Democraciaviva IDEIAS • CRÍTICA • DEBATE
J U N 2012
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michael löwy A estratégia ecossocialista contra o capitalismo entrevista a façocracia hacker de pedro markun
No limite
por que a rio+20 não dá conta da crise ambiental o que propõe a cúpula dos povos as ações e ideias da juventude sobre o tema apoio a esta edição:
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ditorial
Esta edição de Democraciaviva chega no mesmo mês da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, e da Cúpula dos Povos na Rio+20, evento da sociedade civil. O Ibase, que edita a Democraciaviva, faz parte do Grupo de Reflexão e Apoio ao Processo Fórum Social Mundial (Grap), que integra o comitê organizador do evento. O Ibase compartilha das críticas da Cúpula à conferência oficial e ao insustentável modelo capitalista. O dossiê deste número 48 detalha essas críticas. Um exemplo é a entrevista de Pablo Solón, ex-embaixador da Bolívia nas Nações Unidas, sobre a “economia verde”, um dos principais temas da Rio+20 oficial. A revista também apresenta alternativas ao modelo atual. Cândido Grzybowski (“Ética para uma biocivilização”) e Michael Löwy (“Alternativa ecossocialista”) discutem propostas para um novo paradigma civilizatório. O dossiê destaca as ações e ideias da juventude sobre meio ambiente e Rio+20. O Ibase há um ano desenvolve o projeto Cidade, mudanças climáticas e ação jovem, em parceria com o Grupo Eco, da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, e o Instituto Formação Humana e Educação Popular (IFHEP), de Campo Grande, na zona oeste carioca. O projeto tem o apoio da Ajuda da Igreja Norueguesa (AIN) e da OD, ação de estudantes da Noruega em solidariedade a jovens de outras partes do mundo. A AIN e a OD também apoiam esta edição da Democraciaviva. O outro apoiador deste número é a Ritimo, rede de informações para o desenvolvimento sustentável e a solidariedade internacional. O projeto Cidade, mudanças climáticas e ação jovem e as discussões que ele envolve são o tema do artigo de Marina Ribeiro e Patrícia Lânes nesta Democraciaviva. Bruno Pinheiro, Camila Mello e Thiago Alexandre Moraes, da Rede da Juventude pelo Meio Ambiente (Rejuma), opinam que a crise ambiental também representa uma “injustiça geracional”. Daniel Souza, Hanne Sofie Lindahl e Mattias Rolighed Bergset comentam os efeitos da Rio+20 para a juventude. Edio Araújo e Robson Borges relatam o trabalho e os obstáculos que enfrentam na Cooperativa de Reciclagem Eu Quero Liberdade, no Rio de Janeiro (“O problema do lixo é o lucro”). Democraciaviva 48 conta ainda, entre outras seções e artigos, com a crítica de Pedro Vicente Bittencourt à atual política de repressão ao crack (“Guerra ou paz”), o ensaio fotográfico “O Pinheirinho é aqui”, do grupo Favela em Foco, e a análise de Carlos Bittencourt, Padre Dario Bossi e Rodrigo Santos sobre o papel da mineração na economia brasileira e os problemas socioambientais causados pela atividade. (“Crescimento cruel”). A entrevista especial deste número é com Pedro Markun, da Transparência Hacker. Imperdível! Boa leitura a todos!
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas Av. Rio Branco, 124 / 8º andar 20040-916 • Rio de Janeiro• RJ Tel: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402 e-mail:comunicacão@ibase.obr Conselho CURADOR DO IBASE
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Cândido Grzybowski (diretor-geral), Francisco Menezes e Moema Miranda CONSELHO EDITORIAL
Alcione Araújo, Cândido Grzybowski, Charles Pessanha, Cleonice Dias, Jane Souto de Oliveira, Márcia Florêncio, Mário Osava, Moema Miranda, Regina Novaes, Rosana Heringer e Sérgio Leite Equipe de EDIÇÃO E PRODUÇÃO
Augusto Gazir, Bruna Ventura e Natália Mazotte
projeto gráfico e diagramação
Mórula Oficina de Ideias Capa
Renato Cafuzo ilustrações
Paulica Santos e Renato Cafuzo Impressão
Lokal Gráfica 3 mil exemplares A versão on-line desta edição de Democraciaviva está em www.ibase.br Os artigos assinados nesta publicação não traduzem necessariamente as opiniões do Ibase. O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações.
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publicado sob licença creative commons. alguns direitos reservados:
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DEMOCRACIAVIVA
JUN2012
especial
No limite 18 Em defesa do planeta Isabela Fraga e Monike Mar 20 Os desafios da Cúpula dos Povos
José Correa
22 Injustiça geracional
Bruno Pinheiro, Camila Mello e Thiago Alexandre Moraes
27 A juventude pensa a cidade
Marina Ribeiro e Patrícia Lanês
32 Natureza S.A.
Entrevista com Pablo Solón
35 O problema do lixo é o lucro
Edio Araújo e Robson Borges
36 Por um milhão de empregos
Da Amandla!
37 Ética para uma biocivilização Cândido Grzybowsky
40 A alternativa ecossocialista Michael Löwy
Quadrinhos dos anos 10
tiras de andré dahmer
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JUN 2012 05 opinião ibase Pesadelo olímpico
itamar silva
07 ENSAIO Pinheirinho é aqui 10 perfil Gilmar Cunha, do Conexão G 44 resenha A nova classe média
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Carlos Bittencourt, Pe. Dario Bossi e Rodrigo Santos discutem a mineração
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A política de combate ao crack no Brasil é criticada por Pedro Vicente Bittencourt
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Ruy Sposati, o jornalista solitário na cobertura da construção de Belo Monte
carlos leal
48 entrevista Pedro Markun, da Transparência Hacker 55 última página Nani
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colaboradores
André Dahmer
Elisângela Leite
é desenhista, poeta e criador dos Malvados (malvados.com.br) (tiras ao longo da revista)
Fotógrafa da Redes da Maré e integrante do Imagens do Povo (p. 10)
é integrante da Rede da Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade (Rejuma) (p. 22)
exigências do COI. O evento de congraçamento entre os povos redefine as fronteiras da cidade e exclui partes de sua população”
Padre Dario Bossi
Isabela Fraga é jornalista da Cúpula dos Povos (p. 18)
Itamar Silva é coordenador do Ibase e do Grupo Eco (p. 5)
José Correa
Carlos Bittencourt é coordenador do Observatório do Pré-sal e da Indústria Extrativa Mineral (p. 12)
Ratão Diniz
Edmilson de Lima Fotógrafo, integrante do Imagens do Povo e do coletivo Favela em Foco (favelaemfoco. wordpress.com) (p. 11)
Edio AraÚjo é diretor da Cooperativa de Reciclagem Eu Quero Liberdade (p. 35)
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é fotógrafo, integrante do Imagens do Povo (www.flickr.com/photos/ rataodiniz) (p. 37 e 45)
Léo Lima Fotógrafo, integrante do Imagens do Povo e do coletivo Favela em Foco (favelaemfoco. wordpress.com) (p. 7)
Robson Borges
diretor-presidente da Cooperativa de Reciclagem Eu Quero Liberdade(p. 35)
Marina Ribeiro é pesquisadora do Ibase (p. 27)
Carlos Leal é jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ (p. 44)
Patrícia Lânes
é pesquisadora do Ibase (p. 27)
é bacharel em Relações Internacionais, pesquisador e ativista (p. 45)
é coordenador do Grupo de Reflexão e Apoio ao Processo Fórum Social Mundial (Grap) (p. 20)
Cândido Grzybowski é sociólogo e diretor do Ibase (p. 37)
é da rede Justiça nos Trilhos (p. 12)
Pedro Vicente Bittencourt
Camila Mello é integrante da Rede da Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade (p. 22)
Nani é humorista, cartunista, quadrinista e chargista (nanihumor.com) (p. 55)
foto: taty veras / grupo eco
Bruno Pinheiro
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A cidade do Rio é revirada de pontacabeça para se moldar às
Michael Löwy é sóciologo e diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França. É autor de “Ecologia e Socialismo” (Cortez, 2005) e organizador da coletânea “Revoluções” (Boitempo, 2009) (p. 40)
Monike Mar é jornalista da Cúpula dos Povos (p. 18)
Rodrigo Santos
“
Será mesmo que o crack deve ser o foco dos esforços do governo, centro da política pública no trato com as drogas? Ou será ele apenas mais uma das substâncias sobre as quais se deve trabalhar?”
professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (p. 12)
Thiago Alexandre Moraes
é integrante da Rede da Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade (p. 22)
Thiago Ansel
é jornalista do Observatório de Favelas e mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ (p. 10)
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PesadeloOlímpico A sociedade deve intensificar a mobilização por respeito aos direitos humanos no redesenho do rio de janeiro por conta dos megaeventos
por Itamar Silva
O sonho olímpico das cidades tem se alimentado do sacrifício da população mais pobre. As intervenções urbanas nas cidades-sedes respondem à lógica do mercado. Os vitoriosos são o Comitê Olímpico Internacional (COI), os empresários e, especialmente, o setor da construção civil. O Estado funciona como um viabilizador de obras. Ele destina recursos públicos para a iniciativa privada e, se algo não sai como planejado, arca com o prejuízo. O Rio de Janeiro, que nunca perdeu a fama de tambor cultural brasileiro, busca inserir-se no rol dos lugares mais visitados do mundo. Apesar de suas belezas naturais, a cidade não figura entre as 30 com mais turistas no mundo. Gestores públicos não têm perdido a oportunidade para trazer para o Rio eventos que o deem mais visibilidade. A Copa do Mundo e, de forma exponencial, as Olimpíadas tornaram-se objeto de desejo das cidades, que lutam para entrar no olimpo global, sem se importar com os custos econômicos e sociais da empreitada. No passado, os Jogos Olímpicos não tinham grandes impactos na vida das cidades e nem marcavam de forma definitiva a paisagem. Tal interferência começou em 1932, de
maneira tímida, se comparada com o padrão atual, quando Los Angeles utilizou os Jogos como oportunidade para reerguer a economia local e construiu a primeira vila olímpica da história com características de habitação permanente. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o movimento olímpico ganhou impulso, apoio de governos e passou a atrair um maior número de atletas e países. O conceito “urbanismo olímpico” se expandiu e passou a ser uma das principais referências para a avaliação das cidades candidatas e para a discussão do “legado” olímpico. Vila olímpica, habitação popular e expansão urbana foi uma articulação possível em Helsinque (1952), Melbourne (56), Roma (60), Cidade do México (68), Moscou (80), quando as Olimpíadas foram usadas para diminuir o déficit habitacional. Em 1984, Los Angeles, mais uma vez, representou uma guinada. As empresas potencializaram a sua participação nos Jogos, que, com propriedade, passaram a ser chamados de megaeventos esportivos. O Rio de Janeiro vinha flertando com os megaeventos há anos. Em 1996, se candidatou para os Jogos de 2004 e perdeu. Em 2002, levou os Jogos Pan-americanos de 2007. Para ganhar as Olimpíadas de 2016, o Rio aproveitou de forma eficaz a exposição internacional do Brasil, e os poderes públicos municipal, estadual e federal investiram pesado em propaganda e nas promessas de parceria para dar conta das intervenções urbanas necessárias. De lá pra cá, o sonho olímpico tem se realizado às custas do pesadelo de muitos cariocas. O processo de reestruturação urbana afeta negativamente várias comunidades, moradores e moradoras de áreas populares. A abertura das vias do BRT (sistema rápido de ônibus), o processo de revitalização da zona
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pinião ibase
A cidade é o espaço de realização e sonho de quem mora nela. Mesmo diante das muitas dificuldades, cariocas têm um senso de pertencimento muito forte” portuária e a construção dos chamados clusters olímpicos já removeram, segundo o Dossiê do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, 1.860 famílias e ameaçam mais 5.325. A cidade do Rio é revirada de ponta-cabeça para se moldar às exigências do COI. Ou elas fazem isso, ou cairão em desgraça internacional. Em 2016, o Rio receberá delegações de atletas do mundo inteiro, e a imprensa mundial estará aqui para comprovar se a cidade foi capaz de se preparar para receber bem os seus convidados, com conforto, deslocamentos rápidos, segurança e uma paisagem livre de pobres e pobreza. O evento de congraçamento entre os povos redefine as fronteiras da cidade e exclui partes de sua população. Em artigo publicado no jornal O Dia, em agosto de 2011, André Urani fez referência ao livro de Manuel Vázquez
Montalbán “Sabotaje olimpico”, lançado em 1993, em que o autor “ridiculariza o papel dos Jogos para Barcelona e para o mundo e desanca as parcerias público-privadas que viabilizaram as transformações” urbanas. Urani chama a atenção para o fato de que até aquele momento o livro não havia sido traduzido para o português, numa referência à dificuldade de se fazer no Brasil um debate crítico sobre o tema. Mesmo em Barcelona 1992, experiência tida como bem-sucedida, a população mais pobre sofreu as consequências negativas da transformação urbana. A cidade é o espaço de realização e sonho de quem mora nela. Mesmo diante das muitas dificuldades, cariocas têm um senso de pertencimento muito forte. No entanto, o processo de decisão sobre o destino da cidade foi apropriado pelos representantes governamentais e empresários, sem ouvir a maioria das pessoas. O desafio de ser uma cidade inclusiva e democrática se estende para além do período dos Jogos. A sociedade deve intensificar a sua mobilização para exigir respeito aos direitos humanos nesse redesenho da cidade.
o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro lançou um documento com um balanço das violações aos direitos humanos por conta dos preparativos para os megaeventos.
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foto: léo lima
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Pinheirinho é aqui
Passado meio ano, pouco se comenta sobre a desocupação da comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP). Cerca de 1.500 famílias foram retiradas pela polícia do local onde moravam há uma década. O Favela em Foco volta à Democraciaviva para mostrar os problemas da desocupação e da moradia no Grande Rio de Janeiro. As imagens são de Vila Autódromo, em Jacarepaguá, Morro da Providência, no Centro, e Morro do Bumba, em Niterói. Os Pinheirinhos estão em São Paulo, no Rio, em todo o Brasil.
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Na página anterior: manifestação do coletivo #Entre Sem Bater na Vila Autódromo Ao lado: Associação de Moradores de Vila Autódromo
foto: léo lima
foto: léo lima
NA OUTRA PÁGINA: faixa produzida por moradores da Providência
acima: manifestação em Niterói após a tragédia das chuvas de abril 2010 Ao lado: moradora chora durante manifestação contra as remoções no Morro da Providência NA OUTRA PÁGINA: criança em moradia dentro da área demarcada para remoção no Morro da Providência
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foto: edmilson de lima
foto: edmilson de lima
foto: edmilson de lima
favela em foco O coletivo de fot贸grafos Favela em Foco 茅 formado por jovens profissionais que procuram documentar o cotidiano das comunidades cariocas. O objetivo 茅 romper com os estere贸tipos sobre a favela e promover os direitos humanos. Visite o site: favelaemfoco.wordpress.com
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foto: Elisângela Leite
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‘Eu sou eu e acabou’ Gilmar Cunha, 27, evita até as categorias do seu próprio movimento. Morador da Maré e líder do Conexão G, grupo que luta pela cidadania LGBT, ele defende o direito universal à diversidade no território particular da favela Por Thiago Ansel
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foto: arquvo pessoal
Tarde típica na Nova Holanda, uma das 16 favelas da
Maré, zona norte do Rio de Janeiro. Calorão, comércio fervendo, e som ambiente mistura crianças brincando e o ronco das motos que não param de cortar a rua. Na Sargento Silva Nunes com a Principal, a aproximadamente dez minutos a pé da Av. Brasil, um edifício grande lilás interrompe a sequência linear de cores e texturas das fachadas das casas, lojas e outras construções do lugar. É a sede da Redes de Desenvolvimento da Maré, organização dirigida por sete mulheres e um homem, onde funciona o Conexão G, grupo que luta pela cidadania LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) e pela diversidade. Sentado em frente ao computador na pequena sala de dois por dois cedida pela Redes, portas escancaradas para a favela, o estudante de Psicologia Gilmar Santos Cunha, 27, coordenador-executivo do Conexão G, evoca a diversidade já na autodescrição. Ele define a sua identidade como um fluxo. “Eu sei que trago vários traços femininos e transito nos dois gêneros. Tem gente que chega a perguntar: ‘você é homem ou mulher?’ Quando me perguntam, eu digo que sou o Gilmar, e pronto acabou”, conta. Quando o assunto é categorias, ele provoca até o movimento LGBT: “Essa é uma postura para o movimento LGBT pensar. Porque, em determinadas situações, eles próprios insistem em me categorizar: ‘você é travesti, você é isso, aquilo, aquilo outro’. Eu digo que eu sou eu e acabou. Que mania!”. Gilmar lembra que participou de uma atividade do movimento em outro Estado, e as passagens foram distribuídas por gênero. Ele teve que mostrar a carteira de identidade, pois a organização insistia em colocá-lo na cota dos travestis ou das mulheres.
De frei a ativista Surpreender, contudo, não parece ser problema para o carioca, nascido no Engenho da Rainha, subúrbio da cidade, e desde os sete anos na Maré. Hoje filho dos orixás Omolu e Oxum, com um fio de contas de candomblecista no pescoço, Gilmar já tentou ser frei. No fim da adolescência, ele viveu por três anos na fraternidade Toca de Assis, em Marília (SP). “A ideia de ser frei foi parte de uma fuga, de um refúgio. Foi uma forma que encontrei durante um tempo para lidar com a minha sexualidade”, relembra. Depois de afastar-se da Igreja, Gilmar participou de um projeto do Instituto Promundo na Maré sobre sexualidade e jovens. Foi quando começou a encarar a sua orientação sexual como uma coisa normal. No mesmo período, conheceu o Grupo Arco-íris e passou a fazer psicanálise. Desde então, Gilmar é reconhecido e respeitado na favela por conta do seu ativismo. Também morador da Maré, Veridomar da Glória, o Veri, 41, vice-coordenador do Conexão G, conheceu Gilmar e o grupo em 2008. “Descobrir que havia um centro de referência LGBT dentro do meu espaço de convívio social me deixou muito instigado a fazer parte e a contribuir. Naquela época, um amigo sentia na pele a discriminação na escola. Ao procurar a mãe dele para saber o que poderíamos fazer, fiquei de mãos atadas, porque ela não estava nem aí para a questão”, relembra Veri.
