seus(suas) descendentes, os movimentos sociais envidaram esforços no intuito de mobilizar setores da sociedade carioca a participarem da luta em prol da democratização do ensino superior e de uma universidade multicultural. Coube às universidades estaduais do Rio de Janeiro e da Bahia o pioneirismo em estabelecer normas e estratégias que favoreceram a reserva de vagas para afrodescendentes como resposta aos anseios de grande parcela da população, que se encontrava historicamente excluída dos bancos universitários. Essa nova proposta de inclusão étnico-racial tem por escopo o advento de uma nova universidade democrática – multicultural, imbuída de espírito social pleno – e a possibilidade de inserção da pessoa negra no cerne da produção científica, para que possa contribuir, de maneira mais incisiva, no desenvolvimento da sociedade em todos os aspectos possíveis. Sobre isso, alerta Marlene Ribeiro: A construção de competências acadêmicas legítimas, no quadro de uma sociedade excludente, racista, discriminatória, que diz projetar ser justa, inclui experiências de ruptura com o modelo tradicional de universidade (Ribeiro, 1999, p. 240).
Cumpre ressaltar que a universidade – como centro ativo de produção de conhecimento científico –, ao promover e executar medidas de inclusão de grupos étnicos marginalizados e oprimidos, passa a fazer parte da sociedade, assumindo compromisso com ela, uma vez que deixa de atender unicamente
aos interesses das classes mais abastadas. Significa que as instituições de ensino superior, ao reconhecerem a hierarquia social e econômica da sociedade brasileira como forma de dominação étnico-racial, ainda que latente, e avaliarem essa denominação como injusta, tendem a ampliar seu campo de visão e de construção do conhecimento. Transcendem, assim, o reacionário conceito unidirecional de mundo, legado do eurocentrismo, em busca de um novo paradigma: aquele das multifacetas e da diversidade, que tem como cunho principal a criação de um saber científico ominicultural e democrático. A presença cada vez maior de jovens negros(as) nas universidades públicas pode propiciar novo posicionamento deles(as) na sociedade, possibilitando o surgimento de cidadãs e cidadãos realmente livres, sujeitos da história e arquitetos(as) da própria história, e, assim, críticos(as) e desarticu-ladores(as) de todos os mecanismos excludentes existentes, contribuindo para o aparecimento de uma nova ordem social. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2003), em consonância com esse pensamento, diz o seguinte: “Há que pensar a formação universitária como possibilidade de enfrentar, superar intolerâncias, o que implica buscar meios de suprimir desigualdades seculares” (Silva, 2003, p. 52).
Críticas no alvo As políticas afirmativas trouxeram para o centro do debate social questões raciais que se encontravam diluídas na falsa ideologia da igualdade racial no Brasil. Kabengele Munanga (2003) refere-se a diversos argumentos usados por alguns segmentos da sociedade brasileira, que questionam a legitimidade da discriminação positiva na contemporaneidade. Dentre as várias vertentes de pensamentos contrários às cotas evidenciadas pelo autor no artigo “Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas” (2003), duas serão utilizadas como objeto de estudo. A primeira questão diz respeito à impossibilidade de implementar cotas para pessoas negras no Brasil, por ser difícil definir quem é negro por causa da mestiçagem. O argumento baseia-se totalmente no mito da igualdade racial, ou seja, o Brasil seria
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um país harmonioso, formado unicamente por pessoas mestiças descendentes de três etnias distintas: a colonizadora, a escrava e a nativa. Esse pensamento não caracteriza a realidade vivida no interior das relações sociais, uma vez que o racismo brasileiro não se concretiza no plano do genótipo, mas sim do fenótipo. Em outros termos, negra é a pessoa que possui características externas de negro, pois, segundo Oracy Nogueira (1985), o preconceito é de marca e não de origem. Em um segundo momento, o autor evidencia outros argumentos contrários à implantação das políticas afirmativas, pois essa poderia prejudicar a imagem profissional de funcionários(as), estudantes e artistas negros(as), que seriam acusados(as) de terem entrado por uma porta diferente. Significa que, no momento das grandes concorrências, as cotas poderiam, perigosamente, estimular os preconceitos. Refutando essa linha de pensamento, Munanga faz uma analogia da recente história de lutas e conquistas das mulheres com a atual situação da população negra no Brasil e o reflexo da política de discriminação positiva. Em suas idéias, ele afirma o seguinte: A história da luta das mulheres ilustra melhor o que seria o futuro dos negros. A discriminação contra elas não foi totalmente desarmada, mas elas ocupam cada vez mais espaços na sociedade, não porque os homens tornaram-se menos machistas e mais tolerantes, mas porque, justamente graças ao conhecimento adquirido, elas demonstram competências e capacidades que lhes abrem portas antigamente fechadas (Munanga, 2003, p. 126).
