240997 monstro em mim

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24/09/97

MONSTRO EM MIM

Fabiano Viana Oliveira


24/09/97

MONSTRO EM MIM (livro registrado na Biblioteca Nacional

Fabiano Viana Oliveira


PRÓLOGO TRIÂNGULO COM A QUARTA PONTA

A chuva tinha a cor da prata suja no meu sábado de outono. Muito pouco o clima dessa cidade me atinge. Eu prefiro pensar que como todo presente da natureza, chover e derreter no calor são prazeres insubstituíveis, inverbalizáveis, fora dos conceitos de prazer... É como o rosto dela visivelmente grato pela minha presença: chega a causar aquela velha ansiedade no meu peito calejado de paixões destruidoras; a respiração ofegante já treinada em ser camuflada pelas palavras sempre tão bem pronunciadas de um homem sempre apaixonado, sempre triste e sempre... feliz... Mas minha felicidade naquele dia chuvoso foi rasgada por uma pergunta: a voz dela pelo telefone trazia sempre o prazer simples da presença virtual numa vida tão vazia. De certo modo ela era minha, estava sendo; confiava em mim, acreditava em mim e gostava de me ouvir falar... Seu recente rompimento com aquele tinha aberto um breve e triste espaço no coração dela. Minha intenção naquele dia era saber o que eu poderia fazer para tê-la feliz... Mas acho que ela já tinha outra pessoa em mente: a pergunta doeu, ao ressoar tão inocente: “Você tem o telefone dele?” Eu não tinha. E não tenho... Ele é um amigo, mas daquele momento em diante se tornou o ícone de um pesadelo: inocente vibração de um fim de conversa... Ela tinha o que fazer naquele sábado e de certo modo, após a resposta, eu também. ### O ensaio da banda reverberava o esquecimento que eu tentava construir obstruindo o que minha imaginação tão bem trabalhava. Tornava-se mais difícil na medida que estavam lá, bateria, baixo, voz, meu melhor amigo e ele na guitarra... Pilhavam-se entre timbres e acordes a imagem ligada ao nome conhecido e pronunciado naquela mesma manhã. Talvez naquele momento pensasse nela também com a intenção do meu ignorado malefício. O “set” de músicas se consumira. Rostos cansados, mas alegres se acolhiam e se separavam por entre os cômodos da grande casa onde tal evento ocorria: era a casa desse meu melhor amigo... Bateria e ele conversavam na cozinha; minha inocente presença parecia querer me trazer para esse mundo... − Vamos para a festa! − Clamava bateria. − Não sei. Eu estou sem mulher. − A linguagem rasteira me aliviava, mas meu ressentimento pelo passado de sucesso de tais criaturas não me permitia deixar de conceber tal cenário. − Chama alguém! − Essa não. Essa não... − Nomes conhecidos e desconhecidos moldavam o tal algo fora do meu conhecimento. Eu tinha a paixão vibrante e crua; e ele , eu não conheço, mas parece sempre ter o toque... − Tem ela... − O nome chocou tanto o meu corpo que quase não consegui me manter em meu mundo: sempre seguro na onisciência de minha imaginação e a todo momento fragilizado por tais golpes exteriores... − É...eu tenho passado mais tempo com ela do que aquele quando eles estavam juntos. − E o patético sorriso do bateria ao ver a expressão do amigo... Quanto a mim restou retocar os fragmentos de imagens da figura que começava a surgir e engolir o primeiro sinal de agressividade que sempre começa a surgir nesses tão singulares momentos... Fui para casa mais tarde, suportando a mim mesmo nas divagações do esquizofrênico alerta que vive dentro de mim, sendo eu a vítima então do sonho que ele me mostrara nessa mesma noite: a me atirar no mundo da visão lasciva, da simplicidade visceral que machuca toda a existência desse monstro que aqui vive: nada além era, eram os dois, ele e ela, simplesmente de mãos dadas, entrelaçadas, e na minha concepção do que é um pesadelo... mais uma morte de uma alma que parece ter prazer em sofrer, sangrar, gritar e fazer fugir seu ser para esse lado tão obscuro onde estou eu... Dormi muito mal nos dias seguintes, transbordando agitação e ansiedade, vibrando agressividade e intolerância, tendo de atravessar dias comuns penetrados pelo silêncio da ausência dela e pela contínua especulação do quão real tal imaginação podia se tornar... E foi.

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Tinha atravessado o domingo após o silêncio de duas semanas de sua voz. A imagem persistia. O ciúme ainda era preconcebido, mas forte como sempre. Naquele momento ainda, outras fatalidades me cobravam atenção mas nada subjugava o fato de eu senti-la distante, cada vez mais; nem mesmo minhas nobres tentativas de normalidade com outras mulheres funcionavam, nunca funcionaram, só me restava a culpa por tentar ser o que não consigo e por isso ser um criminoso, pervertido e atormentado.


A segunda-feira vinha com a abertura de um tal evento: eu e meu livro (sou escritor; olha só!) ficamos expostos pela semana subseqüente na biblioteca de uma faculdade, junto com outras atividades culturais. Como a abertura desse evento seria à tarde fui almoçar com aquele meu melhor amigo na casa dele. Havia acabado de voltar de viagem e fiquei feliz por vê-lo. Trouxe-me um livro de presente (Os doze macacos) e alguns discos novos. Gostamos de “metal-thing”. Estávamos ouvindo músicas e conversando quando ele inocentemente largou a bomba no centro do meu peito fazendo-me quase perder a sensibilidade em todo tronco do meu corpo; meus punhos se cerraram ferindo as palmas e eu comecei a morder os lábios compulsivamente... Do seu jeito: − Ah! Ela namorando com ele... Ela, que parecia uma mulher equilibrada... − Muito mais que as palavras, solidificar tal imagem em minha mente fez tais estragos em mim que meu estômago mal podia resistir às contrações, até hoje, minha capacidade digestiva está reduzida pela metade e comer se limita ao fato de eu ter de forrar o fogo que surge na bolsa com algo mais que sua própria constituição, mesmo assim com imenso sacrifício. Nos momentos seguintes tentei agir de maneira normal, mas gesticulava de maneira exagerada, ria com força e comprimia objetos com agressividade... Tive de suportar vários assuntos até o ponto de ebulição da adrenalina, estava com tanta força... Aquele amigo em minha frente me irritava tanto que podia espancá-lo até a morte... Não pude então suportar em libertar um forte grito, rapidamente abafado, mas muito forte... − O que foi? − Meu amigo que tanto sabia sobre mim e provavelmente nada do dilacerado ser humano em sua frente naquele momento não podia ser participado da dor... Menti. − Uma pontada aqui... − Almoçamos. Conversamos. Levou-me de carro até a abertura do evento e ficou um pouco... Adoro meu amigo... Mas eu só queria poder sair correndo dali e me tornar um selvagem a tal ponto de não existir mais nenhuma lembrança dentro de mim do que ela era, do que ele era e do que o amor sempre foi para mim: sacrifício... Agressividade cega, dilaceração, sobrevivência: a imagem das mãos entrelaçadas me levaram a pesadas lágrimas em frente ao espelho nessa mesma noite. Admirava a figura de tal pessoa irreconhecível, um monstro disfarçado que planejava com perfeição o seu próprio homicídio, com as manchas de sangue saídas de seu crânio por conta de uma arma tomando todo cenário de uma de suas histórias não publicadas, na lembrança e reconstrução daquele Arpejo, num novo contexto, com outro nome e agora com ele próprio morto e esquecido... Mas as lágrimas pararam e eu tive de atravessar toda semana com gosto amargo na boca, tratando de alienar meu ser do resto do mundo e procurando lembrar o sabor do entorpecimento... e a cerveja veio na sexta-feira... O lamento, a lembrança, o pensamento, o ferimento continuaram a travar a batalha com minha procura por sentidos, mas não tinha sentido, em momento algum: por dúzias de vezes imaginei matar ele com dor, com vísceras expostas e garras manchadas de sangue... A visão das mãos entrelaçadas surtiam como o efeito de raios em olhos adormecidos... e por vezes também imaginei a transgressão sobre ela, por trás, triste e com dor, no desespero de mais um desejo... E da visão só me restava o auto-flagelo para ocultar o monstro criador que cada vez mais tomava a forma daquele rosto no espelho: o criminoso, com prazer de ser o errado, exposto de um mundo certo, admirando a morte violenta como a melhor amiga... No sábado então seria o encerramento do tal evento cultural e eu fazia parte do evento... Minha tão previdente imaginação sabia que teria a presença dos dois lá, o ato final da minha auto-destruição: dois quilos a menos naquela semana e diversas situações onde o risco vinha em dobro, além do fato de estar vivo. As longas caminhadas para desmembrar a agressividade e a figura provável do psicótico de olhos escuros na visão insólita dos passantes desavisados: um triste fim de decadentes 22 anos... Mas então... Eu consumi mais e mais cerveja. Não sentia mais as pernas e meus lábios vibravam dormentes sem conseguir articular com clareza as palavras de minha devastação: poesia, expressão, o insulto de palavras claramente pensadas, mas que se tornariam incompreensíveis... e cegou o clímax do meu cárcere entre imagem e realidade. Focalizei os dois com meus olhos entreabertos pelo entorpecimento. Minha aproximação era lenta e imprevidente, não sabia o que iria fazer e então veio... − E aí, como está? − Tonto, servil. Não conseguia olhar para ela. Em resposta à pergunta dele o beijei no rosto: ele merecia, estava onde eu queria estar, suas mãos estavam entrelaçadas, eu queria gritar, mas acho que nem disso era capaz... Voltei-me para ela ainda sem olhar em seus olhos, dei o primeiro beijo, o par na outra face não foi completado... Eu somente revirava os olhos e os guiava para as mãos e os dedos entrelaçados, esquerda dela e direita dele... Queria sair dali... − O que tem feito? − Bebido! - Voz triste, inexistente. Afastei-me dos dois. Só queria ir embora, tentar esquecer da inocência dos dois diante do meu inferno pessoal... Meu último ato antes de andar para casa pelas ruas escuras e enlameadas dessa cidade, que naquele momento pedia que provesse um assassino para me matar, foi arrebentar com um pontapé uma porta para poder pegar um objeto meu que ali estava guardado, agora sem pertinência. A caminhada para casa só me fez triste e calmo. Lembrei-me que aquele também estava lá. Lembrei-me como também sofria quando via ela com aquele, mas nunca fora tanto... Tive ela tão perto, achei que poderia ela também pensar em mim, resolvi dar tempo ao seu lamento, mas ela já tinha ele em mente, eu acho... O peso da noite trouxe


frustração e dor, e pela cerveja acredito, sonhos de vôos livres que me fizeram só despertar muitas horas depois... no domingo. ### Meu melhor amigo me liga preocupado por saber que bebi muito no tal evento, ele havia contado, ficara assustado. Senti a doce ternura do amigo inocente do horror com o qual me cercara naquela última semana. Convidou-me para novo ensaio da banda no mesmo dia.

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Minha imaginação permanecia fértil no momento de figurar rever ele. Não conseguia evitar de gostar dele. Tentava suprir animosidade irônica, mas seu sorriso era solidário e minhas palavras pareciam se tornar mais reais e menos ingênuas... Notou que eu vestia a mesma roupa do dia anterior, tornei a beber nesse dia e meu melhor amigo pediu para eu não beber mais: diligente, mas fracassado diante da minha desgraça fora de proporção... Interessante mencionar que ele disse que na noite anterior havia sonhado com alguém tentando matá-lo: difícil não imaginar que seria minha alma dilacerada à procura de vingança... No decorrer do ensaio percorri três transgressões: escrevi um poema de necroempatia e uma história nojenta na caixa de um dos pedaços da bateria, e além disso, durante as músicas agredi meu antebraço esquerdo, minha coxa direita e minha nuca com uma baqueta da bateria: a dor física surtia o efeito de cura à dor que era ver ele tocando, sendo admirado por ela, tocado por ela, e ainda também tendo meu insistente (quase irritante) afeto... E sorrisos e alegria, e ele inocente na história, como ela também. Voltei para casa. Sentia a sonolência alcoólica, mas queria assistir a Superman... Recebi um recado: ela havia ligado duas vezes, duas vezes... O motivo era evidente; a preocupação pela minha decadência e auto destruição... Não conseguia evitar de amá-la. Não conseguia evitar de sentir o desgosto... Sua afeição não era mais suficiente e eu não sou apto para jogos, simplesmente digo a verdade e suporto as miseráveis conseqüências de um mundo que não me suporta como eu também não o suporto... Triste sou, triste estou, ela ligou duas vezes e eu estou perdido no maior crime que posso conceber: liberar o monstro no mundo ou esperar seu amor, sentir pela primeira vez a paixão intensa, com ela, como nunca tive... Quando ela finalmente conseguiu falar comigo demonstrou toda sua preocupação. Gostaria de saber o que dizer a ela sem perdê-la de vez, mas pareço sempre perder a todos, numa tragédia fatal de uma mente criativa que sente amor e dor como um sentimento só... Ela disse que aquele quer voltar com ela. E ela está é com ele. E eu queimo no inferno por tudo isso, somente com a clareza dessas palavras, o conhecimento dos personagens e as reais possibilidades do que é o final... Agora...

NUNCA É O FIM...


A paixão do homem é a razão porque ele vive... Sem a paixão o homem perde a razão para viver... O último pensamento.


ANTES ### Ver o mundo e gritar na origem de uma imagem de terror. É como porém narrar o meu próprio fim conhecendo vivamente o começo de tudo que virá após... Eram as luzes dos carros cruzando a noite que eu via primeiro no ramo do observador companheiro na história das pessoas com quem convivo. O ar forte e frio refrescava o ambiente fora do carro em movimento. Sua cor escura refletia os raios dos carros vizinhos que ultrapassavam e eram ultrapassados na correria da noite cedo da sexta-feira de esperanças tão insólitas do que é viver um fim-de-semana ruidoso de aventuras incontáveis dentro de copos, banheiros e olhos envenenados pelo nosso combustível da alegria... Não queria estar melancólico num dia tão importante para todos, mas o ímpeto resguardava com tanto empenho no meu coração que o sorriso chegava a sangrar minhas ondas da falsa alegria que regia os presentes no carro. Os pensamentos de cada homem do veículo, nós quatro, divergiam no que mostrava, mas posso sentir com renovação o que de tão sério regia a verdade daquelas argumentações tão vazias; podia sentir a verdadeira convergência do que se queria naquela noite e em todas as outras, provavelmente. Estão no carro comigo, Romero, Marco e Rodrigo... A banda havia praticado bastante durante toda semana para a apresentação no sábado que se emergia perante aquela noite. Junto com eles, os irmãos Beto e Breno, formam uma banda de “rock” chamada Gridlock. Parece agora uma reflexão do que eles tentavam fazer com as suas vidas tão diversas ao se juntarem para criar, treinar e tocar algo que eles consideravam tão agradável aos seus ouvidos: machuca o sentido lembrar que tocavam algo chamado “heavy metal”... Consumar a atitude criativa do mundo com uma tendência de som que arruinava os ouvidos daqueles e desse que se propunham a jorrar cabeçadas no ar com uns poucos sentidos e pensamentos em mentes povoadas por planos e desejos insatisfeitos; assim como eu... Imaginava avidamente em minhas divagações dentro daquele estúdio forrado de barulho e atitude como tais pessoas podiam se dedicar tão facilmente a instantes de vitória na existência em quais não havia a devida entrega do depois: respostas absurdas Beto pronunciaria: algo como: “Dormir.” “Comer.” “Beber água.” Sempre foi ele feliz em sua figura de mistério inexpressivo; nem uma ponta de sofrimento em tempo algum e agora me redobram a sensação de ausência da visão que tive... Não! Eu diria, Beto. Absolutamente nada! Isso é o que resta depois. E o depois ainda está sendo preconcebido... mas todos se divertiam; até mesmo eu, sobrepondo momento após momento a dor, que os olhos azuis e os acordes de guitarra de Marco, me faziam relembrar; não por ele próprio, mas pela imagem que fazia sempre sugar da memória todas as alegrias e trazer à tona somente a imagem... dela; porém isso agora não é o mais importante... Marco toca bem a sua guitarra. Beto é o outro guitarrista: uma curiosa mistura de talento e dedicação sem muita didática, mas que porém estava sendo arrastada para estranhos caminhos do desleixo. Depois tinha Breno no baixo; Romero era o cantor e Rodrigo tocava a ruidosa bateria... E lá estamos esses dois últimos, Marco e eu cortando uma noite que seguia inocente sem o medo que se arrasta hoje. Rodrigo estacionou o carro. Descemos e estamos em mais um curioso bar de interior noturno na convivência desses com quem estou. É tal familiar situação que obedece seus padrões de vida: consumimos as bebidas; facilmente observa-se o prazer de uns e o cansaço de outros ao exaurir-se nas noites do que é um incógnito sentido de viver, pelo menos estava sendo para mim... Todos os olhos guiados e desviados do verdadeiro desvanecimento que deve surgir no inconsciente de cada um de nós agora; perdidas inibições e resguardos, mas nunca deixado de lado a resistência em não confiar. Todos se sentem mais seguros ao realmente acreditarem no quanto são inocentes das dores dos outros, mas é um jogo de responsabilidade que vai muito além dos olhos que começavam a se avermelhar naquela noite não muito fria desse começo de outono... Meu pai dizia que o melhor de beber é perder a responsabilidade sobre as coisas; pesava então na cabeça desse que transborda sentimentos a total rivalidade do que estava sendo dito, com uma eterna e incansável procura do significado nos eventos que ocorriam em sua frente: mas há, não houve, não havia e eu sei que depois não haverá... Logo me veio a responsabilidade por tudo e era guiada por mãos suaves do doce caminho da amizade, do afeto e do amor de outros que escondem por trás de toques a realidade de suas personalidades destruídas pelo tempo, a falta da real inocência. Foi o bêbado que vimos numa mesa próxima. Aparentemente ele havia bebido o suficiente para incapacitar totalmente sua humana resignação em ser alguém, tornando-se algo digno dos comentários que ouvi. Ouço as risadas satisfeitas de outros bêbados, inclusive as dos que estão comigo, quando a criatura subjugada pela miséria da vida numa sexta-feira à noite solitária deixe a gravidade e a flacidez carregarem até o chão, fétido de seu próprio vômito e escarro, sua dentadura... Qual patamar de degradação pode-se imaginar para um homem nessa postura; cabeça baixa, esquecido, inexistente até para si próprio naquele sublime momento em que seus braços se esticaram e capturaram de volta a dentadura, colocando-a sem cerimônia de volta a uma boca que provavelmente está em puro estado de anestesia, a considerar pelo número de garrafas vazias na mesa.... Que este pode merecer além do escárnio que todos ofereceram sem culpa ou compaixão ?.... Em outras mesas alguns o ignoram conhecendo a própria representação de futuro, recente, logo. Mulheres escandalosas sentem o vapor do que elas terão de suportar mais tarde em suas camas por conta dessas escolhas


que fizeram; estômagos revirados em períodos latentes por não serem capazes de sentir ainda que tal nível de degradação só ainda não os atingiu por uma questão de tempo, pois a segunda-feira logo chega e a necessidade por mais só será suprida cada vez com mais e mais álcool, até que também não tenham mais dentes e suas dentaduras caiam nos próprios vômitos e suas mãos se estendam para pegá-las: o fruto final do desprezo que revelo dessa tal evolução humana, que chega a tal ponto, lhe dando tal imobilidade para o instante seguinte que vinha. − Marco, vamos sair daqui... Clima ruim do caralho. − Romero falava sério apesar da mórbida satisfação ao contemplar o bêbado da mesa seguinte. Talvez sendo ele o mais velho já tenha visto cenas semelhantes demais para não formar um paralelo com a própria vida e com o futuro dos amigos ao redor: talvez até ele próprio... Meus três colegas de mesa somavam mais forças para o que surgia de humor e desgosto dentro do que eu realmente via na situação: Meu coração pedia pela imagem em minha mente.... O animal da mesa vizinha se levanta cambaleante para conhecer as vinte pernas novas que surgiam no seu corpo enquanto se dirigia ao esgoto chamado de banheiro que o bar deixava a disposição para seres de outras civilizações poderem estudar como os detritos químicos gerados por nossa promíscua existência se misturavam com tal perfeição gerando tão novas sensações em nossas narinas e estômagos extraordinariamente preparados para tanto. A degradação viria na forma primeira dos olhos entreabertos do elemento. Ele olharia fascinado sua urina escorrendo para o buraco marrom manchado, fazendo um barulho curioso que penetraria pelos seus ouvidos como uma música rítmica e hipnótica, deixando-o completamente paralisado. Seus olhos continuariam a enxergar quando notasse que a linha da urina estava se tornando curva, devagar, no compasso da música, até fazer um semi-círculo, perfeito, com a estranha ponta do líquido em movimento pairando sobre seu rosto entorpecido e fascinado pela imagem e pela música... − Vamos nessa. Já paguei lá as cervejas. − Marco voltava do interior do bar colocando a carteira no bolso de trás da calça jeans clara rasgada. Mesmo na concentração em que estava pude notar aquelas mulheres horrorosas do bar olharem o passeio do jovem de cabelos compridos e pose de “rock-star”; por mais este momento recordava a loucura da semana passada, quando me enveredei por aquele estranho caminho sem a claridade das sensações do hoje: reescrever aquela história fora o mais duro momento do qual eu me ressentia na vida; um período tão curto para ouvir falar de uma mulher com um homem, uma mulher que amo, e logo em seguida a visão dos dois juntos para minha infeliz inversão de desejos e capacidades. Ele olhava inocente para nós três enquanto eu percorria seu rosto sabendo o que sei de mim mesmo, do que sinto por ela e do que consigo fazer agora com minha imaginação... Rodrigo levanta ainda sonolento: não bebeu muito, era sono normal, antes de sairmos da casa de Beto ali perto, após o ensaio, ele havia tomado café: estava dirigindo; mas como diz Romero: a vida de um baterista não é fácil... E além de tocar bateria para duas bandas, Rodrigo trabalha e estuda. Começamos a andar em direção ao carro; meus olhos se pregam ainda na porta do banheiro, o elemento ainda estava lá dentro; em minha maestria sórdida e infeliz, não conseguia parar de imaginar que a minha imaginação se tornara realidade, e não sei como , tudo esteve ocorrendo naqueles últimos minutos... “... A linha de urina do bêbado nojento e paralisado começa a deslizar o ar suavemente na forma de um pequeno círculo em volta do rosto do homem. Está perto e luminoso, ele pode até sentir o leve calor que é gerado. Um patético sorriso se forma, a boca entreaberta, gotas de vômito misturado com o catarro ainda escorrem pelos dentes artificiais da dentadura em seu local devido. Nessa posição, boquiaberto e sorridente, a linha amarelada começa a se envergar para trás, como a serpente tomando impulso para o bote. A música das gotas pára, o movimento circular se interrompe; e do sorriso um som da realidade lá fora o faz abrir os olhos em abrupto pavor: um carro partia em disparada; sua boca faz um último movimento premente da surpresa ( “Uah....”); a linha penetra com grande velocidade na boca do sujeito, fazendo seus olhos ficarem saltados de expressão, em seu ventre ele sente o estranho e alucinado movimento que começa a causar-lhe extrema dor; tenta se curvar, mas não consegue, nada mais no corpo parece ser sensível; então começa a sentir a pontada para fora, seus órgãos começam a ser puxados para fora, de uma força só; suas cordas vocais forçam para sair juntas e o som se forma na largada final do corpo: Num único golpe, todos os órgãos internos do abdômen são arrancados, seus olhos ainda são capazes de vê-los flutuando por sobre o seu rosto, deixando passar os filetes da luz que já se escurecia e salpicando todo seu rosto com o sangue vermelho amarelado de quem não tem nenhuma consideração com o fígado; finalmente desvanece do choque e da hemorragia; sua queda é primeiro aparada pela porta do cubículo, fazendo-o em seguida cair sentado, e pela lentidão da queda, já chegando ao chão morto. A massa de órgãos desaba desordenada como uma pequena explosão, manchando todo o chão e parte da parede do fétido lugar de “higiene”. Fazendo-se o cenário do elemento; criatura virada ao avesso e revelando tudo que tinha dentro de si. Nada.”

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Um som gelado invadia minha mente sub-adormecida. Imagens azuladas compunham o cenário de uma tragédia muito bem conhecida e desenhada pelo meu interior tão fortemente encarcerado pelos anos sem fim de servidão


à incerteza e ao medo. São figuras póstumas de um passado eternamente presente em minhas visões diárias do que eu acreditava ser parte da minha realidade imaginária, mas como tudo que hoje, agora, se consome em verdades sem propósito, também o despertar daquele sonho vinha como o fruto do armagedon da noite anterior: vivido entre lembranças e outros sonhos, a atividade alcoólica e a prestação de honras aos sentimentos de adoráveis mas desavisados amigos; eu tive que transportar o que sabia, o que ocorreria no dia seguinte, este no qual estou começando a despertar, para um recanto do inconsciente de modo que pudesse sobreviver a tal provação que comparecia em se formar cada vez mais veloz e real a cada instante desse novo dia... Desconhecia a verdade iminente que o sonho se propunha a apresentar, mais cedo ou mais tarde, e por essa razão passei tanto tempo hesitando em querer acordar nessa manhã: o sonho se revelava, mas também a realidade queria se revelar... e eu temia as duas. Ter saído com Marco na noite anterior não ajudava a situação, por mais fraca que pareça hoje e por tão forte que era na época.... Me lembro perfeitamente: não queria existir naquele dia. Abri os olhos. O frio gelava meus pés. O som do ar condicionado vibrava leve em minha cabeça ainda meio entorpecida. Sentia o ressecamento na garganta pela desidratação e pelo ar artificialmente refrigerado. Senti um gosto amargo na língua ao tentar engolir saliva. Minha garganta deu um tímido pigarro enquanto eu olhava em volta... Não é o meu quarto, me lembrava, tinha passado a noite na casa de Rodrigo. Sua cama estava vazia; imaginei que ele já havia se levantado pelo adiantado da hora que era: quase onze e meia. Marcamos de voltar para a casa de Beto antes dos acertos finais para o show de logo mais à noite. Minha presença nesse momento estava sendo um acidente: como tinha assistido ao último ensaio na noite anterior, saído com os três e tarde já estava quando todos se dispersaram, resolvi dormir na casa do personagem que dirigia o carro... Alguns relances ainda restavam em minha turva memória do que tinha visto nos bares onde estivemos: o nojo e o desprezo pelo bêbado no primeiro bar; e a simples e memorável sensação de rebaixamento que senti por outro ícone da moléstia viciosa noturna: o desgraçado parecia ser um conhecido de Marco; não conseguia completar um frase com sentido: ainda agora tento imaginar como tal pedaço de carne semi-racional pode estar vivo nesse mundo, coexistindo com outros mais renegados ainda, de olhos semi-cerrados pelo peso da inutilidade, somente aguardando seus momentos finais nas mãos daquele único destino premente: senti pena do sujeito; mais uma vítima do nada.... Marco se sobressaiu nas alturas ao contracenar com tal pessoa com uma destreza de quem se reconhece muito superior, com seus pensamentos de esperança e com sua presença tão humanamente calorosa; demorei para me afastar do mesmo, mesmo que por razões ambíguas.... Romero ia calado economizando a voz para a apresentação de logo mais, e Rodrigo, como a bem pouco tempo, imagino, dormia.... Coloquei meus pés embaixo do cobertor novamente. Queria aquecê-los antes de sair da cama. Procurei Rodrigo por uma parte do grande apartamento. Estava preocupado em dar de cara com algum outro morador, que provavelmente olharia assustado para um branco alto e magro de cara chupada e sem voz, e diria “quem é você ?” num tom intimidador. E do jeito que eu estava articulando, minha voz pareceria totalmente sem argumento, mesmo que o argumento fizesse total sentido.... Não o encontrei em parte alguma. Não conseguia imaginar ele tendo ido embora sem me chamar... Andei até a varanda. Dava para uma parte da rua e para o mar. Da minha casa só se vê o mar subindo no teto do prédio, e mesmo assim somente uma ponta azul ao longe. Eu sempre adorei o mar. Contemplava-o com meus olhos ainda entreabertos e ofuscados pelo amanhecer atrasado. O gosto na boca foi quase esquecido pela brisa forte que acariciava o meu rosto..... Nesse, como em quase todos os momentos daquela época transbordei meus pensamentos para ela. Estava doendo mais do que tudo ver minha imaginação tão invadida por algo que queria evitar, mas aquele momento como em muitos, a conseqüência vinha sempre pesada a respeito do que eu deveria fazer: especialmente nos dois dias seguintes que estavam tratando de começar.... Não é mais um problema desse outro alvorecer tão bonito que assisto agora. O mar ainda faz parte do cenário, mas meu ser é muito mais povoado de extremos que naquela época. É algo tão vago e tão complexo que só poderei contemplá-lo perfeito depois que o sol nascer.... A conseqüência que tanto queria me apavorar era o fato de tão viva ser a tênue fronteira entre o que eu pensava e o que fazia ou às vezes, o que acontecia.... Estava apaixonado por Suzana. E ela estava namorando Marco. O fato só me havia sido confirmado há duas semanas, numa conversa casual com Beto, logo depois que ele chegou de uma rápida viagem. A informação teve o poder de um raio no peito; mas mesmo antes tinha tido o pressentimento que tal relacionamento estava na iminência de acontecer, e por essa razão sofri na dúvida por dias até a confirmação, e sofri mais ainda após a confirmação. Durante uma semana meus olhos reluziram somente uma simples imagem que eu sabia que cedo ou tarde iria se confirmar eram as mãos de Suzana e Marco entrelaçadas.... Algo tão poderosamente simples na concepção de minha mente que quando tive a imagem real à minha frente senti como se fosse um sonho. Foi numa festa num campus universitário qualquer: quando avistei os dois meu nível de entorpecimento já assumia os limites do risco para outras vidas humanas, como eu costumava pensar; mal sabia eu que sóbrio seria pior... Minha atitude chocara mais a mim que a todos: evitei de pensar agressivamente todo tempo até meus olhos encontrarem os deles; e com os dois em minha frente parti dali sem deixar rastros, somente preocupações devidas a um bêbado qualquer atendendo sobre sua própria responsabilidade quando realmente não parece ter nenhuma. Fui para casa naquela noite. Dormi. Chorei no dia seguinte com as mãos entrelaçadas na memória. E hoje cá estou nessa varanda admirando o mar e sabendo que hoje à noite, no show, terei de ver os dois fazendo mais do que estar de mãos entrelaçadas... Imagino que nível de importância teriam dado eles se soubessem


como eu me sentia; ou qual será a importância que eles, ou qualquer um, hoje, riam para o que eu sinto ou sei, ou vejo, ou vi....A visão do mar novamente me emociona. Batendo com força nas rochas do quebra-mar, assim como meus sentimentos, batendo com extrema agressividade na realidade e se arrebentado do mesmo modo que as gotas de espuma que vejo se esvaírem mar a fora contra a pedra.... Rodrigo toca meu ombro. Volto-me para um rosto completamente alterado.... Dormira no quarto da mãe, disse ele....Talvez eu ronque.... Não importa. Falei: − Preciso de um café.

Metade da tarde do sábado se passara. Sentia-me esmagado pela abertura de possibilidades do que poderia acontecer no show à noite. O momento estava chegando. Após voltar com Rodrigo para a casa de Beto nos encontramos todos na expectativa coletiva do que aconteceria: só faltava Marco chegar antes de todos irem para o local passar o som. Especulava em cada minuto como seria minha reação e comportamento... Havia prometido para Beto que não beberia nessa noite do show. Éramos sem dúvida amigos muito chegados, mas tal divergência começara a nascer quando ele notou um crescente instinto de auto destruição se erguendo em minhas ações sob o efeito do álcool.... Acredito que ele nunca tenha imaginado que tal tendência sempre fora persistente em mim, mesmo quando eu ainda não bebia, na faculdade. Fizemos este mesmo curso juntos por quatro anos e por mais próximos que estivemos um do outro as incógnitas sempre nos recobriam tempos em tempos: acredito que sendo a minha bem maior... Beto sempre liberara seus instintos na música, tinha um trabalho, produzia algo mesmo desconhecendo para que... Todos instigam em algum momento da juventude o que será ou seria o futuro: também ele, provavelmente.... Porém naquele dia específico, seu pedido preocupado para minha abstinência alcóolica poderia se tornar algo de extremamente incômodo para mim: era sem dúvida o que eu poderia considerar na época como o momento mais errado para ficar sóbrio. Marco já devia estar com Suzana. Viriam juntos para casa de Beto, e daqui para o local da apresentação... Olhar hoje para tão pretensiosa dedução e torná-la tão absurdamente fora de proporção consegue construir em meu rosto o sorriso que só me visitava nos momentos de maior desprezo por pessoas no decorrer daqueles dias. Os momentos anteriores de uma antecipação que eu gostaria de ser capaz de dispensar agora e não sou. Tanto hoje quanto ontem. E o que mais incomodava era sentir a antevisão mais cruel e mais dolorosa que a própria realidade quando consumada. E nisso lamentei não quebrar a minha promessa naquele dia: o gosto da cerveja e o adormecimento das sensações seria a melhor das bênçãos: agora nem tanto, pela insignificância de tudo que vejo depois... Mas ainda ajuda... Só interrompi minha apreensão naquele momento quando Breno disse: “Ele deve ter ido buscar Suzana.” O irmão mais novo de Beto, e baixista da banda, não sabe como isso foi decisivo. Resolvi voltar para casa e só ter de confrontar minha situação a noite, quando a hora chegasse, como sempre imediatista, num uivo exasperado de um coração que nunca se libertou dessa prisão... por enquanto. Ouvi o som do telefone tocar três vezes antes de escutar a voz da mãe de Suzana atender e logo em seguida me dizer que ela não estava. Povoada já mente de conjecturas, tinha absoluta certeza de com quem ela estaria agora, nesse momento.... Meu corpo se contorcia imóvel vendo o tempo viajar sob meus olhos e a resposta alcançando o meu já tão sofrido senso... Facilmente invocava todas as memórias que era capaz de conceber a respeito de Suzana: a dor e o prazer integralmente sobrepostos nos momentos que passei com ela, usufruindo cada pedaço da amizade como se fossem os presentes mais valiosos dos deuses para um pobre e inocente mortal. Sua voz e seu sorriso através do telefone: os contatos não eram tão prementes como são hoje: planejados e bem cuidados para não levantar a suspeita do que está querendo ser dito. Naquele tempo nunca soube com certeza se ela sabia ou não; provavelmente sentis que algo havia mudado no meu comportamento, mas nada tão próximo dos pospostos momentos que jorraram logo após; e no eco das palavras que fizeram por tanto tempo confundir a todos, inclusive a mim mesmo que as pronunciava com tanta destreza: era o que eu fazia de melhor... No final daquela tarde meus pais apareceram “juntos” em minha casa. Curiosa sensação ver aquelas duas pessoas juntas. Importância mínima dou agora à separação dos dois, mas a imagem de uma família completamente desmembrada geralmente jorrava em meus nervos como enxofre sobre o carvão em brasa; explodia em mim quando via o cinismo e a hipocrisia dos dois ao se tratarem como amigos tramando suas próprias vidas em separado, simplesmente com a sensação de desencargo de consciência nas costas: “Hoje fui legal com Fulano, portanto amanhã posso ser o mesmo miserável de sempre”. Essa ambigüidade humana sempre me irritava; principalmente quando eu a sentia dentro de mim mesmo: sendo educado com pessoas que nem conheço, nem respeito, nem ligo, nem quero conhecer; fazia parte do trabalho de sobreviver a cada dia num mundo que vejo com tão pouca relevância agora: um lamento pelo que fui e fiz, e um gole de cerveja pelos meus olhos estarem tão abertos agora.... Os dois chegaram, falaram, reclamaram, riram e se foram. Minha expressão era tão distante quanto eu gostaria que eles estivessem naquele instante; não importava o que eles fizessem, juntos ou separados... Olhei pela janela os dois partirem de carro. Via o azul dele vibrar em vermelho logo após desaparecerem na curva... Era estranho sentir meus dentes rangerem na montagem de um cenário no qual aquele carro de classe média se tornava a última e eterna representação daqueles dois rostos que por tanto tempo foram os que mais surgiram a minha frente: infância e adolescência confusa, para desaguar agora nesse alvorecer.


Como o céu brilhava naquele dia! Já começava a anoitecer e tudo se tornava meio róseo. O crepúsculo sempre foi para mim uma metáfora do que eu era: uma transição: havia o modo como as pessoas me viam, o dia; e havia a noite obscura e desconhecida da luz que sonhava e imaginava com o final perfeito para o tal apocalipse, como é da sua conotação: revelação. Um exercício sempre m fez estabelecer a diferença entre os dois “eus”: apreciar a própria respiração. É o que faço neste exato momento sem precisar de nenhuma concentração... Mas algumas vezes não dava certo. Algumas vezes eu ficava perdido e o eu da noite surgia a luz, e me afastava das pessoas, inclusive as que eu mais amava... E uma imaginação tão rica de frustração e malefício vinha cruel e mais destruidora... a cada aparição dessa minha atual imagem.... Porém, ainda naquela época, estar apaixonado ajudava, e mesmo o ciúmes se tornava agradável, como ciúmes; tornava-me mais humano e mais passional a respeito de mim mesmo, que antipático para os outros: lacônico, sensível e triste... O que mais doía era assistir o anoitecer sem ela, e isso ainda era normal. Logo a noite chegaria e mais.

Existe um filme com um ator muito famoso. Na história ele é um traficante de drogas “aposentado” que é apaixonado por uma linda mulher. Por medo de seu outro lado ele não se revela a ela apesar de se manter sempre perto. Mas o sofrimento dele começa realmente quando um amigo dele, que é policial, começa a sair com ela. E a guerra de afetos, paixões e drogas se dá num tom continuamente ambíguo. Até o fim. Antes de estar presente naquela situação houve outro personagem na vida de Suzana. Por algum tempo foi suportável tal situação porque ela já estava com ele desde bem antes de nós nos reencontrarmos: tínhamos sido colegas de ginásio e começamos a revisitar nosso passado meramente cordial. Tudo começara a queimar em minhas entranhas quando comecei a sentir muita falta de sua companhia, mesmo pelas poucas vezes que estivemos juntos sozinhos: seu forte braço e o cheiro de seus cabelos inundando meu rosto enquanto sentia seu braço em volta do meu pescoço; por milésimos de segundo desvanecia em suas mãos, pendendo meus braços em volta de sua cintura e desejando prolongar aquele abraço pela eternidade que me restasse nessa vida; e foram estes os poucos e melhores momentos que podia recordar naquela fase de minha vida: a forte e frágil sensação tão agradável que carrego até hoje como algo que talvez tenha feito sentido na vida.... Nisso acredito e quando me volto vejo novamente a imagem se formar nas lembranças de minha imaginação naquela noite. Por mais que a paixão fluísse em minha corrente vermelha como um terrível vírus de reações imprevisíveis, eu estava indo para a apresentação do pessoal. A janela do ônibus refletia a mim com o frenético movimento por trás como se fosse um fotograma cinematográfico que emperra na frente da luz se debatendo com a projeção da imagem na tela, compondo um verdadeiro pandemônio turvo e indecifrável. Conseguia ver claramente meus olhos, acentuadamente escuros pelas sombras da noite do lado de fora, mas com certeza profundos no que viam no interior do ser e no que não queriam ver, e no que com certeza veriam. Diligente a advertência meus olhos captaram quando cheguei no local do concerto. Suzana foi a primeira pessoa que vi. O que era aquilo que veio rasgar meus sentidos naquele momento: mal conseguia olhá-la nos olhos... Estava linda como sempre eu conseguia me lembrar dela, mas minhas atitudes tinham outra estranha resignação ao observá-la sorridente cumprimentando um velho amigo: eu. Só consegui estender-lhe a mão para cumprimentá-la; muito distante dos fortes abraços que sempre dava com entusiasmo. Imaginava que talvez ela sentisse alguma coisa além dos meus problemas e olhos esvaziados, e dissesse com voz confiante e amorosa algo que fizesse com que tudo aquilo começasse a fazer algum sentido; mas não houve nada, nem poderia haver: só via em sua expressão o lamento por me ver tão perdido em uma situação na qual mesmo sendo o suposto elemento chave, desconhece completamente o fato, ou talvez ignorasse... Não consigo imaginar qualquer pessoa no mundo fazendo alguma idéia do que passava em minha mente naquele instante, ou no resto da noite, ou mesmo agora aqui, pungente vendo nesse morro vendo o sol nascer... Então talvez o que ela tivesse na cabeça seria, e será, algo de plenamente sozinho, individual, feminino e completamente desconhecido... Mas na rede de minha visão era apenas doloroso tê-la tão perto e senti-la tão longe ao mesmo tempo. Simplesmente entrei no estabelecimento; com os mesmos pesares de um corpo cansado que já parecia me acompanhar por tempo demais... Procurei me sentar até o pessoal aparecer. Ter os ouvidos tragando a música com a cabeça enterrada nos “speakers” daquele auto-falante deveriam fazer meus olhos pararem de enxergar a luminosidade do rosto dela ao contemplar Marco no palco, tocando. Estava na extremidade oposta do palco em relação ao lugar onde ela ficara; a luz era difusa, o movimento era intenso, mas as manchas de pessoas que eu via pelos olhos velozmente em movimento seguindo a cabeça no ritmo da música não eram capazes de confundir a visão ou imagem que tinha dela. Mesmo eventualmente fechando meus olhos já cansados da mesma visão, não parava de observá-la na escuridão do meu pensamento e a cada fagulha do que eu sabia, e do que tinha heroicamente conseguido evitar de ver naquela noite, o tremor da vaidade subia às pontas dos meus nervos e músculos, e a tempestade de agressividade nos movimentos continham a extensão da vitória ressentida pelos valores dos meus sentimentos, e tudo que se revoltava no que eu via como única saída. Sentia as luzes e as vozes se esvaírem à medida do


novo som que culminava ao final de cada refrão; podia sentir seguir a apresentação dos meus amigos em cima do palco, logo em minha frente, mas o que eu começava a ver realmente eram as deformações no s rostos e corpos de cada um: o forte cheiro de cerveja vomitada entrava pelas agora híper sensíveis, parecia invadir também meu paladar, mesmo eu não tendo bebido uma gota; um forte enjôo logo tomou conta do meu abdômen, e junto com as batidas de cabeça que eu continuava a dar, vinham fortes convulsões que pareciam compartilhar do ritmo da música, agarrando os acordes altos e baixos como a marcação para os intervalos de ida e volta. Comecei a devanear meus olhos acima das cabeças de todos e não parecia haver mais vida por ali: o movimento todos se tornava uma onda de cores e manchas, com uma textura indescritível que rompia o veludo e passava a um tipo de sangue muito grosso, borbulhando lentamente no compasso da canção que era tocada. Do chão então se ergueram flutuando diversas latas e garrafas de cerveja, de diversas marcas, que começavam a se tornar pontiagudas e cortantes, quebrando-se e afiando-se umas às outras como que guiadas por mãos invisíveis, e em seguida começaram a cortar em diversos talhos e perfurações a onda logo abaixo. Daquela textura começou a jorrar vários tipos de pedaços de estranhas vísceras, humanas e não humanas, como pedaços de carnes salpicando dentro de um triturador de alimentos; tomando logo após a forma de um rodopio pelo ambiente, tomando conta de todo recinto com sua cor e fedor próprios, finalmente escoando para dentro de um orifício circular preto amarronzado que ao receber toda carga daquela devastação se fecha rapidamente, ase abrindo em seguida e voltando a fazer o mesmo movimento até que não vejo mais nada além da minha própria visão: o olho do estranho criador daquela destruição... Eu... − ...Aaahhh! − ...Aayyeeehh! - Meu grito foi confundido pelo grito do final daquela música. voz de Romero nos amplificadores e auto-falantes, Juntamente com os sons finais dos instrumentos, foram o suficiente para camuflar com eficiência meu assombrado retorno à realidade. As pessoas ainda estavam lá. As latas e garrafas ainda estavam no chão. E Marco estava lá, curvado, beijando Suzana, a visão que eu havia tentado evitar até aquele momento; e logo se tornara custosa: rapidamente o sorriso dela se voltara para meu rosto assustado e paralisado: não sei o que ela realmente viu, ou pensou, estava escuro, confuso; mas vi seu sorriso se derreter um pouco para algo que não consegui definir naquele momento, mas ao reconhecer a minha expressão na hora, sei que era algo simplesmente humano, de difícil compreensão e que nunca se menciona: é com ser pego nu: se um não falar, o outro fica calado... Porém algo do instante sempre restaria, e nada ficaria tão simples depois de minha imaginação ter sido tão absurda naquela noite; e dois mundos ficariam claramente expressos, toda vez que aquela dor me voltasse, e novamente eu estaria perdido... e todos morreriam.... no mesmo instante onde agora aplaudem os cinco rapazes sobre o palco. Minha cabeça doía. Queria poder me deitar no colo de Suzana e dormir no silêncio perdido da paz que seria possuir seu calor perto de mim como uma segunda pele que faz parte e é tão importante quanto a minha própria. O amor suave e o sono leve de um sonho afastado há muito tempo de meu peito já tão exaurido pelas perdas dos anos e dos dias... Não tinha colo algum, só podia me debruçar na mesa escura do bar ainda vazia, pois todos ainda estavam no salão assistindo o final do show. Gosto da música, ela ainda ressoa agradável, apesar do alto volume em meus ouvidos já dormentes pelo zumbido que eu sabia que permaneceria por pelo menos dois dias: era um pequeno preço a ser pago por ter um gosto musical bem atendido: o rock sempre fala mais alto... O sono começou a chegar rápido num corpo tão abalado; sentia como num navio, flutuando em alto mar, sem conseguir definir bem onde era esquerda e direita, com o equilíbrio afetado, a cabeça latejando e a mente explodindo de imagens tão confusas... E eu não havia bebido... Somente a emoção do coração partido parecia persistir na realidade dos meus últimos pensamentos acordado: o começo da triste sensação do amor perdido; mas também ele se foi... “A cortina de chamas se abaixa para revelar a meus olhos uma avenida larga iluminada pelo sol forte de uma vibrante manhã de domingo.

Trafegando solitário por ela está o carro azul metálico que reconheço como sendo o de meu pai. Não surge de modo estranho que eu possa vê-lo de vários ângulos diferentes, indo em velocidade moderada na direção de um semáforo. Dentro dele estão meu pai, dirigindo, e minha mãe ao lado. Ambos parecem felizes e descontraídos indo de encontro a qualquer destino que o destino lhes apresentar. A velocidade começa a diminuir gradativamente a medida que se aproximam do sinal, até que o automóvel pára. Logo abaixo, na margem de minha visão, vejo que o fogo da cortina continua a queimar brando, iluminando estranhamente o cenário de baixo para cima. O sinal se abre. O carro não se move. Meus pais começam a se movimentar de maneira estranha dentro do carro. O som do motor desaparecera por completo; há somente um tenso som reticente no ambiente, como algo começando a crepitar em meus ouvidos. Noto eles tentando abrir as portas, mas sem conseguir. Finalmente alcanço o fogo que começa a subir por debaixo do carro fazendo primeiro o chão enrubescer-se e logo após o próprio carro em si, tornando sua cor fria em uma brasa viva e flamejante. De dentro do carro ainda posso ver os dois baterem nos vidros enquanto suas expressões desesperadas se tornam máscaras derretidas de carne super aquecida. Não posso escutar, mas suas bocas já deformadas pronunciam meu


nome: não sei ao certo se em socorro ou em lamento, mas algo que vai simplesmente desaparecendo a medida que seus corpos se tornam pastas inertes, ainda borbulhantes, dentro do “forno” de quatro rodas que termina por se queimar completamente e desaparecer nas chamas, fechando-se novamente a cortina sobre meus olhos; logo após se tornando escuridão e em seguida diversos sons amontoados que facilmente eu entendo como as pessoas ao meu redor, chegando, se sentando e conversando....” Já estava acordado, mas muito mais que isso, surpreso por continuar tão lúcido após testemunhar a morte dos meus pais, de uma maneira tão singular e de um modo, que também surpreendetemente, me era tão familiar quanto meus pensamentos naquele dia tão estranho, triste e estressante. Por que as coisas tinham de ser assim, daquele jeito?... Eu estava muito cansado. Estava com a cabeça pendendo para fora da janela do carro. Meio que de bruços. Com o rosto para frente, sentindo o forte vento em minha pele. Beto dirigia insólito em relação aos meus problemas, apesar de uma visível preocupação durante a noite. Havia cumprido a promessa que tinha feito a ele de não beber, mas meu comportamento não tinha sido dos mais recomendáveis junto aos amigos; sem mencionar a minha particular esfera de sonhos, imaginação e realidade, que compusera aquele tão singular laconismo, e a agressividade: minha frieza com Suzy parecia doer muito mais que o latejar que ainda vibrava em todo meu crânio. Seus olhos perdidos na incompreensão, minha paixão escondida, minha dor... E não foram poupados os extremos de quem se aproximara de mim naquela noite: cada rosto que eu conhecia, desconhecia e reconhecia parecia flutuar em minhas lembranças do futuro, como nunca existentes mas sempre presentes naquelas minhas imagens tão nítidas e viscerais do jogo sem sentido que acabou se tornando tal madrugada tão fria quanto algumas de minhas ações... Tinha na lembrança as figuras de todas as faces alegres que cruzaram comigo antes, durante e depois do show: casais de amigos sempre agarrados, inclusive Suzana e Marco, que tive de suportar mais algumas vezes calado o espírito da convivência e do malefício em seus beijos e abraços de jovem casal recém formado... Felicidade tanta, que surgira inocente o mesmo Marco em minha frente para convidar-me para o seu aniversário no dia seguinte... Imaginava enquanto ele falava o quanto não deveria estar realmente ofuscado pela presença de Suzy ao seu lado naquele instante: o suficiente para não ver que estava se dirigindo a um simples boneco quase inanimado, uma representação ainda viva do que eu já não era mais: alguém.... Não precisava saber o que acontecia comigo. Merecia minha inveja, e também o meu abraço agradecido pelo convite. Tão morto quanto eu mesmo; um viajante inocente na troca de olhares com o seu par, pondo mais dúvidas nas perguntas ainda não feitas, mas breve pronunciadas... Sentia como aquilo marcava; não só a mim como aos outros: Romero sobrevoara embriagado nas minhas ações e se mostrara preocupado; achava ele que eu também havia bebido; talvez se o tivesse teria agido diferente, mas é um lamento sem pertinência agora... Também ele ficara feliz nessa noite, arranjara uma namorada. E tudo mais que eu conseguir ver... de real; além do mórbido real que eu podia sentir crescido em meu peito como um tumor de uma vida inteira: seguindo o movimento veloz do carro na madrugada. Faces sem expressão que habitavam as ruas escuras, inundadas pelo horror fétido da sobrevivência e da falta de sentido de todas aquelas coisas e criaturas: mendigos, prostitutas, drogados, travestis, meus amigos em seus próprios cenários, meu amigo dirigindo silencioso para sua casa, onde eu também dormiria aquele resto de noite para poder ir direto ao tal aniversário de Marco..., a escuridão, o cheiro podre da cidade e os meus olhos perdidos, se inundando e logo escorrendo as lágrimas quebradiças de um momento de extremo medo, de dor e de vontade de descobrir o porquê de tanto sofrimento numa alma que só queria a paz. Agora sei e as lágrimas ainda querem correr....

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Suave como a queda da montanha mais alta que um sonho consegue conceber, sem o alcance suposto de sua base mais sólida; não começa e nem acaba, apenas existe e trai meus olhos flamejantes do calor de um sono sempre consciente e sem nunca comportar o verdadeiro precedente do fim da fadiga: ela sempre permanece e fica, e traz no conjunto de imagens dos dias passado e seguinte o que mais tenho a temer... Depois da passagem cuja o vento frio fazia se auto anunciar com o temor das novas revelações de um novo dia decadente na história de nós seres humanos tão providos de clarividência que simplesmente morremos ao chamado do desconhecido. O portão se abria com peso, robustez e lentidão, como haveria de ser nas tristezas de seu escuro conteúdo. Sinto a umidade fria da rua semi-iluminada de uma madrugada insone na vida de todos que aqui vivem. Os passos são largos e apreensivos; no corpo, a penetração constante daquele ar cortante em todos os poros, invadindo a alma dos calafrios vivos da memória de todos os dias... Como não pude imaginar o assustado e selvagem dos rostos que se escondiam na escuridão fétida e miserável daquela rua; eram os rostos de todos os dias como eu disse: ignoráveis figuras do dia a dia que me escoltavam com o olhar pelo meio daquela pista sem destino. Pareciam grunhir os estranhos sons de suas fomes diárias, mas com a estranha satisfação de estarem se mostrando contentes com suas tão desagradáveis ações diante de meus olhos: podia ver também, como o sentido obcecado de uma ordem cegamente obedecida, sugavam, arrancavam e engoliam suas próprias


línguas: devoradas suas fomes e misérias com o aplacar da vontade no silêncio bem construído de todos nós que tapamos os ouvidos para o ensurdecedor barulho da verdade logo mais a frente... Porém também isso terminava e se auto concluía no consumo das locas animalescas imagens que começavam a se alimentar umas das outras, em silêncio, com olhos até o final, fixos em mim e em minha caminhada... Não sentia mais o consolo por suas existências; como tudo que parecia haver: o toque do vazio se construía ao meu redor, e junto com as lembranças fizeram aparecer a outra porta em minha frente, a azul com a qual estava acostumado, brilhante e luminosa, aquela que me fazia querer acordar tão vivamente, mas que também me deixava capaz de usurpar da realidade a capacidade de escolher... E mais do que nunca, naquele domingo, eu não queria acordar... Sabia, como sei agora tão sólido e frágil quanto a lata de cerveja em minha mão, que despertar era dirigir minha visão e pensamentos para o que eu não queria; enfrentar Suzy e Marco juntos, rostos confusos de amigos preocupados, pessoas de um modo que eu já começava a não acreditar muito como sendo realmente meu... Ter o alumínio esmagado em minhas mãos já feridas me refaz dentro daquela situação, e a meu frio ver nesse momento, as escolhas nunca deveriam ser apresentadas de maneiras tão dolorosas: deveria ter simplesmente acordado, ido ao aniversário, abraçado minha “amiga” que tanto amava e visto que alguma coisa mais ainda existia, talvez incerto, mas alguma coisa... Pelo menos algum tempo mais, além da minha imaginação, além dos meus sentimentos e além das transformações de uma revelação tão cruel de alguém que acreditava na vida; que resistiu até hoje, por mais pouco que tenha restado do mesmo ser humano daquele tempo.... “Eram os olhos tristes que me recebiam por traz das luzes da porta recém aberta. Ainda sentia minhas mãos trêmulas na maçaneta gelada, de algum metal forjado. O pouco que ainda vinha da realidade soava como um lamento, mas todos os lados tinham que conviver juntos dentro daquela confusão: era a minha mente... Ele havia brotado da luz azul, parte física dela, como que decalcado e reanimado pela minha entrada. Fez um lento movimento em minha direção e como que absorvido pela minha própria sombra, senti toda aquela luz escura azulada começar a vibrar de dentro de mim... Podia viajar dentro da luz, e ver muito mais além do que minha imaginação conseguia tão facilmente prover nos momentos de delírio e agressividade: era como se a fuga estivesse finalmente completada, num estado de total alienação de tudo que é considerado certo, e real.... E as imagens assustavam, como o medo presente na expectativa, como o que agora não há mais, nem nunca houve ou havia; como eu havia tanto temido dentro de um eterno antecipar da revelação: ela só trazia o vazio, nada além, nada depois, nada que reste... Terminada na tela o que sempre conhecera como a fonte da luz, mas na verdade apenas o condutor de mim mesmo para o retorno do que não mais iria conhecer como realidade; e no teor frio do vidro da tela para qual era encaminhado com velocidade só havia uma coisa: a data; e por ela, se tornando cada vez mais gigantesca e disforme pela presença da luz, atravesso o fim, o fim de tudo, só me vindo a escuridão das pálpebras de meus olhos cansados”...., exaustos, muito mais que quando deitara na madrugada passada. De volta a casa de Beto, na cama para hóspedes, com o corpo dolorido, com o arrependimento clemente em minhas entranhas recém refeitas pela escolha que fiz; somente realmente consciente hoje; com pensamentos fixos na desilusão, no que fiz, no que faria daquele momento em diante, no que diria, no que creria, em o que seria.