Gilmar participa de reunião de trabalho do Conexão G
Acesso à educação O pior problema enfrentado pela população LGBT da Maré, na visão de Gilmar, é o acesso problemático à educação. A situação das travestis é ainda mais delicada, pois, em geral, quando começam a afirmar a sua identidade, elas se afastam do ambiente escolar. Ele lembra o caso de uma travesti que desejava ser chamada pelo nome feminino na escola, e a coordenadora pedagógica não deixava. “Fomos lá para dizer que não era bem assim, que existe uma portaria da Secretaria de Educação que diz que a pessoa poderia, sim, ser chamada por um nome feminino”, conta o líder do Conexão G. “As travestis passam por muitas dificuldades, porque são chacota aqui e ali. Chegam à escola, onde pensam que vão encontrar apoio, e os próprios professores e coordenadores criam empecilhos. A travesti acaba pensando: ‘Eu prefiro estar na rua, onde vou poder ganhar meu dinheiro’”, afirma Gilmar. Fernanda Gomes, diretora da Redes da Maré, avalia que “o trabalho realizado por Gilmar e os seus companheiros ajuda a desconstruir estereótipos e preconceitos que marcam a relação dos moradores da Maré com a população LGBT”. Segundo ela, o Conexão G mostra que coisas “encaradas no cotidiano como brincadeiras são faces da mesma violência e intolerância sofridas por esse grupo em outras situações”. A especificidade da favela Para Gilmar, propostas do movimento LGBT e aspectos específicos de territórios populares têm se mostrado incompatíveis, um nó que os militantes buscam desatar. O problema mais latente é como garantir os direitos conquistados, em áreas marcadas pela violência policial e pelo arbítrio não menos brutal das facções criminosas. “O movimento LGBT é predominantemente da classe média. É claro que ele não pode abrir mão dessa perspectiva, mas quando a gente parte para o ponto de vista do morador de favela é diferente”, diz Gilmar. Ele defende que, antes de se pensar numa política macro, é preciso que se criem mecanismos que possam, de fato, transformar as políticas em resultados concretos para toda a população LGBT, e não apenas para uma parte dela. “O movimento LGBT é muito genérico e amplo, e quando chega à favela não é assim que funciona. Eu sempre tento me colocar na perspectiva do território que eu convivo, do lugar que eu vivencio dia e noite.” DEMOCRACIAVIVA
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Favorecida pela demanda chinesa e pela estratégia econômica do governo, a mineração agrava desigualdades sociais e problemas ambientais Por Carlos Bittencourt, Padre Dario Bossi e Rodrigo Santos
A economia brasileira vem passando por uma fase de expansão acentuada desde o início dos anos 2000. As taxas médias de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre os períodos 1995-2002 e 2003-2010 de 2,29% e 4,01%, respectivamente, demonstram essa tendência. Esse movimento possui tanto causas gerais quanto específicas, que convergem para um ponto central: a atividade extrativa mineral. O caráter fundamentalmente export-oriented (voltado para exportação) da atual expansão econômica nacional nos obriga a lançar um olhar sobre o desenvolvimento da economia global. O crescimento chinês, que pode ser caracterizado como uma revolução industrial, um processo de articulação entre o setor secundário e o mercado de consumo internos, vem por suas dimensões condicionando as trajetórias ascendentes dos demais vetores de crescimento da economia global. 12
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Um dos elementos característicos dos chamados BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) é a importância da esfera material no processo de adição de valor à economia. Na China, essa esfera é preponderante (56,86% de todo o valor adicionado). No caso brasileiro, os segmentos materiais atingem 32,7% de todo o valor adicionado e são dependentes dos mercados importadores de commodities primárias, em especial o chinês.
foto: ana cotta
Continuidades e inovações A atual trajetória econômica brasileira é resultado de continuidades e inovações no âmbito interno. O crescimento atual é parcialmente fruto de estratégias prévias de integração econômica externa, em prática desde os anos 1990, por intermédio da competitividade de setores econômicos dotados de vantagens comparativas. O fim do “ciclo ideológico do desenvolvimentismo”, como menciona Ignacio Godinho Delgado, deu origem a uma dissociação crescente entre os fins das políticas macroeconômica e industrial. Uma obsessão pela estabilidade, por meio das taxas de juros e cambial, submeteu a política industrial a uma diretriz seletiva e horizontal. No entanto, a partir de 2003, o país passou a ensaiar a retomada de estratégias industriais verticais ou setoriais, ainda que condicionadas pela hegemonia da política macroeconômica. O recente crescimento deve ser interpretado também a partir do surgimento de um novo ciclo ideológico, o do neodesenvolvimentismo, no qual admite-se a coexistência e mesmo a subordinação ao ciclo neoliberal.
Em detrimento de uma economia diversificada e integrada, centrada no dinamismo do setor secundário, observa-se um movimento de insulamento de setores econômicos e redes de produção de alta competitividade, intensivos em recursos naturais, e o quase desaparecimento de outros segmentos”
Estabilidade e simplificação A estabilidade macroeconômica permanece, portanto, como a pedra de toque do modelo econômico nacional e explica a busca obsessiva pelo equilíbrio fiscal. Na prática, a meta é a obtenção de superávits primários, com vistas à administração do serviço da dívida, em detrimento das chamadas despesas de custeio, em especial os gastos sociais. Mais importante, o referido modelo centra-se no equilíbrio do balanço de pagamentos. Esse dispositivo de registro da contabilidade nacional é composto por duas contas: a de transações correntes e a capital e financeira. A primeira delas diz respeito às informações sobre comércio exterior (balança comercial), sobre serviços, rendas e transferências unilaterais correntes. Considerando o caráter historicamente deficitário da balança de transações correntes e a busca por superávits, a balança comercial passou a ser utilizada para reduzir a pressão sobre a conta capital e financeira a partir dos anos 1980. A pressão dos credores internacionais no início da década de 80, a chamada década perdida, constituiu o elemento-chave para a mudança de uma posição a favor do equilíbrio da balança comercial para uma de obsessão por superávits nominais contínuos e crescentes. Reverteu-se características do ciclo ideológico do desenvolvimentismo e deu-se impulso a uma dependência externa profunda. Em detrimento de uma economia diversificada e integrada, centrada no dinamismo do setor secundário, observa-se um movimento de insulamento de setores econômicos e redes de produção de alta competitividade, intensivos em recursos naturais, e o quase desaparecimento de outros segmentos. O eixo desse processo de simplificação da economia nacional são as commodities primárias, sob a liderança das novas “multinacionais brasileiras”.
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foto: alexandra martins / câmara dos deputados
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Comissão de Direitos Humanos da Câmara discute a mineração em audiência pública
Reprimarização A chamada reprimarização ou especialização reversa, segundo Fernanda de Negri e Gustavo Varela, é a expressão chave da dependência externa da economia nacional. E a atividade extrativa mineral é o principal motor desse fenômeno. Em 2009, apenas a indústria extrativa mineral correspondeu a cerca de 20% (US$ 30,83 bilhões) das exportações brasileiras (US$ 152,99 bilhões). Nesse setor, é o segmento de bens primários que se destaca. A participação relativa dos minerais metálicos foi bem maior que a dos outros minerais. O minério de ferro respondeu por 70,62% da exportação de metálicos, atingindo o montante de US$ 19,60 bilhões. A validade da tese da especialização reversa não diz respeito apenas à pauta exportadora. Apesar de recente, o processo afeta diretamente a composição do setor secundário, assim como a qualidade da sua participação no PIB. Enquanto a construção civil, a produção e a distribuição de eletricidade, gás, água, esgoto e limpeza urbana mantiveram sua participação constante entre 2000 e 2011, houve uma ascensão importante da indústria extrativa mineral, que ampliou a participação no produto nacional de 1,6% para 4,1%. Não coincidentemente, a indústria da transformação decresceu em termos relativos de 17,2% para 14,6%. O Brasil, dessa maneira, se encontra em posição singular para explorar a demanda por commodities da revolução industrial chinesa. O país possui uma infraestrutura voltada para a ampliação de seus saldos comerciais, “construiu” um setor privado produtor de bens minerais e tem incentivado fortemente suas “multinacionais”. A convergência de dinâmicas globais e nacionais levou a uma situação favorável à reprimarização, cujo eixo é a indústria extrativa mineral, esteio da balança comercial e, indiretamente, do balanço de pagamentos e da política macroeconômica.
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O símbolo maior desse processo é o minério de ferro. As commodities parecem marcar o ressurgimento da dependência da economia nacional em relação a um novo centro hegemônico. Resta saber até quando essas condições excepcionalmente favoráveis podem se manter, e, mais importante, quais serão os custos sociais e ambientais dessa estratégia. Impactos socioambientais Para além da discussão macroeconômica, a indústria extrativa negocia, mercantiliza e especula com um recurso natural, não renovável e finito, um bem comum da humanidade. A atividade implica num impacto territorial forte, tanto como parte da extração mineral e do processamento primário, como por conta da estrutura logística necessária para a produção e o escoamento. O ritmo crescente e insustentável de extração e o crescimento descontrolado dos investimentos em infraestrutura tornam o ciclo da mineração e siderurgia incongruente com o desenvolvimento efetivo dos territórios e das suas comunidades. A mineração e a elaboração primária dos recursos minerais são hoje um dos principais responsáveis pelo crescimento da demanda energética do país. A Vale S.A., por exemplo, possui 9% de participação na Usina Hidrelétrica de Belo Monte, cuja construção, marco do desenvolvimento atual, afeta a biodiversidade e as comunidades indígenas da curva grande do Rio Xingu. Além disso, possui participações acionárias ou controla outras nove usinas hidrelétricas e quatro centrais hidrelétricas no Brasil, além de outros projetos no exterior. As tragédias sociais e ambientais que essas atividades e empreendimentos representam não são consideradas nos planos do Estado ou das empresas.
OBSERVATÓRIO DO PRÉ-SAL O Observatório do Pré-sal e da Indústria Extrativa Mineral é um site que monitora e debate o extrativismo mineral. A iniciativa reúne o Ibase, a Justiça nos Trilhos, a Federação Única dos Petroleiros (FUP), o Greenpeace, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o Sindicato dos Petroleiros do Estado do Rio de Janeiro (Sindipetro-RJ) e tem o apoio do Instituto Revenue Watch. O projeto também publica os Cadernos do Observatório do Pré-sal. As duas edições lançadas estão à disposição, de forma gratuita, no site do Observatório. Os cadernos são “Considerações gerais sobre a renda extrativista no Brasil”, de Adhemar Mineiro e Maria de Lourdes Deloupy, e “Fundamentos para a criação de um fundo social e comunitário da mineração no Brasil”, de Rodrigo Salles Santos. Visite o site em: www.observatoriodopresal.com.br
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Na mesma proporção em que se expandem as minas, siderúrgicas, estradas de ferro e portos, aumentam as denúncias de violação de direitos humanos, de impactos ambientais e de deterioração de condições de vida. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2010 foram registrados 27 conflitos pela terra e 19 pelo acesso à água, todos envolvendo a mineração. Há também denúncias de trabalho escravo em atividades ligadas à indústria extrativa mineral. Em Parauapebas (PA), local da mais intensa exploração de minério de ferro no mundo, a grande quantidade de reclamações à Justiça do Trabalho levou à criação de uma nova vara. Em volta da mina de Carajás, muitas comunidades rurais são expulsas pela duplicação que a Vale faz do sistema ferroviário. A Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale produziu em 2012 um relatório em que sistematiza de forma consistente dados sobre os impactos socioambientais provocados pela empresa mineradora em 2010. Destacam-se, por exemplo, 11 trabalhadores mortos em acidentes, 175 mortes ou lesões graves por acidentes nas ferrovias em concessão, 726 milhões de toneladas de resíduos minerometalúrgicos gerados. Por um debate público Falta no Brasil hoje um debate de fato público, para além de Estado e empresas, sobre a indústria extrativa mineral. Um debate que inclua os atingidos por tais empreendimentos, pesquisadores e entidades dedicadas ao tema. Há um silêncio induzido e preocupante sobre a proposta do novo Código da Mineração. A qualidade do debate sobre esse novo marco assemelha-se à da aprovação do código em vigência, durante a ditadura, em 1967. O Estado brasileiro parece preocupado apenas em discutir royalties e em garantir o Plano Nacional de Mineração 2030. Esse plano prevê que o Brasil passará a extrair 795 milhões de toneladas de minério de ferro em 2022 e 1,098 bilhão em 2030. O patamar atual é 460 milhões. Não faltam atores sociais para fazer um debate público sobre o tema no Brasil. A Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale há três anos pesquisa os impactos provocados por essa mineradora em vários países do mundo, organiza resistência e faz proposições. Movimentos sociais, ambientais, sindicatos, pastorais e pesquisadores também têm se articulado no
Há um silêncio induzido e preocupante sobre a proposta do novo Código da Mineração. O Estado brasileiro parece preocupado apenas em discutir royalties e em garantir o Plano Nacional de Mineração 2030” referências ARRIGHI, G. (2008) Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo, Boitempo. Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale (2012) Relatório de Insustentabilidade da Vale.
país. Exemplos de organizações são a rede Justiça nos Trilhos, na região Norte, e o Movimento Pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM), no Sudeste. Além disso, há iniciativas que buscam monitorar essas indústrias e as políticas públicas sobre o tema, como o Observatório do Pré-sal e da Indústria Extrativa Mineral. Uma proposta que procura romper o bloqueio ao debate público é a criação do Fundo Social e Comunitário da Mineração. O objetivo seria garantir que parte da riqueza gerada com a mineração permaneça nas comunidades impactadas. O fundo deveria ser gerido pelas comunidades, para que elas possam reconstruir os seus laços de maneira independente e diversificar a economia local. Em maio último, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados discutiu a proposta em audiência pública em Brasília e definiu encaminhamentos para contribuir na sua viabilização. Chegou a hora da participação cidadã no tema da mineração. A instituição de um novo Código da Mineração constitui uma oportunidade histórica para garantir às populações atingidas ou ameaçadas pela mineração o direito de decidir sobre o seu futuro e a gestão dos seus territórios. O novo código será também ocasião para reparar os erros passados e construir um futuro mais promissor. Uma oportunidade para abandonarmos a lógica da extração máxima a custos mínimos, em que os ganhos são privados, e os prejuízos sociais e ambientais, de todos.
AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA (2011). Informativo da Auditoria Cidadã da Dívida, outubro. Brasília. DE NEGRI, F. e ALVARENGA, G. (2011) “A primarização da pauta de exportações no Brasil: ainda um dilema”, em Radar Tecnologia, Produção e Comércio Exterior, nº 13. Brasília, Ipea (perdigital.files.wordpress. com/2011/05/110509_radar13.pdf). DELGADO, I. G. (2010) “Desenvolvimento, Empresariado e Política Industrial no Brasil”, em MANCUSO, W. P., LEOPOLDI, M. A. P. e IGLECIAS, W. (orgs.) Estado, Empresariado e Desenvolvimento no Brasil. São Paulo, Ed. de Cultura. DNPM (2010) Anuário Mineral Brasileiro 2010. Brasília, Departamento Nacional de Produção Mineral. IBGE (2011) Indicadores IBGE: Contas Nacionais Trimestrais, Indicadores de Volume e Valores Correntes (www.ibge.gov. br/home/estatistica/indicadores/pib/pib-volval_201104caderno.pdf). JUSTIÇA NOS TRILHOS (2012) Mapa dos Conflitos da Mineração (www. justicanostrilhos.org/Mapa_Mineracao). SANTOS, R. S. P. (2012) Fundamentos para a Criação de Um Fundo Social e Comunitário da Mineração no Brasil. Cadernos do Observatório do Pré-Sal e da Indústria Extrativa Mineral, nº. 2. Rio de Janeiro (www.observatoriodopresal.com. br/wp-content/uploads/2012/04/ CadernoObservatorio21.pdf). SICSÚ, J., PAULA, L. F. e MICHEL, R. (2007) “Por que Novo-desenvolvimentismo?” Revista de Economia Política, v. 27, nº 4, dezembro. São Paulo.
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Duas décadas depois da Eco-92, governantes voltam ao Rio de Janeiro para debater o meio ambiente na Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. De lá pra cá, os problemas socioambientais se agravaram. O planeta vive no limite, e a pauta da Rio+20 não só é insuficiente para resolver a situação, como pode piorá-la. Em contraponto à conferência oficial, a Cúpula dos Povos se reunirá para denunciar a crise atual, propor alternativas, exibir experiências e modos de vida que mostram ser possível habitar a Terra sem destruí-la. Os textos deste dossiê discutem os limites da reunião oficial e os desafios da Cúpula dos Povos. A juventude tem presença destacada nas próximas páginas. Jovens escrevem sobre as suas ideias e ações relacionadas à Rio+20, à Cúpula dos Povos e ao meio ambiente.
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Em defesa do planeta Cúpula dos Povos na rio+20 prega a valorização dos bens comuns e debate alternativas à logica do mercado por Isabela Fraga e Monike Mar
A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992, a Eco-92 ou Rio-92, foi um marco em diferentes sentidos. O maior encontro realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) até então aprovou documentos e tratados relevantes, como a Agenda 21, a Carta da Terra, as Convenção da Biodiversidade, do Clima e da Desertificação. A conferência legitimou o conceito de desenvolvimento sustentável e inaugurou o ciclo de conferências sociais da ONU. Além das reuniões de governantes e diplomatas, centenas de organizações e movimentos sociais promoveram durante a Eco-92 diferentes atividades no Aterro do Flamengo, no chamado Fórum Global. A partir dali, a sociedade civil mundial passou a ter pautas e encontros comuns. A mesma ONU e o governo brasileiro organizam neste mês de junho no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. O encontro não à toa é chamado Rio+20, pois lembra justamente os 20 anos da Rio-92. Contudo, se a conferência de 1992 foi marcada por algumas conquistas socioambientais e pela expectativa de uma maior valorização da natureza, a Rio+20 tem trazido como marca a desilusão e o retrocesso. Os principais acordos de 92 não geraram o resultado esperado e tampouco serão agora reavaliados. A ONU já avisou que a conferência deste ano não terá documentos abrangentes como os de 92. A pauta definida para o encontro oficial, no isolado Riocentro (zona oeste carioca), é a chamada economia verde e a governança do meio ambiente pela ONU. Como em 1992, a sociedade civil global volta a se reunir no Rio de Janeiro de forma paralela à conferência oficial. O objetivo é denunciar a atual crise do planeta e as suas causas, cobrar medidas em prol da justiça socioambiental e, principalmente, apresentar experiências, modos de vida,
Se a conferência de 1992 foi marcada por algumas conquistas socioambientais e pela expectativa de uma maior valorização da natureza, a Rio+20 tem trazido como marca a desilusão e o retrocesso”
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exemplos de que é possível conviver de forma solidária, sem destruir a Terra. O cotidiano e as práticas de quilombolas, indígenas, agricultores, jovens, mulheres, negros, hackers, coletivos de economia solidária, grupos comunitários mostram que existem alternativas à busca do crescimento econômico a qualquer custo. Tudo isso faz parte da Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, evento que ocupa novamente o Aterro do Flamengo, de 15 a 23 de junho. Mudanças estruturais “Propomos mudanças estruturais”, resume Rubens Born, do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS), frente que integra o comitê organizador da Cúpula dos Povos. O lema do encontro é “contra a mercantilização da vida e em defesa dos bens comuns”. Para unir os movimentos e organizações sociais de todo o mundo, programar atividades e campanhas, a Cúpula conta com encontros específicos organizados por diferentes grupos e redes e as Assembleias dos Povos, as reuniões gerais. Participantes de movimentos sem organização formal, como o Occupy e a Primavera Árabe, também estarão no Rio. Além disso, o Fórum Mundial de Mídia Livre se realiza durante a Cúpula. “Sabemos o futuro que queremos, e não é esse proposto pela Rio+20 oficial”, afirma Graciela Rodrigues, da Articulação de Mulheres Brasileiras. A carta de princípios da Cúpula prega a construção de um novo paradigma e chama a economia verde, tema central da Rio+20 oficial, de “falsa solução”. Mais ainda, “economia verde não é solução, é agravante”, define Ivo Lesbaupin, da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e da comissão organizadora da Cúpula. Economia verde Economia verde simboliza talvez a principal diferença entre a conferência oficial e a Cúpula. A Cúpula dos Povos não quer ajustes no modelo atual, e sim outro modelo. O conceito de economia verde tem sido aplicado para, entre outras iniciativas, medidas de responsabilidade corporativa ambiental, incentivos oficiais a setores e empreendimentos que se comprometam a poluir menos, usos da bio e da JUN2012
Xingu+23, contra Belo Monte
nanotecnologia, ações mitigatórias como o mercado de créditos de carbono. Como argumenta Pablo Solón em entrevista nesta edição (pág. 32), economia verde faz referência a uma nova e grande frente de negócios. Para Walter di Simoni, superintendente de Economia Verde do Estado do Rio de Janeiro, a ideia é “uma maneira de criar novas ferramentas de desenvolvimento sustentável”. O biofísico Jean Remy Guimarães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que, se seguido na prática, o conceito de economia verde pode ser algo bom. “A questão ecológica só passou a ser levada um pouco mais a sério quando se tentou atribuir valor aos serviços ambientais, porque até então pensávamos que era de graça. Tudo que puder haver de processo técnico, de novos indicadores e novas formas de calcular custos está valendo.” A opinião de Pablo Solón, ex-embaixador da Bolívia nas Nações Unidas, vai de encontro à do biofísico da UFRJ. Solón tem argumentado que o objetivo das propostas por trás da economia verde é reforçar o tratamento da natureza como capital, e, para ele, quem lucrará com isso é a iniciativa privada. “Estão buscando desenvolver em âmbito mundial um conjunto de indicadores e medidas para quantificar e valorizar economicamente as distintas funções da natureza e introduzi-las no mercado via mecanismos financeiros. Essa economia verde busca não somente a mercantilização da parte material da natureza, mas também dos seus processos e funções”, escreveu o analista em recente artigo.