Finalmente, o clímax das discussões remete para duas vertentes principais. A primeira salienta a impossibilidade de ingresso e permanência das pessoas negras nas universidades públicas. Realmente, a dificuldade que cotistas encontram para se manter estudando é notória, causada exclusivamente pela situação econômica inerente à condição social dos(as) educandos(as) de baixa renda. Com o intuito de resolver esse problema, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) elaborou o Projeto de Lei 3.378/2006, que modifica a Lei 4.151/03, fazendo com que o programa de apoio relatado no Artigo 4º vigore durante todo o
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curso universitário do(a) estudante cotista. A segunda refere-se à violação do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê a igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos(às) brasileiros(as) e aos(às) estrangeiros(as) residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Essa igualdade legal explicitada pela Constituição brasileira, em nenhum momento deixou o plano retórico. Basta observar a atual situação do país. Salta aos olhos o descaso da sociedade com os direitos básicos das camadas mais pobres da população. Saúde, educação e habitação são alguns exemplos de que os preceitos previstos na Lei Maior não conseguiram alcançar significativamente a maioria da população, em nenhuma medida. Nega, assim, à classe pobre (onde se encontra o maior percentual de pessoas negras) o acesso aos bens historicamente construídos pela sociedade e indispensáveis ao desenvolvimento da cidadania em todos os seus aspectos.
Cotas e TV É inegável que, dentre os veículos de comunicação de massa, a televisão ocupe papel de destaque na divulgação de informações graças ao poder das imagens. Nos termos de Pierre Bourdieu (1997), dispondo desta força excepcional que é a da imagem televisiva, os jornalistas podem produzir efeitos sem equivalentes. Esse poder construído historicamente por meio de imposições simbólicas, propiciou o surgimento de um novo império burguês, ideológico, político e econômico, cujo único escopo (da maioria das emissoras de televisão) é defender os interesses das oligarquias imperialistas em detrimento das necessidades da população, particularmente da mais pobre. No que tange às políticas afirmativas, observou-se que, desde a criação até a consolidação, um arsenal de matérias jornalísticas, tendenciosas e fragmentadas, foram veiculadas maciçamente pela mídia televisiva com o objetivo de depreciar, em qualquer medida, todos os aspectos ideológicos oriundos desse movimento social. O cunho das diversas reportagens exibidas, normalmente em horário nobre,
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era a defesa latente dos direitos da burguesia aos bens culturais da sociedade como classe dominante. Essas mensagens foram facilmente diluídas por meio de mecanismos alienadores, cujo objetivo era, paradoxalmente, ocultar mostrando. A televisão, como expoente do ideal burguês, atuou – e atua – como instrumento de manipulação de idéias em massa, favorecendo-se do poderoso recurso chamado imagem como ferramenta de construção de uma realidade paralela imersa na alienação e no controle velado da opinião pública. Nesse contexto, Pierre Bourdieu alerta: Os perigos políticos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam o efeito de real, ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver (Bourdieu, 1997, p.28).
A reserva de vagas para pessoas negras nas universidades do Estado do Rio de Janeiro tem papel fundamental na implantação de um novo paradigma social. Cria possibilidades para o acesso de cidadãos e cidadãs, outrora esquecidos, aos conhecimentos científicos difundidos no âmbito acadêmico. Com efeito, possibilita a construção de uma universidade diferente, multicultural, multiétnica, que responda aos anseios de toda a população, uma instituição imbuída com o verdadeiro espírito de redenção e democratização da sociedade. O que se propõe aqui é a possibilidade de outro viés argumentativo, diferente daquele veiculado pela mídia comercial, trazendo à tona os diversos entraves latentes que, historicamente, impediram a pessoa negra, como agente social, de ascender culturalmente. Diante dos questionamentos e das hipóteses explicitados, pode-se inferir que o sistema de cotas – consolidado no Rio de Janeiro com a Lei 4.151/03 –, longe de ser ferramenta discriminatória, caracteriza-se, na verdade, como poderoso instrumento de libertação para os quilombos contemporâneos, que se encontram oprimidos pela violência simbólica imposta à cultura afro-brasileira desde o primeiro dia após a pseudolibertação dos(as) escravos(as) no Brasil. Nessa perspectiva, Pierre Bourdieu enfatiza: “Todo poder de violência simbó-
lica, isto é, todo poder que chega a impor significações, e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força” (Bourdieu; Passeron, 1975, p.19).
*André Sant’Anna de Oliveira Pedagogo
Referências Baudelot, C.; Establet, R. L’école capitaliste en France. Paris: Maspero, 1971. Bourdieu, P.; PASSERON, J. C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. . Sobre a televisão. Oeiras: Celta Editora, 1997. CARVALHO, J. J. de. “Ações afirmativas para negros na pós-graduação, nas bolsas de pesquisa e nos concursos para professores universitários como resposta ao racismo acadêmico”. In: SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, V. R. (Orgs.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília, DF: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003. p.161-190. COLLUCCI, C. 65% apóiam cotas raciais na faculdade. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 jul. 2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ ult305u18820.shtml>. Acesso em: 12 ago. 2008. HENRIQUES, R. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90. Brasília, DF: Ipea, 2001. (Texto para Discussão). MUNANGA, K. “Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cota”. In: SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, V. R. (Orgs.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília, DF: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003. p. 115-128. NOGUEIRA, O. “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem – sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”. In: (org.). Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985. RIBEIRO, M. Universidade brasileira pós-moderna: democratização x competência. Manaus: Ed. Universidade do Amazonas, 1999. RIO DE JANEIRO (Estado). Lei n.º 4.151, de 4 de setembro de 2003. Institui nova disciplina sobre o sistema de cotas para ingresso nas universidades públicas estaduais e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, Poder Legislativo, Rio de Janeiro. Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os pensadores). SAVIANI, D. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. SILVA, P. B. G. “ Negros na universidade e produção de conhecimento”. In: SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, V. R. (Orgs.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília, DF: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003. p. 43-54.