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Não queria acordar naquela manhã. Ou em nenhuma outra. Mas já estava com os olhos abertos; via ao redor o quarto escurecido artificialmente, porta e janelas fechadas; Beto dormia o sono dos inocentes em sua cama logo à minha frente; não me movia; sentia todo meu corpo semi-relaxado por debaixo do cobertor, parecia ativo, mas inerte, com medo de si próprio como eu mesmo já sentia. Minha visão alcançou o rádio relógio na cabeceira da cama de Beto: eram duas horas da tarde. Havíamos deitado cinco da manhã, já previa acordar tão tarde. O aniversário de Marco seria um almoço, mas todos sabiam que se estenderia muito, já que todos que estariam lá também estiveram no show da noite anterior, todos indo dormir de madrugada, colocando suas mentes entorpecidas e felizes em sua maioria; Marco eu sei que estava; sobre a responsabilidade de um “verdadeiro” mundo de sonhos... Algo que eu jamais não tinha; sentia não ter mais : mergulhado na própria tragédia inconseqüente até aquela noite, sem ter a real noção do quanto as ações de uma vida inteira atingiam não só aquele meu círculo tão bem protegido que eu chamava de vida e que me orgulhava de trazer ocultado dos olhos de todos, mesmo aqueles mais solidários, mesmo daqueles mais amorosos que por tanto tempo ignorei, os quais hoje sinto tanta falta; pessoas que naquela manhã; com olhos abertos para um penetrante nada em minha frente, não conseguia de modo algum considerar como importantes ou mesmo até, existentes: surtiriam com a mesma imobilidade do meu corpo, como figuras além da representação, criaturas ignoráveis ou descartáveis, que na verdade não era, mas que eu não podia deixar pensar como sendo seres sem futuro, sem presente, sem nada além do que foram em minha vida, e na sua grande maioria... motivos para dor, mesmo que sem razão... Mover-me é que era o grande sacrifício. Desci com passos pesados as escadas da grande casa de Beto. Os dois primeiros lances davam em duas salas, onde não havia ninguém; segui as vozes que vinha ouvindo desde que abrira a porta do quarto de Beto até alcançá-las,


após o último lance de escadas que dava na cozinha antes passando por uma vasta área de serviço: eram Romero e Breno. − ... Bom... (Lembrei que já era tarde.).... Boa... tarde. − Mas que cara é essa?! - A voz de Romero vinha como um alegre alento para aquelas imagens tão terríveis que ainda residiam em minha mente. Sua amizade e jocosidade ao reparar meu rosto abatido e cansado tinha o verdadeiro tom do que eu deveria ter realmente apreciado na noite anterior: aquilo: a amizade... − Ressaca?! - Breno se conduziu nessa conclusão. − Mais ou menos... - Disse eu, lento e com pouca diligência na articulação das palavras: o contato com aquela realidade simplória de pós-noite divertida não me fazia reconstruir com clareza meu comportamento sobre tal, mas sim na absorção; tanto de Breno quanto de Romero... Um olha para o outro chapando breve sorriso: − ...Nada que uma festa não cure... − ...E mais álcool! - Completou Romero transformando os sorrisos em gargalhadas arfantes e alegres... O aniversário de Marco: ainda me lembrava e ainda sentia; tentei simplesmente sorrir com eles... (Beber!). Imaginava que se a cerveja teria feito qualquer diferença nos acontecimentos daquelas 24 horas: provavelmente estaria anestesiado pelo torpe freqüência no sangue, mas na sempre clara vinculação com o que eu estava realmente sentindo... Talvez seria como sempre achei que fosse em meu coração e nos rostos de todos que me acompanhavam naqueles dias, apenas mais uma maneira de fugir às visões que provavelmente todos têm de confrontar nos dias após dias de tão confusa existência: ainda não sentia tão forte o desígnio como sinto hoje, mas decidi não beber naquele dia de Tão forte vontade de fugir para qualquer lugar me fez ver que no fim, agora, não havia e nem há lugar para fugir... Entorpecer-me novamente com cerveja se tornou muito pouco prazeroso daquele dia em diante: somente a leveza que trazia ainda era algo a se considerar nos momentos das mais fortes necessidades de sobrevivência, enquanto aguardava... Mas minha imaginação sempre foi de ir muito além do que eu imaginava, e era dele que geralmente me perdia nesses momentos de tão singulares devaneios: a festa viria com o poder da passagem que era os jovens naquela tão crente ondulação de caráter e personalidade que se constituía conhecer outras pessoas, aquelas pessoas, as de todos os dias e festas e fins de semana e shows... Senti a passagem daqueles momentos naquele começo tardio de dia só me vinha com o poder da vontade e previsão do que poderia ser tal memorial de comemoração: meu coração dividia espaço com o crescente medo das visões e as visões se tornavam cada vez mais presentes, como que tomando conta da realidade, e mais que o amor perdido em si que novamente teria de enfrentar, era o que me seria apresentado de tal extraordinária visibilidade durante os mesmos instantes de confrontação, isso sim começava a me assustar desde já, desde o momento em que eu não podia mais voltar atrás na decisão de ir àquele evento: mais uma vez o aniversário de Marco soava com a dualidade do que eu estava vivendo na época, desde quando nem me lembrava mais o que era tudo aquilo que sentia; somente nas imagens eternamente revisitadas é que o sentido se refazia até o sonho daquela mesma noite que se passara... E da festa vinha também o olhar de Romero, na percepção do ambiente, mas despreparado para o meu ponto de vista do real; e dele vinha a primeira imagem , e também a última: o olhar preocupado e as palavras lembradas desde o começo... ainda naquela cozinha: − Cara, sua expressão não tá nada boa... - Mas ele não sabia a razão. Estava preso na minha ambigüidade de pavores e incertezas. Só sabia que de imediato a realidade me dava Suzy longe... e a imagem perto, muito perto. O céu está passando do róseo para o amarelado. Estava mais ou menos assim somente que indo na direção oposta quando chegamos na casa de Marco. Éramos os últimos. Eu, Beto, Breno, Romero. Era mais uma reunião íntima, com pessoas bebendo muito e comendo algumas das coisas que a mãe de Marco tinha deixado prontas. Saíra para deixar o filho mais à vontade com os amigos... Todos cumprimentamos o homenageado. Permanecia de óculos escuros.; me incomodava ter que encarar qualquer pessoa presente ali; não por desdém, mas por minha total necessidade de isolamento. Abracei-o com muita força: nunca deixei de gostar dele: ciúme e inveja sempre pareciam soar muito mais como um elogio; não sei conseguiria sentir tais coisas de alguém que não gostasse... Sentir por alguém que não se gosta parece mais valorizar um sentimento oposto... Mas os meus olhos se entregaram diretamente a Suzana; com a proteção anônima das lentes escuras, tinha a segurança da escuridão para sentir com mais força do que nunca aquela paixão que se tornava o ícone daquele momento de passagem: como a última “boa” lembrança de uma vida tão permeada de lances adversos; insignificantes naquele momento e completamente inertes agora; mas que buscavam uma derradeira aclamação de motivo: coisa de muito meu pouco conhecimento, se o que eu velo é nada... Ao voltar via o sorriso no rosto de Marco; definitivamente um bom amigo para se gostar, mesmo que por nada conseguisse evitar a minha incógnita... Porém o momento me derrubava, e com força... Romero bateu em meu ombro. − Não agarra demais não, cara... Se não a namorada dele fica com ciúmes. − Senti os olhos de Suzy quebrarem através da lente dos meus óculos a minha proteção. A organização das palavras da mesma frase traziam a verdade única daqueles gestos e olhares: todos perdidos nos sorrisos da brincadeira tão bem apropriada para todos, menos para mim, e para ela... E Romero é quem fora de provocar: sem prévia, sem amenidades, mas já muito tarde... Já podia trilhar o caminho agressivo surgindo no meu peito machucado pela verdade. Só me fiz mais sério.


E por todas as perdas que a juventude tem de aprender a suportar em suas vidas sempre tão cheias de revelações e descobertas para caminhos continuamente divergentes, e quase sempre esbarrados no mesmo reconhecimento da própria mortalidade com vias de fato do que vem adiante; nem sempre com o sucesso, ou o amor, ou com a vitória de todos os dias tendo de apreciar sua decadência... Paralisada ela está agora; comecei a freá-la naquela mesma noite eu acho: talvez no momento eu nem soubesse disso, mas no que via, via o fracasso, a submissão ao meu pesadelo do ontem inexistente nas vidas de nós todos, porém admissível em nossas mentes tão clementes pela volta do bom que passou e não volta mais... Mas naquele instante, por detrás daquelas lentes escuras já na noite caída de domingo, algo mais do ontem vinha na imagem que contemplava com morbidez continuamente livre à minha frente, como tentara evitar antes, mas com muito pouca importância agora nas profundezas naquela mente já perdida. Sentado, longe o bastante de todos que gostava tanto, perfeitos pelo álcool, sem a vontade que consumira; sentados a uma mesa na varanda larga de uma casa de madeira e concreto com cor de interior bem sucedido; não muito grande, mas confortável. E então vozes alegres, casais, brincadeiras e distância: Suzy e Marco estavam abraçados à cabeceira da mesa de costas para mim, uns dois metros. Seus rostos se encontravam, seus sorrisos se transformavam em beijos e suas figuras começavam facilmente a se desvanecer em minha imaginação : a dor que abatia sem sentido e nenhuma resposta do depois; e pois... Romero estava sentado em cima da mesa, relaxado, entorpecido, vivo e contente como sempre, provocando e participando da alegria de todos... Perguntaria hoje o porquê dele e não do casal como centro da minha imaginação naquele dia, mas nunca houve resposta; somente no momento veio com tanto empenho quanto a realidade, e hoje duvido... Permanecia sentado, quieto, quase imóvel. Real... “Começara a tossir por sobre uma das gargalhadas. Um olhar sério se forma refletido pela lente dos meus óculos. A tosse se torna convulsiva junto com uma expressão apavorada de quem sentia que estava perdendo os contatos com as sensações do corpo. Romero se curva com o rosto para o tampo da mesa sob os rostos surpresos e assustados de um punhado de amigos que começavam a entender que aquela não era uma reação normal, nem a continuação de uma de suas brincadeiras: não havia diversão no desespero dos seus movimentos... Permanecia imóvel; não conseguia parar... Beto começou a bater nas costas dele enquanto Marco tentava manter a cabeça dele parada. Sua posição se tornou como que ajoelhado, mas com a cabeça sempre pendente: as convulsões no estômago advindas da forte tosse não o permitiam levantar por si próprio. O sofrimento se erguia a cada instante com todos meio desesperados e inertes. Suzy olhava assustada sem ter muita certeza de como agir; na época era estudante de medicina, mas as razões de tão fortes explosões lhe fugiam à compreensão, talvez também pela lentidão dos reflexos, como em todos ali, devido ao álcool durante toda a tarde. E Romero continuava a se debater, com a tosse se tornando cada vez mais feroz, alternando os sons de sua origem.... até o momento em que veio... Eu somente observava imóvel, e sentia cada instante do que assistia... A primeira golfada de substância jorrou sobre a mesa banhando com abundância braços e pernas alheios. Era branco, bastante aquoso devido ao excesso de cerveja e cheirava a carne apodrecida; de diversas refeições semi-digeridas por organismo constantemente entorpecido. Todos representaram suas repulsas e se afastaram passos distantes. Compelidos em limpar aquela substância de seus membros e em se libertar do odor que começava a se alastrar do mesmo modo que o líquido pelo chão da varanda. Porém Romero continuava convulsivo sobre a mesa, liberando o terrível barulho da tosse junto com ininteligíveis grunhidos, que junto com olhos extremamente abertos de uma expressão aterradoramente apavorada, dizia que algo mais estava para sair dali... Uma das garotas presentes gritou histérica, enquanto os outros começavam a se afastar o máximo possível da fonte daquele possível contingente de repulsão. As lentes dos meus óculos continuavam a refletir imóveis o deslumbre da imagem que era ver Romero começar a se erguer lentamente trazido pelas forças da convulsão centímetros acima de sua posição e com o rosto deliberante do terror fazer surgir a segunda golfada.... O som aberto veio com dor... o líquido vermelho jorrou com pedaços negros de carne. Levantou-se o odor daquela onda. A força foi suficiente para derrubar várias garrafas que se encontravam na mesa. Escorreu junto com o líquido branco e tomou todo chão da varanda da casa de Marco. Os cacos de vidro também se juntaram ao conteúdo. Rostos assustados e enojados observavam o cenário e gemiam os sons de suas dores... Ainda imóvel... Romero tombara morto sobre a mesa. A face deformada pendia para o lado junto com a cabeça. Uma expressão imóvel que não repetia sua eterna alegria. − Meu Deus... − Alguém disse. Deus do céu! Como pude deixar acontecer em minha frente e não fiz nada para acabar com aquilo... Ofereço uma lágrima por você, amigo. Preso nesse único instante, só posso lamentar... Era o que eu mais temia de minha imaginação: a perda do controle, sendo tomado, indefeso contra mim mesmo, e pondo todos em risco, acreditava... Minha presença ali, naquele ambiente tão repleto de calor humano, só me fazia lembrar que no frio solitário eu estaria bem melhor após saber o que sabia e após sentir que ainda sinto... Para todos e por todos daquele dia em diante, era melhor que eu partisse. Ainda via Romero rindo sobre a mesa, a atenção para toda alegria que eles ainda mereciam... Parti, antes que eu parasse de pensar assim, antes que os sonhos se tornassem realmente realidade, enquanto eu ainda os adorava, pois eram como eram, e eu estava aparte... Saí da casa de Marco sem ser percebido. Não queria me despedir. Não queria nada. Só um último pensamento por Suzana enquanto começava minha caminhada de volta...


“Será que algum dia eu conseguirei falar?...” O amor teve vários nomes nesse peito dolorido. Mas naquela caminhada pela beira-mar, numa noite fria e chicoteada pelo vento, somente o seu nome existia. E somente as memórias serviam como grande conforto para o verdadeiro mar de dúvida que afogava o meu senso naquele momento, e sempre bastaram as memórias, somente elas... Os dias que me levaram àquele momento foram muito mais que uma carga de emoções em ombros já arqueados pelo cansaço. Sentir com força os pesares de situações que eram muito além do meu controle, fora de minha antes tão segura imaginação, situações que traziam as capacidades de todos que me rodeavam com atenção ou ausência. Foram todos aqueles olhares abismados ou pouco preocupados com meu tamanho aprofundamento em uma simples visão de mim mesmo, perdido entre a paixão por Suzy e o medo pela incerteza de um porvir tão notoriamente predestinado, algo que me seguia há tempos, mas teve seu extremo como refúgio da realidade tão dolorosa, emocional, naqueles últimos três dias, antes e até o sonho, logo e durante, depois das visões: uma mistura de minhas criações com meus anseios e frustrações, e com minhas revelações, na trajetória do medo, ou pavor crescente, que me acompanhou naqueles dias até “a data”, até o momento aqui tão vivo, presente advindo daquele passado: não muito lógico talvez, mas com certeza necessário aos meus olhos cheios do vazio que isso trouxe... Mas foi, é, muito mais que a data; mais uma idéia... tanto mais em mim, o eu, durante e a partir daquela caminhada... Num lugar onde sempre adorei o mar. O meu.

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Quando mais se poderia especular que o fim estaria próximo dos nossos olhos do que agora? A pequena narrativa surgira do meu desavisado pai quando eu menos aguardava sua palavra: ele é jornalista, relativamente conhecido no meio e respeitado por aqueles que o conhecem; mas pouco isso afetava a vontade que tinha de não estar em contato com coisa alguma. A história que contara quando em breve visita a minha casa dizia respeito de um boato: ergueu-se no seio popular de um pequeno país , muito pobre, próximo ao nosso; não que o nosso fosse rico, mas muito maior. O que não importava muito em nenhum dos casos quando se tratava de absorver os absurdos falaciosos da vida quotidiana popular, porém nesse caso somente lá chegou o extremo daquela especulação. Admiro por tais fenômenos sociológicos, meu pai tratava com entusiasmo e fascinação a espanto as reação do público; admirado o quanto a submissão religiosa e inocente do povo, o levava a ações de desespero tão irracionais... aos seus olhos, pelo menos, como eu via... O dia de Corpus Christi do ano em questão, o passado, havia caído numa data que segundo os nossos escritos tradicionais básicos, a Bíblia, trazia o tal número da desgraça total para todos que aqui na Terra habitam: 666. Tinha passado o feriado de 06 de junho em casa sem querer pensar em nada, muito menos que o ano em questão também terminava em seis... Porém sem absorver nada disso ele continuava proferindo sem restrição ao meu desinteresse como famílias de lá daquele país estavam epidemicamente determinadas a batizar todos os seus filhos recentemente nascidos; provocando um aumento nos batizados do país em cerca de 2000%. Não era exagero. Diferente de outros colegas de profissão muito entusiastas a respeito do que relatam, meu pai realmente se prendia aos fatos, pelo menos nos que tinha acesso: me mostrou um recorte de um respeitado jornal de circulação nacional onde tais dados e números eram confirmados à risca. Isso não pude ignorar, pois o pedaço de papel estava em minha mão, e não sei porque continuava comigo mesmo após meu pai partir... A bagunça do apartamento não impressionava tanto a ele quanto a minha mãe. Ele também vivia sozinho: era bem mais limpo do que eu, mas pensar nisso parecia uma nuvem transparente num céu essencialmente azul: Se nunca gostara de limpar minha casa, naquele momento muito menos. Mas a questão é que ele fora emborca aquele dia me deixando aquele pequeno artigo de jornal recortado; havia falado muito para alguém com quem normalmente conversava muito pouco, mesmo quase que somente ouvindo sua história. Imaginava o que havia realmente compelido aquela ação tão... solidária... a seu modo: Dividir o entusiasmo da sua admiração por uma coisa de certo modo tão banal, até comum em tempos apocalípticos como esses. Havia realmente algo de extraordinário no fato do seu alcance, já que o artigo dizia que o tal boato alcançara até o outro país vizinho, tão pequeno e pobre quanto; pelos seus números, e principalmente pelas suas coincidências: a data realmente batia, seja o que for que isso signifique para mim, ou para meu pai: para o tal povo era a confirmação de coisas escritas há quase dois mil anos e admitidas como verdade imutável até hoje... Mas no meu particular caso, o que tendia a impressionar eram as reações já ditas do meu pai, comigo, para mim: ele sempre fora mais próximo da minha mãe, mesmo separados, do que de mim... A imaginação do aprendiz então vinha conviver com o real na lembrança que causava ver o carro dele sumir na curva como daquela outra vez... e queimando em labaredas infernais logo depois na imagem de um dos devaneios sem sentido deste que agora estava finalmente com alguma coisa a mais na cabeça além da própria dor perdida no tempo de dias atrás. Achava realmente curioso que o que vinha novamente a me instigar eram fatos que normalmente me trariam medo, mas que ao


olhar as palavras impressas no papel novamente só me faziam ver o quão longe regularmente íamos em nossas divagações entre o real e o imaginário: o que acontece quando o segundo domina o primeiro, e o real se torna a incógnita, a virgem incansável que se recusa até a more e que nos deixa gratos ao final de toda peleja por finalmente nos revelar o porquê. Talvez, na verdade, eu só quisesse anestesiar o medo, e a dor. Meu pai ajudou naquele dia; sem pretensão, mas definitivamente importante. Sozinho tendia a olhar o meu redor ao meu redor: uma situação muito pouco usual em alguém daquela idade estar solitário em dias seguidos de perda na própria imaginação abatida. Surgia uma questão natural de limites a serem atingidos pela natural tendência humana em ter sempre certeza absoluta a respeito do que lhe rodeia e sobre sua fé ou crença. Por mais irracional que parecesse tal crença para outro, era verdade total e absoluta para quem acredita. Um estudioso em lógica facilmente enxergaria o absurdo das ações de tais pessoas e saberia com certeza deduzir de onde havia surgido os argumentos para irredutível fé que admitia que seu o “seu” próprio filho poderia estar para ser o representante da destruição da vida na Terra... Temer o desconhecido se torna a maior das proteções contra a diária e conhecida batalha pela sobrevivência, pois admite-se que o desconhecido existe e ele gera ações como aquelas descritas no artigo de jornal, porém há sem dúvida algo mais extraordinário em ver que pessoas pobres, comuns, simplórias, oferecem-se para penetrar em tal atitude, com desconforto para si e para os filhos, inocentes a tudo, tendo que rapidamente e sem razão receber uma água pelo meio da “cara”,; tudo simplesmente para se proteger de uma admitida criatura, completamente estranha aos homens, que se ergueria a partir de uma daquelas crianças... Eu veria mas na situação se não fosse por mim mesmo: há esperanças, sem dúvida; vontade... Mas a que preço de uma imaginação coletiva tão crente que leva a isso... Vi-me naquele cenário. E estava realmente lá, corrompido pela certeza de um depois tão totalmente vazio, como talvez esteja agora, mas no momento foi uma pílula que custou a fazer efeito, e quando fez me pareceu como: se tão longe todos aqueles pais puderam ir , minha atitude comigo mesmo seria também um grande sacrifício, sendo “batizado” pela dor, pela lembrança e pela revelação: era um desconhecido, e como eu tinha concluído... era uma esperança. Não queria ficar mais sozinho.

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Começava com a necessidade em reviver as situações. Vinha sempre com a voz estranha que compunha os meus pensamentos mais reflexivos. Talvez fosse e é minha consciência: ela simplesmente conversava comigo que exasperado desejo de contrariar o que quer que fosse a minha vontade, e era essa que dominava as visões de minha imaginação; não que tivesse vontade de fazer aquelas atrocidades , mas foi através dela, a imaginação, que a vontade conseguia superar a voz (consciência?). Por isso então, provavelmente, a sensação de estar adormecido, não sabia se a voz, a vontade, ou eu mesmo... Com certeza alguma coisa de difícil expressão no mundo real, esse aqui tão diferente do que realmente era naquele tempo... A primeira memória que tinha era sempre a do beijo: Michelle foi uma presença notável numa época bem menos destrutiva que conseguia me recordar; um ano antes talvez daquela situação que começava para ser concluída hoje... Não havia terminado a faculdade ainda, mas me dedicava muito a um trabalho que me levava a muitos lugares diferentes e me fazia entrar em contato com um grande número de pessoas diferentes... não recordo com segurança o nome daquela cidade. Chegando de ônibus pelo alto de uma serra podia-se ver toda ela; ficava num pequeno vale e se estendia por todo ele começando a demonstrar sinais de progresso comercial e urbano iminente: por isso estava indo lá, chegando: estava procurando novos clientes... As construções mais altas não superavam quatro nadares. Haviam três praças principais, com muitas árvores e bancos para namorados. E é claro muitas igrejas espalhadas pelos cantos de cada bairro: sempre fora mais importante nessa terra estranha ter uma fé para alimentar o espírito fraco do que ter uma fonte de abastecimento para a carne mais fraca ainda, debilitada, na verdade... Eu tinha de procurar uma família que era dona da única “rede” de supermercados do lugar: eram somente tr6es lojas, não muito grandes, mas estavam sempre lotadas, pois não havia escolha, nenhuma senão plantar para a sobrevivência: e era o que alguns poucos faziam, resistindo aos luxos do mundo exterior; ou melhor, aos preços extorsivos da rede... Essa família queria expandir para o resto da região, e por isso eu estava lá; também vendendo, e também cobrando um preço extorsivo só para dizer-lhes de forma acadêmica tudo que eles já sabiam sobre comércio, vendas e promoção: foi bem rápido o encontro com os chefes da família (só homens) e a minha comissão foi razoável. O resto do dia que fiquei lá foi só para aprender aquela lição que há tanto eu preciso concluir: era o que havia esquecido desde o colégio; já tinha os devaneios que sempre tive, que todo jovem tem; mas em mim chegava ao ponto de eu não prestar mais atenção nas pessoas que estavam ao meu lado: amigos, namorada, pais... Entrar na faculdade e trabalhar tinha me libertado um pouco disso, mas foi só durante aquela festa de formatura na qual entrei como completo estranho, convidado pela família, que tive de volta o gosto bom da realidade: a mais doce das realidades que realmente não pode ser superada por nenhuma


imaginação, por mais forte que seja, e sempre foi a única imagem que nunca consegui sentir inteiramente ao imaginá-la... Fui abatido pelo olhar de Michelle (era formanda), e fui completamente nocauteado pelos passos dela em minha direção, e pela abordagem dela que me tirara do meu simplório mundo de visitante a trabalho, e pelo que ela disse: −.... (Não consigo lembrar o que foi!).... − Mas foi sem dúvida algo de admirável coragem e de muito poder de sedução; e me lembrava muito pouco o que tal coisa significava..... até ser novamente seduzido. Ao tocar nos lábios dela a memória se refez completamente a respeito do que era ser um homem novamente: minhas mãos se lembraram do que eu tinha de fazer, minha língua... tudo... Passamos a noite juntos e parte do dia seguinte: avisei logo a ela que teria de ir embora no final daquele próximo dia, tinha faculdade, o trabalho, o..... Era só isso mesmo... Estar com ela foi realmente a melhor, ou mais normal, coisa que havia acontecido comigo nesses últimos anos que consigo me lembrar... Contara-me que estava cansada daquela cidade e que agora que estava formada iria para a capital trabalhar ou fazer faculdade, não importava.... O importante daquela recordação naquela época era a reticente sensação do beijo, a tão forte e rápida atração, o toque da realidade; ainda estava com Suzana na mente como figura feminina; mas a fuga que procurava era do que eu não conseguia mais reconhecer como realidade, e a melhor memória que me restava era essa... Voltei para cá no final daquele dia. A despedida foi emocional, mas suave: viajei todo caminho com aquela sensação nos lábios e no corpo: um prazer tão grande de estar vivo que me parecia completamente alienígena, e era, não era eu, era Michelle em meu corpo e mente.... Estava feliz. E queria estar novamente. A faculdade já havia terminado. Não trabalhava mais no mesmo lugar, por isso viajar estava fora de ordem; o trabalho agora era outro e tinha a responsabilidade sobre o meu apartamento, mesmo sem ter pedido. Estava só e triste, assustado também. Não queria voltar ao velho grupo de amigos onde Suzy e Marco estavam e que me provocava tanta dor e todas aquelas visões. Restava cada vez menos contato com a família.... E de Michelle só recebera uma única carta, a qual respondi, e nunca mais nenhum contato: ela ainda devia estar por aí em algum lugar, mas eu não devia apelar tanto para o passado, pois rapidamente se tornavam na mesma fonte da imaginação; e era dessa que eu achava estar realmente fugindo; era então o que o meu ser estava mais procurando... Meu ser.... Ainda tento descobrir o que foi tudo aquilo: sem dúvida algo mais que o trabalho que ainda tinha de fazer todos os dias; afinal era a última ponta do mundo real que me restava... Mas o quê? A segunda feira erguia mais desaparecimento de um sozinho e sólido memorial de estranhas procuras para fora do que perguntava ser o extremo; pois para fora do que eu sentia tentar fugir seria o meu trabalho de há mais ou menos um ano e meio atrás: como agora ainda seria se não tivesse descoberto , como cedo ou tarde, e foi tarde, a minha arte; principalmente porque agora o que menos importava era passagem ao depois, como haveria de ser num ser de normal atitude diante do trabalho que tem de se encarregar nos seus dias aqui... Resumia-se a muito pouco em importância, em virtude, ou em aventura; mas se assemelhava ao anterior, o de muitas viagens, em atitude: sempre fora da minha formação a área que tinha escolhido como para sobreviver à realidade, e então eles vinham, as empresas, e nos consultavam sobre todos aqueles aspectos que já havia tanto revelado em minhas viagens a pequenas cidades, brigando por reconhecimento e por comissão.... Que muito pouco sentido faz isso hoje para mim em igual situação de conforto diante do desconhecido depois de vazio completo, pois para isso procuravam tais, como eu, profissionais, para mostrar-lhes o futuro e depois dizer-lhes atitude, mais inevitavelmente desconheciam as próprias razões de tal insatisfatória procura, porque como eu não tinha conhecimento do futuro, muito além das reações de seus públicos consumidores, que também ignoram as razões, e principalmente como que naquele momento, menos agora um pouco, não tinham absolutamente nenhuma razão... As portas do elevador cor de metal fosco se abriram para o corredor de portas dos diversos escritórios que compunham a nata dos profissionais liberais daquele pequeno e limitado mundo do visível do sobreviver a cada dia com o empenho de seus músculos e mentes brilhantes: as diferentes e numerosas áreas de um mesmo mundo com muito pouco a ser oferecido para qualquer realidade de tentativa alternativa. Até chegar ao recinto onde trabalhava passava por seis advogados, dois dentistas, dois contadores e um contato comercial de revenda de material pesado para agricultura industrial... Imaginava porque não deveria haver também um conselheiro espiritual, um filósofo e uma mãe em cada um daqueles longos corredores de pessoas desconhecidas. Trabalha-se, ganha-se dinheiro, alimenta-se e se volta para o mesmo no dia seguinte, passando-se rapidamente em casa para ver se os aparelhos eletro-eletrônicos ainda estão lá para que no fim de semana possa-se limpá-los da poeira da semana e em seguida deixá-los sós novamente para poder-se sair novamente procurando novamente, como no fim de semana anterior, alguém com quem usá-los, porém a ;última coisa que se faz quando consegue-se encontrar alguém é usá-los, e geralmente não se encontra, e não se volta, e tê-los perde completamente o sentido, se não fosse apenas para usá-los com alguém; mas quem?... O conselheiro espiritual diria que a alma tem que ser abrandada, pois o ímpeto do amor perfeito é que fará tudo se realizar, então trabalha até alcançar o outro, depois trabalha com o outro até encontrar o fim, a paz, o ... Na porta seguinte o filósofo traria a versão do seu autor favorito se fosse cínico o suficiente para se dizer o tal profissional , quando na verdade seria um “isso”ista. E se fosse realmente um filósofo, faria com que a consciência se tornasse o interlocutor de um infinito diálogo, onde por muito pouco não se consegue a resposta, pela simples razão de se estar vivo e acordado; porém para isso o sujeito teria


de se desfazer do seu trabalho, e logo os outros profissionais das salas vizinhas o considerariam um entrave, mesmo sendo com certeza o mais proveitoso de todos, pois daria um, pelo menos, único sentido à existência do elemento: que seria eternamente perguntar o mesmo: valor não falta e por isso admirei esse lado da minha divagação enquanto andava pelo corredor em direção da minha sala, que não era minha... Porém o final fardo de tudo foi o que mais me fez falta naquela final conclusão: eu queria somente a mãe, para a que ao final das portas do corredor ela surgisse então e abrisse os braços numa sala macia e o sujeito (eu) pudesse descansar do encalço sem achar o sentido do depois e finalmente pudesse sumir de tudo ou voltar-se ao trabalho, sem a resposta, mas com intento, calmo. Talvez até fora do mundo.... Quando cheguei à porta a qual deveria entrar, me vi terminando aquele pensamento realmente dentro daquela sala macia, e coisa mais próxima da qual podia enxergar aquilo no real foram as salas alcochoadas dos hospitais psiquiátricos, e a mãe seria a camisa de força?... − Bom dia. − Alguém disse... Estava solto nos meus passos ao entrar, mas me trouxe de volta, e pude retribuir o cumprimento matinal devidamente. Que tragédia minha e de minha geração a procura do que havia me referido; se não todos, a grande parte que agora convivem comigo, e eu mesmo. Fui quem primeiro estava ansioso por saber como as vidas dos outros tinham se mostrado naquele recente fragmento de fim de semana. Não pretendia conscientemente readquirir o gosto por qualquer coisa que eu haveria de ter perdido entre os caminhos dos meus dias mais inúteis do passado; como agora reconheço cada dia como único de feliz incidência de mim mesmo num ponto de única felicidade, pois: “Este dia me é inédito, pois nunca o vivi, tão pouco o amanhã, mas aprecio o reconhecimento de cada novo momento estranho, pois ainda existente, mas claramente meu. E único.” Mas tal ciência só existe sob certa via, que não era a minha.... A intenção por outras pessoas ao questionar seus ausentes momentos de minha pessoa era apenas um leve despertar do que eu começava a considerar como necessidade dos dias que se seguiam; como aqueles que viam mais adiante, re-assentando os que vieram antes, de onde havia sobrevivido cheio de perdas e danos da maior idade psicológica, tão rara de fazer-se atravessar em dias de um atual e tão fatal desdém pelo que é de fato importante ao jovem coração humano em desenvolvimento: arrogância procurar resposta para tanto ainda nesse mundo... Somente perguntei a Simone o que tinha feito no final de semana... Pequena surpresa assombrou-lhe o rosto. Minha jovem colega de sala. Estava em experiência, mas fazia o mesmo serviço que eu: duvidava eu ser capaz de superá-la em talento para aquilo. A partilha de clientes ainda era favorável a mim, mas logo ela me superaria. Sua capacidade aflorava com a beleza, tinha confiança, vontade, esperança; coisas que começavam a me fazer falta.... Situação difícil àqueles que se fazem concorrentes de um ritmo de vida que afeta qualquer antecipação por dúvidas além do presente. E nunca acreditaria que tais dúvidas afetassem-na; e por isso ela e seu trabalho ascendiam.... Tinha passado os dois dias com o namorado e mais outro casal amigo em uma bela casa de praia alugada, em uma das praias do litoral mais afastado e mais nobre do conteúdo dessa região. Garantia-me ainda ao pecado da luxúria em pensamento ao imaginá-la em trajes mínimos sobre um corpo escultural, espreitando a beleza do sol em seu forte e delicado rosto, de lindos e sedutores traços; algo que também a fazia confortável a clientes apreensivos sobre seu ardoroso capital de investimento; tudo sobre a vertente de juventude, e talvez um pouco de desejo, ou atração. Já não me preocupava em garantir um sorriso fora da realização do trabalho, ou das situações diárias, pois fazíamos e vivíamos a mesma função: eu indo e ela vindo, ou próximo do que isso fosse em uma empresa de serviços do moderno estilo de capitalização perfeita da força de trabalho bem preparada, interessada, inteirada e bem servil, mas com boas idéias. Era o que tinha também, mas me perguntava demais o porquê, e isso não é uma atitude bem vinda na qualidade total dessa ignorância, pois nela só o resultado importa, e disso a aparência; e minha aparência também começava a cair, do fruto inevitável de uma alma sem rumo... Simone simplesmente achava que eu devia sair mais: o que era compreensível, pois também queria ter tais respostas para o depois, tão certas quanto o simplório sorriso sobre ela ao proferir-se: mas não era, mesmo que eu quisesse, e mesmo que ela acreditasse. Restava-me sentar, com os olhos atravessando a sala sobre os dedos entrelaçados de minhas mãos em percalços de fraqueza ao sentir as articulações, seu rosto e seu olhar dizerem à minha próxima pergunta; sem ela nunca atentar que não há sentido algum, porém encerra todo desejo de cada um no dia-a-dia, inclusive eu.... Com um alegre sorriso: − Claro que sim. Adorei. Me diverti muito. − E fiquei feliz pela resposta dela, porque fazia todo sentido do mundo, e talvez todas as coisas encontrassem tal elementar resposta pela medida do tempo. Sorri por dentro e por fora, sem dose de uma linda mulher estar presente, mas outro ser humano, que mal conhecia, trabalhando juntos há apenas quatro meses, e que conseguia alcançar aquele nível de amplo belo para os dias, sem mais muito que somente outros seres humanos, que de fato não precisavam nem existir na situação, apenas serem concebidos no pensamento, como o eram para mim. Sentia que algo de confiante podia emergir daquelas minhas perdas internas, pois sorrir da simplicidade dava qualidade à própria; também Simone sabia disso, talvez sem saber; e eu começava a aprender porque algo que se escondia começava a surgir, e isso só surge como agora: sutil e com nitidez somente para aqueles(ou este) que aqui se vêem. Simone era loira. Ela tinha se divertido no fim de semana. Eu queria algo; ainda não sei o que é, só uma coisa tem nitidez... E tive um razoável dia de trabalho, seguido por um boa semana. Trabalhos e dias.


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Num bar novamente, mas sem a responsabilidade do que eu apresentava antes. O escuro era vago de uma noite menos fria. Eram Simone o namorado, eu, três pessoas do escritório e uma tal de Silvana... Todo pessoal da empresa havia sido convidado para um grande evento de executivos no centro de convenções do Estado. Minha intenção nunca fora de ir, mas apenas de não voltar para casa para mais um fim de semana sozinho em afloramentos de memória e temor pelo presente, passado e futuro. Desde muito sentia a necessidade que a própria me mencionara anteriormente: sair mais.... De fato não solução; como o sei hoje, mas um agradável anestésico para algo que começara a despertar talvez no dia do meu nascimento, mas que só depois daqueles dias me vieram a atormentar tanto.... Por isso estava lá.... Após o evento, saímos o grupo mencionado para um bar, prosseguindo os momentos antes que estes terminassem no mesmo que sempre surgiram: Do meu dia seguinte eterno, que após concluirei.... Conosco levamos uma das jovens atendentes do evento; de fato a que havia nos atendido, pois cada grupo era assessorado por uma pessoa exclusiva: através dos imensos salões do centro de convenções, com estandes diversos, homens e mulheres bem apresentados, com todas as grandes representações de suas empresas tão já bem vistas no mercado, mas que não perdem nada em querer estar nos cabeçalhos e manchetes do mundo financeiro, como aquele o era, e como fazíamos parte; e que na verdade me parecia somente uma coisa para se fazer numa sexta-feira à noite sem se admitir que era somente isso... E se fosse realmente isso que se erguesse em nós.... Ou em mim.... Não. Era muito pouco para ser tudo isso: e às vezes me via desajustado por ver tanto, e talvez nunca fosse tanto. Silvana não tinha mais que vinte e cinco anos. Tenho certeza disso. Nunca quis saber a idade dela realmente. Sua facilidade em se expressar e guardar informações fora a possível razão de sua contratação para aquele trabalho. Tinha uma incrível agilidade em lidar com pessoas e o trato conosco naquele preciso dia não fora diferente do seu talento demonstrado posteriormente. Soube apresentar dados contundentes e de fácil entendimento sobre quase todas as empresas presentes no evento naquela noite, e o mesmo se estendeu por mais dois dias, o resto do fim-de-semana... Penso hoje na maneira irônica como as coisas se apresentaram naquela noite, dos quais três se tornaram clientes nossos após um mês da hábil negociação da loura... Mas eu só tinha olhos para a guia que nos carregava suavemente pelos labirintos do estandes... Sei agora o que me atraiu nela, pois posso analisar as razões de tudo com a frieza de um metal gelado em meu punho trêmula que se suaviza do medo pelas rajadas últimas do amável vento da manhã em minha pele; no pouco tempo que pude ver no rosto apaixonante que me lembrava uma pessoa do passado recente a qual eu ainda queria esquecer, mas sei hoje que é impossível e não é necessária de o ser... Silvana não era Suzy. Era uma jovem cujo olhar também me atraía para ela, como ela assim o quis, e eu quis...: Sentia do peito e da mente surgir as boas imagens de um novo despertar, que é o mesmo de antes, que tinha e tem de ser detido; mas naquele momento me dava muito prazer poder olhar para ela e gozar na sensação afável do desejo. Do espaço entre mesas e cadeiras, e pessoas, que nos separavam surgia um vão, um canal, de sons e vozes estranhas que nos (ou me) faziam agir a cada momento com o pensamento na ação e reação do outro; de como seria visto no instante em que terminasse o gole do copo e o abaixasse com charme, ou talvez desdém pelo interesse. Um tipo de jogo que normalmente eu abominaria, mas que começava a fazer o fluir de mim, a partir daquele momento, o mesmo tipo de ânsia e desprezo pelas conseqüências que normalmente se tem quando se deseja ter o prazer do esquecimento, ou talvez fosse apenas em mim: como verdadeira imaginação aperfeiçoada... Um toque do real no que se costumava sonhar... E ela era um sonho: linda, inteligente, sedutora, e também interessada em mim, e o pouco que eu tinha vivo dentro de mim começou a se tornar o ator principal daquela representação de vida real... A pior parte... Sei, agora. Simone via e sorria satisfeita por aquele acontecimento: se julgava boa amiga e com boa ação completa naquele dia. Um ser humano com ações aquelas tais como esta descrita, não dela, mas por ela: o que não a prepotência humana dos problemas resolvidos somente por não estar mais sozinho... e algumas vozes, em boa parte dessas minhas ocasiões, foram as situações em que eu me encontrei realmente solitário, clamando por um socorro invisível e silencioso de quem quer que estivesse comigo, e muitas vezes, como agora, só restavam a mim, o eu e mais ninguém, eternamente refugiados no meu mesmo que era e sou... Para Simone eu simplesmente precisava de alguém.... Lembro-me agora: Aquela noite foi especial... Todas seriam... desde então... Não estava acabado ainda no bar... Continuamos depois nos minutos e horas seguintes: “aqueles primeiros minutos”; e após... Nunca tinha sentido um gosto como aquele. O calor envolvia todo meu rosto. Um arma de desejo se elevava sobre nós dois saindo dos nossos poros. Os dezenove músculos da minha língua procuravam se aperfeiçoar mais e mais naquela arte à medida da penetração; toda aquela umidade escorrendo como uma fonte de indescritível aproximação entre essas duas pessoas. Sentia o sexo com Silvana, e o sexo de Silvana, gerar algo que já crescia de mim... Podia mesmo sentir minha anatomia interna mudar com a exploração da contenda: melhor diferente, eu podia achar, que as minhas memórias longínquas do passado; mas não era... Era capaz de fazer o que havia imaginado há tempos; quando o sangue da juventude corria fértil em minhas veias de adolescente: uma capacidade além d que eu


realmente era e podia ser, mas estava sendo, acontecendo diante de mim... em minha cama, no meu quarto, no meu apartamento, na minha vida... Uma mulher com todas as fúrias que se podia imaginar para a prática do sexo, ainda normal, mas comum a todos... menos a mim, e que estava e não estava sendo: o corpo nu, suado e macio de alguém no reencontro dos poucos momentos... de alegria...: Eu podia achar... Porém eu sei agora que fora algo mais que se erguia dentro de mim a cada instante daquela deliciosa sensação: Eu não podia admitir como real. E só via no prazer os golpes, o movimento, a penetração, a sensação, o poder... da libertação... do aprisionamento... de mim, dentro de mim, dentro dela, outro eu com a voz do adormecido. Meus olhos se fecharam. Nada tinha visto desde então. E meus olhos se abriram novamente. O que os corpos traziam de um no outro além da lembrança da carne satisfeita era algo, ou é algo, que ainda tenho dificuldade em descrever: o prazer tinha um jazigo cativo dentro do meu corpo até então, pois havia me resignado num sentimento aparentemente há muito perdido... Mas o prazer também despertava o sentimento; não o mesmo exato, com certeza; porém algo que precisava ser ressuscitado dentro de mim. Por isso não há ainda como descrever o sexo simplesmente como sexo, porque no fundo é sempre a mesma coisa fisicamente: química e mecânica dos corpos que procuram se equilibrar na pressão que fazem uns nos outros de hormônios, pensamentos, escolhas e rejeições. A dificuldade maior, e importância também, repousam no fato de que eu estava acordado, alerta, e ainda assim, pouco convencido de que ao meu lado, naquela cama, naquele momento mesmo em que meus devaneios sussurravam as absurdas verdades de meus sonhos realizados e por se realizar, como um este o era antes de ocorrer, estava uma linda mulher, que eu acabara de conhecer, com quem não tinha nenhum vínculo anterior, de quem não ficara amigo por anos antes, por quem não sentira nada além do calor da paixão num dos momentos sublimes de uma vida com muito pouco a ser fatorado em nome da realização... Pude sentir como na viva sensação da realidade o que nunca tive em minha imaginação, que começava a parecer muito menos ameaçadora que de fato o era: algo de muito mais poderoso se desenhava no cenário onde me encontrava: Era eu mesmo, a minha presença no mesmo momento em que consumiam as imagens do que eu queria imaginar, e que de fato imaginei, e que de fato se consumaram: os prazeres com Silvana, as lembranças vivas de poucos minutos antes se encaixando coo num desenho sobreposto em papel vegetal com a imagem que já tinha na cabeça desde que havia começando a olhá-la ainda no bar com o grupo... Que estranho ser que eu via se erguer; o adormecido acordando e liberando ainda seu resto de sono numa premonição do que seria capaz de fazer quando estivesse totalmente desperto e livre... Fora do medo o que me tinha quando senti aquilo; e sabia que seria só a primeira vez... Meu quarto estava fechado. A escuridão era enfeitada por leves rajadas de um prenúncio de amanhecer misturados ao resto de luar. Todo ambiente cheirava a sexo: algo de inconfundível, talvez somente em mim mesmo: suor dissipado somado a outros fluidos. Meus olhos não conseguiram mais fechar naquela noite. Sivana dormia tranqüila em meus braços. Seu corpo tocando o meu deixava-me semi-excitado constantemente, mas meu pensamento não se transmitia ao que meu corpo ensaiava querer sentir assim que ela acordasse, o que de concreto ocorreu no correr daquela manhã de sábado, várias vezes... prendia-se mais no fato da força que parecia cada vez mais emergente: uma capacidade de realizar e transformar nunca antes sentida por aquele pedaço de mim mesmo que parecia se enterrar naquele novo alvorecer, cedendo lugar ao que surgia... O que vomitava o desprezo mor por aquele que se ia, que sentira o prazer com Silvana e em Silvana na presença de um ser humano; e que agora sendo o mesmo, é o que despreza a paz do sono da linda mulher ao seu lado com o calor carnal de sua nudez sobre ela, como num insulto programado de realidade, revelando de algo longínquo o prazer de sua verdadeira natureza... Despertei-a como num pesadelo: penetrando-a com força e ferocidade; sentia que seu corpo se atraía para tal, para mais: algo do instinto animal que restava, do irracional que se erguia em todos no sono e que estava em mim como razão, e eu podia sentir com determinação para o que devia fazer, o que estava fazendo... até despertá-la completamente, com o poder dentro dela, o assombramento da primeira medida, a surpresa e afinal a rendição. Continuei a consumação...

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Estava eu frio?... No prato havia o desenho do pouco que eu realmente consumava de necessidade de alimento. O meu alimento há muito parecia ter se tornado a vontade de sentir as verdadeiras emoções, e estas começavam a fluir para o interior de minha alma de modo que o que havia realmente no prato do meu almoço naquele dia, naquela mais uma segunda-feira de trabalho eram as imagens da satisfação que começaram a surgir nos dois dias antecedentes... Alguma coisa de muito pouco aparente; somente no meu interior podia reviver o levantar do meu novo e desconhecido ser: o ser que para o mundo, e naquele exato instante para Simone que me acompanhava em mais um almoço de colegas de trabalho, não se mostrava de nenhuma maneira a não ser para mim mesmo em minhas costumeiras atitudes... Muito provavelmente por essa razão a não reação de Simone a nada de diferente que eu fizesse, pois para minha cara amiga eram as mesmas ações


de um eterno e sisudo homem calado, de expressões muitas vezes triste, e quase constantemente gelado para todo e qualquer elemento exterior... Mas não era mais assim. E nunca foi... − E aí... ( Alegria do seu ser era sempre radiante. Simone.)... Como foi o lance de sexta... Eu tava vendo tudo...: você hein!!1 − O que você pode imaginar que aconteceu, Simone?... Algo de tão extraordinário quanto possa ser o que você pode realmente imaginar?... Ou algo mais que você não possa nunca imaginar apesar de querer que sua imaginação seja a real representação de tudo que possa ter acontecido? − ... Você vai ter de repetir, querido!... O que você acabou de dizer só tem um receptor para a mensagem... (Ela sorri e vira a cabeça para o lado direito em sinal de reprovação quase didática, e com um pouco de ironia.)... Você próprio! − E com toda certeza do mundo que me permito aferir hoje sobre aqueles tempos: a questão se dirigia somente a mim, e mais ninguém. Impressionei-me com a harmonia e facilidade com que me apresentei por meio daquelas perguntas; numa vida inteira só aqui não iria gaguejar em algo tão complexo para expor no momento a minha maior dúvida... Era aquele novo ser quem falava: com a frieza e o desprezo que lhe eram contidos no momento de sua aparição: da realização do que me era imaginado para a situação. Admirável situação! Fiquei calado. − Eu só quero que você me diga se ficou com a moça... Se você gostou dela... Se você se divertiu... Se vai casar no próximo fim-de-semana... (Simone ri novamente.)... Qualquer coisa com a qual eu possa ficar feliz por você. Sem precisar de análises. − Expressões num rosto de excelência. Simone, minha linda amiga loura, viajava dentro de sua gostosa irritação com seu amigo. Eu não me importava com o que ela imaginasse. Nem queria me importar; mas dentro de mim, atrás da minha visão sobre ela, podia ver o quanto aquilo era agradável e confortável para nós dois; pois em mim de invariável posição não gostava de me abrir para o mundo, não importasse o quanto de tudo eu tivesse de reter dentro de mim... Nesse momento me vem claramente meu sentimento por Suzy: tão bem escondido dentro de mim até tal ponto; mas o que mais eu poderia querer além do próprio sentimento se sua realização se resumia a isso, agora... Ou semelhante ao que foi com Silvana... E no final alguém ficaria feliz, e essa seria a razão certa, mas não o que compunha o que eu realmente queria entender como amor, o que talvez realmente seja: uma palavra, sem significado, e com todo significado do mundo... E por isso, para Simone, eu só iria vender o que ela queria, o que a amizade pedia para se sustentar simples até então... − Tudo bem... (Uma pausa mastigando e bebendo para elevar ainda mais a ansiedade.)... Acho que você pode ficar feliz... Isso é claro o suficiente??... − E foi a primeira vez que meu sorriso de dentro surgiu. Com a integral satisfação por deixá-la na dúvida... E por não se importar. − Esquece!... Eu desisto!... Voltemos a falar de trabalho. ( Balançava a cabeça com certo repassamento, mas acho que feliz.)... Estou preocupada com a conta do Alfredo guilherme... Nunca vi uma quantia daquele tamanho aparecer tão depressa. Não consigo imaginar de onde possa aparecer tanto dinheiro e tão rápido... o volume do investimento vai ser um dos maiores da região inteira... − Do pais, moça... − Ela aproxima o rosto do meu para falar em baixo volume algo que eu já especulava mesmo antes de entrar na empresa: na oportunidade em que tive de programar os investimentos Alfredo Guilherme Ltda.; e fui até eu mesmo quem registrou todos os bens do Sr. Alfredo guilherme como pessoa jurídica: fora sempre o ponto máximo do meu currículo: ainda na faculdade e com um nome como esse indicando a forma do meu talento... Era o que era antes, pelo menos... E já não mais o era. E agora? (Sorriso.) − Será que tem algo de ilegal?... − Mas eu nunca perguntei... e muito menos ira eu responder... − Eu não sei. O que fora aquilo com Silvana?... Ainda me perguntava. Importava-me muito pouco a procedência... e o destino... que o dinheiro do Sr. Alfredo Guilherme tinha ou tomaria; pois muito pouco do meu trabalho era a minha vida naquele tempo... Voltamos para o escritório e prosseguimos... O que me ocupava a mente naqueles momentos era o que havia se representado da minha própria pergunta, para Simone, e que foi para mim... O valor de alguns momentos na relação entre duas pessoas. Tinha como no sexo sempre as inconformidades das minhas poucas realizações nessa área até aquele momento: Eternamente passional aos extremos durante toda aquela primeira fase da vida, em que a única coisa que parece realmente fazer sentido é o prazer de estar com a pessoa amada; deveria ser assim durante toda a vida; mas no meu caso tinha mudado; eu sentia de uma maneira mudada; via o nível de importância que eu dava à nova relação se diluir com o crescente prazer que tirava do mesmo: uma antítese do poder que era ter alguém sempre a sua espera, mesmo sem saber o que esperar. Quando abri a porta do escritório a nossa recepcionista estava ao telefone, e seus olhos mudaram de expressão no instante em que eu e Simone entramos. Enquanto andávamos na direção dela, pôs a mão no bocal do fone e se curvou um pouco por sobre o seu balcão para nos dirigir a palavra: − Simone... O Sr. Alfredo Guilherme; na linha; para você... − Falara do sujeito desde o restaurante: especulações, acusações, admiração, tudo contido sobre o mesmo homem e sua misteriosa fortuna: nesse ponto de tão pouca importância para minha pessoa, a imaginação da loura realmente ia muito mais longe que qualquer possível real


que tenha se tornado, apesar de muito surpreendente, de fato... Mas enfim sue entusiasmo pela trama financeira mal pôde se conter à sala de espera: com sue largo sorriso correu para a sala pedindo que a conexão fosse feita de imediato. De volta a mim... Ainda observava Simone entrar na nossa sala e pegar o telefone. Conseguia vagamente recordar de como foi o meu entusiasmo quando trabalhei para aquele mesmo elemento... Trabalhava em casa; com quase nada em minha mente além da vontade de servir bem aquele filho-da-mãe rico de doer. Minha mãe perguntava porque eu não estava indo para a faculdade regularmente. Eu nunca tive uma resposta aceitável para minha mãe, mas se não fossem aqueles quatro meses de sacrifício eu não teria hoje a mesma facilidade que tenho para arranjar trabalho... e essa sempre fora a prioridade: Curioso como o nível de importância de uma coisa pode decair tanto em apenas dois anos... O Sr. Alfredo Guilherme só tinha ido para lá porque sabia de mim: eu fui a referência para a vinda dele para a empresa, e todos sabiam disso. Em outra época seria razão suficiente para eu pedir alguma promoção, ou até parte na sociedade por fazer surgir um faturamento tão alto e tão rápido... É claro, os dois sócios da empresa nunca perguntaram de onde vinha o dinheiro... Mas eu não tinha interesse em nada daquilo; nem mesmo na própria conta: passei todo serviço para Simone, e ela própria se fez de confiança para Alfredo Guilherme... Não mais precisavam de mim. − Oh... (Me voltei para ela.)... Pra você tem essas duas ligações: Silvana... Disse que podia achá-la nesse número aqui. − Tomei posse do pequeno pedaço de papel onde estava escrito o número. Agradeci... E fui para sala. Simone se entretia com seu fabuloso trabalho, e de certo o Sr. Alfredo Guilherme também do outro lado da linha: os sorrisos fluíam como o dinheiro dentro da conversa... Mas meus olhos estavam naqueles sete números tão bem representados no pedaço de papel em minha mão. Só que eu não sabia o que eles realmente representavam... Dentro de mim ainda haviam duas correntes que eu podia sentir com nitidez como sendo os opostos dessa mesma pessoa que agora é uma só com tanta dificuldade para se regenerar vivo da própria decisão de cumprir os desejos... Era o antigo sonhador apaixonado que se entusiasma com um nome de mulher dentro de uma construção na memória que carrega todo o desejo contido por anos. E era o novo que se erguera durante o prazer: quando da realização de um sonho incompleto, pois aquela nunca fora a pessoa que eu queria, que eu quis: o nome e a pessoa sempre foram outros; mas neste ponto quem surgia era o antigo falando em Suzana e o passado... Mas o novo é quem queria comandar e eu não tinha o menor afeto por aquela nova mulher: somente o prazer surgia Silvana: ela nua, agarrada comigo em meu quarto e me emprestando momentos não realmente meus, mas que fizeram surgir este que sempre foi... o mal. O mal que pensava com desprezo para os outros ao redor e só distinguia em Silvana uma mulher com sexo disponível para ele, para mim... Penso nesse momento... nesse exato instante... no que fiz e no que deveria ter feito; dentro dessa criatura mal criada por mim mesmo; de tão pouco sentimento por si mesmo, e que sou eu... Talvez sendo aquela época a verdadeira criação de minha imaginação, pois via as dores surgirem nos outros como em mim, na mesma medida cruel do que surgia em minha mente...: o papel em minha mão, na sua textura, seu contexto (aqueles sete números), tudo que a voz me dizia naquele momento, e mesmo a distante conversa de Simone na mesa próxima... Um verdadeiro sonho real, de imagens somente por mim construídas... E como penso hoje: o novo (e mal) tinha de ser o feliz vitorioso naqueles dias, para exposto sair perdendo, mesmo que ainda disputando com afinco o controle de mim mesmo e de minhas ações... Naquele dia ele venceu: rasguei o papel e joguei no lixo... Eu sabia que Silvana voltaria a ligar... Logo.