A força do mercado se faz sentir no Rascunho Zero, o texto base da Rio+20 oficial”
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Rascunho Zero A força do mercado se faz sentir no Rascunho Zero, o texto base da Rio+20 oficial. Na opinião de Iara Pietricovsky, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e do comitê organizador da Cúpula dos Povos, o documento “persiste” no conceito de crescimento econômico, que, segundo ela, é contraditório com a ideia de sustentabilidade ambiental. “O Rascunho Zero não enfrenta a questão do modelo de desenvolvimento, e sim propõe adequações no modelo já existente, sem mudanças estruturais, porque o setor privado, obviamente, não tem
A Cúpula dos Povos não será o único encontro da sociedade civil paralelo à Rio+20. Entre os dias 13 e 17 de junho, a região de Altamira, no Pará, recebe pescadores, ribeirinhos, pequenos agricultores, indígenas, movimentos sociais, pesquisadores, ativistas e demais defensores do Xingu. Eles participam do evento Xingu+23. O nome celebra os 23 anos da primeira vitória popular contra o projeto de barramento do Rio Xingu. Na época, foi realizado o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. O encontro deste ano tem como objetivo fortalecer a luta dos atingidos pela Belo Monte, hidrelétrica que é construída na região. Os participantes vão denunciar os danos que Belo Monte têm trazido para as populações locais e para a natureza e cobrar o respeito aos direitos sociais, econômicos, culturais e territoriais dos moradores da região. O Xingu+23 será realizado numa comunidade parcialmente desapropriada pela concessionária Norte Energia, que constrói Belo Monte. A expectativa é reunir 500 pessoas. O evento contará com festejos culturais, debates, seminários e protestos, sob o lema “Ocupe. Esse rio é nosso”. O site do encontro (www.xinguvivo.org.br/x23) tem informações sobre como participar e como colaborar, inclusive financeiramente, com o Xingu+23.
esse objetivo. Indústrias e empresas têm aí um papel fundamental como produtores de tecnologias verdes”, afirma ela, em entrevista ao site da Cúpula dos Povos (www. cupuladospovos.org.br). “Em outras palavras, esse documento simboliza certa submissão dos Estados nacionais ao capital do setor privado, movimento iniciado justamente a partir dos Objetivos do Milênio [metas da ONU de desenvolvimento], no início dos anos 2000, quando a ONU se dobrou ao poder do capital e passou a atuar a partir de diretrizes ditadas pelos interesses dos países mais ricos e das instituições do sistema financeiro e do comércio mundial”, completou Iara. Para Jean Pierre Leroy, a hora é de abandonar as ilusões que ainda restaram. Consultor da ONG Fase, Leroy participou de forma intensa da Rio-92 e do Fórum Global. Uma “comoção”, lembra ele. A história porém mudou. “Agora devemos deixar de lado as ilusões de que nossos governantes vão tomar medidas para o clima, de que as grandes corporações estão de fato comprometidas com o meio ambiente, de que a tecnologia é a salvação”, afirma. Duas décadas depois, o alerta da então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, durante a Eco-92 continua mais urgente do que nunca: “O tempo é curto para corrigirmos os atuais padrões insustentáveis do desenvolvimento humano”. DEMOCRACIAVIVA
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Os desafios da o encontro tem que indicar outro modelo de civilização. para isso a esquerda tem que superar a tradição produtivista e o neodesenvolvimentismo
por José Correa
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A Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, ocorre num momento em que a crise econômica estrutural que irrompeu abertamente em agosto de 2008 mergulhou Estados Unidos, União Européia e Japão numa recessão, acirrou a competição entre os governos dos países centrais e dos emergentes e enfraqueceu as veleidades ambientais de todos eles. Nesse contexto, revisitar as metas estabelecidas na Rio-92, um dos propósitos originais da conferência, apenas exporia os governos e as elites empresariais ao ridículo das promessas não cumpridas. Enfrentar a crise ambiental que assoma a todo o planeta significaria sucatear enormes capitais investidos em setores com grande peso econômico e poder político, como o do petróleo, o automotivo, o do consumo ostentatório. Significaria enfrentar os siameses modelo chinês (mais amplamente asiático) e neodesenvolvimentismo sul-americano. Setores muito minoritários do capital aventuram-se pela “economia verde”, mas sem condições de galgarem posições e se colocarem no coração do processo de acumulação neoliberal, cuja hegemonia não encontra contestação.
Assim, a tônica dominante da conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) no Rio de Janeiro será a de um circo de relações públicas no Riocentro, em plena Miami carioca, o mais longe possível das manifestações populares. Nele, o governo Dilma pretende desviar a discussão da marcha da humanidade rumo a um colapso ambiental para o tema dos avanços brasileiros no combate à pobreza. Já os mercados buscam obter na Rio+20 um mandato para uma nova ofensiva de mercantilização da natureza, com novos “cercamentos” e novos espaços de acumulação. O único local para a discussão dos dilemas estratégicos colocados para a humanidade é a Cúpula dos Povos, a contraconferência da sociedade civil e dos movimentos sociais, programada para o Aterro do Flamengo, de 15 a 23 de junho. É ela que pode articular as críticas às políticas de concentração de riquezas e à crise ambiental, oferecendo uma alternativa ao capitalismo global. A Cúpula oferece uma oportunidade para avançarmos na crítica à civilização produzida pelo capitalismo, urbana, industrial, produtivista e cada vez mais consumista. A Cúpula pode nos propiciar caminhos para a superação dessa forma de organização social e de relação com a natureza.
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A reprimarização das nossas economias se faz acompanhar de um aumento significativo da destruição de ecossistemas” As grandes catástrofes, que tendem a ocorrer se uma revolução social não confrontar as bases da civilização estabelecida, não são coisas para um futuro distante, mas ameaças que afetarão aqueles que hoje já são adultos. Uma conclusão se impõe para a esquerda desse conjunto de informações. O binômio modelo chinês e neodesenvolvimentismo (desindustrialização e reprimarização) sul-americano não é uma alternativa às variantes mais regressivas do neoliberalismo. Ao contrário, representa uma trilha rápida para a crise ambiental e social. Essa não é apenas uma constatação científica, mas uma percepção de atores sociais cada vez mais significativos na nossa região. No Brasil e por quase toda a América do Sul, movimentos populares têm se chocado com os projetos desenvolvimentistas de burguesias cada vez mais fornecedoras do capitalismo chinês. A reprimarização das nossas economias se faz acompanhar de um aumento significativo da destruição de ecossistemas. O combate à reforma do Código Florestal no Brasil, a luta contra a mineração no Peru, Equador e Argentina, a oposição a corredores de exportação e a hidrelétricas destinadas a baratear a extração de minérios vendidos para a Ásia são, por todo continente, parte do mesmo movimento estratégico de recomposição da esquerda em torno de uma alternativa de superação do capitalismo. A luta por justiça social e ambiental não é compatível com as políticas de ampliação do consumo, políticas que oferecem não serviços
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Civilização em crise Governos de todo mundo, mesmo que apenas formalmente, já tiveram que aceitar que a economia do carbono, do desperdício e da descartabilidade produz o aquecimento global e outras transformações extraordinárias O quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, de 2007, afirma que as emissões de gases do efeito estufa podem levar a um aquecimento de mais de 5ºC em 2100, suprimindo as condições que favorecem a humanidade desde o final da Era do Gelo. Essa é apenas uma das ameaças que enfrentamos. A perda de biodiversidade e o desequilíbrio do ciclo do nitrogênio pela agricultura industrial são outros processos que já fugiram do controle. A acidificação dos mares, as mudanças no uso do solo, os desequilíbrios no ciclo do fósforo, a destruição do ozônio estratosférico são outros processos conhecidos. Quando uma destas fronteiras é ultrapassada, ela desloca outras, numa dinâmica complexa. Alguns cientistas chamam esses desequilíbrios de “grande aceleração”. Mesmo os moderados estão chegando a conclusões radicais. James Hansen, da agência espacial norte-americana, a Nasa, destaca que a luta contra as mudanças climáticas tem o mesmo sentido ético que a luta contra a escravidão. Não podemos deixar um mundo exaurido para nossos filhos e netos. Para isso, porém, é necessário reverter atividades que estruturam o funcionamento da sociedade. Grande parte do que é produzido no capitalismo é desnecessário para uma vida digna e saudável e é prejudicial para o planeta. Quando colocamos tudo isso em perspectiva, fica claro o quão profunda é a mudança necessária para enfrentar a crise ambiental. O choque com o capitalismo, que só apresenta paliativos, deve ser frontal. Enquanto um estudo publicado na Nature em março afirma que a temperatura pode aumentar em 3ºC já em 2050, as negociações sobre o clima foram adiadas para 2015, e a vigência de um eventual e improvável acordo começaria em 2020.
públicos básicos, e sim mais bugigangas e serviços privatizados. Os “ganhos” recentes das economias sul-americanas estão se dando ao preço de uma desarticulação das cadeias produtivas industriais mais complexas. Encaminhada por governos que se afirmam de esquerda, essa política oferece uma maquiagem progressista para os novos cercamentos dos bens comuns e o aumento da dependência externa. Esse é o marco do debate estratégico colocado para a esquerda continental e da contribuição que ela pode dar a um movimento global cada vez mais desarticulado pelas consequências da crise. Este é o pano de fundo dos debates da Cúpula dos Povos. Radicalizar a democracia A radicalização da oposição ao capitalismo, ao desenvolvimentismo e ao consumismo nos distancia de uma certa tradição produtivista da esquerda, cujo melhor exemplo era a antiga União Soviética. Ela abre o diálogo com grandes parcelas da juventude que intuem o rumo catastrófico da civilização atual. A magnitude das mudanças necessárias exige que as massas populares entrem em cena e imponham uma profunda mudança de rumo na história. Para isso, contudo, é preciso que modifiquem a si mesmas no processo. Não é possível empreender a transição que a humanidade e o planeta demandam com povos cujo ideal de felicidade é o consumismo e cujo modo de vida é baseado na exploração da natureza. O surgimento de uma nova geração política nos movimentos dos indignados europeus, na Primavera Árabe, nas ocupações nos Estados Unidos exige da esquerda uma aposta, a de que aí germinam as forças capazes de construir uma nova civilização. A rigor, essa aposta não é uma opção, mas uma imposição para a esquerda socioambiental. O terreno para isso é o exercício de uma democracia participativa. O lema de algumas correntes de jovens indignados, “democracia real já”, é inseparável do desafio socioambiental. Só apoiados na democaria real poderemos superar a crise civilizacional vigente.
A versão integral deste artigo pode ser acessada no site OUTRA POLÍTICA (outrapolitica.wordpress.com)
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É a juventude que sofrerá as consequências da atual exploração da natureza. Os movimentos juvenis têm assim contribuição crucial para a afirmação de uma outra percepção de vida
Injustiça
por Bruno Pinheiro, Camila Mello e Thiago Alexandre Moraes
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Quase 200 anos depois da revolução
industrial, o modelo de sociedade capitalista chega ao seu limite. A atual crise planetária envolve o modo de ser e estar no mundo, em todos os seus hábitos e dimensões. É uma crise que ameaça a vida no nosso planeta, algo como nunca se viu, e que pode ser caracterizada como uma crise geracional. Esse é o ponto de partida para a ação política na realidade contemporânea. O capitalismo não dá conta de garantir o Estado de Bem-estar Social para toda a população global. O próprio conceito de Estado não contempla todos os tipos de sociedades existentes e, portanto, não dialoga com diversos sentidos importantes para a qualidade de vida e o bem viver. As pessoas não se sentem mais representadas por governantes e parlamentares. Na economia, estão em xeque o uso de combustíveis fósseis e a produção em larga escala. A desigualdade, as mudanças climáticas, o esgotamento da natureza, a mercantilização da vida, a injustiça ambiental são características estruturais desse modelo.
Dinâmicas tão arraigadas culturalmente não serão mudadas de forma abrupta. A busca deve ser por alternativas capazes de integrar nossos modos de vida e as dinâmicas da natureza. A humanidade está obrigada a reinterpretar-se, a revisitar as suas lógicas, para garantir a viabilidade do planeta. Essa reorganização deve assegurar condições de vida justas para todas as pessoas. Pacto entre gerações Todas as vezes que a sociedade se viu em crise, as juventudes emergiram como segmento importante para os processos de transformação social. Jovens são capazes de respostas que extrapolam as lógicas correntes, de enfrentar os desafios mais duros e difundir informações na base da sociedade. Não são só as desigualdades do presente que estão em jogo, mas também a qualidade de vida da humanidade no futuro. As decisões tomadas agora repercutirão mais para as populações hoje jovens do que para os que neste momento deliberam. É a juventude atual que sofrerá as conse-
E a cidade se apresenta Centro das ambições Para mendigos ou ricos E outras armações Coletivos, automóveis, motos e metrôs Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs A cidade não pára A cidade só cresce O de cima sobe E o de baixo desce
renato cafuzo
(Chico Science, “A Cidade”)
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quências nas próximas décadas da exploração indevida da natureza. É por isso que o tema socioambiental é inerentemente uma questão das juventudes. Temos assistido à supressão do direito à vida geração após geração. Cada uma deixa o mundo pior para a seguinte. A crise planetária é uma profunda injustiça geracional, que tem como pano de fundo a luta de classes, e demanda um pacto entre gerações. Os movimentos juvenis de perspectiva transversal, sistêmica e socioambiental contribuem assim com olhares e práticas específicos cruciais para a superação da crise. Esses movimentos se fortalecem porque vão além de aspectos técnicos da sociedade global, como o desempenho de tecnologias e a eficiência energética das indústrias, e convidam a todos para mudanças de caráter enfaticamente cultural, para afirmar outra percepção de vida. Os movimentos de juventude são ainda mais importantes porque as transformações profundas que o mundo precisa passam por conflitos internos da geração contemporânea de jovens. O instante atual é chave. A juventude vive numa sociedade em que valores ditados por interesses prioritariamente econômicos têm predominância. Jovens estão sendo desafiados neste momento a fazer as suas opções, a estabelecer-se culturalmente numa sociedade em que os direitos individuais e coletivos são subjugados pelas liberdades privadas de megacorporações. Rio+20 Nesse sentido, as juventudes precisam ter papel de destaque no processo da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, e da Cúpula dos Povos na Rio+20. É importante integrar nesse processo as ideias e olhares de coletivos de juventudes das várias partes do mundo. As juventudes são o segmento mais vulnerável às políticas sociais e ambientais insustentáveis, e isso deve ser levado em conta na construção de espaços de debate e tomada de decisões. A Cúpula dos Povos é o lugar para construir e fortalecer a integração dos movimentos juvenis. O campo das juventudes é diverso, mas há o entendimento de que o capitalismo é a causa das várias crises que a humanidade enfrenta. O envolvimento da juventude com o meio ambiente tem amadurecido no decorrer das 24
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As juventudes são o segmento mais vulnerável às políticas sociais e ambientais insustentáveis, e isso deve ser levado em conta na construção de espaços de debate e tomada de decisões”
últimas décadas, e as conferências das Nações Unidas ilustram isso. Na Carta de Estocolmo, documento da Conferência Internacional sobre Meio Ambiente Humano, realizada na capital sueca, em 1972, a juventude foi citada somente como parte do “esforço para a educação em questões ambientais, dirigida tanto às gerações jovens como aos adultos”. Isto é, não se considerava a efetiva participação da população jovem nas decisões estratégicas. A carta expressava ainda uma visão totalmente antropocêntrica sobre o meio ambiente, capaz de afirmar que, “de todas as coisas do mundo, os seres humanos são a mais valiosa”. Vinte anos depois, a Agenda 21, documento elaborado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, no Rio de Janeiro, dedica todo um capítulo à juventude. Com concepção mais avançada, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, produzido no Fórum Global, da sociedade civil, defende o envolvimento ativo da juventude no tema. Ao chegarmos à Rio+20, que marca o aniversário da Eco-92, ao mesmo tempo que a conferência está organizada de uma forma
que impede iniciativas transformadoras e metas ousadas, pesquisadores, movimentos e organizações sociais têm cada vez mais trabalhado em prol da justiça socioambiental. Esse não é um movimento involuntário. Pelo contrário, é resultado do processo de mobilização das últimas décadas. Como Eduardo Galeano, muitos jovens acreditam que “a gestação de um novo mundo será neste mundo que está”. Muitos cultivam uma esperança crítica e utópica de que é possível alcançar um mundo igualitário e diverso, superar as propostas de repaginação do capitalismo (leia-se economia verde) e afirmar os reais interesses e necessidades dos povos. É essa busca que deve tomar nossos corações e mentes.
Este artigo reflete a opinião de “elos”, integrantes, da Rede da Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade (Rejuma), e não necessariamente corresponde à visão da rede.
