A r p e j o

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ARPEJO

Fabiano Viana Oliveira


ARPEJO (livro registrado na Biblioteca Nacional)

Fabiano Viana Oliveira


Quando acordamos suados e tensos à noite, sem lembrar com clareza com o que sonhávamos, é o momento em que nossos instintos mais primitivos clamam por satisfação... É o que sem o nosso conhecimento nos faz fazer coisas sem se saber porque... Provoca culpa, orgulho e depressão... É a fuga da corrente humana... Dedico esta obra à confusão e à incerteza... nos levam a querer conhecer a nós mesmos; cada vez mais! O autor


Choque e lei

A beleza do nascer do sol começa a iluminar o Jesus. A singela estátua que vislumbra o mar da Barra durante noites e dias. Os raios surgidos no horizonte, rasgando o oceano ao longe, começam a iluminar cada parte do Cristo em mármore. Primeiro a cabeça e vagarosamente descendo à medida que a luz vai subindo, passa pelo corpo, os pés e finalmente chega ao chão: o gramado onde a estátua repousa; no alto de uma colina que de um lado alcança o mar e do outro a avenida. Mas naquela manhã, algo mais que a grama e a estátua “ornamentava” o nascer do sol da Barra... Era um corpo. Suas vísceras expostas e o sangue já coagulado, manchando boa parte da grama e da estátua, dificultavam o estabelecimento do sexo. Era branca, a pessoa, podia-se ver pelos membros, únicos salvos das atrocidades. O cabelo era longo, na altura do ombro, mas não se podia ter certeza com tantos jovens hoje usando cabelos compridos. Somente algum observador atento, especialmente um policial, poderia e deveria se aproximar para ver de perto e identificar o sexo daquele corpo. E seria muito difícil, para qualquer pessoa, mesmo um policial, chegar tão perto de tal hororosidade. O rosto, a marca pessoal que diferencia cada ser humano do planeta, também não foi poupado. Ele, como boa parte do corpo, era uma mancha de sujeira vermelha e mal cheirosa, esparramada aos pés do filho do divino criador. 2

5:15 da manhã. O sol começa a atrair as pessoas que querem manter a forma. Pessoas vindas de toda a cidade aportam na Barra todas as manhãs. Elas correm, andam de bicicleta, caminham, se exercitam... Pessoas de todas as idades: velhos que não querem envelhecer, adultos que querem se manter jovens e jovens que querem continuar jovens. Especialmente nesta época; é setembro, a primavera está começando e um lugar quente como Salvador pede que as pessoas mostrem o corpo no verão... E todos querem mostrarse jovens. Expor as suas belezas interiores através de um exterior bem cuidado. Correndo desde sua casa, em Ondina, bairro vizinho à Barra, seguindo a orla, uma jovem de vinte e um anos é a primeira pessoa atenta o suficiente para notar o corpo deitado ao sol, no gramado, abaixo da estátua do Cristo. Talvez fosse uma falha cruel do destino que a fizesse ser a primeira a entrar em contato com tal coisa... Ela parou de correr, não de súbito - ela sabe cuidar do corpo e sabe que não deve parar de correr de um momento para o outro. Ela mantém um pouco o ritmo e o vai diminuindo à medida que se encaminha para a colina... Andando, ela começa a ir em direção ao gramado. São uns trinta metros da calçada da avenida até a estátua. Ela se aproxima um pouco tímida. Achava que devia ser um mendigo dormindo ao relento, como muitos na cidade, mas tinha que averiguar... Uma curiosidade além do controle a havia tomado, e a cada passo aumentava. Ela estava a uns oito metros quando avistou a primeira mancha de sangue na estátua. Sua primeira reação foi se virar e ir embora, mas queria ver mais. Confirmar o que sua mente já imaginava... Ela deu mais três passos e lá estava: era uma pessoa morta, e mais que isso, estava completamente dilacerada por uma selvageria não humana. Ela pôs a mão na boca. Só tinha tomado um suco de laranja antes de sair para correr e por isso sentia como se fosse colocar seus órgãos internos para fora. Ela fecha os olhos e põe a outra mão no estômago. A visão ainda estava em sua mente, como uma fotografia. Foi quando uma inoportuna rajada de vento levou do corpo em sua direção aquele terrível cheiro de carne exposta, e nesse momento ela não resiste: vomita o que comeu e o que não comeu. O mal-estar era tão grande que ela sentia convulsões no ventre. Seus olhos se encheram de lágrimas com a terrível sensação. Nunca vira um corpo (morto)


antes e tal visão estava muito além do que aquela jovem garota poderia imaginar... as infelizmente, estava ali. 3 Os policiais a cercavam. Mesmo com toda sua beleza ela nunca tinha recebido tanta atenção. Seus olhos avermelhados ainda demonstravam seu choque com a cena de vinte minutos atrás. Seu estômago se contorcia toda vez que relembrava a fatídica imagem. As perguntas surgiram ao seu redor, feitas pelos policiais. Mas ela não tinha capacidade de manter a atenção... • Você viu alguém por perto ? • Você conhece a vítima? • Como disse ser seu nome? - Todas essas perguntas soavam como ecos nos ouvidos da trêmula garota. Na mente dela ainda havia a pergunta, vinda de seu íntimo: “Como alguém pôde fazer isso?”... • O nome dela é Carolina! - A voz vinha de trás o círculo de policiais. Ela levantou a vista e na sua frente apareceu um rosto familiar e amigo. • Luciano... - Ela se levanta e o abraça, como se procurasse um refúgio de toda aquela conturbação. • O senhor a conhece, detetive? - Ela o soltou e o olhou em seus olhos... • É uma velha amiga. • Foi ela que achou o corpo, senhor. - Ele olhou para ela lembrando da imagem da garotinha que conheceu anos atrás. • Eu sinto por você ter de assistir tal coisa, Carol! - Havia sentimento no que o jovem detetive da Polícia Civil dizia, mas também uma certa dureza; talvez necessária para conviver com tais atos durante um dia de trabalho. Com a voz trêmula e insegura, ela fala: • Não sabia que tinha chegado a detetive, Lu! • Só tem alguns meses. • Como alguém pode fazer isso com outro ser humano!? • Eu sei qual é a sensação... Não acredito que você precise ficar aqui já que não viu nada. - Ela suspira de gratidão. • Eu vou levá-la pra casa e volto em seguida. Não mexam no corpo até eu voltar. A polícia técnica deve estar chegando. • Sim, senhor. - Luciano pega Carolina pelo braço cuidadosamente e a conduz até o carro. Na mente do policial muitas perguntas surgiram. Não era só o assassinato que ele começaria a investigar. Ele olhava para aquela linda mulher, com um corpo escultural, usando malha de ginástica e tentava ligá-la com a moça que conhecera quando estava na academia de polícia... Lembrava dela como a irmã mais nova de um colega de treinamento, cuja casa freqüentava tanto que terminou por ficar amigo de toda família. Ele observava o silêncio, a beleza e a consternação dela e sentia que a visão daquele corpo a havia afetado muito. Suas memórias eram todas de uma mera garota de colégio, mas o momento mostrava uma mulher que o deixava intrigado e curioso. Eles chegaram em frente ao prédio onde Carol mora: • Obrigado, Lu. Eu espero que achem o monstro que fez aquilo. • Não se preocupe. Uma coisa daquela não vai virar rotina aqui em Salvador... Não enquanto eu estiver aqui. - Ele falava como nos filmes americanos, que


ele e o irmão dela tanto gostavam de assistir enquanto estavam na academia. Não era uma influência muito realista, mas o jovem detetive de vinte e oito anos parecia saber o que estava fazendo. Uma fachada séria, própria de um policial em serviço, dava uma certa credibilidade às palavras de alguém que Carolina havia conhecido como um simples rapaz brincalhão; o melhor amigo de seu irmão. Ela deu um sorriso meio morto antes de sair do carro e entrar no prédio. Luciano a acompanhou com o olhar por alguns segundos antes de partir. Ele sabia que não iria precisar dela na investigação que estava por vir, mas aquele corpo o chamava para perto da irmã de seu amigo morto há mais de dois anos: Cristiano. 4 De volta à cena do crime, Luciano vê uma roda de curiosos em torno do corpo, que já começava a cheirar muito mal... • O pessoal do “Nina” ainda não chegou, detetive. O que a gente faz? • Cubram o corpo e tirem esse pessoal daqui. - Os policiais cobrem o corpo disforme com um lençol. As pessoas ao redor olhavam com curiosidade, medo e nojo. A maioria morava nas redondezas e temia por ver coisa tão repulsiva ser encontrada ali. Com o seguir da manhã todos foram se dispersando, principalmente depois que a polícia técnica e o pessoal do Instituto Médico Legal chegaram e se encarregaram de levar o corpo. Só restaram as manchas de sangue na grama e na estátua. Todos olhavam e imaginavam como aquilo poderia ter acontecido. A morbidez parecia ter chegado à cidade de Salvador, onde até esse momento só se falava em festa e sol... Luciano olhava a cena do crime e via mais que um simples assassinato. Havia algo de morbidamente novo nos ares da Bahia. Algo além dos olhos...


Presente Outra presença observava a cena final daquele terrível crime. Seus olhos, diferentes dos outros, não viam só manchas de sangue cobrindo o local onde estava o corpo dilacerado. Ele vê o acorde final de uma música que ele mesmo começou a tocar na noite anterior. Uma leve lágrima se forma em seu rosto enquanto ele olha fixamente aquela borra de sangue. Ele começa a rever passo a passo seus atos. O começo do arpejo. Noite. Ele ver a sua vítima se aproximar... Pára o carro em frente à sua casa. Os olhos na janela acompanham todos os movimentos. O plano já estava em sua mente. Era insano. Mas ele sente poder com a insanidade. A hostilidade dentro dele era como uma droga; dando-lhe poder, incentivando-o e eventualmente, viciando-o . A porta é aberta... Nesse momento ele volta sua visão para o mar. A lembrança da noite anterior é somente um eco de um arpejo de violência que ele não conseguiu controlar. A vida deveria ser mais do que aquilo. Alguma coisa tinha que restar após todo aquele retardo. Ele vê a calmaria do mar e a quer sentir, mas não pode.


O Corpo Luciano já havia presenciado muitas autópsias. Além de ser policial investigador, fez curso de um ano no Instituto Nina Rodrigues sobre polícia técnica. Não se compara a algo do porte do FBI, mas um exame de corpo delito podia revelar muitas coisas durante a investigação de um crime. E nesse caso, qualquer coisa seria melhor do que o que já se tinha... O que era nada, pois nem o sexo da vítima se conhecia ainda. O doutor Manoel Azevedo começa a fala no gravador enquanto percorre aquele pedaço de carne que um dia foi um ser humano. Luciano e mais dois policiais assistem atentos: • A vítima é branca. Tem um metro e 63 centímetros de altura. O peso deve estar em volta de 57 quilos. Observação preliminar do envelhecimento dos órgãos internos indica uma idade aproximada entre 19 e 25 anos. Nota: reconhecimento claro de um útero. A vítima é do sexo feminino... O legista continua sua análise inicial. Luciano olhava atento. Muito do que era dito era irrelevante para o caso. A não ser pelo fato de se saber que era uma mulher e jovem, dizer que ela foi morta com extrema violência e crueldade era desnecessário; até mesmo para quem encontrou o corpo pela primeira vez... E era nessa pessoa que Luciano pensava naquele momento. A lembrança de Carolina abatida ao seu lado, no carro, ainda naquela manhã, vinha em ondas; junto com a visão dela própria, como mulher. Ele não conseguia evitar esse pensamento, mesmo vindo logo em seguida a lembrança do irmão dela, seu amigo, Cristiano, morto, abatido por um traficante durante uma invasão. E também a visão seguinte, que aparecia à sua frente, real e clara: aquela garota que fora morta pelo monstro assassino que agora rondava a cidade sem controle. • ...Os dentes foram arrancados junto com partes do rosto. E as pontas dos dedos foram cortadas. Isso torna impossível uma identificação. Só sobrando algum sinal particular que precisa ser reconhecido por alguém próximo. As avaliações químicas devem demonstrar algo mais através dos seus resultados. Nota: as unhas dos pés são pintadas com esmalte de boa qualidade. Sugestão de procurar em pessoas desaparecidas para possível identificação da família. Nota final: seja quem for que fez isso sabia exatamente como ocultar os meios de identificação. Sugere força, frieza e meticulosidade. O doutor desliga o gravador e retira suas luvas. Mesmo com toda sua experiência ele parecia afetado por uma visão tão chocante. O humor negro presente nessa classe de profissionais tão obscura - a Medicina Legal - parecia ter sucumbido diante de tais atrocidades contra a fragilidade humana. Luciano e os outros dois policiais olham com visível frustração o corpo que estava sendo encaminhado para as geladeiras. Não havia muito por onde começar. A criatura louca que tinha feito aquilo não tinha deixado traços visíveis. Seria no “trato”. - Eles pensavam. Na mente de Luciano voltava a aparecer Carolina. Parecia até uma compensação. Ele tinha um corpo dilacerado pelo assassino monstruoso. Tinha a investigação às cegas para conduzir. Mas em compensação ele tinha aquela linda mulher que não lhe saía da cabeça. E junto com a lembrança do amigo morto, poderia ser a oportunidade de um novo começo.

Lágrimas do passado no presente

O telefone toca na casa de Carolina. São oito da noite e sua mãe atende com voz séria: • Carol, por favor. - Diz o interlocutor. • Ela não está falando com ninguém. Hoje de manhã ela... - Mas a voz a interrompe.


• • • •

Eu sei dona Carmem. Aqui é Luciano. Eu estou encarregado do caso. Ah! Olá, Luciano. Como você está? Não muito bem. Todos estão abalados... É... Eu ouvi no noticiário sobre o corpo. E Carol falou da coisa horrível que ela viu. • É por isso que eu estou ligando. Eu a deixei em casa hoje de manhã e queria saber como ela estava. • Ela me disse. Eu agradeço o que você fez. • Nada... • Mas ela passou o dia muito abalada. Não foi à faculdade, nem ao estágio. Muitos amigos dela ligaram, mas ela não quis falar com nenhum. • Talvez ela queira falar comigo. A senhora poderia perguntar? • Está bem...Mas... Ela não vai ter de se envolver com isso, vai? • Eu acredito que não. Ela só fez, infelizmente, encontrar o corpo. • Nem me fale... Eu vou falar com ela. Só um momento. A mente de Luciano ainda estava consternada com a frustração que passara durante o dia. Ele queria - além de saber como Carol estava - ouvir uma voz de um passado suave, quando era apenas um cadete da polícia; uma voz, que naquela manhã também tinha uma fonte que ele não podia evitar de se sentir atraído. Mesmo tendo na memória Cristiano e o corpo dilacerado, agora congelado em uma das gavetas do “Nina”... Ele sente. • Alô, Luciano. Aqui é Carol. • Oi. Que bom que resolveu atender. - A voz dela esta arrastada. Como de alguém que saísse do coma. • Hum! Horrível! - Ela se olha no espelho da sala e pensa que está horrível de mais de uma maneira. Mas também, Luciano não a via.- Será que eu posso fazer alguma coisa pra ajudar? • Não sei. Você sabe fazer lavagem celebral? - Ela tenta rir da própria piada. Foi infeliz... • Eu imagino como se sente. - Ele queria segurar a conversa, mas não sabia o que dizer. Felizmente ela quebrou o silêncio. Mais por atenção ao interesse de Luciano que ao próprio, ela pergunta: • Descobriram alguma coisa? • Bom ... Descobrimos que era uma garota por volta de 20 anos... • Ai, meu Deus! - Subitamente Luciano se lembra que está falando com uma. • Desculpe, Carol. Eu queria poder te poupado disso, mas saiu. • Tudo bem. Eu perguntei... • Escute... Uma coisa que eu aprendi: é que se fechar não vai tirar as lembranças da cabeça. Volte à sua vida normal.. Você está saindo com alguém? • Não. • Então procure alguém. - Luciano se segurou para a frase seguinte. Mas a disse, tentando ao máximo ser natural. - fale comigo se precisar. • Eu não sei. • Desde que seu irmão... Bom; tem tanto tempo que nós não nos vemos. Eu deveria ter ficado peto de vocês quando tudo aconteceu, mas preferi me isolar e me dedicar ao trabalho. Hoje eu sinto falta. E sinto mais ainda pelo reencontro ter sido numa circunstâcia tão... terrível. • Talvez você esteja certo. Me agarrar ao sombrio só me faz sentir pior.