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A música dizia: “Nós não precisamos disso, é tudo criação!” Imagino que quando eles criaram isso não imaginavam o quão faria sentido para mim agora. Meus amigos de banda Gridlock... A letra era em inglês. Mas fazia sentido para mim, mesmo que eles tenham alterado a letra depois para a gravação da música em estúdio. O que me importa ao lembrar agora deles, e principalmente dessa mensagem contida naquela canção, é o que tem em verdade nela em mim: em todos esses miseráveis dias de vida que agora se recompõem na memória de um verdadeiro monstro... Nunca precisei de nada daquilo, referindo-me a Silvana e todo aquele período, pois na verdade era tudo uma criação: tinha que ser pelo que acabou representando, se tornando até o fim coo foi... Porque tudo que sempre precisei fazer foi apenas criar: somente quando a criação, ou criatura, se tornou maior do que eu próprio, criador, foi que outras necessidades surgiram... E neste começo de lamento de memória onde se encontram Beto, Marco, Romero, Suzy e outros... é aqui que consigo visualizar o exato momento quando eles começaram a desaparecer do meu interior, como a perda de um órgão vital para minha sanidade: estava os matando a cada momento em que não estava com eles, e mergulhava num trabalho que não mais me comovia ou entusiasmava; e na pior das imagens do que começara a fazer com Silvana nos poucos momentos de nossas visitas de um ao outro... Pois não conseguia mais deixar inerte este monstro que agora enfrento com arma em punho e coragem, e medo, no coração para ver quem realmente será o merecedor da vitória, e este nunca poderá ser eu, pois é para mim que ele sobrevive... A música estava certa: não precisava disso, era só criação... E o que eu criei estava vivo, ascendendo para outras regiões, de prazer, não mais de desejo; querendo viver junto comigo a realização do sonho...: o meu maior medo.


Mais um dia no escritório... pelo interfone: −“Silvana novamente!” − Abaixei o fone e fixei minha visão. Estava calado e pensativo no que podia e não podia dizer... Simone observava com alguma apreensão: já vira a expressão antes em meu rosto, comum nos últimos dez dias, e começava, com razão, a não mais compartilhar do meu comportamento. Também aguardava... − ...Eu não disse que ia ligar. Disse que ligaria quando pudesse. Você mesma se convenceu de que seria hoje... O dia nem terminou ainda... − Como você pode afirmar isso?... Eu me importo sim. Só não faço disso o centro de minha vida... − Não faça isso! Se você vier aqui, eu termino... Não preciso nem falar nada... − Eu sei. Eu faço... Não insista... Somente amanhã à noite. − Não. Eu não vou dizer isso... − E ela desligou em minha cara. No memento que pus o fone no gancho senti as perguntas e repreensões surgirem na cabeça de Simone. Tentava fingir que só estava prosseguindo com meu trabalho, mas seus olhos ofendidos de mulher solidária atravessavam o espaço entre nós e me encontrava sem desculpa para o que vinha constantemente com Silvana, também sem o menor propósito de importância para o que quer que tenha sido pensado por qualquer um. Estava com a satisfação comum e estranha dentro de mim por encontrar aquela resposta no final de quase todos os dias. Parecia como se a memória não mais funcionasse para aquele intento, pois o momento de cada realidade eram o que deveriam ser as lembranças e a imaginação... Somente que só funcionava para mim o tal danoso jogo de carne e sentimentos, no qual para mim era somente a carne... e para Silvana eram os sentimentos... Posso ver olhando para trás que realmente não sentia nada além de prazer no corpo, mas nada me importava em querer admitir que ela pudesse estar apaixonada por: talvez estivesse, e provavelmente muito magoada também estava por ser deixada sozinha na cama todos os dias após o sexo... Nunca nem dormi ao seu lado. Além da primeira vez... Pois, ou sempre levantava e ia emborca, ou a levava emborca... Posso sentir como o desprezo surgira de dentro de mim nas poucas palavras que usava para me dirigir a ela, e o quão triste eu a via silenciar diante de mim. Imagino o quanto em mim de amor restou naquele tempo: de tudo que eu havia acreditado para estar perto das pessoas que amava, mesmo com dor... para uma fabulosa distância de corações quente e gelado pesos ã mesma cama em tantas ocasiões... Penso no quanto fantástico e fantasioso pode ser o amor para aqueles que se vêm apaixonados; como se tornam crentes nas visões do impossível em suas mentes tão cheias de uma química inexplicável, que nos derruba e faz lutar ao mesmo tempo que nos toma para a força de um simples gesto: como um beijo, ou uma palavra... Naquele dia Silvana tinha me pedido para dizer que a amava... Eu não disse. Nunca disse isso para ninguém, verdade ou mentira; não esse “sacrilégio”, no que eu vejo que é o amor... Pois nele ainda falarei, e com ele estarei. Deixado de lado o que quer que Simone tenha pensado de mim; o que provavelmente não era nada de bom, pois nossa amizade se comprimiu rapidamente em seus pensamentos e ações, muito menos antes do trabalho. Mas que este continuasse... Ambos ficamos frios... A conta do Sr. Alfredo Guilherme se avolumara, como era esperado. Mas dúvidas estavam surgindo de para onde estava indo o dinheiro, pois era tanto... Os dois sócios haviam convocado uma reunião para segunda-feira à tarde; comigo, Simone e o Sr. Alfredo Guilherme... Ambos foram corretores financeiros quando jovens e começaram a fazer consultoria para alguns clientes de fora: algo como o que eu e Simone fazemos, só que sem a propriedade do nome de uma verdadeira empresa como é hoje, com seus próprios nomes emprestando a notoriedade e a credibilidade. Estavam os dois à mesa. Todos nós em conjunto para ouvir os fatos do que vinha acontecendo com a conta em questão, do Sr. Alfredo Guilherme... Até hoje consome um fato interessante sobre a situação... Seus relatórios de situação e acompanhamento não passavam pelos dados entregues por nossa atividade, principalmente por Simone que autorizava ou recusava a maioria das recomendações de aplicação. Eu não vinha sendo muito atento naqueles últimos dias até que notei a recusa dela a uma de minhas recomendações: ainda tinha a confiança do Alfredo Guilherme, e sabia que a ação em questão seria muito lucrativa, mas de algum modo fora simplesmente suprimida das informações apresentadas na reunião... O que de interessante me fez atentar em toda ocasião foi o silêncio de Simone... Eventualmente ela seria responsabilizada pela insatisfação do cliente, pelo nível de confiança depositado nela, mas ainda assim persistiam as acusações sobre a empresa e o seu “inocente” silêncio. “Muito dinheiro parecia ter sido desperdiçado. Não é permitido!”. E de uma maneira surpreendente eu via a empresa onde eu estava tão bem empregado começar a desaparecer do mercado; os dois sócios perdiam os seus fôlegos em poucas palavras contra os números tão verdadeiros apresentados; e o silêncio da loura que começava a me revelar que a minha importância em outra vida não ia muito pouco além do que achava de mim: o colega de trabalho... Mal nenhum Simone me faria, e pouco ela estava se importando para o que eu fizesse: outros planos já completavam sua mente; e admiro muito sua esperteza, apesar da pouca ética e fidelidade na ação... Naquele momento de tão singular cenário: uma morte e um nascimento, no mundo financeiro, somente aos meus olhos; tratei de sorrir e deixar, com muita satisfação, que minha imaginação começasse a trabalhar: sem razão que nem sei porque...


− Vocês me dêem licença, por favor. − E com um inconfundível olhar de apreço, tive a confirmação nos olhos da loura, saindo da sala de reuniões em seguida; deixando o algo de extraordinário que vinha por lá fluir normalmente sem minha presença, para que o que vinha pela minha cabeça pudesse fluir melhor... Na minha sala... Esperando Simone... “Podia ver o Sr. Alfredo Guilherme falar e falar. E podia ver a loura Simone sorrir feliz com a “desgraça” dos futuros ex-patrões. O poderoso homem de dinheiro botava para fora toda sua digna infelicidade por ter tido prejuízo com os investimentos promovidos por aquela nobre empresa que só tinha em mente o ajudar; mas a mente que estava para essa capacidade tinha as obrigações alteradas para si mesma e por isso não fora dada a importância necessária para a conta por meio de quem essa pessoa queria realmente favorecer...ela própria. Pois eram os dois sócios que começavam a se tornar transparentes e invisíveis, que começavam a sumir do mercado para tentar ainda no futuro, se vivos, montar uma sorveteria: uma trágica história... Mas que não parecia ocupar a mente da loura com culpa, pois via, como eu vejo, as palavras do homem do dinheiro se transformarem em dinheiro, e saírem de seus lábios de maneira suave e bela, e aos milhares de notas, sobrevoando como aves em uma revoada circular por toda a sala, e principalmente em volta da sorridente e realizada loura, que teria em suas mãos para controlar toda aquela fortuna, e somente ela teria o poder de opinar... Muito mais do que ter o dinheiro para ela; ansiava ter o poder sobre o dinheiro, a fortuna, as decisões sobre ela em tamanha satisfação e liberdade de movimentos; como sempre quis; para poder prover e aplicar tudo que sabe, e em sua capacidade... Na sala só havia Simone e o dinheiro voando em sua volta, e a satisfação era grande: a velocidade aumentava e um grande rodamoinho de dinheiro começou a erguê-la no ar, como a força de seu poder em sua providência: o que de físico que ele realmente faria por aquela mulher... Fazê-la voar pela sala e pelo mundo, carregada pelo dinheiro do Sr. Alfredo Guilherme. Girando com o eterno prazer, sem a menor culpa pela negação ou traição à empresa que a havia acolhido, somente, sempre voando, cada vez mais alto e mais longe nas possibilidades do vento ao do mercado; com o grande e fabuloso volume das ações de uma mulher loura feliz dentro de um turbilhão de mais e mais dinheiro... até que sumisse da minha vista, e restasse somente o mar de dinheiro por sobre todo o cenário, como sempre somente se vê nas aparências dos jornais e revistas financeiros... Mas eu saberia que está por baixo, e por trás, e por toda parte daquele dinheiro: Simone... realizada(?).” A porta se abre e a loura entra. A mensagem terna ainda de um silêncio que eu somente podia compreender... Mesmo por saber que por pouco tempo sobreviveria meu emprego nessa vida; o trabalho parecia pouco importar: até orgulho podia sentir, mas a constante repreensão de quem nunca faria tal coisa, mas que também eternamente contribuirá com a omissão de quem realmente sabe e compreende o que aconteceu naquele escritório naquela tarde... De qualquer maneira nunca me arrependo, pois no fim são todos os mesmos que se alimentam uns dos outros... E os dois sócios provavelmente fariam o mesmo se tivessem a oportunidade... E talvez até o fizeram: trazendo para si próprios os clientes da velha corretora onde trabalhavam antes de se juntarem em favor de um só momento; que ironicamente acabou se tornando este: derrubados por uma loura quase recém contratada, passados para trás e “queimados” diante do mercado... Porém sempre mantendo a arrogância de um poder não mais existente... Só eu podia ver... − E aí?... Foi demitida?? − É claro! − Ela me responde de costas, arrumando as coisas de sua mesa, já se preparando para sair. Podia sentir que ela não queria escondera satisfação, mas não seria prudente expor-se ali, e agora. − Tenho certeza que logo você se arranja. Seu talento é inegável... Só lamento não poder vê-la mais... − É uma pena!... Mesmo.... Acho que é só isso. − A loura dá uma volta de rotação com os olhos sobre seu pequeno território de tão pouco tempo e de tantas realizações para certificar-se de que só está deixando para trás mais um degrau em sua carreira; talvez para ter certeza que o passo dado fora o passo correto, de que está realmente indo para cima, e não o seu oposto convexo, onde agora vão estar seus dois ex-patrões: que lástima teria sido desperdiçar uma trama tão boa, de um sonho tão emocionante.... Nunca eu soube ao certo. Só me lembro da expressão dela ao deixar a sala, ainda com um olhar circular e dizendo adeus para mim, apenas um velho amigo, um colega de trabalho e profissão, que de certo modo também foi usado, mas que cuja importância dada a tanto não foi nada, até inversa; pois sempre saberia que todo meu conhecimento e experiência seriam muito melhor aproveitados por ela, e por nenhum outro, mesmo que fosse para enriquecer ainda mais o dinheiro duvidoso do Sr. Alfredo Guilherme... − Um beijo... Se cuida, e..... Até.... − Talvez fosse mencionar o que tinha feito, ou agradecer o apoio, ou falar sobre Silvana (uma última chance de defesa para as mulheres)... mas simplesmente fechou a porta e se foi; como sei o que aconteceu. Logo estaria eu dali em diante em outro trabalho... Mas antes, ou pelo que viesse a ocorrer primeiro, precisava resolver meu problema com Silvana; e como agora, preciso despertar daquele sonho, que naquele instante se constituía em agora separar o real da imaginação, mas sem ainda a certeza de um outro ser o que devia sobreviver, e como não seria expor o pior lado?... Pergunto agora, mas agora saberia que seria necessário, pois a sensação no momento era de fácil assimilação da realidade: algo que nunca o foi, e o estava sendo para mim: viver... mas sem sentido. O que fora de utilidade para descobrir como faze-lo aparecer: de mim para o eu.


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O cruel é o que mais sofre por sua consciência sempre insone dos crimes sempre cometidos por todos nós... E de nós me vem a razão do que viria a ser extrema crueldade com alguém vivo que somente sempre quis algo de todos o mesmo que eu queria, mas me recusava a conceber pelo presente ou para o futuro... Com quem realmente eu estava sendo mais cruel: comigo ou com a vítima dos destemperos da alma... do monstro?.... Pude facilmente nomear com fascínio aquilo que vinha de dentro de mim sem realmente saber sua origem; ou mesmo acreditar no que era ou podia ser se eu acreditasse que seria capaz de trazer em mim tal voraz criatura..... No momento em que vi trazer as coisas de sua tão doce preocupação: memória de uma Silvana que deixou de existir naquele dia; mesmo, pois quando era a minha frieza e orgulho que tinham que se expor por razão daquela/dessa nova criatura: Vive em todos nós provavelmente, mas a superstição transforma em algo de fora, e é supra humano, somente que menos que o Deus. A força extra que o fez se erguer em uma alma já frustrada de tanto se contorcer por regiões da consciência que só parecem ter dor a oferecer.... Sempre me transformando num triste ser. Os demônios que visitam os sonhos e os transformam em pesadelos desesperados: são as maneiras que estes seres interiores encontram para tentar fazer sucumbir a nossa armadura de normalidade e sair livre de dentro de nós; nos deixando capazes do inimaginável cruel concebido por eles, mas realizados por nós.... por mim, quando no momento de sua liberdade. No entanto, porém, a voz da velha consciência começa a ser a antiga personalidade, e se apresenta nos sonhos e nas lembranças imaginárias do quanto tudo aquilo dói quando trazido para o outro lado. A conclusão daquele dia foi o prazer da triste culpa causada em Silvana, por não saber o que fazer para de fato me satisfazer. O cenário foi um grande “hall” de shopping center. Uma quantidade de pessoas no calor de vários momentos pouco significativos na vida de cada um, pois eu via todo o meu redor azulado, como o gelo dos meus antigos pesadelos: sentia como se não tivesse mais memória de nada com esse estranho congelamento de tudo que estava dentro e de repente estava do lado de fora pedindo para se vingar de todos que nunca deram a oportunidade a esse de se fazer real, porque todos sempre negam a presença de seu próprio interior inracível e descontrolado, e que é um só: e as pessoas entravam e saiam, e eram as mesmas; e ele sempre estava lá...Sentado em um dos bancos fazendo tais observações que provavelmente todos já estariam mortos por dentro, e fossem suas vísceras que caminhavam vivas por lá, como eu começava a estar só que em transição, e capaz de desprezá-los e destruí-los a todos com um simples olhar, do modo como alguém não dá a mínima para os monstros que imagina ver a sua frente, deformações, aberrações e pequenos detalhes que lhe não mais assombram, pois lhe são do mesmo mundo.... Via meu reflexo no chão lustrado do lugar, e o que era aquilo?.... Só me pergunto agora no detalhe do meu rosto espelhado junto com o nascer do sol no metal moldado sobre meus dentes e os estrangulando com a pressão e o gosto de quem não repara mais na sua própria beleza.... Mas lá no chão do Shopping eu reparava, e admirava com orgulho tudo que eu faria Silvana não mais ter. Aquele reflexo não era mais eu.... Este sim o é. Ela chegara. − Você parece triste. − Eu estou triste.... (Minha reflexão começou a se instalar em mim mesmo; sobre mim.).... Na verdade.... Eu sou triste..... − Só porque você quer! − Não. Não é por isso, Silvana. Eu tenho sentido que em fases dessa minha história, que também é a sua, pessoas comuns têm compondo o equilíbrio de seus mundos a partir do modo com elas vêem os outros. Parece ter sempre existido seres que tenderam a representar tudo que é temido ou julgado como contrário ao que está notoriamente estabelecido: criaturas sacrificadas pelos seus dons, suas visões além do que se pode ver.... Como eu no que vejo agora tão facilmente expresso por estas palavras; que ditas não dizem nada, mas divergem do estabelecido, do normal... E é o que revela o sacrifício, o cansaço e por fim a tristeza. − É um personagem bem árduo este que você está tão arrogantemente assumindo. − Um suspiro bravo e abafado se compõe em sua voz. − Mais que isso, tenha certeza.... Arrogante, contraditório, metódico, paciente, egocêntrico e vil para com um mundo que sinto amar.... mas com desprezo... − Por que tenta fazer isso? − Sua voz tomava um fio de medo aos brados que aquela realidade começava a apresentar. − Fazer o quê?.... Você se refere.... − Você tenta me fazer acreditar numa pessoa que parece não existir nesse mesmo mundo que você sabe descrever tão bem, como amado por você.... Eu só vejo as palavras frias de um homem que tenta fugir.... Eu só não sei ainda do que.... − Fugir era o que queria fazer, pois sentia um imenso prazer em sentir e ver aquilo: no rosto de uma


mulher jovem e bonita, a tragédia da incerteza.... E talvez não fosse um erro faze-la aprender e se afastar. Seu medo se transformou aos galopes em frases gaguejadas de alguém que olhava o tempo perdido no amor de um ambiente hostil de um homem com muito pouco interesse em partilhar sua vida... com qualquer um; em uma opinião: ela teve sorte. −.... Será que eu faço realmente tão pouca diferença pra você?... A tão forte o ponto de você se representar em outro mundo como sendo somente seu....? − É somente meu! − Tive certa dúvida no que Silvana estava começando a pôr para fora além da tristeza. Eu vi a primeira lágrima escorrer por um rosto que começava a viver um pouco mais de uma vida já naturalmente cruel, mas que de mim tinha que vir prover um pouco mais e sem a real necessidade do que eu era: gostava e não gostava e sentia a criatura se aborrecer comigo, fazendo revelar na minha mente imagens novas de velhos sofrimentos.... Lembro da visão da lágrima se cristalizar e refletir todo meu rosto, completo e inteiro como não poderia numa gota tão pequena da dor de uma mulher: era o espelho que surgia do meu quarto e eu estava nele, dentro do espelho, começando a não mais admirar a mim mesmo e sim admirar o interior do quarto. Escuro mal iluminado, pouco claro como a confusão em minha mente que ainda sentia as pessoas passarem no hall do shopping enquanto fazia o corpo se mover em direção para fora do espelho. Preso ao guarda roupa como uma pequena janela de observação de um presídio, somente que o suficiente para quase todo meu corpo passar. Senti toda minha transparência evoluir para o lado de fora onde somente pude ver no conteúdo azulado da cama a criatura escura que podia me transformar, mas que na verdade não era o eu que se expunha, e sim o que se escondia do mundo com medo da dor: este outro quer dominar, e a visão minha e deles dois me acobertaram de luz com a lembrança de mim mesmo sentado em frente àquele espelho chorando.... chorando por Suzy, pela falta que me causava e que me causou naquele dia.... Fazendo a lágrima também escorrer em mim, mas não para fora , e sim para dentro.... Talvez a lágrima de Silvana fosse tão fiel e dolorosa quanto a minha, mas eu não queria mais saber.... A lembrança já tinha se ido. − Eu só queria fazer parte dela também.... Mas bem se vê que sua resposta já se fez. − Não..... .... É − De fato era verdade; eu só não sabia porque. − Saiba que esse seu mundo não é só seu.... E ele faz doer muito nos outros a medida que existe.... Não é o que você diz? − Você não pode... estar.... − Bom.... Afinal, você nem sabe..... Ou está fingindo não saber. − Você deve ir, Silvana.... Deve ir. − Ela se levanta arrumando a bolsa. Limpava o rosto com um certo ar de graça que tocava o meu olhar quando eu percorri no mesmo instante do seu movimento para se levantar.... As lembranças de múltiplos rostos como aquele me percorreram naquele momento e me percorrem agora: há neles um gosto estranho de desespero que faz tremer e amedronta os mais fortes pelas conseqüências que podem causar simples palavras nos ouvidos sensíveis dos seres humanos que amam, vivem e sofrem no mesmo momento em que outros, como eu naquela hora, só têm a oferecer o que não têm de bom dentro de si, e de esperar que todos paguem menos ele próprio por simplesmente ser mal.... Queria não ter tanta dor em minha consciência, e sempre vai parece, como parece, que nunca fui eu.... − Quantas.... ( um sorriso sarcástico).... É um elogio pelo seu talento.... Quantas mulheres você já fez chorar?..... − E ela se foi sem ouvir a resposta.... − Você foi a primeira. − Afastava-se de onde eu estava, mas era eu quem estava cada vez mais longe, num anti-zoom da realidade.... na medida dos passos de Silvana até desaparecer completamente na multidão de minhas visões, como somente mais uma visão, e eu permaneci.... engolido pelas minhas próprias conseqüências. Não saberei nunca o que senti naquele dia.... A segunda mulher que faria chorar nunca chegaria a ver.... Se não tudo do que corre aqui for o fim da batalha real que há em mim agora.... será em vão. Sinto por ela, e sinto por Silvana, agora. Mas a batalha precisava ter um oponente que se pudesse identificar, visualizar e encontra uma fraqueza a altura de seu incrível poder sobre mim, que era alvo.... Os dias seguintes àquele foram como uma espécie de desgosto contínuo; uma fadiga, ou preguiça de fazer qualquer coisa. Estava sem trabalho, como havia previsto no sobre o ato meticuloso de Simone em cima da empresa onde estava. Não estava tão preocupado ou ansioso com isso ainda: logo teria meu próximo e último emprego, e fora o que se tornou aquele trabalho: emprego. Pois meu trabalho se construía em renda, e só faria sentido se fosse para mim, e isso nunca me interessou; nem mesmo antes, quando comecei. Nunca entendi onde estava o fascínio daquilo, se na verdade não se construía ou se criava nada... Somente depois este meu lamento seria de tal maneira respondido como assim agora o ajo.... Somente dependente e definido no próximo emprego... As descobertas teriam de vir antes por outro modo: daquela maneira enlouquecedora que me abreviava poucas horas de paz, pela culpa do ócio; talvez eu merecesse, e precisasse, conhecer um pouco mais de mim mesmo antes de responder. Minha casa parecia o cheiro da nova geração que surgia dentro de mim com os símbolos dessa nova presente década decadente de tantas perguntas sem sentido para todos, tanto como para mim, sobre a necessidade do instinto de sobrevivência nesse tão amplo momento de tão pouca perspectiva de depois. E assim eu não via o que o depois podia me


oferecer: olhava para o meu redor e via o meu interior: algo de um ambiente desajustado, frio e pouco coerente com a condição de se estar; pois aparentemente as reações psico-sociais das minhas tão inóspitas visões tratavam de ser o trancafiamento da alma do ente que deveria dominar: preso às próprias decepções com o mundo real, e preferindo o mundo da minha imaginação.... O problema era o que estava começando a se expor em seu lugar..... Lembro-me bem desse período de reflexão. Não só porque traduziu minha queda final para o fim da beirada em que me encontro por hoje; encarando os fatos, para ter a certeza da melhor ação..... Pois nunca fora da minha índole verdadeira fazer as pessoas infelizes. Acredito que a melhor maneira de ser feliz é tornar uma outra pessoa feliz.... Devo ter tentado fazer isso; viver assim por muito tempo em minha vida, sem realmente ter nunca alcançado a felicidade; pois que eu me recorde com garantias francas e claras do sucesso nesta missão.... nunca fiz ninguém feliz; nem mesmo pessoas por quem morreria para lhes construir um sorriso no rosto.... E nesse ponto não mais uma vez deixar de pensar em Suzy, e no que eu fiz a ela, ou poderia ter feito.... por ela; e também a todos próximos..... além desse meu, meu crente, sacrifício, de decisão tão difícil.... Mas as razões das reflexões vêm de muito mais longe: em naquele dia; mais distante que mim mesmo, acredito. Minha dificuldade era acreditar no que queria sentir. Andava pelo apartamento ignorando tudo que pudesse me desconvergir do meu ponto de partida inicial daquele momento tão glorioso de descoberta..... É dessa época que tenho a lembrança dos meus “belos” cabelos castanhos escuros se tornando grisalhos como um distinto senhor com muitas preocupações para com o seu; mas que de fato só eram mais uma parte da transformação: refletia, tinha medo.... diferente do pavor de antes, e do temor de hoje; mas a construção da imagem talvez pedisse aquela / esta tal distinção.... Pois aqui estou agora: um senhor grisalho de apenas 23 anos. Quem imaginaria que o olhar para tanto não revelaria tal coisa, e mesmo pelos quais motivos de aqui estar.... Porém sem o propósito na minha aparência agora, pois tanto bem fez para ele, como angustia fez para mim; pois no fim isso pouco importa: era o monstro que vinha de dentro que eu via, e minha “beleza” muito pouco o camuflava: talvez para os outros, mas o ser real que não se via só era visto por poucos, e era o eu que se escondia acuado naquela época: e esse não mais se via..... Nem mesmo por mim. Não eu.... A reflexão.... Tão forte é esse instinto de sobrevivência que fazem atravessar uns aos outros sem se verem como se fossem as portas de suas casas vazias.... Como esta.... Não deveriam se preocupar tanto com esse tão sonhado amanhã banhado no ouro dos deuses que eles próprios criaram para seu conforto.... Parece que eu costumava acreditar nisso também, há muito atrás.....: O que era mesmo..... crescer, ganhar dinheiro, casar, ter filhos.... Havia aquela menina de cabelos dourados, na verdade deveria ser no diminutivo, mas não gosto.... O coração de uma criança que batia sonhando com todo aquele futuro dourado que mencionara: usava uma farda (diminutivo) azul e branca, uma mochila gigante para seu tamanho e uma vasilha para o lanche.... Quem preparava tudo era sua mãe. Que visão seria essa então de garoto entrando numa escola com as mãos dadas a um adulto que não consegue reconhecer como o pai, mas que sabe que o é, apesar de nem mesmo chamá-lo de o tal. Ele o cumprimenta e deixa o garoto entrar na construção estudantil. Parece realmente grande para o seu tamanho diminuto. Na entrada, na sala de aula, mais um dia; mas a revelação vem daí.... Nunca mais houve “mais um dia”, porque ele envelheceu, e se tornou a mim.... Lembro que nunca beijei a menina; acho que nunca quis: queria casar com ela e ter filhos, e trabalhar. E não vontade de voltar a trabalhar por tão cedo. Sei que terei, pois sei que tenho de sobreviver: só não sei porque... E estou sozinho....: o que era mesmo que eu tinha acabado de pensar?.... Não importa! Se vejo realmente que é verdade que as pessoas precisam se sustentar de sonhos do amanhã para suportar o hoje; o que vem a ser então a minha tão minuciosa imaginação, que vê através da verdade, e transforma tudo da maneira que eu quero que seja.... Penso nisso: quem me garante que Simone realmente não saiu flutuando pela sala naquele dia carregada pelo dinheiro do Sr. Alfredo Guilherme... Eu posso imaginar qualquer coisa e fazer sentir e vibrar a qualquer um tudo que eu conseguir imaginar.... Acho que talvez seja alguma megalomania supra humana que me faz pensar nessa fuga tão rápida e óbvia do ser.... Preciso pensar um pouco mais sobre isso. Não deve ser somente uma reação psico-social normal de defesa pelo de eu me sentir tão confuso entre a dor, a solidão e o prazer: Imagino como é fácil tentar ser superior a todos, quando a única coisa que eu tenho é a mim mesmo. Talvez eu deva procurar mais; estudar o assunto; conhecer alguém.... O que me faria realmente ser uma criatura supra humana?.... Gosto demais de pensar assim..... “Minha imaginação”.... Devia ter me respondido naqueles dias mesmo. Já bem antes que agora: onde mais pergunto onde está o meu instinto de sobrevivência maior, pois são outros que dependem. Ou por apenas problemas psico-sociais, como eu mesmo notei; mas era mais forte que isso....: A tristeza e a solidão podem trazer a loucura a muitos, realmente; porém algo de muito mais sério começava a se erguer ali; com a minha sanidade de fato prejudicada, mas com a inconformidade de sempre de uma criatura viva que se reconhece como tal e se recusa a ser posta de volta ao seu estado de inerte.... dentro de mim: como todos nós.... tenta sobreviver..... E ele se perguntava o porquê desse tão forte intento, quando o que tentava fazer era se realizar no tal.... Ainda me lembro da sensação no olhar de Silvana, e era como o despertar.... Triste foi apenas ter de caminhar tão longe para encontrar a resposta tão perto: na imaginação. Lembro no sonho, a data.


Eu tenho problemas psico-sociais. Não só pelo que vou fazer, mas também pelo fato de querer sobreviver a mim mesmo sem poder para manter o que venha a viver dentro de mim sob o real controle.... É também pensar somente em mim, e na resolução simplesmente traçar o problema com apenas uma solução.... talvez agora seja; mas não antes.... Pois continuei a refletir, e vi o que vinha a surgir.... Mas daqueles dias... Imaginar a minha frieza: o poder de trazer o que não é representado pelo meu rosto, em algo que só é revelado por palavras pouco ocasionais de mim mesmo, com uma intenção não qualquer, mas a minha que devia se sobrepor a do outro com a aparência de real pouca importância no que eu estava tentando dizer.... Não demonstrar o que existe em si. Está em a imagem do que eu posso fazer simplesmente estando sentado aqui... pensando. O estímulo que me vem daquelas velhas imagens é que só me deixaram fraco, debilitado, vulnerável; pois tinha que permear essa necessidade por todos, e não por mim: Não consigo evitar de pensar que o fim do que eu fiz com Silvana fora uma “evolução”, um aprendizado para o que eu poderia realmente realizar se me liberasse dos outros.... Só sinto que os estímulos contém duas vias: a que me faz querer saborear o prazer pelos outros, mas para mim.... E a que me faz querer cegar-me para o que realmente quer representar dentro da minha mente: alguma coisa que realmente eu sei que quer se libertar e fazer-se em outro, completamente diferente, e talvez, sem mim.... Sem dúvida, somente tenho, que me tornei muito mais forte, ou talvez melhor, mais resistente, durante aquele tempo. E tive o estímulo também de começar a estudar, pesquisar sobre que em mim se prendia como a teia da doença terminal: da origem... para entender o presente. Lembro-me bem do som dos resultados não em meus ouvidos, mas em minha já tão desajustada mente de profanos e amargos pesadelos, onde as respostas já pareciam surgir de outro mundo; porém de nunca o convencimento ter sido tão forte, na crença do que eu queria acreditar muito mais além do que minha imaginação; pois esta só queria ser capaz de tudo, porém o outro, e a crença, queriam ser uma resposta: algo de som verbal que fizesse sentido, mesmo apesar do absurdo que foi, o que pareceu... Hoje me sinto no causar das reais conseqüências, pois as deveria assumir, e as verdadeiras razões do tal, apenas destruir o que quer tão solenemente se convencer.... De volta ao cinza apartamento de “horror”. Meu horror, de desprezo pelo que eu tinha de humano: o amor; pois eram todos que eu parecia querer desprezar... Escondendo-me de mim mesmo, e fazendo ele se revelar. Ele... Guiando-me pelo que estudei: parece me desprezar. Sutil.... O ser supra-humano é um monstro, diferente de todos. O monstro é um demônio. A ancestral vontade de ambíguos encejos entre querer e poder, de medo e realização; de mim não mais trás a voz além do que posso ouvir e eu não sabia ou sei, e com certeza não saberei, o que esta realmente é ou quer representar em minha cabeça: como a batalha (bem e mal): o monstro é um só e parece ser somente eu, em mim, o demônio realmente vibrante que anseia despertar.... Pois em mim o que eu vejo é o confuso tentando se revelar. Onde eu havia estudado sobre tais entidades interiores não importa muito, pois qualquer um pode invadir uma boa biblioteca e fazer o mesmo; como eu fiz: sentado naquele tempo entre perfilhações de mofo e papel, preocupado pouco em se alimentar, ou em como se trajar, para simplesmente descobrir, dentre tantos outros, que criamos o que não existe, ou parece não existir, e por isso poderia se criar do mesmo modo, e se espalhar, e sobreviver... como quando meu pai contou sobre aquele artigo do anti-cristo nascendo num lugarejo qualquer de um país pobre, e por essa razão todos correndo para batizar os filhos.... De onde surgiu?.... De onde surge agora, e em naquele tempo tanto gosto pelo que se cria dentro de você... Em mim, no caso.... E eu criei, através do desprezo. Foi uma maneira cruel sem dúvida de usar meu ócio naqueles dias contra mim mesmo, pois a tortura permanecia e permanece até hoje, mas porém, mesmo não sendo a resposta, como provavelmente nunca haverá, foi a melhor maneira de fazer revelar uma necessidade de procura por expressão; a expressão de como revelar aquele mesmo monstro, que eu parecia haver descoberto tão vivo dentro de mim, como a dor do amor e da verdade, que eram o primeiro alimento do mesmo.... Admito que no começo fora uma fuga.... Conseqüências!!! Refiro-me ao que estava começando a pensar, não como em atípicos sonhos de antigamente, naquelas violentas imagens, mas em transposições de dor e... culpa: “A quem....?” Porque se admiram tanto em estarem vivos, estes seres humanos, que nem sabem o que ser?.... Comecei por dizer: “Que não me permita (eu mesmo) descer tanto ao meu nível de pouca humanidade; submerso no lamento de um corpo cansado, uma mente apagada na torpe melancólica do meu ser. “Pois o que eu realmente seria?.... Como conseguem suportar a si mesmos?! (Monstros). Me amedrontei.... Mas o medo maior é quem devia correr agora. Sinto pela minha tão nobre ingenuidade naquele dia. Derramo uma lágrima por este/ aquele ser que tanto sofria, e que tanto procurava em propelir tais palavras no pensamento, e acreditar como elas são, de sua.... minha criação, e por isso merecedoras de tal crédito de dar inveja.... Pois eu mesmo me amedrontei..... Criaturas dentro de nós deveriam ser apenas nós mesmo, e nada mais. E eu continuo a chorar.... por não ser. Quem eu estava desprezando?


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Em algum tempo depois....Não podia desprezar o fato de que precisava de um novo emprego. Foram sem dúvida construtivas para a criatura aquelas semanas sem nada por fazer além querer começar a acreditar nas próprias invenções; não podia ver como mentiras os fatos de que começava a gostar de mim mesmo, e que o que ele estava começando a representar dentro de mim era uma sensação de poder: nunca imaginada de ser sentida por mim antes.... Porém, passado aquele anormal parto de um bom moço aos cegos olhos de minha visão feliz, ambos concordávamos que precisávamos continuar a sobreviver..... E eu ainda não tinha encontrado aquele modo para me expressar, e de o revelar. Mentiras.... Talvez sejam o que tentamos construir todos os dias para sobreviver aos mesmo citados, contínuos e sinuosos.... dias. Não houve então abertura na qual não me achasse capaz de penetrar com a plena capacidade de bem suceder. Não me imobilizariam mais os mais difíceis percalços e obstáculos de um mercado com o qual havia crescido com o mesmo período de uma vida útil na qual tanto ele quanto eu chegamos aos máximos padrões das aberturas de possibilidades com as máximas desconsiderações sobre ética e moral.... Somente que o meu único interesse era sobreviver ao dia de amanhã, e dele, do mercado, como por exemplo a bela Simone, era ser cada vez o mais poderoso e significativo. E nesse ponto eu e a criatura concordamos desde o início, pois saímos à rua numa daquelas manhãs de segunda em que ninguém agüenta olhar para cara de ninguém; principalmente nesta cidade que vive e respira um fim-de-semana eterno que começa na quinta feira e tem ressaca até as noites de quarta; e atravessamos quase satisfeitos todos aqueles monstros inocentes com dezenas de currículos brilhantes à disposição, para que no fim do seus fins tornassem impressionantes as impressões de todos que fossem capazes de ler aquela tal obra de arte das capacidades profissionais de um mero ser humano; e quem não diria o mesmo.... pois só bastavam nele duas coisas: meu nome e o nome de Alfredo Guilherme. Andar pelas ruas fazendo aquilo só me faziam pensar quão frágil eram as opiniões de todas aquelas pessoas: Ruas cheias de milhões de rostos estranhos que fielmente crêem que são de fato importantes para o mundo e para si mesmos.... Realmente também era um, mas que com crescente desprezo por todos eles via que o que os afastava e os fazia querer serem algo mais do que eram (sem saber o quê) era o que me fazia temer por todos... Tornaram-se estes os momentos em que conseguia despertar da mentira e talvez querer voltar a minha humilde ignorância. Porque se eu era um deles... não deveria poder notar como tal; e essa palavra a ser a razão do desprezo, e eu novamente sucumbia à criatura.... Naquele dia vi os mendigos, como todos; vi os defeitos e preconceitos de uma sociedade em caos, do mesmo modo como em outros dias; vi a insatisfação com vidas amarguradas em sinais de trânsito e elevadores apertados, quentes e velhos, como sempre; pessoas caídas nas ruas imundas, e ignoradas, como a verdadeira imundice que se encontrava lá; eu vi.... as coisas que se vêem todos os dias, e todos ignoram, e se revoltam intimamente se sentido indignados por terem de suportar tais coisas, que não são nada mais que elas mesmas disfarçadas de um mero momento... E admito, agora, era a única pessoa realmente feliz e satisfeita a andar por aquelas coisas e criaturas: satisfeito de contemplar as imagens de um sonho perdido (azulado) e que agora nem é mais o pesadelo que fora há tempos atrás.... Estava sendo somente o mais um momento, e mais assustador do que todos.... Estava gostando! E o que eu tinha de tão especial.... Por somente um nome em meu currículo?.... Não sei a resposta, mas, na segunda feira seguinte eu estava, de fato, empregado. Nada de muito diferente daquela empresa anterior, falida ,já, a essa altura... Somente que essa somente lidava com rendas advinhas de artistas. Pela verdade daqueles fatos naquela época poderia dizer que o talento dos artistas era: pintar, cantar, escrever, representar, e o que mais fosse considerado arte.... Mas nunca era cuidar bem do próprio dinheiro ganho com a arte que tanto lhe dá glórias e respeito, ou não: Muitos desses eram artistas de artes sem nenhuma glória, e não me refiro à arte de roubar.... A primeira foi a sensação quando entrei por aquele novo corredor de escritórios de tantos profissionais liberais quanto me lembrar que existem cursos para tais.... Pois quem ainda parecia comandar era a criatura, e eu queria começar a mostrar a ela que as minhas lembranças de antigos pensamentos podiam ser realmente causticantes para a consciência “boa” que ainda queria existir e respirar dentro do monstro. Salas claras e escuras que se seguiam inaugurações após falências, e a mesma seqüência do percurso logo após para dizer que os melhores vão sempre assumir os lugares dos piores e assim por diante; somente que no final só sobrarão os piores, pois se só os melhores estarão lá.... onde todos os piores que foram depostos estarão? No final dessa linha não restariam mais nenhum digno de tal honra, por si mesmo ou pelos outros a quem teriam de servir com seus serviços: e desse modo todos parecem ser completamente inúteis, pois não o seriam?.... Já que os melhores se tornariam tão exclusivos que acabariam por servir apenas si mesmos.... E no final desse passeio novamente eu apelei para a imagem DA MÃE que teria uma sala no final do corredor para abaçar-nos confortavelmente para dizer que estava tudo bem; e mais ainda que da última vez isso me pareceu uma daquelas salas alcochoadas e uma camisa de força... pois no final da imagem só sobrava eu... Cheguei à


porta que devia entrar e literalmente consegui ver o futuro daquele modo que acabara de imaginar... E por mais esta... Estava novamente satisfeito... Feliz?... Mais uma vez o monstro venceu: eu vejo na lembrança... Como pude tão facilmente me engrupir com tal mentira, e agora ter de admiti-la como verdade, e ter de destrui-la para poder novamente fazer sobreviver. Admitir como um perigo tão grande que no risco da incompreensão e da dor ter que me livrar das chances no final para ter de matá-la... A criatura que deveria viver. Estava em meu coração... Era quem ocupava a verdadeira e única opção, mas esta tinha que ser absorvida por tudo mais, e falo de Suzy, pois então, tive de pagar... e agora estou tendo de retribuir. A mentira foi ter de acreditar que o amor podia infinitamente ser substituído pelo prazer, e a dor, no outro... Mas não pode, e é a única coisa que deveria importar... Amar. Entrar no trabalho foi a mesma indulgência de sempre, pois logo então estava presente no plantel, e no qual eu me mantive até praticamente hoje... para sobreviver. O momento no corredor não fora apenas mais um. O nome da empresa mistura Arte e Finanças, apenas que em outra língua mais comercial e atrativa, para os aplicadores. Tinha uma sala só para mim. E minha assistente (nunca secretária) se chamava Joana. Minha função sempre fora a mesma. Naquele momento foi que comecei a tratar com a arte literária, ou melhor seus provedores, e especificamente alguns de seus melhores novos talentos que vinham a se emergir no tempo e espaço de suas épocas, em áreas diferentes, e com grandes promessas para o mundo que ainda se exaure pelo novo sem saber porque, e na verdade seja porque nunca conheceu o velho, não entendeu e não quer entender, assim é melhor passar adiante para ver se é mais fácil: pensamento coloquial, mas verdadeiro, de pessoas simples a quem sempre encontramos e negamos sermos nós mesmos... E afinal também aqueles que tive de começar a atender, porém, apenas por um, com todos sem conseguir ter essa tão simples compreensão... E eu que não entendo... Até aquele momento só sabia como pegar o dinheiro e transformá-lo em mais dinheiro sem dar a mínima importância do porquê de onde ele vinha, e a razão porque surgia daquela maneira; e na verdade era o ser do mais profissional... Eu ficava sentado em minha sala, eles vinham um a um, com seus temperamentos dos mais variados, geralmente trazidos por alguém não eles próprios, que se preocupava com as finanças provindas da tal arte, e finalmente o que começava agir era a minha pré-suposta arte... Poderiam chamar de artificio do dinheiro que o digere e o reproduz para a causa somente de outrem, e daí tira sua comissão e seu senso de realização... Mas como já disse pouco se parecia estar se produzindo algo real e útil; o que realmente parecia se erguer eram as acomodações das vontades destes outrens, clientes, que tinham em mente apenas o quão mais fácil ainda poderia ser suas vidas após conquistar uma certa quantidade de divisas... Não via dessa maneira, nem que toda a satisfação do mundo fosse resumida a uma gorda comissão, nunca poderia considerar aquilo uma arte. Tinha na pauta que Joana havia me trazido cinco nomes que deveria atender durante aqueles primeiros cinco meses de trabalho... Era uma prática normal desse mercado, e ainda é, testar novos elementos com clientes difíceis, pessoas de temperamentos instáveis que sempre exigiam demais e se tornavam problemas para o controle da empresa: se o elemento conseguisse dobrar tais criaturas, então seriam provavelmente capazes de lidar com tudo... Não acredito que se possa padronizar comportamentos de seres humanos, principalmente se tratando do dinheiro dos mesmos, mas nunca tive jeito para Psicologia, e essa era a prática regular do mercado... Do meu ponto de vista não muita coisa se alterava: atendia com profissionalismo a todos, não importava o quão antipáticos fossem, ou se tornassem pelo meio do caminho. Minha mesa tinha 2 metros de comprimento por 1 de largura. Era feita de um material que eu nunca gostei, era uma daquelas plataformas de vidro fumê. Preferia a de madeira, como as do meu antigo escritório, com Simone. O vidro está sempre frio, e a frieza do vidro me trazia desagradáveis lembranças de volta: com fortes imagens de sensações em sonhos azulados, igualmente gelados, que como uma forte expansão causada por choque térmico, me faziam rasgar o coração: tudo por uma simples sensação térmica nos braços e nos cotovelos, e que por fim terminava numa mente de recordações adormecidas no calor do tempo... E desse modo eu não sei como ajudou... a mesa; pois também nela eu me refletia... E o rosto no frio, e o frio, só vinham por dar no que é agora... E na época eram ambos com medo... O sol já se ergue pela metade do mar do horizonte leste. Sempre preferi o calor. Eu e Joana dividimos na mesa naquela primeira manhã, na ordem em que viriam durante o dia, os materiais e documentos referentes a cada um dos cinco clientes. Todos me seriam apresentados no decorrer da mesma data, para daquele dia em diante eu poder tratar de seus interesses financeiros: Me incomodaria, e já sabia que iria ocorrer, uma contínua e comum frase desses tão inesquecíveis momentos de profissionalismo e depressão... O momento viria com “o chefe” dizendo após a apresentação: “Qualquer coisa é só falar comigo?”... E eu seria somente um completo incompetente... Não importa! O primeiro seria um típico autor de uma só obra; acredito eu por ver e saber hoje que uma simples biografia da época, muito bem posicionada no momento certo e no lugar adequado, pode realmente provocar um rápido e fulminante enriquecimento daquele que o escreve. Para quem seria já uma pessoa afortunada talvez não importasse, mas no caso deste sujeito o que lhe havia sido de oportuno não veio do alto, mas sim do fato de ele ter freqüentado os mais baixos momentos da desgraça humana de alguém de notória imagem, com a recente imagem abalada por um incidente que de impressionante só era o fato de ter sido ocorrido com ele, a tal pessoa: pois então, somente o tal biógrafo de


oportunidade com o poder testemunhal de um grande juiz foi capaz de ver e expor a tal qualificada situação, tirando ele por fim do amargurado empobrecimento, e colocando em paradoxo, o outro, na berlinda dos terceiros julgamentos: uma simples fotografia, uma frase de efeito, e muita publicidade gratuita... culminando por fim com sua total auto-destruição; tendo sido este seu último ato o maior fator de todos para a explosão de vendas do dito-cujo, o qual teria de atender: a qual, mesmo após 12 edições, não tinha dado nada de tão suntuoso quanto a fortuna do senhor Alfredo Guilherme, e sua misteriosa origem, mas de fato em si considerável, pois o elemento nunca mais precisaria trabalhar: isso se é claro seguisse as minhas recomendações, e não começasse a ansiar por excessivo luxo... O que de fato deve terminar por acontecer, pois jamais terá outra sorte igual, e sempre será lesado pelas editoras e distribuidoras... E também não mais me terá por perto. A reunião foi às 10 horas e 30 minutos. Carlos Noberto Paranhos é o nome do sujeito. Fora sem dúvida a reunião mais simples e produtiva; financeiramente falando, pois me oferecera um exemplar de seu livro e fora um dos primeiros que doei à biblioteca pública do estado... Não tive o menor interesse em ler sobre como um famoso e notório político moralista tinha sido flagrado na companhia de três homens muito bem dotados, dentro de uma casa de veraneio, e em posições comprometedoras... Sempre me dá vontade de rir... Mas o caso é que acredito que por mais bizarros que sejam os fetiches das pessoas, contanto que não invadam as liberdades dos outros, cada um deve poder fazer o que quiser... Mas o problema é que também somos dependentes destes outros, e algumas vezes suas liberdades significam o cerceamento dos nossos fetiches.... Talvez todas essas sejam as razões para o auto-flagelo e a auto-destruição; mas nesse caso vejo que ambos: ser o biógrafo, foram longe demais, e pior por isso ambos são culpados.... Só que de crimes ainda não inventados, ou melhor descobertos.... A minha culpa neste caso foi que nunca protestei, somente atendi o elemento, e ele sobrevive, enquanto o famoso tema de sua biografia se matara.... Enquanto também, minha única absolvição fora que hoje o livro que me fora dado está longe de mim: De uma considerável variedade de livros meus, uma grande parte eu doei ao longo desses últimos meses para a biblioteca pública deste meu estado. Imagino eu que estão muito melhor sendo aproveitados, pois em muitos já não via nenhuma utilidade... E nesse primeiro caso: não vi utilidade desde o primeiro momento, e por isso nunca o li, e por isso fora o primeiro que doei, e não me arrependo..... E recordo-me que julguei isso certo. E olhei e senti, e pensei, ao ver o simplório biógrafo partir satisfeito com sua “fortuna” muito bem aplicada..... Sobre mais um dos participantes desse mundo.... − “Então isto é um escritor??.... Que grande valor que há nesta tão bem conhecida nobre arte, que agora tanto te consome, escritor.... Da frágil imagem humana sucumbida por seus desejos, e o oportunismo de mais um!....” E por muito bom que o destino me veio.... naquele dia mesmo descobri que ser escritor não é assim, não é só isso, e que havia algum valor. Muito.... Imagino....: “o jovem e curioso Carlos Norberto surgir numa das janelas da afastada casa de veraneio daquele eminente político. Corpo e mente pequenos que se ajustam cautelosos ao ambiente para fotografar e logo após descrever algo que provavelmente o excite também, por tanto conhecimento que tinha em apresentar os detalhes daquelas aventuras (partes foram colocadas em jornais e revistas, levando a mais e mais vendas) e também por estar no lugar tão certo e na hora mais certa ainda.... O que não veriam os olhos dele ao estarem brilhando com animação ao assistirem quatro homens despidos, de moral e preconceitos também, se tocarem de um modo que o mundo não quer ver, mas quer ver e paga por isso... Talvez, ainda acho, todos mereçam. E o brilho nos olhos dele iria dominá-lo a tal ponto de ele participar da ação, e por fim se queimar totalmente e se consumir no próprio brilho que o tomaria em que ele seria o fotografado, o exposto, o alvo....”e não o oposto. Deve ser mais um lamento por nós todos. Mas começo a entender que as pessoas não são personagens: elas sentem por algo mais que não pode ser exposto. E deve-se esse respeito, escritor, ao ver que não são todos como aquele que acabara de atestar e representar em minha imaginação: algo daquilo talvez jamais acontecesse.... E só fora mais tarde naquele dia que conheceria este porquê, de respeito, que o primeiro não tinha tido, e que por isso me revoltara; e de responsabilidade na intenção.... Outro homem: o escritor. As coisas que aconteceram, e que foram verdade, principalmente nos sentimentos; e também as que estavam acontecendo: talvez uma auto-piedosa mentira.... Foram apenas o caminho para o que vinha. E o nobre retorcer da realidade misturada em sonhos e uma virtual imaginação acabariam por se encontrar agora nesse final processar de verdades bem expressas.... Mas ainda assim era só a metade do caminho.... O que tenho de ter em mente agora é que a mentira maior não era ou é a do escritor, e sim daquele que o estava por dominar, quase completamente já.... O monstro já vinha com poder, mas o pior da mentira ainda estava por vir.... O que é a verdade; e não mais minto para mim mesmo..... Respeitar a quem quero amar: e morrer por isso. Mais três vieram. O primeiro destes, e também os outros dois não tiveram nenhum grande atrativo que mereça a grande decisão de serem por aqui logo citados; pois só via em todos algo de muito familiar em relação ao Carlos Norberto estreante: algo de alvo em oportunidades e pequenas convenções que só traziam à época vigente um grande poder e possibilidade para quem tivesse a chance e a circunstância para fazê-lo. De fato seus sonhos e seus temas pouco importam, pois logo seriam esquecidos e substituídos por outros, que fariam mais ou menos dinheiro, mas que teriam a mesma utilidade: no mercado literário.... Toda. E na literatura.... Nenhuma!