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Mattias Bergset e HANNE Sofie Lindahl
Daniel Souza facilitador nacional da Rede Ecumênica da Juventude (REJU) e MEMBRO Do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE)
INTEGRANTES DA ORGANIZAÇÃO CHANGEMAKER, DA NORUEGA
Essa é hora em que a juventude precisa mostrar que nós somos a geração que vai mudar o mundo. Temos que propor soluções para mudar a percepção que se tem hoje de crescimento e desenvolvimento. Temos que continuar a desenvolver alternativas sustentáveis às práticas atuais. Não podemos esperar que os líderes globais tomem atitudes e consertem a Terra. Temos que assumir a responsabilidade e mudar a mente das pessoas, tantos de jovens quanto dos mais velhos. Vinte anos atrás, líderes mundiais se encontraram no Rio para discutir desenvolvimento sustentável. Na Rio+20, os líderes mundiais vão lidar novamente com temas de grande importância, relacionados ao desenvolvimento sustentável do mundo. Os problemas que enfrentamos no mundo hoje não são novos, mas certamente mais graves. À medida que a população mundial aumenta, nós enfrentamos questões como segurança alimentar, falta de água, mudanças cilimáticas, e são os pobres do mundo que aguentam as consequências. A Rio+20 é o lugar onde nós, jovens de todo o mundo, podemos estabelecer as premissas para o nosso futuro e para o futuro das próximas gerações. Todos no mundo são afetados por essa conferência, e os poucos representantes que tomarão as decisões por nós têm uma tarefa tremenda nas suas mãos. Contudo, ao mesmo tempo, as possibilidades são imensas! Um tópico que será muito discutido são as possibilidades para uma economia verde na qual crescimento econômico combinado com redução dos custos ambientais resulte em desenvolvimento sustentável para o mundo. Outro tópico são as metas de desenvolvimento sustentável. Diferente das metas do milênio, que foram aplicadas somente para países em desenvolvimento, essas metas vão marcar a responsabilidade que todos nós temos de assegurar um
A Rio+20
terá algum
impacto
para a juventude?
futuro sustentável. É importante que os líderes mundiais tenham grandes ambições durante a reunião e que eles acordem medidas concretas. Para isso, é importante que a sociedade civil, assim como os jovens, de todo mundo, se envolvam no processo e pressionem as negociações. Mundial e nacionalmente, os líderes global devem reconhecer a contribuição significativa que a juventude pode dar e envolvê-la na formulação de políticas para um futuro sustentável. É crucial que a juventude seja incluída em negociações e processos de alto nível, que haja investimentos em lideranças jovens e resultados concretos para jovens e o seu futuro. A inclusão da juventude representa mais do que incluir metade da população do mundo. Ela é importante para a sustentabilidade, à medida que jovens lideranças de hoje se tornarão os líderes e as líderes do futuro.
tradução de augusto gazir
O grande impacto partilhado pelas juventudes na Rio +20 se dará em ambientes alternativos, como a Cúpula dos Povos. Os jovens já sinalizam em muitas de suas experiências caminhos concretos para o enfrentamento da crise socioambiental: a agroecologia, as lutas por uma justiça agrária, por uma cidade justa, não guiada pela especulação imobiliária, superando as desigualdades e os favorecimentos a grandes empresas. Estamos numa crise dos projetos de desenvolvimento, que trazem consigo o enriquecimento de uma pequena parte das populações e favorecem a desigualdade e a injustiça social, atreladas à exploração desmedida do meio ambiente. As juventudes carregam esse peso sistemático e injusto em seus corpos, em suas vivências. As injustiças sociais e ambientais impactam de maneiras diferentes os lugares e as gentes. Quem sente na pele essas injustiças são os excluídos, os empobrecidos e também a natureza, sacrificados nos altares das bolsas de valores. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) trará mudanças mínimas, caminhos para um lugar-nenhum (ou economia verde!), que reforçarão o atual modelo, agora mais verdinho e “sustentável”. Acredito na participação das juventudes na construção do “futuro que queremos”, não o que nos é imposto por chefes de Estado e corporações. Creio nesse protagonismo juvenil, mas sem as amarras da tutela. Vejo uma juventude que se articula de maneiras distintas, em espaços variados. Vários rostos, sotaques, desejos. Corpos em movimento por uma casa-comum realmente justa e irmanada com a Terra. Nisso, a juventude ecumênica tem importante papel, articulando esses engajamentos com as espiritualidades que nos fazem quem somos, empoderam para a luta e trazem sentido ao cotidiano.
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UM SITE DE DEBATE PÚBLICO
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A juventude pensa a cidade O que direito à cidade e justiça ambiental tem a ver com juventude? Qual é ou tem sido o papel da população jovem das grandes cidades no que diz respeito ao meio ambiente? Quais têm sido as reivindicações dessa população? por Marina Ribeiro e Patrícia Lânes
A juventude pode ser entendida, entre outras coisas, como o momento em que as vivências deixam de estar circunscritas ao mundo familiar e escolar. É entre a adolescência e o início da vida adulta que as pessoas começam a ir além das fronteiras do ambiente familiar e da escola. Essas novas idas e vindas levam jovens a conhecer outros lugares e a viver experiências distintas, marcadas, no entanto, pelas diferenças socioeconômicas, de gênero, de cor/raça, de ser ou não ser deficiente, de orientação sexual e de local de moradia, para ficar em algumas. Esse processo nas cidades tem especificidades. De acordo com o pesquisador Paulo César Carrano, “a cidade é transformada de espaço anônimo a território pelos jovens atores urbanos”. As grandes cidades guardam inúmeras diversidades e profundas desigualdades. O acesso à cidade e aos direitos não é igual para todas as pessoas. Ainda de acordo com Carrano, “o
espaço urbano intensifica os antagonismos de interesses que se constituem por uma participação diferenciada e desigual dos processos de produção e reprodução da vida social”. Para o pesquisador, isso significa que a cidade não é experimentada da mesma maneira. “Esse diferencial de apropriação dos recursos materiais e simbólicos da cidade pode ser apontado como um dos fatores que organizam a produção das identidades sociais.” Para quem vive no Rio de Janeiro, a diferença entre morar em Ipanema ou no Leblon e morar em qualquer bairro da zona oeste, por exemplo, é evidente. Mesmo dentro dos ditos bairros nobres, na zona sul carioca, há desigualdades. Os habitantes das diversas favelas não vivem em condições semelhantes a dos seus vizinhos e vizinhas de bairro, embora possam ter acesso a equipamentos de lazer, transporte público, serviços menos precários do que os oferecidos nas zonas oeste e norte da cidade (é bom lembrar que, mesmo não havendo
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proibição concreta, podem haver interdições simbólicas a espaços em áreas nobres, como no caso de pessoas mais pobres que não se sentem à vontade para frequentar determinados centros culturais, ainda que gratuitos). O conceito de direito à cidade traz essas dimensões. Ele ajuda a pensar as desigualdades e a necessidade de se ampliar a garantia de direitos, não importa qual seja o local de moradia, a classe social, o sexo, a cor ou a idade. De acordo com a Plataforma Nacional pelo Direito à Cidade, é preciso reivindicar “uma cidade que respeite e garanta o direito à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte, à saúde, à educação, à cultura, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Assim, “é necessário que os governos estejam comprometidos com uma política urbana articulada com estratégias de inclusão social e de justiça ambiental, local, regional, estadual e nacionalmente”. Para Carrano, “os antagonismos presentes no espaço urbano se dão pelas desiguais condições de vida em torno dos espaços de moradia, lazer e trabalho”. Ele diz ser “possível afirmar com [Henri] Lefebvre [“O direito à cidade”, 1969] que o direito (material e simbólico) à cidade não é igual para todos os seus habitantes”. O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) aponta uma série de pressupostos para a garantia do direito à cidade:
a implementação do Estatuto da Cidade, uma gestão democrática e participativa, a adoção do desenvolvimento urbano sustentável, habitação e saneamento ambiental para todos, transporte público como prioridade, segurança pública baseada nos direitos humanos, trabalho e distribuição de renda, apoio à reforma agrária e destinação de recursos para os setores populares. A realidade da maior parte das grandes cidades brasileiras ainda está bem distante de tais pressupostos. As jovens e os jovens que vivem nessas cidades são afetados pela falta de garantia dos direitos descritos anteriormente e outros, como direito à cultura e à educação pública gratuita e de qualidade. Algumas dessas ideias, no entanto, traduziram-se em lutas, muitas delas encabeçadas por jovens. O transporte coletivo público, por exemplo, central para a garantia do direito à cidade, tornou-se nas últimas décadas crucial para movimentos de juventude, sobretudo os estudantis. A adoção do passe livre foi conquista importante em muitos municípios. A Revolta do Buzu praticamente parou a cidade de Salvador (BA) em 2003, com mobilizações iniciadas pelos estudantes contra o aumento da tarifa de ônibus. Fora do Brasil, os estudantes paraguaios também realizaram mobilizações pelo passe livre. Outra preocupação da juventude ligada ao direito à cidade é a segurança pública baseada nos direitos humanos. Jovens – principalmente os homens, negros, moradores de favelas e periferias – são os mais atingidos pela violência urbana, como deixa evi-
Sobre o mapa participativo O uso da cartografia social e a elaboração do mapa participativo permitem o trabalho com uma linguagem, ao mesmo tempo, supervalorizada e largamente ignorada. É importante frisar o caráter não neutro dos mapas. Eles são documentos de uma interpretação da realidade e das relações de poder existentes. Os mapas oficiais, produtos do olhar técnico dos “especialistas”, raramente retratam os pontos de vista dos moradores e moradoras de uma região, menos ainda da juventude. Os mapas participativos têm ajudado grupos sociais no acúmulo de conhecimento e na busca por mudanças. O mapa, nesse caso, é uma interpretação da realidade, na qual se reconhece iniciativas existentes, ausências, potencialidades e se fortalece intervenções sociais. Nas atividades de Santa Marta e Campo Grande, o mapa contribuiu para que jovens dos locais construíssem coletivamente a sua visão sobre os seus territórios, utilizando símbolos e figuras que pudessem ser facilmente compreendidos por quem fosse ler os mapas. O reconhecimento de conflitos e problemas possibilitou a reflexão sobre temas e a escolha de prioridades. O obetivo é ampliar o debate para outros jovens e grupos locais nos próximos anos da iniciativa.
Detalhe da elaboração dos mapas por jovens do projeto
Os mapas participativos fazem parte das publicações Tá no mapa – Campo Grande e Tá no mapa – Santa Marta, disponíveis de forma gratuita em www.ibase.br
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dente o Mapa da Violência de 2011. Se, o número de homicídios de jovens brancos caiu 30% no período 2002/2008, o homicídios de jovens negros passaram de 11.308 para 12.749 no mesmo intervalo de tempo, o que representa um crescimento de 13%. Certamente o tema da violência associada à juventude não se resume às grandes cidades, mas é sabido que o debate sobre segurança pública e o genocídio da juventude negra (foco de campanhas de movimentos juvenis e uma das prioridades definidas na 1ª Conferência Nacional de Juventude) têm nos centros urbanos um foco importante. O racismo também aparece a partir de outras perspectivas no debate do direito à cidade. O chamado “racismo ambiental” é definido pelo GT Combate ao Racismo Ambiental, grupo de trabalho criado em 2005, no âmbito da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, como “injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua ‘raça’, origem ou cor”. É nas periferias urbanas e favelas, locais onde a maior parte da população é negra, que se concentram as violações de vários direitos. Justiça ambiental é o direito ao acesso justo e equitativo aos recursos naturais, às informações e às decisões sobre o uso de tais recursos, assim como a garantia de que nenhum grupo social suporte uma parcela desproporcional dos efeitos da degradação ambiental. Logo, é possível questionar porque algumas pessoas vivem em áreas onde é mais provável ocorrer algum desastre natural, enquanto outras vivem em locais mais protegidos. A forma de ocupação do espaço e as condições dessas ocupações revelam condições desiguais de vida e profundas violações de direitos. Mais recentemente, outra face da injustiça ambiental entrou em cena. As mudanças climáticas ganharam a grande mídia e o debate público. Juliana Malerba e Isabel Pereira afirmam que “as desigualdades ambientais, no que diz respeito às mudanças climáticas, são produzidas socialmente pelo modelo atual de desenvolvimento industrial que promove um modo de produção e de consumo insustentáveis, do qual são responsáveis em particular os países industrializados, suas empresas e seus governos, as agências multilaterais, mas, também, governos e empresas de países do Sul, que perseguem o mesmo tipo de desenvolvimento”. Elas continuam: “no momento de uma catástrofe natural essas populações sofrem de maneira desproporcional suas consequências”. Em 2005, a população negra e mais pobre dos Estados Unidos sofreu com o Furacão Katrina. No Brasil, as chuvas que devastaram a região serrana do Rio de Janeiro em 2011 atingiram de forma mais acentuada áreas pobres e vulneráveis.
SOBRE O PROJETO O projeto Cidade, mudanças climáticas e ação jovem teve início em 2011 e é coordenado e desenvolvido pelo Ibase, pelo Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP) e pelo Grupo Eco. O projeto tem o apoio da Ajuda da Igreja Norueguesa (AIN) e da OD, uma ação de estudantes da Noruega em solidariedade a jovens de outras partes do mundo. O projeto terá a duração de cinco anos e é desenvolvido em dois territórios da cidade do Rio de Janeiro: a favela de Santa Marta, em Botafogo (zona sul) e o bairro Campo Grande (zona oeste). A inciativa visa incentivar e fortalecer a mobilização juvenil nesses locais, com atividades e debates relacionados a desenvolvimento, mudanças climáticas e direito à cidade. No primeiro ano do projeto, os dois territórios realizaram uma série de atividades para construir um diagnóstico socioambiental. Foram feitas oficinas, grupos de discussão, produziu-se de forma colaborativa dois vídeos e duas publicações, a “Tá no mapa – Campo Grande” e a “Tá no mapa – Santa Marta”. As publicações trazem falas dos jovens sobre a sua realidade e um mapa participativo das regiões, sinalizados a partir das experiências dos jovens e das jovens da iniciativa. Para assistir aos vídeos, acessar as publicações e saber mais sobre o projeto, entre no site www.ibase.br
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Nas últimas décadas, temas ambientais tornaram-se vetor de aglutinação de jovens no campo e na cidade e abriram novas possibilidades de participação”
referências Malerba, J. e Pereira, I. “Aquecimento global e justiça ambiental”, no site da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, www.justicaambiental.org.br Carrano, P. (2008) “Jovens pobres: modos de vida, percursos urbanos e transições para a vida adulta”, em Ciências Humanas e Sociais em Revista, vol. 30, nº 2. Edur, Seropédica-RJ. Novaes, R. e Vital, C. (2005) “A juventude de hoje: (re)invenções da participação social”, em Thompson, A. Associando-se à juventude para construir o futuro. Ed. Petrópolis, São Paulo.
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Regina Novaes e Christina Vital notam que, nas últimas décadas, temas ambientais tornaram-se vetor de aglutinação de jovens no campo e na cidade e abriram novas possibilidades de participação. De acordo com elas, “jovens moradores das cidades têm experimentado a possibilidade de transformar velhas precariedades da infraestrutura urbana em demandas ‘ambientais’ e em ações concretas”. As discussões brevemente expostas acima são algumas das que vêm sendo tratadas pelo projeto Cidade, mudanças climáticas e ação jovem, iniciativa do Ibase em parceria com o Grupo Eco (de Santa Marta, favela da zona sul do Rio de Janeiro) e com o Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP) (de Campo Grande, bairro da zona oeste da cidade). Ambos os grupos têm uma história de trabalho sobre lazer, tempo livre e educação com as juventudes locais. Os problemas e direitos ambientais foram um convite para que esses coletivos pensassem suas práticas e agregassem às atividades que já realizam outras possibilidades de crítica à realidade de seus territórios. A experiência, com pouco mais de um ano, tem se mostrado uma oportunidade ímpar para trazer à tona as questões sociais e ambientais a partir da perspectiva dos jovens moradores e moradoras. Em Santa Marta, o lixo, a utilização (e privatização) dos espaços públicos e a implantação de tarifas públicas sem serviços condizentes foram priorizados. Em Campo Grande, saúde, cultura e meio ambiente surgiram com maior relevância, mas sem deixar de lado a especulação imobiliária e o transporte. Nesse sentido, as ideias de direito à cidade, justiça, racismo ambiental e mudanças climáticas podem ser formas de repensar desafios cotidianos e a restrição no acesso a direitos e a oportunidades historicamente negadas a moradores e moradoras de áreas das cidades. A participação da juventude nessa reflexão deve ser valorizada. Na relação com adultos, organizações, movimentos sociais, governos e outros atores, de dentro e de fora dos territórios de moradia, a população jovem dever participar da proposição de alternativas para enfrentar desigualdades, superar injustiças e conquistar direitos. JUN2012
Ana Paula de Souza Campos do Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP)
Sou nascida e criada em Campo Grande, bairro da
zona oeste do Rio de Janeiro, e, apesar de ser moradora do bairro a vida toda e sempre ter circulado por esse espaço, nunca havia pensado a respeito de algumas questões importantes que envolvem esse lugar. É comum naturalizarmos o espaço em que vivemos, ainda mais quando ele não é alvo da grande mídia e nem de nenhum tipo de pesquisa. Campo Grande é o bairro mais populoso da zona oeste e tem uma grande extensão territorial, mas isso não foi suficiente para que esses olhares se voltassem para cá. Somente no ano passado pude perceber uma alteração nesse quadro de invisibilidade do bairro, pois pude participar das atividades do projeto Cidade, mudanças climáticas e ação jovem. Eu pude observar por outra perspectiva o território em que moro. Participamos de oficinas onde o exercício era pensar quais as principais questões do bairro. Foi de extrema importância poder pensar sobre essas questões e falar sobre elas sabendo que alguém iria conhecê-las, que alguém iria ouvir o que temos a dizer. Falamos sobre educação, especulação imobiliária, saúde, esporte, lazer, cultura, meio ambiente e outros temas importantes para quem vive aqui. O mais interessante foi poder realizar uma análise crítica a respeito da nossa realidade, porque objetivamos, sobretudo, a partir do projeto, denunciar os problemas do nosso bairro. Agora que temos voz queremos reivindicar que olhem para nós e nos reconheçam como detentores de direitos, pessoas com necessidades que precisam ser atendidas. Apontamos os responsáveis por esses problemas, os afetados por eles e, ainda, prescrevemos soluções para os mesmos. Nesse processo de construção de um diagnóstico socioambiental da nossa realidade utilizamos uma metodologia para captarmos a visão de diferentes jovens sobre o espaço que nos é comum. Isso porque apesar de vivermos no mesmo espaço nos relacionamos e nos apropriamos deste de modos diferentes. Um jovem que estuda numa escola particular de Ensino Médio e um jovem com deficiência na rede pública lidam de maneira completamente diferente com o espaço em que vivem. Um jovem que trabalha e um jovem universitário também se identificam e se relacionam com suas particularidades com o espaço. A partir dessa pesquisa criamos um mapa e um vídeo. Enfim, conseguimos falar sobre nós mesmos e sobre como lidamos com o espaço em que vivemos. Com esse material, que construímos de maneira independente, sinalizamos que estamos aqui e relatamos nossas dificuldades como jovens moradores de um bairro que apesar de estar no mapa não é visto pelos nossos governantes. Queremos, assim, reafirmar nossas identidades, denunciar os problemas do nosso bairro, reivindicar nosso direito à fala e lutar para que sejamos realmente vistos, ouvidos e atendidos.