• •

Isso. A chama da esperança surgia naquela fraca voz... Mas: Passe aqui amanhã e jante conosco. - Encontros familiares não eram do agrado de Luciano, lembravam-lhe sua própria família... mas já era uma possibilidade. Algo mais do que ele tinha no momento: ele próprio. • Tudo bem, Carol... tente passar uma noite tranqüila. Eu te vejo amanhã. • Obrigada, Luciano.. Por tudo... Eu me sinto um pouco melhor. Fico feliz que tenha ligado. - Ela conseguia liberar um sorriso, finalmente; arrastado como a maré. Era quase uma terapia. Se despedia de Luciano e olhava ao redor sem saber muito o que fazer. Todo aquele dia parecia ter sido uma travessia; sentia um terrível peso no corpo: era a própria consciência... Voltou para o quarto. Luciano estava quase radiante ao desligar o telefone. À sombra de um assassinato, provavelmente insolúvel, e da lembrança de um amigo morto aos seus pés, ele via a possibilidade de ter ao seu lado uma mulher muito especial: alguém que pudesse, junto com ele, juntar os pedaços de uma vida confusa e com o sórdido direcionamento para o lado mais escuro do ser humano; o que chamam de crime... Um policial. 2 Na cama, durante a madrugada, Carol ainda não dorme. Ela realmente se sentia melhor após falar com Luciano, mas ainda não conseguia conter a tristeza. Era como uma gripe, que a derrubava, mesmo ela querendo se erguer: a visão do corpo aos pés do cristo. A lembrança do irmão mais velho morto. A imagem da vítima... uma garota como ela, podendo até ser ela em outra circunstância... Ela não podia evitar. Carol chora de dor em silêncio. Era uma tristeza sólida, que nunca tinha sentido antes. Algo que parecia surgir além do seu corpo e de sua mente: uma incontrolável vontade de se deixar levar pela mesma corrente que dolorosamente trazia as suas lágrimas. Eram lágrimas!...


Só um O suor escorre pelo seu rosto. As imagens se agitam em sua mente enquanto seu organismo conduz os atos. São poucos os momentos que o levam do prazer à melancolia. Por que tem de ser assim? A solidão do seu quarto o rodeia enquanto seu corpo se contorce. Ele tenta se convencer de que é normal, mas uma raiva de si mesmo, de sua incapacidade ou hostilidade, o domina nos momentos finais. Ele sente o salgado do próprio suor da boca. O cheiro singular se espalha pelo quarto. Duas imagens femininas se revezam em sua mente agora. Uma de um passado recente e outra do presente vivo. Não há culpa ou pecado, só frustração. É uma energia subtilizada. Seus movimentos aceleram. É bom. É triste. É grotesco. Será que elas já fizeram também? - Ele pensa... É doloroso estar sozinho. Ele teme pela própria sanidade. A hostilidade pode um dia lhe dominar por completo e aí não haverá volta. Ele deseja. Ele quer. Ela está em sua mente agora. Cada lembrança se consolida naquele momento final. Ele sente. A sombra atrás de tudo. Frustração. Incapacidade. Rejeição. Um lampejo final e ele termina. Seu rosto é desolado. Ele se imagina agora. Não é um ser humano. Não é um homem. Não é nada. Ele tenta se recompor e afastar os pensamentos. Mas ele sabe que tudo estará lá na próxima vez. Ele não sabe por quanto tempo vai suportar isso até explodir de novo. Hostil. Doce. Triste. Como um fotograma de cada momento de sua vida: ele está só.

Difícil retorno

Voltar à faculdade parecia um ato heróico depois do choque do dia anterior. Carolina está no terceiro ano do curso de Publicidade da Universidade Católica do Salvador. Era o que se podia chamar de começo de vida integrada: estudar Publicidade, uma profissão em ascedência. Fazer estágio em uma das maiores agências do estado... Ela gostava da vida que parecia vir à sua frente... mas naquela manhã, entrar no carro, olhar para frente, conter a tristeza, viver, pareciam barreiras a serem transpostas. Sua alegria de viver parecia consumida pela forma como um monstro usou da fragilidade da vida para destruir um ser humano. E daquele modo... E de certa maneira, tão próximo dela própria. Talvez por nem ter sido possível reconhecer as feições daquela pessoa, de tão massacrada que estava, a proximidade parecia ainda maior. Como num pesadelo, em que o personagem se torna o espectador e vice-versa... Ela sacode a cabeça fazendo seus cabelos negros e longos, pesados de molhados, baterem em seu rosto; era um lembrete: ela ainda está viva. Não foi ela quem morreu. Quer continuar assim... Finalmente liga o carro e vai embora. Chegando ao campus ela estaciona o carro. Já está cheio. Ela está consideravelmente atrasada. Não é do seu feitio, mas considera-se perdoada... Quase todos os seus amigos já deveriam saber do ocorrido. Além do noticiário, sua mãe atendeu vários telefonemas do dia anterior e contou o fato...Ela caminha devagar. Não tem muita certeza de como deve agir. Tenta se manter normal, casual. Mas estava difícil. Algo de anormal ou anti-ético parecia afetar o comportamento de qualquer um diante daquela situação... A atitude certa simplesmente não existe. Por um segundo ela deseja que fosse uma pessoa totalmente ignorante e alienada, assim não seria tão afetada... Com certeza! Ela entra calada na sala. Olhos a fitam e ela os sente. Um olhar em especial se mantém fixo mais que os outros; como vem fazendo nas últimas semanas. Ela tenta não encarar ninguém, ainda. Se sente um pouco nua com tanta atenção. Mas o olhar fixo daquele que mais a olha, ela não pode evitar de encarar. É após alguns segundos que ele cede, envergonhado e deslocado, desviando o olhar. Carol conhece. Ela sabe. Mas hoje não era dia.. talvez ele não soubesse. Mas os que sabiam não lhe pouparam alentos na primeira oportunidade... Obrigação e/ou prazer; não importava: cada um, inclusive o dono daquele olhar, se sentia agradavelmente abalado pelo momento de Carol... Todos estão ao seu redor. Eles revezam palavras de conforto. Perguntas difíceis de responder. E consternação pela violência do mundo... Milhares de pessoas morrem a cada


dia, mas a dor só é sentida quando a pancada é muito perto: é um fator humano, auto defesa... Carol tenta se manter firme. Recebendo toda aquela compaixão, as sensações davam voltas como numa montanha russa. De um certo modo ela se sente bem por saber que tem tantos amigos e que eles se preocupam com ela. Talvez Luciano estivesse certo. Mas provavelmente iria demorar um pouco para poder apagar aquilo da memória. Talvez nunca... Ver toda aquela afeição ao seu redor, lembrar da atenção de Luciano no dia anterior, sentir cada dor daquele dia; tudo faz Carol sentir que ainda merece a vida, mais do que nunca... Aquele corpo ainda chocava sua memória, mas também lhe dava vontade de viver. O resto do dia transcorreu o mais normal possível. Em uma certa hora no meio do dia ela foi ao banheiro e sentiu vontade de chorar: não foi até o fim... Não sabia porque queria chorar. Não sabe porque não o fez. Era realmente um retorno difícil. “Como um dia pode ser tão diferente do outro!” É apenas uma garota de 21 anos. Teve um mórbido despertar para um outro lado, obscuro, da vida. Era estranho. Era triste. A vida parecia passar à sua frente enquanto aquele dia passava. Podia parecer um dia como outro, mas todo mundo era diferente. Tudo era diferente... Ela estava diferente. Um recomeço seria o mais apropriado, mas tudo exigia tempo; até o próprio tempo que Carol passava: o da tristeza, confusão e inconfluência. A volta à faculdade foi difícil, mas já estava melhor. Ainda tinha o estágio à tarde e estava indo embora. Voltando para o carro ela pensa em seus amigos. Um leve espasmo a atinge no estômago. Ela ainda estava confusa com toda aquela mistura de lembrança mórbida e fraternidade. Naquele momento ela só queria seguir em frente: como de manhã antes de sair, ela sacode a cabeça. O gesto de alívio teria que vir. Tempo em tempo. Enquanto ela estava no carro não notava aquele olhar fixo nela, novamente. Ela tinha motivos para não notar, após um dia tão incerto...Mas ele a nota. E a deseja. Não muito tempo atrás... a verdade parece ter sido agora: ele está apaixonado e como no passado, foi rejeitado. São os olhos de alguém com problemas. Ela gosta dele, mas há coisas que não se pode forçar... Ele sabe, mas não pára de sentir. É uma pena haver tanta dor num coração tão jovem e são esses os corações que sempre sofrem mais... Fernando vai para casa, mas sua mente está num mar; se afogando em dor, desespero e solidão. “Carol!”- Ele pensa.


O início de uma nova canção Carol atende à porta. A visita já esperada a recebe com um sorriso amigo no rosto. • Lu. Que bom ver você! - Ela estava realmente alegre. • Vejo que está bem melhor. - Seus olhos a percorriam enquanto ele entrava. • Sem dúvida. Você estava certo: voltar à vida normal foi o melhor remédio. • Eu não disse! - Luciano era um policial e sabia usar seu poder de observação. Ao cumprimentar os pais de Carolina, logo notou o quanto a presença dele os faziam lembrar de Cristiano. Não os via desde o enterro do filho, mas eles pareciam os mesmos: cordiais, familiares. E emotivos até certo ponto com a presença de tantas lembranças que ele trazia. Carol demonstrava ainda muita confusão por trás daquele véu de alegria e receptividade. Ele imaginava como aquela imagem da manhã anterior deveria estar sendo reprisada em sua cabeça. Deixando-a sempre muito perturbada... Perturbava a ele, que já devia estar acostumado com tal violência... Ele sentia que havia uma alma quebrada dentro daquele corpo tão expressivo. Corpo que também não parava de deixá-lo admirado com tanta perfeição. Luciano a conhecera franzina e pequena. E agora ela tinha uma forma atlética e firme. Não devia passar de um metro e 65 centímetros, mas era todo um conjunto perfeito. Por um momento ele se pega tendo pensamentos que ofenderiam até mesmo seus colegas policiais; todos acostumados com todo tipo de perversão e baixaria. Também era um policial, mas ao rever aquela família, que nos anos de academia era a sua família, ele chega a se repreender pelos seus pensamentos; assim podendo seguir o resto da noite com um mínimo de paz no seu interior e no deles também. Na mesa de jantar: • Vocês já têm alguma pista? - Perguntou o pai de Carol. • Infelizmente não. Os... - Ele olha para Carol, para sua mãe e em seguida para a comida à sua frente. Ele ia dizer, com naturalidade, que os dedos e os dentes da vítima tinham sido arrancados; mas ao invés, prefere amenizar o assunto... se podendo, até extinguindo-o . • ...A identificação não foi possível. Estamos à cegas. • É uma pena... Um maluco desses por aí!. - Luciano nota Carol baixar a cabeça. Aquilo visivelmente a incomodava. • E aí Carol; você está na faculdade de que mesmo? - Levantando o rosto e mudando levemente a feição, ela responde... Luciano ficava satisfeito por poder se livrar daquilo. Não era apenas por querer aliviar a pressão sobre Carol: a mudança de assunto tinha afetado todos à mesa. Era um conforto voltar para o mundo seguro em que todos pairam longe de uma selva interior que afeta a tudo... Também ele queria se livrar do desconforto de falar sobre um caso sem pistas, que além de pôr à prova a própria competência dele e da polícia, atingia pontos intocados do comportamento humano: algo chamado de mal, mas puramente era relativo ao próprio homem... Afirmar que a situação tinha fonte na possível incapacidade da polícia era uma defesa de cada elemento: se agarrar ao ponto mais próximo antes que a “onda” o atinja... É uma terra onde a imagem da polícia é maculada por corrupção, conformismo e alienação diante de uma violência já existente... Esse meio de defesa de cada um perante a instituição dava certa revolta em Luciano. Mas ver a mudança daquelas pessoas à sua volta para um estado de maior conforto por fugir de um assunto vigente, dava uma visão de ambos os lados daquele mesmo momento... Outro mundo, talvez... Ele lembra do corpo no Nina Rodrigues: também estava


incomodado; não parecia ser uma atitude tão revoltante, afinal, apenas uma escolha, fazia parte da mesma vivência: se sentir humano... Seus olhos encontram os de Carol. Não era apenas uma vez... É o recomeço que ele procurava... No estacionamento do prédio, mais tarde, Carolina se despede de Luciano. Havia uma evidente hesitação em ambas as partes. Aquele reencontro tinha sido bom para os dois. Ele via a alegria voltar ao rosto de Carol aos poucos; fazia-o se sentir bem por saber que tinha feito parte daquela mudança de estado. E também ela... • Eu... Eu queria ver você novamente, Carol. Será que você gostaria? - Seu rosto corou um pouco. Pôde-se notar mesmo embaixo da luz fraca do estacionamento. • Eu adoraria Luciano! Apesar do modo tão horrível, nosso reencontro foi muito bem vindo. • Você não sabe como... Bom... - Ele se curva para beijá-la no rosto. Tinha vontade de mais, e ela também, mas um clima nostalgicamente triste ainda os envolvia... Os dois teriam tempo! - Eles pensam. Luciano parte sob o olhar de Carol. Um entusiasmo a invade. As boas lembranças de seu irmão vêm à sua mente. Talvez Luciano fosse a resposta para uma fase mais completa de sua vida. Pela primeira vez desde o terrível acontecimento do dia anterior, ela sente a leveza novamente em seu corpo e também não deixou de sentir uma leve excitação por Luciano. Era realmente um recomeço. - Ela pensou. 2 No carro , Luciano não podia conter o entusiasmo. Dirigia rápido. Estava alegre. Era difícil para sua mente de policial se desligar do caso, para uma coisa pessoal, mas era o que tentava fazer. Tentaria não ter humor negro por um tempo. “Corpo morto!...Corpo de Carol!”- Era difícil. Sua vida estava presa ao crime. Era um momento de reflexão barata. Ele ainda sorria. Estava diante de um novo momento. E ele queria muito desfrutá-lo. Por um instante, ele se esqueceu de tudo ... Só estava em sua mente a transposição que ele vislumbrava à sua frente: uma nova vida, talvez!