Porém todos tinham um grande zelo pelo dinheiro gerado pelo seus tão nobres e grandiosos trabalhos, quando o que funcionava era a utilidade da obra, e não eles.... Mais tarde, e agora, poderei dizer que uma obra literária não precisa ter utilidade: é auto-sustentável, e em qualquer época, por si só.... E por esse grande zelo, todos decidiam que conheciam muito sobre investimentos e mercado financeiro. Quando não, na verdade: e nesse momento só consigo me recordar de um dos indivíduos dizendo: Eu pesquisei muito sobre isso! - Sua aparência pouco importa. Só se importava de fato em parecer extremamente culto... sobre tudo. O tema de sua obra era algo que passava pelo tal não citado e pouco importante mercado, e por isso ele se achava apto em dizer que o seu volume de investimento era suficiente para tanto; quando no entanto era ridículo para tanto.... O que ele tinha na verdade feito era observar os procedimentos e os comportamentos de os seus verossímeis personagens e acontecimentos, e isso não ensina muita coisa sobre nada, apenas lhe dá o poder de descrição, e comportamento... Enfim nas capacidades e talentos, verdadeiros, terminou ele por se calar; somente após longa incursão neuro-lingüística que o fizera entender que o que eu sugeria de seguro para o dinheiro seria realmente o melhor para a sua feliz durabilidade, rentabilidade, e no caso dele, utilidade: que nobre no final, seria talvez... Fazer seu próprio selo e continuar escrevendo, pois talvez soubesse que não mais seria capaz de produzir outro produto de consumo como aquele outro, e sim teria de começar a se repensar e sobreviver... Talvez para isso consiga, pois conhece; ou não, pois como ele existem já outros, e outros existirão: Editoras de pouca posição e oportunistas.... Vinganças e falências dos pequenos autores... Seria um deles?... Se não!... Mas ele fora embora. E eu o vi sair. Já com boa parte da minha paciência por se esgotar com esses falsos intelectuais, que dos mesmos só tinham o semblante do estereótipo das palavras arcaicas já não mais usadas, e o arrogante “poder” de querer saber sobre todas as coisas... Como antes, agia profissionalmente, mas já minha pouca esperança se esvaia de ter algum momento de sentido em tudo aquilo: seria realmente apenas sobreviver?.... Olhei novamente para o livro do Carlos Norberto estreante, e pensei repetidamente que sim... E me ouvi novamente, na voz do monstro dizer que o que valia não estava nunca ali, como em nenhum lugar... E acreditava.... Talvez esteja agora aqui, criatura, quando você se tornar real. Não fora imaginação quando Joana me veio e da entrada da sala notara uma deprimente expressão em meu rosto. Deprimente e cômica talvez aos simples de coração, pois dela me veio outra capacidade... E eu estava realmente distante naquele momento: nos pensamentos do que deveria esconder, expor e ser o que devia ser no real... Joana era uma jovem branca, pálida ao extremo, de cabelos lisos pretos, muito pretos ao total contraste com a pele; usava óculos e tinha um sorriso tão inocente que de mim agora dá pena saber alguém no mundo como ela... Pois com os horrores da realidade aquela face não nunca combinarão... Entrara na sala sorrindo. E com o auxílio dela estava tranqüilo para a mesma função. Dizendo: Com esse foi quase uma “queda-de-braço”!.... O senhor quer alguma coisa da copa? - Aquilo de tão normal me foi tão distante que pareceu-me uma eternidade o tempo que demorei para responder... Joana era formada em Secretariado Financeiro, algo de oportuno também, mas no caso dela a dedicação e talento eram transparentes, e reais. Não era natural daqui mesmo, essa cidade, mas já vivia bem aqui há mais de oito anos, e gostava.... Não posso infelizmente dizer “gosta” porque há bem pouco tempo de agora a vi sair com um rosto bem diferente daquele feliz; sair da empresa: provavelmente lesada de suas capacidades profissionais por uma sua particular triste história... Ninguém notara, pois, apenas eu que trabalhava diretamente com ela vi quando uma depois muitas lágrimas a liberaram do seu mundo de fantasia. Aos poucos tive de vê-la sumir e sumir, até me dizer que estivera por um curto e oculto espaço de tempo grávida de um rapaz, e que era algo nunca planejado, e tirara todo gosto do prazer quando o mesmo a convencera de que não estavam prontos para tal, e que a melhor coisa seria realizar um aborto. E Joana o fez. E o mesmo mais clandestino seria impossível. E o rapaz há muito já havia sumido, fugido, quando muito um invasor de outros corpos, como muitos nós homens: não importando muito este... Joana ficara estéril. Com as entranhas retorcidas, uma criança morta e todo seu valor aparentemente desaguado na falta da família distante, e um mundo que pouco ligava para ela, ou qualquer um.... Somente diminuíra de produtividade, e por isso se fora, antes que a mandassem para fora..... Quem sabe onde agora está, Joana?... Logo eu também estou fora, e sinto falta dela. Por pouco a única coisa naquele trabalho; de tanto cuidado e atenção que tinha comigo... Aquele sujeito havia realmente me irritado, e já no primeiro dia ela isso notara por minha expressão e silêncio; e nisso fizera aquela oferta... E fora esse zelo, atenção e eficiência por todo período, enquanto lá esteve... − Não. Nada. Obrigado, Joana.... Entre; vamos estudar os dados do próximo... − Era quem eu queria ter esperado, e agora vinha... O escritor vinha por uma porta que nunca havia existido. Joana abrira a porta de minha sala para a sua imponente entrada. Estava acompanhado de seu advogado: Valter Lázaro, um que de mais tarde apresentará mais que sua importância.... Era homem negro, de razoável estatura e tamanho, com um alinhamento impecável por ser a sua representação, e uma seriedade no tratar dos assuntos de seu cliente que mais ainda me surpreenderá sua amizade pelo mesmo. Numa proteção que já pela sua presença fizera notar que algo de mais sério poderia vir acontecer... Como fora e como é. Sentaram-se a minha frente logo após os cumprimentos e apresentações devidas ao momento e ao protocolo. Joana se retirara após os praticados oferecimentos e reverências: nada quiseram além de água para o advogado, que sede


tinha pelo calor. E logo me surpreendi com o silêncio do escritor. Falara muito pouco de seus bens, ganhos, obras, ou qualquer outra coisa que se tratasse do assunto da reunião. Toda temática financeira da reunião fora tratada por intermédio do advogado, que tão profissional quanto eu, somente tentava procurar os melhores investimentos para o seu cliente, e também meu... E mais tarde descobrira a amizade dos dois: tão longa quanto as suas respectivas carreiras, e extremamente fiel. Valter verdadeiramente, e como consciência, sabia do que se tratavam cada um dos elementos discutidos; e por isso, por fim, as melhores soluções foram encontradas para os problemas ali propostos: o que de fato não são tão importantes quanto o próximo, mas há de se ressaltar que este, o escritor, era o que menos volume de renda tinha para ser aplicado, e logo há de se compreender porque; pois talvez por isso o tão sério cuidado e seriedade no seu tratamento, e também a importante menção e reconhecimento do que era aquela amizade.... Algo que não posso deixar de confiar: meu advogado, meus amigos, e este último momento por eles, sem eles, na memória, imediata.... Somente o escritor entenderia. Era alto. Com os olhos de uma visão que podia ver além do que algo mais atrás de nossas sombras pobres mortais. Havia uma relação penetrante entre ele e o ambiente que me faziam facilmente escorrer para sua mente, e de repente estar em lugar tão diferente quanto qualquer um outro, menos o lugar onde estava, no caso o meu escritório. Quase perdido entre o meu trabalho e a curiosidade que era ser observado e estudado por aquele tão estranho ser. Tendo a pele totalmente descarnada por aquela mente e imaginação assombrosos ao ponto de ser a verdade, na verdade, tudo de absurdo que ele podia pensar... E no fim de tudo sempre era... Era pálido ao extremo cinza; bastante diferente de Joana ao abrir da porta: era mais algo de parecer sem vida, para assim poder absorver as vidas dos outros, e assim escrever tão bem o que vinha de tão segredo nas dores de nós todos... E eu sentia como se pudesse ver os dois que lá estavam: por um movimento ambíguo de cabeça, uma frase cortada ao meio pela hesitação, ou um simples olhar de lado para o estudo de seu objeto; sentia-me dissecado por dentro, mas com um prazer imenso de começar a fazer parte daquele mundo tão particular... Talvez quem poderia começar a se incomodar seria o monstro, mas nem assim o fez, pois também fascinado estava: seduzido, como eu, pela diferença, e pela semelhança.... O jeans rasgado, a camiseta preta lisa, o tênis já muito usado, os cabelos compridos já de um antigo padrão de descuido, e um resplandecer de aparência que vinha de dentro; e por ser de certo modo sombrio sem ser clichê ou parecer um estereótipo fabricado; que deixava-me louco e irritado com a paixão ardente do monstro e com o extremo pavor do outro ainda em mim.... Com o quanto poderia se descobrir sobre mim, ao me observar, aquele a quem deveria monetariamente auxiliar, pois era meu trabalho.... Mais que algo em que eu podia me ver, sem dúvida: principalmente após a minha leitura: aquele era realmente um escritor... Das dores possíveis vividas, das várias mentiras tão bem verdades quanto a própria da vida, um senhor jovem de olhar firme e morto ao te atravessar para imaginar o que te está pelas costas por trás de uma alma que mais para ele está, que o próprio corpo em frente... O que não era ele, o escritor?..... Fora no momento pouco antes deles saírem que tinha que me predispor a dizer o quão curioso eu estava por razão daquele misterioso ser de um comportamento tão fechado e inóspito quanto um poço escuro e sem fundo de interrogações e dúvidas, e ao mesmo tempo de uma aparente iluminação no modo de ver o mundo que só podia me ver como a escolha de entrar dentro daquilo.... ler uma sua obra. − Será que eu podia ler alguma coisa sua? − O escritor e seu advogado se reservaram um momento de olhar e palavras não ditas para depois voltarem até mim. − Claro! − Disse o escritor. Já de pé ele se aproximou da borda da mesa que estava do seu lado e apanhou um pedaço de papel em branco, dos que eu uso para pequenas anotações como um nome ou telefone. Observei-o escrever duas palavras curtas no papel, e logo em seguida ele se erguera e estendera o braço para me entregar o papel do outro lado da mesa. Estava de pé perto de uma das extremidades da mesa: estava indo ao encontro deles quando falei, e eu peguei o pedaço de papel. Estava escrito o título de um dos oito romances do escritor. Largou a caneta de volta na minha mesa e me assistiu admirar o pequeno pedaço de papel e as duas palavras nele escrito. Voltei a olhar para os dois.... − Está à venda em quase todas as livrarias. − Disse com um simpático e despretensioso sorriso no rosto.... Era evidente que eu iria comprar, mas ainda naquele momento admirei uma coisa: o verdadeiro valor de um escritor e sua obra, que não simplesmente oferece o sofrido retorcer de sua mente em palavras que querem dizer alguma coisa, como muitos outros. E este como poucos que a isso valorizam sabe que o primeiro é o interessado, e não o interesse pelo que vem de fora: palavras que realmente tinham significado, e não apenas... um livro, um produto. − E sobre o que é este aqui?.... − Disse, me movendo meio desconcertado na direção dos dois, já perto da porta. Estava começando a me sentir um pouco estabanado com a situação, que penetrava em minha cabeça com uma lentidão particular, de quem parece ver e sentir um momento de estranha semelhança com um outro mundo de tão familiar frieza e naturalidade, que assustava e atraia para mais, a cada momento mais, tudo ao mesmo tempo: negócios fechados e momentos sublimes de decoração de como tudo começava a ser como é hoje... Pois nele também, o escritor, as coisas vinham naquela velocidade e alucinação: não mais nenhum momento simples, pois em cada um, e em todos, tudo estava acontecendo, e eu estava começando a querer viver assim também: como um eterno último amanhã, com todos os momentos presentes inertes, sem nunca depois, que sempre tanto temi...


− Sobre todos que vivem na escuridão e não sabem... Você vai aprender em minha linguagem... (Na pausa eu olhei para o calado e atento advogado.)... Sobre um mundo que tem que se ver de outro mundo... fora de si... Para se entender melhor visto de fora: estar ausente na própria presença... De uma mente inovadora que ninguém compreende, e a qual todo mundo teme... Sobre mim mesmo e este círculo que você começa a ver com tanto fascínio... O outro mundo onde você tem de penetrar, temer, entender e se apaixonar... para ver, no final, o mais óbvio... − Sentia-me num absurdo e paralisado momento de expectativa para o que aquele homem iria dizer. Gélido pelo seu olhar, despido e contaminado pelas suas palavras e modo de dizê-las; como não podia ser aquilo... − O quê? −... Que é sobre você. − Meu olhar se perdia. − Até logo! Nos veremos! − E saíram ele, o escritor, e o advogado: sério, mas também admirado, pelas palavras do amigo, e pela minha expressão... Nunca conseguiria expressar a sensação daquele dia, além de ser uma grande transformação: como que arrancado de vez de uma cama quente e jogado no gelo como o corpo completamente nu... Algo só superado... depois... por aquela leitura... Joana entrou naquela sala naquele fim de meu primeiro dia naquela empresa, e presenciou o fim de uma época, o fim de uma pessoa ainda inocente e amedrontada com o que poderia vir pela frente; o que eu já sentia que não seria nada de muito agradável, mas algo do qual não poderia nunca fugir... − O senhor está bem?... −... (depois de muito hesitar)... Não! Naquela noite mesmo passei numa livraria e comprei o livro. O que não poderia ter sido de outro jeito, muito além do interesse e curiosidade: uma descoberta para esse resto de vida inteira, que tinha não como não ser visitada naquele momento: admirado com o escritor e seu tão particular mundo, do qual hoje farei parte com uma imensa satisfação: quase esquecendo a dor da transformação, fazendo da mentira verdade, e nas palavras por ele providas a final resposta, de conseqüências, para o depois. A história tinha seu percurso no real interior escuro das grandes cidades; não houve nenhuma grande identificação física, mas uma extrema identidade psicológica que estava em minha volta: está, talvez, em volta de todos nós. Agora... Mesmo no dia... Tratava de estranhos extremos, de extremas virtudes e amoralidades, que se apresentavam inocentes para revelar a fundo um conjunto de almas perturbadas, um desajuste coletivo de comportamento, que se dirigia diretamente a ele, o escritor... E para mim, o leitor; pensando... Quando uma absurda realidade tão obscura consegue ser tão facilmente absorvida por uma mente desprovida de qualquer cultura maior que a sua própria do dia-a-dia, então é o momento quando deve persistir uma tal selvagem identificação que termina por construir, dentro daquele tão terrível imaginário, uma realidade já vivenciada, e presente... Pois foi o momento em que penetrei naquela gótica e instigante história, e me vi sendo a própria história, sendo tão detalhadamente contada de um artífice para uma criatura; sendo tragado e pertencendo à mente de um terceiro, que pouco após se tornaria o primeiro e único, nos momento seguintes em que comecei a não estar mais onde estava e viver com perfeição uma fascinante e violenta alucinação do meu passado, logo após se transformando em presente, e em seguida no trágico futuro que conclui o livro... E foram os mais angustiantes e prazerosos segundos de minha vida, já amanhecendo, como agora, sem conseguir tirar os olhos daquelas páginas, até que o final me veio naquelas palavras, e eu me sentia assustado, frustrado e aliviado, pois conseguia sair daquele mundo ainda com vida, apesar de ter morrido várias vezes, com a mesma dor dos personagens, o mesmo sofrimento dessas vítimas, e também com o mesmo prazer louco da noite que vagava, tinha em mente outro mundo, e que olhando a partir do mundo em que ele se encontrava, na história, era este, o nosso, no máximo paradoxo do absurdo de um lugar que não existe e são todos os lugares, e onde tal homem é um herói, pois livre, e na sua única forma de expressão que restava naquele lugar tão desgastado pelo odor dos mesmos dias no dia-a-dia dos desprezados pela luz (todos nós)... Ele matava, e criava da morte obras de arte e dor; e tinha seguidores, admiradores também, e pessoas que se ofereciam para a sua última contemplação nas mãos do “artista”... Não admiramos a morte?... O escritor via o extremo da admiração. E o louco via o seu extremo desse outro lado. E o leitor se sentia o próprio extremo de toda essa loucura, morte e dor. Foi assim que naquela noite me transformei naquele livro. Após encontrar o escritor tantas vezes me falara sobre um outro romance, de outro escritor, que nunca provavelmente lerei... Pensando bem, aliás, com certeza nunca lerei... Onde num curioso título que recorda altas temperaturas, os personagens, cada um de relevância, se “transforma” em um livro, pois aparentemente ler era proibido, por isso eles tinham que absorver todo o livro, e assim se transformando no tal, pois o tinham, e o eram completamente... Da maneira como fui massacrado por dentro por aquelas tão fortes palavras, talvez, não sei, me transformasse no mesmo... Hoje devo ser este!... O escritor nunca se alterara por nada que dissera: parecia sempre prever todo aquele dilaceramento da lama e dos pudores com suas palavras; mas uma coisa interessante me dissera em um de nossos encontros... que fez todo sentido hoje: −(Você precisa sair de você mesmo e do mundo para conseguir revelar o que está dentro de si e presente no mundo: o que devem ser a mesma coisa, pois são ambas suas criações... Mas é da mais radical ilusão (ou mentira) que se consegue reconhecer a maior das verdades... Ou não!) − E o escritor sorria... com seriedade.


Na verdade pensei naquilo e só fiz me amedrontar com as lembranças que me traziam: ter de me propor àquelas imagens (ilusões?) novamente. Mas talvez fosse o único jeito... Pensava: “Tinha um mundo tão incrível assim dentro de mim, quanto dentro dele?... De modo que eu conseguiria expor o quer que estivesse lá dentro... E se havia tal realidade, como poderia querer eu pô-la para fora?.... Para quê?...” E somente uma imagem veio depressa à minha cabeça: o corredor. O que tinha visto e imaginado naquelas duas ocasiões; de tão forte e semelhante com uma grande travessia premente, que revelaria ao que é agora; pois aquele era a criatura tentando encontrar uma saída, uma resposta para os dias e os sonhos, as visões.... E essa era escrever. O escritor se proporá a me ajudar, e isso me dava mais medo, pois via sem entender o interesse.... Talvez ele já via que era um caminho para “a” realidade.... Em mim. “A porta do elevador se abrira lentamente para mim e revelara toda longa extensão do corredor. Portas se”....

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Escrevia. Não tinha nenhuma outra resposta oposta para o que tinha de fazer; de um trabalho contínuo com as únicas virtudes de uma criação: a minha... Somente para um só par de olhos que conseguiam ver o sofrimento exaurido em palavras amargas e românticas a respeito de um mundo que o envolve em desespero e pavor;; provocando todo um excesso de visões mórbidas: de morte e destruição, desprezo e vingança, dor e ressentimento para com tudo, e um reprimido segredo do porquê a ser revelado... Sentia-me como num treino. Mas num obscuro conhecer de mim mesmo que só via a luz do meu próprio significado através dos olhos do escritor: talvez até inveja ele tenha sentido... (Me desculpa!)... Pois de mim eu começava a não ver nada além da própria criação pronta,, e somente me assustava: como vísceras expostas na manhã de primavera e causando a náusea dos inocentes: destruído o aroma do amor e da paixão... Mas ainda era o começo; pois de tudo aquilo só queria alimentar, e a mim mesmo re-descobrir, uma besta ultra-inflada... pela sua própria imagem. Em noites para mim, naquelas primeiras semanas só havia o prazer de escrever; enquanto nos dias o cansado arrastar no trabalho do dia-a-dia: Joana me questionava e eu não tinha nada a dizer. De sue tão doce e simples rosto, além daquela terrível outra lembrança do destino, só tenho sua eterna e contínua atenção comigo e com os clientes, e a irrepreensível eficiência no modo de tratar cada situação que surgia: cada um daqueles quatro “horríveis” clientes, e o escritor, no qual ela via o imenso prazer de periódicas e constantes visitas: algumas vezes com Valter, para tratar de negócios; e na maioria sozinho para tratar comigo o que tanto me sobressaltava de entusiasmo: o resultado das noites, o resultado das incursões, e o começo do fim... E não sei o que me assustava mais: a noite, ou os dias... Pois via o que tinha, e ainda assim perseguia o fim... E escrevia sobre tudo... Como agora aqui estou (impossível) a transformar minha parte desta extraordinária história na verdade que é (absurdo)... Como o escritor mesmo diz... Tão do lado de fora... No começo... Em mais um dia no escritório o escritor aparecera de surpresa. Não estava com Valter, o advogado, cuja importância tornarei a atentar... Mas não estava também sozinho. Era um nome: Adélia, de uma face com a sincera beleza de quem fazia daquela história, afinal, o seu verdadeiro tom... Com tudo que minha carne tinha para apresentar naquela época, e que veio a muito mais, eu me apaixonei por aquela mulher: ao ponto de me rasgar de desejo, ou o monstro... A namorada do escritor, meu amigo, parecendo a reprise de uma mesma história, mas o personagem já não era eu... Era o toque oposto que tinha que ter aquele gênio soturno para enfim ser o equilíbrio que era ao viver em livre contato com tantas coisas tão estranhas: ele próprio, e gente como eu, e o resto do nosso tão desajustado mundo. O casal entrou. O escritor a apresentou a mim e a Joana. E ambos se sentaram à minha frente. Ele se vestia com o que normalmente veste: não muda, mas sua expressão tinha algo de notável atenção... Em como eu me comportava; e ele sabia, reconhecia o que vinha acontecendo da minha alma até a pele, queimando com a nova criação: na verdade a sua criatura, que ele tentava expor... Mas tinha em mim que deveria ser feito, e não me ofendi... Adélia: ele era uma pessoa diferente no meu mundo, e no dele também; usava jeans como ele, mas no fato e na imagem era uma moldura para um corpo que era realmente uma escultura. Era elegante acima de tudo: no trajar, por mais simples que fosse; e no agir principalmente... De uma impecável educação e delicadeza que seduzia a todos. E atingindo o extremo máximo na sua descrição: a beleza de um rosto inigualável... E fora quando comecei a me ver querer usar aquele rosto para cobrir outro, um do passado, que ainda era presente, mas que naquele estágio da transformação ainda se


pronunciava dolorosamente: querendo e não querendo ao mesmo tempo o esquecimento... Deixava toda e qualquer mulher e somente vinha Suzy... Pois que naquele momento começou a surgir Adélia. Naquele dia, era uma quarta-feira, o escritor usara como desculpa para ir lá a devolução de duas pequenas histórias que tinha já terminado de ler... Havia as anotações de sempre: textos, um para cada história; obras de arte em forma de pseudo-críticas, que simplesmente radiografavam a minha inocente carne viva e expunha algo que eu mal via, pois de tão profundo em mim... E era aquilo mesmo: exato no momento em que lia os textos e “me” relia... Algo como o que ele dizia: “O que é isso que rasga seus dedos e risca o mundo que você tem com o próprio sangue coagulado; te provoca tanta dor; e que nunca te mata por completo, por que você a esconde tão bem?... Talvez fosse o que realmente procurava a querer começar a revelar... Seus comentários sempre me deslumbraram, e sempre eram concluídos com uma interrogação: o que sempre me fez querer a recomeçar a escrever, procurando a resposta... Mas esta nunca surgiu, e nem ele queria que surgisse, acho eu, pois a intenção nunca foi a de revelá-la completamente, mas sim fazê-la discutir: ambos, nós dois, no mesmo ambiente, só que com ele no controle da situação, até hoje... Para que enfim essa então epopéia de destruição... como ambos planejamos... se realize. A conversa nunca se estabilizou em literatura, por não conta de mim mesmo, mas do escritor... através de Adélia. Via que ele a utilizava como personagem para a situação, e ela por si, atuava tranqüila como si mesma, trazendo em pauta os assuntos diversos que me levariam à exposição: a importância dos tais não existe além das suas utilidades, pois nos serviam como um enlace três olhares que se prendiam e se aprofundavam cada vez mais... Eu seria a tensão: a apreensão que constituía o território a ser conquistado de uma maneira mais consciente que o que o escritor já havia encontrado no que eu escrevia ( a criatura a ser exposta). Adélia seria a tranqüila afinidade com o meio por ele construído: uma beleza deslumbrante e uma contínua, mas sutil sedução, que elevava os encantos e as revelações de coisas simples em minha personalidade: peças a serem montadas para construir a verdadeira conquista: eu... Só que, como o escritor já esperava, a conquista vinha do coração (e eu me apaixonava)... E ele era a frieza do ser que vinha com um sabre flamejante para derreter o que já existia dentro de mim há muito tempo, e que lá deveria ter sido deixada com a paz da minha feliz ignorância, que nunca consegui ter... Mas que com muralhas de dureza havia sido ocultado do meu mundo vivo, vivendo em sombras, sonhos e imagens...Ele tinha descoberto, naquelas minhas palavras; mas em mim: o trabalho, as forças de cada momento, a sobrevivência, alegrias e frustrações, tudo havia sido de grande ajuda para a proteção, nada mais que isso. Algo que, pelo fascínio dele, e que o meu medo nunca conseguiu deter, tinha que ser completamente abatido, derrubado e destruído, mesmo que aos poucos, até que restasse apenas aquilo que estava dentro do gelo: a monstruosidade, a paixão, o de apavorante na imaginação, e que se tornava real. Era o começo desse colapso final... Agora... Antes. Três horas se passaram. Encontrava-me completamente tragado por aquela conquista. Era o final do dia no trabalho: Joana entrara na sala pedindo desculpas pela interrupção; lembrara-me que um dos meus outros clientes havia me procurado via telefone, e que informado da minha não disponibilidade voltaria a ligar em outra oportunidade: não tinha muita pressa ou entusiasmo para tratar com nenhum deles. − Se o senhor não precisa mais de mim, irei emborca. − Disse ela entre a porta e a sala, sob o olhar de nós três presentes, à sua singular simpatia. − Pode ir , Joana... Eu também logo irei partir. − Por alguns instantes ela me olhou com uma consistente seriedade, meio que pensativa com todo aquele “modelo” de comportamento que parecia emergir do ambiente: notava que sua preocupação era comigo, mas também sabia da importante presença do cliente ali, o escritor... E era dele que se fazia surgir a preocupação dela para comigo, pois sempre o observara com estranheza: talvez como todas as pessoas que o observem atuar na realidade: tão misantropo quanto esse mundo para as suas histórias... E notava que inexoravelmente eu estava começando a me assemelhar com o mesmo: pelas emoções e pelas palavras, pelo fascínio como começávamos a cultuar um pelo outro, e por nossas “obras”... Ainda séria nos olhos, sorriu para todos antes de sair fechando a porta e logo em seguida partir. Voltando-nos uns para os outros, o escritor comentou: − Ela parece temer muito por você! − Acho que ela “gosta” de você! − Acrescentou Adélia, deslocando-me um pouco, mas de fato sendo a verdade: era uma agradável sensação de proteção, que por muito pouco não me punha de volta no mundo real... Porém a minha companhia eram aqueles dois, e no escritor, de outras intenções... − Venha conosco... Valter estará nos esperando para um jantar daqui a uma meia hora. Com a noiva dele... E assim podemos continuar. − É isso mesmo... A não ser que ele tenha outro compromisso... − Eles falavam em minha presença e sem a minha presença: algo de premeditado na mente do escritor, pois devia saber que não tinha nenhum compromisso: nas


últimas semanas tinham sido só o trabalho... e escrever... E acho que de fato era isso que eu e o escritor estávamos fazendo, a cada instante daquela vida, como agora; a cada palavra de todos aqueles diálogos, como este... Quase temia pela certeza que tinha a respeito de tudo que poderia acontecer o quanto mais eles se aproximassem, mas começava a temer muito mais permanecer a situação de sombras nas trevas da incerteza: e encarar a imagem dentro de mim começava a atrair tanto a mim quanto já atraía a ele, o escritor... Imagino o porquê de tão criteriosa curiosidade, e tão cuidadosa prospecção: o verdadeiro poder da imaginação. − Eu “quero” ir!... Será um prazer. − E ouvimos após o silêncio a porta do lado de fora bater: era Joana indo embora... Sentia um círculo à minha volta se fechar cada vez mais rápido para uma singular representação de momento que era finalmente fazer parte de um mórbido teatro de verdade, que terminaria por construir esse final ato... Talvez a interpretação dos papéis seja eternamente confusa, pois razões, lógica, ou mesmo sanidade não remetem a esse brilhante fascínio da criação que tomava, e toma ... E do escritor: ele é assim mesmo, e no final concordamos... Rapidamente já estávamos no jantar. Era um bom restaurante. Notei primeiro nos hábitos ao redor que uma longa fila de clientes o freqüentavam com freqüência. Provavelmente reservados em um grupo de hábitos que me faziam recordar de todos os grupos dos quais já tinha participado: nunca muito diferente de um para o outro; apenas pessoas que gostam de passar horas juntas sem realmente terem de ser elas próprias, apenas aquilo que lhes é próprio ao coletivo: comer, rir, brincar, beber, ser ser humano... Estava sem beber há um longo tempo, e no grupo onde me encontrava somente Valter bebia: tomava cerveja com prazer inigualável de quem tem o controle sobre a hora e o momento certo para consumir o tal. Com um largo sorriso após dias duros de trabalho: tratava mais ele de causas trabalhistas, e tentava junto com alguns outros jovens advogados sobreviver no mercado: tinha com certeza a confiança daqueles que o mantinham próximo: refiro-me ao escritor, a mim e à noiva ao seu lado, carinhosa, atenciosa e inteligente... Pondo o tom da realidade em dias longos para a transformação da vida no que ela deve ser para pessoas comuns: aquilo: o que havia em nossa mesa de um modo calmo, o que havia na seqüência de mesas vizinhas, com excessos e alegrias, que provavelmente causaria grandes dores de cabeça no dia seguinte, mas daria a sensação de normalidade de que todos eventualmente precisam... Encontrar amigos, beber, comer, passar da conta e contar no dia seguinte com a ressaca e a satisfação de contar a todos como foi bom: provavelmente os mesmos que com o mesmo lá esteve. E de tão fácil assimilação por todos, e de difícil compreensão por mim, agora; e fascínio do escritor, sempre: lá estávamos nós cinco... Valter contara sob olhar atento de todos nós, e do apaixonado da noiva, como tinha sido uma aventura dele naquele dia ao tentar levar uma petição referente a um de seus clientes menores para os olhos do juiz trabalhista em ordem no tribunal a tarde. Os reclamantes de menor porte aparentemente tinham uma certa tendência a produzir junto aos seus documentos uma estranha pesagem extra, que os fazia atrasar cerca de um ano na sua tramitação: fato curioso já que os que estavam sendo acusados tinham seus documentos de defesa e pedidos de atraso já presentes na mesa do juiz antes mesmo do caso ser aberto em sessão: função essa do reclamante, e do seu advogado: Valter... Pequena empresa contra grande corporação, algo de mais comum para o começo da denominação do que seria a extinção da pequena... Mas que pelas mãos de Valter não aconteceria tão fácil, pois eles tinham razão: os documentos dos acusados foram considerados inválidos, e sua petição foi aceita em mãos, leve como uma pluma nas mãos do juiz, e caindo como uma bigorna de desenho animado nas cabeças dos poderosos do outro lado, que tiveram que ceder às exigências: ainda não terminou, mas o advogado mostrou seu talento em sua narração... − Essas injustiças realmente deixam o mundo muito mais feio... Pelo menos existem pessoas como você, Valter. − Adélia se pronunciava em respeito ao empenho do amigo... Mas esse era o nosso palco, e era mais uma deixa para o mestre da cerimônia, o escritor falaria: Após os vivos sorrisos... − E o que há de tão belo no mundo, Adélia?... Que precisa de algo mais para enfeiá-lo, além de nós próprios seus cidadãos crentes e organizados na fé de um dia sempre melhor... − ...Quando o dia que passou foi sim sempre melhor. (Eu comecei a completar sob os olhares curiosos e espantados. Quase inconscientemente.)... Nobre ilusão de um amanhã perfeito, com ondas de amor nos preenchendo o peito e dando a harmonia um dia sempre perdida, e nunca jamais reencontrada. − Um momento de silêncio. − Muito bem... É isso mesmo. − Essa frase... é minha!!? − O olhar de Adélia penetrava em meus olhos surpresos: havia uma instantânea admiração por aquela tão pessimista alocução de tempos incertos, e quase sem dono de tão lugar comum, mas de difícil representação para pessoas comuns que sonham, sempre negando aquilo... − É verdade!... Valter, será que terei de pagar alguma coisa a nosso amigo pelo uso de sua criação? − Sorrindo, os dois. Enquanto eu, sério de admiração... − Só se estiver registrada... Está? − O escritor olhava para mim com uma hipnose que envolvia meus olhos e minha alma numa fabulosa descoberta de mim mesmo: na confiança de uma capacidade quase insuperável. − Não, Valter... Não está! − Ele próprio respondia por mim. Sentia-me tenso e absoluto, como que um prisioneiro recém libertado que não entende o que pode fazer com a liberdade e fica parado na porta da prisão olhando o horizonte, sem ver nada, pensando no que fazer.


− Acho que você encontrou um rival, querido. − Disse Adélia se desviando de mim, e completando a tensão da cena toda e completamente ensaiada na mente do escritor: com somente a intenção de me deixar perplexo... e eu estava: quando a respeito do mundo me via preso e ao mesmo tempo capaz de criar tal sugestão: a citação. Uma entre muitas que construirão toda essa situação... Do meu presente e futuro, alguns entorpecidos momentos perdido sob a razão da frieza daquele homem, não muito mais velho do que eu, com muitos pensamentos parecidos, quase um vilão para minha angústia inicial, mas que me introduzira ao mundo daquele modo, e sem nenhum arrependimento, da trama, da mentira, e da verdade... até o monstro, eu mesmo e essa manhã. Sentei-me para escrever mais tarde naquela noite. Pensava nas paredes e imagens que me perseguiam, e me deixavam todo o meu redor cada vez menor em espaço única, até quando eu pudesse começar a sair, e escrever... Era como começava: preso. Então arrebentava mais uma corrente: do que eu via lá dentro... Só conseguia ver Adélia, e o seu escritor: talvez outro homem. Minha casa já parecia sumir, como nunca mais existira, uma premente sensação de escuridão e desespero. Tantas dúvidas e o cansaço. Uma paixão que iria se construir pela presença e “ordem” de outro... Naquela noite, só uma coisa consegui escrever: talvez o prólogo de uma história que era escrita longe de mim, fora de mim, mas para mim, e que se tornaria o que tenho... “O estranho é revelar a mim mesmo a tal sensação que veio tão subitamente que meus olhos me atiraram naquele abismo do desconhecido familiar de outros olhos que só me vêm na memória para ser loucamente atraído por um sorriso e beleza tão magníficos quanto a própria razão da criação e existência minha nesse planeta tão fascinante. O que Adélia pôde ser naquele momento foi não muito mais além do que pode ser visto pelo resto do mundo, mas meu mundo, eu, fooi dilacerado em 13mil pedaços e recomposto tão rápido que por aqueles tão mínimos instantes tudo fez sentido e o meu peito se ergueu e se convergiu numa nova forma de vida, um novo mundo que se refaz a cada dia em contradição, certeza e amor.” Surpreendido pelas quase duas horas depois que começara, olhando-me naquelas palavras e acreditando nelas: com certeza oculto, mas se tornava visível por mim mesmo, pois sentira cada palavra que escolhera escrever... E não era apenas isso. Não era apenas uma mulher que via... De pessoas comuns que vivem em seus próprios mundos: vendo suas pequenas importâncias, mas desprezando a todos com toda aquela violência de antes; para isso agora... Não mais escreveria todos os dias, como o escritor antes vira, para o final do processo... Era preciso acordar e reconhecer que algum tipo de maturidade teria de surgir para que toda aquela espécie de obra de ficção tomasse seu critério final de mensagem, e nesse tom tomasse as vertentes da verdade: e assim por mais absurda que fosse a ficção, a obra teria a sua verdade... Era a primeira vez que usava um nome e um sentimento, algo de reais, e construía uma outra situação de inverdade. A sensação se tornava curiosa, não só pelo constrangimento de sentir aquilo e ter consciência do mesmo, mas também por que sabia que era algo que o escritor havia planejado acontecer: já fazia parte de sua história. E acima de tudo eu ansiava que tudo se tornasse verdade, por simples que fosse, nada de agressão: um sonho bom; mesmo na presença do escritor... Porém o que viria seria uma grande obra em peças... Para todos nós. Os pedaços começaram a se juntar nos dias seguintes. Naquele dia Joana e eu estávamos preparando as remessas e os extratos do Carlos Norberto. Havia aplicado o dinheiro dele em vários títulos pré-fixados de média rentabilidade, mas com a segurança que ele exigira: muito acertado, sabia que não deveria arriscar seu dinheiro em nada arriscado, principalmente porque era tudo que tinha... Nunca quis saber o que faria se perdesse aquela “renda”... Acho que ouvi mencionar em uma ocasião que trabalhava com segurança: talvez fosse vigia antes de dar o salto... A mesa e as duas cadeiras da minha sala estavam com os papéis que tínhamos de relatoriar: separados por instituição financeira e por tipo de aplicação... As menos rentáveis não seriam apresentadas, pois por ter sido o prejuízo mínimo, como era a intenção, no período seguinte seria compensado por outros investimentos mais rentáveis: Somente o lucro e daí a comissão da empresa, que seria descontada, era apresentada... e com entusiasmo, sempre. Joana estava sentada no chão, com os joelhos dobrados, com o corpo sobre as pernas, elegante como uma moça; trabalhava numa das pilhas de extratos com a máquina de calcular indo e voltando em somas e subtrações até encontrar os resultados finais. Que seriam adicionados juntos com os meus, que também fazia do mesmo jeito, a mesma técnica para alcançar o mesmo intento... E foi quando ouvimos a porta da ante-sala se abrir. Paramos e olhamos um para o outro. Joana se levantou calmamente para ir recepcionar quem fosse, e já com a mão direita próxima da maçaneta da minha porta, a mesma se abriu... − Me desculpe! − A voz veio entre a porta se abrindo e os dois passos que Joana dera para trás, mas a identificação surgiu antes da imagem, na voz: primeiro dúbia: pensei na voz de Suzana, mas logo me veio de fato quem era: era o presente e não o passado... O nome que estava em minha cabeça era Adélia, e era ela quem surgia na porta totalmente aberta. − Por favor... Entre. (Eu me levantei.) Desculpe a bagunça. − Ela entrou dois passos. Joana prontamente providenciou uma das cadeiras, colocando os papéis que ali se encontravam em algum canto separado do resto. E então nos sentamos. Joana se aproximou dela e disse: − Você deseja alguma coisa?


− Não nada. Obrigada. − Ela olhava para meus olhos com uma imensa perplexidade e expectativa... Joana se retirou levando uma das pilhas de extratos para a sua sala, mas antes de sair e fechar a porta deu uma olhada curiosa para mim, com Adélia de costas para ela, e um maternal sorriso para todo o ambiente, dizendo: − Com licença... Qualquer coisa estarei aqui! − Indo... O que aquele pequeno momento de silêncio não me causou de tensão. E posso me lembrar. Adélia se tornava uma sinuosa imagem do cenário único do momento em que se tornara real e entrara em minha vida... Como há muito tempo não acontecia me tornei nervoso e um pouco descontrolado sob o efeito de uma mulher. Uma pessoa que diria que só surgira das circunstâncias e do acaso para vir até mim com uma tão modesta intenção: inesperado, que por muito pouco não me deu o medo da virtude anterior ao ocorrido, que logo se seguiria, mas que sem dúvida muito me fragilizou... Eu perguntei o que podia fazer para ajudá-la... − Não é nada de sério... Eu só queria saber mais sobre você! − A minha poltrona recolheu todo meu alívio quando para trás recostei, e senti todo relaxamento que tal conversa sugeriria. Evidente que o porquê de tal interesse me emergiram como dúvidas, mas o modo suave de sua abordagem havia me tranqüilizado... Pelo pouco que conhecia de Adélia via que sempre seguia muitos de seus instintos; principalmente quando se tratava de descobrir novos e diferentes personagens atuantes desse mundo... Não era por acaso que namorava o escritor: sua estrema curiosidade levava sua mente a momentos de paixão por aquelas tão estranhas criaturas criadas muito além do seu amor. Vi-me sempre como um de seus personagens, e ele sempre criara com essa intenção: automática identificação com um ser interno superior sempre vivente nos nossos corações... E naquele momento o que eu pensava era que havia me tornado uma criatura de alto interesse para ela, e por isso a visita, pois o que os livros do escritor, e o que eu começava a escrever, estavam fazendo mutuamente era me fazer expor, de maneira imprevisível: só não imaginava tanto... naquele momento do que era eu, e como tudo se transformou. Adélia é uma ótima psicóloga, e pesquisadora: que dupla eles sempre foram... E serão! − Que histórias você tem para contar... sobre você?!! − Escolha de palavras interessante e bem devida, mas resumirei na substância, pois como uma boa analista, não podia interferir: apenas em questão sobre questões, e respostas já contêm perguntas, dentro da forma de narração... No mesmo ambiente, em momentos sérios e descontraídos, com uma mulher que me atraía, mas fazendo eu me abrir... E eu sabia que também na presença do escritor; mas nisso tinha de me ignorar e apenas apreciar, e me consumir com o que tinha dentro de mim... como é toda essa história. Verbal... “Não já é mais coincidência que eu viva entre lembranças e criações de minha mente, e não seria mais coincidência ainda começar a misturá-las, pois terminavam por ser as mesmas coisas: anseios em confrontos com frustrações... Então digo: meu pai morrera. Não tinha muito tempo. Na verdade era ainda bem recente, mas a minha já distância tal que o nível de importância fora mínimo... De construtivo talvez tenham sido suas singelas tentativas de entrar no meu mundo para compreendê-lo, mas sem poder: um fascinado por tudo na vida, mas que a perdera por um excesso de descontrole... de seus instintos sexuais. Pois não era mais que de fato que a forma encenada de sua morte fora o outro algo de construtivo para este que aqui está... e eu já estou contando demais... Pois ele nunca morreu... Imagina que no ápice de sua traição aos olhos de minha mãe: eles, já há algum tempo separados, ela bebendo muito e em excesso suficiente para tal loucura muito anunciada durante a minha terna juventude, tomara para si na completa torpe a arma que fora já do meu pai antes (um velho 38 cano curto) e seguindo o caminho dos amaldiçoados pelo resígnio da paixão fora até o apartamento dele e o fizera tombar ao lado da outra mulher: numa brega e proeminente aventura de todas as famílias que por aqui viajam: na minha imaginação, lembrando desse assassinato, e o mais trágico final dela ainda... Mais real que o fogo os consumindo no meio da rua de há muito tempo atrás... Encarcerada na prisão por duplo homicídio, quase já esquecida por mim, tão cruel; se sentindo culpada e incompreendida, dando por fim de sua vida um fim em sua vida: a terceira e última... Mas de onde estariam as lágrimas: não em mim... imagine: Mesmo antes de tudo isso, um dia ela se aventurara contra os dois amantes, e em defesa meu pai a esbofeteara, com força... Vergonha e tristeza nas marcas do tempo e das frustrações nos dois, pois muito mais que desculpas e rancores tinham de se visitar nesta história: na repreensão de ambos os dois por seus atos, e por suas vidas... Quem mais por isso poderia responder além da senhora morte dona de todos os momentos de paz dos mortais que por aqui são obrigados a viver... com tamanha raiva, revolta e frustração. E olha que o escritor só vira a parte da imaginação... Mas essa toda ficção sem lógica obviamente tem uma razão... Só que não a conheço, e por isso não posso falar dela... Na minha memória surge que talvez tenha uma irmã. Causticante do passado tais imagens uma vez criadas e jamais esquecidas, para que outras reais se fossem da imaginação... Mas essa não é uma delas, apenas algo normal porque apelar, e acho que é real... Mas do que é real?... E a pergunta do amor pareço não querer me responder: uma via estranha parece surgir e não admitir que alguns difusos rostos apareçam e queiram representar algo de tão pouco admissível... por quem sou eu... Talvez pessoas me amem: talvez hajam pessoas que me amem:, mas os nomes querem me escapar ou eu quero escapar dos nomes: pessoas com quem tinha uma pequena afinidade até certo momento que não lembro mais qual, e que parece este... Eles tão perto, ainda por aqui, mas ao mesmo tempo tão longe quanto o meu pensamento... Talvez tenha sido um sonho com eles, e agora eu acordei; ou vice-versa... Eles... Quem são eles?... Mas porém... quem sou eu?... O que sou eu?...”


A doce filosofia de uma descrição: de uma fria mentira cheia de verdades emocionais muito bem escondidas, que Adélia tinha intenção de precipitar... Quem melhor ela poderia ser, a namorada do escritor, para lá ficar e me ouvir falar: dizer que meu mundo era o caos, inventado talvez, e somente no que eu escrevia, e escreveria, surgiria a verdade... De certo modo, tinha certeza do que dizia, que de fato até eu mesmo acreditaria... e me faria seduzir. Duas horas fora o que se passou. Joana havia ido emborca. E eu feliz em meu mundo me encontrara, tendo na atenção de Adélia por ele só, de tão estranho, a velha e quente sensação da paixão: humana além de minha própria mentira em frente daquela linda mulher... E me considerando no controle da situação... Enganado, pois no medo após me sobressaía a memória do escritor, e o que eu não poderia fazer, e imagino que até isso ele imaginou... Em até naquele final de dia no escritório, quando ela veio, e se sentou, e em mim vibrou novamente a emoção de amar: nada que não mais exponham tanto que isso: uma loucura que vinga do lado de fora dos muros da sociedade, e me faz feliz; pois mais que naquele dia, por enquanto, quis ter Adélia, e ela me tinha em mais do que podia imaginar... Conhecia-me. Tudo que ouvira, ela também, e presa de admiração: verdade... Mas minha “culpa” ainda estava pelo escritor... O dia terminara, e eu já estava em casa, sozinho... O escritor e suas obras eram a mesma coisa. E não pode ser melhor definido o que tinha de tão excepcional naquela pessoa, se não o efeito que tinha sobre todos ao transparecer toda calma e sisudez de um monge que tenha feito voto de silêncio: Suas palavras sempre me pareceram algo de planejado quanto as suas histórias... Sempre presas em ambientes e situações onde o que havia nunca era o que parecia, e o que se alcançava nunca era o que se esperava; somente que de uma forma tão envolvente que ao término de horas de desespero, tensão e incerteza... o leitor ainda se vê frustrado por não haver mais, sentido efeitos posteriores que o tentam constantemente a querer voltar ao livro e rever tal parte: sempre imaginando que aquilo poderia ter sido diferente, mas preso numa eterna dúvida não consegue se desprender daquele mundo: algo como que envolvido pela escuridão, mortificado por uma hipnose; e o mesmo, e pior, quando na presença do autor... Muitas vezes ele se calava por horas, observando o mundo, e em seguida golpeava impiedosamente a todos com algo que o ser próprio não podia nunca explicar, sempre presente na própria discussão, e sempre com tanta certeza... Imagino que por isso os melhores momentos do escritos sempre foram na presença de mais de duas pessoas... Uma capacidade incrível de absorver do ambiente o necessário para construir o todo: algo de incalculável poder, que seduzia, irritava e presenteava o mundo com pequenas ações de um grande conjunto, perfeitamente bem montado em sua cabeça provavelmente, mas de muito pouco sentido para mortais. E disso reluz a minha certeza, quando me proponho a escrever, quando somente ele consegue entender... E quando sei que foi ele que montou o meu cenário, para minha história, no momento em que me conheceu... Inclusive a vinda de Adélia, naquele dia, e depois... Mais que de mim em admiração sabia que estava sendo parte de uma história: e para a minha própria depois, mas algo de semelhante sempre havia entre nós dois... Suas obras parecem sempre tratar de algo oculto, não revelado na própria obra, que costuma invadir as descrições de estranhas violências e fetiches urbanos, coisas muito absurdas e ao mesmo tempo extremamente próximas das fontes psicológicas dos seres humanos médios das grandes cidades: ambientes e personalidades obscurecidas pelo falso sucesso que se mostra para a sociedade; aqueles que trabalham, que constróem e vivem suas vidas de rotina , quando na verdade fecundam monstros dentro de si, que quando se mostram só anseiam por destruir, tudo aquilo que o manteve preso... Sempre. Contudo, em meu lado, algo de mais na origem começou a surgir em cada pequeno trabalho anterior... E desta, venho a revelar minha própria gênese... Por um hábito quase insensível estava sentado em frente da minha máquina de escrever: a havia comprado com aquele propósito: nunca tinha necessitado de tal aparelho em minha casa... Fora mais um aprendizado e recomendação do escritor: usar uma máquina de escrever, mecânica de preferência, para que o som das teclas fosse mais um composto do momento da criação: o que dava o peso e o ritmo da obra nos seus próprios ouvidos enquanto sua mente viaja por outros mundos dentro dela própria... Funcionava com ele, e comigo também exerceu essa influência tal instigante barulho, e com algo mais por mim mesmo acrescentando: a música... Disse ele que muitas vezes utilizava música clássica; mas eu, em todos os momentos só vi um tipo de som, além do da máquina, o tipo que puxava para trás das máscaras do passado, e que eu não conseguiria parar de ouvir, pois também gostava: o rock louco que agitava o sangue, e move os músculos da garganta até doer... Somente para lembrar que o que eu tinha era um, dos muitos, horrores do mundo... Mas ambas, músicas do universo... Naquela noite foi só o que consegui ouvir: já ocorrido, não mais escreveria daquele modo de antes, porém o hábito permanecia; o que ocorreria depois seria a transformação disto, que agora se dispõe... Mas os fatos do ambiente e da criação permaneciam... Para os seus propósitos: quando a mente viaja e eu sinto tudo ao redor desaparecer: é ele querendo despertar... É semelhante quando os sonhos chegam, e eu começo a imaginar... “As tochas acesas ao meu redor começavam a brilhar e a aquecer com tanta força, que eu sentia que o fogo que crepitava dentro daquele ambiente queimava era dentro de mim. Uma contínua imagem galopante de um outro ser disforme que dançava dentro das chamas e se aproximava com empenho para dentro de mim mesmo, e a minha visão. Podia ver de fora e ao redor que nada mais existia além de mim e do fogo. E só podia dizer que um som também existia: a música de um demônio distante; daquele tipo que havia encontrado nas enciclopédias: criaturas supra-humanas superiores. E algo mais que podia ver e não sabia o que era, que continuei a


imaginar...” Tudo sempre presente dentro de mim: sem refutações. Um processo que se dirigia a ambientes pavorosos e lúdicos, que se assemelhavam muitas vezes no mundo real aos conhecidos filmes de T. Gillian: criações absurdas tiradas do onírico; sonhos, sem dúvida... E que provocavam um medo petrificador no despreparado deslumbrante de suas imagens de delírios mórbidos e repetidos, pois se cinqüenta vezes mostrada uma imagem comum do cotidiano, como uma criança maltrapilha pedindo esmola, então essa imagem se torna goticamente absurda, em vários ângulos e repetidamente no horror que é a realidade, mostrada de uma maneira surreal, bizarra, mas extremamente assustadora... Talvez por isso seus filmes, e também minhas obras, se limitem a um público muito pouco vasto, que entenda e consiga apreciar o assombro que é... ver tais coisas. No meu caso sei que tenho pelo menos um leitor: o escritor. “E mais uma vez de dentro do rio azulado, uma chama divergente corta o corpo de minhas imagens, não sendo esta mais em mim... e sim agora outra, que povoara a realidade neste dia: era Adélia, saindo das chamas com tranqüilidade e expressão, transformando drasticamente os pensamentos, e presenteando o corpo com uma sensação, que metodicamente fazendo-o acordar das estranhas criaturas e lembrando que ainda era um homem, ascendia uma agradável ereção, que fez diluir o fogo e o onírico, trazendo de volta a música próxima e a claridade da luz da sala... E ao meu rosto um gostoso sorriso. “Era a visitante que me chagava à porta naquela noite, a própria Adélia do sonho na imaginação, mas na realidade de mim. Eram mais de doze da noite quando ela tocou. E menos surpreso que deveria estar atendi... Nunca perceberia antes o prazer de estar realmente atraído, e apaixonado, por uma mulher... até o momento em que veria naqueles olhos a mesma sensação parecida. Homens e mulheres no mundo inteiro, e logo na sala do meu apartamento, eu e Adélia: importava muito pouco de que ordem ela viria para aquele momento, pois meu coração já se inflava o suficiente para cobrir qualquer das acessões sobre a história que poderia prover se não estivesse tão entorpecido pela sua imagem: e de fato era verdade, tudo que havia imaginado, pois o fogo já me recobria por completo. Quando a porta fora lentamente arremessada, e batendo com força suficiente para o seu trancamento... Logo onde aquelas duas pessoas estavam a se estudar pela eternidade, sem saber ao certo porque ali estavam, e se perguntando centenas de vezes do sim ao por que não, do que em verdade estariam por produzir... Lembro-me perfeitamente e transporta o momento com perfeição, para a emoção que realmente fora, ao absorver aquele olhar, e esquecer dos “outros” presentes, sabendo que o mundo iria desabar por suas razões e causas, para finalmente num beijo tão profundo conseguir sentir tudo que deveriam sentir os dois seres humanos que de presentes se perdiam, para jamais esquecer aquele momento, e talvez sempre se arrepender... O fogo dela surgia em mim, e estávamos os dois em chamas, do nosso fogo em comum daquele momento, e muito mais que minha imaginação... sangrando uma verdadeira paixão pertencente a uma mentira, uma outra... Adélia apagara todo o passado, e me fizera consumir junto com ela, durante aquelas horas em que o amor se fez. E o lar do meu cenário mais uma vez se tornara presente... Sinto mais uma vez agora a dor daquele imenso prazer: em ema pouca memória de valor duvidoso, pertencente a outra criatura, cuja descendência tive de suportar... Da criatura e da paixão que senti naquela única vez com Adélia, só me fiz encontrar da felicidade um grande erro humano, na própria: estar vivo para ver o depois... Naquele dia: o monstro estava feliz. No dia seguinte... Levara alguns minutos antes de me dar conta de quem estava deitada ao meu lado, em minha cama, naquela gloriosa manhã. Era quem eu deveria estar por querer que fosse. E olhara mais uma vez para ter certeza: era Adélia... Seu rosto repousava tranqüilamente onde eu ainda não queria acreditar; alguns fios de seus cabelos castanhos brilhavam ao amanhecer da janela do meu quarto, caindo sobre parte do rosto. Movi-os com carinho, deixando as pontas de meus dedos deslizarem por todo seu contorno. Sentia e ouvia sua lenta respiração ir e vir pelas narinas. Recordava com prazer de como por aquelas narinas ofegaram com os momentos da noite passada: não nada lentos como aqueles, mas ferozes como em mim as batidas de um coração selvagem que há muito ansiava por algo como aquilo... Antes por outrem, irrealizável, mas agora satisfeito com Adélia... Por toda aquela estranha paixão, de estranhas razões... Por toda aquela paixão, de estranhas razões... Mas continuava a sentir por aqueles momentos, a estranha emoção... Ela acordara. Lentamente então. Calma. Com um sorriso... Durava tão pouco de tudo aquilo, e eu só conseguia me lembrar de toda a minha história de realização: havia se terminado os tempos. − Bom dia!... Acho que temos um problema. − Um estranho pensamento para o primeiro dia, mas era o que era a verdade. Adélia tocou meu rosto e me beijou suavemente. Nunca saberei sobre seus planos planejados, mas me aguardava a ser naqueles dias a vítima... Ela não se preocupava, no entanto... − Temos é um compromisso... (Surpreendeu minha expressão.)... O almoço da organização. − E era verdade. Havia me esquecido que este evento havia sido marcado pela empresa para confraternizar clientes e funcionários, quando a coisa que menos queria fazer era estar talvez em público com Adélia e o escritor. Ele me conhecia demais para saber, e ela, provavelmente, então... Mas de fato não era essa a minha preocupação, ou mesmo a calma da mulher... Nos levantamos para continuar a viver: o fato... Minha preocupação era o que tinha em mim dentro da trama: tão bem receptiva à minha própria: A verdade parecia pouco importar para alguém que já vivia como eu... Quem da verdade em alguém como eu podia se erguer, se o que pensava passava por ser o que mais se quer: consigo lembrar de mim naquele


tempo com essa dúvida nebulosa do porquê, e sem razão, dos pontos extremos de uma grande emoção... Vida e morte em meu coração, para pensar em tanto na presença social. No almoço e depois Assisti Adélia se vestir, com os olhos de quem apreciava o demônio: aquele da comum superstição; sentia-me como que meio convertido por toda aquela despretenciosa beleza que me enfeitiçara, já, de certo modo, me fazendo compreender das conseqüências... Mas, pois, pelo antecedente que sempre saberia ser a intervenção do escritor... naquele acontecimento, e em minha vida... Como quase sempre a via, estava colocando o jeans: sensual sensação presa àquele toque do tecido à sua pele, e antes à minha pele; e era toda conspiração do meu corpo e do meu coração ao me sentir tão bem e satisfeito, quando o próximo momento seria o da depreciação da história... Porém com tudo aquilo , não conseguia mais temer o passado e as lembranças... por tudo aquilo que assistia e acreditava ser meu... eu; e não o era. Feliz... Finalmente partimos. No almoço... Antes, posteriormente, tomaremos os olhares dos momentos em uns dos outros heróis e anti-heróis desta história, que por fim serão os vilões. Pois depois, recordo-me bem... Impressionou-me muito o mundo naquele dia de vento tão intenso e de debates tão extraordinários entre pessoas do mesmo estilo; sobre os assuntos de um momento de existir não mais tão jovem quanto eram aqueles que apreciavam os momentos de seu aprendizado com os prazeres e dores indubitáveis de um tempo que nunca deixa de correr: um paralelo, sem dúvida, e um paradoxo; pois outra vez, foi de um impressionante espanto ter tais estas questões em mentes tão confusas, jovens e audaciosas; artífices e profissionais; como eu, menos em minha maior parte de silêncio, em só observar e de participar... quando da escolha. Num pátio improvisado após a refeição, onde os negócios e as negociações ficariam para trás, para melhor procurar as razões... da arte... − Mas para que a arte serve a este propósito, se o propósito anterior ainda é descobrir pelo que viver? − A minha questão surgia numa conspiração daquelas estranhas mentes. O grupo era formado por mais de artistas: não tive nenhuma afinidade em querer “relaxar” junto com alguns dos grupos de outros elementos do mundo financeiro: meus colegas de trabalho. Joana ficara alguns outros predentes a este mundo; falara comigo, e mesmo de longe demonstrava sua preocupação por eu estar sempre perto do escritor, e também de Adélia.... Com cuidado sempre tratara isso, mas nunca interferira.... Estava sentado ao lado dela, o escritor era o seguinte: calado e inexpressivo, só fez a medida de se exaltar durante a minha pergunta, que eu fizera ao ouvir um outro jovem artista, um pintor, dizer que a obra dele retratava sua eterna própria morte durante a vida. Talvez fosse uma surpresa maior para eles saberem que eu não era um dos artistas: dos clientes que eu atendia somente o escritor estava /lá, e sabia, eu soube quando ele se interessou, que minha pergunta fazia sentido, apesar de não ter nunca em tempo algum resposta entre os vivos.... Tanto a vida quanto a morte, tão exaltada por aquelas criaturas, eram uma total obscuridade para todos... E isso também era uma surpresa para todos: reconhecerem-se tão frágeis quanto eu.... em suas criações.... E isso também me impressionou. Porém na satisfação do meu novo ambiente, e no prazer de Adélia ainda ali; lugares em que a vaidade se depositara com tanta facilidade, pois calados todos eles ficaram, e desprezados por mim em minha inicial humildade: também não sabia nada sobre a vida e a/morte..... Algo do mais inicial ainda me recordava do monstro: e talvez fosse com a satisfação com que mal conseguia lidar... A presença dos olhos do escritor, com o qual pressentia desde o almoço à mesa, no reencontro dos dois, por Adélia... O que não conseguia ver que continha aquele par de buracos negros e profundos. Sentir o mar deles me jogar longe ao ver os dois se beijarem, com os olhos dele sempre abertos a me observar: massacre dos massacrados ao que se percebia na sua frieza a incerteza do que vinha para lá adiante daquela escuridão tão intensa: uma vida quase sem coração, somente com em palavras escritas podia-se ver o que tinha realmente lá.... e não era muito bonito a olhos comuns.... Antes e depois naqueles momentos sociais eu tive de suportar aquela leitura, aquele novo dissecamento de uma alma que se encontrava querendo ser feliz, mas que ele próprio não deixava, por sua causa, pois ele era o motivo da culpa, da conseqüência.... Mas o que havia naqueles olhos de tão profundo a ponto do silêncio transportar tanta dor e sofrimento quanto uma facada; e o escritor só se restringia a mim: nunca em Adélia.... Onde por todo aquele período estava a simplicidade que deveria permanecer: ele sempre soube.... eu sabia.... Mas dentro dali, daquela escuridão de olhos profundos também estava um monstro, uma criatura, diferente da minha, mas tentando um emissário conter.... E neles começaria a penetrar para encontrar a mim mesmo depois: preso naquela escuridão: da maneira como e escritor me veria, como ele me verá; porém nela irei encontrar o que tem em mim mesmo, e nesse ponto não mais serei eu mesmo quem vai concluir esta história.... Eram os meus olhos também que eu conseguia enxergar. Era o monstro quem se encontrava feliz, por todos os momentos em que tocara em Adélia.... Mas das reais razões, era do que eu iria me lembrar: todas aquelas por que temer e voltar, e enfim fazer-me renascer.... De toda aquela vaidade e beleza de um demônio dentro de mim, a recordação, a lembrança.... de um momento.... lá dentro dos olhos do escritor, onde ele dizia: “ O que você tem tanto a esconder?” E eu tenho!