A temática até que parece complicada, mas só parece. Se analisarmos individualmente cada item, vamos notar que os temas são conexos e em dado momento se encontrarão. Cidade e ações jovens soam melhor nos nossos ouvidos e talvez sejam compreendidos com mais clareza do que mudanças climáticas. Essas, sim, parecem destoar no nome do projeto e por razões óbvias merecem atenção especial neste texto. Se levarmos a expressão mudanças climáticas ao pé da letra, pelo menos na minha humilde opinião, a primeira coisa que vem à cabeça é a velha e boa matéria de geografia, clima, tempo, mudança, fenômenos que cismam em nos assustar, enfim, esses percalços e imprevistos causados pela transformação da natureza. No entanto, não é disso que trata o projeto, a ideia de incluir no tema, o nome mudanças climáticas é dar ênfase nos motivos pelos quais o mundo em que vivemos vem sofrendo constantes mudanças, e a tendência/previsão é que piore a cada ano. O segundo motivo para dar atenção especial às mudanças climáticas é a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que acontecerá no Rio de Janeiro, em junho. Mostra para o mundo a preocupação das grandes potências mundiais com a economia verde, uma vez que esta vem sendo inserida no contexto de desenvolvimento sustentável. Enfim, é muito legal saber que os poderosos chefões mundiais ainda se preocupam e entendem que temas como economia, consumo e meio ambiente não podem ser separados dos problemas de cunho social. O projeto reuniu duas instituições completamente envolvidas nos debates inerentes ao tema e conseguiu no seu primeiro de cinco anos, como resultado, a concretização de dois produtos: um vídeo revelando problemas críticos de cada localidade, bem como um mapa, recheado de informações e indicativos de pontos de conflitos existentes em cada região. Quem dera se todas as cidades pudessem ser agraciadas com tais pesquisas e apontamentos como os que tivemos o privilégio de ter. Os jovens das duas áreas escolhidas para o desenvolvimento do projeto tiveram a oportunidade de se encontrar e debater durante longos períodos o futuro da nossa sociedade, a decadência do socialismo, a voracidade do capitalismo, a desigualdade social que tanto cresce no Brasil; tiveram a difícil tarefa de buscar alternativas ao sistema capitalista. Rafael Meireles do Grupo Eco (Santa Marta)
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foto: friends of the earht international
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Pablo Solón explica por que a economia verde cria novos problemas ambientais ENTREVISTA A marianna araujo
A Rio+20 tem como objetivo o desenvolvimento de um mercado mundial de serviços ambientais, a economia verde, que vai alterar as leis da natureza e aprofundar as desigualdades sociais e o desequilíbrio do planeta. A opinião é de Pablo Solón, diretor-executivo da organização Focus on the Globe South, com sede na Tailândia. Ele é ex-embaixador da Bolívia na Organização das Nações Unidas (ONU) e uma das referências intelectuais do movimento da Cúpula dos Povos na Rio+20. “Até hoje nós vimos a mercantilização da parte material da natureza. Ou seja, as árvores, a madeira, a água, aves, plantas e frutos já são mercadorias. Atualmente o que se quer é transformar em mercadoria as funções da natureza, os processos desenvolvidos pelos ecossistemas. Essa é a novidade”, afirma Solón. Nesta entrevista à Democraciaviva, Pablo Solón, além de criticar a economia verde, detalha como ela funciona e explica porque na sua visão a proposta vai trazer mais problemas sociais e ambientais. A seguir os principais trechos da entrevista:
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Democraciaviva – O que o levou a envolver-se com os temas do meio ambiente e das desigualdades? pablo solón – Isso tem relação com a minha família. Meu pai é artista, muralista. Assim como Diego Rivera e Davi Siqueiros, no México, na Revolução Boliviana de 1952 havia dois artistas produzindo murais, Miguel Alandia Pantoja e Walter Solón Romero, meu pai. Além disso, em 1972, durante a ditadura do general Hugo Bánzer, José Carlos, meu irmão, desapareceu. O sumiço do meu irmão mudou a vida da minha mãe. Até aquele momento ela era uma dona de casa, depois tornou-se uma reconhecida ativista pelos direitos humanos. Foi assim que muito novo comecei a me dedicar às lutas dos trabalhadores e à luta contra a implantação do modelo neoliberal na Bolívia a partir de 1985. Dv – Como foi esse período? solón – Os anos seguintes foram um período de muitas derrotas, porque lutávamos contra a privatização de tudo e perdíamos. Então, decidimos nos dedicar a uma questão específica, de forma mais organizada, que era a privatização da água potável. Foi com a lei nacional da água potável que o processo boliviano começou a mudar. Nesse momento, passei a discutir os temas internacionais, inclusive a construção de uma alternativa boliviana à Alca (Área de Livre-comércio das Américas). Dv – O sr. tem falado em propostas ofensivas dos países ricos para a mercantilização da natureza. Que propostas são essas? solón – Até hoje nós vimos a mercantilização da parte material da natureza. Ou seja, as árvores, a madeira, a água, aves, plantas e frutos já são mercadorias. Atualmente o que se quer é transformar em mercadoria as funções da natureza, os processos desenvolvidos pelos ecossistemas. Essa é a novidade. Já não estamos falando de comercializar madeira, mas da capacidade de absorção de dióxido de carbono. Isto será vendido no mercado via certificados de redução de emissões de carbono. A lógica por trás desse processo foi desenvolvida há cerca de trinta anos e é conhecida como pagamento por serviços JUN2012
foto: arquivo pessoal
ambientais, pagar pelos diversos serviços ambientais que os ecossistemas nos prestam. Isso já existe em projetos locais, e está sendo proposto um esquema de compras e vendas desses serviços em âmbito internacional. Essa é a proposta dos países ricos e recebe o nome de economia verde. É nesse sentido que é uma proposta ofensiva, porque expande muito esses negócios. Eles nos dizem que há um desequilíbrio na natureza e que, portanto, temos que quantificar e contabilizar em termos monetários os serviços que os ecossistemas prestam. À medida que esses serviços entrarem no mercado, haverá recursos econômicos suficientes e instituições responsáveis para nos proteger do desequilíbrio. Dv – Por que essa economia verde não é solução para os problemas ambientais e sociais? solón – Todos sabemos que as regras do mercado produzem distribuição injusta da riqueza, mas eu diria que o problema mais grave não é a distribuição desigual, mas o fato de que as leis da natureza serão alteradas pela oferta e a demanda. A natureza tem suas próprias regras, e elas não estão sujeitas às demandas de certificados de redução de emissão de gases do efeito estufa. Essas regras precisam ser respeitadas, independentemente dos benefícios monetários. Tomemos o exemplo de uma floresta. Ela gera diversos serviços para a produção da biodiversidade, mas a função dela que entrará no mercado é a captura e armazenamento de gases do efeito estufa. Isso já acontece no Brasil, com o projeto de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD). Pode emitir mais bônus de carbono quem diminuir mais o deflorestamento. Se você tem uma área que quase não é degradada, não emite bônus, porque não tem nada para redu-
A economia verde no fundo é um negócio onde não se cria um novo valor, mas se transforma em mecanismos financeiros os serviços que a natureza já oferece. É um mercado fictício” zir. Contudo, se você desflorestou 20% e se propõe a reduzir 5% ao ano, pode emitir bônus e comercializá-lo. O que está começando a acontecer é que muitos estão degradando florestas para ter alto nível de deflorestamento e assim poder emitir certificados. A lógica desse processo é gerar lucro, e não preservar a floresta. A imposição das regras do mercado à natureza levará assim a um desequilíbrio ainda maior. Dv – Qual é a relação entre economia verde e especulação financeira? solón – Na economia verde nada é criado. Quando uma árvore é cortada, você pode criar uma mesa ou um armário, mas a capacidade de redução de gases do efeito estufa das florestas não é criada, já é feita na natureza. A economia verde no fundo é um negócio onde não se cria um novo valor, mas se transforma em mecanismos financeiros os serviços que a natureza já oferece. É um mercado fictício. Nós não precisamos da ONU ou de nenhum outro organismo internacional para vender mesas ou sapatos, porque eles existem, alguém os faz e alguém os necessita, mas na economia verde é necessário que se crie de maneira fictícia um mercado para comercializar papéis. As indústrias do Norte, por exemplo, precisam reduzir os seus gases do efeito estufa e sai mais barato comprar um bônus de emissão de carbono de uma floresta no Brasil, para continuar contaminando, do que reduzir suas emissões de fato. Esse é um bom exemplo para perceber como no lugar de reduzirmos o desequilíbrio da natureza, o que estamos fazendo é emitir permissões para o Norte continuar contaminando. O que essa indústria compra, na prática, são papéis, ou seja, é somente especulação financeira. É por essa razão que eu creio que a economia verde vai gerar um processo especulativo que só pode dar origem a uma bolha financeira.
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Muitos dizem que temos que pensar na natureza que vamos deixar para as gerações futuras. A questão não é apenas as gerações futuras, mas a natureza em si mesma” Dv – E qual a dimensão desses mercados? solón – Será multimilionário e uma nova saída para enfrentar a crise do capitalismo. Para se resolver as crises do capital é preciso aumentar a taxa de lucro, e há diversas formas de fazer isso. A guerra é uma delas, assim como a redução de conquistas sociais, mas também o desenvolvimento de novos mercados e negócios. O negócio da economia verde é um desses novos mercados. É sobre isso que estamos falando quando discutimos esse mercado, e é nisso que está pautada a Rio+20. Dv – Por que a Rio+20 é tão importante para consolidar a economia verde? solón – Cada país pode desenvolver o seu próprio comércio de serviços ambientais. Para isso não necessitam da ONU. A ONU aparece para tornar esse mercado mundial. Para comercializar os bônus de carbono é necessário estar certificado pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo da Convenção sobre Mudanças Climáticas. Não há como simplesmente vender esses papéis no mercado dizendo: "olha, eu reduzi tanto". É preciso estabelecer indicadores e parâmetros para a redução, quanta ela custaria, quem pode comprar e como se dá a valorização. 34
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Dv – O sr. crê que os negociadores sairão do Rio de Janeiro com isso estabelecido? solón – É muito provável. A proposta de economia verde já está plenamente desenvolvida, e não há uma proposta alternativa consolidada. Para conquistar isso, eles vão tornar a economia verde mais palatável. A definição em si deverá ser bem genérica, mas a parte que diz respeito ao mandato para criar os instrumentos desse mercado será bem precisa. Dv – Nesse cenário, qual o papel dos países mais pobres? solón – O problema é que a maioria dos países em desenvolvimento não tem uma proposta alternativa. Há ainda casos como o Brasil, que considera que vai poder tirar uma boa fatia desse processo, porque é um país rico em serviços da natureza, já que tem a Amazônia. O que ocorre é que, ainda que os países mais pobres tenham negociadores conscientes dos problemas da economia verde, essas nações dependem da ajuda externa dos países europeus e dos Estados Unidos. Para manter a ajuda econômica, acabam aceitando as propostas do Norte sem maiores questionamentos. Dv – Do que deveria tratar uma Rio+20 realmente voltada para temas ambientais e sociais? solón – O que teríamos que discutir de verdade é porque 20 anos depois da primeira conferência estamos numa situação pior. Porque, tirando a camada de ozônio, onde acho que houve, sim, uma melhora, estamos pior em termos de biodiversidade, desertificação, degradação de florestas, derretimento dos pólos. Teríamos que nos perguntar o que podemos fazer para reverter esse processo. O conceito de desenvolvimento sustentável não dá conta disso, porque é um conceito antropocêntrico. Muitos
dizem que temos que pensar na natureza que vamos deixar para as gerações futuras. A questão não é apenas as gerações futuras, mas a natureza em si mesma. A ideia de desenvolvimento sustentável ainda toma a natureza como objeto do qual os seres humanos se servem. Os seres humanos e o capitalismo não respeitam as regras e nem os limites do conjunto do planeta. Esse deveria ser o tema central da Rio+20. Essa ideia de que vamos crescer para acabar com a pobreza é um mito. A única forma desse cenário mudar é via redistribuição, porque já não há como gerar mais riqueza sem destruir o planeta. No fundo, significa que precisamos discutir um sistema que não esteja baseado no crescimento e no mercado, mas na harmonia e na redistribuição da riqueza. Dv – Qual deveria ser o papel da Cúpula dos Povos, que ocorre em paralelo à Rio+20? solón – Ela pode debater saídas, alternativas ao capitalismo, à economia verde. A Cúpula não deve se limitar simplesmente a ser um espaço de crítica à Rio+20, mas um espaço de construção de alternativas à situação atual. Dv – Que contribuição a América Latina pode oferecer na construção dessa alternativa? solón – A América Latina tem uma tradição, preservada, principalmente, pelos povos indígenas. É a de viver em harmonia com a natureza e tomá-la como casa. Por isso, creio que precisamos recuperar nossas raízes. Essa é a contribuição que os povos latino-americanos podem oferecer ao mundo. O continente vive hoje em uma encruzilhada. De um lado está o desenvolvimentismo, aqueles países que querem seguir o modelo norte-americano e europeu, ainda que ele seja inviável. Do outro lado está a nossa tradição, sobretudo a dos povos indígenas, que aponta para modelos alternativos, baseados no respeito aos direitos da natureza. Essa encruzilhada é bastante conflituosa. Em alguns países amplos setores da população estão saindo da pobreza e convertendo-se em novos consumidores. É legítimo que saiam da pobreza, mas sabemos que isso aumenta a pressão sobre o planeta. Precisamos encarar que não podemos enfrentar a pobreza apenas do ponto de vista do consumo, mas do ponto de vista da qualidade de vida. Caso contrário, sairemos da pobreza para repetir esse esquema de depredação que nos trouxe até aqui. JUN2012
O problema do lixo
é o lucro to de favelas do Alemão nos mostra os benefícios que o trabalho com meio ambiente e reciclagem de resíduos pode trazer para a população em termos de qualidade de vida. Pode trazer também oportunidades para aquelas pessoas que têm dificuldade de ingressar novamente na sociedade, que estão reconquistando a sua cidadania e o mercado de trabalho. Isso para nós deveria ser o apelo principal de um evento como a Rio+20: a fusão da justiça social com a ambiental. Ou seja, priorizar não só a preservação do ambiente, mas a transformação das vidas e a possibilidade de geração de trabalho e renda. Para que isso ocorra, o grande lance é que não deixemos o mercado se apropriar de tudo. São necessários investimentos, por exemplo, nas cooperativas locais, para que elas possam assumir um papel central na articulação dentro da própria comunidade. Tomemos o caso do conjunto de favelas da Maré. Só com os resíduos da Maré seria possível criar uma cooperativa que desse conta do recado, gerasse uma boa remuneração. O excedente ainda serviria para a criação de uma cooperativa escola, uma cooperativa de saúde, entre outras. O trabalho de reciclagem pode gerar renda e também diminuir o lixo na comunidade. O lixo se acumula porque o Estado tem muita dificuldade de remover esse material. Percebemos que esse era um caminho para nós, que, ao sairmos do sistema prisional, somos tratados como lixo. Hoje, as nossas ações estão voltadas para os egressos do sistema prisional, seus familiares e seus filhos e filhas. Atuamos ainda em escolas, oferecendo palestras sobre meio ambiente, drogas e criminalidade. A nossa proposta é trazer essas discussões para o meio da comunidade. Focar apenas no egresso não dava conta do nosso principal objetivo, que é chamar a atenção dos jovens para que eles não venham a traçar o mesmo caminho.
Dentro do Alemão são mais de dez toneladas de lixo diário. Se conseguirmos tirar disso três toneladas de material reciclável por dia, dependendo do tipo de material, podemos gerar 60 postos de trabalho. Além disso, nós sabemos que o lixo tem várias consequências relacionadas à saúde e à presença de insetos e roedores. Ou seja, estamos falando de uma matéria-prima que não requer investimento, pode gerar renda e benefícios diretos para toda a comunidade. Por que não investir nisso, então? Essa não é uma resposta simples, mas o que podemos afirmar é que não há interesse na reciclagem dos resíduos produzidos ali. Primeiro, para seguir estimulando o consumo, mas principalmente porque as empresas que operam na limpeza daquele local ganham por tonelada. Esse é um dos grandes problemas quando discutimos o lixo: o lucro. Ainda que a coleta seletiva não interesse às companhias de limpeza, ela vai acabar acon-
tecendo por conta da pressão da sociedade. E já que vai acontecer, o que o mercado quer é que isso não aconteça por meio do trabalho de cooperativas e movimentos sociais. Se assistirmos a isso e não fizermos nada, estaremos perdendo uma grande possibilidade, que envolve não só jovens e egressos, mas as populações das comunidades excluídas desta cidade. É contra isso que estamos nos articulando. Nem todo jovem vai virar bandido, mas se a gente não permitir que ele tenha acesso a outras informações, cultura, arte, educação, e garantir os direitos que ele tem, a possibilidade de ele se tornar presa fácil de outros atrativos cresce muito. Pensar meio ambiente, favela e juventude a partir de uma perspectiva integrada pode não só tornar as comunidades mais limpas e gerar renda, como transformar também esse cenário, que não é bom para ninguém, principalmente para a juventude.
Robson Borges, da cooperativa Eu Quero Liberdade e autor deste artigo, estimula a reciclagem no Alemão foto: adair aguiar
A nossa experiência dentro do conjun-
a Cooperativa de Reciclagem Eu Quero Liberdade, no Alemão, no Rio de Janeiro, enfrenta os interesses das empresas de limpeza por Edio Araújo e Robson Borges
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Por um milhão de empregos de amandla!
tradução de Augusto Gazir
Amandla! é uma revista, em versões impressa e eletrônica, sul-africana, cujo lema é “levando o poder a sério”. Na sua edição de dezembro passado, nº 22/23, Amandla! publicou um artigo-manifesto de uma campanha da sociedade civil sul-africana pela criação de empregos e, ao mesmo tempo, pela redução da emissão de gases do efeito estufa. O argumento é que medidas econômicas para reverter as mudanças climáticas podem gerar um milhão de postos de trabalho no país. Democraciaviva publica aqui um resumo desse artigo. A versão integral pode ser lida, em inglês, no site www.amandlapublishers.co.za
A África do Sul tem um dos índices de desemprego mais altos do mundo. Sindicatos, movimentos sociais e organizações ambientais formaram uma coalizão e iniciaram uma campanha por um milhão de novos empregos, que podem ser criados com medidas de combate à crise climática. A África do Sul está em 12º lugar no ranking mundial de emissões de carbono. É o maior emissor no continente africano. Precisamos urgentemente reduzir nossa poluição. Precisamos usar a nossa riqueza natural para criar mais empregos, sem prejudicar o clima. Nós podemos e devemos: _ produzir nós mesmos a nossa eletricidade do vento e do sol _ deixar os nossos carros na garagem _ reformar nossas casas e prédios para que eles consumam menos energia e usem a água de forma mais eficiente _ produzir comida o suficiente para todos via técnicas como a agroecologia
Ao criarmos um milhão de empregos em nosso país, podemos estabelecer um modelo para combater o problema socioambiental de forma genuína. Isso é importante, uma vez que as elites globais acumulam fracassos em relação às mudanças climáticas. Enfrentamos a oposição de interesses poderosos, que lucram bastante com a mineração e a produção de energia. A campanha só terá sucesso com a mobilização de milhões de pessoas, trabalhadores, desempregados e ativistas. Dizemos de forma clara que a crise climática exige grande transformação na maneira como vivemos. Precisamos de uma mudança no sistema, mas precisamos de uma ponte entre onde estamos agora e essa meta vital. A campanha por um milhão de empregos oferece essa ponte. Energia renovável Energia renovável reduz as emissões de carbono e cria mais empregos do que estações nucleares e a carvão mineral. Pelo menos 76 mil empregos poderiam ser criados até 2020. Se a meta for ter 50% da nossa energia de fontes renováveis em 2020, isso criaria 150 mil empregos. A partir daí,
deveríamos continuar a desenvolver as nossas estações renováveis para que em 2040 toda a nossa energia venha de fontes sustentáveis. Transporte Mudanças pequenas, mas significativas, em como nos transportamos podem criar pelo menos 460 mil empregos. O transporte é responsável por mais de 10% da emissão de gases do efeito estufa na África do Sul. Desse total, 85% vem do transporte rodoviário. Metade disso, de carros particulares. Por volta de 2040, podemos ter emissões zero do setor de transporte, se: _ desenvolvermos transporte movido a combustível alternativo _ planejarmos melhor nossas cidades
Um número muito grande de novos empregos podem ser criados para: _ expandir o transporte sobre trilhos _ fabricar vagões, ônibus e táxis _ adaptar o transporte atual para ser mais econômico e funcionar com combustível mais limpo _ construir vias rápidas para ônibus
Agricultura industrial A agricultura industrial, dominada por grandes corporações, é responsável por 11% das emissões sul-africanas. A produção industrial de alimentos fechou 750 mil postos de trabalho no país na década passada. A produção em pequena escala, ao contrário, usa técnicas que protegem o meio ambiente e é intensa em mão de obra.