Estado puro Um jovem misterioso, no âmago de sua solidão. A noite escura e úmida, a caminhar, levando a mente a pensar nenhum pensamento específico. Na torrente da chuva passada se lembra do que já se foi, uma vida desperdiçada, dolorosa e de real vivência com o sentimento de angústia... A presente e constante depressão em sua vida. Chega ele em casa; para quê?... Nada a esperar, nada novo, o que estava de manhã, está na noite e estará no dia seguinte. Sua cama em impecável bagunça; para que arrumar se à noite irá fazê-la desarrumada novamente. Onde ir... cozinha de cheiro insuportável, próximo a corpos em putrefação, que ele se acostumou como se fosse rosas em campos floridos? Fascina-se, olha-se no espelho quebrado e vê sua realidade; “em pedaços”; tudo é isso. Ele é assim. - “Eu sou assim?”- sendo somente o que sempre foi: um nada menor que a própria existência insignificante do homem da Terra. “Para quê?” Mais uma vez. Ao quarto de volta em movimento enigmático de nunca pisar no meio entre a sala e o quarto, como se para passar aquilo ele tivesse que saltar um muro ou cerca, indo para um lugar completamente diferente. No quarto vê-se no outro espelho, mais quebrado que o primeiro; nota que nos últimos dois minutos a vida se tornou ainda pior. Olha a sala e vê que a luz está acesa, mas para que apagar... no outro dia terá que acendê-la novamente... Para que? Para que viver?... Nada ele faz. Mulher não tem, pais não conheceu, amigos não teve. Improdutivo, inútil, incapaz: pensa ele ser; e com razão se vê vivo no futuro como o único sobrevivente do próprio; pois em sua obsessiva depressão e alienação, coberta e recheada de angústia, se encontra a desesperança no futuro e nela se encontra o único e melhor motivo para continuar vivendo... Para quê? Para isso: ele não se mata. De modo algum. E nem nunca o fará... Simplesmente aguardará. Boa noite! 2 Fernando tenta não se prender a todo sofrimento que o rodeia. É difícil para ele ver o mundo à sua volta andar e ele estar à margem. Pensa um pouco em Carolina. Imagina como ela reagiria se visse como ele vive. Ele sabe como ela vive, e sabe que são diferentes. Ambos estudam Publicidade, mas há um “glamuor” nela que ele não tem. Pensa em qual a fonte de tal abismo que o suga. Ele se deita ainda pensando nela... No que ela poderia estar fazendo nesse momento: um rápido pensamento de um namorado lhe vem à mente e a hostilidade lhe volta. Gostaria de nunca sentir o que sente. Às vezes uma música toca-lhe os ouvidos e ela só diz uma coisa ritmada: rejeição. Não literal, mas na forma de lembranças, de rostos do passado e do presente. Ele está muito ferido: antes de apagar, Fernando tem uma última imagem: é Ilena... O passado e o presente se cruzavam na porta de entrada para os seus sonhos: novamente... Boa noite!


Três dias Nos Barris; um dos poucos bairros do centro que residem calma durante todo dia; a maioria das famílias vive suas vidas sem ser muito afetada pela confusão que os rodeia: isso, os outros bairros do centro. Num apartamento de classe média, uma dessas famílias está tendo de encarar uma situação nova e difícil. Algo que só se parece com histórias de jornal ou programas de TV. • Ela já está sumida há três dias! - Uma mãe preocupada. Dona Joana não se conforma de sua filha ter sumido sem dar notícias; e um outro lado dela se recusa a acatar a sugestão do sóbrio marido: • Se formos à polícia, pelo menos nos livramos das dúvidas. Eu tenho certeza de que ela está bem. - O senhor Lauro Fernandes tenta conter o nervosismo da esposa, que começa a virar histeria à medida que os pensamentos ruidosos surgem na mente de todos. • Ela deve tá com o namorado! - Carlos, irmão mais novo, tenta se livrar da tensão com uma piada infeliz. As suas duas irmãs o olham com certo desprezo. Não sabem elas que o mesmo frio no estômago que elas sentem pela falta da irmã, também atinge o jovem Carlos. Talvez até mais... Ilena e ele sempre foram muito apegados. São os dois extremos de uma cadeia de quatro irmãos. E por essa distância, as diferenças entre irmãos os afetaram menos. As duas irmãs estavam comprimidas entre a mais velha e mais respeitada e o caçula, mais bajulado. Não era muito de se admirar as duas estarem sempre juntas; como estão nesse momento, abraçadas... O pai e a mãe tinham um ao outro e elas a elas, mas Carlos só tinha a esperança de rever a irmã: aos 15 anos, sabia muito bem o que poderia acontecer a uma jovem de 21 numa cidade grande, principalmente após três dias desaparecida. • Carlos! Tem certeza que ela não disse nada a você? - O senhor Louro perguntava com fervor pela centésima vez nos últimos dois dias... • Não, pai. Ela só disse que ia resolver um assunto. Foi a última coisa que ela disse, antes de sair na segunda à noite. • Segunda à noite, Lauro!! - A pobre mãe revezava bravejos e murmúrios. A preocupação e o medo pela filha estavam estampados em seu rosto. Um abatimento dolorido e emocional... Todos se olhavam em silêncio sem ter muito argumento para o ato que teria de vir: nunca em nenhuma família, se passa a idéia de um dia ter de ir à polícia, e pior, ao Instituto Médico Legal, a procura de um de seus entes. É uma sensação estranha. Algo que sobe pelas entranhas. Visceral. O medo de descobrir o que não se quer, apesar de se estar preocupado. O senhor Lauro olha para o filho e em seguida para as filhas. A esposa sentada ao seu lado não lhe dava nenhum sinal de discordância. Era a maneira dela de dizer que ele podia ir em frente. Os filhos presentes sentem o mesmo. • Carlos. Vamos indo! - O garoto se prepara para sair com o pai. • Se tivermos alguma notícia, nós ligaremos. Mantenham o telefone sempre livre. Ela... pode ligar...- A voz dele não se mostrou muito confiante, o que piorava o abatimento nos rostos das filhas... A mãe permanecia em silêncio. • Eu tenho certeza que ela está bem, mãe. - O filho demonstrava uma confiança na voz que parecia melhorar o espírito de todos... Mas todos sabiam que era uma fachada, uma proteção, uma defesa da própria consciência. O medo estava presente. E em Carlos ainda mais. Enquanto


saía com o pai tinha na memória a última imagem da irmã: ela estava entrando no carro ao cair da noite; estava com o mesmo sorriso de sempre. Ele não sabia se aquele sorriso o confortava ou o massacrava. Era uma situação praticamente impossível de ser admitida em sua temerosa e apaixonada alma adolescente: ele não tinha certeza se veria aquele sorriso de novo...


As filas O Complexo de Delegacias dos Barris apresentava uma estranha angústia aos que se propõem a procurar algo nesse lugar, e especialmente, alguém. A cada curva se sente que se pode ter uma má notícia e por ironia todo o prédio é uma curva... O senhor Lauro e seu filho Carlos passam por tal sensação nesse exato momento. O atendente os encaminhou ao investigador que estava responsável pelas pessoas desaparecidas. Eles andavam e a cada sala que passavam, notavam o quão o mundo poderia ser triste, envolto com tanta violência. Tantas pessoas, tantos problemas... infinitas angústias. Realmente preferiam não estar passando por aquilo. O investigador os recebeu e os mandou sentar. O senhor Lauro falava sobre o desaparecimento da filha, enquanto Carlos olhava meio assustado para aquele cubículo chamado de escritório. Como alguém podia manter a sanidade, tendo de encarar tantas coisas adversas, de dentro daquele lugar horrível? - Ele se pega imaginando. • É uma bonita garota! - Ele segurava uma foto de Ilena. • Obrigado. • Antes de eu fazer o registro de pessoa desaparecida, o senhor tem que fazer alguns reconhecimentos... • Eu imaginei. - tanto ele quanto Carlos sabiam o que aquilo significaria. Era uma pressão e/ou choque que eles já aguardavam. Mas sempre com um teor pré-sentido carregado nas costas de ambos e também na família que ficara em casa... Estavam todos juntos. O investigador dá uma ordem pelo telefone autorizando o senhor Lauro a olhar pessoas com a descrição da filha, presas nos últimos três dias e também as pessoas mortas, dentro do mesmo tipo, no Nina. Não eram muitas garotas brancas de 21 anos que apareciam nesses dois segmentos, mas seria uma tortura essa verificação. A cada olhar o medo de uma revelação aterradora. Não havia outra solução... Eles vão. Carlos não pôde entrar no xadrez municipal, ele teve de esperar numa sala especial junto com outros "menores". É difícil definir de quem era a tortura maior: o senhor Lauro olhava dentro de cada cela feminina; via todo tipo de sujeira e podridão. Ao chegar perto das janelas que davam para o interior, já sentia o terrível mau cheiro de pessoas amontoadas sem um mínimo de dignidade e de higiene. A maioria das mulheres era negra. Ele não queria, mas sentia um certo alívio. Não era uma pessoa preconceituosa; pelo contrário, isso só fazia aumentar seu medo e sua consternação; mas sua mente dizia: “Ilena nunca se meteria com esse povo!”... Enquanto isso, Carlos olhava para as paredes opacas da sala aonde estava. Imaginava o que o pai estaria vendo; talvez Ilena, deitada numa das celas... Drogada... Ele tentava tirar o pensamento da cabeça: não tinha muito o que o distraísse na sala. Cada coisa lembrava o horror. Um horror real; massacrante. Eles deixam o xadrez municipal tanto com alívio quanto com dor. Ilena não estava naquele lugar horrível, mas podia estar num lugar bem pior. Morta. Ali, pelo menos, estaria viva... A sorte do segundo passo que eles iam dar martelava na cabeça de ambos. O senhor Lauro não conseguia visualizar que reação sua esposa teria se a filha estivesse naquele lugar. Nem a sua própria reação... Parecia um auto-prelúdio de um indesejado e terrível pesadelo. No Complexo de Delegacias. No cubículo onde o senhor Lauro e Carlos estiveram. O investigador olha para a foto de Ilena. Ela estava sorridente, com o cabelo solto, caindo levemente sobre a testa. Os anos de profissão o fizeram duro e perspicaz, por isso ele não pôde deixar de ter uma desagradável visão... Ele torcia para que aquele pai encontrasse a filha antes que tivesse de sugerir a idéia que estava em sua cabeça. Temia que fosse a única. Corpo após corpo. O senhor Lauro seguia o encarregado que ia abrindo gavetas e mostrando corpos de garotas mortas. O já abalado pai olhava, tendo alívio seguido de desgosto, a cada gaveta... Mas uma vez, Carlos não pôde entrar e teve de suportar a espera


numa sala a parte. Ele já tinha estado no Nina Rodrigues antes, mas numa excursão de colégio e não a procura de uma pessoa querida que estava desaparecida. Era uma sensação de impotência diante do inevitável... De pontos diferentes, pai e filho sofriam cada momento daquele ainda incompleto pesadelo. Um por ver cada passo e o outro por não ver: os extremos de um mesmo sentimento impossível de ser verbalizado, pois passa por todos os outros... Corpo após corpo. De volta ao Complexo de Delegacias. No cubículo. O investigador olha o rosto do pai e do filho; já deduz que a busca tinha sido vazia. Viu essa expressão várias vezes. É sempre frustrante para ambos os lados... Na sua mesa está a pasta de um caso sem pistas que parecia ter atraído a sua primeira evidência; para a infelicidade daquela família... Eles se sentem à frente do investigador e ele ter que perguntar: • Sua filha tem algum sinal particular? - Os dois se olham e respondem juntos: • Uma cicatriz acima do pulso direito. Em forma de “T”. - Os dois sabiam muito bem. Ela conseguira tal marca num acidente de carro, logo depois de tirar a carteira de motorista. O policial olha a ficha e encara os dois em seguida. Não tinha muito jeito de aliviar aquilo. O relatório em suas mãos era bastante claro... • Eu sei onde a sua filha está! - O tom da voz do homem fez o frio no estômago e o aperto nos corações dos dois atingirem seus extremos. O medo iria se confirmar e seria mais terrível ainda... O corpo é de Ilena.


Dois lados Seus olhos tinham à frente uma mulher que o fazia suar de tanta atração. Não conseguia ver quase nenhum traço da garota que conhecera. Era como olhar uma escultura. Perfeita. Seu olhar, quase hipnótico, lhe dizia: “Eu quero!” As palavras soavam como pedidos... ordens de uma deusa que ele não conseguia evitar de desejar... Na mesa entre eles estava um prato de lagosta. Era um prato caro, muito caro para um policial, mas ele a queria impressionada. E ele estava. Carolina já tinha tido muitos encontros, mas nunca um tão bem produzido e nunca com um homem tão maduro. Luciano só tem 28 anos, mas sua experiência de vida policial, convivendo com todo tipo de situações, lhe dera uma fonte de adaptação para as mais diversas condições, que realmente surpreendia. Carol se sentia estranha ao estar com Luciano. Ele é um policial; coisa que aparenta, sempre, adversidade. Mas também ele é um velho amigo de seu falecido irmão e estava a cargo de uma investigação que teve origem num crime que a havia afetado muito nos últimos dias. Ela não sabia porque, mas também sentia atração por ele... Seus olhares diziam isso a cada momento, mesmo apesar de estarem num lugar tão luxuoso, comendo e conversando sobre assuntos que os dispersam de tudo. Era algo inegável, somente não totalmente exposto por causa de um incômodo, mas necessário, véu de polidez e civilização... Ela queria esquecer os últimos três dias, queria começar uma nova vida. E de certo modo, ele também. • ... não sei muito sobre isso. Antes eu tinha ... - O som do bipe de Luciano a interrompe. Ele tinha vontade de não ouvir mais nada além da voz dela, mas não podia ignorar o serviço. Era o mundo ao qual ele pertencia. Não só por ser um policial dedicado. Ele se tornava a cada dia mais concentrado naquilo que fazia de melhor... fazia parte de uma redescoberta do seu lado mais humano e familiar; aquilo em que se mantinha com Carol... Ficar apegado a uma pessoa pelo puro prazer de estar com ela: a memória mais próxima disso em sua vida era justamente a convivência com o irmão da mulher que estava à sua frente, rompendo-lhe toda aquela atenção... Cristiano era um grande amigo e Luciano o perdera... Voltar a ter contato emocional com uma pessoa e justamente com a irmã daquele amigo tão querido, era uma idéia tanto assustadora como extremamente agradável... por isso era tão difícil se desligar dela: era algo íntimo. Uma lembrança perfeita e que se consolidava na perfeição de Carol... A muito custo ele se desligara: não queria nunca se desligar daqueles olhos... Nunca. • Droga! Eu tenho de ligar... Eu já volto! • Tudo bem... - Ele se levanta e anda até o bar. Carol o observa. Tem pensamentos que nunca revelaria nem a melhor amiga. Todo aquele momento estava coberto de prazer e esquecimento. Ele a convidara; ela aceitara. Era simples, Carol pensava. Era uma exigência do seu corpo e de sua mente: ter de voltar aquele simples sentimento de prazer e paz. Toda a conturbação dos últimos dias parecia ter lhe furtado essa sensação tão elementar. O homem com quem estava lhe trazia memórias de dias mais alegres de seu passado... A presença de seu irmão em sua vida; e na vida dele. Eram partes componentes de uma nova fase; ela sentia.. E mesmo apesar do nervosismo presente em todo aquele clima de proteção e não revelação; e também da breve interrupção, Carol via que pelo menos naquele momento podia confiar na construção de um futuro melhor. Aos poucos conseguiria se reerguer. Tinha que aprender a ser forte... Seus pensamentos se transpareciam; seu corpo revelava (confusa esperança) ... Luciano... Seu rosto não conseguia esconder, se tornava evidente: ela estava