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Foi então desde aquele dia que tive de observar viver dentro de uma redoma de olhos....Dos vigias do meu próprio interior aos interiores expostos da criatura que tinha que destruir. Terminada a célebre confraternização, vi-me de pé no largo pátio do nosso ambiente a observar com atenção aqueles dois: Adélia e o escritor. Nos outros vultos que passavam ao fim de todas as correntes de assuntos e conversas, sobre o dinheiro e a fama, aqueles de todas as artes; não os realmente via apesar de sentir: um mar calmo indo e vindo, com todas as pessoas que aprendera a não ver e desprezar, como com grande esforço me fizera a mim mesmo esquecer os amigos do passado, somente em no encontro da utilidade e da memória.... E já podia antever a revolução advinda daquela calmaria, pois como o presente me mostrava somente no começo daquele fim a angústia do meu próprio olhar.... ao ver Adélia e o escritor juntos como sempre pareciam estar: nunca um casal comum, pois pouco se tocavam, mas nas artimanhas de um moderno Maquiavel, adorável e macabro como ele era, se podia ver a estranha união dos dois.... E em mim podia sentir a tamanha batalha na qual acabara de entrar ao deixar-me vencer pelo monstro e me apaixonar por ela num instante de tão pouco saudável transformação.... Tê-la tido me provocava mais que culpa e revolta, como era parte de uma trama; mas algo que me fazia repovoar os vazios de quem não mais conseguia escrever e se importar com a terrível certeza de um demônio articulador renascido e dominante dentro de mim, o qual me fazia ter ciúmes do escritor, por uma mulher que não queria amar, e guardando ainda assim o grande afeto por ele.... E enfim fazendo lembrar o que era aquela dor, que por gênese tinha sido a dela própria há muito tempo atrás, mas agora reconhecida como a mesma: o que estava escondido na escuridão das memórias esquecidas e acorrentadas... e exatamente naquele momento libertas de um peito gelado e fazendo sentir a mesma coisa: libertando-o e expondo-o do primeiro instante e revelando a sua dor ao mesmo tempo que seu poder.... Uma triste e gloriosa estrada que todos teriam de percorrer, só que para mim de olhos abertos tinha que enfrentar o grande mal, com o temor de ser ele a mim mesmo. Antes de continuar dentro das falsas e verdadeiras paixões me faço notar que na real clareza e utilidade da situação presente daquele momento até hoje o que se tornaram reais foram duas coisas, paridas vivas de onde só deveria existir uma fértil imaginação de um pretenso escritor: duas coisas que o verdadeiro escritor já tivesse talvez concebido muito antes até de eu saber que ele existia, pois são coisas que se tornam óbvias na violenta imaginação de nós dois, cheias de paixões extremas, criaturas monstruosas e vozes que fazem os solitários depressivos se tornarem suicidas bem ou mal sucedidos.... Eram as duas coisas que quando transportadas para a minha realidade já tão sofrida e auto-piedosa, quase já cheia da falsa esperança que o monstro fazia sentir por ter feito Silvana chorar por exemplo, carregado de vaidade pela própria beleza e insensibilidade, e por ter conseguido possuir uma mulher que muito desejava, quase com a mesma paixão com que desejara Suzana (e desejo).... Mas que no final se tornava apenas uma certeza ao vê-los “juntos”: que quase com absoluta milimetragem tinha sido tudo um plano do escritor, de sua imaginação para os corpos: meu e da sua namorada. Adélia.... As duas coisas: criatura, monstro ou demônio, não era eu quem estava se satisfazendo com aquela vida, e só fazia aumentar a profunda tristeza. E outra: não importava o trabalho, a fuga dos amigos que queria esquecer porque os amava demais e tinha medo de machucá-los quando a criatura se erguesse na escuridão e tomasse conta completamente do mundo que nos rodeia, não importava ter o sexo convertido em realização, a imaginação se tornando uma memória real de tudo que pode ser, ou mesmo qualquer das decisões que tomei por achar demais estar amando e sozinho.... Existe realmente a criatura dentro de mim. E por mais que eu não queira.... Ela sou eu. Que contradição, então, me tornei.... Tudo após as reflexivas despedidas de nós três: estranhos, amigos e amantes..... Com olhares nunca acusadores, mas sim indagadores do que havia realmente mudado: talvez nada, talvez tudo, talvez uma nova e estranha forma de vida que começaria a surgir dali em diante. O escritor continuava a perseguir os meus olhos, e estes só permaneciam na quase inútil tentativa de não olhar direto nos olhos de Adélia, e destes últimos a atitude quase inocente de simplesmente sorrir sem saber do que fora vítima, do que será cobaia, e do que é realmente nas mãos destes dois: o escritor e eu. Mas então eu fui para casa, sozinho. Olhava pela janela da sala do apartamento o pedaço de mundo que convinha aos meus olhos daquela distância e daquela posição: não muito. Sentia o vento ainda frio de final de inverno na cidade tropical litorânea. Tentava me garantir uma certa paz para antes do sono ao observar sem pretensões alguns dos apartamentos vizinhos artificialmente iluminado por seus desconhecidos e estranhos moradores.... Seria que em qualquer um daquelas mentes que transitavam despreocupadas dentro de seus lares seguros e quentes podia imaginar o quanto de suas fragilidades estavam sendo observadas e absorvidas por um diligente par de olhos que vêem: o homem magro da janela da frente que trabalha silenciosamente, sem camisa e de bermudas azuis, debruçado sobre sua prancheta num incógnito trabalho que pouco significava para mim, mas que provavelmente para ele era a única coisa que lhe tinha real importância..... Muito além do fato de sua vizinha de porta, e de janela para os meus olhos, estar pendurando roupas lavadas na janela, se importando


muito pouco com a possível chuva que pode chegar naquele meio para fim de Setembro anunciando o começo da primavera, pois muito provavelmente as roupas não são dela, são de sua antipática patroa que vive às voltas com um marido que quase não aparece em casa, provavelmente a corneando com vontade dentro de uma mulher mais jovem e mais feia.... E ela também não deve se importar com a ponta de grafite que tinha acabado de ceder à pressão excessiva do seu usuário no outro apartamento, deixando-o profundamente irritado com a mancha causada no papel pelo leve incidente.... Imaginava que importância podia ter de um ao outro em suas vidas completamente diferentes que tinham em um observador curioso a forte ansiedade de torná-los um monte de vísceras expostas, por iminentes inutilidades para qualquer coisa que fosse além da mesquinharia de uma empregada para com sua patroa, também de pouco caráter para com ela, por causa de um marido traidor e consequentemente uma vida infeliz. Ou além da mediocridade por ter em seu miserável trabalho para o dia seguinte uma pequenina mancha a mais de grafite borrado. E aí então, ambos transformados em vísceras expostas, teriam definitivamente uma coisa em comum, como agora o tem sem perceber: estariam mortos por força de minha imaginação..... A visão destronou-se da paz que desejava ter. Mais uma vez o monstro me fazia sentir prazer com suas mórbidas visões. E quase irritava-me ver que os dois pobres infelizes das duas janelas antagônicas e semelhantes estavam ainda vivos, fazendo o que faziam, vivendo com viviam, mesmo estando ambos em minha mente totalmente transformados em vísceras..... O vento também passou a me incomodar, aquele pedaço de mundo todo começou a me aborrecer, simplesmente pelo fato de eu não conseguir conceber que ele existia, mesmo sem que eu existisse, e continuaria do mesmo jeito: com o vento soprando, noites e dias se sucedendo, e os vizinhos ainda existindo, insistentes e perseverantes em estarem vivos naquela vida.... A minha. Fechei e tranquei a janela com um sonoro baque nervoso. De quem não agüentava dividir com o mundo ali fora, o que quer que houvesse do lado de dentro. Estava no quarto logo depois. Sentei-me em frente do espelho que fica no guarda-roupa em frente à cama. Como mais uma vez naquela mistura entre lembrança e imaginação, via a sensação renovada daquela lágrima descendo pelo rosto de Silvana e congelando até começar e me refletir e fazendo-me ver chorando também, em frente daquele mesmo espelho, por uma razão que desconhecia fronteiras e fazia abortar dele, da dor da paixão por Suzana fazendo o coração rasgar em sangue e vísceras, a sua verdadeira razão... e naquela noite era justamente o que faltava. O que havia de estar acorrentado na escuridão daqueles olhos no reflexo do espelho: uma lembrança... o que o escritor vira como escondido por trás de tudo aquilo que via e que produzia. Das minhas mãos que conseguiam prover dinheiro aos homens e uma arte para si mesmo de duvidosa alegria, mas certa verdade... Mas ainda assim era algo terrivelmente oculto, como num pesadelo mal lembrado que assusta sem mesmo precisar se mostrar na memória do amanhecer e que não me recupera, e fez-me temer a noite naquela noite, como nunca foi, ao olhar-me no espelho novamente e me ver sozinho novamente, onde na noite anterior estivera com Adélia, sob as delícias do amor, e onde em muito tempo não sentia a tamanha certeza que algo estaria por vir logo após o sono... Deitava com o doloroso pesar de que o amanhã, isto é, o dia seguinte demoraria a chegar; e quando eu o alcançasse desejaria que nunca tivesse chegado... Como desejei. “Não era realmente um pesadelo. A sensação surgia na semi-consciência. Centenas de imagens surgiam em alta velocidade ao mesmo tempo que nomes de pessoas eram pronunciados dentro de minha mente, nomes todos desconhecidos e que existiam mesmo que não desejasse não esquecer o que eram ou o que foram na minha vida... E então, de repente, o zumbido começava. Os sons dos nomes e as frenéticas imagens começavam a desaparecer à medida que o zumbido crescia em volume e em agressividade. Quando então tudo sumia e só vinha o agudo rugido daquela furadeira que era o zumbido na origem, e se tornava insuportável, fazendo meu corpo tremer, todo meu crânio vibrar com a velocidade da furadeira e tendo a nítida impressão de que tudo estava sendo destruído ao ter minha cabeça perfurada com aquela broca interna... E por fim a vibração voltava ao zumbido, deixando-me imobilizado, inerte, mas acordado, pois podia perceber tranqüilamente o som ir sumindo até quando eu tinha de me pronunciar alguma palavra que em comprovasse que ainda tinha o controle do corpo... E como era difícil dizer aquele grunhido dentro da solidão escura do quarto enquanto a vibração de leve ainda ficava à espreita para retornar no momento em que as imagens voltassem.... E então eu me movia na cama, respirava fundo, mudava de posição e tentava novamente fechar os olhos e dormir.... Com a boca e a vibração continuamente voltando: não me deixando adormecer de fato, e tornando aquela uma das noites mais longas e exaustivas da minha vida.... Dormindo um pouco, depois de muito sacrifício e tendo a nítida impressão de que não queria chegar no dia seguinte.... de modo algum. Mas chegando, “morto”, com medo, mas num novo dia.... Sem dúvida num novo dia. Da metáfora posso tirar que o quer que fosse do eu vindo de dentro com a boca para não me deixar dormir, o que posso dizer é que queria destruir o que quer viesse de imagens em minha cabeça.... Seja lá o que fosse: rosas ou sangue de recém-nascidos.... Para que nunca se tornassem reais.... E como eu não morri: também não era um aneurisma.... Era a guerra entre o eu e o monstro: não duvido!.... Mas quem era o quê?.... Não sei! Antes de prosseguir com a entrada daquele dia de tão gloriosa decadência, posso me referir a uma coisa que resta dentro do nosso espírito adolescente, que emerge naquelas situações de maior desconforto e descoberta com o


desconhecido. Sob os olhos externos parece sempre ser uma insanidade que o tempo das explosões passionais possa ser comparado aos demônios de todos nós, amantes da vida, seres humanos.... No meu caso podia me ver sendo os sonhos materiais dourados da maioria dos adolescente: crianças distantes de onde eu me encontro, com vinte e três e as rugas e os cabelos brancos de alguém que já devia beirar bem mais... Podia ser uma expressão de maturidade, mas não era bem isso, como nunca é quando se descobre viver pelas razões erradas e num plasma de uma criatura que sonha realmente viver, criar e destruir como num mesmo verbo.... Naquela projeção o que podia ver do sonho dourado era um apartamento de dois quartos, todo decorado de bagunça organizada, sob nenhum toque de outro ser; uma carreira que seria muito longe mais que um começo se não sofresse de um quase total desinteresse de seu delineador: curiosa ambigüidade; e mais de uma quando ver que o que o adolescente sonhara não era mais um sonho, mas sim realidade, porém muito pouco apreciada como seria se ainda fosse um adolescente, de problemas simples e descomunais na mesma proporção de escala, de paixões extremas, mas que não traziam à tona revelações do futuro, coisas tênues e comuns em todas as lembranças dos corações sofredores desse mundo. Todos.... Mas nenhum como o meu... naquele dia de descobertas.... Pois lá estava meu rosto novamente refletido no espelho pela manhã. Um rosto que se vira muitas vezes, e como naquele momento não se reconhecia como sendo a mesma figura das lembranças e das interações com o mundo... Era um rosto de expressão cansada muito além da noite má dormida, de cores e luzes transgressoras de uma imagem de muito pouca força para continuar a viver.... Faz-me rever nesse mesmo instante da expressão desses olhos apavorados diante do metal brilhante do futuro carregado em chumbo no seu interior, extremamente polido e bem cuidado por mim mesmo. E ao mesmo tempo da vaidosa beleza que conseguia enxergar no chão brilhante do shopping no dia em que fiz Silvana chorar.... Não seria a mesma expressão quando chegar o momento de fazer a segunda pessoa chorar, pois será o momento em que meu rosto será o mais próximo possível ainda daquele rosto que eu via no espelho naquela manhã: retorcido, deformado, excessivamente pálido, quase doentio... Muito longe do que fora naquele mesmo quarto na infindável distância do dia anterior.... quando acordara com Adélia.... Eram ou foram no final, agora, uma conjunção dos verdadeiros reflexos do que eu era, do que estava sendo no interior da criatura: adormecido ao estar longamente desperto. E do meu rosto tive de me reascender para o dia. Mais um dia.... Existem pessoas que gostaria de esquecer. E eu deveria ser uma delas quando me assistia passo a passo dentro de minha casa, sob os preparativos matinais normais de um homem qualquer, mas com a memória fervilhando das minhas imagens.... Quem eram aquelas pessoas que tanto me atormentavam enquanto a água do chuveiro correr o meu corpo fazendo os poros se abrirem e se fecharem na alegria do começo do calor da primavera... Quem fora aquela mulher que me provocara um início de ereção somente por pensar na noite passada, fazendo-me ter vislumbrar o reflexo no acrílico do box fosco e no próprio chão molhado do banheiro.... Como podia o gesto de me enxugar com uma toalha marrom me lembrar que meses antes daquela sensação só queria fugir da presença do mundo daquelas pessoas que mais amava, e da pessoa que mais amava (amo).... Poderia olhar-me novamente no espelho, já completamente renovado para aquele referido novo dia, ter o significado real da mudança.... O que realmente eu teria de lembrar naquele dia que tinha que provocar tanto assombro nas lembranças daqueles outros dias, quando os nomes e os rostos, também estes presentes no frenesi da noite recém má dormida, estavam tão claros: Beto, Marco, Rodrigo..... Suzy, e tantos outros que não via há quase tanto tempo quanto me lembrava tentar esquecê-los pelas razões do amor, ainda achava... Mas me vestia, penteava o cabelo e continuava a me olhar, e ainda via que o tom de todo aquele horror era de outra origem.... Como em cada dia as realizações parecem sempre ser diferentes e as construções de nós mesmos uma nova sensação, pensava que era algo de surpreendentemente novo, mas porém de familiar expressão na montagem daquele cenário de paradoxo ao me ver constantemente fora do que tinha de fazer.... Sair de casa, outro gesto, e mais uma vez penso no que tinha de pensar: nas duas coisas que tinha de lembrar: quem tinha de despertar e que o que despertava era o que voltava a fazer dormir, ou destruir.... Mas não pensei.... Só via os rostos que tinha de reconstruir para poder chegar aonde não queria.... Hoje. “Foi há exatamente um ano atrás. A data retomou-me à memória como a vingança dos fatos para o que eu deveria realmente fazer. Para atrair a atenção do que vinha de dentro, ressuscitar o que vinha de tão pouco acolhido em minha alma atormentada e adormecida, como o monstro que estava recém desperto: Precisava se tornar um alvo como agora o tornei para revelar o seu verdadeiro motivo de ser.... A desventura do dia começara a se revelar no momento em que passara de relance por um daqueles painéis eletrônicos que eventualmente nos dizem a data, a hora e a temperatura; numa cidade de excessiva poluição também indica a qualidade do ar, mas o que não é o caso por aqui. Uma calma e paciente velocidade me carregava ainda em dúvida na direção de mais um dia de serviços prestados ao mundo ativo-financeiro. A dúvida ainda se compunha em revelar do porque de tanto em minha intenção inconsciente ter de reviver certos fatos de meses atrás como se fossem os ícones da procura do presente, naquele reavivar da emoção e da decepção, e do prazer diante das visões, quando começava a me acostumar com a idéia de que podia controlar o que pensava para não se tornasse mais do que algo útil, e sim o que fora antes e me assustara tanto aos gritos: a ambígua sensação de capacidade e incapacidade juntas ao ver o que criava, e não saber que o que criava era a resposta para os possíveis males causados por essas criações (criaturas).... O que era mesmo afinal que me apavorava tanto dentro de minha mente e que se revelara nessa mesma época, que queria querer esquecer.... por outras razões (achava.....)?.....


Marcava o número oito antes dos dois pontos verticais que ficam piscando. O número seguinte, logo depois dos dois pontos era o um. E o último não consegui ver com clareza.... Mas era pouco mais que oito horas da manhã. Estava no horário; meio em/cima, mas já chegando.... Logo em seguida de desaparecer as horas, vinha a temperatura: os quase agradáveis 25 graus centígrados. Digo quase, porque hoje, no mesmo dia um ano depois, mais cedo, no amanhecer, devem estar fazendo uns 22 graus no mesmo termômetro, não muito longe daqui, e eu só não me sinto completamente desconfortável porque estou suando. A temperatura mais agradável para mim sempre foi a acima de 35 graus e abaixo de 38.... Sempre adorei o calor e transpirar.... Mais agora do que nunca, mas não convém ainda falar o porquê desse prazer singular.... Conveio naquele instante que em seguida surgira no rápido relance do fim da rua que se curvava para a direita, pelo canto do meu olho esquerdo, a repetição do ciclo do painel, que sempre começa pela data.... E como em todos dessa cidade, aquele também não apresentava o ano, apenas o dia e o mês, há um ano atrás, era o ano passado, e foi o suficiente para eu saber porque temia tanto chegar nele, naquele dia, há um ano atrás, bastando ver que dia é hoje que surge ao sol para ainda saber o que farei, com tanta certeza do que farei... Mas naquele momento somente a imagem da lembrança. A rápida recordação por trás dos zumbidos da noite má dormida. O que minha memória trazia junto com aqueles rostos tão frenéticos que tentavam encobrir o que tinham a revelar na mesma época, quando eu acordei e não quis acordar, e por isso prossegui a sonhar: era a imagem daquele sonho azul, aquele da tela que a tudo absorvia e em seguida me mostrava uma data, fazendo-me revelar o porquê... E não era imaginação.... Ou é!.... Terminara a curva e só podia ter da minha expressão a certeza daquele medo que latejava e não sabia porque, pois via nitidamente no porquê se tornara o que era: a criatura que se via em missão e o criador que tinha que deter esta mesma missão.... Estava assustado, mas ainda incrédulo.... Hoje só estou assustado! Joana me vira entrar enquanto voltava da copa bebendo um copo d’água. Batera a primeira porta, e ela provavelmente ouvira quando bati a segunda que dava em minha própria sala. Visivelmente transtornado, me acho, procurara-me preocupada logo em seguida ao ver como de um dia para o outro as coisas pareciam realmente mudar. Devia ter sentido como que visse um animal acuado, na iminente e triste antecipação de sua destruição impiedosa por um caçador com sede de sangue e fome de vísceras. Encontrou-me observando com pesar e medo para o velho e surrado calendário; aquele mesmo que tinha as marcas em vermelho das datas em que deveríamos prestar contas, primeiro com os clientes e depois com a empresa, após as idas aos bancos e as captações dos extratos dos diversos mercados.... Em meio a tudo aquilo, apenas a data, o número em meio aos muitos, trinta nesse mês. Um particularmente sem marcas, antecipando os muitos dos últimos dias do mês que são os de maior fluxo dos documentos referidos..... Quando um número pareceria representar tanto, num calendário tão cheio de convenções dos homens, mas o único que realmente importa, pois de mim “será” realizações de um homem. Mas ele se fechou quando meus olhos fecharam na memória, e o seu vermelho reluzente de uma terça feira se tornou um reflexo amarelado em minha visão escura, vindo logo atrás as verdades de suas possíveis conseqüências: minha imaginação?.... Joana não falara nada.... apenas senti sua rápida presença e logo a sua triste e perplexa retirada.... Olhos por trás de uma parede por demais expressa para ser penetrada, e compreendida: eu... Sentia-me completamente perdido naquele momento.... Ainda no mesmo dia. Joana me interfonava por volta de três da tarde. Quase não a tinha visto naquele resto de dia. Talvez notasse a impotência de ser alguém que se importava.... E por aquela outra razão, também descobrira que em certo ponto ninguém mais se importava.... mesmo. Quem ela informava que estava presente era o escritor: numa sombra de surpresa de alguém quase esquecido, quase novamente reconhecido, somente na volta da memória mais recente, ainda de mim mesmo.... Alguns minutos e ele estava sentado a minha frente, observando.... Encontrar ou reencontrar com o escritor, o amigo que não mais povoava a minha mente desde que há muito tempo, no dia anterior, o vira sumir no passado de novas estranhas transmissões, como a muitos outros que encontramos em nosso caminho.... Eu realmente sentia como se muito tempo fosse. Revendo a história a partir do momento, como tenho de fazer.... Tinha lançado seu primeiro livro cerca de quatro anos antes daquele nosso encontro, ainda com menos de 22 anos: coincidência paralela , posso mencionar antes mesmo de começarem todos os reversos (aqueles dois), pois o lançamento fora exatamente nesse mesmo mês, ele me dissera antes, setembro.... O encontro foi do acaso, como vejo, um feliz acaso do destino em trazê-lo até mim por via da nova empresa que procurava acolher os jovens talentos mais promissores da nobre arte, e me trouxera um amigo, soberbo e arrogante na criação de uma trama, que amedrontava, mas na perfeita fonte de uma realidade, da qual participo, e com a qual aprendo tanto quanto me espanto, pois é totalmente singular e sólida, ao mesmo tempo que fantástica e atemporal.... Agora voltando.... Ainda duvidava que era o mesmo do dia anterior por tanto que pareceu-nos atravessar do dia e da noite anterior também, e ele estava diferente.... Numa parte final de uma de suas vértices dos novos conhecimentos e descobertas: Ainda estava eu ignorante, pois tinha outras preocupações, naquele dia.... Porém, ainda assim, atrasado em relação ao vértice dele, e estagnado em ralação ao meu, pude me surpreender com tudo que veio; e fiquei grato por tudo que pude aprender sobre sua nobre arte, que agora se tornava a minha também, em num definitivo marchar dentro de minha alma para tanto: mais dele, eu espero, quando sempre aqui vier me concluir no que direi até este instante que se aproxima, pois ele é o escritor, aquele que detém a arte em seu uso, em si, e não como uso nesse calor da emoção.... Eu soube então, como agora cá estou que apreendê-lo naquele instante em minha vida, naquela


data (hoje há um ano), não fora tão somente a coincidência que pareceu ser, pois só ele agora é quem vai entender, e fazer entender, eu espero, como eu quero entender, vendo ele “ensinar” a partir da minha dúvida..... − Você já parece pronto! − Falara ele com tranqüilidade de um sereno amanhecer de primavera, como aquele era ou devia ser, e este.... Mas me arremessando de volta à mesma equação por ser resolvida, do caminho angustiante a ainda ser galgado.... − Pronto!? − Ao escritor.... O preço de minha atordoada imaginação nessas folhas de papel rebuscadas da beleza do que não existe e que dilacera mais que a bala que sai do revolver..... A arte serve para expor. De fato.... A arte é (era como o escritor falava e como me refiro) viver de um sofrimento que se consagra nas leis que os homens querem desconhecer.... “Para eu e você...” Dizia ele... Ser a transformação da criatura interior nas palavras que negam a felicidade. Dos felizes somente ter as imagens de rostos famintos e ávidos por novas e emocionantes paixões de fim-de-semana; sempre aguardando com ansiedade suas mórbidas ressacas doloridas, e suas doenças de almas arrependidas por terem dito sim... É ter de sofrer junto com todas essas criaturas; sentir mais do que elas todas e colocar-se na sombra para enfim descobrir as palavras e expressões que mais lhes convém para dizer: da perda, da dor, do amor, da paixão, do sexo, da doença, do descobrir as origens de todos os temores do coração e por eles viver em mais uma procura: de que podem eles conter diante de tanto horror que transmitem. E dar. − Mas é necessário tanto sofrimento? − Pergunto eu a um homem totalmente modificado pelo estranho entusiasmo. Pouco desdobrado nas articulações, como sempre é em sua fachada, mas podia notar o queimar em seus olhos do que ele achava que podia revelar. Sentado em minha presença, penetrante com o olhar, incisivo, frio e seguro.... para querer falar da dor de todos nós.... − Sofrer! Meu amigo.... (um sorriso no seu pálido rosto).... Nunca tema o que o verdadeiro sofrimento pode lhe trazer de grande aprendizado para a arte. Só ela deve importar quando você sentir aquela marca no seu coração se transformar num talho tão grande quanto a vazão de um rio no mar, pois o sangue que jorra é o seu e do que você tem dentro de você.... E este é o único momento que aquilo que está dentro, tão bem escondido por você mesmo, se mostra para enfim a criação de uma grande arte.... E ela assim deve ser tratada quando a benção da loucura te trouxer essa imagem de revelação de dentro de você. − E parece que essa benção já te apanhou .... − (risos) − Sem dúvida... E a você também... Posso ver! − Fora quando o escritor finalmente começara a discorrer sobre a imagem do que ele chamava sentido da arte. Algo que parecia, e parece, conter os valores do que realmente a arte de escrever deveria trazer para mim; e nunca fora a felicidade de escape, como deveriam imaginar os ausentes desse mundo, da nossa tarde.... Deveria enxergar e sentir nos outros a dor única de todos os sofrimentos. Transformado em prazer o dom de ter todas as palavras possíveis para transferir da dor de fora o que realmente havia dentro, e que continua a origem.... Se havia violência naquela tal imaginação, provavelmente o que existia dentro de ter sido estimulado para esse tal intento: com a violência do mundo para tanto... Mas de fato com a origem no interior... E assim deveria acontecer com os outros sentimentos e emoções. Como o amor. E o amor. Mas ainda havia mais uma. Uma filosofia, no sentido próprio da palavra: amor pelo saber.... O escritor dizia:” É perseguir-se!” É perseguir a si mesmo.... Ficamos velhos e esquecemos como é a emoção, aquela sensação quente, distante da dissimulação, que traz à tona o que há de verdadeiro no sentimento. Quanto mais maduros nos tornamos, mais longe ficamos da origem daquela deliciosa erupção, tendo-a hoje como quase ridícula, digna de vergonha e embaraço diante de nossa própria lembrança: por todo fracasso que há no momento, e por sempre dizer a verdade.... Nós não fazemos mais isso. (“Fazemos?” Ele ainda perguntou ) E temos mais “sucesso”... Porém me trocaria por aquela pureza visceral, de certo... − Então, tem haver com a juventude?.... E as coisas que aprendemos? − Esgueirava-me através de suas palavras para me fazer compreender, e compreendê-lo, na construção da bela trama. Ele me respondia... − Não, exatamente. Tem haver com o ANTES! − As palavras que vinham de mim, e eram do escritor. − Antes??? O frio do ar condicionado ardia em minhas pálpebras cansadas. Das noites de insônia sem uma única linha escrita até o pesadelo da noite em que não queria chegar ao dia seguinte, e me descobrir novamente numa situação de extremos. Era o que vinha do escritor por admitir com um ímpeto e uma certeza que nunca vira antes, que tudo que havia não tinha realmente a necessidade de uma solução, mas de uma abertura para a origem: a erupção que ele mencionara de um momento antes, que explicava que deveria vir agora, mas não o depois.... Que é a minha questão.... Para ele o depois era o uso do sofrimento do antes, daquele passado original, escondido num instante para gerar tudo que havia nas mentes e pensamentos de nós outros: no caso... escritores. Eram as realizações dos amores nunca realizados no passado e no presente; transformados nas tragédias violentas de um romântico eternamente contido num homem obscuro. E era o que ele era quando mencionava que tudo se constituía na origem da tristeza e na manutenção das frustrações.... Levadas ao


extremo: submetido a si mesmo e carregando consigo o eterno impulso de dominar para não mais sofrer, pois do sofrimento se gerou a infelicidade.... E queria ser feliz. Naquela filosofia que se gerava do escritor, a gênese que vinha era a da contemplação do objeto a se amar.... Não conseguira mencionar nada sobre Adélia, mas notava seu pensamento nele, e recordava do seu aparente domínio em suas ações quando estavam juntos. E por mais que negue, e o admire, isso o incomodava; pois novamente a construção da trama era dele, mas o personagem era eu: Temia-o por isso também, mas o medo não vinha somente de mim... E inevitavelmente se contemplaria tudo mais que o fizesse adjacente, e sofreria com espanto por tanto mais amar quanto querer se afastar ( para evitar o sofrimento?). A arte para ele, o escritor, era dominar e controlar o próprio ser dele.... O que seria o paralelo do meu demônio, mas com a intenção e propósito diferentes: o dele era fazê-lo infeliz por sempre dominar.... E sua realização, a do escritor, seria encontrar o que fosse indomável: algo que mesmo com ele escrevendo se tornasse o que ele não queria: incontrolável: talvez eu. Não sei se o que o escritor vivia ao se expressar era a realidade ou ficção dos temas com que convivia, tanto na sua obra quanto naqueles meus esboços... Não havia em nenhum de nós a necessidade por sucesso, mas sim a melhoria da arte através da experimentação. Porém, partindo do talento ( o dom conservado), se a arte era tudo aquilo de sofrer para nós: de todos os outros para dentro de nós e canalizando a origem com as palavras da dor; então o que nos restava experimentar além de mais dor... O que se transformava numa idéia extremamente desagradável naquele momento de minha vida, mas tão próximo quanto as expressões dessa certeza vindas do escritor, que não sabia o que vinha a ser despertado ainda.... Duvidei! − E você sofreu tanto?.... − Sofremos a cada minuto, e você sabe disso (Sei!).... E o que nos preenche é criar: tocar no vazio e pôr nele um novo tipo de agonia que antes não estava lá. (Ele parece realmente sentir muito prazer com isso. O que será que há de tão diferente nele que as visões não parecem assustá-los... Talvez fosse como eu no começo.....) Chocando as pessoas com o que mais nos assustava.... antes. Revelando a conquista de nós mesmos... E o que é realizar senão descobrir o propósito? (Ele disse propósito!) − Por aqui, aonde deveria chegar, seria o que se referiria hoje: o propósito. − Mas que propósito? − Tornava-me tenso e curioso, me envergando na cadeira para poder acompanhá-lo com mais atenção por nossa incrível expedição pela arte.... e aquele dia. − O propósito da descoberta, meu amigo.... O que vem de dentro de você guardando um significado: posso lembrar e te fazer rever esta passagem da primeira coisa que você escreveu: “.... tendo dentro daquela última sala do corredor uma mãe. Deixar-se deitar no colo dela para nunca mais acordar... numa suave e alienante semelhança com uma daquelas salas alcochoadas dos manicômios e com uma camisa de força da qual nunca mais se separa.... Numa eterna dor de quem vive por atravessar todo dia aquele corredor.” − Você consegue se lembrar das palavras exatas.... Não entendo onde quer chegar. − O escritor volta a se recostar na cadeira desfazendo a gesticulação teatral que vinha usado para representar aquelas minhas linhas. Olhava para mim com extrema atenção e respirava passivamente sob a luz que brilhava fraca através da janela atrás de mim à direita. Parecia pensar algo de muito óbvio à respeito da passagem; algo que nunca conseguia ver.... − Me diga.... Quem mais era que estava lá com você quando você escreveu? − Não entendi! Estava só o tempo todo. - Ah.... Você ainda acha isso.... (falou com lamento)..... Então veja que tal visão realmente assusta, não concorda? − É verdade.... Desde o dia que a tive até o momento em que virou uma minha.... (me detive por um instante insignificante, mas eterno na revelação).... história.... − Tentava desviar do seu olhar, pois o que enxergava era outro fato do momento e não o que ele tentava acolher.... − Assusta porque é extremamente familiar. Todos se submetem em algumas ocasiões às pressões e tendem por retornar a um estágio mais confortável da vida: algo como o colo da mãe.... Mas todos sabem que tal anseio levado ao extremo pode trazer uma total fuga da realidade, e por fim a loucura.... onde a tal visão se confirmaria. - O que o escritor descrevera estava correto, mas era o outro instante que me preocupava: Só me livraria do medo daquela visão quando a expus completamente, com crueldade e impiedosamente, levando o personagem em questão às mais atrozes ações e em conseqüência, por fim, ao encarceramento na situação anteriormente descrita no corredor.... Poderia ser um grande passo. (Foi o que pensei.... no dia.) − É o prazer de criar (continuou) o horror mais obscuro a partir do real.... Como é o amor, antes já mencionei, dos que se apaixonam e se perdem....a se humilhar pela mulher amada até que se criar diante dela se torna o imenso prazer maior de ser uma verdade familiar a partir da grandiosa fantasia.... - Tentei-me a perguntar se fora assim com Adélia, pois com isso se tornara mais a razão que a paixão: tendo-a real a partir de uma fantasia. E novamente me formulava aquela idéia que tive antes: da exposição (da imaginação para o real).... Mas o que na verdade mais me veio foi o medo da vergonha por ver que o caminho que ele tomara era o caminho que levava de volta a Adélia, e àquela noite anterior, pois tinha certeza de que ele sabia; não sei como; mas tinha certeza de que sabia de tudo... E imagino, ao mencionar sobre ela, novamente, que havia algo mais... Há. Do escritor em Adélia via-a preenchida por um grande vazio


móvel (o escritor em si), mas com um propósito, como o que parecia tentar me dar, o de se entregar: compreender-se e nesse empenho se prontificando a tudo... Imaginava também a que tudo pelo que ainda havia de acontecer... comigo... com nós três... Tive outra curiosidade... − E qual foi a sua origem? − Parecia perceber bem o que tinha de acontecer, pois não fugia do assunto ao perguntar dele, apesar da primeira impressão... O que tinha de curioso em nós era a complementação, e ele bem reconhecia isso, com muito mais frieza. − Não sei. Provavelmente se soubesse já teria parado de escrever. Tenho nítida algumas diferenças e particularidades que conseguem me aproximar desse fim... Mas na verdade, como também deve ser para você, há sempre um começo: um ponto em que notou-se a necessidade da procura... do propósito do novo... − Dava mais um leve sorriso antes de me reportar mais uma vez sobre aquele propósito ininteligível. − Certo... Então onde foi esse começo? − (Tão teatral quanto deve ser um mestre, mas que se esconde de si mesmo na terceira pessoa: como antes ao dizer: “notou-se”, quando deveria dizer: “notei”.) (Também sou assim!)... Fora de um corte no braço, num curioso acidente doméstico removendo o lixo, ainda com quinze anos. Não era apenas o sangue, como a violência que você bem sabe disso, o que escorria pelo braço marcado em seis centímetros de um sulco causado por um pontiagudo caco de vidro mal protegido. Podia olhar aquilo e enxergar tanto na parte que se coagulava com certa rapidez quanto na pequenina gota que descia em volta sem o peso suficiente para poder pingar até que houvesse outra remessa que não houve... o quanto aquilo nos era frágil: a pele, o sangue, e num outro momento... a vida. E mesmo assim da mesma fragilidade podia-se gerar a solução, a força, a recuperação... Não que tudo tenha me ocorrido de uma vez só, mas foi assim que começou. − Estou impressionado! − A mesma cena havia sido descrita com muito mais detalhes e perfeição em uma de suas obras, uma das mais recentes e também das mais cruéis, onde o garoto, já crescido, tem da revelação de sua origem um trágico e angustiante final dentro de sua própria consciência, preso ao verdadeiro monstro assassino que se tortura, e do qual não pôde se livrar, vivendo muito, mas morrendo um pouco a cada instante com a mesma dor de suas vítimas... Sorte ser apenas uma história. Espero... Joana abrira a porta pela metade e entrara também pela metade na sala para avisar que alguém chegara. Não era mais uma visita para mim... Era Adélia. − Eu marquei com ela aqui. (disse o escritor) Espero que não se importe. Pedi para ela vir me buscar quando viesse do instituto. − De modo algum... Por que me importaria? (“Meu Deus! Até onde isso vai?...”) − Adélia estava trabalhando no Instituto de Criminalística do Estado, e eu tinha pelas mãos um cenário do qual temia ter de encontrar novamente... eu, o escritor e Adélia. Ela entrou. Estavam em minha frente, os dois, nos segundos de silêncio dos pesadelos, e via... Do que tanto tem medo, desta criatura, Adélia presa ao que esconde, que nunca o saberei: pois ela também sente e teme... Tratava-me com certo desprezo. Eu via que a história ainda não tinha chegado ao fim. − “Eu só quero ser feliz. Eu acho...” − Pensei em um dado momento sem a pretensão de alguma conquista para a gestante situação. Todos só querem ser felizes: é o que parece, mas o cenário do mundo se torna adverso, pois tomando os três como mortos sorrisos de um dia... o escritor é o único que pouco sorri, e é o início que parece realmente feliz... Sua própria trama, sua vida, sua mentira e com tudo que ele quer na velocidade do seu próprio pensamento. Em Adélia, daquele toque místico de alguém que sabe viver e compreender, para que o escritor tenta representar tão distante... Intocável: do que tanto, ela, tem medo se na verdade fora aquele meu símbolo de rápida libertação: “ter alguém por quem “amar” do meu lado”, mas não tinha sido real... já sabia... Lembrar Adélia significava ter novamente no corpo a sensação de seu toque; ter nas narinas aquele perfume que misturava ambos os nossos suores e fluidos, e também algo mais somente dela, que ela tem até hoje: um cheiro incomum que devia ser qualquer um dos muitos perfumes que existem nesse mundo, mas que para mim, na minha doce e frágil lembrança de falsa realização, era o melhor aroma de toda existência do ser humano na Terra; e ainda, ter nos olhos aquele profundo olhar escuro e iluminado de olhos tão belos e apaixonados que quase assustavam pela verdade que transmitiam, quase, pois era uma mentira: aqueles olhos ainda em minha frente, naquele dia, quase rasgando-me de desprezo... Era, naquele momento, a nova lembrança: o afastamento que veio logo mais tarde, a partir dali; na verdade a partir de antes, recordando, desde o instante imperceptível em que nós terminamos na noite anterior e nos olhos dela não havia mais nada além do... alívio... Pensando agora na expressão: seria algo como “de missão cumprida”. E essa talvez fora a verdadeira sensação... Mas ainda assim olhar para Adélia era lembrar como tê-la tido por alguns segundos fora tão bom, além de tudo que reportava, de tão mau... a mais, uma parte de uma trama do escritor. Talvez o porquê que a fizera obedecer. De tudo aquilo que o escritor mencionara ao desejo dele de ter algo por realizar: um legado de “verdade” no seu mundo de mentiras que se tornam realidade. Sendo o colosso da criação como é...


Haverá sempre alguma coisa no domínio dele que faz-nos obedecer: como saber que eu a tive, mesmo sob “propósito”, sem nunca ter de mencionar, apenas insinuar... Talvez haja algo sobre ela, sobre Adélia também, que nunca saberei, mas que há entre os dois, e a faz ser como é. E eu... Naquele dia pensei muito sobre isso e sabia que teria de procurar Adélia novamente à procura de uma resposta; praticamente esquecida a paixão daquela noite; mesmo havendo somente a hostilidade da omissão... Não sei se fora algum dia apenas submissão... sem o propósito... o que ela fez. Mas no fim, depois que eles partiram, ainda me restava a outra preocupação: a do dia que se esvaía em aprendizado e lembranças, nas construções à procura de um propósito, como o escritor diria, pois de um começo, como seria o antes, para enfim encontrar uma origem, ou o propósito,... O começo... Uma leve penumbra me carregava lentamente pelo corredor que dava na porta do meu apartamento. Estava chegando em casa e eram mais de oito horas de uma clara noite bem ventilada. A iluminação do corredor estava como sempre pouco eficiente e por isso tinha de caminhar por aquela confortável penumbra, que a alguns assusta, mas a mim dava o conforto da sensação da gostosa semi-escuridão onde os anseios e medos não estão completamente expostos e por isso não machucam os olhos; e nem é a escuridão total que iria trazer os monstros horrendos de muitos momentos deste futuro... Mas... Aproximava-me da porta, já a uns três metros e meio do retângulo branco, idêntico ao outro alguns metros atrás de mim, para o outro lado da saída da escadaria: é no segundo andar de um total de quatro, com dois apartamentos em cada nível... Pouco vi qualquer um dos moradores daquelas outras residências, e falei menos ainda, agindo do mesmo modo com todos os outros elementos do resto do conjunto, fazendo um total de cinco edifícios, quarenta apartamentos, e muitas vidas das quais nunca me dei conta da importância de suas existências: vizinhos, e talvez um lamento... ou não. Via-me enfiando a mão no bolso direito e pegando as chaves um milésimo de segundo antes de fazê-lo, finalmente apontado a maior delas na direção do buraco da fechadura pouco iluminado pela luz fluorescente defeituoso que piscava irritantemente. Tinha que ser apanhado o local correto para que aquela simples operação não se tornasse uma razão para o aborrecimento que sempre, às vezes, causava: enfiar a chave na fechadura e girar a mesma para assim poder abrir a porta do meu lar... Fora pouco antes de fazer isso que a sensação me veio... Certa vez chegando em casa muito tarde, há muito tempo, com pouco controle dos meus reflexos secundários devido à exagerada utilização de droga recreativa muito popular, e legal, a cerveja, tive de confrontar a desagradável situação de não conseguir de modo algum que a chave penetrasse em seu devido orifício, forçando-me a ter de esperar do lado de fora do apartamento, no frio corredor, até que minha situação se tornasse mais a nível de controle e eu conseguisse em fim fazer a tão “desesperada” operação, mais de duas horas depois... Cômico me parecia lembrar de tal acaso se não fosse a outra renovada situação em que ia me encontrar... Quando a chave estava a menos de cinco centímetros do lugar... O primeiro espasmo veio de algum lugar entre o estômago e o fígado, causando uma imensa tremedeira e um arrepio que me impediram de chegar ao meu destino. Atravessando com força o esôfago, era uma surpreendente ânsia de vômito que trazia à mente a imagem de uma sombra que nunca mais poderia esquecer... No quanto de tão assombroso que poderia ser ter que sentir algo terrivelmente selvagem tentando sair de mim com extrema violência e ao mesmo tempo me fazendo enxergar sua mórbida silhueta... Não acreditava em tanta dor e me curvava realizando o barulho característico de alguém que tenta não vomitar no mesmo instante em que a vontade vem com tanta força quanto a própria erupção de um vulcão há muito tempo adormecido... Fechava os olhos em agonia e lacrimejava com dor e ressentimento na tentativa de abortar aquela saída do que quer que houvesse dentro de mim tentando sair através das vias digestivas. Sentia o gosto amargo das substâncias químicas do estômago alcançando a minha boca; uma poderosa contração em minha garganta já garantia um terrível trauma por dias seguidos se conseguisse sobreviver àqueles momentos... Tinha que entrar em casa de qualquer maneira. O ar do corredor se tornara quente e fétido como que reconhecendo meus próprios odores e sentido por eles mais náusea ainda. Conseguiria apoiar minha mão esquerda na segunda metade inferior da porta, ainda permanecendo curvado e tentando manter precariamente uma respiração bastante profunda para tentar evitar outra qualquer onda de ânsia. Sentia minha cabeça pender para baixo e a trazia para cima em acompanhamento da dolorosa respiração; um movimento contínuo por aqueles eternos segundos até que pudesse me sobrepor e novamente tentar levar a chave que estava em minha mão direita até a fechadura da porta... Começava a erguer a dita mão, ainda me apoiando com a outra. A sensação do espasmo ainda queria permanecer como que esperando outra oportunidade para tentar lançar-se para fora. Tive outras imagens na memória enquanto fazia aquele exercício de conservação do meu bem estar estomacal, mas a que mais chocava ainda era aquela terrível silhueta de sombra: como uma marca escura desenhada numa parede também escura, no formato de um homem, mas que eu sabia que não era um homem... Outra que me veio fora a daquele pobre homem bêbado que há muito tempo, num bar, com aqueles antigos amigos que teria de reencontrar, tinha sido um alvo de minha torpe imaginação somente pelo desprezo e nojo que tive de sua atitude: vomitar, e logo depois apanhar no próprio vômito a dentadura que havia deixado cair da boca durante o vômito... E daquela sua imagem adjacente que tive dele no banheiro daquele mesmo bar me vinha o arrependimento por lembrar de tudo aquilo: Senti a outra onda surgir quando vi novamente as vísceras do homem saltarem para fora do próprio corpo pela boca... só que dessa vez era a sombra, a mesma sombra, e não a linha de urina


suspensa no ar a dançar, que com habilidade inseria o braço direito por inteiro na via oral do homem e trazia para fora todos os seus órgãos internos, tornando aquele banheiro em todo aquele palco de horror e sangue... Conseguira impedir a conclusão antes, para enfim conseguir pôr a chave na fechadura, num último esforço para me livrar daquele ar... De tão pesado quanto a força dos meus pensamentos de medo sobre aquele monstro que era a sombra fazendo tudo o que havia imaginado há tanto tempo em um homem que provavelmente nunca mais veria: tão sem rosto quanto a sombra que o distrinchara de dentro para fora em minha mórbida e nojenta visão... O cheiro que sentia parecia ser o de todos aqueles órgãos, já em putrefação, derramados com tanta habilidade naquele chão, quase em minha frente, no meu chão, há muito tempo atrás, no meu pensamento, assim, no momento em que abrira a porta... Finalmente vomitando. Com dor, arranhando minha garganta como uma coisa só, sólida e viva. Revolvendo tudo dentro de mim como se fosse o homem naquele banheiro: atravessado por uma agonia, com um terrível gosto amargo na boca, e com a lacrimejante visão dos meus próprios fluidos recém jorrados para fora, bem à minha frente, em parte do chão da minha sala... Corriam em mim as verdadeiras lágrimas de um horrendo nascimento, da dor e do pavor, de tudo que havia dentro de mim e que queria sair para minha própria desgraça... Limpava ainda com as mesmas lágrimas a sujeira que eu mesmo fiz. Dormira afogado na dor e no cansaço daquele fim de noite. Do primeiro esforço físico não natural que deixava no trauma do meu tubo digestivo a certeza de que alimentar-me nunca mais seria a mesma coisa depois daquilo... Além da própria dor imediata que ia desde a garganta até o diafragma sem perdoar inclusive uma parte de minha respiração: talvez pelo rápido e arrebatador alargamento do meu esôfago, cumprindo toda a região do meu tórax. E também do segundo, e extremamente arrastado, esforço de trabalho que tive de realizar limpando toda uma parte da minha sala... Com o corpo, mas principalmente os braços, muito cansados ainda do esforço do dia anterior, tendo de navegar por tudo aquilo, sentindo todo o terrível odor, até que a limpeza se fizesse completa... E como ainda estava, o quanto ainda estava, preso à exaustão dos dois últimos dias e da noite anterior muito mal dormida, tinha o direito daquele sono... de onde quer que viera e para onde quer que fosse, naqueles meus dias de extremo cansaço. Estou acordado agora! “Um corredor branco se abre iluminado para os meus olhos muito bem fechados. (São como sempre os sonhos devem ser.) Nele não se pode definir a parede, pois vem apenas luz, mas é um corredor. São pessoas que começam a aparecer ao redor de toda sua extensão, e é por onde eu devo caminhar. Eu vou... Sei que tenho uma informação na mente: algo de premente para o melhor entendimento do que ocorre, mas isso ainda não me ocorre, nem ocorrerá até alcance a outra extremidade do corredor, onde deverá haver uma porta, mas eu ainda não a vejo.... Começo a andar e as pessoas começam a me cumprimentar, felicitar seria mais correto, pela razão a qual tenho na mente, a mesma informação que já tenho. Não sei se conheço as pessoas que me cumprimentam: parecem todas as mesmas e nenhuma em particular que eu deva reconhecer, como os representantes de toda raça humana, e é o que são... Vou caminhando até o fim, e sei que tenho a informação que vou ter. Quando é então que a porta afinal se apresenta: velha, descascada, com uma úmida aparência, azul escuro quase empretecido e clemente por ser aberta. Mas antes como sempre tenho que observar que atrás de mim tudo mais se fora: tanto corredor, quanto as pessoas, e quanto a luz.... Não há mais nada. E a informação que sei e que sabia antes de saber agora que aqui chegara é que tenho câncer, e estou feliz por isso, pois não mais terei de me matar, e por isso as pessoas me felicitavam, e eu sabia.... Porém tudo acabara, pois havia a porta escura e feia à minha frente(também suja). Como sempre nesse mundo, ela se abre sozinha, sem a minha ajuda, mas com minha intenção, pois sabia que tinha de fazê-lo, de algum modo, pois tudo era sempre a minha mente, como sempre é... Dentro, então, pude ver a cena. Do chão visivelmente úmido eu podia ver brilhar os reflexos daquela estranha escuridão. Uma sala de clima abafado, como algo de pesado no ar e na temperatura eternamente comprimindo os presentes. Devia medir uns seis ou sete metros quadrados e não se via em seu redor nenhuma outra entrada ou passagem além da porta aonde me encontrava de pé, a observar.... Mas dentro do ambiente, daquele abominável cenário, o que tinha que importar era a mesa: uma mesa de quatro pernas preto-azulada muito velha, provavelmente do mesmo material da porta. Tinha um metro quadrado de área e a altura era de uns 90 centímetros a partir do chão. Tinha em meus olhos, então, a extrema atenção para aquilo que iria reparar de ver em cima da mesa, no seu centro perfeito, talvez sempre estando lá, mas absorvido pelo cenário o suficiente para somente ser dissociado do tal momento em que todo ele já fosse completamente examinado por mim. Era uma espécie de boneco. O formato se assemelhava ao humano, mas era disforme, sem rosto numa cabeça fora de proporções com o corpo, com membros finos e longos e com uma cor branca encardido semelhante às gorduras dos animais abatidos num matadouro. E o mais estranho, de um material que não conseguia identificar: entre carne ou pele humana e sabão, com um curioso brilho gelatinoso. Assisti com atenção aquela pequena “criatura” se tornar aos poucos a única coisa realmente presente no absurdo cenário. Como que crescendo lentamente num estranho “zoom” do meu poder de visão. E me fazendo absorver também lentamente toda aquela crescente tensão sobre o que deveria acontecer a seguir, após toda aquela observação... E fora quando, surpreendendo minha visão, que só se enquadrava no boneco, surgira a mão. Uma mão comum. Metade do tamanho do boneco, como parecei dever ser de onde eu observava. Pele branca clara, mas não pálida. Dedos não muito longos, nem muito curtos. Unhas bem cuidadas. E gestos aparentemente normais.... Aproximara-se carinhosamente do