_ proteger nossos recursos naturais andré dahmer
_ tratar dos problemas deixados pelo apartheid e fornecer serviços básicos decentes à população
Isso acarretará em muito trabalho, o que significa empregos, e nós temos muitas pessoas que precisam de emprego decente. Um milhão de empregos não será suficiente, pelo contrário, mas já ajudarão a reduzir a pobreza e restaurar a dignidade.
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Ética para uma biocivilização Em sete tópicos, a discussão sobre os princípios e valores necessários para uma nova sociedade, que priorize a vida e o planeta POR Cândido Grzybowski
A ideia de uma biocivilização pressupõe a afirmação de um novo paradigma civilizatório. Esse é um desafio monumental, de ordem filosófica e política, pois envolve a desconstrução de pensamentos, valores e ações, pilares da civilização capitalista industrial, produtivista, consumista, machista e racista, que invadem nossas vidas, moldam nossas cabeças, organizam a economia e o poder na sociedade. A tarefa é monumental, mas é possível. A história humana está repleta de exemplos nesse sentido. A jornada, contudo, é árdua e longa, para uma ou mais gerações. Para a biocivilização não basta maquiar de verde o que temos e continuar crescendo. Precisamos que a sustentabilidade de todos e todas, sem exclusões, de toda a vida e de todo planeta, se torne a regra. A atenção neste artigo é a princípios e valores já presentes de forma subordinada e fragmentada no interior da civilização em crise. Esses princípios e valores definem a biocivilização e podem ser potencializados como forças emergentes para esse novo paradigma.
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A reconstrução da nossa relação com a natureza é hoje condição sine qua non para a biocivilização. Antes de qualquer coisa, somos parte da biosfera, somos natureza nós mesmos, natureza viva, dotada de consciÉTICA DA ência. A integridade do planeta é um valor INTEGRIDADE em si. Devemos nos adaptar às suas condiDA VIDA E DO ções e ritmos, possibilitar a renovação e a PLANETA regeneração da natureza. Faz-se necessário que voltemos a nos olhar como parte dos nossos territórios, o nosso local de existência, com as suas possibilidades e limites. Esse pode ser o caminho para fazer da relação entre sociedade e natureza uma de trocas vitais e respeito mútuo. Trata-se de seguir um percurso mental e prático de redescoberta dos laços que nos unem ao mundo natural e dos laços de convívio social. A primeira obrigação para isso é desativar a máquina de produção e acumulação de riqueza material e financeira. O desenvolvimento que tem como condição o crescimento combina a apropriação e o uso sem limites dos recursos naturais e a exploração dos que trabalham. A questão ética central é como abandonar o estilo de vida do ter mais, produzindo sempre mais lixo e destruição, para dar lugar ao ser mais, mais feliz, mais solidário, mais consciente das responsabilidades em relação ao planeta.
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Cuidado, convivência e compartilhamento são princípios e valores que devem pautar a organização da economia e do poder na biocivilização. O cuidado pode ÉTICA DO ser tomado entre os três como o princípio CUIDADO, DA fundante, apesar da sua interdependência com os outros dois. A vida não existiria CONVIVÊNCIA E sem o cuidado, essencial ao cotidiano. DO COMPARTIO movimento feminista nos lembra que LHAMENTO sem o cuidado não existiriam bebês e crianças, e a vida não se reproduziria. Na economia dominante, onde o mercado é central, esse é um trabalho desvalorizado, considerado doméstico, privado. Ele é realizado fundamentalmente pelas mulheres, que carregam o fardo da dupla jornada, vítimas da lógica machista. O cuidado ocuparia lugar central na economia da biocivilização. Ele seria indispensável para a vida em comunidade e para essa comunidade se organizar de acordo com as potencialidades e limites do seu local e da biosfera. Por não haver o cuidado, a atmosfera foi colonizada pelas emissões de carbono, e hoje a humanidade está ameaçada, assim como toda forma de vida. Temos onde nos inspirar para alimentar uma filosofia baseada no cuidado, na convivência e no compartilhamento: o significado do bem viver para povos indígenas, o já citado movimento feminista, as experiências de conhecimento compartilhado dos softwares livres e do copyleft, as práticas de economia solidária e agroecologia.
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A lógica dos bens comuns é a resposta à dinâmica atual de acumulação de riquezas, pela qual a felicidade passa pelo ter mais e mais bens materiais. A desmercantilização ÉTICA dos bens comuns é condição incortonável DOS para a biocivilização. A prioridade ao bem comum significa trazer o debate sobre a BENS vida para o centro das atenções. COMUNS Os bens comuns não são comuns a priori, são socialmente tornados comuns, são os que as relações sociais identificam e gerem como tais. Eles não necessariamente negam a industrialização, mas a subordinam ao comum. A necessidade sentida, almejada e enfrentada coletivamente leva à criação dos bens comuns. A desenfreada busca por lucros encarece e destrói os bens comuns. Os bens comuns são restagados como tais pela luta social. Uma das principais hoje é a luta contra a privatização da água. Conceitos novos, como o da colonização da atmosfera, dos oceanos, dos mares e da biodiversidade pelas grandes corporações capitalistas e pelas sociedades mais ricas, ganham densidade.
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A luta por justiça e igualdade tem sido o motor da história. Nunca a humanidade foi tão desigual como no contexto atual de abundância excludente. ÉTICA DA Ao mesmo tempo, nunca a huJUSTIÇA manidade teve tão ampla consSOCIAL, ciência da ameaça que significa AMBIENTAL as diferentes formas de desigualE ECOLÓGICA dade, características intrínsecas da civilização industrial. É fundamental associarmos a luta por justiça social à luta por justiça ambiental. Por exemplo, estamos praticando hoje uma injustiça entre gerações, ao não deixarmos para o futuro uma natureza com a capacidade de regeneração que encontramos. A reflexão sobre ética e justiça tem aqui uma tríplice dimensão. Além da social e da ambiental, a ecológica. Afinal, existe ou não uma questão de ética ecológica, de direitos e de justiça da natureza em si? Não é isso que se conclui da visão cósmica do bem viver e de uma ecologia em que a natureza é sujeito detentora de direitos? Podemos ser contra o direito de sementes e animais se realizarem como seres vivos, da atmosfera e o clima não serem alterados? Como tudo isto requalifica a fundamental luta por justiça social? Por mais difíceis que tais questões sejam, a busca de respostas para elas nos coloca no caminho da biocivilização, mesmo que ainda muitas gerações tenham que se debruçar sobre tais perguntas.
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foto: RATÃO DINIZ
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Direitos humanos não são privilégios. Para serem direitos devem ser iguais para todos e todas. Se servem apenas para certos grupos, ÉTICA DOS certas classes ou certos povos, são DIREITOS expressões de privilégios. A comE DAS RESPON- preensão dos direitos como bem SABILIDADES comum de uma cultura política HUMANAS em permanente construção e disputa é o que os torna importantes na reengenharia social rumo à sustentabilidade da vida e do planeta. Não existem direitos humanos sem responsabilidades humanas. A condição para ser titular de direitos, todos os direitos, é reconhecer a mesma titularidade em todas as pessoas. Para ter direitos é necessário, ao mesmo tempo, ser responsável pelos direitos dos outros. Trata-se de uma relação de interdependência. Como imaginário e filosofia para uma biocivilização, seria necessária a elaboração de uma Carta de Responsabilidades Humanas, em paralelo ao aprofundamento da Carta de Direitos Humanos, além da incorporação a esse debate da justiça ecológica, do direito da integridade da biosfera e da capacidade de regeneração natural do planeta. Uma Carta dos Povos para uma Biocivilização pode ser uma forma de conectar e potencializar forças da cidadania na gigantesca tarefa pela frente.
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É impossível pensar alternativas para a humanidade e para o planeta sem discutir a contraditória articulação dos princípios da igualdade, da diversidade e da individualidade. Até que ponto a humanidade está disÉTICA DA posta a rever e renunciar hábitos e padrões e IGUALDADE, priorizar a vida em sua totalidade, nos termos DIVERSIDADE aqui descritos? Se eticamente não há supeE INDIVIDUALIriores ou inferiores, como garantir o igual direito à vida a todos os seres vivos? DADE Por sua vez, a igualdade para ser justa deve respeitar a diversidade. É a igualdade na diversidade, oposta a homogeneização. Ao mesmo tempo, a diversidade social e cultural não pode ser motivo para justificar a desigualdade social. De um ponto de vista natural, a diversidade é a lei da vida. É na diversidade que a vida se realiza. A diversidade faz parte da ética social, da ética ambiental e da ética ecológica e é, assim, fundamento da biocivilização, condição para a vida sustentável. Se o social, a coletividade e a interdependência são elementos essenciais do viver humano, para que eles não se traduzam em dominação, é fundamental que sejam apropriados de forma consciente pela sociedade, que as individualidades não desapareçam neles e por causa deles. A individualidade é a afirmação ética e política da experiência de viver de cada um, e cada um como parte da coletividade. A individualidade só existe com base em princípios e valores comuns que reconhecem o direito de individualidade, sem distinção. Ela é condição de emancipação social, de luta por justiça social, de construção de uma biocivilização. Não é possível a biocivilização sem uma ética de paz. O desmonte da dominação atual e a transformação de relações e culturas são processos políticos que se definem no fazer, no qual a busca ousada, generosa, motivada por grande sonhos e utopias, mobiliza e cria as forças de empuxe. Não existe história sem forças em movimento, em disputa. O princípio ético aqui é fazer as disputas de forma construtiva, renunciando à violência armada de qualquer tipo e apostando na paz. A estratégia passa pelos incertos e tortuosos descaminhos da democracia, pela radicalização e a democratização da própria democracia.
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ÉTICA DA ESTRATÉGIA DE TRANSFORMAÇÃO, DEMOCRACIA E PAZ
Este artigo é uma versão resumida do texto “Caminhos e descaminhos para a biocivlização”, apresentado pelo autor durante o Ateliê Internacional para a Sustentabilidade da Vida e do Planeta, realizado no Rio de Janeiro, de 9 a 12 de agosto de 2011. O texto integral pode ser acessado em www.ibase.br
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A alternativa
ecossocialista o ecossocialismo é uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais contra o inimigo comum, as políticas neoliberais por Michael Löwy
O atual modelo de desenvolvimento está em crise. É ao mesmo tempo uma crise econômica e uma crise ecológica. Ambas resultam do mesmo fenômeno: um sistema que transforma tudo – a terra, a água, o ar que respiramos, os seres humanos – em mercadoria e que não conhece outro critério a não ser a expansão dos negócios e a acumulação de lucro. As duas crises são aspectos interligados de uma crise mais geral, a crise da civilização capitalista industrial moderna. O discurso hegemônico atual sobre o “desenvolvimento sustentável”, que se manifesta, entre outros contextos, no processo oficial da Rio+20, é incapaz de propor alternativas efetivas, porque se situa nos limites impostos pela economia de mercado, isto é, pelas regras do lucro, da feroz competição e da acumulação ilimitada, que são inerentes ao sistema capitalista. Os cientistas nos preveniram: se continua o business as usual, no futuro próximo enfrentaremos desastres sem precedente na história humana. O que nos propõe o Rascu-
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nho Zero da Rio+20 é um business as usual verde, uma folha de parreira verde para tentar esconder a nudez de um sistema intrinsecamente perverso e destruidor. Há alguns anos atrás, quando se falava dos perigos de catástrofes ecológicas, os autores se referiam ao futuro dos nossos netos ou bisnetos, a algo que estaria no futuro distante, dentro de cem anos. Agora, porém, os processos de devastação da natureza, de deterioração do meio ambiente e de mudança climática se aceleraram a tal ponto que não estamos mais discutindo um futuro a longo prazo. Estamos discutindo processos que já estão em curso. A catástrofe já começou, essa é a realidade. E realmente estamos numa corrida contra o tempo para tentar impedir, brecar, conter esse processo desastroso. Quais são os sinais que mostram o caráter cada vez mais destrutivo do processo de acumulação capitalista em escala global? O mais óbvio e perigoso é a mudança climática, um processo que resulta dos gases do efeito de estufa emitidos pela indústria, pelo agronegócio e pelo sistema de transporte das sociedades capitalistas modernas. Essa mudança, que já começou, terá como resultado não só o aumento da temperatura em todo planeta, mas a desertificação de setores inteiros de vários continentes, a elevação do nível do mar, o desaparecimento de cidades marítimas – Veneza, Asmterdã, Hong Kong, Rio de Janeiro. Uma série de catástrofes que se colocam no horizonte dentro de – não se sabe – 20, 30, 40 anos, isto é, no futuro próximo.
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paulica santos
Se você não quer falar do capitalismo, não adianta falar do meio ambiente, porque a destruição, a devastação, o envenenamento ambiental são produtos do processo de acumulação do capital”
A questão do capitalismo Tudo isso não resulta do excesso de população, como dizem alguns, nem da tecnologia em si, abstratamente, ou tampouco da má vontade do gênero humano. Trata-se de algo muito concreto: as consequências do processo de acumulação do capital, em particular, na sua forma atual, da globalização neoliberal sob a hegemonia do império norte-americano. Esse é o elemento essencial, motor dessa lógica destrutiva que corresponde à necessidade de expansão ilimitada – aquilo que Hegel chamava de “má infinitude” –, um processo infinito de acumulação de mercadorias, acumulação do capital, acumulação do lucro, inerentes à lógica do capitalismo. A questão ecológica é a questão do capitalismo. Para parafrasear uma observação do filósofo da Escola de Frankfurt Max Horkheimer – “se você não quiser falar do capitalismo, é melhor não falar do fascismo” –, eu diria também: se você não quer falar do capitalismo, não adianta falar do meio ambiente, porque a questão da destruição, da devastação, do envenenamento ambiental é produto do processo de acumulação do capital. Logo, a questão que se coloca é a de uma alternativa, mas de uma alternativa que seja radical. As tentativas de soluções moderadas se revelam completamente incapazes de enfrentar esse processo catastrófico. O chamado Tratado de Kioto está muito aquém, quase infinitamente aquém, do que seria o necessário, e, ainda assim, o governo norte-americano, principal poluidor planetário, recusa-se a assinar.
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O Tratado de Kioto, na realidade, propõe resolver o problema das emissões de gases do efeito estufa por intermédio do assim chamado “mercado dos direitos de poluir”. As empresas que emitem mais CO2 vão comprar de outras que poluem menos seus direitos de emissão. Isso seria “a solução” do efeito estufa. Obviamente, as soluções que aceitam as regras do jogo capitalista, que se adaptam às regras do mercado, não são soluções, porque são incapazes de enfrentar a crise ambiental, uma crise que se transforma, devido à mudança climática, numa crise de sobrevivência da espécie humana. A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de dezembro de 2009 em Copenhague foi mais um exemplo clamoroso da incapacidade – ou da falta de interesse – das potências capitalistas para enfrentar o dramático desafio do aquecimento global. A montanha de Copenhague pariu um rato, uma miserável declaração política, sem nenhum compromisso concreto e cifrado de redução das emissões de gases do efeito de estufa. Infelizmente, pode-se prever que o resultado da Rio+20 não será diferente. Ecossocialismo Precisamos pensar, portanto, em alternativas radicais, alternativas que coloquem um outro horizonte histórico, mais além do capitalismo, mais além das regras de acumulação capitalista e da lógica do lucro e da mercadoria. Como uma alternativa radical é aquela que vai à raiz do problema, essa alternativa é o ecossocialismo, uma proposta estratégica que resulta da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista, a reflexão marxista. Existe hoje em escala mundial uma corrente ecossocialista. Há um movimento ecossocialista internacional, que, recentemente, por ocasião do Fórum Social Mundial de Belém, em janeiro de 2009, publicou uma declaração sobre a mudança climática. Existe no Brasil uma rede ecossocialista que publicou um manifesto, há alguns anos. O ecossocialismo é uma reflexão crítica. Em primeiro lugar, crítica à ecologia não socialista, à ecologia capitalista ou reformista, que considera possível reformar o capitalismo, atingir um capitalismo mais verde, mais respeitoso ao meio ambiente. Trata-se da crítica e da busca de superação dessa ecologia reformista, limitada, que não aceita a perspectiva socialista, que não se relaciona com o processo da luta de classes, que não coloca a questão da propriedade dos meios de produção. Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico, por exemplo, da União Soviética, onde a perspectiva socialista se perdeu rapidamente com o processo de burocratização, e o resultado foi um processo de industrialização tremendamente destruidor do meio ambiente. Desse modo, o ecossocialismo implica numa crítica profunda das experiências e das concepções tecnocráticas, burocráticas e não ecológicas de construção do socialismo. Isso nos exige também uma reflexão crítica sobre a herança marxista, o pensamento e a tradição marxista, sobre a questão do meio ambiente. Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica me parece completamente equivocada. Ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à idéia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para 42
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O ecossocialismo é uma reflexão crítica. Em primeiro lugar, crítica à ecologia capitalista ou reformista. Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico, por exemplo, da União Soviética”
participar da vida política e social. Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de “O Capital”, ele explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspectiva está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida. O problema é que a afirmação de Marx de que o socialismo é a solução da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção foi interpretado por muitos marxistas de forma mecânica: o crescimento das forças produtivas do capitalismo se choca com os limites que são as relações de produção burguesas – a propriedade privada dos meios de produção – e portanto a tarefa da revolução socialista seria simplesmente destruir as relações de produção existentes, a propriedade privada, e permitir assim o livre desenvolvimento das forças produtivas. Parece-me que essa interpretação deve ser criticada, porque ela pressupõe que as forças produtivas sejam algo neutro. O capitalismo as teria desenvolvido até um certo ponto e não pode ir além porque foi impedido por aquela barreira, aquele obstáculo que deve ser afastado para permitir uma expansão ilimitada. Essa visão deixa de lado o fato de que as forças produtivas existentes não são neutras. Elas são capitalistas em sua dinâmica e seu funcionamento e portanto são destruidoras da saúde do trabalhador, bem como do meio ambiente. A própria estrutura do processo produtivo, da tecnologia e da reflexão científica a serviço dessa tecnologia e desse aparelho produtivo é inteiramente impregnada pela lógica do capitalismo e leva inevitavelmente à destruição dos equilíbrios ecológicos do planeta. JUN2012
O que se necessita, por conseguinte, é uma visão muito mais radical e profunda do que seja uma revolução socialista. Trata-se de transformar não só as relações de produção, as relações de propriedade, mas a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparelho produtivo. Isto é, na minha concepção, uma das idéias fundamentais do ecossocialismo. Há que se aplicar ao aparelho produtivo a mesma lógica que Marx aplicava ao aparelho de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris, quando ele diz o seguinte: os trabalhadores não podem apropriar-se do aparelho de Estado burguês e usá-lo a serviço do proletariado, não é possível, porque o aparelho de Estado burguês nunca vai estar a serviço dos trabalhadores. Então, trata-se de destruir esse aparelho de Estado e criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser destruído ou ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores e posto a trabalhar a seu serviço. Precisa ser estruturalmente transformado. A título de exemplo, o sistema produtivo capitalista funciona com base em fontes de energia fósseis, responsáveis pelo aquecimento global – o carvão e o petróleo –, de modo que um processo de transição ao socialismo só é possível quando houver a substituição dessas formas de energia pelas energias renováveis, que são a água, o vento e, sobretudo, a energia solar. Por isso, o ecossocialismo implica numa revolução do processo de produção das fontes energéticas. É impossível separar a ideia de socialismo, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes de energia, em particular do sol – alguns ecossocialistas falam do “comunismo solar”, pois entre o calor, a energia do sol, o socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva. Mas não basta tampouco transformar o aparelho produtivo, é necessário transformar também o estilo, o padrão de consumo, todo o modo de vida em torno do consumo, que é o padrão do capitalismo baseado na produção massiva de objetos artificiais, inúteis e mesmo perigosos. A lista de produtos, mercadorias e atividades empresariais que são inúteis e nocivas aos indivíduos, é imensa. Tomemos um exemplo evidente: a publicidade. A publicidade é um desperdício monumental de energia humana, de trabalho. Árvores destruídas para gasto de papel, eletricidade e tudo isso para convencer o consumidor de que o sabonete x é melhor que o sabonete y. Eis um exemplo evidente do desperdício capitalista. Logo, se trata de criar um novo modo de consumo e um novo modo de vida, baseado na satisfação das verdadeiras necessidades sociais, que é algo completamente diferente das pretensas e falsas necessidades produzidas artificialmente pela publicidade capitalista.