cativada por aquele jovem policial. Ele começava a se transformar num ícone de sua necessidade: a fonte! • Nós temos que ir! - Ela via uma nova apreensão no rosto de Luciano. Temia que fosse um sinal de uma inevitável quebra do seu momento de revitalização. Sabia que era uma possibilidade viva, o tempo inteiro, mas é uma coisa mais fácil de ser negada do que encarada... Precisava ser forte! Pensava continuamente. • Algum problema? - Ele olhou para ela hesitante. Sabia que o prazer daqueles instantes que eles tiveram juntos estava por sucumbir ao retorno para a realidade. Tanto suas renovadas esperanças quanto as dela, principalmente as dela, que não faziam parte daquele mundo... Eles estavam por ter que novamente reconhecer aquela situação que os reuniu. Luciano lamenta intimamente, mas não pode esconder de Carol o que se desenvolvia: • Uma... família identificou o corpo daquela garota. - Os olhos de Carol perderam o brilho. Era quase um choque ver uma expressão tão alegre se modificar de uma maneira tão impiedosa. As memórias retornaram à mente dos dois. Era como uma maldição que insistia em seguir no momento em que se parecia estar em contemplação... Era injusto... Carol tentava não perder as últimas forças capturadas durante aqueles momentos com Luciano. Era difícil encontrar uma postura para reencarar aquilo. Não estava preparada. Talvez nem Luciano estivesse... Ambos sentiam a mudança. Não havia mais o que fazer naquele lugar. Tinham que partir. Caminham juntos para o estacionamento. Não há troca de olhares. Não há o que dizer. A magia do momento juntos havia terminado. A lembrança do que os tinha feito se reencontrarem estava lá de novo. Rodeando-os. E não era agradável, como sempre. Surpreende como a vida parece agradar e atacar seus seres sem a menor complacência ou remorso. Só se difere o modo como cada um lida com essas mudanças... Era mais forte que a razão: Carol não quer, mas sente medo; por tudo. Ela estava atraída por um homem que vivia como vivia, não podia evitar, era mais forte que ela. E uma nova antagonia surgia em sua vida: aquelas visões mórbidas vinham à sua mente outra vez, misturava memória, medo e imaginação... Uma forte insegurança também surgia: a respeito dela própria, de sua vida, do que ela fazia e sentia... Quando tal batalha terminaria? - Ela pensa... Visualizando em seguida o homem ao seu lado: calado, passo a passo com ela, sério... Talvez só: diferente dela, ele separava os dois lados e sua cabeça podia conter aquelas duas situações antagônicas. Luciano tinha maior convívio com o discernimento, mas também estava confuso; detestava estar impotente diante da insegurança de Carol. Talvez com o tempo conseguiria achar o que realmente procurava... Ambos sentiam, por extremos diferentes. Havia uma estranha proximidade; entre as sensações dos dois e entre as duas situações: vida e morte; prazer e náusea... Surgia nesse ponto a melhor fonte de união. Eles viviam os dois lados, juntos. Sentiam diferente, mas a lembrança daquela noite, e mesmo da sua brusca alteração de extremos, fazia-os partilha de muito mais que um simples encontro... Eles descobriram; está com eles... A partida! Ao chegarem no prédio de Carol, Luciano mantinha a seriedade. Estava firme, era o reencontro com sua postura policial... Mas algo em ambos ainda pedia uma finalização mais adequada para aquele encontro tão cheio de altos e baixos: teria que haver um último extremo... O melhor: era a despedida!... • Espero que tenha gostado! • Eu adorei! - A viagem em silêncio parecia ter sido uma terapia para ambos. Voltar à simples banalidade era o melhor som que se podia ouvir após todo aquele desapreço do destino... Ambos queriam “O final”!


• •

Desculpe pelo final corrido, mas... Tudo bem! Eu entendo. - Ele deu um sorriso de concordância. Ela sentia com leveza a volta do prazer do encontro; antes do telefonema... Olha para ele alguns segundos. Palavras não eram mais necessárias... Luciano tinha de ir; estava hesitante, mas ele também queria... Via nos olhos de Carol... Eles se aproximaram. Mais alto um pouco, Luciano se inclina. Os olhares se cruzam novamente. Seus corpos e tensões se alteram para o encontro. Era o fio da espera: seus lábios se tocam; era tudo que eles precisavam. O final... Naquele momento não havia mais corpo dilacerado; não havia mais dor, sofrimento ou lembranças; somente as sensações geradas por aquele simples toque. Seus corpos e mentes só diziam uma coisa... Esteve presente durante toda noite (político), foi por um pequeno período abafado (o passado) e enfim se mostrava presente nos dois, irrepreensível: o desejo.

2 Chegando ao Complexo de Delegacias, Luciano tentava transportar-se para o seu outro lado: o de policial sério. A lembrança dos lábios de Carol ainda latejava em sua cabeça. O reconhecimento de uma emoção simples e única... Mas ele tinha que encarar a realidade: o pai de uma garota deixada irreconhecível aos olhos de peritos, mas facilmente reconhecida por uma família unida e presente... • O nome dela é Ilena Fernandes. O pai a identificou pela cicatriz no braço. Ela estava sumida há três dias. - O investigador dava as informações para Luciano, o encarregado do caso. Seu olhar ia da ficha e da foto em mãos para o pai sentado dentro da sala. Sua mente saía das lembranças de Carol e ia para lembranças mais distantes, ia para aquele rosto à sua frente, para o corpo dilacerado... Aquele pai, sentado lá, tentava se conter e encarar a situação de maneira firme: dura será a missão desse homem! - Pensa Luciano com pesar... O investigador diz a ele que o irmão da garota deu um ataque quando soube e que foi levado para casa sedado. A esposa do homem também não estava nada bem... Luciano sabia de tudo aquilo. É sempre uma reprise já aguardada. O que mais podia fazer? Agora já estava tudo feito. Os caminhos do destino já tinham sido traçados. Tinha que seguir em frente. Ele é o policial... O responsável. • Olá. Eu sou o detetive Luciano. Encarregado da investigação. - O homem se levanta para apertar-lhe a mão. Era como um zumbi de gestos cansados. A exaustão e a tristeza lhe maquiavam o rosto... • Eu sinto pela sua filha. - Os olhos do homem se desviam de qualquer coisa. Não havia expectativa de resposta. Queria ele se esconder de tudo e não ter de ver mais nada ou ninguém no mundo... • Eu preciso fazer algumas perguntas; e provavelmente terei de falar com a sua família e também ver os pertences de I... de sua filha. • É mesmo necessário? • Devido à gravidade do crime... sim. Tememos que possam acontecer novos incidentes. - Luciano detestava usar tal palavra. Era uma fuga natural das pessoas o que realmente se queria dizer: assassinato. Ou qualquer outra fatalidade. Mas ele se manteve; era preciso. Eram mais que palavras... Agora uma família estava exposta àquele momento. A fuga era uma necessidade. • Nós faremos o que puder... - A voz do homem se deteriorava. Luciano já vira isso acontecer várias vezes, mas ainda era difícil suportar tanta


consternação sem participar; principalmente, agora: os dois lados o afetavam. • Obrigado... senhor Fernandes! • E quanto ao... corpo...? • Infelizmente ainda não podemos liberá-lo. - A frustração se transparecia no seu rosto ainda mais, mas ele não tinha forças para qualquer retração. Ele só queria ir para casa e ver a família. Ela estava mutilada agora; ele sabia. Mas ele queria estar perto dela mais do que nunca. Nesse momento era tudo que restava... Luciano conseguia ver essa necessidade nos olhos do pobre pai... • O senhor pode ir agora. Amanhã ou depois eu irei em sua casa. Eu agradeço a cooperação do senhor, mesmo sendo um momento tão difícil. (...) O senhor Lauro sacudiu a cabeça. Não queria mais falar. Só queria ir embora... Se sentia perdido; só. Era uma rara fonte de desgosto... Ele sofre; meio morto... Ele vai embora, deixando Luciano sozinho na sala. Observa ele o afastamento do homem por alguns segundos; parecia emanar a dor... Luciano pega a foto da garota de novo. O que há por trás disso? - Pensa ele... Vendo aquela linda moça, seus olhos enxergam fundo, mais que os outros. Era algo próximo... Ele sentia aquele poder de novo: pegar o assassino! Isso o deixava de certo modo excitado. Se sentia forte apesar da situação: uma amoralidade incontrolável; uma atitude de desconfortável satisfação... Ainda podia ver a expressão daquele pobre homem , mas não podia evitar... Longe dos olhos de todos, ele queria isso... Era um forte paralelo com o seu momento... Ele desejava tanto o poder quanto desejava Carol... Formava um círculo. Diferente. Recomeçava... Carol! Sentia que as coisas podiam se encaixar: perfeitas! 3 Ela está no chuveiro. Chegou mais cedo que esperava. Muita coisa povoava sua cabeça, mas uma sensação dominava seu corpo. Parecia pedir aquilo. Queria esperar até o momento certo, mas estava muito forte. Começava no ventre, descia até as pernas viajando por tudo que há entre. Era a sensação... Sobe para os ombros, pescoço e lábios, onde a memória do contato era maior. Não conseguiria dormir sem aquilo. Mal se lembrava da última vez que se sentira assim; talvez nunca. Carol reinicia a viagem pelo seu corpo. Ela o conhece muito bem. E ele está pedindo... Os movimentos se tornam contínuos. O jato do chuveiro compõe o toque generalizado, levando de sua pele todo e qualquer resíduo. Seus olhos fechados, tentam enxergar a memória daquele que está em sua cabeça: Luciano. Seus cabelos tocam as costas e os ombros. Ela o sente como mãos. Cada parte do seu sistema está vibrando. É uma mágica. O tempo não existe. Ela vê aquilo crescer em seu organismo. Tenta conter um grito que lhe chega às cordas vocais... Ele soa como um leve grunhido. É irresistível. A pele de Carol começa a se arrepiar. Ela sente o final chegar. As outras partes sensíveis também gritam por toques, mas ela não tem mais mãos: tenta revezar. É o fim. Ela sente. É um tanto contido, limitado... Mas por agora bastava. Sua mente estava se libertando. Ela vivia de novo.


Os passos Luciano entrou na casa e sentiu o peso do ambiente. A pobre mãe, dona Joana, se mantinha sentada, pálida, seu olhar perdido. Luciano havia perdido a mãe muito cedo, não tinha muita referência pessoal sobre um relacionamento tão singular: o de mãe e filhos, mas tinha capacidade de imaginar que tipo de dor aquela mulher deveria estar sentindo. Se lembra de como a mãe de Carol havia ficado quando Cristiano morreu... Era uma palidez bem semelhante à que observa em dona Joana... Ele dá uma olhada nas outras duas filhas daquela família: consolavam-se uma a outra no canto da sala. Do relacionamento fraterno a única e mais próxima lembrança era Cristiano: não tinha outro irmão, só a si mesmo. A união das duas lhe trazia tanto harmonia por elas próprias, como também ressentimentos por coisas em sua vida que ele não teve ou que teve e perdeu... Aumentava ainda mais seu “distante profissionalismo”... O senhor Lauro vinha cumprimentá-lo. Luciano imagina como aquele homem deve estar tendo uma força sobre-humana para poder encarar o clima daquela casa, ainda conseguindo se manter firme diante da situação em si: ele condensava toda dor da família e a sua; é o responsável: um dirigente patriarcal que precisa sobrepujar os próprios sentimentos para manter a máquina político-familiar funcionando... É o que ele faz: • Olá, detetive... Eu vou mostra-lhe o quarto de Ilena. É por aqui... - Sua voz estava fraca, arrastada; como se a qualquer momento pudesse desaparecer. Luciano o seguiu. Era como andar pelos corredores das recordações daquela família. O apartamento não era tão grande, mas cada canto, cada foto, cada imagem transmitia através de seus personagens que algo (alguém) presente em tudo não estava mais lá... A união de toda aquela família aumentava ainda mais a sensação de impotência e distanciamento em Luciano: não podia trazer Ilena de volta e simplesmente não podia, e não queria, se envolver...”Trabalho!” - Está em sua cabeça. • E o seu filho? - Para completar o cenário. • Ele ainda está de cama. Foi um choque muito grande. • Eles eram chegados? • Demais. Estavam sempre juntos. Imagino a falta que ele deve sentir... Luciano sentia a verdade e a tristeza nas palavras do homem. Sentia, mas não podia evitar o procedimento: • Eu provavelmente terei de falar com ele, senhor Lauro. Pela proximidade dos dois, pode haver alguma informação importante que ele possa nos dar. • Eu entendo... Falarei com ele depois... quando melhorar. Eles entraram no quarto de Ilena. Era um quarto normal de uma jovem de 21 anos de classe média. Ainda estava arrumado do dia que ela desaparecera. Guardava um tom soturno em cada objeto que se podia ver; não eram eles próprios, era a falta que eles representavam. A visão investigadora de Luciano procurava qualquer sinal de pista. A primeira coisa que ele localiza é uma agenda de telefones; estava numa escrivaninha, junto com alguns livros, um caderno e um porta caneta. Ele pediu licença e se apossou da agenda. Luciano folheava o pequeno livro florido sob o olhar “morto” do senhor Lauro... O homem dava voltas com o olhar pelo quarto. Desejava intimamente ter estado mais vezes ali. Sua família era unida, mas a rotina da vida diária acaba sempre por afastar um pouco as pessoas. As preocupações do dia-a-dia; coisas tão insignificantes agora... Contém a lágrima que vinha surgindo no seu olho através de uma pergunta ao introspecto detetive: • Encontrou alguma coisa, detetive? - Ele folheava muito interessado a agenda de telefones da garota. Estava muito sério... • Talvez!... O que ela fazia?


Ela trancou a faculdade há uns sete meses e estava procurando emprego. O que os jovens chamam de dar um tempo para se encontrar... - O senhor Lauro se perdia no meio de sua afirmação. Era difícil admitir que a filha tinha morrido: uma verbalização errônea de uma presença não mais existente... Luciano o olhou por alguns segundos... • Que faculdade ela fazia? • Publicidade! Aquela resposta deixava com sentido, apesar de emergente confusão que seu significado provocaria, a presença do nome que Luciano tinha achado na agenda e que nesse momento ele observava. Não sabia que artimanha do destino era aquela. Sua postura não deixava transparecer a perplexidade que se formava... Apesar de que o senhor Lauro não estava nem um pouco atento... Ele tinha acabado de encontrar o nome de Carolina na agenda de Ilena: elas estavam na mesma faculdade, mesmo que uma sem estar freqüentando. Elas se conheciam... Imagina ele o quanto...Aonde mais aquilo iria? Que obra era aquela que fazia uma leve coincidência virar uma trama: Carol conhecia a vítima que ela própria tinha encontrado dilacerada abaixo do “Cristo”. Luciano não conseguia evitar de imaginar o choque que aquilo seria... Mais um! Os outros nomes da agenda deveriam ser na maioria de outros alunos daquela faculdade. De um jeito ou de outro ele teria que pôr Carol a par. Aquela investigação estava tomando um rumo que Luciano começava a não gostar. Já era difícil se manter distante das pessoas envolvidas e agora ele já estava próximo de uma pessoa que ele teria de envolver: era a perda do invólucro policial... • O senhor ainda vai precisar de alguma coisa do quarto dela? • Eu acho que não. Essa agenda deve bastar. Mas por favor tente não tirar nada daqui; por enquanto. • É claro. - Os dois saem do quarto. Luciano seguindo o senhor Lauro. • Ah! Agora eu me lembrei! O carro da sua filha foi encontrado. Ele estava abandonado no Comércio. • Que bom... - Ele não parecia ligar muito. Provavelmente seria mais uma coisa que lembraria que a filha não estava mais lá. Um acréscimo ao acervo de recordações daquela família... • A perícia não encontrou nada nele, portanto o senhor pode pegar quando quiser no DETRAN. Só precisa de um documento de identificação do proprietário... • Ele está em meu nome. • Eu imaginei... - Já na porta, Luciano aperta novamente a mão do senhor Lauro. Sente o calor. _ Em alguns dias eu ligo para falar com seu filho. • Não se preocupe. Ele já deverá estar melhor... - Luciano parte e o senhor Lauro fecha a porta... A situação daquela família era triste. Luciano se sentia aliviado por sair daquela casa. Não podia deixar de ansiar uma maior agilidade no processo ao qual estava envolvido. Mas não podia exigir muito de uma família em tal estado. Ele sabia qual era o seu próximo passo: os nomes da agenda; inclusive Carol. Ele estava tomando um caminho difícil e desconhecido. De certo modo ele se fascinava com aquilo tudo. Aquela trama... Uma estranha força... Como as coisas podiam ser assim?