que seria o tórax do boneco e com as pontas dos dedos começara a alisar o mesmo local, com aparente extremo afeto... Não vi quem seria... Só sabia que aquele era o meu fetichista: a criatura com aquele fetiche: ter as pequenas coisas às suas mãos: era o que queria controlar.... Acordei tranqüilo naquela manhã, e quase já sabia todas as respostas. Quase já sabia o que queria saber. Quase que conseguia me enganar.... Quase.... Sabia o que era o corredor. E sabia quem era o fetichista. Mas meu maior medo era o boneco, que devia ser eu.... E se não for.... as pessoas do corredor não terão mais do que me felicitar.... ou nada.... nunca! Reflexão do que eu deveria realmente sonhar; nos muitos dias que vieram a se passar após aquele, naqueles em que só consigo lembrar a tentativa de tentar esquecer... Não havia saída e eu sabia, como eu tinha reconhecido as mensagens do meu subconsciente após aquela noite, sabia que muito mais que minha saúde mental e felicidade estariam em jogo se falhassem em me encontrar.... Todo o mal estar das terríveis conturbações pelas quais havia passado me deixaram quase que apático à vida diante das ações que viria a tomar futuramente: como uma proeminente avalanche na neve só a espera de um pequeno e agudo grito de “liberdade” para manter-se em destruir tudo a sua frente.... Só dependia de mim mesmo: trabalhar, viver e reconstruir o que tinha de destruir, e para enfim, talvez, entender minhas próprias ações: passadas (as que iria revisitar) e futuras, as quais ainda estou tendo de enfrentar.... com o rigor de quem enfrenta a realidade que de si mesmo se inventa.... “Primeiro o passado....” Pois é sempre pelo meu coração apaixonado que irei morrer.... na certeza de expulsar do mundo tudo que resta de impuro, que talvez devia ser todo aquele doloroso vômito que saíra de dentro de mim naquela noite: com a verdadeira dor de um parto.... de um monstro. .... É de um começo que se gera. O ser humano devia conhecer sempre a mais profunda e verdadeira solidão: muito mais além que seu próprio eu interior concebido como só em algumas ocasiões; mas a valorização de cada um dos momentos que a amizade lhe provém: os poucos, belos e simples instantes de gloriosa convivência, e que não se tornam nas ambíguas dores da ausência do que não se tem, pois o amor pode estar presente na ausência e ele só deve ser o suficiente para preencher o coração solitário... pois se não, o mesmo coração só é preenchido pela presença, e não pelo amor, e se este sempre está presente, o resto se consome na alegria da memória e no reluzir do reencontro... Na memória que seguia junto com a continuação da mesma vida. Porque é da minha solidão que vejo muito além das imagens: Não mais ninguém para gerar outras angústias, revoltas e alegrias, além das minhas próprias.... mais ninguém. Mas porém com todos os outros presentes de dentro de mim... Ia para o trabalho e observava com atenção a luz do dia, que vinha para dentro de meus olhos na falta da real imagem que iria reviver... O fetichista se trazia por sua magra e branca mão para dentro daquela tão pequena lágrima de quem nunca deveria ter sequer encontrado aquela outra bela face refletida na mesma lágrima: a minha face de um tempo atrás, da qual deveria ter fugido no momento em que encontrara aquela dor... O sentimento era meu, e nunca deveria ter sido a dela a lágrima a ser derramada; deveria ter sido a minha... A lágrima daquela admiração, afeição, o que quer que fosse a sensação que ela tinha e que não podia ter sido por mim, pois naquele momento não era eu quem olhava para Silvana chorar, derramar aquela lágrima, era toda a vaidade da criatura que lá se encontrava para atrelar ao meu presente daquele instante o passado que estava, e estou, tentando lembrar para enfim formar, construir e destruir esse futuro... A partir de uma lágrima... Mas fora muito antes: Não sabendo quando num real tempo, pois que a verdadeiramente minha lágrima tinha descido por este mesmo rosto, que agora contemplava mais um cenário do meu dia-a-dia, o escritório tão bem arrumado por Joana, e de onde, no qual, eu revivia outras imagens somente em minha cabeça... Era o que reacendia o momento: outro período de dor... Quando da primeira vez que Adélia ali entrou: não pretendia ainda saber o que queria sentir por ela, e o que realmente senti; somente lembrava da emoção que praticamente esvaziara o recinto para a sua entrada em meu petrificado coração de tempos: um sentimento que eu queria reconhecer como sendo meu... Podia-se talvez fazê-la ser somente uma sombra do escritor com quem minha afinidade se enfileirava para a atual conversão e interesses, alguns obscuros e assustadores na verdade, mas tão presentes agora quanto na inegável conservação da memória... do que eu deveria temer ao sentir o que sentia no corpo e na alma no momento em que a vi... Numa vontade talvez de me redimir com outros meus últimos atos noa quais se encontravam “a lágrima de Silvana”, e mais anterior a isso... todo amor que ainda sentia por Suzana... Mas ainda sem querer me prender no que viria pela frente, tinha era em Adélia, naquele mesmo momento em que me acomodava na vida real de todos os meus dias (meu escritório), a mesma imagem do referido dia, revendo com detalhes o seu rosto, seu corpo, uma aura emocional que emitia toda luz própria, própria das imagens de um sonho ao amanhecer que encobriu-me ofuscado diante do que realmente era nas mãos do escritor... com certeza a me observar desde aquele instante para o que ele viria a planejar: tudo que ocorrera... e que vai ocorrer. Mas não importando, ainda, diante do fato do que eu conseguia ver naquele rosto dentro da memória: toda uma fértil imaginação desabrochada numa imensa sensação de calor e desejo, algo tão forte quanto o meu manancial de emoção diante da procura da origem, de uma origem para aquele tão real sentimento que revia do mesmo jeito que conseguia


remontar a imagem, mas com muito mais força que então, pois vinha somente de mim mesmo e era muito forte; afetando-me fisicamente, muito além da preocupada dissimulação daquele dia sob os olhos do escritor; encabulando-me, pois mais nada havia de real, somente a sala vazia e eu, que lembrava com incrível ardor de uma velha emoção de todos os dias, mas naquele dia... por Adélia, agora não uma mulher, fragmentando até a imagem do escritor ao seu lado e “dominando-a”, apenas uma imagem em minha mente que me fazia ofegar e transpirar sem maiores preocupações: uma ilusão de minha memória: uma criatura viva dentro de mim... De onde veio primeiro a lágrima, e depois a emoção, tão forte, que se sobressaíra de mim mesmo... viria ainda o meu maior temor a ser lembrado... Mais um dia se passara, pouco vira Joana; ou mesmo, realmente trabalhara. Pensava sob mais um pôr-do-sol, chegando em casa, no real que podia ser a minha mentira de mais uma daquelas recordações: como ainda era capaz da tão fantástica transformação de imaginação... em “realidade”. Minha realidade foram todas aquelas imagens que se construíram em minha massa encefálica, mas devia ser na verdade o dia, o trabalho que mal “vi”, e o pôr-do-sol... Aquele crepúsculo em especial que poderia ter sido o mais espetacular de toda minha vida, mas não era, não o foi, foi mais um... Como este amanhecer que ainda posso ver... Era inútil, já devia poder ver, tinha ainda o que aprender, ou apreender. Chegava em casa logo em seguida... Lembrando... “O primeiro momento era a sentença da continuidade por todos os caminhos, com a porta fechada dentro de um sonho real: os gritos enlouquecidos de quase cem pessoas num ambiente escuro e semi-iluminado pelo espetáculo que era o show daqueles meus amigos: “Gridlock” é uma expressão em inglês que designa uma corruptela extrema da sensação de se estar preso; não realmente encarcerado, mas sem nenhuma saída de onde se encontra, ou melhor, talvez, sempre andando em círculos pelo mesmo tipo de situação (e tortura) a qual o trouxera para tal... Muito afim com minha situação, me perecia, ironicamente: estava de volta naquela situação daquele show, e via novamente tudo que tinha que tinha que ver: os gritos, as imagens, aqueles pedaços de vísceras flutuantes penetrando em meus olhos como se fossem a primeira absorção da natureza da criatura que agora ainda contenho, gerando meus olhos e minha visão, para enfim encontrar a verdadeira emoção do momento... Suspirava em alguns momentos, evitando pensar no que iria pensar, pois sabia qual a reação que já começava a tomar posse do meu coração: de suas batidas intensas e rápidas por causa de toda a violência do momento, misturando a música e o show com o que eu imaginei de tão horrível naquele momento, para a contínua dor retorcida dentro do peito, junto com as velozes batidas, pela razão da próxima imagem, que nem eu mais sabia o quanto doía, ou porque tanto doía... Era quando então estava sendo finalmente, novamente, o boneco nas mãos do fetichista... pois a percepção da imagem dolorosa me acariciava com suas mãos brancas e magras, deixando-me completamente vulnerável, talvez incapaz de rever, pronta para me revelar, para me maltratar com a coisa da qual fugira com tanto empenho por todos esses meses, quase um ano, trazendo-me de volta, preso... Misturando toda paixão que ainda nutria, o amor e a amizade, o desprezo e a ausência, o medo e a inesperança, com muito mais poder que da primeira vez em que tive de conter uma terrível imagem de imaginação por um grito inaudível naquele ambiente para enfim ter de ver, como vejo novamente em minha mente, com as mãos trêmulas e o insistente repicar do meu coração, agora sozinho em minha casa, mas cercado pela presença daquela multidão ilusória... aquele primeiro momento, o que continha toda a mágoa e inveja, todo meu amor por Adrea: o beijo que enfim testemunhava, dela em Marco, longe do que eu queria realmente ter pensado, pois que o fora viria mais tarde a partir do medo, mas era sem dúvida o que mais marcava o começo da história; e doía, como dói até hoje, ao lembrar, não importando o quão diferente é a situação, nas mãos do monstro todo poder que veio e me derrotou na incerteza dessa construção, e do sonho da mesma noite ao me ser apresentado o teu ser... o do monstro na visão.” Podia então ver o que estava escondido num pequeno aspecto do todo: do monstro ao sonho, da visão ao beijo, do começo à origem, recorrendo ao mundo do escritor, desde antes e passando por tudo, e agora revendo sua pergunta: “O que está escondido...” Tomava emprestado de mim mesmo o que o escritor vira na escuridão de minhas palavras para poder retomar a decisão do reencontro. Das dores que teria de reviver a partir de então, desejava não ver mais nada além de mim mesmo, ver a capacidade de fugir para um interior tão obscuro que nem mesmo eu conseguia ver estando de olhos aberto: algo que lembrava a minha morte dia após dia, pois não me deixava esquecer as razões de um talento e de uma arte... A dor tinha que ser sentida com o empenho que se prestava, para poder enfim trazer a razão para tal. Não como tinha tido de viver naqueles últimos tempos: tão duro quanto a própria dor para poder resistir a ela, sem es reais conseqüências medidas de com quem estava sendo duro e cruel para minha própria proteção, e tornando forte tão horrenda criatura quanto a mim mesmo em todos aqueles momentos em que me negava a pensar no passado e me imaginar de bem com o mesmo. Nunca deveria evitar, para não ter de cruzar com o mesmo de uma forma tão agressiva, como estava sendo agora, eternamente preso, ainda... Não podia mais esconder!... Não podia, e tinha um estranho barulho quase ensurdecedor dentro de todo aquele silêncio que era meu solitário lar... Uma batida rápida e cheia de diferentes ritmos, em nos momentos de alienação e agressividade: alguma coisa da poderosa lembrança em minha cabeça, que também doía com as mesmas batidas, junto com as dores que flutuavam entre aquele som e as minhas recordações cheias da imaginação de um triste sonhador que se reencontrava na sua arte, como há muito não fazia, somente com a intenção de ver expulso de dentro de si um monstro que o transformara, para enfim destruí-lo... Eu, já quase, sentindo o “sabor” das dores...


Era o barulho da máquina de escrever dentro de minha cabeça, colocando o tom das minhas imagens, sem ao menos me aperceber que estava sentado à frente dela, estando onde sempre esteve, de onde nunca saiu, mas por muito permaneceu em silêncio: e naquele momento, sem música, sem semi-toques, e quase sem reflexões, quando via a primeira linha e sem sentir já começava a escrever... a história de uma vida em primeira pessoa, para poder libertar outra, a mesma, começando por onde deveria começar: seu fim: sendo a interpretação de sua origem... O barulho prosseguia... “Ver o mundo e gritar na origem de uma imagem de terror. É como porém narrar o meu próprio fim conhecendo vivamente o começo de tudo que virá após... Eram as luzes dos carros...” *(ver página 01) UM FIM... Não podia prever o quão certo estava; mesmo nos mais ínfimos detalhes de minha imaginação, e no que eu deveria fazer... depois. Trabalhando por mais de três horas sem parar me encontrava num estado tal de exaustão (e felicidade... por voltar a escrever... e daquele jeito) que quis simplesmente me arrastar até o quarto e dormir... Estava por completar a décima nona página do meu memorial de intervenções criativas na realidade, mas sentia precisar, além da necessidade contínua de escrever, de um banho e da escuridão calma da minha cama: de relaxar como há muito não relaxava... As imagens ainda me permeavam as ações, mas sentia serem em suas impaciências uma grande força para o meu conforto: como a angústia derrotando a própria angústia com sua face mórbida, e era o que era, como eu sentia tal estranha sensação, ainda repicando as batidas do meu coração no mesmo compasso da máquina de escrever... Tomei banho e finalmente me deitei. O perfume da escuridão e do silêncio me tomava por completo; sentindo em cada instante o calor de minha respiração, que se acalmava cada vez mais, em minhas narinas ainda semi-ofegantes. Meu peito se preenchendo e se esvaziando de ar cada vez mais leve e o meu coração liberando batidas calmas e ritmadas faziam começar a esquecer dos selvagens toques da datilografia na máquina de escrever; trazendo a suave sensação da sonolência naquele início de verão do hemisfério sul, que já era, confortável, quente e doce... Mas ainda não adormecia: fora em um daqueles pensamentos que antecedem o sono que revivi vindo do nada a pronúncia de uma pergunta que o escritor me fizera no dia após aquele evento de confraternização; no dia que fora a data; uma pergunta no meio da conversa, ou quase melhor, no meio do monólogo, a que dizia quase sem pretensão, pelo menos aparente, e que fora seguida por um lamento à minha resposta: Ele perguntou: “Quem mais era que estava com você quando você escrevia?” De repente me via querendo tentar entender a tal pergunta, mas de modo a dar uma resposta que fosse ao ponto inteligente de minha própria compreensão: pois com certeza o escritor parecia compreender... Porém, simplesmente me perdia nas divagações... Meus olhos estavam por um instante abertos, como que a contemplar a ingratidão de minha “ignorância”; podia ver em meio aos vultos e sombras do meu quarto o quanto a escuridão podia ser tão vazia e tão “preenchida” ao mesmo tempo... Fechava novamente os olhos e vi o que não tinha que ver: Não era na verdade o que deveria ser: mais uma sombra no meio das sombras; pois como tinha de comprovar para mim mesmo depois da final constatação.... Não era ainda um sonho, absurdo, como poderia: ainda estava totalmente acordado apesar da sonolência.... Olhava na distância perto da parede logo a minha frente e tentava fixar-me com nitidez com algo que não deveria estar ali, mas estava, e me convencia em constatar tal realidade à medida que o medo surgira para fazer companhia à escura escuridão..... Olhava paralisado por mais tempo que podia e me assustava cada vez mais ao ver que era eu a ser observado....Ainda pensando: “Quem estava com você....” Num eco das palavras do escritor.... Seria aquilo então, que eu sentia me observar na escuridão, em silêncio e imóvel, o que estava o tempo todo comigo a espreita de um mero sinal de fraqueza (e esperança) no interior para poder aparecer e começar a mostrar sua face para o seu criador: integralmente e físico como sempre gostaria de ser.... Real, como eu agora tinha de admitir sê-lo, pois o via em minha frente....? Era, sem dúvida: na forma de um homem real, mas não um homem real; feito dos restos de minhas sombras e se materializando segundo as minhas emoções.... agora expostas: com a mesma dor no olhar e agressividade na expressão mórbida de um observador/predador a espera de uma oportuna tocaia.... Olhava, olhava e olhava: a criatura continuava lá; escuro como a escuridão, imóvel como todo o ambiente, somente uma figura saída da dor; com o contorno da noite, com a minha própria expressão do espanto, sem ainda realmente ter um rosto definido, e francamente indeciso em suas ações: um observador ainda.... mas sem dúvida lá.... a me observar. Olhava, olhava e olhava: continuava lá... E em algum momento eu adormeci. Mas sabia que estava lá! Ouvia pacientemente o som característico do telefone tocando na outra linha, enquanto aguardava que alguém atendesse a minha chamada.... Contava a terceira vez daquele ruído dentro do meu ouvido e me faziam transbordar cada toque na expectativa de que a pessoa viesse de onde fosse dentro daquele mundo de ondas e fibras óticas, completamente oculto na escuridão da tecnologia, para ser um ser humano e falar comigo mais que aquele insignificante significativo barulho. Pois atendendo a me divagar por aqueles instantes me via novamente pensando nos dias que se passaram recentemente, quando a sombra de imagem viera me atormentar com sua obscura presença por angustiantes momentos sempre seguintes a eu escrever.... Pensava nisso com apreensão, pois era a ausência que instigava a fantasia: a minha angústia a qual com tanta satisfação estava aprendendo a enfrentar e ao mesmo tempo a usar como alimento para a arte, também estava trazendo à vida uma coisa que nunca deveria existir além do plano das criações.... Por mais reais que


fossem as minhas imagens, lembranças e descrições do bizarro fantástico mundo de minha mente solitária e triste; provocando, inclusive, todos aqueles horrores e ao mesmo tempo, mais tarde, prazeres; não deveria surgir à minha frente, com tanta insistência em me assustar com sua obscura imobilidade incógnita, toda noite, aquela mórbida figura da escuridão. E por isso não se tornava mais uma ausência que penetrava meu coração com a falta de uma voz amiga e amorosa: uma voz com um nome próprio, de depois a ser mencionado.... Mas sim, o que se tornava na versão do momento de minha ansiedade, uma presença, o era. Atravessava o meio da tarde no escritório naquele momento em que aguardava atenderem aquela ligação: já vinha o quarto toque em meio à toda aquela apreensão, e não muito mais, e sim o bastante para tudo que viria, era o que não podia esperar de uma conversa que tinha que ter.... Ligava para Adélia. Sabia que era pelo momento em que ela costumava chegar do trabalho no Instituto de Criminalística do Estado: seu trabalho nunca me pareceria tão inóspito como qualquer outra pessoa imaginaria, por ela ter de conviver e analisar criminosos e desajustados, como também suas evidências de futuras atitudes para poder traçar os perfis de tais criaturas; mesmo ainda sendo no começo de uma estranha carreira, na qual escolhera tal área do trabalho psiquiátrico, ao invés da psicanálise, com clientes comuns e ricos com problemas não muito sérios se comparar com a psicose de um assassino que mata mulheres, se utiliza de necrofilia e depois as desfigura.... Mas se tratava de Adélia: uma mulher que convivia (afetivamente) com o escritor.... e era mesmo que conviver com o deus que criara o tal assassino de mulheres, pois de fato ele escrevera uma história assim: com esse impulso na sua índole ( o personagem) .... E por isso não me surpreendia sua escolha: estranha Adélia..... Já vinha, então, a quinta vez que o telefone tocava na linha, e eu já considerava a possibilidade de ela ainda não ter chegado, e logo iria desligar; mas ainda não o fiz, num momento de hesitação antes da sexta vez.... E foi finalmente que Adélia veio, e num momento eu estava novamente com ela.... por sua voz. −... Não importa que tenha acontecido. Foi tanto o tempo quanto foi necessário! − Falava Adélia. − Necessário?! Para que?..... Não entendo, Adélia, o porquê desse afastamento.... De uma atitude tão impetuosa para depois toda essa insensibilidade.... − Por respeito, talvez... Tente responder-me como em momento algum você se deteve.... − A verdade no fato, pois do primeiro momento, até quando ela veio até mim, nunca fiz nenhum gesto de contra pressão; onde deveria surgir a imagem do escritor como o amigo a quem devo considerar.... Era muito, porém, para manter, Adélia, aquela fria atitude sobre o assunto; e era como eu sabia que seria, desde o momento em que soube que voltaria a procurá-la para conhecer o que quer que ainda restasse daquela noite.... Nada! Era o que parecia ser: à luz sombria de suas respostas. Sentia como que conversando com uma estranha, sem nenhum interesse verdadeiro: coisa alguma além de uma pessoa desprezando o que eu simplesmente pedia como resposta... −... Mas por que, Adélia?.... Não posso nem saber porque houve tudo aquilo e logo depois mais nada além de suas evasivas.... − Da minha consciência de que o escritor tinha consciência de todos os fatos residia o único fato de favor pelo que eu com tanto empenho questionava, mas a cada revés, a cada palavra solta num mar sem sentido e frio das incógnitas daquela mulher, via que não me restaria muito, por qualquer que fosse a minha utilidade para eles (principalmente o escritor), a conhecer dentro daquela intestina trama de um homem só.... Só mais tarde conheceria um dos fatos, porém, permanecendo fora de todo mistério.... Pois Adélia eu só tinha o adeus, a despedida de um momento, quase totalmente sem sentido, mais uma história do passado que ficava para trás.... −... Então, adeus, Adélia... Só espero tudo isso não ter sido em vão.... E que a razão seja uma boa razão.... Sendo sua ou não.... (Numa clara alusão à influência do escritor sobre ela.) − E ela: − Adeus! − Desligamos. Resistindo em mim somente a sensação que tinha aprendido muito pouco, saindo um pouco de mim mesmo e do meu mundo, sobre um mundo muito distante, o mundo do escritor.... Apenas refletia um instante, com calor, a respeito daqueles momentos dentro da lembrança de Adélia, e de como o palco se ajustava para ser apenas a minha atuação, sem os percalços das deles, dando mais um motivo para a solidão, para a imaginação e para mim mesmo: um verdadeiro eu. Ainda naquela mesma semana outro personagem veio de novo surgir depois de muito tempo fora para intervir em nome do escritor, seu cliente: o amigo incontestável e realmente fora de nós dois apesar da ligação.... Valter, o advogado, vinha representar seu mais antigo cliente e amigo em minha presença... O escritor havia viajado e o deixara incumbido de fazer os resgates mensais de investimentos e resolver outros quaisquer problemas, mas que na verdade não haviam. Houve a suave amenidade de extratos e cheques trazidos por Joana, mediante dos sorrisos de pessoas que não se devem nada além da simpatia de suas presenças: não lhe ocorreria, a Valter, o quão importante era por ser justamente o ser imparcial da história..... Atravessados alguns minutos daquela manhã, e já praticamente concluídos os trabalhos que geraram a visita, sentia o olhar do amigo/advogado guardando alguma séria preocupação.... Joana saíra discretamente após entregar devidamente relacionados e justificados os relatórios de investimentos; antes de fechar a porta me fizera um característico sinal que significava que estaria à disposição para qualquer necessidade que houvesse dali em diante.... Ficamos sós. Devia notar ele, um certo abatimento que gradativamente me sobrevinha à medida dos meus dias, como até agora.... Já eram possíveis de se notar os incontáveis cabelos brancos que começavam a se sobressair entre os meus


normais de cor castanha.... Indistintos agora por quase que pelo contrário.... Mas além disso uma aparência que eu sabia ser cada vez mais pálida, apática e assustada.... De modo algum podia me referir à criatura que me visitava regularmente a cada noite em que sentava e escrevia: de apelos por minha sanidade, bastavam os meus próprios.... Mas tinha de fato que me referir a alguma coisa tão fortemente dentro de mim, que começava a ser notado, tão amigavelmente, por alguém de fora, e de certa forma tão distante, pois pouco o via... Era verdade sua preocupação. − Por que você está abatido?... Parece tenso... − De um sorriso nervoso que só ele poderia notar: como alguém que há muito não via, e nitidamente naquele momento tinha vontade de ver, por ser tão vulnerável a minha poderosa apreensão.... Pensava no mundo, no geral, então, para lhe ser claro sobre mim mesmo: não sabia se ele poderia ajudar... ou não. ... Sentados como em muitos comuns momentos de nossas vidas: do advogado e do “conselheiro de finanças”... Mas somente dois homens, quando de nós veio o mundo. − Como entender a complexidade do mundo quando não mais conseguimos ver a beleza de nós mesmo e só vemos a beleza a partir de outros... Quem contém a razão, afinal; se a única beleza que vejo esta no meu amor e na minha arte, que me destroem ao mesmo tempo que eu as alimento... Feliz é aquele, por não pensar, que foge e não vê; não vê que foge e só enxerga o que vê.... Ansiaria então não pensar, mas isso também significaria deixar de amar e também deixar de criar a minha arte... e disso, por conseqüência, eu também não existiria, nada haveria, nem arte, nem amor... Anseio então o sacrifício de ser como sou. − Vejo que um problema muito comum te alcançou desde o momento em que você decidiu seguir o mesmo caminho do escritor. Vejo seu transtorno por tudo isso que está tendo de passar: seja o que for de muito diferente de mim, ou mesmo do escritor, é algo de comum... Ele também passou; mas não se engane nunca: o escritor é muito forte: sobrepôs tudo isso e hoje é como é... Se posso lhe dar um conselho de justiça: Não vá além de si mesmo, pois poderá atingir outros, e ai, a responsabilidade não estará somente em suas mãos... Os homens e as leis terão de intervir! − Observava e absorvia o que o advogado dizia com o estranho reconhecimento de minha realidade: Não conseguia deixar de imaginar que o que eu tinha criado além de mim era a criatura, e que eventualmente esse monstro sairia do meu controle, e os homens e as leis teriam de intervir... − Mas o que são os homens e as leis, Valter?... Não sei se consigo acompanhá-lo com a exata perfeição do que fala, apesar de entender tudo que diz... − Ambos respiramos um pouco em silêncio: via-me novamente em transtorno e expectativa dentro daquele escritório, e como das outras vezes tinha de conter mais um pequeno passo para o dia de hoje nas mãos de mais um personagem que agora aqui se dirige a mim, novamente.... E do olhar cansado me via outra vez transformado numa criança (excitada e com medo) aprendendo sobre o mundo e sobre si mesma. Ele disse: − Das leis se vêem no horizonte a tentativa da ordem em mundo gerado do caos. O homem tenta de todas as maneiras sobrepor a sua natureza de destruidor para dominar a si mesmo... E dos homens deveria se ver o sacrifício em nome das suas próprias leis: o sacrificado não é somente o mártir da conquista de uma ordem universal; é também aquele que se despoja da própria felicidade em nome da de todos os outros sobreviventes de um mundo tão cruel quanto o próprio homem, mas capaz de guardar uma beleza tão inigualável quanto a do próprio ser... São dos homens e das leis, meu amigo; é do que se trata o sacrifício pela ordem.... Mas isso é apenas uma opinião filosófica de um mero advogado... − (Eu sorri reconfortado.) Você é brilhante, Valter. − Era o homem e a lei, na forma do simples amigo. Quando mais teria uma palavra como aquelas de tanto sentido?... E na oportunidade realmente seriam, pois me davam quase um nome, um termo, a que chamar a minha inextinguível dor: sacrifício... O advogado se fora, mas eu ainda o veria além, porém o que dizia que seria uma tão importante participação se fora agora, em tempos atrás, de uma menção de memória após outra... Eventualmente voltava a escrever. Em mais um dia. Mais um... Estava em um momento da trama em que tinha encarado aquela forte dor, e decidira deixar tudo para trás: revivendo tudo... a cada palavra: (Era noite!)... “Deus do céu! Como pude deixar acontecer... Tinha...” Parara em silêncio, então; ainda sufocado por tudo aquilo que passara... outra vez. E com mais força, pois era só meu.... A dor era tanta que eu sentia esmagarem-se os restos do meu coração; imaginando trocar toda uma vida de insustentável tristeza e agonia por um único momento de amor eterno... Podia ver, via e revia, sentia em todos os poros a textura de uma pele que nunca mais encontrara, e sonhava com um leve toque nos lábios que nunca houve, que de uma lisura fria e leve se transformaria no encontro de minha alma com as batidas de um coração há muito perdidos nas lembranças e em minha imaginação... Quase já não era mais uma pessoa real de tão forte que era sua imagem em minha mente, refazendo naqueles episódios a dor de um dia, que se transformaram em todos os dias, e que persistiu por todos os momentos de glória e desprezo deste que se desfaz em palavras... A dor reconhecida e vivida do homem que se debruça sobre sua arte ( a máquina de escrever e sua obra) e sente o calor das lágrimas escorrerem como o sangue


daquele que morre sozinho na chuva sem ter ninguém que o assista: solitário, enlouquecido e imobilizado por tal imensa tristeza e tal dolorosa paixão (Suzy...)... E dói tanto na lembrança quanto agora; mas mais ainda se fora na noite adormecida ao redor de meu leito insone... Dormi ali, debruçado na máquina, tendo como última sensação antes do sono o salgado das minhas lágrimas e a imagem de Suzana a me beijar, já quase tudo em um sonho só. A madrugada rasgava minha alma com a escuridão do meu sono, e a sombra já devia estar lá a minha espera... A luz estava acesa... “Era uma mulher linda. Perfeita como deve ser na linguagem de um sonho. Vinha para me revelar em lembranças o que eu tinha de tão especial por querê-la tanto: não porque a amava tanto (para isso não existe explicação), mas para me mostrar sua doce imagem emergia de toda a dor de antes do sono: a minha melhor parte de bom... Suzana estudava medicina e eu a amava, mas não era só isso. Era a melhor amiga que tive e talvez nunca tenha merecido ter. Via em sua vida tudo que existe na vida de uma pessoa comum e também uma certa fragilidade: não poderia protegê-la por mais que quisesse.... Não havia razão para tanto em nenhum momento ela observaria, pois em cada encontro, em cada momento, em cada conversa, só se fazia existir a confiança... mas se subestimava, e o que eu sentia e sinto, a amo. A paixão pode ter surgido em qualquer momento entre minha admiração por sua beleza e por seu caráter, e um abraço forte e carinhoso que me dera no pátio de entrada de um dos prédios onde ela estudava na universidade de medicina, numa das despedidas de nossos ocasionais encontros... Não sou capaz de acertar sobre este ou aquele sentimento que só sei que existe... Conversávamos a respeito de tudo que a medida do tempo ia permitindo: via algumas vezes transtorno em seus olhos, mas de seus lábios sempre me chegavam a alegria, que ela também parecia ter ao estar comigo.... E de outras imagens presentes desde antes até aquele momento: seus problemas com um certo namorado de muito tempo, suas dores escondidas em faces do que eu tentava representar para ela, mas nunca conseguia além do poder um bom amigo.... Até o instante em que sua relação com Marco começara e uma dor muito maior me sobreveio, e não pude resistir, agüentando o máximo que pude, e me reconhecendo afinal como o que sou, e talvez ela nunca me perdoe pelo que faço comigo mesmo.... Ou talvez não ligue; o que sinceramente duvido ao ver seu rosto novamente a me olhar, como de modo de antigamente: antes dos problemas, antes dos monstros; mostrando para mim o quão bom foram aquelas lembranças de uma mulher que muito amava a todos, mas que era humana.... E um mistério como todos nós somos, e que não controlam o que sentem, e por isso geram “demônios” dentro de si, cometendo erros, se desculpando, se destruindo, e eventualmente aprendendo.... Certa vez disse que gostava muito dela. Certa vez ela disse que me ligaria e não ligou.... Que importância pode ter se o meu amor por “você” é tão grande que vive junto das dolorosas batidas do meu coração.... Sua imagem começava a se afastar na escuridão. Queria me sentir grato pela visita, mas queria mais, de mais que uma forte ausência que pressionava minha alma há tanto tempo.... Ouvia então meus pensamentos junto com as batidas do coração, e com o seu distanciamento, dizendo: Suzana.... Suzana...” − Suzana... − Eu ouvi. E parecia minha voz, mas não o era. Mesmo dentro do sonho minha voz parecia a minha, e aquela que acabara de ouvir ao acordar não era a minha de modo algum.... Tinha um tom grave e interior; muito diferente de minha rouca, fraca e arrastada voz, quase sempre carregando anteriormente um pigarro de hesitação: algo com a necessidade de representar com cuidado o que tinha de falar antes de fazê-lo... Definitivamente não era a minha voz que eu ouvira dizer “Suzana”, de repente me acordando do meu sono, de um sonho onde eu pronunciava justamente o mesmo nome: na forma dos sonhos, somente ouvido dentro das nuances do inconsciente, e não capaz de me acordar no meio da madrugada.... Ou era por tão triste que se tornara?... Senti meus olhos se abrirem com/espanto ao ouvir nitidamente a voz que me acordara: parecia um daqueles pedaços de sonhos que estão do lado de fora do subconsciente; como o som de despertador no mesmo instante em que se está no meio de um engarrafamento e todos os carros começam a buzinar de repente, e assim se acorda... Porém mesmo após abrir meus olhos era a escuridão quem dominava o ambiente. Por alguns instantes duvidei ter realmente acordado, e logo também duvidava estar de olhos abertos: a razão pois disso era que tinha na memória duas coisas muito importantes: a primeira era que eu sabia que o que eu estava tendo era um sonho, e por isso eu poderia muito bem continuar no mesmo, só que agora, a partir daquele momento em que Suzana sumira no sonho e eu chamara por ela, eu não tinha mais consciência de que era um sonho ( mas logo achei isso muito pouco possível, mediante ao meu breve raciocínio sobre o assunto, achando ainda estar dormindo); a segunda coisa era que eu adormecera enquanto escrevia, e tinha deixado a luz acesa, mediante da minha imobilidade, cansaço e tristeza antes (e durante) de me debruçar e dormir... Então o porquê da escuridão?... Imediatamente após duvidar de meu despertar notei que realmente estava acordado: meu peso e a minha posição sobre a máquina estavam me causando um leve, mas persistente, incômodo nos braços, antebraços e ombros. E talvez tivesse sido isso que me fez acordar, mas não era ainda forte o bastante para tanto: não devia ter dormido mais que duas horas; uma sensação muito mais forte se formaria mais tarde, se eu continuasse a ali/dormir... E também havia outra razão para eu não acreditar que o que me acordara fora aquela pequena dor: a voz tinha sido a razão, e tomava consciência da certeza de essa ser a razão, cada vez mais que naqueles rápidos segundos eu ia eliminando as outras razões, e mais que tudo, continuava na escuridão.... Alguém ou alguma coisa havia apagado a luz. E esse mesmo alguém ou alguma coisa tinha entrado no meu sonho para dizer o nome “Suzana” me trazendo de volta dele, estando do lado de fora, naquela minha sala, me esperando voltar (acordar), dizendo o mesmo nome “Suzana”, em naquela terrível voz...


− Fraco! − A voz grave e interior novamente falou, e desta vez eu estava completamente acordado... Levantei a cabeça num sobressalto me colocando ereto na cadeira... E foi então que vi: de pé à minha frente, do outro lado da mesa, grande, monstruoso e truculento, numa imóvel pose ameaçadora; o que a sombra insegura dos outros dias se tornara: a criatura feita de horror e com expressão negra do seu propósito, agora totalmente agressor... Encarei com o imenso pavor de quem vê o próprio destino aquela coisa gigantesca olhando para mim: quase me atravessando com sua visão; podia distinguir a expressão horrenda e escura por dentro da própria escuridão de seu rosto, como nunca poderia ser em se tratando de uma sombra; mas permanecia ali, e eu podia ver esse rosto... E ele disse “fraco” com aquela voz... Temi em me ver pensar que aquilo não podia ser, mas estava ali, pronto a atacar; e sem dúvida guardava muita revolta... E nesse aterrorizante segundo a criatura se precipitou sobre mim, fazendo me cair para trás ainda na cadeira, onde estava paralisado de pavor, e finalmente apagar.... Na manhã que viera acordara com a terrível dor que latejava minha cabeça e minhas costas.... Estava no chão, ainda temendo me lembrar o que havia acontecido, com a cabeça apoiada no chão duro de madeira e as costas repartidas entre o mesmo chão e o metal, também duro, das costas da cadeira. Não me sentia com nenhuma contusão além do desconforto da madrugada. Eram dez e vinte da manhã: sem dúvida já estava bastante atrasado para o trabalho, mas essa não era minha maior preocupação... Ainda via nitidamente aquele monstro escuro e selvagem voar em minha direção por sobre a mesa me fazendo desabar de costas... A luz do dia parecia me aliviar por instantes do pavor e do susto da madrugada que passara, mas essa luz também não trazia o remédio integral para o meu crescente horror... Levantei-me do chão com extrema dificuldade, pelas terríveis dores na nuca e na coluna. Olhei novamente com mais firmeza para o relógio de parede confirmando o adiantado da hora. Procurava em mim algum sinal do ataque, como num ato instintivo de procura também de um pedaço de minha sanidade que parecia ter perdido; mas nada encontrei. As dores permaneciam enquanto eu cambaleava. Levantei a cadeira que estava caída, e ao colocá-la no lugar dei uma olhada na máquina de escrever: estava no mesmo lugar: também não parecia ter sido movida.... A última coisa escrita era: “O meu”... E então voltei minha cabeça (e olhos) para cima, vagarosamente, em atenção à terrível dor, e pude ver o que já havia observado antes, indiretamente, sobre a máquina e sobre mim, e sobre tudo, o que se tornaria um maior terror: o da dúvida... Senti em minha expressão A luz estava acesa.

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Estava determinado a continuar... Se era escrever o porto onde eu atracava minha imaginação com a crua realidade, para enfim ter alguma segurança nos caminhos que a vida estava tomando, então tinha de continuar aquele tão bizarramente estranho personagem o qual se tornava a mim mesmo a cada palavra, e a cada instante, em que eu consumava a busca pela minha “origem”... E se isso realmente trouxe à vida o demônio que agora tenho de enfrentar e destruir, então preciso ver todo o contexto como base de uma coisa só, que são as conseqüências de minhas ações... Por isso retornei o mais fundo que pude para me ver num dia em que um promissor e ajustado ser humano se tornava algo de assustador para si mesmo... Partindo de um crescente desprezo pelas relações familiares, as quais sempre se mostraram turbulentas, com o resguardo de todas as desgraças por um longo tempo deter, acompanhando a tortura dos pais um/dia após o outro de um casamento que por muito tempo esteve em seu fim; mas que na verdade nunca o chegou: passados presentes muitos episódios de desagradável ascensão de um forte desamor, corrompido este seu tão glorioso antagônico com todas as nuances das pessoas sempre a querer algo que não têm e que não sabem o que é... Explicou-me então tantos momentos de surpresa e desgosto ao vê-los suturar a infelicidade com momentos juntos que logo geravam momentos separados; assim como também esclareceu-me tal agressividade em tais momentos de minha imaginação.... São os momentos estranhos e conturbados da construção de um personalidade que cedo ou tarde se tornaria a minha: dúbia em muitos momentos: cheio de paixão pela vida; e no instante seguinte imaginando sangrar a todos em volta com seus sentimentos de revolta e dor... E ao nunca superar a perda de um lar desfeito e infeliz, permeado das mentiras dos lábios de todos que crêem que o que está na mente é apenas imaginação; mas não é, e eu sou aquele que sabe disso melhor do que ninguém.... Pois não mais além que muitas situações cheias das minúcias que compõem a nosso psiquê: desconsideração por outros parentes , inclusive os que deveriam ser os mais próximos; desprezo pela amizade de amigos que sempre nos amam sem condições; fuga do amor desprezado como sendo a última coisa da vida; e ignorando tudo que há de sobre-humano em alguém que suporta uma carga afetiva tão grande dentro de si, mas sem ninguém para absorvê-la além da criatura que se aproveita de sua fraqueza, e toma para si o seu corpo, e o faz agir como não é, até descobrir que pode expulsá-lo, combatê-lo e destruí-lo... E mesmo no fim valendo a pena não deixar tal criatura vencer... Pois é sempre ela: o monstro de minha criação, e demônio de todas as noites, a criatura das sombras... quem estava sempre lá. Disputando comigo entre medo e agressão, quem suportaria por mais tempo a própria visão de mim mesmo...agora.... Porque era de antes que ainda se tratava enquanto eu continuava a escrever, trazendo de todo o passado


a origem de todo presente (futuro, etc.)... Sempre no mesmo local, à noite, temendo a sua aparição, atravessando dias de transtorno e vontade, trabalhando sem muito empenho, mas me achando no meio de todo aquele mar de emoção: Descobria que todo aquele tempo tentando tão avidamente me defender só fez contribuir para a fortificação da criatura, que agora só faz colher os frutos de toda essa acumulação de força, se expondo e fazendo eu ter que me destruir para poder também extingui-lo de sua tão ardorosa causa de agressividade e desprezo pela vida... Ao se tornar tão determinada dentro de mim, fora de mim (eu mesmo) pode significar toda uma triste devastação... E o meu maior medo era começar a gostar disso... Pois via que expor tão abertamente meus sentimentos para mim mesmo causava uma maior violência na presença da criatura: ela também sabia que a minha única forma de enfrentá-la era enfrentando a mim mesmo em minhas pessoais torturas de uma vida que a construiu... Porém momentos me desencorajavam por tanto me machucar de dentro para fora e de fora para dentro ao recordar, e muitas vezes caminhava para trás, mas na maioria das vezes eu estava indo em frente com a história, e mais também sofria, e em muitos momentos não conseguia mais acordar do pesadelo que era me enfrentar... noite após noite. Aquele maldito demônio queria ser eu! E queria ser um anjo; ou simplesmente normal... Certo dia, então, em mais uma noite, o vento soprou janela a dentro enquanto eu parado em frente da máquina de escrever sentia os efeitos de uma prazerosa saudade... Concluíra de escrever algo de não muito referente a quem eu começava a lembrar, naquele momento até sua distância no momento em que se encontrava a história causava a sensação: a saudade com alento no coração do vento frio da madrugada que balançava suavemente a luz da sala, causando leves distorções em minha visão já embaçada pela procura da memória na parte branca do papel em minha frente; não que logo eu fosse escrever sobre isso, mas que me sentia como adormecer no rondar do amanhecer para num suave sonho acordado sentir, realmente, o quanto tempo já fazia que vira Suzana pela última vez: me surpreendia ao perceber que ainda conseguia construir seu rosto com tanta perfeição em minha mente... Com uma leve dor ainda no coração, pela distância que eu mesmo causei, de tantos sentimentos obscuros escondidos da luz como a sombra da criatura: só sempre esperando o momento de trazer de volta toda a sua face... No caso daquela saudade sob o desfocar de minha visão e sob a brisa suave da noite trazendo pela janela o cheiro da paz de um novo dia a ser vivido, a face era uma saudosa felicidade que nunca realmente houve, mas que sempre pareceu estar lá, em minha imaginação... Porém no caso da criatura era somente a expectativa de sua nova aparição vinda do breu noturno, fortificando-se de minha fraqueza, e sempre tornando mais poderosa a sua presença: a face do horror... Triste, mas ainda assim, pensava em Suzana... E continuava no limite do meu desejo de reencontrá-la, no limite do sonho que vinha do passado, o que fazia se mover na escuridão o ser que mais temia; de tudo além que imaginei para mim (para você)... Sentia no torpe desfocar, entre a saudade, a dor e a imaginação; o forte calor da escuridão se apresentar à minha frente... − Sempre ela... − Era a voz grave novamente, menos interior do que antes, fazendo tudo mais se escurecer e desaparecer sem mais nenhuma lembrança das imagens (ou da saudade), ficando apenas o medo... Voltava minha cabeça para o lado direito da escuridão, onde deveria haver a estante de minha sala e uma parcela da parede que ia até a porta... Sabia que tinha de me virar para lá... Não havia mais o que deveria; como eu já sabia. Podia sentir o hálito quente vindo de uma parte mais profunda da escuridão, aquela parte a qual geralmente se recorta para nela se transformar: uma mancha negra em forma grotescamente humana, mas nunca humana... Vira então a expressão do real demônio em que a sombra se tornara: Emergindo da mais profunda escuridão em volta de todo ambiente, como nunca deveria ser em se tratando de um apartamento com janelas abertas, existindo lá fora a luz da rua e do luar, e sendo uma sala de paredes brancas; como não mais pareciam ser, pois havia somente a escuridão e seu personagem principal além de mim... Vi o que poderia chamar de seus olhos me fitarem com a mais clara e delineada expressão de ódio e maldade: era como uma velha e esquecida expressão de mim mesmo, mas que com o tempo e todas as fugas possíveis daquele tipo de natureza agressiva e vil, se tornara a face de uma criatura do meu profundo interior... E agora, naquele momento de gelada tensão, em que eu sentia meu coração repicar de medo, cm toda a adrenalina que meu corpo podia produzir saltando velozmente por todos os vasos e veias do meu nervoso sistema circulatório, eu via que meu profundo interior estava no exterior e pronto a me atacar com extrema violência e visceralidade... para fazer-me temer o que ela, a criatura, mais quer ser: eu... − FRACO... − Eu ouvia novamente pela voz grave. Completamente irada e cheia de poder; querendo sobreviver... Sentia que precisaria me proteger, mas naquele instante em que olhava para aqueles olhos no meio da escuridão, tão cheio de medo, e certeza, no meu coração; sabia que não tinha escolha se não enfrentar o monstro o máximo que pudesse... até que amanhecesse... A última coisa que senti em seguida foi o súbito ataque da criatura, arrebatando-me de minha consciência logo em seguida. A última coisa que pensei: − “Não quero morrer!” Nunca imaginaria que sentar fosse se tornar tal dolorosa experiência numa vida tão plena de paz no seu exterior.... Nunca briguei durante minha vida toda; meus pais nunca me bateram; e eu nunca tinha levado nenhuma queda tão séria a ponto de sentir tanta dor em tantas partes do corpo. Porém via ter muito mais resistência para as terríveis dores do meu exterior naquela manhã, do que para as outras mais terríveis dores do meu coração.... Era esta a


real dor que me incomodava na mesma citada manhã: onde a luz da janela do escritório penetrava iluminando minha sala de trabalho podia sentir a segurança que ela trazia, como nunca imaginaria sentir por uma simples fonte de luz: realmente aprendi a amar a luz do sol naquela manhã. Pois passara a temer a escuridão... Mas ainda assim via meus pensamentos tomarem outro curso.... Lembrava do estado em que se encontrava a minha sala, em casa, quando acordei encolhido num canto ao lado do sofá completamente triturado por tanta dor: não sei se o que me acordara foram os primeiros raios de sol que queimaram meu rosto logo no começo da manhã, ou se foram as dolorosas conseqüências das minhas escoriações: mas sem dúvida me sentia grato por estar vendo novamente a luz do sol, por poder novamente abrir os olhos, por ainda estar vivo, com a certeza de que ouviram meu último pensamento lá em algum lugar muito distante do terror humano na terra, e por isso me salvando da fúria do terrível monstro que eu habitara em minha casa, em minha vida... E cada leve movimento meu fazia novamente recordar tudo isso e muito mais que eu ainda desconhecia a respeito da criatura: já que a ferida ia muito mais além que a dor: não se via: ninguém via.... Porém o caminho do pensamento que vinha era outro; era o caminho que vinha anterior ao terror do sol e o qual, cada vez mais, eu tinha a coragem de explorar entre as lembranças; o caminho daquela doce saudade que surgira na noite anterior, e a qual irritara tanto a criatura, já que a fizera se transformar diante de um simples pensamento, implícito no papel, mas sempre presente na história.... e agora novamente, na presença da luz do dia, e sem o medo da criatura da escuridão, apenas uma saudade... Queria muito rever Suzana! Era de todas as pessoas a quem queria esquecer antes de tudo começar o ícone de coisas, situações e sentimento tão conflitantes quanto a minha própria existência tão confusa; e que não conseguia de modo algum esquecer: acho que porque sua maior referência dentro de mim era o amor; e se eventualmente eu esquecia dela, no mesmo instante me recordava do amor em si, e logo por isso sua imagem rapidamente retornava.... Tendo esta feito a maior ausência no curto período em que estivera com Adélia, logo se fazendo apenas o ardil em que se tornou... E retornando ao ponto.... Sabia que muito mais devia a todas aquelas outras pessoas que desconsiderei, mas que considero em minha memória. Sabia que teria de enfrentar uma grande e confusa vazão de estranhas situações.... Mas para quem tanto tinha apanhado de um monstro da escuridão, se tornavam simples tais proposições de confronto exterior: seriam normais.... Meu melhor amigo desde a faculdade, Beto. Romero, de quem só me fazia recordar a sua alegria, e que tinha cruelmente colocado numa tão visceral situação em minha imaginação (provavelmente sob a influência da criatura) . E dentre outros, também Marco, de quem cuja memória e sentimentos conflitantes me fazia querer saber com imensa curiosidade e apreensão o que acontecera: sem realmente conseguir prever a minha reação a tudo de possível.... Porém quem eu muito desejava ver era Suzana. E somente por isso, que era esse forte anseio do meu coração, é que naquele dia eu conseguia resistir a dor. Joana sempre iria estar presente naqueles dias antes do seu infortúnio anunciado para me auxiliar e ao mesmo tempo conseguir prever diante de minhas dores que alguma coisa de premente obscuridade em minha vida estava por ainda acontecer. Seu envolvimento não podia passar deste ponto, além de notar em algo da minha expressão que devia conter medo e esperança ao mesmo tempo: como de uma forma impossível de acontecer; de alguém que passa por um árduo caminho sem saber realmente o que vai alcançar.... Dos olhos dela eu só podia perceber meio perdido em mim mesmo o quanto estavam consternados por tudo, sem saber o quê.... Naquele dia antes de receber qualquer visita ou realizar qualquer trabalho pedira que telefonasse para um número, o qual eu me surpreendia por lembrar tão bem em minha cabeça, mesmo sem nunca mais tê-lo utilizado: vibravam neles, os sete algarismos, as lembranças de muitos e muitos telefonemas, de muitas palavras, e tanto sentimento quanto eu podia guardar em meu coração... Era o telefone de Suzana. (Fraco.... Eu podia me lembrar...) −.... Você liga, e se ainda for o telefone da residência dessa pessoa você deixa um recado meu.... Ela provavelmente não estará em casa nesse horário.... − Pelos meus cálculos sabia que ela ainda estava na faculdade de medicina, e sua carga horária sempre foi vasta e cheia, principalmente em dias de semana, por isso já imaginava só poder encontrá-la em casa à noite.... Assim como era antigamente, quando regularmente conversávamos. − Tudo bem... Não esquece que o escritor e seu advogado vem aqui hoje. No primeiro horário depois do almoço. − A idéia de ver o escritor ainda conturbava minha mente, mas outras preocupações começam a me tomar com mais empenho: muito antes de sua vislumbrada presença.... Mas ainda temia sua reação ao meu estado, pois ainda sentia, como muitas constatei, que o escritor me via como um teste, seu espécime sendo trabalhado em sua imaginação.... Minha face não deve ter demonstrado isso.... − A documentação dele está em dia? − Perguntei. − Claro! − Joana responde com um sorriso.... É claro que estaria. Ela segue em sua função. Pensava comigo mesmo a respeito de toda aquela compaixão: talvez fosse Joana um anjo... Mas sei que não acontece com anjos o que acontece com ela, e agora me lamento de novo.... A tarde veio, e o escritor chegou.... Almocei no meu próprio escritório, sem me levantar em nenhum momento pela causa das dores que ainda sentia, fazendo o pedido da comida de lá: algo que não faço a mínima intenção de lembrar o que foi: comida.... Joana havia realizado meu pedido. E em mim tinha a esperança de ainda naquela noite


conseguir falar com Suzy; depois de tanto tempo, de uma tão dolorosa ausência, que ultrapassava as dores e o medo (Fraco....), mas que tinha como o meu principal sentido naquele dia.... Cortando meu coração e minhas entranhas com a forte expectativa... Porém outras coisas ainda existiam: Valter e o escritor estavam novamente a minha frente, como em outras ocasiões, mas numa nova, completamente diferente, então... (Cada momento é novo, pois nunca o vivi....) − Você está realmente abatido.... (o escritor) Valter mencionou quando voltei de viagem que você estava com uma aparência cansada da última vez que aqui esteve.... Mas o que eu vejo é muito mais que isso, caro amigo... O tom das palavras do escritor eram preocupadas, mas também beirando uma sonora ironia que trazia para o centro de nós três o conhecimento do quanto queria se saber a respeito do meu real estado.... Da causa do aparente tamanho dano, que provocava tanta curiosidade no homem... Valter era quem agora falava: − É verdade.... A expressão que noto em você é de dor.... Dor física. Uma certa apreensão talvez, e medo também.... − (Dei um arrastado sorriso).... Mas medo de quê?.... − Não sei... Diga você! − Você está machucado? − Perguntou o escritor colocando as pontas dos dedos da mão direita sobre a mesa, como num sinal de súbito interesse... Pensei um pouco antes de responder: sabia/sentia, que a cada movimento meu minhas feições se alteravam pela dor.... Não podia simplesmente lhes negar a face óbvia do momento.... −.... Na verdade, um pouco.... Eu sofri um.... (sem dúvida hesitei muito à irônica expressão de mim mesmo).... pequeno acidente doméstico. Os dois, então, de repente se voltaram um para o outro consternados.... Algo como que tendo antecipado a própria reação à minha resposta, também antecipando-a .... − Nosso lar Uma arma carregada! − Disse Valter. Fez-me um tanto atento tal expressão pelo que representava o seu conteúdo para mim naquele momento: “.... arma....casa....”(Pensei!) − Unfh.... - Relaxou o escritor sobre a cadeira... Imagino se qualquer outra coisa lhe passava pela cabeça sobre o meu estado, além do que eu afirmara: sempre parecia haver em seus olhos de observador uma eterna dúvida a respeito das respostas que o mundo dava sobre si mesmo.... Não se encontravam em exceção minha dor e minha aparência, creio eu; pois como sempre nunca nada falou.... Joana entrara logo em seguida a uma pequena pausa de silêncio. Estava com todos os documentos em mãos... − E os negócios?... − Perguntou Valter, abrindo o intervalo para o trabalho... Mais tarde o escritor, meio entediado, pedira um copo d’água. E o tempo passou... Joana lhe trouxera a água que pediu. Sentia em seu silêncio durante o tratar de seus negócios entre mim e seu advogado a persistente observação do seu mais significativo ser: o onisciente, que trata de compreender e trazer em si as razões de um visível sacrifício: o meu.... Eu e Valter logo terminamos, antes da final aparição de Joana trazendo os documentos que sempre pareciam ser assinados pelos diretores da empresa: diluir a responsabilidade pelo dinheiro dos outros era o melhor meio de demonstrar segurança e ao mesmo tempo preocupação com a situação financeira de cada cliente. Depois que ela fora com Valter perguntou: − Você devia se preocupar mais com sua segurança.... Incidentes como esse que você teve podem levar a grandes perdas.... às vezes irreparáveis. − O escritor virara lentamente com atenção ao que o advogado dizia já fechando sua pasta e atravessando o olhar de assistência por minha situação em todo ambiente... Também via que talvez precisasse de algum tipo de proteção, mas não, provavelmente a que Valter sugeria, pois sabia eu ser algo totalmente fora do comum... e eles não! O escritor falou: − Você não está sugerindo que ele faça um testamento e um seguro como um dia você me sugeriu?! − Eu intervir surpreso e curioso.... − Você fez um testamento?.... Nessa idade?! − Não! (Ele falou olhando Valter em clara desaprovação de um à atitude do outro)... Eu não aceitei a sugestão... − Mas fez o seguro, pelo menos! − Acrescentou Valter se voltando para mim. − Bom!... Não custava tanto. E de qualquer jeito... só tenho Adélia a quem cobrir.... Por enquanto. (deu uma rápida olhada para mim) − A menção do nome dela me fazia alterar um pouco de expressão sob os olhos do escritor, pois ainda me continha do mistério daqueles dois, mas o outro assuntou permaneceu..... − Meu testamento é o meu trabalho, Valter... E você sabe disso... (Voltava-se para mim) Acredite: é o que realmente importa: deixar um legado de sua experiência e talento nesse mundo de tanta miséria e interesse... Se você sofreu um acidente, faça disso mais uma razão para continuar até o fim, e deixar para o mundo o que você escreveu... Seu pequeno pedaço de coração arrancado com tanta força e violência pela exigência da arte: ela é o seu testamento!