Transição Uma reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo é necessária, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isso significa uma economia de transição ao socialismo, na qual a própria população decide, num processo de planificação democrática, as prioridades e os investimentos. Essa transição conduziria não só a um novo modo de produção e a uma sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização, ecossocialista, mais além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade e da produção ao infinito de mercadorias inúteis. Se ficarmos só nisso, porém, seremos criticados como utópicos. Os utópicos são aqueles que apresentam uma bela perspectiva de futuro e a imagem de uma outra sociedade. Isso é obviamente necessário, mas não é suficiente. O ecossocialismo não é só a perspectiva de uma nova civilização, uma civilização da solidariedade – no sentido profundo da palavra, solidariedade entre os humanos, mas também com a natureza –, como também uma estratégia de luta, desde já, aqui e agora. Assim, o ecossocialismo é uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, das lutas de classe e das lutas ecológicas, contra o inimigo comum que são as políticas neoliberais, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o imperialismo norte-americano, o capitalismo global. Este é o inimigo comum dos dois movimentos, o movimento ambiental e o movimento social. Não se trata de uma abstração, há muitos exemplos. No Brasil, como um belo exemplo do que é uma luta ecossocialista, tivemos o combate heróico de Chico Mendes, que pagou com a sua vida o seu compromisso de luta com os oprimidos. Como essa, há muitas outras lutas. Seja no Brasil, em outros países da América Latina e no mundo inteiro, cada vez mais se dá essa convergência. Mas ela não ocorre espontaneamente, tem que ser organizada. Essa me parece ser a resposta ao desafio, a perspectiva radical de uma transformação revolucionária da sociedade para mais além do capitalismo. Sabendo que o capitalismo não vai desaparecer como vítima de suas contradições, como dizem alguns supostos marxistas (já um grande pensador marxista do começo do século 20 Walter Bejamin dizia que, se temos uma lição a aprender, é que o capitalismo não vai morrer de morte natural, será necessário acabar com ele). Precisamos de uma perspectiva de luta contra o capitalismo, de um paradigma de civilização alternativo e de uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, desde agora plantando as sementes dessa nova sociedade. A alternativa ecossocialista implica, em última análise, numa transformação revolucionária da sociedade. Mas o que significa revolução? Walter Benjamin escrevia o seguinte em 1940: “As revoluções não são as locomotivas da história, como pensávamos. Elas são o ato da humanidade, que viaja nesse trem, de tirar os freios de urgência”. O trem da civilização capitalista, do qual somos todos passageiros, está avançando, com uma velocidade crescente, em direção a um abismo, à catástrofe ecológica. Precisamos puxar os freios de urgência, antes que seja tarde demais.
É impossível separar a ideia de uma nova sociedade da ideia de novas fontes de energia, em particular do sol – alguns ecossocialistas falam do ‘comunismo solar’”
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A nova classe média? Em “Nova classe média? O traba- marcio pochmann critica lho na base da pirâmide social brasileira” (Boitempo, São Paulo, 2012), Marcio Pochmann critica a ideia de que o recente período de desenvolvimento do Brasil tenha sido marcado pelo surgimento de uma nova classe média. Segundo o autor, essa tese é difundida a partir de uma perspectiva econômica mercadológica que, em vinculação com a grande mídia, busca entender o atual cenário socioeconômico brasileiro a partir da perspectiva do consumo. Para Pochmann, ao analisarmos as dinâmicas de trabalho e produção da nossa formação social e o desenvolvimento de diversos segmentos da economia e seus salários correspondentes, o que se verifica é um aumento significativo do trabalho de base (no qual o salário correspondente é até 1,5 salário mínimo) na pirâmide social brasileira. Na tese defendida pelo livro essa distinção assume importância central, já que caracterizações diferentes da “atual metamorfose pela qual passa a estrutura social brasileira” podem levar a definições igualmente diferentes das políticas públicas e econômicas a serem desenvolvidas pelo Estado. Para sustentar sua tese, o economista recorre a uma farta catalogação e demonstração de dados e indicadores econômicos, buscando mapear as diferenças centrais dos três últimos períodos nos quais se divide a história econômica do país. Segundo Pochmann, o período que vai de 1960 a 1980 expressou um aumento da renda per capita extremamente forte, com crescimento médio anual de 4,6% ao ano. Porém, isso se deu com uma queda relativa do rendimento do trabalho na renda nacional, de 11,7%, e aumento de quase 21,9% na desigualdade em relação à distribuição da renda do trabalho. A partir de 1981 inicia-se o período que se desdobra até 2003, marcado pela estagnação econômica e o aumento da renda dos ocupados
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em novo livro a tese de que o recente período de crescimento do brasil tenha sido marcado pela ascensão de um novo estrato médio Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira
por carlos leal
em uma média de somente 0,2% ao ano. Esse período estaria subdividido em dois momentos: entre 1981 e 1995 predominaram as altas taxas de inflação e o aumento do déficit estatal, e entre 1995 e 2003 observa-se o “saneamento do Estado” e a estabilização monetária. Porém, durante todo o período que vai de 1981 até 2003, a queda do rendimento do trabalho na renda nacional é praticamente ininterrupta e constante, totalizando 23% em 2003. A partir de 2004, o autor identifica um terceiro período, que se estende até os dias atuais (o livro trabalha com índices catalogados até o ano de 2010) e no qual se percebe uma recomposição da renda do trabalho e o aumento das taxas médias de crescimento econômico. Segundo ele, nesse período a renda per capita dos brasileiros cresceu 3,3% ao ano, enquanto o índice geral do trabalho cresceu 5,5% ao ano. Pochmann ainda destaca que “a participação do rendimento do trabalho na renda nacional aumentou 14,8% e o grau de desigualdade social na distribuição pessoal da renda do trabalho reduziu-se em 10,7%”. Aqui, cabe a ressalva de que o livro se abstém de uma caracterização mais estrutural, calcada na economia política, dos fatores que determinam a emergência de um novo período de de-
Marcio Pochmann Boitempo, São Paulo, 2012
senvolvimento, substantivamente diferenciado daquele que atingiu seu ápice nos anos 1990. Se indicativos de ordem quantitativos (como salário, composição da mão de obra e o desenvolvimento dos diversos setores da economia) são exaustivamente analisados por Pochmann, as questões acerca da inserção periférica do Brasil na divisão internacional do trabalho, o predomínio do capital financeiro internacional na orientação da política econômica do país e a dinâmica contraditória da relação capital/trabalho não são analisadas pelo autor. Pochmann sinaliza como principal responsável pela mutação por que passa a economia nacional o avanço de relações trabalhistas formais em detrimento de formas de trabalho não assalariadas e informais, acompanhado do já citado aumento da participação dos salários no total da renda nacional. Essa mudança possibilitou a diminuição da condição de pobreza (de 37,2% para 7,2%) e da taxa de desemprego para um setor significativo da força de trabalho. A ênfase nesse aspecto da conjuntura econômica é que possibilitará, na visão do economista, uma nova ordenação nas políticas públicas, voltando-as para a universalização de direitos, avanços na legislação trabalhista e divisão da renda.
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A atenção quase exclusiva Hoje em dia, quando se fala em drogas no dedicada ao crack no Brasil Brasil, uma onomatopéia nos vem à cabeça: crack. Poderia ser atual não se justifica. crack!, com um ponto de exclamação. Tudo para dar o toque O problema das drogas não será de urgência que acompanha qualquer discussão, pública ou não, sobre o tema. Pela frequência com que esse psicoativo resolvido sem outro paradigma aparece nas manchetes de jornais, matérias televisivas e dede políticas públicas bates acalorados entre membros do governo e profissionais por Pedro Vicente Bittencourt
de variadas formações, era de se esperar que o conhecimento sobre esse derivado da cocaína fosse mais difundido. Ledo engano: o desconhecimento é generalizado. Como surgiu o crack? De onde vem? Como funciona no organismo? Por que, de uma hora para outra, se alastrou com tanta velocidade pelo Brasil, inclusive em cidades do interior? E, a pergunta de um milhão de reais, como fazer para que a droga deixe de cobrar o alto preço em vidas, atualmente a sua marca trágica? Se todas essas respostas estivessem dando sopa por aí, provavelmente sequer estaríamos falando do assunto. Já que aqui estamos, vamos ver até onde chegamos com essas perguntas. Afinal, o método socrático sempre trouxe bons resultados na produção de conhecimento.
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Não é a existência em si da droga que causa danos, mas o seu uso. Mais especificamente, o seu uso e as suas consequências. A diferença não é trivial, porque define, em última instância, a forma de lidar com o problema”
Perguntas e respostas Uma das consequências não intencionais (embora óbvia) da guerra às drogas e, especificamente, da criminalização delas é que toda e qualquer atividade que as envolve ocorrerá ao resguardo dos olhares públicos. Ninguém vai arriscar pagar as duras penas que a lei impõe por “trazer consigo” essas substâncias. Assim, fica difícil conhecer a história das drogas ilegais, incluído aí o crack. É certo que ocorreram nos Estados Unidos os primeiros registros da nova droga. O nome crack é uma referência ao som das pedras estalando ao queimarem em caximbos. Uma onomatopéia. O relato mais sensato e verossímil é que, durante os anos 1980, a política de interdição aos entorpecentes nos EUA teve como resultado o aumento do preço da cocaína nas ruas. Buscava-se, mediante a escassez da oferta, tornar o preço dos psicoativos ilícitos alto demais e, assim, diminuir seu consumo. Resultado: o sempre ágil mercado do ilícito teve de recorrer à criatividade para manter nas ruas um produto “bom” e barato. Com as tradicionais armas do capitalismo e do mercado, o crack se tornou um rotundo sucesso. Para desespero da sociedade. A cocaína chama-se, em termos técnicos, cloridrato de cocaína, um alcalóide, um sal, que requer para a sua produção uma variedade de outras substâncias químicas, algumas caras e raras, portanto relativamente fáceis de controlar, e outras tão simples e baratas quanto a gasolina, cal e solventes. Com esses produtos, extrai-se da inofensiva folha da coca o princípio ativo psicotrópico. O custo de tal produção é alto, não apenas pelo preço dos insumos necessários ao processamento, mas também porque muitos deles são inflamáveis, o que amiúde provoca acidentes e prejuízos. Em vez de seguir toda a cadeia de reações até chegar ao cloridrato de cocaína, por que não parar no meio do caminho, quando já houver uma boa concentração do principio ativo da droga? O crack é justamente o resultado dessa filosofia de mercado: um produto mais barato, que pode ser produzido em cozinhas domésticas, a partir da pasta base, que nada mais é do que o entorpecente ainda em estado bruto e mais propício para o transporte em grandes quantidades. Qual a diferença mais importante entre o crack e a cocaína? Em vez de ser aspirado, o crack é fumado. Isso causa uma diferença essencial na forma com que a droga age em nosso organismo. Aspirada, a cocaína percorre o nosso corpo de maneira difusa. Apenas parte da substância vai para o cérebro, onde começa a fazer efeito. Na prática, isso significa que o efeito da droga leva mais tempo para começar, demora mais para terminar e é mais ameno. Se a mesma dose do princípio ativo for consu-
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mida na forma de crack, o percurso no organismo será outro. Ao ser fumada, a droga entra pelo pulmão, um órgão muito vascularizado e com grande superfície de contato. De uma só vez, uma quantidade enorme entra na corrente sanguínea. Do pulmão, a substância será bombeada diretamente para o cérebro. O efeito começará mais rapidamente, durará menos tempo e será mais intenso. Por isso acredita-se que o crack é tão viciante. Essas informações ajudam a compreender um pouco melhor o crack. Contudo, não é a existência em si da droga que causa danos, mas o seu uso. Mais especificamente, o seu uso e as suas consequências. A diferença não é trivial, porque define, em última instância, a forma de lidar com o problema. Políticas para o crack Desde 2010, o governo federal divisou dois projetos voltados para lidar com as drogas em geral e com o crack, em particular. Encomendou-se à Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, um mapeamento das “cenas de uso de crack”. Especificamente no município do Rio de Janeiro, o secretário de Assistência Social, depois de ocupar a Secretaria de Ordem Pública e lá desenvolver as operações Choque de Ordem, parece ter importado de uma pasta para a outra a mesma filosofia de ataque aos problemas. Eis que agora a população carioca convive com o novo termo “acolhimento compulsório”. Custa-nos compreendê-lo, pois nunca foi devidamente esclarecido. Note-se que o acolhimento compulsório refere-se apenas aos casos com menores de idade, pois, afirmam as autoridades, pode-se inferir que, já que esses meninos e meninas estão nas ruas fumando crack, a família não cuida deles. No caso de maiores de idade, é mais difícil restringir o direito constitucional de ir e vir de uma pessoa em pleno gozo dos seus direitos civis. No dia 11 de abril de 2012, o jornal O Globo publicou uma grande matéria sobre o crack. O jornal pediu à Secretaria Municipal de Assistência Social que fizesse um “mapeamento informal” do problema. A expressão incomoda. Informalmente, o jornal informa haver cerca de 3.000 usuários e usuárias circulando pelas chamadas “cracolândias”, dos quais 20% seriam menores de idade. A objetividade desses dados é altamente questionável, mas vamos lá. Segundo o jornal, seria o caso dizer que, no município do Rio de Janeiro, 20% das pessoas que usam crack poderiam ser incluídas na política de acolhimento compulsório. Uma vez “acolhidos”, os menores seriam encaminhados a abrigos e centros de tratamento. À primeira vista, pode parecer uma solução interessante, mas será mesmo assim? O objetivo da política é resolver o problema do uso abusivo de uma substância psicoativa, ou apenas retirar das ruas quem traz consigo chagas da miséria, das quais o consumo de crack é apenas mais uma? Se o objetivo for o primeiro, e esperemos que assim seja, parece boa ideia compreender as causas que levaram cidadãos e cidadãs
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brasileiros a dedicar parcela tão significativa de suas energias para alimentar a adição. Terá o consumo do crack competido com quais outras alternativas de engajamento social? Houve escolha possível entre esporte, cultura, educação, família acolhedora, de um lado, e o crack e o mercado ilícito, de outro? A rigor, faltam ainda estudos para poder ser taxativo ao responder as perguntas acima. Há, contudo, alguns indícios do que anda ocorrendo. Em dezembro de 2009, a Secretaria Municipal de Assistência Social inaugurou um programa piloto chamado Embaixada da Liberdade, em Manguinhos. Tratava-se de um espaço de acolhimento de jovens de até 17 anos e 11 meses, no qual se ofereciam dormitórios, alimentação e atividades lúdicas e culturais, para atrair a população mais vulnerável ao crack. Em parceria com os serviços locais de saúde, acompanhava-se o tratamento dos usuários e o reingresso na escola ou no trabalho. A casa vivia cheia, beirando o limite de sua capacidade. Desde o final de 2010, a Embaixada não funciona mais. Imbróglio Hoje, se observa na política da cidade do Rio de Janeiro com relação às drogas duas tendências. Em primeiro lugar, o impulso às já famosas UPPs. Em segundo lugar, as rondas da Secretaria Municipal de Assistência Social, que gerencia o tal acolhimento compulsório. Sobre o primeiro caso, pragmaticamente nos resta pressionar o governo e torcer pelo melhor. Essa política não deve ser revertida. Ela traz valorização dos imóveis no entorno das UPPs, contribui para a imagem de um Rio de Janeiro calmo e pacífico, além de ter reduzido, de fato, os índices de criminalidade violenta nas comunidades pacíficadas. Isso não quer dizer que a Polícia Militar do Rio esteja isenta de críticas ou que o governo do Estado não deva ser impelido a levar a cidadania plena às áreas antes dominadas pelas armas do tráfico e pelo tráfico de armas. Críticas à ausência das secretarias de Esporte e Lazer, de projetos de educação e capacitação profissional e de maior articulação com a sociedade civil são pertinentes e necessárias. Devemos consertar o que já foi feito. Trocar o pneu com o carro em movimento.
Hoje, se observa na política da cidade do Rio de Janeiro com relação às drogas duas tendências. Em primeiro lugar, o impulso às já famosas UPPs. Em segundo lugar, as rondas da Secretaria Municipal de Assistência Social, que gerencia o tal acolhimento compulsório”
Já no que se refere à atenção ao crack e, mais específicamente, a quem o consome, é preciso, sim, questionar o que os governos federal, estaduais e as prefeituras estão pensando para a solução desse imbroglio. Talvez seja uma boa ideia buscar o que tem sido feito em outras cidades mundo afora. Se tivermos de passar por experiências mal-sucedidas, uma por uma, até encontrar aquela que satisfaça as demandas de uma sociedade democrática, alguém vai pagar um alto preço por isso. E não serão os políticos. Outros países Portugal descriminalizou todas as drogas em 2001. Já há dados que corroboram a tese de que a mudança de foco para uma abordagem concentrada na saúde foi um sucesso estrondoso, desde a redução do consumo, inclusive entre jovens, até o desafogamento do Judiciário e do sistema carcerário. Experiências mais ousadas, como a implementação de salas de consumo seguro na Suíça e no Canadá, são exemplos promissores, embora não tenham, ainda, o escopo necessário para impactar as estatísticas dos seus países. Apesar desses exemplos, os indícios no Brasil não são encorajadores. Na esfera federal, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) foi transferida do Gabinete de Segurança Institucional, comandado por militares, para o Ministério da Justiça. É um passo na direção certa, embora ainda não suficiente para quem compreende o tema como multidisciplinar, portanto, mais apropriado para as pastas de Saúde e Desenvolvimento Social. A demissão relâmpago de Pedro Abramovay, em janeiro de 2011, do governo federal, justamente quando ia liderar a Senad, depois de entrevista na qual sinalizou um caminho mais progressista para a política nacional de drogas, foi um gesto contraditório. Houve progresso, pero no mucho... E as outras drogas? Por fim, uma última questão é importante para nos aproximarmos de um sistema que dê atenção aos usuários e usuárias de drogas de forma mais humana e eficaz. Será mesmo que o crack deve ser o foco dos esforços do governo, centro da política pública no trato com as drogas? Ou será ele apenas mais uma das substâncias sobre as quais se deve trabalhar? Segundo dados do Sistema Único de Saúde, o SUS, o álcool é a droga que mais danos causa a nossa saúde. Proibi-lo não faz sentido ou não teria resultado, mas por que não se concebe um plano nacional para a consciência sobre o álcool? Fazendo uma análise fria dos dados, a atenção quase exclusiva dedicada ao crack definitivamente não se justifica. O sistema de saúde precisa, sim, preparar-se melhor para acolher quem usa drogas. O problema não será resolvido por completo sem mudanças na legislação vigente e, principalmente, sem outro paradigma de políticas públicas. Esse deve ser o foco principal dos futuros debates.