A ponta do “Iceberg” Ele anda pelo seu aposento. É um animal enjaulado em si mesmo. Olha para a mesa e lá está... É a foto dela. Um momento guardado de alguém que não existe mais. Não podia conter aquela sensação. O arpejo tinha começado há dois anos atrás e o levou a isso. Como pôde ter descido tanto? Como pôde ter liberado tanta hostilidade? Ele se admira de sua própria impaciência enquanto anda de um lado para o outro de seu quarto, totalmente escuro. As imagens a sua frente são selvagens. São de si mesmo. Ele sente medo... Mas gosta. Estava a salvo, por enquanto, mas as luzes começavam a aparecer... As notas queriam recomeçar a tocar. Agora era outra imagem que se repetia. A primeira se transformou somente em uma lembrança de um momento violento e sublime. Ele queria amá-la, mas o arpejo tocava para outro lado. Pedia mais morte. 2 A agenda nas mãos de Carol não deixa dúvida. Ela custava a acreditar: a cada momento que aquela mórbida lembrança parecia desaparecer de sua mente, outra revelação surgia e a tornava ainda mais terrível... Ela segurava a agenda e a foto; não podia acreditar: • Ilena! Eu não acredito! Como isso pode acontecer? - Ela se vira para Luciano com os olhos trêmulos. Era uma sombra dos olhos que o haviam recebido há vinte minutos atrás: eles brilhavam. Pediam um novo contato como o de alguns dias atrás... Luciano tinha sentido a mudança, mas não tinha escolha... Tinha um trabalho. • Eu sinto muito, Carol. Acho que foi uma triste coincidência. • Triste?... Primeiro o corpo. Agora isso... - A desilusão dela se tornava uma leve revolta. O que tinha começado com um corpo não identificado havia se tornado uma coisa mais próxima: pessoal. Não só o fato de a vítima ser uma amiga de Carol... Ela começava a ficar cansada daquele sobe e desce entre satisfação e desilusão. Atingia um ponto de saturação em meio a esse tão confuso momento. • Eu não queria te envolver, mas vou ter de falar com esses nomes que estão na agenda. • Eu não conheço todos; só alguns. • Tudo bem. Eles devem conhecer os outros. • Você acha que pode ser um deles? - O olhar de Carol agora ficava vidrado na agenda e na foto. Ela olhava os nomes com interesse. Mais parecia estar por vir... • Eu não sei... É um começo. - Luciano nota que Carol mudava à medida que aquele caso se complicava. Quisera ter ela nos braços de novo, sem ter aquele empecilho entre eles. Começava a se incomodar com o interesse dela pela situação. Ficava mais pessoal a cada revelação.. • Como ela era? - Carol olha um minuto fixo para a foto. Não a via há muito tempo; era uma verdade. Mas as memórias começavam a surgir em sua mente e apesar de boas, no final, conotavam tristeza. • Era muito alegre. Não consigo imaginar ninguém querendo machucá-la. Luciano via uma raiva contida surgir em Carol. Temia por ela e por ele próprio. Temia pela perda do que eles haviam iniciado juntos... • Que loucura! Quem fez isso é um monstro. Sem dúvida! - Ela se levanta e vai até a janela. Dá para a Avenida Oceânica e tem a vista da praia logo em frente. Carol não conseguia parar de pensar em Ilena. Ainda custava em


aceitar o fato. E tudo parecia piorar quando ela lembrava do modo como o corpo estava... Ela aperta o parapeito da janela, fecha os olhos e sacode a cabeça... Queria tirar aquilo da mente! Luciano a observa com atenção; assegura certa consternação por vê-la passar por aquilo. Só queria tê-la de novo, mas uma barreira estava no caminho... Ele olha para a foto de Ilena. Quase que pedia para que ela nunca tivesse existido... Luciano sente a dor do momento; mais por Carol; mas se mantém, continua: • Carol... - Ela se vira para ele. • Eu preciso de você. • Eu sei. Eu farei o que puder para ajudar a pegar esse monstro. - Luciano admira a seriedade e firmeza na voz dela. Era uma nova Carol. Ele anda até ela; tem vontade de tocá-la. Mas o olhar dela não mais pedia isso; pedia retratação... A volta da paz que tinha antes desse “maldito” aparecer em sua vida. • Eu... agradeço, Carol. Espero que não seja tão difícil... Eu vou precisar ir na sua faculdade. Acho que é o melhor lugar pra falar com todo mundo. • Tudo bem. Acho que vai ser um choque para eles também, mas vão querer ajudar... Esse sujeito matou a pessoa errada. Ilena não merecia morrer e seus amigos não vão dar trégua. - Luciano se assustou com o tom raivoso de Carolina, mas também não pôde evitar de tirar ironia policial da ingenuidade daquela frase. Ele bem sabia que o que os amigos de Ilena poderiam fazer era o mínimo; provavelmente dizer como ela era uma garota legal, e como não merecia ter morrido: Luciano ri intimamente. Ele sabia que, certamente, a melhor chance contra o assassino seria quando ele atacasse de novo. Pegá-lo por ele mesmo... Estabelecer métodos e formar suspeitos: ele sabe que a lei caminha desse jeito... Só não lembrava que outra vida seria desperdiçada. A sua humanidade às vezes falha, mas é uma conseqüência natural do serviço policial... Ele olha Carol de novo; ainda quer tocá-la; mas simplesmente vai embora. Aquele momento estava “morto”. Carol volta à janela. Queria voltar à vida de antes, mas sabia que não era mais possível. Ela hesitava, mas sabia que tinha uma batalha pela frente: ela mesma... e também seus amigos. Imaginava a reação deles... Seus olhos se fecham novamente: “Quanta dor!” 3 Uma presença parecia surgir entre Carol e Luciano. Algo mais que a consternação e a revolta. A cada novo fato que surgia, complicando ainda mais suas vidas, eles se prendiam a tudo aquilo e não conseguiam deixar de sentir a distância que começava a surgir entre eles. Nem Luciano, nem Carol ansiavam por isso, mas uma criatura surgia entre eles e os empurrava para lados opostos do mesmo desconhecido... Talvez possam contornar; talvez possam superar o monstro: Sua simples aparência em fatos já era uma grande força de retração entre ambos, mas se fossem realmente poderosos os sentimentos que começavam a surgir; aquele breve momento de despedida e desinteresse, com certeza, seria esquecido e daria lugar ao que ambos mais desejam: estar um com o outro, sem nenhuma presença em seus “calcanhares” ou em seus corações; o tão esperado recomeço... Com o tempo!


Olhares Luciano e Carol estão sentados. A cantina da Faculdade de Comunicação é palco de uma série de revelações chocantes e tristes... São várias mesas. Em uma está Carol e o seu amigo policial recém apresentado a todos. Ao redor deles estão pessoas com expressões desoladas. Eles não tinham notícias de Ilena há muito tempo, mas isso não diminuía o impacto do momento. O que poucos dias atrás era o motivo para acalentar uma amiga sofrendo, agora é o sofrimento de todos. Como a vida podia jogar na cara de todos aqueles jovens e esperançosos uma coisa tão terrível... Mesmo os que já tinham tido experiência com a perda de pessoas próximas não estavam preparadas para tanto. Todos tinham tido conhecimento do ocorrido; através de Carol e através dos noticiários; um corpo tão dilacerado que não podia ser reconhecido. Somente Carolina tinha visto o corpo, de todos eles, mas naquele momento a imaginação de cada um tratou de suprir o sofrimento e o choque com imagens tão ou mais terríveis que o real; tudo sendo cruzado com a figura viva e alegre que suas memórias tinham de Ilena. Eles não podiam acreditar... Os que falavam, os que choravam, os que se calaram, todos sentiam aquilo sem acreditar... Seus rostos demonstravam algo como se um pedaço das próprias vidas tivesse sido arrancado. Há tão pouco ela parecia tão distante e agora que está morta parece tão perto... Curiosidades humanas... Luciano observava cada olhar. O mais firme ainda é o de Carol; ele temia que tudo aquilo a tivesse afetado demais... demais até para ela perder o interesse nele. Ele tentava não pensar nisso... As pessoas ao seu redor apresentavam sua tristeza e revolta: como ele havia previsto todos pós-admiravam a amiga morta; duvidava achar alguém ali que ajudasse realmente à investigação, mas tinha que fazer o serviço: • Alguém aqui falou com ela recentemente? - Carol observava Luciano conduzir as perguntas; já sabia como aquilo funcionava. Pensava como seria doloroso para cada um no momento que tivesse de falar sobre Ilena individualmente... Discutir a personalidade e o comportamento de uma amiga morta. Ela tinha certeza que ninguém ali saberia alguma coisa e duvidava em sua alma que qualquer um pudesse ter algo a ver com o crime. Essa era uma idéia que ela repugnava tanto quanto o próprio ocorrido. Todos que tinham seus nomes na agenda de Ilena seriam questionados, mas ela sabia que todos eram amigos de Ilena e amigos não matam!... Na mesa vizinha; sozinho; de certo modo tão triste quanto todos na primeira mesa... Fernando olha o grupo. Ele sabe do que se trata; não pôde evitar, e todos saberiam cedo ou tarde (comunicação)... Por entre o grupo ele procura uma imagem específica. É a única imagem que segura toda aquela situação. Seus olhos querem Carol... Olhando diretamente para ela, como muito o faz, memórias e desejos vêm à sua mente. Ele sabe como ela está se sentindo. O sofrimento dela traz outras memórias; de um tempo passado e que foi esquecido a duras penas, mas que ainda assombra... Seus olhos captam algo indesejável: Carolina toca no braço de Luciano. É um gesto corriqueiro, mas Fernando vê como ela o olha... Novamente ele sente: por um minuto se esquece da dor recém revelada a todos e se volta para a própria dor... Ele! Carol olha ao redor e como muitas vezes ela se choca com o olhar de Fernando. Ela o conhece. Não o quer mal, mas um frio no estômago lhe vem sob o olhar inquisidor. Sabe que o amor pode significar dor. E para Fernando realmente o era... Ela solta o braço de Luciano. Ele se vira e vê o olhar de Fernando fuzilar a mulher ao seu lado. Olha diretamente para Fernando... num segundo os dois olhares se encontram. Carol e Luciano olham para Fernando. Ele não esperava aquilo. O frio no estômago agora o atinge... Discretamente Fernando desvia o olhar. Não sabia o que tinha sentido naquele momento.


Ele agora é o alvo. Era uma sensação nova, pois nunca foi atenção para ninguém... Se sentia deslocado por ter seu mundo invadido; se sentia desprotegido. Sobrevivência! Luciano, ainda olhando para Fernando, se aproxima do ouvido de Carol. Ela estava meio distraída, mas viu que Fernando tinha desviado o olhar por causa de Luciano, atrás dela. Ela conseguia visualizar o cenário... • O nome dele está na agenda? - A pergunta surpreende Carol. Não sabia como comutar tais pensamentos: aferia... • Você acha que...? As pessoas ao redor falavam entre si e não notavam o colóquio entre os dois... • Eu tenho de checar todo mundo, Carol... E então? - Ela se oferecia certo alívio com a resposta. • ... O nome dele é Fernando... E sim; está na agenda. • Ele era próximo de Ilena? . Carol olha novamente para Fernando. Não muito tempo atrás ele lhe confessara coisas muito íntimas e tristes. Sempre o vira sozinho; se sentia a pessoa mais próxima dele e se ressentia por ter se afastado dele após a revelação... Carol sentia que ele tinha ficado ainda mais triste e sozinho... Ela se via ainda com mais sofrimento em seu coração; além do que já parecia estar na carne. Estava difícil suportar... Ela se volta para Luciano. • Acho que eles se falavam às vezes, mas Fernando nunca foi próximo de ninguém... - Luciano observava o teor de ressentimento na voz de Carol: uma pausa de compaixão. • Ele olhava pra cá bem triste. - Ele sabia que Fernando olhava era para Carol, mas não quis forçar... Queria descobrir os pontos. Seu trabalho. • Acho que ele sente como todos nós; só que de longe. - Luciano sentia todo peso daquela afirmação. Seu olhar aguçado viu no momento em que ela disse aquilo: aquele rapaz era apaixonado por Carol. Ela falava por metáforas, como se falasse de Ilena, mas falava de si própria, e Luciano via isso... Ele não quis consterná-la mais ainda com o reconhecimento daquela situação... As respostas surgiram: “Tempo!” • Depois eu falarei com ele. Só para seguir o esquema. - Carol ficava aliviada. Não queria pensar que alguém dali pudesse cometer aquela atrocidade; muito menos Fernando; alguém que ela não podia evitar de sentir pena... Mas ainda teria de acompanhar a investigação de Luciano... E já imaginava quando chegasse a vez de falar com Fernando. Ela duvidava da própria capacidade de suportar tudo aquilo. Sua resistência ao conflito que estava por vir. Luciano continuou a falar com os outros, mas sua atenção se voltava sempre para Fernando. Ele via naquele jovem de aparência tão triste e solitária uma força muito além da vista de todos. Aquele olhar fuzilante sobre Carol lhe dera uma porta... Algo muito além do próprio olhar estar sobre a mulher que ele também queria: ele via a hostilidade em continência... Um olhar que um policial podia captar de longe. Uma forte antecipação. 2 Fernando “fugia” da cantina. Queria fugir daqueles olhares. Um policial, a mulher que ele ama, uma morte. Ele gostaria de sumir e fugir de tudo aquilo. Um medo o tomava. Tentava não sentir raiva da rejeição e da “pena” de Carol. Tentava não pensar em Ilena. Tentava esquecer a mão de Carol no braço de Luciano. Queria morrer... Ainda sentia o


olhar do policial em suas costas... Queria nunca ter existido! Ele sai em dor. Um desistente da pr贸pria vida.