− E quanto ao seguro de vida? − Penetrou o advogado com a incisão de quem sempre viu a dualidade surgir no comportamento arrogante e agressivo do amigo; que ainda assim cedeu... em parte. − Se você tem com quem se preocupar caso morra... − O testamento serve para mesma coisa, não acha? - Valter, mais uma vez. − Talvez, mas um legado da arte se torna muito mais válido que palavras ditas em razão de bens! − E o seu patrimônio já construído?... E a futura utilização de suas obras?...E... − Enxergava então não pertencer mais a uma discussão de muito mais tempo a que posso compreender... Não queria me importar com aquilo: testamento, seguro, legado: não tinha mesmo ninguém para guardar... Além de mim mesmo, que era quem eu sabia que precisa proteger de alguma maneira... Somente a idéia da arte me fazia realmente perceber do valor que o escritor tentava explicitar.... Mas um tanto além disso estava a verdade da mentira que gerara a discussão: tinha que me proteger... do monstro... não de acidentes... Enquanto também mais em meu coração ainda sorriam os outros pensamentos, da premente saudade, da confirmação anterior de Joana, da vontade de falar com Suzana... No que se transformava o meu pobre e pouco hábil senso... quase débil por toda aquela conturbação... E os dois ainda falavam em minha frente; quando no momento Joana finalmente entrou... E era a última vez, com os ditos antes do documento. Se foram, como sempre se vão, mas antes ainda via o olhar do escritor com a preocupação e o eterno interesse de um alquimista que prepara as suas fórmulas sem saber com muita certeza no que vai dar; apenas faz uma perspectiva do resultado... Conhecia ele, em naquele meu olhar de constante apreensão, que alguma coisa além do que era visto e dito estava presente em meus pensamentos... que a escuridão dos olhos começava a ser iluminada, e ofuscada, e que o que eu encontrara lá dentro me ajudara a ficar naquele estado... Estava certo!... Mas tanto eu sei muito mais, quanto eu sei muito menos sobre ele: e as coisas assim devem ficar, pois da obscuridade as ações inusitadas se tornam às vezes claras.... (Haveríamos de ter sempre uma arma apontada um para o outro, mas não houve quem se conhecesse melhor.... Eu e o escritor...) Estou aqui a pensar, sob mais de uma luminosidade, e a que reflete no mar alcançando esse morro, de tão longe que o tempo passou por um eterno mesmo espaço que está dentro de mim.... E a imagem que me vem não é nem mais uma recordação: é a dor no coração (o espaço...) que se encandece ao perceber que sente sempre o mesmo, o mesmo eterno sentimento; apesar de todas as forças contrárias; apesar de todas as criaturas escuras das sombras; apesar do sacrifício de mim mesmo ao sentir tanta dor; o amor que exala do corpo como a luz da vida através dos raios do sol... sempre carregando-me de volta para o mesmo começo... Não era fraco: suportava, e por isso muito forte... Mais forte que a criatura.... Joana foi embora depois das sete da noite. Adiantara-se na preparação dos papéis dos dois outros clientes que nos visitaram no dia seguinte, e logo depois se despedira com um sorriso, ainda me perguntando se não precisaria de mais nada naquela noite.... Naquela noite eu só precisava que os relógios se adiantassem o mais rápido possível: Esperava que passasse das oito para poder dar aquele telefonema: sabia que Suzana só estaria em casa nesse horário; não esperava de modo algum que passassem o recado que Joana deixara mais cedo: de qualquer modo soaria como uma surpresa para ela saber que eu havia ligado depois de tanto tempo... E seria uma surpresa maior ainda falar comigo... naquela noite... Por mais tempo que eu estivesse afastado ela sempre fez parte de minha vida, em meus pensamentos, lembranças e fantasias, mas a construção daquele “reencontro” se transformava a cada instante que passava numa frágil montagem de tudo que havia passado até aquele momento... Tentei fazer algum trabalho para surtir um efeito aliviador de toda tensão antecipada pela qual estava passando, mas de pouco adiantava, pois simplesmente observava o tempo passar, e o aparelho de telefone, e as palavras que tinha para falar, mas que sabia que não recordaria nem da metade no momento em que se tornassem necessárias: talvez uma mentira por todo tempo afastado, assuntos sobre nossas vidas para que pudéssemos nos aproximar, ou apenas: “como eu senti a sua falta!”... Com o som do coração batendo tão rápido que poderia ser ouvido do outro lado da linha, e tudo estaria esclarecido depois de praticamente um ano sem notícias... de alguém que sempre disse que nunca iria se afastar... Eu podia já ouvir em sua voz o pedido de uma explicação, mas tudo que poderia dizer e que estava FRACO, cego, e que agora, talvez por isso, estava tendo de enfrentar um demônio enfurecido, violento e cruel... tal como eu era, ou estava. Quase toda uma história de um tempo ainda presente... Mas o que queria era simplesmente ouvir... Oito e dezenove. Só precisei ouvir tocar duas vezes... − Suzy?... − Foi minha primeira indagação instantânea, como há muito atrás fazia ao ouvir a voz dela pelo telefone, reconhecendo de imediato, quase em momento algum notando que não estava numa viagem no tempo... Muito tempo havia passado... Talvez a intimidade também... Mas não podia evitar aquele doce regresso: perguntando algo que já sabia... − É ela. Quem é? − Eu sentia o filete de suor escorrer pelas costas de minha mão, absorvido de toda a tensão do meu mundo, sem saber ao certo qual seria a sua reação à minha resposta: provavelmente uma surpresa e também a


abertura de um perigoso invólucro dentro do meu coração: aquele que protegia o senso da imagem de Suzana como sendo aquele ser simplesmente meu, em meus pensamentos; se tornaria novamente uma pessoa real, com a total e plena capacidade de não ser o que eu imaginava; e diante sempre desse choque de imaginação e realidade a fragilidade maior sempre terminava por escorrer de mim, do meu interior, fazendo-me criar, então, estranhas criaturas no mundo real... Porém era uma clara antecipação: Suzana reconhecia quem eu era, ainda, depois de muito tempo; e nada vira, nada soubera, talvez em algum momento até suspeitasse de minhas razões, mas não mencionaria naquele momento ainda... Aqueles momentos foram apenas a apresentação de uma boa recordação: quase duvidava, incorporada minha saudade e paixão, que alguém, ela, poderia ainda ser tão minha amiga... Mas nas impossibilidades sabia a certa: somente eu sabia o que havia dentro de mim... E naquela conversa, tanto eu como ela, éramos apenas pessoas comuns. (O diálogo de qualquer um!) −... Eu nunca mais vi ninguém do pessoal... − Falei... Entrávamos num ambiente mais particular. Só fazia me certificar a todo momento o quanto era difícil estabelecer novamente o vínculo, pois a vida em certo ponto se tornara apenas uma aventura obscura: e algo de comum, já tão permeado da minha imaginação, se tornava uma situação de conflito... Tudo que se passava dentro de mim ao relembrar, com ela, das pessoas a quem “abandonara” e que ao mesmo tempo, àquele tempo, escrevia sobre as mesmas, recriando-as, tão perto e tão longe, real e criação... − Você não deveria ter se afastado... Por qualquer que fosse a razão... As pessoas se importam com você... Desconsiderá-las é um sinal de fraqueza... − A solidão tinha sido minha melhor amiga, e eu a traíra também; desconsiderando-a por razão de minha saudade... Era um jogo comum do interior humano: sua plenitude de contradições. − Eu sinto por ter feito isso... Mas talvez tenha sido essa a melhor saída na época, Suzana. − Saída para quê?... − Não sei! Talvez para procurar algo totalmente perdido entre eu e a minha solidão... − E você encontrou? − Não! − Então sabe que de nada adiantou se afastar... fugir! − Acho que não, Suzy... Descobri algo de muito importante! − O quê?... − Suzana me contou algo de muito significativo para o alvo dessa história: eu... Mas que será visto após... Do que mais poderia estar contido aquele telefonema além de minha intensa reflexão?... Por falar com a pessoa real Suzana; a quem tanto considerava em atenção: crescente um sentimento se torna real a cada momento em que se imagina o mesmo sendo real... Podia sentir o calor dentro de mim como a fogueira que se tornaria sempre dentro do meu coração a fagulha de amor que me restava: o amor, gradativo e consciente, que expõe para o exterior o interior de umas poucas palavras que realmente representam o que querem dizer... Por mais simples que pareçam ao serem simplesmente ditas... Ou escritas... −... Sinto... sua... falta, Suzana... Muito mesmo... − Sentir então em seu silêncio o quanto o sentimento estava claro... Não importava muito as conversas das pessoas comuns... Ela estava lá, e nunca seria uma pessoa comum, para mim, para o meu estado... O calor se transformava num leve frio de alívio. Podia refletir pelo resto das palavras a suavidade do que nós somos quando nos apresentamos ao que sentimos... Meu triste sorriso brotara diante do meu reencontro; em saber dizer novamente a um ser humano real o quanto era importante para mim sua presença em meu mundo... em mim. Despedimo-nos. Eu a amava (amo)... Voltaríamos a nos ligar, e nos veríamos de novo (outros episódios)... Mas por aquele dia, naquela noite, estava feliz, somente por dizer... somente por novamente viver uma vida real... por pelo menos alguns instantes... Sentado ainda lá, no escritório vazio, e revendo a sensação da realidade mais uma vez num medo súbito de tudo perder... Pois mesmo o que para um leigo não parecesse muito, ou até mesmo nada, era o que eu valorizava como tudo demais importante que podia me restar: ter dito aquelas palavras... Aspirava essa sensação ao meu redor, e estava feliz... − (FRACO!) - Eu podia ouvir!... Mas não queria... Queria eternamente o toque da mágica do ser humano: real e existir... Ficava louco... − Não sou fraco!! − Disse em voz alta no escritório vazio.

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Em poucos dias que se seguiram... Em casa... Muita coisa parece que deixei para trás na tentativa de descobrir um futuro; e contenho sempre o infinito medo dentro de mim de também deixar para trás minha sanidade em favor dessa procura... Pois me afastei dos que mais gostava; e essa não sendo uma atitude pensada, apenas uma ação de um estranho momento, de fervorosos sentimentos,


de um interior domínio; que agora não queria mais recuar o seu avanço sobre mim, quando o que eu quero é retornar...Pensava na loucura tomando posse de mim, e me forçando a dar nomes às minhas criações... Do que tinha deixado para trás então, começava a descobrir os novos fatos dos mais recentes momentos; das pessoas que não mais via, dos sentimentos que ainda sentia, e podia reviver... Por Suzana soube que de um incomum desenrolar de diversos símbolos comuns das nossas vidas, o envolvimento emocional, uma das aparentes razões de minha “fuga” daquela outra época presa na memória, tinha completamente se esvaído; aparentemente como tudo no mundo e na vida que possui um começo, um desenvolvimento e um fim; era a tragédia do homem mais vez se repetindo: nada dura para sempre: principalmente ele próprio... Alguns dias após o fatídico dia no aniversário de Marco, quando eu resolvera sair de cena para criar minha própria história, a figura a qual eu já mencionara como sendo muito importante e ligada a Suzana por muito tempo, e antes de Marco, mas que não afetava tanto (acredito); esse tal retorno de onde ele estava nos bastidores daquela história e começou a afetar de maneira decisiva no relacionamento dos meus amigos: Suzy e Marco... Sentindo o pesar de uma voz muitas vezes sofrida por tais críticos assuntos do coração, ouvia Suzana resumir em palavras alguns momentos daquela romântica e dolorosa jornada daquelas três distantes criaturas, que o eram no momento em que ela falava... “... Marco ligava constantemente para ela , enquanto o outro exigia que nenhum contato fosse feito: uma tendência possessiva talvez, mas também um medo constante de ambos os lados masculinos. Suzy pedia para não estar, mas estava numa guerra de influências, de poder, de dedicação, de egocentrismo, de certezas absolutas falsas de ambos, que cada um, era o melhor para ela, e a deixando presa num meio de tristes infortúnios... Pediria para não ter de decidir, mas alguém teria de sofrer, e foram os três... Fora a casa de Marco numa noite para conversar; lágrimas percorreram rostos já muito marcados ao se enxergarem em tal infeliz situação: ela disse que terminou, definitivamente, naquele mesmo ambiente onde os vira pela ;última vez, se beijando, tão felizes quanto eu estava infeliz, haveria de provocar tal desengano tão pouco tempo depois de eu desaparecer, e no mesmo cenário “ver” aqueles dois chorarem por uma das coisas que o destino sabe fazer tão bem: provocar dor e não dar explicação... Disse-me que ele muito ainda a procurou, e por muitas vezes brigou com o outro por essa razão; mas como tudo isso também não durou para sempre: o amor eu sentia ainda existir, e o sacrifício também de uma estranha possibilidade, pois apesar de tudo que houve ela ainda dizia gostar muito dele, e que enquanto com ele esteve, esteve muito feliz: “... pena terminar como terminou...” Palavras de Suzana; um pouco mais dura talvez... Alguém que sempre considerei tão sensível; mas não era de se admirar... A sensibilidade continuava lá: em cada um dos instantes que ela me descreveu como sendo tão difíceis de transpor e agora reviver... como eu tinha de fazer... Triste, ainda me falava do quanto nada se arrependia; que os dois agora estavam bem, ambos em suas diferentes vidas: ela ainda estava com o outro; o que me parecia uma cena familiar, mas a mulher se fortalecia com o tempo, se transformava em algo eternamente a vir a ser: talvez alguém melhor, ou apenas só... E Marco havia se desfeito em lágrimas por um tempo, e agora simplesmente vivia...” Sempre fora uma pessoa de extremo carisma dentre todos que havia deixado para trás: não houve, nem há, um momento sequer em que eu deixe de invejá-lo por tudo que aconteceu entre ele e Suzy... De bom ou de ruim, as fantasias minhas haviam se transformado em realidades dele; e toda a dedicação que um dia eu quisera oferecer parecia ter ido no instante em que ela, Suzana, se tornava uma pessoa real... Somente o amor ainda resistia, e parecia ser ainda a única coisa que importava... Somente com relação a Marco e toda sua triste história, que eu nunca conseguira odiá-lo, pois gostava muito dele, e acima de tudo, segundo as palavras dela, porque fizera Suzana muito feliz, ao menos por um tempo... Esperava estarem todos bem; somente. “ Acredito que Suzana sempre soube o quanto eu a amo... E cada momento do reencontro tornou isso possível...” Porém outro caminho parecia estar traçado para nós dois, e nunca seria o mesmo... Todas as luzes do apartamento estavam acesas enquanto no resto do mundo a escuridão dominava a noite e o sono dos inocentes que dormem em paz sem terem criaturas monstruosas para lhes atormentarem a sanidade. Sentia andar pela casa com os passos de quem arrasta dentro de si, com a mesma lentidão dos pesados pés da madrugada, um grande e implacável temor... Um medo que prosseguia em meu coração do mesmo modo e na mesma proporção que o grande amor... Via dentro de mim ao observar tudo claro à minha volta, sem as sombras para assustarem, o quanto eu me tornara real dentro de minha imaginação; uma eterna interdependência que parecia corroer ambos os lados de uma mesma pessoa, eu; no momento em que o real se tornava perigosamente próximo do que eu havia imaginado... Continuava a andar e pensava em silêncio, tirando-me completamente de quaisquer outras preocupações, de como fora menos: a construção física de meu primeiro reencontro com Suzana; o tempo e a criatura me fizeram crer por tanto tempo nas absurdas criações de minha imaginação, que o que fora uma incalculável expectativa se tornava menos palpável quando realizada do que quando era apenas uma expectativa... Talvez por isso eu conseguia sentir tão reais aquelas pessoas ao redor, mesmo estando completamente a sós em meu apartamento; Beto e sua eterna seriedade, como sempre tanto a dizer, mas pouco sendo um interlocutor de si mesmo, pois só ele o devia conhecer o bastante; Romero e sua alcoólica alegria, singrando entre as mais profundas verdades da vida e as maiores bobagens que alguém de alto QI pode prover; Marco e sua triste beleza e carisma que a todos conquistava, mas com uma nova e estranha memória que ia além do que eu realmente lembrava, e mesmo assim era mais visível do que seria se eu o visse de novo, procurando de dentro dele um sinal externo de que imaginava ser a sua pior experiência: todo episódio com Suzana... (e mesmo que não fosse, já podia


sentir, e era real)... E também ela, por quem dedicava uma grande parcela de pensamento, sempre atento a qualquer relance da escuridão , mas a casa ainda continuava iluminada; finalmente sentei-me. Estava em frente da máquina de escrever, mas não queria trabalhar na história; ansiava discorrer dentro de mim sobre as diferentes facetas e realizações do amor: a maior diferença que era apontada para mim seria a do quanto a paixão só coexiste com o ser real porque nós assim a realizamos; mas na verdade não era assim parecia transcorrer de nossos corações... Sentia ainda meu coração ser arrebentado a cada batida, como que clamado por um fim, por causa de uma eterna ausência nunca reparada; e naquele momento eu sentia não ser só Suzy... Não escrevia... Havia algum tipo de contaminação naquele ambiente tão familiar que me impedia, ainda, de encontrar a resposta para tudo aquilo; por alguns momentos imaginei que somente retornando ao passado e reconstruindo meus passos (os da minha fuga), encontraria o que procurava; mas não era mas tão simples: uma guerra se travava em minha consciência à procura de uma linha de conexão entre o que eu havia perdido e o que eu havia imaginado... mas ela parecia não existir, ou do mesmo modo: ambas as coisas pareciam ser a mesma coisa; o que significa dizer de outra maneira que não havia conexão, não havia linha: Sentia-me perdido então: entre as dores do amor, que deviam ser mais reais e o pouco sentido de minha sanidade, que deveria ser imaginação...Mas naquele momento em que eu colocava as mãos apoiadas no colo, como que caídas ( desistentes), e meus olhos se dirigiam perdidos para o papel em branco à minha frente, completamente fora de foco e ofuscado no espaço como uma mancha branca na memória “ suspirando cansadamente... Era tudo a mesma coisa; uma coisa só: a criatura sempre “dentro” de mim. Olhei ao redor. Não havia ninguém, mas eu podia sentir a presença: as pessoas, todas elas, os frutos de muito tempo dentro daquele inexorável exercício de solidão... Suzy e a criatura pareciam ser os mais reais; nada havia de comum naquele mundo... Falei: − Porque vivo assim? − E se me refiro no silêncio do meu lar àquela massacradora angústia: nunca tive resposta para isso. − Não sei se questiono a mim mesmo para as forças consideradas o destino... Só me vejo triste e envelhecido por escolhas que sempre fiz achando fazer o certo; mas no fim... o que fiz realmente, e tenho feito, foi desprezar sempre a existência de todos... E talvez toda aquela dificuldade em lidar com as pessoas reais: os seres humanos são como são, e serão sempre incompreensíveis por uma razão criativa: porém fugir delas não as fará menos imperfeitas, somente serão criadas novas e diferentes criaturas, que não existe no mundo real. − Talvez eu seja fraco realmente: fugir das pessoas reais como elas são... Gostar delas pelas convivências do que elas expõem de melhor e de pior... e não apenas por lembranças, e criações... − Imagens, são o que elas refletem em sua imaginação sem o serem: é o modo como você as vê.... − E talvez meu maior erro tenha sido preferir estas imagens às pessoas reais. - Seu maior erro é não conseguir se reconhecer como uma pessoa feliz! − Feliz?!... É. Eu não sou. Não consigo ser, e cada vez mais parece uma escolha minha. - E é uma escolha sua: fora de sua sanidade... − Sanidade... Sanidade... − Não me percebia realmente falando sozinho, mas observei mais uma vez ao redor os espaços vazios presentes em minha vida: eu me sentia como sendo o maior deles, já atingindo quase um profundo desespero... As luzes ainda estavam acesas mas eu já as não queria mais produzindo toda aquela claridade; desejava enxergar a escuridão e procurar dentro dela meu verdadeiro interlocutor naquele “monólogo” ... Era uma curiosa sensação libertadora assumir aqueles certos aspectos de minha “loucura” para poder querer encontrar a criatura na escuridão... mesmo sabendo que o controle do mundo rapidamente poderia se esvair de minhas mãos e ir para o monstro. Porém ainda queria, ansiava por aquilo... Levantei-me e voltei a andar pelos cômodos da casa apagando uma a uma as luzes que clareavam o ambiente: sentia o peso das decisões que deveria a cada passo tomar para que a força da criatura não me tornasse realmente fraco na sua presença; pensava ainda em Suzy e no sentimento que tinha dentro de mim: falar com ela talvez tivesse transformado a pessoa, mas não o sentimento, e esse era um dos poucos aspectos que mais me davam a certeza de continuar procurando a resposta... Pois amá-la era prazer, em tendo nada do horror, que era a criatura da escuridão. A última lâmpada era a da sala, e eu a apaguei dando uma última e firme olhada para a mesa onde se encontrava minha máquina de escrever, e a parte já pronta da história: no papel que via estava algum número da casa dos quarenta, a página, e logo tudo sumiu... Na escuridão permaneci de pé alguns instantes absorvendo todo o breu ao redor, como que começando a participar dela, tronando-me parte da escuridão: viajando para outro mundo... Transformando-me... E finalmente eu a ouvi... como sempre... − FRACO! − Aquela voz grave e interior, mais exterior que da última vez, tronando-se cada vez mais próxima e forte. Fiquei alerta. − Porque fraco?! − Voltava-me para todos os lados à procura daquela soturna figura que eu abrigava em minha escuridão, mas não há encontrara... Somente vinha a sua voz; com algo a mais do que “fraco” a dizer... − Porque poderia submeter todas aquelas imagens desse mundo doente e fraco com o meu poder, mas você preferiu retornar e ser um deles: chorando as flácidas lágrimas do amor, da dor e da loucura... Pois que chore!...


− Como pode isso acontecer?? − Guardava em mim todo o desespero por não compreender as verdades daquelas incógnitas pronuncias: algo como a total sensação de estar perdido dentro da minha própria escuridão, que em termos o era, pois estava na escuridão; sentia meu corpo se afastar lentamente como que querendo fugir de todo temor que viria adiante; mas ainda assim, penetrado de toda angústia do mundo, que aquele monstro conseguia tão artisticamente prover em minha imaginação, queria saber... sobre mim... − Você sempre quis ser algo mais que humano, para isso estou aqui... Mas você desistiu, sucumbiu, foi um fraco!... − O que? O que? ... − FRACO! - Minha memória então fervilhou rapidamente procurando as razões da criatura, e minha imaginação foi o que pude ver... Há muito tempo atrás olhei para as pessoas com desprezo e as quis destruir por serem apenas como elas são: sozinho, poderoso, sem a ninguém amar; algo tão distante quanto a minha infância, algumas vezes tão dolorosas e triste: com conflitos familiares, desenganos amorosos adolescente, um extremo excesso de preocupação com as coisas do mundo que o faziam tão feio: a morte, o crime e a dor das ruas cheias de indigentes invisíveis... Ficava triste e com o tempo os quis destruir, e minha imaginação gerou tudo isso: uma forma de maldade, algo incontrolável dentro do coração; violento, agressivo, vingativo e vil... Mas que com a entrada do amor se tornou um excesso estranho na alma, assim se transformando no ser que é em minha frente o verdadeiro símbolo da destruição: um demônio, no popular e no enciclopédico entendimento da palavra: supra-humano e mal. Um pesadelo que conseguia viver!... Meu sonho de adolescente! Uma ameaça! − Não ... sou... FRACO! − Estúpido! − Voltei-me e ela estava a um passo de mim; gigante e feroz como sempre, mas com uma expressão diferente: além da raiva; era a ira por ter de se defender... agora... E teria mesmo que fazê-lo... − Esse é você!! − Lancei-me sobre ele como nunca imaginaria poder fazer, e senti pela primeira vez a textura de sua pele e a rigidez de seus músculos, como uma protuberância real da realidade que demonstra a aspereza de uma imaginação fértil e desajustada, que transforma o que seria apenas uma sombra no subconsciente em pele viva que pulsa violentamente a espera de sua distenção maior de poder e agressividade; sua expressão se tornara enrugada de ira, seus olhos se comprimiram ao olhar diretamente para os meus: meu ataque fora uma surpresa, quase tombando-o para trás, mas sua força ia muito além da minha, por enquanto, e então logo senti suas mãos apertando minha cintura, com muita força; e tendo somente em seguida a rápida sensação de ser arremessado no ar, chocando-me com violência contra a parede e chegando ao chão já totalmente inconsciente... Mas enfim... me defendi! Podia revidar! Não era fraco. Meu olhar se perdia no suave ar da manhã que arrastava minha perdida imaginação entre o estático cenário de meu escritório e o céu azul que manchava parte de minha visão da janela aberta (havia desligado o ar condicionado), junto com as frentes e fundos de outros prédios que se recortavam pela paisagem a frente... Um surpreendentemente difícil começo de dia, pois pelo que vinha de uma noite de tamanhos terrores e revelações, o que vinha pela frente em passos tão lentos quanto o arrastar-se daquela manhã aparentemente tão calma e comum. Queria poder realmente apreciar a calma do que via dentro da sala e também janela a fora, mas o que me vinham eram as palavras do monstro... sempre machucando mais que suas ações violentas: parecia já pouco me importar com as escoriações diárias; notava sempre a preocupação de Joana por elas persistirem em existir sem uma razão clara: ela nunca perguntara; provavelmente via em meu rosto o quanto deveria ser sem explicação aquelas marcas de tanta força e violência quanto o próprio nascimento humano... Doce, Joana, que nunca mais seria a mesma... Porém o que os passos leves do dia traziam antes, tão sorrateiramente quanto um ladrão, era mais uma visita do amigo advogado... Valter vinha numa data que não era programada, mas seu (e nosso) cliente tinha tido todo direito de vir pedir qualquer prestação de contas quando quisesse; na verdade seria até interessante sair da rotina normal tão bem conhecida, que em geral Joana cuidava tão bem em preparar para as visitas... Não sabia o quanto a rotina seria mudada... Mais uma vez o advogado Valter entrou por aquela porta com um alegre, mas sóbrio e profissional, sorriso. Recebi-o com sincera alegria; levantei-me com toda dificuldade que meu corpo cansado e machucado proporcionava; e isso sob os olhos atentos e atenciosos do amigo; mas parara de me preocupar com o zelo dos outros; estava feliz por vê-lo, simplesmente, e demonstrei isso ao cumprimentá-lo... Por um sinal meu, Joana se pôs no lado de fora a providenciar qualquer coisa que fosse necessária relacionada à conta do escritor; eficiente, como sempre, logo ficou de prontidão com os devidos papeis... Mas não foi preciso nenhum adentro de relações financeiras naquele momento; naquele dia especial, com todo o lento arrastar-se de um/dia quase que meio anestesiado pelas perigosas antecipações, o que trazia o advogado aos caminhos de minha história, e ao meu escritório, era eu... − Vim saber como você está...?? − Pergunta um tanto retórica e redundante pelo que podia perceber de sua visão de si mesmo, a quem ele queria perguntar o estado... vendo o quanto “horrível” estava. Mas... − Me sinto... bem; apesar de não parecer... − Outro... acidente!?? − De fato... - Não possuía realmente palavras que pudessem explicar de forma plausível o que quer que estivesse acontecendo comigo para os olhos alheios. Mas tinha nele a visível certeza de que algo acontecia.


− Você pensou naquilo que nós discutimos no outro dia?... − Refleti por um instante... − Sobre seguro?... E testamento?... (Estava ainda em dúvida.) − Sobre você se cuidar, meu amigo... É disso que eu falo. − Não sei se entendi direito, Valter... − Ele hesitou por um longo momento olhando diretamente para meu rosto. Sentia o peso de minhas pálpebras e a dor em minha cabeça; continuava atento ao que o advogado dizia, mas um pouco da compreensão me fugia... Não queria fazer seguro ou testamento; não tinha intenção nenhuma de perder a vida; e também não tinha nada para deixar... ou para quem deixar... −... Durante um certo período na vida do escritor, ele se tornou um tanto... auto-destrutivo... Se assim posso dizer sobre seu comportamento... Nunca pude me perguntar a ele sobre o que se tratava toda aquela rudimentar violência no próprio corpo... Até hoje não sei o que foi tudo aquilo... (ele se encosta melhor na cadeira e arruma a pasta no colo, deixando as mãos cruzadas sobre a mesma; desce por um segundo o olhar num claro lamento e volta a me olhar)... Vejo algo de semelhante em seu estado hoje... É verdade que não tem toda aquela arrogância do escritor; em qualquer situação; mas definitivamente algo próximo... Algo só seu... Tenho certeza! (outra pausa, e eu observando-o curioso)... Hoje vejo o quanto se superou e pôs pra fora tudo que parecia haver de ruim nele... A realização. O sucesso. Adélia... Ah, meu Deus... Um filho... Eu não consigo acreditar... É a felicidade de um homem que...- O advogado ainda continuou a falar alguns segundos antes que eu o interrompesse, mas o que eu ouvira de fato tinha ouvido, e mesmo assim duvidei, por mais que tentasse processar a informação: naquele momento tão envolvido no contexto do que Valter tentava me passar sobre uma espécie de senso de auto-preservação ou até felicidade... Tudo que podia era me surpreender, duvidar e perguntar: − Espere um instante, Valter!... O escritor vai ter um filho?? − Era a única informação que importava. − É... Isso mesmo!... Não sabia?... Adélia está grávida de quase três meses. −... três... mês... − Minha voz se perdeu dentre os instantâneos cálculos que começara a fazer, e mais do que tudo dentro da surpresa, um dos muitos momentos que agora me ocorrera, desde antes, naquele tempo: a mensagem surgia como o propósito de um senhor de muito tempo antes que aquelas palavras de confirmação de advogado... O escritor e sua obscura trama, da qual fazia parte, e a qual tinha esquecido por forças muito além do meu controle... Levantei-me rápido e um tanto consternado. Valter se calou observando-me em meu estranho passeio pelas divagações de um poderoso sonhador... Imaginava se seria ele tão arrogante ao ponto de promover aquele cruzamento: quando de um propósito pouco visível aos olhos mortais surge a necessidade de tão bem manipular a nós todos... O escritor pareci conseguir isso com tal destreza que ainda o podia admirar; se essa fosse a verdade... − Só um instante, Valter... − Andei até porta tentando em alguns poucos momentos não demonstrar o quanto estava atormentado pelas novas, mas era uma tarefa árdua não ser eu mesmo no estado físico e mental em que me encontrava: o homem que toma por mais tempo o seu pleno vigor parece como a dádiva de sua consideração a capacidade de melhor se dissimular das observações do mundo... O escritor sem dúvida o era capaz, por tudo que podia tramar e realizar, totalmente protegido dos olhos do exterior... mas naquele momento... não eu. Saí do recinto por poucos momentos me refugiando na sala de Joana: seus olhos se tornavam tão abrangentes do desconhecido que era eu, quanto os que tinha deixado para trás em minha sala... Enxerguei Valter dezenas de vezes, fugindo imediatamente após, acompanhando o meu caminhar até a porta na tentativa desesperada de pôr as idéias no lugar... Mas não podia: não fazia sentido o que eu conseguia supor como sendo as atitudes de um gênio criador, ou a loucura de um egocêntrico cheio de ironias para com a vida de todos os outros ao seu redor... Respirei fundo com certa discrição, ainda sob atenção de Joana: seus olhos através da lente dos óculos diziam tudo que precisavam dizer a respeito de minha sensação de queda e perda a cada momento... Mas, provavelmente, nem a dona de tais olhos saberia o que queria dizer... Lá sentada sua mesa, sempre amável... E nada a dizer... Voltei-me então novamente para a porta e entrei na sala mantendo ainda um ar político para o que ia dizer ao amigo advogado Valter: uma mentira... Somente dei a volta até ficar de pé ao seu lado na cadeira; com um incerto sorriso de medo... − Infelizmente eu tenho um cliente que está vindo pra cá, e eu preciso fazer alguns balanços com Joana antes dele chegar... − ...Que nada... Eu também preciso ir! − Ele se levanta erguendo a mão direita para o cumprimento de despedida. Olhava fundo em meus olhos e só conseguia ver todo aquele cuidado premente do qual estava tratando antes de dar a notícia: suas razões reais pareciam ter sido aquelas; o que ele voltaria a falar, mas podia ver uma das linhas da trama do escritor se esticar através daquele último olhar e cumprimento, e assim descer as razões de tudo, porém inocente naquele que foi o interlocutor... Não poderia duvidar disso, vindo de quem vinha a origem da notícia, mas de Valter só podia ver a mais pura amizade... Reconhecesse ou não a mentira; sabendo a razão da mesma ou não... − Volte outra hora para falarmos mais... Marque antes; assim podemos usar melhor o tempo. − É claro... Mas pense no que eu disse! − Estava pensando... − Vou pensar... Na verdade penso muito!... Recordo bem sobre o que o escritor disse sobre deixar um legado... − Estava começando a ironizar minhas próprias palavras...


− Bom... Já é um começo! − O legado de um homem é sua arte; o que ele cria para ser eterno; e o escritor agora teria um filho: Adélia estava grávida. Vinda de um tempo que bem além do que eu imaginei como algo só de um momento; parecia ser algo que o escritor fizera criar de uma arte muito além do que simplesmente escrever (legado?)... Valter se fora e eu voltei a me sentar... O amigo preocupado que me trouxera, de dentro de um curioso pacote de preocupações pessoais sobre mim, a notícia de que talvez haveria no mundo uma criança por nascer, e que por minha aferição, talvez ela fosse minha; ao menos de minha paterna origem, pois naquele instante senti como se tudo fosse somente do escritor: peças e personagens para que ele criasse e destruísse (manipulasse) sem a menor intenção de saber o que quer que realmente quiséssemos fazer com nossas vidas... A criança, eu, Adélia e o próprio advogado Valter: numa malha habilmente tecida por seu maior e mais talentoso articulador... O escritor. Todo resto do dia tentei localizar tanto o escritor quanto Adélia; e em ambas as tentativas sabia falhar por ser algo totalmente fora do meu controle: dessa parte da história eu era apenas um pequeno personagem, ,que emprestou a sua imagem, personalidade ( e código genético?) e vida para o verdadeiro artista... Desapareciam os outros personagens não por minha conta, apenas porque minha utilidade mais proeminente tinha se extinguido no momento previsto... Mas ainda teimava em duvidar o quanto daquela influência podia ter nos atingido a todos, tão facilmente quanto as palavras escritas no papel pelo mesmo artista; sentia pouco me mover agora para tentar entender porque quereria o escritor um filho meu, ou seria apenas minha imaginação?... Ou porque tanto Adélia quanto Valter agiam tão inocentemente sob as “ordens” do escritor... E a vida teria de continuar para todos; mesmo que ele ainda fosse o dono do mundo, e eu apenas o escravo de minha imaginação... Foi por fim o dia, mas ainda não o terminaria assim... A noite se fizera cair com o oposto da suavidade daquela mesma manhã; tudo após a revelação; mas eram os enlaces de especulações, lembranças e medos que me faziam quase querer apodrecer naquela poltrona de escritório; ao me sentir tão indefeso... por diversas razões... Mas o centro da história mudara naquela noite... Joana estava em frente de minha visão perdida. Tensa, amável e sempre atenciosa tentava chamar a minha atenção para sua iminente partida; não havia nenhum trabalho extra naquela noite; viu-me durante o dia caçar dois fantasmas e ao mesmo tempo desaparecer em espírito nas virtuosidades de meus pensamentos. Não tinha remédio que pudesse conter aquela distância de comunicações tão pouco ambivalente profissionalmente e separados por um abismo de pouca compreensão entre dois seres humanos... Apenas me olhava, e eu demorei alguns minutos para notá-la bem a minha frente, dizendo: − Já estou saindo... Quer que desligue o ar condicionado?... − Seus olhos acompanhavam com lentidão... Não gostava muito do ar condicionado, e ela sabia disso. Era uma pequena gentileza do mínimo que ela podia realizar para o meu conforto, mas naquele momento era realmente muito pouco... o modo como eu sentia o ar ambiente: não o sentia... Porém... − Claro, Joana... Obrigado mais uma vez por sua atenção... − E ela sorriu com o certo consolo de quem sabe que não tem nenhuma atenção em retribuição: os meus atos não passariam apenas de automáticos se não fossem poder me referir agora ao ocorrido daquela noite; talvez realmente nunca a notasse, se outro (o outro?) não a tivesse notado, seja lá quando tivesse sido... − Até amanhã, então... − Amanhã?... Amanhã... E ela desaparecera deixando a minha porta aberta. Ouvi quando desligou o aparelho ar condicionado de nossas salas; pelas divisórias baixas bastava apenas um para as duas salas, mas no meu caso eu o dispensaria... Um confortável silêncio se instalou logo após o fim daquele irritante barulho de todos os dias, o dia todo; então eu a vi passar pela outra porta, com a bolsa na mão direita e um andar rápido de quem tem sempre pressa para pegar o próximo ônibus que logo tem seu horário de passar, mas ela tinha um carro... − Boa noite, Joana! − Eu disse, com ela já batendo a porta... Logo comecei a sentir o confortável calor da sala retornando após o dia de refrigeração artificial. O silêncio ainda permanecia; sabia que deveria haver ainda pelo menos umas três pessoas no escritório: os sócios geralmente ficam até mais tarde, e alguém está sempre elaborando um novo plano financeiro para os grandes clientes de uma empresa como aquela; já fiz muito isso em minha vida antes, mas não mais... Estava simplesmente lá, sentado, onde estivera a maior parte do dia, pensando como as coisas estavam realmente confusas e difíceis; uma iminente e aterrorizante tristeza me tomava com mais violência a cada dia: tendo em mente, nos meus pensamentos, toda a minha vida, procurando um sentido, uma força que pudesse explicar tudo, o porquê de tudo... Apoiava uma pesada cabeça na minha mão direita e ouvia dentro do silêncio todas as palavras que um mundo podia prover para me tornar tão confuso, e louco: com uma criatura vivendo em minha casa, em minha vida; um amor não vivido e não realizado, mas que se tornava distante de um modo no qual só fazia sentido por não se realizar, pois o objeto era apenas humano: desculpava-me em pensamento por pensar assim e desejava que Suzy um dia me entendesse (já que nem eu entendia!); e naquele momento, com tal intensa força: a idéia de ter um filho... Uma criação do escritor, do início ao fim, e tinha disso, principalmente por não poder confirmar... Tudo, as partes de um grandioso teatro... Só conseguia ver a mim. E assim algum tempo passou, no mais silêncio profundo de uma cidade que logo começaria a dormir... Desejaria hoje, mas do que muita coisa que já desejei na vida, que tivesse havido algum trabalho extra para se fazer naquela noite; ou então que Joana realmente tivesse que pegar um ônibus como a maioria das secretárias dali, pois sairia com elas pela porta da frente do prédio; ou então, que simplesmente eu tivesse começado a conversar com ela


sobre qualquer coisa (sobre o filho que achava que iria ter, e através de uma tão curiosa trama), algo que a tivesse feito sentar em minha frente ao invés de perguntar se queria que desligasse o ar condicionado: que o deixasse ligado... Mas nada disso aconteceu... Para mais uma pequena infelicidade do meu mundo... que o faz como é... Não sei quanto tempo passou. Meus pensamentos eram mais velozes que o tempo, e estes eram muitos. Mas não me pareceu ser muito desde o último instante em que vira Joana partir até o momento em que a vira de novo... Do corredor e da recepção ouvira um súbito murmúrio de vozes tensas que se debatiam repentinamente diante de uma nova e inusitada situação. Por mais distante que me encontrasse não pude deixar de sentir a curiosidade sobre o que se passava. Levantei-me e fui até a porta; ao pôr a mão na maçaneta já podia ouvir as vozes muito mais altas, e elas falavam horrorizadas sobre algo que tinha acontecido logo abaixo de nós: na garagem; algo de violento e preocupante, que era confusamente narrado por uma voz feminina que chorava compulsivamente; uma voz que nunca tinha tido a experiência de ouvir com tanta intensidade, fora daquele seu eterno e pacificador meio termo entre um anjo e alguém vinda de um tranqüilo interior; era a voz de Joana, que ouvia com total clareza quando abri a porta e andei devagar pelo corredor que dava para todos os outros escritórios e começava na recepção, onde todos estavam... Alguém falava aos sobressaltos com algum tipo de autoridade, por telefone... “... ela foi atacada... na garagem do prédio... por favor... ela está machucada...” A luz da sala da recepção me apanhou e me fez aparecer então: não havia dúvida; podia haver na expressão de todos que tentavam acalmar Joana sentada no sofá, chorando com soluços engasgados e uma expressão de pavor no rosto que devia lembrar a minha própria nas primeiras vezes em que vi o monstro... As roupas dela estavam rasgadas. Seu rosto estava vermelho como quando se é espancado: logo seriam manchas violetas, de vasos rompidos e muita dor na alma. Estava sem os óculos . As lágrimas corriam as faces. E seus olhos não tinham mais nada da amável atenção de todos os dias: apenas medo... Joana fora atacada e violentada naquela noite, na garagem do prédio onde trabalhava, num momento em que se dirigia para o seu carro para ir embora para casa, onde morava sozinha, num apartamento alugado pelos pais que ainda moravam no interior... Segundo ela, falando à polícia, não vira de modo algum o atacante: obviamente um homem; mas ele atacou por trás, levando-a para o escuro, e também por trás cometeu sua atrocidade... Imagino o quão humilhante pode ser para uma mulher tal desgraça humana a tocando... E ainda mais sendo com quem foi: com Joana... Sendo ela como ela é, ou era... Tudo que ela pode ver, e também anotando o fato do atacante ter lhe derrubado os óculos, foi o que de fato ele realmente era... Tudo que Joana vira fora um monstro... Uma sombra! Que importância eu podia ter?...

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Não podia desconsiderar esse lindo e terrível mundo que nos rodeia a todos sem a menor pretensão de ser misericordioso com ninguém, nem mesmo com aqueles de uma pura beleza e dedicação: esse mundo que traz tanta dor e fascínio para aqueles que aqui vivem e continuam a viver mesmo sabendo que em algum momento tudo pode perder completamente o sentido, e uma sombra monstruosa irá tocar-lhe de uma forma como ninguém jamais o tocou, e isso irá lhe provocar muito sofrimento, e a sombra será somente um homem, e somente o homem... Eu tinha minha própria sombra para acusar-me, atacar-me e machucar-me... E tudo teria que se voltar para mim... Nos dias que se seguiram ao incidente com Joana um insistente medo tomou conta de todo o ambiente de trabalho; na verdade de todo o prédio comercial onde funcionava a empresa. No dia seguinte todos os consultórios médicos e dentários já sabiam do ocorrido. A corretora de seguros do último andar tratou de fazer as mais freqüentes visitas de todo prédio: fazendo do providência medo de todo o prédio mais uma fonte de renda para os seus sócios... Meus patrões foram um dos que adquiriram seguros para a empresa e para os funcionários... Eu novamente pensava em mim mesmo e no que eu tinha que enfrentar dentro de minha própria casa: as palavras de Valter sempre a se contorcerem meio que sem sentido em minha mente... e a sensação de segurança povoando-me por completo. Minha atitude afinal fora a mais concreta por tudo que vinha passando, mas possivelmente a mais fora de razão para o mesmo mundo onde estava vivendo... Mas, de qualquer jeito, pouco sentido se vê em qualquer ação ou rumo que esse mundo toma, por isso a minha nunca precisaria ser a certa... ...O porteiro do prédio foi demitido. Outro foi contratado. E com “a culpa” admitida em alguém, quem quer que fosse, a paz foi restabelecida nos corações de todos... Mas pelo que via, e vejo, pode muito bem ter sido alguém do prédio: alguém de aparência muito normal, mas que também tem de carregar um monstro dentro de si... e naquela noite foi o demônio quem dominou... e pobre Joana... Não queria ser tão duro, mas tenho que ser: a fraqueza seria eu querer admitir o episódio como algo isolado e independente de tudo que já acontece no meu mundo... Seria apenas mais um símbolo de quanto a realidade se tornava cada vez mais parecida com minha imaginação, cada vez mais igual na realidade: era a inigualável similaridade com tudo que enxergava dentro dos olhos do monstro quando ele surgia na escuridão e me chamava de fraco por simplesmente expor o meu amor: algo inconcebível num mundo que concebe aquela violência contra Joana, como sendo


mais um acontecimento do dia-a-dia... Todos os lugares pareciam se tornar o lar da criatura, e a cada momento eu me sentia mais deslocado ao ver que o que eu podia considerar minha maior psicose se tornava a vida diária de cada um dos seres humanos que aqui habitam... Não sei o estado de Joana hoje, mas tenho certeza que aquela pessoa que comigo trabalhou estava completamente destruída, com muito pouca vontade de ainda desfrutar dos poucos e paradoxos bens da vida... E isso é comum... Pois para a minha atitude... Mais dias se passavam após o ocorrido, ninguém mais lembrava da sombra da garagem do prédio... Mas eu ainda tinha a minha... Desde o meu último embate físico com ela, havia notado duas coisas: uma, que podia ser atacada... e duas, que era (é) extremamente forte... Essas duas proposições, somadas aos fatos e conclusões conseqüentes ao incidente com Joana, me fizeram por decidir que precisava comprar uma arma... Fora quando o meu medo assumira as proporções de uma iminente esquizofrenia, mas a minha visão do mundo real começava a tomar a forma do horror do meu mundo: era o mundo que a criatura queria construir para ela, e estava conseguindo... não sei se através de mim, ou através de todos com somente a minha percepção do outro lado (divergências com a realidade tem dessas coisas curiosas), mas sentia que teria de agir... quando sabia que a atitude teria muito pouco haver com sanidade... parecia ter muito mais haver com um nobre sentimento sem nome que unia a todos os momentos que já havia vivido (tudo que havia acontecido até aquele momento) e desprezava a tudo mais, inclusive a vida, em nome da descoberta da razão... pela arte... “O que mais parecia importar para esse homem, além de sua maior dor... Nada!” E nada teria razão sem essa dor: o amor, a perda e a criação de algo perfeito... e tão cheio de contradições que para ser visto com nitidez tem que ser visto de um modo que nada aparentemente seja compreensível... Apenas a construção de vários fatos e cenas que carregam essa história ao seu final... atingindo a harmonia completa... depois: a derrota do demônio, mas sem nenhum vencedor que se possa ver ou congratular... Isso é desnecessário... No dia em que comprei a arma estava pensando em qual seria a minha dor maior... Isso ocorrera logo depois que Joana se fora... Sua partida fora uma daquelas situações em que se pode olhar tudo ao redor, e tudo parece estar perfeitamente no lugar onde estava no dia anterior, mas na verdade o que está fora de sintonia, fora do ciclo normal, é você: Joana tentara por quase um mês trabalhar; agindo mecanicamente para com todos aqueles serviços que com certeza perderam totalmente seu sentido no instante em que fora “tocada”... Via o esforço em seu rosto, a cada momento uma batalha para não chorar, para não gritar, desistir de tudo que não fazia mais a fazia confortável... E era uma guerra já perdida, todo aquele esforço; do seu coração nada mais nunca seria o mesmo... E então ela partiu. Sem grandes adeuses; quase um desaparecimento da fumaça de uma casa recém consumida pelo fogo: algo que lembrava a todos o quanto as coisas podem ser terríveis... e por isso dos poucos sua partida foi comentada, apenas em mim um triste adeus de uma pessoa realmente boa na terra: beijou-me o rosto e se foi... Mas essa não era minha maior dor... No fim de semana seguinte a isso foi que entrei naquela loja... Ao entrar pela porta que ficava entre duas grandes vitrines, onde eram exibidas as mais diversas formas do que se pode considerar esporte, pois era uma loja de esporte, armas e armas: coisas que matam pessoas; e ao redor, em volta das vitrines, as criaturas mais fascinadas do mundo por todos aqueles magníficos e extraordinários aparelhos de se fazer violência: crianças, muitas crianças, de todos os tipos e tamanhos, proibidas de entrar na loja por serem menores de idade, assistindo os seus maiores sonhos serem realizados através da visualização de elas usando tais coisas... E o maior fascínio era o meu, pois imaginaria tal visão como algo do meu apocalíptico imaginário criativo, ou mesmo do escritor... mas não, era verdade, estava lá, e era normal. Foi o que vi... Estava dentro da loja então... Havia cinco pessoas, cinco homens; divididos em dois grupos, um de dois e outro de três: todos estavam sendo calorosamente atentidos como se fossem clientes antigos e freqüentes; pelo tipo de conversa todos se consideravam caçadores, e estavam lá naquela tarde de sábado para complementar seus já vastos arsenais domésticos... por um vasto momento consegui enxergar aqueles mesmos homens sendo as crianças que estavam do lado de fora: eram lados cronologicamente distantes do mesmo fascínio pela arte da violência. Chegando ao balcão fui prontamente atendido por um jovem de camisa pólo vermelha, igual a dos outros dois vendedores. Tudo na loja estava a mostra por vitrines e balcões de vidro: desde anzóis para pesca até espingardas calibre 12. (imagino até onde isso é legal...) Falei: − Gostaria de comprar uma arma? − De que tipo? − Pensei um instante... − Não tenho certeza. − É para esporte ou o senhor pretende manter em casa para defesa?... − Acho que eu poderia definir assim o teor de minhas intenções; por mais que fosse “sobrenatural”, a razão era que queria me defender. − Acho que está mais para a segunda razão. − Tudo bem! − O rapaz se retirou por um momento para pegar algumas amostras... Mas enquanto isso eu também pensava que na verdade teria que ser algo que destruísse a criatura: seria um tipo de precisa descrição para o uso que a arma teria... E disso implicaria que não poderia ser uma arma muito “fraca”, já que a força do monstro era tamanha... Quando ele voltou, eu disse:


− Existe também outra razão... (olhou-me com duas caixas nas mãos) (os outros continuavam a falar descontraidamente) (e as crianças do lado de fora a sonhar)... Eu tenho que sacrificar um... cão doente. Os dois homens de um dos grupos, o mais próximo, tiveram suas atenções por um instante desviadas para mim... − Entendo... − Disse o vendedor colocando as caixas sobre o balcão. − Eu não gostaria que o coitado sofresse mais ainda com uma arma ineficaz. − Era estranhamente irônico para mim mesmo me referir à criatura como coitado, sendo o que é... O coitado parecia ser muito mais eu próprio... Ele me observou um tanto desconfiado com o estranho pedido. E finalmente um dos homens de antes se manifestou... − Você pode levar o seu animal num veterinário e mandar sacrificá-lo: é muito menos doloroso... − E pensei na infinita sapiência daquele homem, que comprava armas por diversão, ao realmente imaginar que eu tinha um cachorro em casa e que queria sacrificá-lo... − Não, obrigado... Na verdade eu gosto de resolver os próprios problemas... sozinho! − Tudo bem... − O homem falou sem muito mais querer acrescentar diante de uma expressão tão cheia de certeza como a minha naquele momento... Voltei ao vendedor... − E então... O que você recomenda?... − Ele pôs a arma no balcão. A arma... Num belo sábado de sol, rodeado e ao redor do mundo que de tanto tão pouco que entendia de si mesmo não via o erro que era ser como é... ter uma loja de armas que matam... para vender... Comprei-a com o gosto amargo de pensar o que doeria mais... se ela ou o que eu pensava dela... Ou o que realmente me causava a maior dor... As contradições me levaram, naquele mesmo dia, a procurar a razão de uma maior dor, ainda... E foi com aquele pacote que fui de uma parte a outra dessa cidade na direção de um outro mundo que me fazia somente recordar de mim mesmo em outra e completamente diferente época da vida... fora de mim... Quando o que importava não era a capacidade destrutiva da pistola que estava carregando, sendo a mesma capaz de explodir um crânio humana a qualquer distância menor que dois metros... Essa arma que acabara de comprar de forma quase que totalmente legal no falso intuito de eliminar um animal moribundo, e na verdade sendo um símbolo tanto de medo quanto da verdade que existia dentro do meu coração a respeito do monstro: que eu tinha que destruí-lo, antes que ele destruísse tudo mais... Realmente pensava nisso no momento em que a porta se abriu e o rosto do passado surgiu como o desvelamento de uma sombra que permeava a minha memória há tanto tempo o quanto eu podia me lembrar que sabia o que era sentir amor e dor nos mesmos espaço e tempo da minha existência: uma figura, não mais a Suzana das recordações: somente uma amiga cordial que me abraçara contente e surpresa ao me ver a sua porta num fim de tarde de sábado esquecido no calendário de 1997, mas com uma coisa tão importante para mim quanto essa data de hoje e o que representa, a cada instante... sentia aquele abraço novamente: e como eu sentia falta do forte abraço de Suzana; o cheiro que sobe pelos seus cabelos enquanto estou tentando não largá-la de modo algum; a sensação quente do seu calor misturado ao meu; meu coração batendo forte; e os olhos tão fechados e apertados que podiam conter um mundo dentro da escuridão daquela sensação... vendo que afinal a maior dor era ter esquecido de fato o quão bom, e simples, era aquela forte emoção: a maior dor, do maior amor, do que me fazia fraco, e que me seria a força para fazer tudo que tinha de fazer... Entramos... Sentamos no sofá da sala e conversamos... Conversamos sobre os restos do nós que nunca houve; de sentimentos claros difusos entre as complexas guerras de nossos interiores: como quaisquer seres humanos que tenham que esconder seus “monstros” internos em favor das boas relações sociais e pessoais... Uma vida íntima que todos tentam transformar em algo fascinante e misterioso para o outro; algo desconhecido para ele próprio, e que passa a ser a maior profundidade da alma que se consegue alcançar mediante um “livre” diálogo... Falamos disso, eu e Suzana... As razões porque as pessoas fazem análise... Eu e meu pequeno pacote lá; sentado e quase pressentindo os últimos instantes de uma imagem de sonho real, prestes a ser desfeita pelo despertar de uma terrível realidade... Eu e meu pacote... Sob os olhos doces de Suzana; quando também falamos do passado, dos amigos deixados para trás, do amor decentemente velado pela amizade, claro em nossos rostos e expressões a cada palavra... E pode ter sido desde muito antes, mas somente sua cabeça e olhar baixando mostrava o quanto sabia de mim, e do que sentia, e de como em sua frente se encontrava um homem já sem fé... Sem fé em coisa alguma além do que parecia sentir numa recordação de normalidade incompreensível. Via o sorriso de Suzana sumir a cada vez que o olhava profundamente para seus olhos, e esse era o símbolo dos sinais perfeitamente entendidos entre mensagens não verbais... Falamos muito, e ficamos muito em silêncio: não havia mais ninguém na casa; ela usava uma bermuda jeans e uma blusa preta; estava descalça... Eu estava com meu pacote, e o meu instrumento de definitiva perda de sanidade... Porém é perfeitamente compreensível que o mundo e a normalidade degradam tias criaturas (eu, principalmente), pois sabia que era uma criatura presente em todos os seres humanos: o meu ganhou vida... azar o meu... Mas ele herdou meu egocentrismo, minha arrogância, minha insegurança, e principalmente... minha imaginação... Falamos mais... E eu pensava que tipo de demônio não habitaria em Suzy: um anjo... meu ego gostaria de responder, mas a natureza humana parece ser mais como a da minha criatura do que como qualquer outra “coisa”... melhor... Devem haver exceções... Mas minha pouca fé e desprezo vem do fato concreto de simplesmente olhar ao redor as pessoas e ver o que elas realmente são... Mas naquele sábado...