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Façocr Pedro Markun, 26 anos, tem, como ele diz, uma certa “preguiça” em se definir. “Prefiro que as pessoas me definam pelas minhas práticas do que por aquilo que eu me denomino”, disse ele nesta entrevista à Democraciaviva. Difícil é sintetizar as tantas práticas nas quais Pedro Markun se envolve. “Eu posso enumerar algumas e esquecer várias”, afirma. Algumas dessas atividades tornaram Markun conhecido e reconhecido nas áreas de transparência pública, dados abertos e hackativismo. Em 2009, Pedro Markun foi um dos que clonou o Blog do Planalto, depois que a Presidência resolveu lançar a página sem espaço para comentários dos internautas. Ele reproduziu o site do Palácio em outra plataforma e nela inseriu a possibilidade de comentários. A iniciativa ganhou repercussão e chacoalhou a comunicação do governo. No mesmo ano, Markun ajudou a organizar um hackday no Brasil, um encontro para construir aplicativos de dados abertos. A reunião gerou o coletivo Transparência Hacker, que interage numa lista de e-mails e se encontra regularmente para dias de trabalho hacker. Com financiamento via crowdsourcing, eles foram além. Compraram um ônibus e passaram a viajar no Ônibus Hacker para diversos pontos do Brasil para realizar os hackdays. O sucesso da Transparência Hacker tem a ver, para Pedro Markun, com a lógica “façocrática” do coletivo. “Quem faz manda, e as coisas acontecem. Essas relações se dão de uma maneira muito horizontal, muito orgânica. As pessoas que estão pilhadas são as que ditam o rumo das coisas. Para mudar, é muito fácil. Basta você começar a fazer outra coisa”, diz. É Markun mais uma vez valorizando as práticas. Nesta entrevista, Pedro Markun fala das suas origens, da sua descrença na universidade, da importância da internet na sua formação, comenta sobre a rede hoje, opina sobre ativismo, movimentos e organizações sociais. Boa parte da conversa com Markun foi pelo Skype. As fotos que ilustram esta matéria foram tiradas durante uma reunião entre a Esfera e o Ibase. A Esfera – Hacks Políticos e Dados Abertos tem Markun como um dos sócios e se define como um “think-and-do-tank”. Ela está trabalhando com o Ibase novas formas de processar e disponibilizar informações produzidas pela instituição que publica a Democraciaviva. A seguir os principais trechos da entrevista de Pedro Markun: 48
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fotos: maycom brum
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Hacker Hacker é o cara que entende tão profundamente de um assunto, seja ele qual for, que é capaz de subverter e transformar as práticas. Para pegar o exemplo do computador, ele é um cara que entende tão profundamente do computador que consegue fazer o que quiser. Eu não acho que sou um hacker no sentido de conhecer profundamente as tecnologias, as políticas, mas eu tenho uma curiosidade, uma vontade de conhecer os processos políticos, para ser capaz de transformá-los mais radicalmente. Não sou aquele cara que acha que existe uma diferença possível entre hacker e cracker [quem usa dos conhecimentos sobre computadores para fins criminosos, para o benefício próprio], ou hacker do bem e hacker do mal. Hacker é o cara que quer conhecer o sistema para poder transformá-lo, e ele pode transformar para o bem ou para o mal. No Brasil, já foi muito mais forte essa tendência de associar o hacker com criminoso e bandido. Hackativismo O que a gente tem percebido na prática é que é mais fácil você politizar o hacker do que pegar um cara de um movimento ou uma organização social e fazer esse cara entender que as tecnologias são uma ferramenta de transformação e que, portanto, esse cara deveria se apropriar dessas ferramentas. Eu tenho um pouco de preguiça de todas essas taxonomias. Se você achar que eu me enquadraria no conceito de ativista, então certamente eu sou na sua leitura. Acho que é uma construção do coletivo, muito mais do que uma construção individual. Eu não ligo muito. Prefiro que as pessoas me definam pelas minhas práticas do que por aquilo que eu me denomino. Origens Eu sou paulista e até os 12 anos eu morei em São Paulo. Aí, os meus pais decidiram criar os filhos com melhor qualidade de vida, e a gente mudou para Florianópolis. Cresci em Floripa, ligado com o mundo inteiro, nas madrugadas de conexão discada. Por isso, essa territorialidade tradicional é muito menos importante pra mim. Floripa é uma ilha nerd. As pessoas usam muito a internet lá, e isso com certeza me influenciou. Com 22 anos eu enchi o saco e fui para Porto Alegre. Fiquei em Porto Alegre até o meu pai [o jornalista Paulo Markun, ex-apresentador do programa Roda Viva] ser convidado para ser presidente da TV Cultura. Ele me ligou e disse: “Sabe o jornal colaborativo [a publicação on-line Jornal de Debates]? Ou você assume, ou vou passar para alguém”. Desde então estou sofrendo com as diversões dessa cidade.
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Hacker é o cara que quer conhecer o sistema para transformá-lo, e ele pode transformar para o bem ou para o mal”
Universidade A minha experiência universitária foi muito triste e deprimente, porque a universidade brasileira é extremamente opressora da inovação. É uma briga constante contra a estrutura. Você está ali para absorver todo aquele acúmulo histórico. Tem uma escadinha linear onde você só será capaz de produzir o seu próprio pensamento depois de 12, 16 anos de estudo. Eu fiz a Federal de Santa Catarina. Perto do terceiro ano de História, achando que o problema era aquela universidade, e não o modelo, me mudei pra Federal do Rio Grande do Sul, mas nem comecei. Me matriculei na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul), num curso novo, chamado Comunicação Digital. Achei que valia a pena tentar porque era um curso sem histórico, sem lastro. Fiz um ano e saí, por causa da mesma lógica vertical. BarCamp No meio dessa crise universitária eu vim pra São Paulo participar do BarCamp [evento colaborativo] São Paulo, e foi genial. Era 2007, havia 300 pessoas na Cásper Líbero [faculdade paulistana], decidindo em conjunto a grade de programação do evento. Tinha de professor doutor a aluno. Você levava a sua expertise e compartilhava de uma maneira horizontal. Aquele processo foi tão louco que ele catalisou coisas que estão aí hoje. Foi lá que eu conheci a Dani [Daniela Silva, parceira no Esfera e na Transparência Hacker], por exemplo, e foi por isso que muitos anos depois fomos fazer a Transparência Hacker, e foi por isso que estou aqui falando com vocês. A Casa de Cultura Digital [espaço em São Paulo compartilhado por organizações ligadas à cultura digital] nasce também de pessoas que se conheceram neste evento.
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...e as redes de hoje Apesar de ter várias ressalvas e achar o (Mark) Zuckerberg (fundador do Facebook) um dos vilões da história – ele está detonando a internet –, eu acho que estamos retomando a esfera pública na ideia inicial dela. É um espaço onde as pessoas estão discutindo coisas do dia a dia quase que como numa ágora grega. Acho que a rede funciona dessa maneira, é por excelência um espaço de discussão pública, os blogs, a blogosfera, mas tem espaços que não jogam as coisas na sua cara. O Facebook joga as coisas na sua cara. Ele te obriga a ler. E eu acho que isso mostra que a grande plataforma de discussão política no Brasil é o Facebook. Pelo menos na minha timeline, onde se discute uma hora aborto, na outra direitos dos animais e em seguida educação básica. As redes de ontem... Eu tenho a maior vontade de escrever a história social do IRC [sigla para Internet Relay Chat, ferramenta para bate-papo e troca de informações na rede], porque eu acho que ele foi fundamental para a internet brasileira. É um tipo de espaço que sumiu da internet, um espaço em que você entrava numa sala comum e lá havia pessoas que você não conhecia. É um negócio que sumiu desde que o ICQ e o MSN entraram na internet. O MSN é uma praga. Você só fala com quem você conhece, e isso é horrível para a diversidade do pensamento. O IRC, não. Você entrava num canal ou hashtag – e o Twitter se apropriou disso – e falava com gente do mundo inteiro, e tinham canais sensacionais, politizados pra caramba. O canal #lesbians era um dos mais politizados. O canal #filosofia da Brasnet era genial. Você vai ter uma retomada desse espaço público de discussão na internet quando o Twitter aparece e causa aquela balbúrdia, que eu acho linda. O Facebook de alguma maneira permite que as conversas extravasem horizontalmente. Você vê ali o compartilhamento do amigo do seu amigo, que não é seu amigo, e você é assim exposto ao diferente. Você fica vendo coisas com as quais você não concorda. Isso é extremamente salutar e importante.
A grande plataforma de discussão política no Brasil é o Facebook. Pelo menos na minha timeline, onde se discute uma hora aborto, na outra direitos dos animais e em seguida educação básica”
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É supercomum os desenvolvedores passarem a madrugada inteira escrevendo códigos, comendo pizza, tomando refrigerante, enfim, se divertindo. A gente importou esse tipo de evento, um evento mão-na-massa, para discutir transparência, política, construir aplicativos de dados abertos”
Quem influencia quem? Eu conheço bem menos do que deveria a trajetória do meu pai [o jornalista Paulo Markun] para que ela me influencie. O que me deixa feliz é o quanto meu pai se transforma num cara que entende e compreende o digital a partir da vivência comigo, com os meus amigos e projetos. O cara, no auge da carreira, que já fez tudo, decidiu que pode mudar. Ele decide ir para a Casa de Cultura Digital, porque é lá que estava o próximo desafio. Ele vai para lá trabalhar na minha sala. Ele queria alugar uma sala, e eu disse que não tinha sala. Salas são para grupos que transitam no digital. Agora, tem a minha sala e sempre vai ter um lugar pra você lá. Traz a sua equipe e vamos construir coisas juntos. Apesar de termos feito bastante coisa quando ele estava na TV Cultura, quando ele foi para a Casa fizemos muito mais. Acho que se tem alguma coisa que realmente me influencia e me inspira é essa capacidade que ele tem de se reinventar, de achar que não é porque é mais velho que está certo, não é porque viveu mais ou tem tantos anos de profissão que a profissão continua correta. Eu conheço poucos caras que são capazes disso. Continuam com aquele discurso mandraque: “ah, eu sou de outra geração”. A resposta pra isso é: “larga de preguiça”. Transparência Hacker A Transparência Hacker surgiu de um evento que a gente fez na Casa de Cultura Digital, em outubro de 2009, o primeiro Transparência Hackday. É supercomum os desenvolvedores passarem a madrugada inteira escrevendo códigos, comendo pizza, tomando refrigerante, enfim, se divertindo. A gente importou esse tipo de evento, um evento mão-na-massa, para discutir transparência, política, construir aplicativos de dados abertos. Participaram 120 pessoas de várias partes do país. Começamos a fazer mais encontros, a lista ia crescendo, e começaram a surgir projetos que transcendiam os hackdays. Começamos a participar de palestras, muito motivados pelo W3C [consórcio internacional que desenvolve padrões para a web], incidimos na Lei de Acesso (a Informações Públicas). No meu caso, essa aproximação com a política tem a ver com a eleição do (Gilberto) Kassab (para a Prefeitura) em São Paulo (em 2008). Eu estava reclamando num boteco, e me dei conta de que estava reclamando sem ter feito nada. Não que eu tivesse um candidato melhor para apresentar, mas ficar reclamando era uma péssima opção. Em meio a isso, a Dani [Daniela Silva, parceira na Esfera e na Transprência Hacker] foi visitar o namorado dela no Canadá e participou do Transparência Camp em São Francisco (EUA). Ela voltou dizendo que precisávamos fazer algo parecido aqui. Foi quando desenhamos a história do Transparência Hackday.
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Façocracia A gente trabalha com uma lógica façocrática: quem faz manda. Ela não é meritocrática, não impõe que a pessoa que faz muito tenha mais poder na Transparência Hacker. Quem faz manda, e as coisas acontecem. Se não gostou, faz melhor. Essas relações se dão de uma maneira muito horizontal, muito orgânica. As pessoas que estão fazendo, estão pilhadas, são as que ditam o rumo das coisas. Para mudar de rumo é muito fácil. Basta você começar a fazer outra coisa. É difícil pra muita gente um envolvimento desse tipo. As pessoas ficam aguardando ordens, mas não existe infantaria e nem comandante, o que existe são processos e projetos. A Transparência Hacker é um movimento que se permite o dissenso. A quantidade de projetos que não vai para frente é grande, porque é voluntário, é horizontal, é aberto. Pra mim, não tem nenhum problema se um projeto começa e não termina. Eu acho que ele só vai começar e terminar quando houver gente motivada para isso. Quando tem alguma tentativa de criar superestruturas na Transparência, eu sou o primeiro a me opor, mas sempre deixo em aberto. Se as pessoas decidirem que a gente vai ter um rei e elegerem um, assim elas farão, mas eu vou ficar desobedecendo. Sustentabilidade Eu acho que pensar em sustentabilidade de uma organização sem fins lucrativos é uma coisa absolutamente retardada. Não existe, é uma busca infeliz. A sustentabilidade dos projetos é uma coisa legal de se pensar para que as ações continuem acontecendo. A sustentabilidade da organização eu não acho que faça muito sentido. Enquanto você tiver projetos, você tem a sustentabilidade da organização. Ela existe porque você está fazendo coisas. O contrário é uma casca vazia. É muito louco isso de escrever a sua ideia no papel, para depois ir buscar dinheiro e depois, quem sabe, executar. Se o seu projeto depende exclusivamente de grana para existir, tem alguma coisa errada. Acho que o modelo mais sustentável de todos é quando todos nós nos engajamos e participamos das coisas. “Mas como eu pago as minhas contas?”, alguém pergunta. “Trabalha!”, eu sempre falo. Não é que eu ache que ativista não tem que comer. Eu acho que não faz sentido criar um processo pesadíssimo para sustentar o ativismo. Se você acha que não tem tempo para ser ativista, não tem tempo pra trabalhar nos projetos em que acredita, ou, pior ainda, não acredita no projeto em que você trabalha, você está no lugar errado. A gente (da Transparência Hacker) sempre faz essa análise: “Se não houvesse grana, eu trabalharia nisso aqui?”. Sim. Talvez eu trabalhasse menos, porque parte do meu tempo seria dedicado a fazer outra coisa para pagar as minhas contas. É muito legal quando a gente consegue conciliar as duas coisas. Temos que construir projetos a partir da prática e não a partir do projeto. A lógica vai se tornando tão invertida que as pessoas começam a só desenhar projetos que sejam financiáveis.
Ônibus hacker Nós compramos o ônibus [via crowdfunding] com o único objetivo de encontrar as pessoas, sair de São Paulo, porque lá nós já nos encontramos com facilidade. Acho que é esse o seu papel: trazer as pessoas para perto, construir laços mais profundos. Esse é o princípio do ônibus, dos hackdays, das bebedeiras, do chope, do churrasco, de se divertir. Esse é um movimento voluntário, baseado no tesão das pessoas. A Transparência Hacker são pessoas que acreditam na mesma coisa ou que minimamente têm muito respeito mútuo. O dissenso pode acontecer porque temos vínculos afetivos, construídos a partir de coisas coletivas, por isso o ônibus é de todo mundo, é um filho que a gente cria junto. Acontecem perrengues, o ônibus quebra, mas tudo vira narrativa, aventura, parte do processo. Sobre a sustentabilidade, eu garanto que ela não vai mais desaparecer. Ele pode pegar fogo amanhã. No outro dia, se a galera quiser, teremos outro ônibus. Não sei como conseguiremos, mas vai acontecer. Há pessoas discutindo sobre como fazer um projeto do ônibus para a Oi Futuro. Estou fora. Para mim, uma das coisas mais legais e lindas do ônibus hacker é que ele não precisa da Oi Futuro para existir. Occupy e indignados Acho muito legal. Acho que as pessoas ficam querendo replicar artificialmente isso, e eu acho bobo. Mas acho sensacional o movimento dos indignados, a Primavera Árabe, Occupy Wall Street. Também acho sensacional o churrascão de gente diferenciada, a Marcha da Maconha, o churrasco da cracolândia. Todas as manifestações onde protagonismos individuais aparecem em prol de coisas coletivas são muito legais. Movimentos que não têm lideranças claras ou cadeias hierárquicas. Prefiro apreciar e aprender a partir das práticas desses movimentos do que tentar copiá-los ou tentar descobrir como aconteceu para fazer igual. No Fórum Social Temático [realizado neste ano em Porto Alegre (RS)], havia uma mesa que eu achei uma roubada. Sempre que chamam uma pessoa dos indignados para representar o movimento criam uma figura representativa para um movimento que não é representativo. Isso é um pouco estranho. Gosto do Ocupa São Paulo, do Ocupa Rio, só não acho legal a ponto de ir. Acho legal que tenha gente que se importe tanto a ponto de ocupar a Cinelândia. Mas, ao mesmo tempo, para mim é bastante óbvio que não tivemos um Occupy. Quando tiver que ser será. Sei que isso pode soar um pouco meta ou um pouco hippie, mas é o que eu acho. São coisas baseadas na ação, e não em reuniões somente. É uma questão de deixar emergir.
Acho sensacional o movimento dos indignados, a Primavera Árabe, Occupy Wall Street. Também acho sensacional o churrascão de gente diferenciada, a Marcha da Maconha, o churrasco da cracolândia”
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FOTO: Reprodução / twitter / Verena Glass
O jornalista solitário
Orçada em R$ 19 bilhões, a usina de Belo Monte é o segundo projeto mais caro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A obra deve alagar 640 km2 no Pará e desalojar pelo menos 20 mil pessoas. Uma empreitada de tantos milhares e milhões é alvo da cobertura diária de apenas um repórter. Ele é Ruy Sposati, jornalista do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, paulistano que há um ano foi morar em Altamira (PA). Sozinho, Sposati passou por maus bocados nos últimos meses. O primeiro deles foi superar o disse-me-disse da imprensa, ao noticiar em março a greve de Belo Monte. Os grandes meios de comunicação não estavam em Altamira e informavam que não havia greve, com base nos informes da construtora.
ruy sposati, do movimento xingu vivo para sempre, é o único jornalista cobrindo a construção de belo monte
"A greve existe. Aconteceu. Governo, empresa, sindicato vão segurar a onda num cenário de pouca organização dos trabalhadores", tuitou Sposati no fim de março. Segundo ele, 80% dos 7 mil trabalhadores chegaram a aderir ao movimento. A greve terminaria no dia 5 de abril. O segundo mau bocado foram as ameaças e a acusação judicial que sofreu. De acordo com os advogados da empresa, Sposati seria um dos responsáveis pela greve, ou seja, o jornalista solitário, além de cobrir o evento, teria mobilizado milhares de trabalhadores de uma empresa na qual ele não trabalha. Um mandato proibitório determinou multa de R$ 100 mil reais caso o jornalista e mais dois integrantes do Movimento Xingu Vivo cometessem “qualquer moléstia à posse” do consórcio construtor ou impedissem “o acesso de seus funcionários ao canteiro de obras”. O fracasso das negociações com a construtora levou o sindicato a oficializar outra greve em Belo Monte no dia 25 de abril. Essa paralisação foi amplamente noticiada pela imprensa e considerada ilegal pelo Ministério do Trabalho. No dia 4 de maio, quando a greve foi suspensa, Sposati tuitou: "Sindicato pode ter suspendido a greve de Belo Monte, mas até onde pude apurar, nem terceirizado embarcou (para trabalhar)".
O jornalista do Xingu Vivo Ruy Sposati com o crachá improvisado para proteger-se de agressão e ameaças
saiba mais Acompanhe o trabalho do único jornalista no canteiro da Belo Monte: Twitter de Ruy Sposati: @ruysposati Movimento Xingu Vivo: www.xinguvivo.org.br
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