A chave É de tarde. Foi um dia difícil para todos. Cada um que sentou em frente de Luciano passou sua angústia. Por dezenas de vezes Luciano ouviu como Ilena era alegre, boa amiga, boa pessoa e incapaz de qualquer maldade. Sua experiência lhe dizia o quanto aquilo era irrelevante e irreal. Ele tinha que conduzir uma investigação; mas não podia deixar de ser afetado por todo aquele afeto apresentado por aquelas pessoas. A união humana impressiona a todos. Em alguns casos o jovem policial chegou a se tocar com a emoção de seu entrevistado. Uma a uma, aquelas pessoas foram levadas por Carol a ele em uma sala vazia. As perguntas se sucediam repetitivas. Ele via como cada um reagia. Era triste e ele sabia que não estava ajudando muito, apenas alimentava um fracasso inevitável. Tudo que eles pareciam sentir pela amiga ausente se tornava um símbolo de sua importância em vida e também da presença, aparentemente, errônea de Luciano ali. A revolta e tristeza não pareciam conter nenhum tipo de hipocrisia geralmente presente nessas situações, como muito Luciano vê em seus dias. Parecia uma procura inútil. Ele se impressionava e se frustrava. Tinha os mais diversos pontos do comportamento humano em suas mãos: era fascinante, mesmo nos momentos de delírio irreal... Era perdoável... Eles são humanos. Sinais de verdadeira amizade: fortes, inocentes e incapazes. Luciano e Carol sozinhos na sala: • Faltam quantos? - Sua expressão era cansada. Estava ali desde a manhã e foi paciente com todos. Carol olhava para ele e via mais um motivo para admirá-lo: sua obstinação diante das dificuldades. Luciano nota como o olhar de Carol tinha voltado para ele como era antes. A sensação lhe voltava também... • Só uma. Ela está esperando. Era muito amiga de Ilena.. - Luciano a encara. Vê a fragilidade em sua feição... Uma abertura: ele passa a mão pelos cabelos de Carolina. Queria senti-la de novo. Após aquele dia tão estafante, era bom ter uma sensação agradável novamente. • Todos eram muito amigos dela, não? • Tem razão. Ela era amiga de todos. • E aquele cara da cantina hoje... Fernando? - Carolina muda um pouco a expressão. Depois da troca de olhares de manhã não tinha encontrado mais Fernando. Imaginava no que Luciano poderia estar pensando... • Eu não tive oportunidade de falar com ele. Eu o procuro amanhã. • Você não tem o telefone dele... Aliás, nós já o temos: a agenda. Por que você não liga para ele hoje? - Carol se surpreendeu com tanto interesse de Luciano por Fernando. Ela não podia imaginar aquela pessoa tão frágil e triste fazendo mal a Ilena... Também não sentia muito entusiasmo em ligar. Só ligou para ele uma vez e sentiu como ele estava tenso do outro lado da linha. Era um contato que Fernando podia não agüentar e ela sabia disso. Se incomodava pelos dois lados. Mas... • É. Eu posso ligar... - Luciano sabia o que estava falando. A tensão e hostilidade que ele viu em Fernando de manhã era algo claro. Algo explorável. Sentia como a compaixão de Carolina por ele a fazia não enxergar tais pontos; além da própria vaidade. Luciano sabia que Fernando sentia diferente dos outros. Uma visão diferente dos outros podia ser a chave para um melhor conhecimento daquela situação. Ele veria... • Tudo bem... Agora chame a moça. Como é o nome dela? • Frida. - Ela sai para chamar a colega. Luciano a observa. Tenta fugir das pressões do momento e da investigação nas lembranças do beijo que dera


em Carol há alguns dias atrás. Sua mente já fantasiava momentos mais “aléns”, mas o serviço ainda estava a sua frente. Mesmo que inútil, ele tinha de checar todas as possibilidades. Elas voltam:... • E então... Quando você teve o seu último contato com Ilena? - ... “ - Oi, Frida. Como você está? • Bem... A gente é que tá preocupada com você! Tanto tempo sem notícia... O que você tem feito? • Procurando trabalho, mas está meio difícil. • Eu ainda acho que você deveria voltar pra faculdade. Ficar sem terminar uma coisa parece besteira pra mim! • Eu sei! Depois que eu me ajeitar mais eu vou tentar voltar... • Ainda bem, Ilena... • E o curso... Está melhor? • É... Mais ou menos. A gente passou por uns “dinossauros”, mas agora até que tem uns professores legais... • E o pessoal? • Na mesma. O grupo não mudou muito. E os tipos continuam os mesmos... A gente sente muito a sua falta, Ilena. • Obrigada, Frida. Acho que eu precisava ouvir isso... • Por que, Ilena? Você está com algum problema? • Alguns... - A voz de Ilena mantinha uma polidez e alegria que às vezes falhava, demonstrando suas fraquezas, o “eu” de cada um. Frida era o tipo de amiga com quem ela gostava de se abrir, mas mesmo assim não lhe participou tudo: foi até pouco... Frida era insistente e cativante. Sabe sempre dizer algo que desconserta as pessoas e as força a se expor. Era sua característica mais forte, além da visível independência e desenvoltura diante dos problemas e da vida. Isso lhe dava respeito perante seus amigos... Inclusive os mais chegados, como Ilena. Nesse contato Frida usara todos os seus dons num telefonema... Se preocupava, se importava; numa mesma medida que os outros; mas ela tinha a capacidade para agir... Ilena se sentiu melhor ao falar com Frida; ao se abrir. Frida tinha conhecimento disso. Sempre teve.“ Ação! ...Luciano se surpreendeu com aquela garota. Diferente de todos os outros, apesar de triste, ela tinha uma incrível disponibilidade para falar. Carol já a conhecia... Frida era sempre assim; mesmo naquela situação... Ela demonstrava uma descontração que desconsertava até Luciano. Em grupo, pela manhã, não deu para notar essa diferença, mas agora... • ...namorado dela que... - Essa palavra despertou o interesse de Luciano além da observação anterior. Ninguém antes havia mencionado sobre namorados; só esperava ouvir disso com a família de Ilena. Ele se adiantou: • Você o conheceu? • Não. Ela só me contou sobre ele porque eles tinham brigado naquele dia. Disse que ele tinha forçado a barra. - Os olhos de Luciano brilharam. A mente policial tinha encontrado o melhor e mais comum caminho... A paixão. Os pensamentos dele se manobravam em sua mente para a pergunta seguinte: • E qual o nome dele?


Eu não sei. Ela não me disse. - A expressão de Luciano mudou claramente. Carol via calada que aquilo estava dando em nada; como os outros... Ela compartilhava da frustração do policial. • Eu sei de um bar que ela ia muito. E ela também namorou um dos donos de lá quando ainda estava na faculdade. Ele saiu com a gente uma vez... Carol, você não o conheceu? - Carol respondeu tranqüila: • Acho que não... • O nome dele é Cláudio. - Finalmente um nome. Luciano se aliviava um pouco em ver que aquela mulher tão falante podia, afinal, dar alguma informação pertinente. Algo que ajudasse na construção do “cenário”. • O bar é o ...Ateliê, no Jardim Bahiano. - Luciano vibrava internamente. Ele sabia muito bem aonde era aquele bar. Se soubesse que Frida era tão próxima de Ilena teria falado com ela primeiro e não por último. Teria poupado tempo e as informações seriam as mesmas. • Acho que é suficiente, Frida... • Você tem de pegar esse psicopata. Como é que ele pôde fazer tal monstruosidade a ... • Não se preocupe, Frida. Obrigado! - Luciano tinha ouvido aquela “rasgação de seda” o dia inteiro; agora que ele tinha uma pista, não queria mais agüentar. Só queria sair daquele lugar... Ele olha para Carol. • Nós temos que ir, Frida. Amanhã a gente se vê. - Frida se levanta para sair. Antes, Luciano a retém: • Frida. Você sabe de algum aluno daqui que fosse “interessado” em Ilena? • Que eu saiba, não. Ela sempre gostou de tipos estranhos... “Alternativos!” (Luciano se fixa no vazio por um segundo.)... Tchau, gente. Frida vai embora. Carolina tinha estranhado a pergunta de Luciano, mas imaginava que era um procedimento normal da investigação. Também ela, só queria ir embora. Sua saturação tinha uma fonte diferente, mas também estava no limite. A mente de Luciano traçava os passos de uma trama. Todas aquelas coincidências pareciam se conectar. A complicação do crime começava a fasciná-lo. Ainda olhava para fora da sala aonde Frida ainda estava. De certo modo havia se desagradado com ela. Era uma pessoa afetada por natureza, talvez por isso a angústia que atingia a todos os seus colegas a capturava de maneira diferente. Toda aquela descontração e franqueza o incomodava, pois tiravam dele a margem de dúvida que ele tinha que ter diante das pistas... Com certeza iria visitar o bar e o ex-namorado de Ilena. Ele sentia que o assassino estava se movendo na sombra de novo. Toda aquela confusão parecia um grande “capricho”... Uma vaidade de um novo ser... Tirou as dúvidas da cabeça quando Carol lhe veio: • Lu. Vamos embora! • Claro! Vamos sim! A caminho do carro, o silêncio dos dois revelava a ambos a obscuridade dos pensamentos de cada um. O dia tinha sido cansativo para ambos. Era trabalho para Luciano; não muito normal, pois envolvia algo muito excepcional. E era para Carol algo a ser feito; mesmo que doloroso. Os passos de ambos em direção ao carro carregavam cansaço, perplexidade, angústia e esperança; essa última, de um no outro. Todo o dia de contato, apesar do “trabalho”, afinal, os havia aproximado. Como uma espécie de luz no fim de um túnel. Bom!


“Blues” A música está no ar. Ela é diferente. Algo relaxante, que traz boas lembranças e incentiva um futuro mais suave. No palco, os músicos tocam antigas canções americanas que impõem um ritmo livre a todos os presentes; mesmo aquele que veio a trabalho: Luciano assiste a um talentoso show de “blues” no bar Ateliê. Ele está ali a procura de um dos donos do bar, Cláudio... E nesse momento o mesmo está tocando no palco; é o guitarrista. Luciano o observa; tenta ver o máximo do comportamento de alguém antes de fazer o contato. O homem tem uma aparência razoável e seu comportamento no palco indica descontração; facilidade de exposição, mesmo que pela música; e vivência. Luciano tenta não se prender a alguns preconceitos com relação a artistas. Muito bem, ele sabia que as pessoas podem representar algo completamente diferente do que realmente são. Cláudio deveria ter entre 25 e 30 anos, quase o mesmo que ele. Era músico, tinha cabelos compridos e podia-se ver algumas tatuagens no seu corpo. Luciano pensa no que Frida disse: Ilena realmente gostava de tipos “alternativos” ... Mas ele também é um empresário... O bar não está lotado. É dia de semana. Mas parecia que havia um grupo de freqüentadores bastante fiéis. Isso indica certa estabilidade na vida do músico à sua frente, no palco... Não sabia muito o que esperar. Depois de toda aquela observação, sua maior esperança estava em quando foi a última vez que Ilena esteve ali... Está de serviço, por isso toma refrigerante; mas ao levar o copo à boca, acompanhando aquela música e pensando na trama em que se envolvia; sua mente não podia parar de pensar no que tudo aquilo daria... talvez em nada. Cláudio vem até ele... • Ele disse que você queria falar comigo!? - Quando Luciano chegou, perguntou por Cláudio, um dos donos... O garçom lhe disse que ele estava no palco e que o avisaria... • Isso mesmo. Eu sou detetive Luciano da Polícia Civil. - Cláudio se antecipou: • É sobre Ilena, não é? - Luciano ficou meio surpreso. • Como sabia? • Eu ainda sou amigo da família. Uma das irmãs dela veio aqui essa semana e me contou... - Ele se senta em frente de Luciano. Sua expressão demonstrava apenas saudade; era um tanto diferente do pessoal da faculdade. Pertencia a outro ambiente, outra vida. • Quando foi a última vez que você a viu? • Faz tempo... Uns quatro meses. • A amiga dela, Frida, disse que ela vinha sempre aqui. • É. Mas eu é que estava fora. Eu viajei um tempo. O pessoal aqui disse que ela apareceu algumas vezes. • Sozinha? • Não. Ela sempre andava em grupos. • E essas pessoas... Você as conhecia? • A maioria é o pessoal daqui mesmo. Me disseram que ela veio com um cara uma vez, mas saíram logo... • Alguém viu essa pessoa/ • Que viu, viu; mas eu duvido que se lembrem... - Cláudio tanto abria portas para Luciano quanto as fechava. A primeira situação: ele mesmo tinha um álibi; estava viajando e de qualquer modo não tinha motivo... Estava com uma namorada e não demonstrava nenhum sinal de “stress” emocional;


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normal nesses casos... Depois um sujeito misterioso de quem ninguém se lembra. O jovem músico-empresário parecia ter uma vida concentrada e normal; Luciano já descartava a possibilidade dele como suspeito. Os tipos que estavam no bar realmente tiravam a possibilidade de alguém lembrar do tal sujeito. Todos pareciam estranhos. Ilena era sem dúvida uma garota popular e amorosa: Luciano sentia outras pessoas do bar, provavelmente também amigos dela, o fitarem com curiosidade e certa revolta. Era um momento bastante singular. Seguem: Quem me falou daqui foi a Frida. Ela disse que conheceu você! Eu acho que me lembro. Ilena trouxe os amigos da faculdade uma vez aqui quando ainda estávamos namorando... É uma muito falante, não é? - A memória de Luciano executa o trabalho conjunto com a de Cláudio... Isso mesmo! Ela também disse que vocês terminaram. Você podia me dizer a razão? - Cláudio guardava certa hesitação. Era sua vida, também... Bom... Isso tem quase um ano já... Ah ... Ela me contou de um cara que estava “afim” dela e que ficava telefonando direto pra ela... Eu pensei que ela quisesse que eu desse um jeito no cara, mas ela disse que tinha pena dele... que era um sujeito triste... rejeitado... Eu não tive muita paciência. Na época eu achei que ela ficou muito vaidosa com tudo aquilo. A gente não foi muito longe depois disso... Talvez se tivéssemos ficado juntos, isso não teria acontecido... - Era um tipo de consternação natural. Luciano sabia disso. Era uma defesa corriqueira da mente humana... Provavelmente não teria alterado em nada o ocorrido... Ele também sabe disso. Não se culpe. Ninguém poderia imaginar tal coisa... E o tal cara... Você sabe o nome dele? Ela não me disse. Mas ele era da faculdade... Tem certeza? Absoluta! - Luciano via ali, afinal, uma porta que o próprio Cláudio não fechara: alguém por quem procurar e um lugar aonde procurar. Não conseguia imaginar aquele músico dando mais alguma informação que lhe valesse o tempo. Aquele lugar era do seu agrado, apesar dos olhares “injustiçados” dos amigos de Ilena. O homem à sua frente lhe inspira confiança, segurança; podia ser falso; mas seu trabalho parecia estar terminando naquele lugar... por enquanto... Luciano agradece a cooperação de Cláudio. Ele retorna em seguida ao palco: é o dono do bar e se permitia tocar; pelo menos tocando bem... Luciano não imaginava ter de voltar àquele lugar de novo; ao menos não em serviço; aquela música o havia relaxado muito e as possibilidades eram boas. Um leve sorriso se formou em seu rosto: talvez trouxesse Carol um dia... Informado; relaxado, recompensado. Novamente o recomeço.


Sob a escuridão O bairro de Nazaré tem uma figura de aspecto sombrio em seu território. Ele anda pela madrugada, sentindo o cheiro da noite. Depois do poder que descobriu em si mesmo, se sente um predador. Não consegue evitar. A leve culpa que ainda o atingia não consegue tirar o prazer de ter criado uma coisa tão complicada e brilhante. O que começou como um ato apaixonado e de desespero se transformou aos poucos numa trama que surpreende até ele mesmo. Sua figura não transparece nenhuma suspeita apesar da proximidade. O poder estava ali... Mas na noite os rostos aparecem na memória à medida que as luzes da rua diminuem de intensidade. O rosto sorridente se torna o rosto sem vida e depois não existe mais rosto. Ele tenta evitar o pensamento se transferindo para o poder que o elevava... Mas o arpejo quer recomeçar e as imagens se repetem novamente; na velocidade das notas musicais em sua cabeça. Seu passo muda em pouco. Não há viva alma na rua para observálo, apenas ele mesmo. Se imagina novamente poderoso; caminhando por entre os rostos assustados. Ninguém sabe: ele sabe... Não podia haver tamanha duplicidade no mundo... Seu rosto mudava a cada segundo. Outra feição surge à sua frente: viva, presente, forte. Ele quer outra vez. Ele a quer... poderá ser diferente dessa vez? - Imagina. Talvez seja sua redenção, mas a carne está presente, novamente... Ele teme a si mesmo e o prazer que quer sentir. Triste e poderoso. Satisfeito e insaciável. Ele é sugado pela escuridão; por ele mesmo... A noite desaparece; como ele. Vinha o novo dia... Estará seguro?!