− Eu adorei ver você , Suzy... Fiquei realmente feliz... − E estava; não estava só falando... Mas dentro de mim uma voz já me chamava novamente de fraco; e era a minha própria... Porque não disse, nunca disse, a ela, literalmente, o que realmente sentia... sabendo ela ou não... E algo mais... Despedimo-nos. Novamente me abraçou. Seu perfume e sua voz ainda ficaram comigo por um bom tempo, e finalmente me fui... com o meu pacote... minha missão. Talvez ainda não fosse a maior dor... “A fantasia é continuar a querer aquilo que não se pode ter: um desejo eternamente contido, preso na ausência, é pois da necessidade que surge o maior prazer da presença, do reencontro... Muito mais além que sonho, ter antecipado por tantas vezes aquela visão realizada, um sentimento tão forte dominando completamente o corpo e a alma, liberando com a vazão das impossibilidades para ser a melhor sensação da vida, como em todos os momentos, contendo um significante próprio, totalmente sem razão, mas que faz não querer-se nunca mais se afastar...” O abraço tão forte quanto a força da bala que irá explodir o crânio do demônio... Mas ainda havia a dualidade da realidade e da imaginação (já revista a fantasia)... A realidade se torna imaginação (o reencontro com o calor de Suzana), e a imaginação se torna realidade: a monstruosidade criativa de uma falsa loucura; o que eu tentava me convencer que era enquanto me transportava de volta ao meu mundo real... Chegaria em meu coração a devida interpretação do que era a síntese do problema em si, o que era de tão real em medo e em minha tristeza, o que tinha de ser para eu não ser... fraco (o que deveria ser, de tão simples): o monstro que tinha de enfrentar: feroz, violento e livre... Ao chegar em casa já era noite. O que penetrava na escuridão não devia ser realmente eu, mas apenas uma imagem, um aspecto do eu que costumava ali habitar: queria acreditar que uma melhor e mais otimista parte de mim ficara na casa de Suzana naquela tarde, na verdade dentro dela, como um calmo refúgio para uma alma atormentada, alguém que só me inspirava o amor... Era a outra parte que entrava, que acendia as luzes desconfiado, e esperaria para poder ofertar-se com um verdadeiro dia da caça no ambiente do predador: as sombras... Sentei-me à mesa após uma modesta refeição e desfiz o meu pacote: a pistola tem um brilho inconfundivelmente novo e atraente; algo que provavelmente também fascinava aquelas crianças da vitrine; ela tem também um cheiro metálico que alcança de longe as minhas narinas, e naquele momento estava muito perto; na própria caixa já se ensina como se deve carregar, armar, atirar e limpar a arma: se serve comercialmente como se fosse um produto “doméstico” qualquer; também na caixa havia um aviso para manter longe do alcance de crianças, e de nunca dever se limpar uma arma carregada... Passei a conhecer a textura e os relevos da pequena máquina semi-automática de matar gente: era o lado restante de mim ,se entretendo com aquele ícone de poder. Carreguei o pente com cuidado e atenção. Havia comprado apenas uma caixa com 40 balas... e não pretendia usá-las todas, mas não havia em menor quantidade... Porem o brilho daquelas pequeninas coisas de ponta oca, capazes de tanta destruição na carne humana, conseguia também me espantar... como a aquelas crianças... Coloquei o pente na arma e o encaixei com uma pequena pancada; o som do “clique” perfeito das duas peças se encaixando também me fascinaram... Então puxei a parte móvel superior para enfim cair a bala número um na agulha e finalmente armar o revólver... Estava pronta... Acionei a trava de segurança vermelha, que é uma chavinha que fica no cabo da pistola, para assim ela não poder atirar... e a pus no centro da mesa. Joguei a caixa e o papel de embrulho no chão, deitando-a, somente ela, sobre a mesa... com o brilho refletido da luz da sala a iluminando, como uma natural e poderosa fonte de calor, e luz... mas ainda era fria... é metal... Olhava diretamente para aquele brilho refletido, que praticamente queria falar comigo; tentava ouvir sua mensagem gelada, mas só fazia o brilho quente ofuscar meus olhos: estava quase cego com aquela luz, incidindo diretamente em minha retina, hipnotizando-me... Estava cego... e não sabia o que estava fazendo... Meus olhos baixaram então, já estavam embaçados, sem nenhuma clara mais difusão, sem foco... apenas amargas lágrimas de uma inexplicável dor: a dor de não mais me reconhecer... “Suzy...” − Pensei... “Procuro um oceano para sofrer sozinho e em paz, mas pareço ser sempre falso e frágil ao pender para a alegria... Que terrível impressão meu rosto não causaria se fosse a tristeza que eu carrego dentro... Só queria ser triste em paz, sofrer na mais profunda das angústias até tudo desaparecer... Mas temo, por parecer que a grande aventura é transparecer o contrário, até o momento limite em que ele se revelar, e eu ter de eliminá-lo, sem hesitar.” − Gostaria de escrever... − Disse cansadamente para o vazio, levantando a visão de volta para a arma. Sentia calor e umidade em meu rosto... Aquela minha obra já tinha chegado ao fim (ver: UM FIM), e a arte que agora iria realizar se tornaria algo de muito mais extraordinário espanto: como deveria considerar a “destruição” de uma criatura que era a minha imagem sombria... viva... Senão uma obra de arte do absurdo tombada na imaginação de todos (nenhum) aqueles que entrarem em contato com esta realidade e virem o que iria construir... numa cena... Pois levantei-me, automaticamente empunhando a arma, e logo em seguida destravando-a na sua chave de segurança, deixando-a pronta para o embate. Do segundo quarto até a cozinha fui apagando as luzes uma a uma, até restar somente a sala iluminada: fora o palco de todos os eventos anteriores dos dois personagens, pelo menos os de inter-atuação; era a justa justiça da minha consciente loucura no final da história... A mesa estava vazia; nunca mais estivera lá a máquina de escrever, ou o papel branco cheio de possibilidades... Imaginava quando o escritor teria a oportunidade de ler aquela última história e contemplá-la com sua sincera, sempre sincera, opinião; provavelmente estava ocupado preparando a chegada do filho ( o meu?), que pelos meus cálculos já devia ser por aquela época o nascimento... Nunca o vi... Mas eu


também já estava ocupado criando a minha própria “maravilha” psicopatológica, ou vivendo a minha real realidade... As luzes foram definitivamente apagadas, então... E o cenário da escuridão se fez... − Gostaria de escrever... Exatamente isso... − Falei para o vazio cheio da densa escuridão... E a resposta foi imediata: − Agora... Eu sou sua arte... Sou seu legado! − como sempre a voz surgia antes da imagem; era apenas grava dessa vez, completamente exterior, sem mais nenhum sinal de poder estar vindo de dentro de algum lugar... como antes... A arma estava preparada. E eu também... A voz prosseguiu: − Para que a raça humana seja imortal, o ser humano precisa ser mortal; e essa representação mostra a sua utilidade... − Por alguns instantes estava atordoado com o teor das palavras do monstro, que pareciam ser minhas... Procurei ao redor sua assustadora figura, com a arma sempre apontada para a região onde procurava; estava tenso, sem dúvida; mas dessa vez parecia que a criatura queria falar... quase um discurso. Perguntei... tenso: − Que “representação”?... Que “utilidade”?... − E a voz disse: − Daquele momento em que a criança notou que o mundo não seria perfeito; desde que os seus olhos olharam ao redor e viram o quanto há de feio e ruim em tudo que se refere a eles... Teve o instante exato no passado, mas pouco de lembrança pode lhe atravessar a memória tão entorpecida pelo fraco sentimento dos humanos, fazendo do criador um deles; fraco e debilitado; imperfeito para tudo que tinha imaginado de tão magnífico... Destruir seus amigos e sua família foi tão bonito, tão grandioso, o maior deleite de todos erguido pelo desprezo do criador pelas abomináveis criaturas que tanto o faziam sofrer sendo tão felizes num mundo tão antipático a ele próprio... Você não soube reconhecer a obra nobre e grandiosa que foi me conceber: de um sentimento tão frágil e inútil me veio de você o que você havia planejado para mim há tanto tempo quanto você poderia se lembrar que existe... No passado... Desde a escuridão do ventre materno até esta escuridão que você criou para a minha vinda... E agora você quer me destruir?... O mundo já é quase seu... pai... − Sentia a minha face tremer; sentia o suor escorrer; via em minha frente somente a escuridão, e dentro dela estava eu, sendo tudo aquilo que o monstro acabara de proferir... − ...Que... representação?... Que... utilidade?... − Tornei a perguntar, mas já sabendo a resposta... − A melhor representação de você, criador!... E a utilidade de destruir tudo aquilo que te desagrada. − Os sonhos perdidos de uma juventude de devastadora revolta contra o mundo... O escritor tinha razão sobre a origem... E agora viria o depois... − Você... é... a pior parte de mim! − E girava em volta a espera do seu último ataque. A criatura queria me destruir, porque segundo o conceito: eu era o traidor, e resposta para a sua utilidade só podia estar completa se eu voltasse a me reunir com ela... Porém a atitude do monstro ainda não era tão simples: sendo uma minha criação... − Você não pode me destruir, criador. − Podia sentir a voz cada vez mais próxima... − Posso... E vou... Se eu te criei... então posso te destruir!... − Já podia sentir a sua respiração perto de mim, aquecendo a escuridão. − Só existe uma maneira, criador... (Fez uma pausa.)... E você não pode existir sem mim!... − Foi quando os olhos do demônio finalmente apareceram na escuridão: acesos como o terror que era o meu cenário; e pois assim eu vibrei... − Não devia dizer isso!... − E eu atirei na direção daqueles olhos; deviam estar a menos de dois metros... E acertei... − ...A arrogância... (Respirei trêmulo.) ...foi uma das coisas que lhe passei... − Por alguns largos segundos de silêncio após o opaco som do tiro pensei ter acabado de sair de um sonho; um terrível pesadelo de meses e meses sem a mínima chance de paz... Mas a criatura estava naquele instante silenciada... Abaixei a arma até senti-la tocar em minha coxa; o dedo indicador ainda estava no gatilho; tenso, inquieto, quente como o resto de toda minha mão direita... Tentava acalmá-lo, assim como tentava acalmar todo meu corpo. O meu coração já tão acelerado se precipitava em lançar um bombardeio de pressão sangüínea a todas as partes do meu organismo: sentia desde minha cabeça até o solado dos pés pulsarem como o próprio coração... A medida que a escuridão foi se tornando um tanto mais normal, trazendo as silhuetas normais das sombras de minha casa, com os pequenos fios de luz que v6em da rua, e tudo mais que dela, a normalidade, se advém... pela primeira vez via os contornos da criatura se tornarem mais visíveis, ao mesmo passo que iam se desfazendo: era totalmente feita de escuridão; escuridão viva... Sua cabeça estava desfeita pelo tiro que dei, mas todo seu corpo era uma impressionante massa muscular negra; não como o negro de pele humana, mas negro de total ausência de luz... E estava toda se desfazendo com a presença da luz, mesmo fraca da noite. Imaginava que seria assim... Esperava que fosse daquela maneira... A arma ainda estava em punho... E o monstro estava deixando completamente de existir; com aquela escuridão sendo lavada do chão de minha sala, e sua imagem física deixando de existir, como uma lembrança para pessoas que conseguem esquecer... Algo que não consigo esquecer, se poderia chamar de legado... a existência da criatura, ou não, em meu mundo... O demônio desaparecera completamente sem dizer suas últimas palavras sobre o mundo que queria criar, mas deixando claro em seu “desaparecimento”... que seria imortal... em mim. Eu ainda estava lá, em minha sala, em pé, sozinho, com uma arma na mão, com a qual acabara de atirar , destruindo um monstro


que se desfez em escuridão sem deixar marcas... fazendo sentindo ou não... sua criação e destruição... Eu ainda estava lá; como estou aqui... E só eu estava lá; como só eu estou aqui... Estava claro. Está amanhecendo...

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Alguns meses se passaram. O dorso somente visível a uma longa distância de uma gigantesca onda de acontecimento era o que eu podia ver nos poucos momentos depois... ao apreender o horizonte a minha frente na vida como podendo ser algo considerado normal... Mas obviamente não o era: é quando se aproxima a visão e o que se vê da onda, realmente formando-a, é um terrível e destruidor maremoto... Prolongo esse momento.... Andei com uma visão perdida por tudo mais que tive de prover após o meu episódio com a criatura. Por centenas de vezes parei no centro de minha sala, pela noite ou pelo dia claro, à procura de algum sinal do que fora aquele meu desafio: sobreviver não era tudo quando me restavam tantas dúvidas a respeito do próprio acontecido; revisto cada momento em que estive lá naquele cenário, não mais o reconhecendo, talvez: minha sala de todos os dias apenas... Logo depois daquela noite guardei a arma e o restante das balas, todas as trinta e nove, dentro de uma gaveta do meu guarda-roupa: seria um lugar reservado apenas para aquilo... Um objeto, uma evidência de que tudo que tinha acontecido, tinha acontecido... Mas nunca foi o suficiente olhar todos os dias para aquela gaveta e lembrar que o que estava nela era a arma; nem tão pouco também era suficiente aproximar minha mão lentamente da maçaneta, imaginando que talvez daquela vez nada haveria ali dentro além de qualquer outra coisa normal, como meias... revendo e sentindo novamente cada sensação daquela noite fatídica; até o frio do metal encontrando minha pele pela primeira vez; e enfim fazendo reluzir a real lembrança junto com o brilho do metal à luz, e tocando de novo o gelo da morte para ter certeza que ainda estava lá, junto com a lembrança... “ O que foi realmente que matei?” − Perguntava-me... E novamente ia do quarto para a sala, fechando antes a gaveta, para procurar mais uma vez, como tantas outras dentro do mesmo cenário e situação, a bala que matou a criatura... Se a arma ainda era real, a bala que saíra dela também haveria de ser, e teria que estar em algum lugar, pois se todo o corpo do monstro desapareceu... Olhava o chão, olhava a parede, arrastava móveis, e sempre foi inútil... Soube logo no dia seguinte que o tiro tinha realmente acontecido: vizinhos comentaram do estranho barulho; o som abafado e seco do disparo; tudo que descreve o que fora o tiro... mas a bala eu nunca encontrei. E a dúvida sempre machucou mais pois eram das questões sobre minha sanidade que tratavam aqueles rituais de visão, toque e procura... algo de tamanha familiaridade que apresentaram a uma nova palavra adjunta àquela estranha “perda”: obsessão. Não sabia o que tinha que fazer!... Ou melhor... havia esquecido! Que grandes perdas eram do meu interior estirpados tais sensações de uma chamada inconsciência que sempre releguei, para poder trazer ao exterior as estranhas criaturas da minha imaginação... e depois de destruí-la(s)... Perguntava-me, tentando reconstruir o que chamaria de vida, os normais, o que mais seria eu capaz de destruir vindo das profundezas do meu interior: as grandes e dolorosas paixões; o amor que restara em minha vida, por outra vida (Suzana); uma solidão sem fim que caminhava passo a passo para a terminal loucura dos dias de hoje... O que mais destruiria dos significados tão frágeis de minha existência, se, tão facilmente, conseguira destruir a minha criação... E ainda me restava um possível paternidade nunca comprovada: mais uma dor sem fim de uma eterna dúvida... Eram as fantasias finais de minha loucura. Mas o trabalho voltara a povoar meus dias, com um pouco propósito, como antes já o era; e com um menos estímulo: da lentidão dos dias sem a resposta adequada, tinha da falta de Joana no escritório mais um seu fator de desanimo... A nova secretária fora quem viera para ser algo distante de mim; ao trabalho, sem a simpatia... sem a simpatia; sem a eficiência, sem o talento e sem a dedicação de Joana... Por tudo que ela marcara, como pessoa, e da sua indireta influência em minha decisão anterior... Eram aqueles dias de aproximação do fim do inverno quando eu podia sentar sozinho naquela sala e apenas prover uma lista de tarefas para que ela, a nova funcionária, pudesse exercer seu devido papel... pouco me representado do quanto estava me afastando, muito além do que já era afastado: recebia os clientes prestava contas, faturava uma boa média, mas não construía o que queria construir do meu próprio entendimento naquele papel de homem ajustado dentro da sociedade. Uma suave aparência de respeitabilidade pelos já acesos cabelos grisalhos... aos vinte e três anos; uma séria expressão de todos os dias com poucas palavras e muita reflexão; uma estátua do que queriam que eu fosse... Mas já me abominava... O tempo da reflexão era apenas meu; muito tempo; e me servia para querer mostrar (procurar) alguma coisa que ainda faltava... Dia após dia... O amigo advogado Valter marcara o dia de sua visita naquele mês. Na intenção do que foi aquela última visita foi uma situação quase que totalmente normal: a nova secretária seguiu minha lista de serviços e trouxe, em ordem, todos os documentos e prestação de contas de sempre (mas não era Joana); Valter chegou com seu terno alinhado, sua pasta de executivo, e toda a simpatia e seriedade que sempre ofereceu-me em todos os momentos em que tivemos de


tratar sobre os negócios do escritor... O trabalho se fez bem, sempre o foi... Deixado isso claro na menção do que são ou foram todas as relações que tivera com o mundo exterior... Estava melhor, fisicamente, e isso Valter notou... − Você parece bem... − E...estou. Eu acho... − Sentou-se, e eu logo em seguida. − Vejamos os negócios. − Ele abriu a pasta e tirou seu mapa de controle. À sua frente estavam as três pilhas de documentos: os investimentos que deram prejuízo, os que deram lucro (essa maior), e os extratos bancários... O advogado fez então seu trabalho, o qual faz muito bem: proteger seu cliente... Enquanto olhava com atenção... − E o escritor, como vai?: − Bem... Ele até mandou um recado para você... (Analisava a segunda pilha.)... Quando você terá um novo trabalho para apresentar; já faz algum tempo desde o último... − Em minha cabeça havia apenas uma criação para apresentar; e que na verdade fora o que gerara essa outra, a qual Valter se referia... Estava inacabada, sabia disso pela primária pretensão de sua utilidade, mas não era mais capaz de completá-la até o fim no papel... já que de certo modo havia tomado vida, e eu havia destruído... − Na verdade, eu tenho sim... um novo trabalho. − Que bom! − Olhou para mim quase sorridente... Nunca imaginária a que custo saíra essa nova obra... − O escritor vai gostar de saber. − No próximo mês, quando você vier aqui, eu trago para você levar para ele... − ... Isso é bom... − Curiosa interdependência de nossas obras de arte, além da literatura, pois me sentia compelido a querer vê-lo após todos os meses de ausência; queria saber como ele me veria agora, como interpretaria um de seus personagens... como olharia nos meus olhos para contar sobre o filho... Ainda desejava participar... − E o filho de Adélia... Nasceu, não foi?... − Ah, claro... Um menino... (já estava no meio da terceira pilha) − “Pensei em ambos os nossos legados devidamente criados, e enlaçados pelas estranhas forças da imaginação... Somente que o meu legado parece que destruí... com certa facilidade, devo admitir, pelo trabalho de anos que foi criá-lo. “ Em minha mente eu começava a conceber que o que eu realmente havia destruído era uma parte de mim, e não apenas um monstro... Voltei a pensar na criança: − E quando foi? − Dia 12 de junho. − Peguei o calendário que estava sobre a mesa. − Então... ele deve estar com mais de dois meses agora. − Continuei a observar o calendário. − Por aí... − Valter concluía sua vistoria nos documentos e eu continuei a olhar o calendário... mesmo depois de todas as desventuras porque passei, ainda me restava uma estranha recordação do que seria uma data no calendário que olhava com tanto interesse: faltava pouco mais de um mês para aquele dia o qual me lembrava ser algo de importante, e insistente, em minha vida durante aqueles quase dois anos, os últimos quase dois anos... Mas de uma certa maneira preocupante me passava a razão, a origem de tal importância, e isso começou a me assustar: a curiosidade em descobrir a origem... e fora como tudo começou. Súbita ilusão de paz: o momento que vivia... O advogado se foi, após as indumentárias amigáveis de sempre, e que todos os negócios revistos e em ordem, prometendo voltar no mês seguinte, e já acompanhado do escritor... Podia esperar. Mas estava novamente sozinho no escritório, e a imagem do calendário ainda trazendo velhas antigas figuras que queriam transparecer a realidade da memória para se tronarem reais no presente... Foi uma conjunção de pensamentos grandes demais para eu poder evitar a dor daquela lassidão de silêncio e dúvida a minha volta: uma pontada tão forte em minha cabeça, que me fez arfar agonizante num segundo e no outro recordar do crânio da criatura se desfazendo na escuridão: como uma parte minha amputada, a qual ainda podia sentir a sua dor latejante em alguns breves momentos de delírio... Mas a dor era uma lembrança mais clara que desejava vir... Como em todas as outras vezes em que o interior quis se tornar exterior, e veio junto com uma torrente de dor e sofrimento... Faltava tão pouco... Os caminhos da normalidade me faziam querer pensar em Suzana, o que realmente representa a sua ausência, seu corpo e sua vida: alguém que poderia ser tão próximo; uma pessoa que se tornou tão distante, tão tristemente afastada, na mesma semelhante dimensão do que é meu sentimento por ela... Nada nunca mais seria o mesmo... Ainda penso naquela despedida: um reencontro que foi para ser até o último momento o último momento... Após as incontáveis vezes em que ansiei vê-la e não a vi, não a senti... apenas outro ser humano, mas aquele que de tanto amor somente me trazia a dor de apenas existir na imaginação; o que fora nós dois naquele abraço, e foi real... E ela era real. É real... Porém as vozes que me surgiam nada eram de normais pelo modelo de uma vida para todos (leitores): o que visitava minha mente eram as vozes do monstro e do escritor; quase em uma só; falando comigo como a comum expressão de uma consciência, mas tão autônoma quanto outro ser pensante... Esse parecia ser o pior problema: tudo em mim mesmo... “ O filho emergido das mentiras do escritor e das minhas fantasias... E ele era real, e quem pedia por responsabilidade a seu respeito.”


“ Restar-me ainda uma paixão... E uma voz vestida de lembrança por não acreditar mais em coisa alguma... A verdadeira fraqueza de um homem sem fé.” Esses eram os pensamentos, e o ruído dentro da cabeça permanecia, com uma força maior de algo que já muito conhecia... Não poderia suportar novamente o que aqui está... À noite, em casa, preparava aquela minha última obra... O que os olhos do escritor poderiam ver dentro da escuridão?... Aquilo que ele sempre procurou decifrar ao ver em mim tal fabulosa espécie; talvez algo mais que ele próprio teria imaginado; talvez seja uma história que ele consiga completar melhor do que qualquer um; talvez nada... O cenário era a minha sala, o mesmo local de onde eu provera aquele trabalho que agora se tornava uma “mensagem” para o escritor, e para todos que se interessassem em ler; o que eu via era a lembrança do monstro tombando e desaparecendo em nada... no mesmo local onde naquele momento eu pisava: penso no quão estranho sejam estes absurdos que atravessavam a minha cabeça... a cada instante que fazia uma coisa comum: a confexão de “um livro”. Estava terminado... ao menos a minha parte. Voltei a olhar a gaveta em meu quarto, mais tarde. Tornei a olhar a arma; toquei-a novamente e senti a sua “pele” gelada fazer a minha ter um leve choque térmico... Era como uma segunda vida que se tornara involuntariamente presente no meu dia-dia pós destruição da criatura: a sensação de algo que faltava, e de algo sem resposta que ainda crescia dentro de mim... E aquele arrepio, por mais natural que fosse quando do encontro de pele humana quente com metal frio, parecia ser o seu pequeno, mas significativo, sinal de presença... Não conseguia ainda me reconhecer; soltei a arma, fechei a gaveta e fui dormir. No meu sonho vieram então os pesadelos: “Da fumaça que se dissipa da visão de homem completamente cego por enxergar apenas a si mesmo sempre... Era eu. O que eu vejo é uma rua. Está a noite, e semi-iluminada por poucas lâmpadas azuladas. O ambiente é completamente úmido, como uma madrugada prolongada e insone somente para aquele que contempla a mesma rua. Sua extensão total não é alcançada por minha visão. Há prédios muito escuros, com a aparência de uma semelhante decadência muito vista em estágios de futuros incertos de nossas grandes cidades: partes abandonadas, coisas feias deixadas para trás em nossa história para nunca mais serem vistas no novo e anti-séptico presente. Pedaços sem vida de muitas vidas que apodrecem na escuridão longe dos olhos de todos... Eu ando devagar por essa rua, e encontro nela a similaridade com o meu interior, tão triste, vazio e solitário como a lembrança que tenho de mim mesmo no mundo real... É uma suave, mas evidente, descida; e é a queda, o que posso perceber também em mim. A umidade fria que respiro vem junto como o odor da podridão em todo lugar, e a escuridão é justamente a única coisa que parece se ajustar aqui: é o lar do demônio... Todo este lugar... Continuo a andar, quando no mesmo instante estou em frente de uma porta: traz-me uma recordação, e logo eu sou informado do que... É Suzana quem surge e se apresentam novamente as emoções daquele nosso reencontro: mais uma vez, como a melhor parte de mim, restante apenas quando eu a abracei e tive do amor a sua melhor resposta: algo do desejo da fantasia relembrado como realidade, e estava lá... por alguns minutos... Mas o tempo não importa nesse mundo, e no momento seguinte eu estava dentro da casa, mas não era a casa de Suzana... Era minha sala que via e revia como num passar de milhares de páginas de um livro, somente que esta sendo sempre a mesma... e o que via no final era a criatura caída, lá, no meio da sala, em meio à escuridão, como eu havia feito: destruída; e eu estava com a arma na mão. Uma cena imóvel apenas para a minha apreciação: pude notar, além do que sempre notara, que ela não possuía sexo; sua pele era aquela couraça negra, com os músculos protuberantes bem alinhados, mas entre as suas pernas não existia absolutamente nada. Seu tamanho era algo que ainda me impressionava: devia ter bem mais de dois metros de altura; mãos e pés também gigantescos... Podia imaginar como sendo uma forma escultural de ser humano: forte e poderoso, e sem o sexo para afertar-lhe os julgamentos referentes às diferenças entre homens e mulheres... Porém com tanto; quase admirava sua “perfeição”; eu fui capaz de destruí-la... “NÃO FOI!!!” Vinha-me a mensagem... Quando novamente estava de volta à rua: alguma coisa novamente familiar me virou o pensamento; para pouco antes sobre a criatura, e o que eu parecia abominar tanto nas pessoas para ter imaginado tal monstro, mesmo que depois a tenha destruído; era um lugar onde eu já estivera antes... “Perfeição...” Foi o que pensei em um segundo de reflexão antes que tudo começasse a se desfazer com velocidade, e várias novas imagens surgissem a minha frente...mas todas conhecidas: a arma na gaveta e seu brilho frio; meu reflexo apático no espelho; o pôr do sol; a rua novamente, só que em alta velocidade, como de dentro de um carro; indigentes miseráveis povoando cada espaço daquele mundo escuro; e no fim a tela azul para onde tudo se convergia, com o mostrador brilhante trazendo apenas uma breve e conhecida resposta: a data... O que eu mais temia em mim mesmo, de mais comum que se tornara: a obsessão por uma lembrança de origem... Aquela data... Qual era a sua resposta?... Fui então mais longe, entre pesadelo e consciência, após me surgir apenas e somente a dura escuridão: o que via (não via nada) era o meu pensamento, do meu desespero naquele momento...” “Qual era realmente o legado: a obra ou a criatura?... Ambas minha criações. Porém era a origem desse legado o que eu mais temia, por ser tão intimamente ligado a mim... As únicas coisas fora do contexto eram a criança e esse já era do escritor, e Suzy, que não era minha: coisas boas... presumo... Talvez a origem fosse apenas eu; uma pessoa; alguém que se deixou ser como é... Ser eu mesmo não é uma fácil tarefa se eu podia admitir tais coisas como concebíveis na realidade, e ao mesmo tempo desprezar os meus instintos mais naturais e destruidores: quando vejo que tipo de “perfeição” desejava conceber para o mundo real a partir de minha imaginação... “Não já


haveria ódio suficiente no mundo, criatura?... Você tinha que querer o senhor de tudo?... Eu lhe destruir!”... Então: o que tinha eu ainda que realizar?... A voz da criatura sempre me vinha para responder: “Você não pode viver sem mim!”... O que havia destruído, afinal? − Numa dolorosa pergunta.... E minha imaginação não sabia mais como responder... Queria ver Suzana, acima de tudo; o quão normal isso não era?... Esse desejo... Mas meu despertar me transportava para outro lugar...” Refiro-me a pedaços desse sonho: a arma, a criatura em minha sala e o pôr do sol... Após... Nesse momento, presente, da história... Depois... Acordei com somente a profunda tristeza (não conseguia me reconhecer),o cansaço e o desejo de ver Suzana novamente... Por tudo que sempre parecia ter passado naqueles últimos minutos de sono, receando acordar, como que já nadando uma grande distância sem alcançar o solo, num meio de um oceano de sofrimento... Apenas aquele pensamento feliz que resgata o melhor sentimento do coração, e faz querer continuar... Mas naquele dia, mais um dia, e não haveria mais outro, não consegui falar com Suzy, de modo algum; como que cumprindo o que já havia previsto e sentido: só me restava a memória daquele abraço... E isso era bom.... Não conseguia esquecer: fosse como fosse; ou como ela era realmente; ou como sempre foi... para mim. Apenas pensei em meio a tudo de normal no exterior... “Só resta você agora. (Sempre foi só você!) E é sem dúvida a mais difícil despedida. Tenho que me afastar. Não há mais nada de bom que eu possa oferecer. Só o que me resta é o amor por minha arte e por você, ambos entrelaçados num único sacrifício, semelhantes até na origem talvez... Minha vaidade pediria que não chorasse por mim, mas acho que sou quem devo chorar, pelo menos por hora, pois quem perde mais sou eu: um martírio de mim mesmo para o que o bem prevaleça na arte: Escreveria até o último momento e pelo último momento, que até parece já ser este, pois com quanta dor no coração luto com meu corpo e razão para não chamar este grande erro de um grande acerto, ao qual me trato por te dizer... que me afasto... para que o mundo possa ainda viver. E espero que viverá, pois tem alguém como você... longe de minha megalomania.” Pensamentos perfeitos de um escritor que não escreve mais: por medo de criar a realidade... e já está lá; por aí ; à vista de todos... “Apenas adeus, Suzy... Não sei ao certo no que perdi a fé ou o compasso da realidade, mas acredito no pouco que sinto acreditar, e às vezes sem saber no que falo: meus pensamentos não são claros... E acredito no meu amor por você.” Não sai de casa nesse dia. Mais dias se passaram (normais?), e a data de hoje se aproximando com a inexorável força do tempo... Trabalhava, andava, dormia, ficava em casa e vivia... Poderia começar a pensar uma solução definitiva para um problema tão cheio de paixão. Não é realmente complexo quando tratadas as conseqüências de cada ação de cada um; nesse ponto é realmente simples!... Mas o que constitui a necessidade é de uma ação pensada que cause o impacto definitivo (uma conseqüência que faça compreender completamente a razão). Porém o que surge como maior obstáculo é justamente esta ação pensada, que nunca ocorre no coração partido e impetuoso: causaria muito menos dor morrer com uma estaca no peito do que ver a conseqüência se abater no coração alheio com quanto ou mais impacto o qual se queria (a solução definitiva), que fulmina o sentimento de uma só vez; ou melhor, a pessoa que o possui; deixando no vazio do mesmo sentimento uma dor tão profunda, que faz-se desejar o fim, e enfim a construção de uma nova história, que contém somente o restante de uma imagem do bem, apesar da dor... E pensaria muito mais desde então, enquanto o dia de uma obscura revelação se aproximava: hoje; não somente sendo as razões de uma espécie de pessoal profecia, mas a apresentação de algo que eu sabia não poder suportar diante de mim: de uma familiaridade corrente em toda esta história, mas que precisava ser detida em seu final, para que o resto de minha sanidade ainda fosse capaz de fazer a coisa certa... mesmo sem parecer ser aos olhos de todos os outros. O que quer que fosse. Mas de fato só sentia pela razão que Suzana teria... pois mesmo do escritor: seria algo de esperado, de sua ação sobre minha ação: a decisão tomada em nome da “arte”... Já que tinha mais haver com a imaginação. Para todos... somente a ação seria real. E por isso Suzy iria sofrer... E por essa razão, somente essa razão, eu sentia... Aproveitei um desses últimos dias antes de hoje para ir ao escritório levando aquela minha última obra: pensava em todas essas coisas últimas com a certeza de tudo se tornar definitivo e claro... hoje. Porém minha definitiva verdade e clareza ainda estavam retidos em algum lugar entre aquele momento e agora... Somente me revelavam os passos que teria de dar a cada passo que eu dava... Deixaria, como deixei, o mencionado trabalho lá no escritório para que pudesse entregá-lo ao escritor, quando ele viesse... Imagino o quanto ele não poderia realmente absorver da história para a tornar completa... mesmo sem a minha ajuda: a autoria do que está escrito não seria tão importante quanto a abrangência da obra diante de sua intenção, que desde o começo fora encontrar uma origem... a qual ainda não me foi esclarecida. E o que vem depois disso já se aproxima. Via as pessoas da empresa, enquanto ainda permanecia lá, e sentia a sensação presente do que seriam realmente últimos momentos para aquelas pessoas; algo de nostálgico e fora do contexto, como que visto à distância, através de um telescópio: pessoas, apenas pessoas. Deixei o envelope com a obra sobre minha mesa, com o nome do escritor bastante destacado, para que não esquecesse de levar quando me visitasse... A visita está marcada para o dia 26, como sempre; e imaginaria, ao olhar a agenda com o compromisso, que gostaria mesmo de vê-lo decifrar aquela história:


um sopro de compreensão para mim... No final do dia indo embora... Com todas as imagens conturbadas de alguém que já não pensa com clareza; quase apenas admirado ao viver em tanta dúvida sobre o pouco que me resta; assistindo as pessoas à minha volta e revendo-as completas na imaginação... mas todas dentro daquele triste cenário desolado do pesadelo: a rua úmida, os indigentes; cada pessoa à minha volta se tornava a identidade de um daqueles horrendos e tristes indigentes, vivendo no mundo escuro de minha atordoada criação... Sentia a tristeza no coração e a incerteza dos dias que restavam. Naquela noite, há duas noites atrás, dormindo o mais calmo dos sonos profundos, podia me ver na suavidade de cada lembrança que me voltava que parte da resposta sobre minha vida estava por emergir no mundo dos sonhos... Tudo que já havia imaginado estava lá presente: uma representação emoldurada de tudo que já tinha pensado, criado e vivido: um sonho bom... de notável amplitude e realismo; algo elaborado por mim mesmo, parecia ser, para ser o prólogo da realidade que viria a seguir... Da suavidade das imagens anteriores vieram enfim as sombras... da rua... Minha visão consciente continuava a andar por aquele interminável vale de prédios escuros e semi-destruídos. A pista que se estendia rua à frente no infinito era de uma dureza e umidade enegrecida e pegajosa, como um duro asfalto recém colocado, só que frio. A umidade e o frio do ar eram de uma fétida similaridade com as ruas dessa minha cidade quando a coleta de lixo não é feita e uma chuva torrencial passa e espalha toda a sujeira por todo lugar... Mas tudo é escuridão; há apenas a luz azulada dominando todo o ambiente com frieza e sem demonstrar nenhum sinal de alegria ou emoção. O céu também é apenas uma pesada escuridão: um teto denso e imóvel de absoluta opressividade ... Por este, então eu caminho... Enxergo à minha direita uma fachada de construção bastante familiar: são duas grandes vitrines completamente estilhaçadas e no centro uma porta também destruída... É o que fora a loja de armas onde havia adquirido a minha. Da escuridão de dentro do estabelecimento começo a ouvir um ruído; é o barulho murmurado de gente aglomerada. Então, observando de uma certa distância da fachada da loja, passo a ser capaz de ver pequenos vultos emergirem para a luz azulada e fria da rua. E no momento que, tomando as saídas da loja para a rua (porta e vitrines destruídas), posso perceber que são todas crianças, semelhantes as que vira à vitrine da loja quando fui comprar a minha arma, mas todas com os brinquedos dos seus sonhos nas mãos: armas, dos mais diferentes tipos e tamanhos, prontas para o final assalto. Seus rostos são marcados e envelhecidos, cheios de cicatrizes de tempos incertos sob o poder de outros: os novos hospedeiros de uma eterna vingança. E suas expressões não são mais as de inocentes crianças: são criaturas de expressão fria e raivosa, sedentas por práticas tão violentas quanto as que posso imaginar; pesadelos apocalípticos de todos nós realizados pelas mãos das sofridas, e cruéis, crianças de hoje... amanhã. Elas não me vêem, apenas saem às dezenas dos destroços da loja e começam a andar pela fria escuridão da rua que é o mundo... desaparecendo para cumprir suas atrocidades, seus desejos reprimidos de violência e dor, suas pessoais e íntimas brincadeiras... Volto-me, depois de seus desaparecimentos pela escuridão, para a escuridão da loja, de onde eu sabia que viria mais... Alguns segundos... − Há muito mais de onde estas vieram...E haverá muito mais ainda... depois! − A voz não me podia ser mais conhecida... e esperada, naquele cenário... Era a voz da criatura... vinda da escuridão... − Então é este o meu legado, criatura... Um mundo assim, só meu, criado por você?... − Não. Na verdade ainda não... Este pequeno pedaço de paraíso e estas crianças são apenas uma amostra do que você pode fazer. − Mas eu não farei! −Você não tem escolha... − Veio caminhando com os passos silenciosos de quem desliza pela escuridão de um eterno pesadelo... Em mim próprio: o medo de uma descoberta já pressentida há tanto quanto poderia me lembrar sonhar a realidade.... Mostrando sua face na fria luz azul da rua, para o meu já gasto lamento sobre as revelações do dia-dia: era a mim mesmo que eu via saindo de dentro da escuridão da loja... Com a minha expressão... de quando não consigo me reconhecer. Eu... o que o monstro sempre foi. −... Você não pode viver sem mim!... Despertei. Despertar com a sensação cortante; num peito arfante de difícil e apressada respiração, com o suor frio escorrendo na cara, parecendo estar acordado dentro de um pesadelo; de que uma batalha estava por vir, talvez já perdida: um mau tempo, um mau momento, para um novo dia... Mal consigo acreditar que isso aconteceu ontem, em minha casa, no meu quarto, semi-erguido em minha cama, com o dia amanhecendo ao meu redor. Agora é hoje...

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O dia de ontem estava começando a terminar quando eu vim para cá. Este lugar é chamado de morro de cristo. É uma suave elevação que no seu pequeno e arredondado ápice faz privilegiar os contempladores dessa visão com o


encontro do mar aberto que banha toda a cidade, com a baia que penetra um bom pedaço de continente, tendo no seu centro uma grande ilha turística. A imagem se assemelha com a descrição de um sonho sonhado por Deus em seu melhor humor e natureza, se desprezando todas as modificações do ser humano nessa perfeição de ambiente: os aterros na baia, a poluição do porto , o esgoto no mar e essa pequena e simbólica construção em que me recosto para assistir um sublime alvorecer... No alto do morro fora erguida não sei quando e não sei por quem ou porque, uma estátua, com um pedestal; é a estátua de corpo inteiro e em tamanho natural humano de um cristo: a cor da peça é branca e o pedestal onde a mesma descansa em pé é negro, com mais de um metro e sessenta centímetros... Com uma mão e braço estendidos a meio caminho com a vista do horizonte, o Cristo está com a expressão virada para justamente onde o mar aberto encontra a baia, abençoando, esta é a intenção , tanto o crepúsculo quanto o alvorecer... fazendo dos opostos sinais da luz do dia o perfeito encontro entre a beleza deste lugar e todo começar e fim de um novo dia... Somente restando entre... a escuridão. Sua posição, Cristo e morro, é estratégica, pois capta os dois espetáculos de luz supra citados, de um modo que: no entardecer, virado para a baia se vê o sol se pôr no oeste, pois sendo uma baia, está virada para dentro de continente, que é banhado pelo oceano no leste, onde, no mar aberto, o sol nasce para o novo dia... Todos os dias.... Escolhi este lugar por duas razões: a presença da criatura nesse mundo sempre tinha sido dependente de um fator físico, presente no meus pesadelos como livre ambiente; a escuridão, que fora constantemente uma abertura nas fontes luminosas da realidade para a sombra do monstro penetrar e se fazer presente... Segundo podia entender, deveria estar por estar na presença da escuridão dessa noite, para enfim poder atravessar a ponte do alvorecer e romper esse dia que surge, com sua completa e final transgressão: o demônio viria a vida, nesta data, enquanto a luz do dia que surge revela a infinita escuridão do distante presente futuro... Via-me como a condução viva para essa aparição; já testemunhando sua carne, e cólera surgindo através de minha imaginação, e por isso precisava acompanhar toda a trajetória de luz e negritude, antecipando o despertar do monstro, para poder impedi-lo... A primeira razão é por poder ter assistido o pôr-do-sol de ontem à noite, daqui, e do mesmo local, apenas mudando de posição e a direção dos meus olhos, estou podendo ver o sol se erguer vagarosamente no horizonte a mar aberto... percebendo a cada instante o poder de minhas decisões e pensamentos... A segunda razão é a perfeita estética deste local para o que pretendo realizar; visão esta, deste cenário, anteriormente vislumbrada por uma das obras do escritor, pois presa em minha imaginação e lembrança com o arpejar de uma hipnótica música, que presa à fabulosa história que fora criar, do escritor, faz da imagem descrita em detalhes de um corpo quase identificável, dilacerado e já semi-decomposto, tombado aos pés de Cristo... uma das fixas figuras do mórbido cenário dos meus pesadelos... Pois esse é apenas o começo da história, e somente no final se vê que há muito mais... .... O palco esteve sempre pronto, só me bastaria atuar a minha chegada, e da criatura. Quando aqui cheguei, trazia o que meu coração carrega, nos mais pesados dos fardos sem inocência, nesses últimos eternos 23 anos de vida: o que imagina de si mesmo uma pessoa em plena queda de valores e de fé, fazendo viver em uma nova forma de vida: vil e sem moral... tudo aquilo que vem de uma grande frustração por estar vivo. Em cada passo dessa leve subida eu carregava comigo todo o peso de uma lenta, mas inexplicavelmente dolorosa, derrota: ao não poder mais me reconhecer na realidade, percebendo o que de fato iria acontecer, dando os finais passos de uma contínua descida... mesmo sendo esse topo de um pequeno morro. Somente na paz e na beleza desse lugar, a essa hora do dia, tendo a companhia apenas da minha voz do interior... O pôr-do-sol se foi lentamente; cada pequeno fio da luz alaranjada do crepúsculo trazia em seu redor as aberturas visíveis para a escuridão; pouco tempo restante então de luz, desaparecendo por traz do horizonte do interior da baía, o sol vibrava o seu melancólico adeus de esperança para a minha úmida retina... com a sensação da angústia que mata os bons sentimentos em nome da mentira, a tristeza em meus olhos que vinha para lembrar o quanto a criatura era “feliz” na escuridão... por ser como é, e o mundo se tornaria o seu lar... sem mim... Com o sol sumindo foi quando a primeira lágrima desceu; o medo estava presente; e eu já começava a consumir a cerveja que trouxera comigo: 6 latas ao todo... agora todas vazias. A noite atravessou comigo o fascínio desses pensamentos, numa crescente falha de desarmonia até o fim pouco pacífico: “A vida possui somente um alvorecer e no entanto infinitos crepúsculos: eternamente a observar o horizonte, todos os dias, a espera da grande escuridão... Estou presente num último alvorecer que recolhe em si mesmo o final de longo crepúsculo: o meu... Quase cinto por ter em mim mesmo de vivo o amor e a criatura; deste anterior que me faz querer viver, o último tira as energias para se alimentar da loucura e continuar a existir... E esse é o momento que não pode ocorrer: pelo amor que eu tenho ao mundo... “Suzana, no meu olhar que permeia a escuridão a procura de um leve sentido para tanta dor, apenas vejo em você a mesma imagem do melhor que me resta: o que deve prevalecer...” No meu árduo caminho de pensamentos e sensações perdidas, com uma somente certeza da aparição do demônio no mundo a partir desse dia que vai surgir... A noite se estende..." Mas era de minha teoria mas possivelmente racional, e não das minhas vozes cheias de medo, ressentimento e dor, que vinha o que imaginava ser o momento exato para a disputa: Um espaço territorial que significaria não apenas


um sacrifício, mas uma corrente de imensa tensão que tanto poderia me libertar dessa loucura, como também poderia lançar todo o mundo numa insanidade sem fim... Pode... “No amanhecer seria quando a criatura desaparece, quando o demônio é sobrepujado pela luz do dia... mas permanece aqui, mesmo sem poder ser visto, pois com sua voz se faz presente para conseguir querer viver além de mim.... No que se torna o segredo desta data de revelações; como sua data de renascimento em mim... Não sei! Talvez consiga; mas será por mim mesmo que tentarei expurgá-lo. Ao ouvir e sentir a presença dentro de minha pele, em cada parte do meu corpo que clama por querer continuar a viver... Retorcendo-se em mim; esmagando minhas lembranças dos sonhos de felicidade e trazendo a ira por culpar o mundo inteiro por estar aqui... forçado a ser, a acreditar, que é em min que a dor se faz presente e forte, querendo sair e transformar, em todos, as mesmas peças de sofrimento que a mim me causam no interior tal desprezo e ódio... pela vida... Imagino se todos se tornarem assim... Ou já não o são?...” Já estava sentado na direção do alvorecer; não sabia que horas eram; meus olhos estavam perdidos na escuridão do horizonte negro do mar aberto; pouco me importava a cidade logo atrás de mim, tão perto e tão longe; ou mesmo os perigos comuns da noite metropolitana; as luzes não mais existiam; apenas as batidas violentas do meu coração... e finalmente a voz grave e “no” interior... − Flagele o mundo com sua cólera; esse é o seu desejo mais primário... Por tudo que não realizou em sua vida, longa demais a essa altura, deixe que eu realize através da dor dos flagelados de sua vingança! − Não!... Não!... Ninguém tem a culpa por mim, e meu desvio da realidade; talvez tenha sido o que sempre pedi para mim, cercado de traição, sem amor e sem perdão... Prefiro fazer a vingança do mundo... em mim... − Palavras fortes de alguém tão contraditório... Nada teve sentido em sua vida até eu aparecer e fazer você sentir todo o prazer da cólera e da dor de terceiros... − Imediatamente recordei das lágrimas de Silvana. E logo em seguida do ataque sobre a criatura, em ocasião de uma de suas aparições, quando a raiva me deu o poder e a coragem suficiente para avançar sobre ela, quase a fazendo cair.... mas não... − Isso mesmo... Lembre-se de como foi capaz de destruir a sua própria criação... Você pode fazer muito mais... se me deixar assumir o controle! − Minhas mãos tremiam e transpiravam, na verdade todo meu frágil corpo; sempre adorei transpirar. O calor me faz sentir com a vida borbulhando pelos poros e escorrendo junto com a vitalidade da carne; nestes instantes em que transpirar e tremer significam tanto a vida quanto a estranha dúvida da mesma, tirando-me um pouco do prazer que sempre tive, mas não o bastante para querer perder a sensação; é quando procuro então tentar perceber entre os meus pensamentos e as palavras da criatura a fonte dessa minha insanidade, que sinto perder: o suor, o tremor... Minhas mãos procuram no meu corpo a pouca razão; por eu achar que tinha que estar aqui para esperar, e combater, o monstro... A mão direita encontra a arma nas minhas costas, na cintura da calça, oculta da sensação, mas fria o suficiente, como sempre desde o seu brilho dentro da gaveta, recordo, para se fazer presente; eu a empunhei... − Perfeito!... Você já conhece até o caminho... Deixe a emoção da ira tomar conta de você novamente....É a nossa natureza não o que temer, se todos forem seus inimigos, pois não haverá mais amigos para traí-lo...Deixe a cólera fluir e suas mãos pararam de tremer; será firme e seguro a cada passo... E não será mais um fraco apaixonado pela vida!... − Não sou fraco! − A mão pressionava o punho da arma com força; a influência começava a se espalhar; e o meu lamento tentava fluir pelas sombras da loucura para lembrar-me que aparente fraqueza era a melhor arma, melhor que a arma, pois era o que o demônio mais despreza no ser humano: a fraqueza... “Um escritor é tudo que sou. E disso para um grande renascer, o monstro se criou deste fabuloso poder... Restando pouco de mim que ainda seja capaz de vencer... Vive dentro de mim para todos os dias; e gosta de tudo que vê; pertence a este mundo de horror: onde antes era a imaginação, agora é a verdade (o terror), e ele gosta; pois estes dentro, como este mundo, agora fora como a concretização de pesadelo sempre vivo....” − É fraco por rejeitar a vaidade em sua aparência preferindo, envelhecer a amadurecer... Por se arrepender mais fantásticos pensamentos: indo tão longe ao ponto de sofrer pela minha destruição ...” Você é sua própria criação: o que você destruiu foi apenas a imagem do seu interior mais capaz de suportar essa nova era... É fraco pela piedade que tem pelo mundo... Por Joana... por exemplo. − Cale-se... Não quero ouvir tal absurdo! − Este mundo foi feito para aqueles que suportam seu horror!... Ela, como todos não foi capaz de suportar! − Levei minhas mãos até o rosto; o duro metal da arma se confundia com minha umedecidas palmas; contorci-me entre angústia e ódio por tudo aquilo em plena vida e consciência dentro de mim, desejando ter mais algumas lágrimas, assim como tempo de consolo, pelas vidas que deixei para trás... mas faltava-me muito mais ainda por lamentar... “Coração sem piedade, que mais cruel é com seu criador... Perdi um grande amor... O amor pela vida; a consciência teme por isso e o corpo responde...” Meus cabelos são grisalhos deste tormento; meu rosto é cortado pelas rugas de um tempo que nunca existiu; meus pulmões inflam dolorosamente; meus olhos querem se fechar; estou muito cansado...


− Sinta o desprezo do mundo ao redor, criador... (descanso as mãos no colo, e me atiro em ver o nada no horizonte, a voz...)... Cada alma que dorme escondida; cada cor; que teme na vigília; veneradores de uma falsa beleza de normalidade... Nenhum mais pode conceber o que você criou... São sofredores que fazem sexo e sorriem, para esquecer que sofrem. −Talvez eles sejam felizes, criatura... Adoraria estar fazendo sexo e sorrindo agora... − Com Suzana?... − Não permito que pense nela, monstro!... − Sempre foi ela quem te enfraqueceu! − Sempre foi meu sentimento por ela que me deu forças! − Um paradoxo para quem tão facilmente se embebeu nas fontes do ciúme: isso o deixou forte, criador?... −... Sou humano...criatura... “Meu corpo quer viver: eu posso quase sentir minha libido e o cheiro do ozônio exalar pelos meus poros carregados de suor e adrenalina; o medo e desejo juntos... nas lembranças do passado. Mas há na mente a sua presença repressiva: tudo que oprimi tende a causar uma enorme tensão, e eventual explosão que descarrega toda pressão acumulada... É uma guerra sem vitoriosos, da criatura ou em mim, para a persistência de quem deve permanecer está vida: insanidade contraditória, que me permiti pensar com clareza sobre minha própria consciência que se esvai à medida que o dia surge...” Posso já divisar a suave claridade azul no horizonte; a segunda lágrima surge muito tempo depois que a última cerveja se fora; todo sabor amargo da vida parece tomar a minha boca; a arma em minha mão tem o seu papel definido nessa tragédia sem título; muitas lembranças me cortam a alma enquanto o dia de hoje amanhece; e no próprio metal da arma observo o meu reflexo distorcido de um rosto irreconhecível: de uma criatura já não pertencente a esse mundo; com uma fria lágrima que o percorre carregada de todas as recordações dessa história... “A vitória de uma vida em paz, que chora triste pelo fascínio que tem pela dor e pela violência: termina por amar a tristeza e a agressividade quando no amor de si mesmo só resta olhar ao redor para ver, muito além da beleza, o horror.” − É hora do alvorecer, criatura. − Alvorecer para uma eterna escuridão! − Beleza é o que vejo! − Horror é o que vejo! − Não pelos meus olhos... nem por minhas mãos − Sinto o gosto amargo em minha boca misturar-se com gosto metálico do cano da arma; os últimos sabores de uma vida que há muito tempo havia perdido a doçura... O calor é maior; a luz está mais amarelada; o repicar do coração provoca os soluços de uma eminente vitória do monstro... Minha língua se escorre de saliva em excesso pela presença do metal estranho. Meus olhos me vêem aos poucos sem saber se realizo minha arte até o final ou não.. Da escuridão a criatura se ergue dentro de mim... para um mundo, e pessoas, que são indefesas... O forte rancor me vem... “Tenho tanto (desejo), mas não anseio matar ninguém... Quem eu poderia (então) matar além de mim mesmo...?” − Uma atitude bastante egoísta! − Sem dúvida... Mas antes eu mesmo do que o mundo inteiro se tornar o que irá se tornar... − ... Onde seríamos o rei... O Rei da Escuridão... −Não ... Meu polegar direito finalmente se flexionou para dentro contra o gatilho...

O Meu Fim

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DEPOIS

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“Um dia eu vi um homem em farrapos... Quão pobre e miserável um homem pode ser?... Eu lhe daria a hospitalidade e os segredos de sua arte, e um anjo então me tronaria por salvá-lo de seu próprio inferno...” Esse poderia ser o epitáfio de um homem que viveu intensamente por sua arte, mas uma tamanha utopia não enxergar sua profética insanidade: bastaria ler qualquer uma de suas obras (ou somente essa) para observar o horror do dia-a-dia em pesadas palavras de quem temia acima de todo, se tornar a sua maior criatura... O depois foi sempre o que ele mais temeu... Começava a realmente gostar desse mundo como o tal é... E isso o assustava, pois era como ele sempre imaginou... Tinha que destruir quem o criou: esse mundo de tanto pavor... Acreditava... Estava dentro dele, e por isso, somente nele mesmo alcançaria essa destruição... Sem depois... Mas para os vivos ainda existe o depois... A bala de ponta oca explodira seu crânio e fizera-se expor mais que os restos de massa encefálica cinzenta, manchando o pedestal do Cristo; fez-se surgir uma grande dúvida sobre o homem que agira contra si mesmo, aparentemente sem propósito... Suas últimas palavras são as resgatadas por este autor, que pouco compreende, mas pode ver que algo de interior sentido houve em seu ato dito louco... Suas palavras não eram mais frias e tristes: eram de uma infinita contradição que levava dos dois lados: criador e criação; a marca de quem tem pouco controle dos próprios atos, e age por paixão, com a razão perdida entre agir normalmente todos os dias, e subir no morro do Cristo para explodir a própria cabeça com um tiro de revólver sob a luz do alvorecer. Céu azul e grama verde abençoaram o dia do enterro. O corpo fora liberado após 24 horas. A família, obscura família, o preparara para a cerimônia de caixão fechado: seu rosto ainda existia, mas apenas numa pequena parcela do crânio restante... Preferiram se desfazer de observar sua beleza decadente e precocemente envelhecida, por uma foto antiga, de dois anos atrás, onde o que se apresentava era alguém que poucos se lembravam conhecer: era a mesma expressão triste, mas sem dúvida... jovem. Dos presentes sobre a grama verde e sob o céu azul: Valter olhava com pesar para uma parte que dizia adeus de um amigo muito pouco conhecido, mas de singular afeição e atenção. Adélia segurava nosso filho com certa impaciência, mas com a eterna elegância de quem se faz presente por que também estou: ao meu lado em feliz ambiente... Outros grupos rodeavam o caixão que logo começaria a descer... Eram parentes, amigos, colegas de trabalho, e mais um rosto que se tornara familiar logo na sua presença; as descrições não deixaram dúvida fazer sombra ao brilho do dia: alta, pele pálida, cabelos negros, e um olhar triste o qual parecia já ser conhecido pelo profeta... Ela chorava: a segunda... Suzana. A Suzana, sua grande paixão; alguém que não fora tão longe quanto ele esperara, e que se tornara um personagem mais fascinante por sua criação que pela pessoa em si... Mas a tristeza em seu rosto era real, assim como o espanto e medo de todos por um desconhecido e incompreensível ato de “loucura”... Não era só a sua “amada”, mas em todas as faces; talvez de todos os lugares do mundo; almas perdidas numa escuridão interior, auto-destrutivas, lentas, sem beleza e sem arte, cheias de rancor por terem de viver suas vidas como elas são e não como gostaria que fossem... Criaturas dementes, entorpecidas pelas próprias mentiras de normalidade, e que ao fim criarão apenas suas próprias... escuridão. Olhe o mundo que te rodeia: Epidemia de Tuberculose quase no século 21. Quedas de aviões. Morte de bebês. Fascínio pelo sofrimento alheio. Mortes solitárias. Insensibilidade geral. Suicídios coletivos. Policiais assassinos. Messianismo. Aumento do consumo de drogas. Violência contra a mulher. Crianças assassinas. Ódio... maio/96 a setembro/97 O Fim


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