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Bolsa Família I
Alteração cadastral
A revista Democracia Viva está excepcional no último número, que trata do problema da alimentação. Parabéns a todos os companheiros do Ibase, com meu fraterno abraço.
Solicito alterarem o endereço de entrega para Marcello Praça Gomes da Silva – Rua Barão de Mesquita, 643/16, Tijuca – Rio de Janeiro – RJ CEP: 20.540-002.
Anna Maria Castro
Marcello Praça Gomes da Silva
Pernambuco
Rio de Janeiro/RJ
Bolsa Família II Gostaria de saudá-los pela qualidade da última revista Democracia Viva. Fiquei entusiasmado com o resultado da pesquisa do Ibase sobre o Bolsa Família e com a sua forma de divulgação. Ministro um curso de pós na Unicamp (na área de economia, aberto a toda a universidade) sobre segurança alimentar e nutricional. Nesse sentido, gostaria de verificar a possibilidade de o Ibase me enviar um pacote com 30 exemplares da revista para que possa distribuí-los entre os alunos. Quero usar alguns dos artigos da revista no curso. Walter Belik Instituto de Economia da Unicamp Campinas/SP
Bolsa Família III Recebemos o exemplar nº 39 da revista Democracia Viva, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, e gostaríamos de parabenizar esse instituto pelo referido trabalho.
Divulgação Trabalhei na Associação Vivamos Melhor, em Teresópolis (RJ), onde recebia a revista Democracia Viva desde o início de sua edição. Só que a entidade encerrou suas atividades no início deste ano, e estou trabalhando, agora, numa faculdade em Cascavel, Paraná. Mostrei as edições para os diretores, que se interessaram em receber a revista para utilizá-la nas aulas do curso de Serviço Social. Existe a possibilidade de a revista ser enviada para a faculdade? Ficaria muito feliz em continuar recebendo a revista e, ao mesmo tempo, divulgar os trabalhos do Ibase em outras regiões. Peço, então, que cancelem o envio para a citada associação e passem a enviar para o seguinte endereço: Instituto Tecnológico e Educacional – Avenida Brasil, 8.607 – Coqueiral – Cascavel – PR CEP: 85807-030. Milicio Vicente Stroher Cascavel/PR
Sub-reitoria de Extensão e Cultura da Uerj Rio de Janeiro/RJ
Bolsa Família IV Recebi a revista Democracia Viva nº 39 e gostei muito da entrevista com Fátima Andréia [pág. 32], uma guerreira. Quantas Fátimas devem existir por aí querendo apenas um lugar ao sol? A história dela é muito parecida com a minha. Também sofri na pele rejeição e abandono. Conheço a fome, e a miséria foi minha companheira durante toda a minha infância e juventude. Por esse motivo é que luto, para mostrar para outros na mesma situação que é possível um mundo melhor. Parabenizo Mariana Santarelli pelo belo artigo [Crise mundial de alimentos ou crise humanitária?, pág. 64]. Neusa Marques Marcha Mundial de Mulheres–RJ
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Nota da redação Agradecemos ao público leitor por todas as mensagens e todos os artigos recebidos no endereço eletrônico da revista e no Portal do Ibase. Informamos que os textos serão avaliados e, se possível, publicados. Agradecemos, também, por todas as cartas enviadas, informando que, de acordo com a necessidade editorial, essas serão publicadas com cortes. Esperamos que vocês continuem colaborando com a revista Democracia Viva: escrevam, opinem, critiquem, mantenham contato!
Ăşltima pĂĄgina Nani
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a cidadania e com a democracia. Democracia Viva não se alinha com partidos
VIVA
e aberta, parte do compromisso radical com
DEMOCRACIA
A agenda da revista Democracia Viva é ampla
nem religiões, mas toma partido desde que esteja em jogo a possibilidade de aprofundar a democracia. Não disputa poder, mas quer exercer um papel de vigilância, monitoramento e avaliação; com toda autonomia e independência, das políticas públicas e das ações governamentais, bem como das práticas empresariais e das relações econômico-financeiras. Quer ser ativa como interpeladora de consciências e vontades, questionando práticas e valores que limitam a democracia, estimulando a participação cidadã. Sua qualidade é a força das reflexões, análises,
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propostas e dos argumentos.