Visita Barris. O vento sopra no amanhecer de Salvador e traz uma visita especial para os sonhos de um garoto muito abalado. Ele dorme. Tem o sono agitado. Não tem sido um sono pacífico desde que descobriu que a irmã, que ele tanto adorava, estava morta, desfigurada, deitada numa gaveta do Nina Rodrigues. Até no sono ele havia sido afastado. Carlos sonha: “Ele está andando por um corredor com muitas portas. Sente a imagem de Ilena em seus pensamentos. Está nítida. Ele vê uma das portas entreaberta; se aproxima. Pela fresta vê uma mesa, parece a mesa da sala de sua casa. Ele abre a porta. É a sala da casa dele. Está muito iluminada, mas sua vista não está ofuscada. Ele entre e vê que tem uma pessoa sentada na cabeceira da mesa e outras de pé ao redor, um pouco afastadas. Ele se senta na outra extremidade da mesa. Olha para a pessoa à sua frente; o rosto não está claro, mas começa a se formar e então... é Ilena. Suas lembranças se contorcem por trás dele. Sua mente não sabe o que pensar. Ela então se levanta e diz: “Cor. Dor. Sentimento. Você o vê!” Ela começa a andar para trás; Carlos tenta gritar o nome dela, mas não consegue. É uma visão passada e agora tinha sumido. Partido para sempre... Ele se sente tonto e então”... Ele acorda. Sua cabeça está povoada pelo nome de Ilena: sua imagem. Ele vê a claridade do dia começar a surgir em sua janela. Está calmo, mas profundamente triste; sente o seu peito doer de tanta angústia. Ele se encolhe na cama e chora silenciosamente. As lembranças da irmã lhe provocam um medo que incomoda. Ele queria sumir. Como vai ser viver sem Ilena por perto?... Pensa no que terá de enfrentar. Não tinha mais estímulo; antes fugiu para o seu mundo interior, mas agora não tinha mais para onde ir. Tinha que ir em frente... Tinha que viver sem Ilena. 2 Ondina. Outra pessoa com o sono perturbado está perto do momento de seu despertar. A hora da emersão. A agitação de seu corpo é natural, mas sua mente está contemplando imagens que aumentam mais ainda sua agitação. O suplício do dia anterior tinha levado a isso... Carol sonha: “Ela está envolta em escuridão profunda. É calmo, mas uma solidão angustiante a atinge. Uma voz fala: “Perto!” Ela tenta procurar a fonte da voz, mas só há escuridão. Ela começa a se movimentar. Luciano aparece à sua frente. Sua visão agradável a atrai, mas à medida que ela vai na direção dele, ele se afasta; então por trás dele aparece a sua sala de aula; ela vê todos os seus colegas. Todos a olham; ela está confusa... A voz repete: “Perto!” Ela sai pela porta da sala e se vê na Barra, ao pé da estátua do Cristo. Ela sente o frio no estômago. Uma luz ofuscante surge atrás da estátua. Ela se move para trás... Então sente alguém às suas costas. Ela se vira e vê Fernando; se assusta e tenta se afastar dele. Ele não se move... Ela se volta novamente para a estátua e uma pessoa está lá de pé. É Ilena. Carol olha para ela fixamente e ela diz: “Muito perto!” Uma tristeza toma Carol diante da imagem de Ilena. Ela sente lágrimas descerem pelo seu rosto e um calor cobrir seu corpo. Um barulho começa a entrar em seu ouvido. Ela não sente nada” ...Ela acorda. O despertador tocava à sua frente. Carol ainda se sente mal com o sonho. Se senta na cama ainda sentindo um peso sobre si mesma. Novamente ela deseja nunca ter visto aquele corpo. Imaginava se o sofrimento iria acabar algum dia. Ela se levanta. Entra no banheiro... Debaixo do chuveiro pensa nos colegas, no dia anterior. Como eles estavam tristes e revoltados. Cada um tentando manter a postura dentro de um mar de emoções conturbadas. Do mesmo modo que ela, todos eram atingidos por aquele momento de uma maneira exagerada e forte. Muito mais no caso dela que viu o corpo destruído e ainda o tem na memória. Ela sabe que em duas semanas ou menos, todos estarão normais; longe daquela mórbida trama.


Mas não ela; de algum modo o destino a fez ficar numa “janela” muito próxima de tudo aquilo; próxima demais para esquecer, para não se envolver. Eles poderiam se salvar, mas ela, com certeza, não... Luciano também estava presente nos seus pensamentos. Ela ainda sentia uma forte atração por ele. Essa lembrança faz a água tocar diferente no seu corpo, mas logo lhe vem outra lembrança: a imagem triste de Fernando no sonho a fazia recordar do telefonema que dera para ele no dia anterior... Pediu que ele ficasse um pouco depois da aula para falar com o policial / Luciano; como o próprio pedira. Carol sentia a cada palavra de Fernando a tensão por estar lhe falando. Não podia evitar de sentir pena. E sentia pena por sentir pena. Se sentia um pouco culpada. Tentava afastar a vaidade, mas não podia fazer nada além, por ele... Já imaginava como seria aquele encontro mais tarde. Queria somente ignorar tudo aquilo, mas não podia; até seus sonhos agora estavam contaminados por aqueles problemas: terríveis lembranças... Ela só queria voltar a “viver”. Se limpar, como no banho.


Nada para falar Sair da cama parece uma missão impossível de ser realizada. A cada momento que se passa acordado as imagens surgem na memória. São as lembranças de alguém carinhosa, alguém viva e feliz. São poucas as famílias que conseguem se manter unidas nos dias de hoje. Drogas, brigas, depravação pessoal e principalmente falta de diálogo. Carlos pensa que apesar dos problemas corriqueiros da vida, sua família era realmente unida e feliz... Então, porque alguém estranho; um doente desajustado; tinha que tirar a vida de sua irmã. Nada mais seria igual. Daqui por diante sua família viveria à sombra de um ato monstruoso de uma pessoa sem rosto, a que tirou a vida de Ilena... Ele pensa na irmã a cada segundo. Sentia a presença dela nos seus sonhos. Não pudera nem se despedir. Suas felizes recordações são sempre cortadas pela sensação de perda. A falta que Ilena faz é como a falta que seu próprio corpo faria. Não só para ele, mas também para a família. E ele sentia por eles também. Ele caminha até a cozinha. É um gesto automático, pois não tem fome alguma. Passa à porta do quarto dos pais. Sua mãe está na cama. Parecia tão ou mais chocada que ele próprio. Como poderia ajudar? - Imagina... Seus pesados e dolorosos passos o levam até a mesa. Uma de suas irmãs está lá. Seu olhar perdido encontra o olhar dela. A angústia e a seriedade estão estampados em seu rosto. Tenta não sentir mais falta da irmã morta do que amor pela irmã viva à sua frente; mas não pode evitar. Carlos tinha em Ilena uma espécie de amiga perfeita. Tinha o que há de bom em sua mão, o que há de bom numa irmã e tudo que se poderia querer de uma amiga. Os momentos com ela pareciam distantes, como alguém que tivesse ido viajar... Ele anda até a janela. Sua rua; tão calma... tão solitária ela ficaria agora, sem Ilena. Ela era amiga de todos. Carlos se sente até um pouco culpado por ter tido tanto amor da irmã. Pensa que pode ter privado alguém de tal dádiva... É o prazer de muito poucos. Carlos tinha 14 anos. Se sente tão só quanto um órfão, apesar de ter mais duas irmãs e os pais. Novamente sente culpa: sentiria tanto se fosse uma das outras irmãs a ter morrido? - Tenta afastar esse pensamento da cabeça. Pensa na irmã sentada à mesa atrás dele... Olha a barraca de doces em frente do seu prédio. Ela está fechada e tem uma tarja negra no pequeno balcão... Ele sabe porque. Todos gostavam de Ilena. Não conseguia imaginar alguém não gostar dela tanto que a matasse... Mesmo em sua pouca experiência ele pensava nisso como uma coisa impossível; matar por não gostar... E provavelmente o era... Ele se volta e anda até a irmã. Ela está com um copo na mão. São 10 da manhã e seu pai e sua outra irmã saíram: cada um reage do modo que lhe é sentido. A mãe se fechava em si mesma, no quarto. Uma irmã ia para o colégio, provavelmente os amigos lhe dariam alento. O pai trabalhava, talvez precisasse, talvez quisesse; com certeza não parava de pensar em Ilena, era uma dor impossível de não ser sentida. E a outra irmã está ali sentada, sozinha, triste... O que podia ser pior? Talvez a situação dele fosse tão ruim quanto a de todos. Ele é o mais jovem. Era o mais apegado a Ilena. E era quem mais a conhecia. Ele não iria desapontá-la. Nunca mais ela sofreria de novo. O mostro destruíra Ilena, mas não destruiria tudo o que ela representava e amava: ela mesma, sua família, seus amigos, ele... Carlos anda até a irmã. Os olhos dela estão inchados. Ele a levanta da cabeceira. Ela é mais velha dois anos, mas ele já é mais alto. Ele olha diretamente para aqueles olhos sofridos e a abraça com muita força; nem mesmo Ilena ele tinha abraçado daquela maneira, e os dois viviam grudados. A irmã sente nos braços do irmão a cumplicidade numa tristeza que vinha corroendo há dias. Talvez por ele sentir tanto a falta de Ilena, podia entender e sobrepor o sofrimento de todos... Eles se soltam. Carlos dá um leve beijo no rosto dela e a senta de volta. Ambos suspiram com certo alívio. Ele dá um discreto sorriso e então se dirige ao banheiro. Sabia que tinha uma espécie de batalha pela frente: enfrentar uma inquisição da polícia e ao mesmo tempo se conter para não perder o controle de si mesmo. Ele era o


mais próximo de Ilena e teria que ajudar, teria que lembrar, teria que relembrar tudo... E tudo significava Ilena viva. Ele não deixaria o monstro destruí-lo também. Faria por Ilena; para sempre.


Anti-presença É uma batalha a cada dia levantar da cama. Pensar em abrir os olhos e ver aquela casa onde esteve a vida toda. É dele. Única coisa deixada por seus pais quando ainda tinha dois anos. Criado por pais adotivos, agora ele está sozinho, como sempre esteve, como sempre está, como sempre se sente... Fernando sente a vida como um livro, onde cada dia é um capítulo, mas que não apresenta nenhuma surpresa. Nunca pensou em destino ou futuro. Estudou e entrou na faculdade, não por vontade própria, mas porque era o passo seguinte a ser dado. Assim como mastigar e depois engolir. Ele tenta não sentir pena de si mesmo. Se acha uma tragédia humana. Uma grande conturbação de paixões irrealizáveis e de certo modo incômodas. Algumas vezes se vê como um mártir: alguém que deva sofrer; mas muitas vezes sente a hostilidade em seu peito. Não possui muito, mas é possessivo. Não tem compromisso, mas é fiel. Não tem fidelidade, mas sente ciúmes... Ele se entristece e se enraivece ao mesmo tempo... Por que? Fernando se prepara para ir à faculdade. Sua fome matutina é limitada. Sair da terra os sonhos e voltar à sua vida é uma experiência que lhe tira o apetite. São raras as vezes que sente fome antes das três da tarde. É como se fosse o período necessário para ele encarar com naturalidade aquilo que lhe parece patético e sem sentido: sua vida. Está cedo. Ainda tem tempo para chegar ao campus. Ele caminha até lá todos os dias. Gosta muito de andar. É um dos poucos prazeres que tem, pelo menos é um que não lhe causa angústia no final... Anda pela casa. A impecável bagunça lhe dá um certo orgulho... tenta se convencer de que é livre; não tem que se preocupar com os outros; mas ele sabe que não é verdade. Daria tudo para ter o prazer de uma companhia naquela casa. Alguém que tanto compartilhasse da bagunça quanto ajudasse a arrumá-la. Ele próprio não tem estímulo para fazê-lo... Inevitavelmente pensa em Carol. Nunca a convidou para visitá-lo, apesar de desejar isso mais do que deseja continuar a viver. Sabe que ela não aceitaria, e depois... podia acontecer como quando convidou Ilena para vir... Ele pára de caminhar pela casa, olha o relógio. Seu último pensamento o conduzira para a realidade que ele teria de enfrentar hoje... Num lampejo o telefonema de Carol lhe volta à cabeça: sua voz soava doce como sempre. Ela falava coisas sérias: “Ficar após as aulas!” “Falar com o policial!” “Ilena!” Mas seus ouvidos eram ativados pela memória. Um tempo, não muito distante, quando ele se abria com ela, contava suas frustrações e problemas. Mas infelizmente, mais uma vez, não pode evitar, e dessa vez estava sendo bem mais forte. Era próximo, doloroso, triste. A sua necessidade de contato chocava com a falta de vontade dela por contato. Era como uma proteção. - Ele imagina. Carol queria se proteger e ao mesmo tempo poupá-lo; mas uma tortura maior se formava... Fernando mal pode esperar para vê-la, mas quando a vê e não pode tocá-la... Uma dor o consome. Um sentimento quase sólido se forma em sua alma e penetra-o com dor, como uma faca no peito... Os pensamentos e sentimentos se cruzam novamente fazendo-o lembrar que tem que ir. Suas memórias por Ilena agora são frágeis. Algumas imagens lhe vêm à mente, mas aquela canção parecia já ter acabado, mesmo antes do final. Se sentia confuso com a morte dela. A idéia de falar com um policial o preocupava. Talvez ninguém nunca tenha sabido. Nem mesmo para Carol, isso, ele contou. Era parte do passado, mesmo que ainda tão presente. Teria de enfrentar isso. Talvez nada apareça... A imagem de Carol volta a sua mente enquanto ele já está saindo à rua. A caminhada seria relaxante, sempre é... Mesmo no dia em que se revelou para Carolina; quando sua tensão era tão grande que mal podia articular; andar foi o melhor remédio... antes e depois. As palavras daquele dia ainda ressoavam em sua cabeça... Ele sabia que iria acontecer, não podia ser diferente. Como Ilena havia dito a ele um dia: “Você não pode amar, porque não tem amor por si próprio!” E era verdade. Talvez daí venha sua hostilidade. É uma raiva que se comprime da incapacidade de amar ou de ser amado.


Fernando não consegue evitar de ficar triste. Um último choque dos pensamentos e das lembranças o faz visualizar o que terá de enfrentar hoje: ele, Carol e o policial. Era aquele homem que olhara diretamente para ele e parecia ter visto a sua alma. Talvez fosse essa a razão da sua maior preocupação: Fernando sempre teve o dom de em silêncio observar e auto-argumentar sobre as reações dos outros ao seu redor; era um talento que vinha da solidão. Agora ele iria encarar alguém que parecia ter esse mesmo poder; talvez até mais que ele... Mas o que Fernando mais temia era ser exposto para Carol... Não queria perder o mínimo que tinha; e era tudo: a sua contemplação. Sua caminhada silenciosa. Pensar é ainda o que lhe resta: revê; prevê; recua diante de si mesmo... Fernando só tem a si mesmo. É com quem ele conta... Triste. Ele chega à faculdade.


Evasões Um dia de aula na Faculdade de Comunicação pode ser tanto uma tortura interminável de informações inúteis, quanto pode ser uma boa oportunidade de aprender; realmente. Depende do dia, do professor ou do espírito dos estudantes... E nesse dia, dois estudantes em especial estão passando um dia de agonizante expectativa. Fernando chegou cedo como sempre. Sua entrada solitária na sala de aula e o contato distante com os outros alunos se mantiveram. A única pessoa que costumava lhe falar mais, agora, não lhe fala mais... Carol chegou naquele dia ciente do que teria de enfrentar após as aulas. Diferente da maioria dos dias depois que Fernando se declarou, ela, foi quem primeiro olhou para ele. Sua expressão estava tão desolada como sempre. As poucas vezes que o vira sorrir foi na sua presença. Ela sentia um pouco de culpa. Nunca imaginara que geraria sentimento tão forte em alguém. Sentia também medo pela mesma razão... Ver aquele jovem de aparência tão frágil e triste confrontava com o interesse de Luciano por ele. Seria ele capaz?... Talvez fosse ingenuidade dela pensar que não. Talvez seja ciúmes de Luciano! - Pensa seu ego, mas rápido esbarrando novamente na culpa... Não poderia ficar vaidosa nem com o sofrimento de um com a hipótese do outro... Ela viu o corpo de Ilena no pé da estátua; nunca imaginaria alguém ser tão cruel. Talvez aquela fragilidade à sua frente fosse somente aparência. Ele já tinha mencionado que já tinha sido rejeitado muitas vezes antes; o que aumentava ainda mais o seu sentimento de culpa. E se fosse um estopim... Ela viu aquele homem curvado sobre si mesma, desviando o olhar de todos, mesmo sem ninguém olhar para ele além dele próprio; e ela. O que realmente ela sabe sobre Fernando ... Além do que ele contou. - O pensamento a assusta. Ela queria não ter que passar por isso... • Oi, Fernando! - Sua vista subia devagar percorrendo aquele corpo que ele tanto fitava com desejo. E ela sabia disso. Mas naquele dia Fernando se sentia distante até dos próprios sentimentos. Fora de sua órbita natural... Tinha atenção... • Oi! - Ela não sabia muito o que dizer. No telefonema repetira o pedido de Luciano; tinha um leve propósito; e mesmo assim sentia a pressão que vinha dos dois lados... Nesse frágil momento, sua jovem mente estava insegura sobre como devia agir. A qualquer momento tudo poderia desabar. • Desculpa eu ter ligado... Luciano... (teve um breve arrependimento por ter se referido daquela maneira.)... queria falar com todos que conheciam Ilena. Você saiu ontem antes de eu poder te avisar... Desculpa. - O arrependimento dela parecia ter várias fontes. Fernando percebia isso. Sentia um certo poder por causar, pelo menos, isso nela. Ele tentava se segurar nisso e na sua contemplação para não ceder ao pranto generalizado. Já era visto desolado o suficiente para não querer começar a se ver assim. Fernando abomina as Tendências Suicidas. O pouco que ele tem de força em seu espírito é para se manter, se não próximo, além daqueles que o rodeiam. É solitário, mas é reconhecido . • Tudo bem... A que horas ele chega? • Deve chegar umas onze. • Tá certo! - Ela dá um sorriso amigo. Tanto o conforta quanto o enfurece. O que mais poderia esperar... Olhando ela se mover para sua cadeira, vê não o que esperar, mas sim o que quer. Não podia acreditar que ainda conseguia ficar alterado por ela. Por meses se desligou de tudo até ela “surgir” à sua frente. Ele nunca imagina uma paixão mais forte que a outra. Parece que


nada é aprendido. Tenta ver os casos de modo diferente, mas há uma transferência e uma proximidade que chegam a incomodar. As visões dos momentos de sua vida se aglomeram naquele momento. O olhar do policial no dia anterior o tinha despertado de várias maneiras. Novamente olhando para Carol, ele contempla uma visão além da dela própria... A intimidade que ela parecia demonstrar para com o policial enegrecia sua mente. Por que eles eram assim? Por que ele? - Fernando se lamenta por ser como é. Parecia sumir dentro de si mesmo. Parecia não existir. 2 •

Carol! - Ela se vira. Estava de pé, recostada na parede, perto da porta fechada de uma das salas do campus. Era Frida. • Oi!-- Quem está esperando? • Luciano está falando com Fernando. - A cabeça de Frida começa a aferir tudo que lhe é possível.. • Por que hoje? • • Nossa, ele é tão estranho. Não me surpreenderia se ele fosse um psicopata. • Que é isso, Frida... Ele só é calado. • Nem tanto! - Carol se interessava pelo que Frida dizia mesmo sabendo que ela sempre falava dos outros, e para os outros... Não como “fofoca” . Era mais um tipo de honestidade direta. Algumas vezes irritava até os melhores amigos; mas Carol quer saber o significado daquilo. Seu envolvimento não era mais uma questão de fazer ou não; ela já estava na trama... desde o momento que aqueles dois homens entraram juntos naquela sala: sua vida também estava por ser exposta... • Como assim, Frida?... Você sabe alguma coisa? • Eu o vi um dia discutindo com Kleber... • Aquele garoto!? • Isso mesmo... Aparentemente Kleber disse algo que o irritou. Ele pegou e riscou o carro de Kleber: depois saiu correndo. Para mim... não parece coisa de gente certa. Carol tentava olhar a perspectiva de Fernando. Não o conhecia bem. Só conseguia ver a sua fragilidade, mas ele era um homem... Kleber deve ter dito algo de muito desagradável. Era um garoto antipático de qualquer jeito... Carol ouvia as análises sensatas e absurdas de Frida e muitas vezes “voava” em seus próprios pensamentos... Luciano havia pedido para ela sair quando no dia anterior deixou ela ouvir todas as “entrevistas”. Qual poderia ser a intenção dele com Fernando?... - Sua imaginação trabalhava com a ajuda das palavras de Frida. Será que poderia haver um lado hostil em Fernando... Sempre encarou o olhar dele com vaidade e pena. Sabia que não era algo inocente; seria inocência dela pensar isso. Sentia o olhar dele penetrar em cada fresta de sua roupa. Isso a incomodava, mas sabia que era “normal”... Um medo repentino lhe veio de haver algo mais no olhar dele... A hostilidade na qual ela pensara lhe volta à mente: todos os seres humanos a possuem; ela se lembra. É um fator natural... Mas nem todos são capazes de controlar; às vezes tudo sai do controle e o “olhar” perde sua doçura e o corpo age, mesmo sem o consentimento da consciência... Carol enxerga. Uma pergunta lhe vem: • Fernando já foi a fim de Ilena? - A pergunta surpreendeu Frida, finalmente parado de falar. Mas ela continuará a aferir... Ainda mais.


Não sei. No primeiro semestre até que eles se falavam. Mas esse sujeito parece mais um morto-vivo. Ele deve gostar é de mulheres “dark” ou “punk”. - Carol sorri discretamente... Se ela sabia pouco de Fernando, menos ainda sabia Frida que falava tanto... Ela se lembra de uma coisa que disse a ele um dia: “Eu vejo em você um coisa que eu acho que ninguém mais vê!” - Era a sensibilidade. Todos viam a sisudez e o fechamento de Fernando... Carol podia ver a paixão e a solidão. Tranqüilizava um pouco, tal pensamento. Talvez Luciano também só conseguisse ver o que os outros viam e por isso se interessou. Afinal, não havia tanto com que se preocupa... 3

Ele só quer ir embora. Cada pergunta parece invadir todas as frustrações que Fernando sempre escondeu tão bem dentro de sua solidão e angústia. Nesse momento ele sente falta de ambas. Nelas ele podia se refugiar do mundo; sentir pena de si mesmo o protegia de se expor. Ele mesmo não gostava de ouvir os próprios problemas. E ele os reconhece muito bem. O policial à sua frente o despe com uma destreza inigualável. Seria ele tão transparente?... Sempre teve o poder de alienar as pessoas através de um bem treinado laconismo, mas desta vez ele enfrenta um obstinado: Luciano lhe fazia perguntas afirmativas que ele sabia que eram verdade; e não havia evasão no mundo que evitasse sua vergonha em admitir tais coisas... Sozinho (sempre). Amigos (anti-social). Interesse (nenhum). Nervosismo (constante e evidente). Seu comportamento só descrevia alguém extremamente confuso, contido e hostil em si mesmo. • Você ligava muito pra ela? - Nos últimos meses, não. Mas Fernando se lembra de um tempo quando tinha o número do telefone de Ilena fotografado na cabeça. Gostava de falar com ela, mas ela o tinha como colega. Isso era um aceno normal, mas a semelhança com o presente o fazia lembrar como fora rejeitado novamente naquela ocasião. Começou a temer até onde aquele policial iria: o que ele queria descobrir na verdade... O que ele poderia descobrir?... Detestaria se expor. Detesta se expor. Queria sumir dali. Se sentia perdido. Estava com medo. O único poder que tinha estava se esvaindo através do questionamento de Luciano. Como um grande paradoxo, começou a sentir falta de sua casa que sempre o lembrava solidão. Que estranha trama era aquela que começava a revirar seu estômago... Uma raiva súbita lhe vem por aquele policial... Só queria ter um “colo” para deitar. A nobreza do amor. Carol. 4 Tudo que via à sua frente era um jovem triste que lhe dava respostas curtas e evasivas. Mas o modo como não negava afirmações ditas em tom interrogatório não lhe deixava muita dúvida: Luciano via no passado e na vida daquele jovem uma estranha semelhança... Seus pais morreram quando ele era criança. Os de Luciano: a mãe morreu de parto e o pai o criou com certa distância; também era policial; morreu em serviço (era o prelúdio de outra trágica semelhança: Cristiano). Fernando não tem irmãos. O mais próximo disso que ele teve foi Cristiano. Tanto a perda quanto a solidão tinham afetado suas vidas. Fernando se tornou fechado e Luciano se tornou irônico. Um policial. Eram faces estranhas que se olhavam e viam as suas próprias semelhanças. A morbidez da vida estava em ambos. Num, em si próprio; noutro, ao


seu redor. Coisas que eventualmente se penetram e se expandem. A hostilidade que Luciano vira em Fernando no dia anterior continuava lá. Não era só do momento: dele e Carol; era algo de constante; algo tão forte quanto a sua própria influência no momento. Ele lembra do incômodo de Carol quando os apresentou. O quanto será que ela estava incomodada? - talvez mais do que qualquer um possa imaginar. Esse era o poder de Fernando... Toda fragilidade daquele rosto podia afetar Carol, mas não ele: o policial Luciano também procurava uma fuga. Uma abertura naquela face. 5 A porta se abre. Fernando vê Carolina e Frida. Queria dizer algo, mas se prende ao silêncio. Se afasta enquanto ouve Luciano cumprimentar Frida e ela dizer: • Tomara que você pegue o assassino! - Fernando pára um momento. Ilena estava morta. A desordem de sua vida parecia no auge. Apaixonado por Carol. Enfurecido com o policial. Exposto. Sentia uma estranha culpa e uma vontade de gritar; queria quebrar algo... ou alguém. No lampejo ele pensa: “Devia ter sido Frida!” Sente que Carol o olha. Era uma telepatia misturada com o elementar. Talvez sua rudeza tenha finalmente transparecido... Sempre esteve lá... Ele volta a andar e se vai. Sozinho. • Não se preocupe, Frida. Eu sinto que ele está para agir de novo. - Carol via uma segurança na afirmação de Luciano que a amedrontava. Saberia ele algo a mais? • Eu tenho que me preocupar. Se ele pegou Ilena, pode pegar qualquer outra pessoa. Até eu... ou Carol. - Um repentino pensamento quebrou em Luciano: “Não seria tão mal! Frida!” A auto-ironia de Luciano se fortalecia com as palavras inconseqüentes de Frida. Carol já estava acostumada com a amiga, mas não Luciano... Como no dia anterior, ele foge. • Eu preciso ir. Tenho que passar o Nina para ver uns relatórios. • Tudo bem. Você me liga de noite!? • Claro! - Luciano sentia o olhar lascivo de Frida. Ela estava dando na vista. • Tchau! Tchau Frida. - Ele saiu sem nem dar um beijo em Carol; estava por demais afetado pelas palavras de Frida e também pelo interrogatório... Ele deixa as duas. Frida pensava em planos para como “ajudar” a investigação. Sua memória forçava para recordar conversas com Ilena. Talvez houvesse algo de objetivo a ser feito. A morte da amiga a havia afetado também, só que não lhe havia afetado sua capacidade de aferir e sua vontade de descobrir a verdade. Desse modo ágil, ela mantinha sua paz... Era um conforto que Carol não tinha... Ela ainda pensava no tempo que Luciano e Fernando ficaram dentro da sala. Imaginava como devia ter sido difícil para Fernando se abrir. Ela se lembra do dia em que ele se revelou para ela: nunca o vira tão tenso. Tentava formar frases que tornassem a sua dedução fácil. Algo que tirasse dele a responsabilidade da declaração. Sentia em seus olhos um tormento nunca visto. Quando a compreensão lhe veio mal podia acreditar: aquele homem tão grande estava encolhido ao seu lado; com medo de si mesmo; com medo do mundo... simplesmente querendo dizer: “Eu amo você!” A frase nunca foi pronunciada, mas Carol disse: “Eu estou começando a entender...” E tudo ficou claro; e também, profundamente difícil. Os olhos de Carol se perdem no leve caos do momento: Ilena, Frida, Fernando, Luciano, ela... Como a sua vida tão simples (Faculdade, Publicidade, estágio, academia,


praia) pôde ter virado esse conturbado frenesi de situações, emoções e pessoas? Volta a pensar em Luciano; sente um leve arrependimento por sentir tanta compaixão de Fernando: de que modo o jovem policial interpretaria tais pensamentos? As dúvidas do dia recaem sobre ela novamente... Frida à sua frente lhe apresenta argumentos contínuos e fortes que ela não sabe com segurança como os deve julgar. Ilena morrera e ela estava / se sentia enterrada dentro daquilo. Carol espera que o tempo lhe apresente algo por que vir... Ela está extremamente confusa. Numa tempestade de almas. 6 A caminho do Nina Rodrigues, Luciano dirige pensando nos novos enlaces da trama. Fernando lhe chamava atenção mais além que o próprio caso. Todos que o rodeavam viam um jovem de comportamento fechado e concentrado. Conseguia ver no seu passado um incontável número de problemas que iam da perda da família à dificuldade de socialização. Sua tentativa desesperada de se evadir dos problemas com respostas curtas e simples indicava um claro desapreço para com a realidade. Tudo era encarado com tamanha profundidade que os atos mais simples de relacionamento humano o assustavam. Por isso sentia a paixão por Carol tão forte. Era encarada de modo único e sublime. Ele não conseguia simplesmente ser espontâneo, natural. Luciano imagina como deve ter sido torturante a sua declaração para Carol. O medo quase sólido de ser rejeitado e a insegurança de sua capacidade como homem o tornava ainda mais distante da realidade. Ele não sabia se valer do seu lado animal muito bem. E era disso que Luciano mais conseguia tirar sua hostilidade. Era algo que nascia do cruzamento da solidão com a frustração. Fernando havia se construído ao redor de uma série de desejos não realizados. Luciano via nele uma imensa confusão e tristeza... O encontro com aquele jovem tão confuso havia despertado um montante de conclusões e sensações que faziam Luciano aferir sobre o caso, sobre como tudo aquilo estava se encaixando, se tornando algo inigualavelmente fascinante. Não era só a procura da resolução de um crime. Era a procura de razões primárias dos desejos humanos. Coisas que amedrontam Luciano. A proximidade de tudo aquilo o fazia lembrar de si próprio. Ele se lembra que também é sozinho. É um modo menos afetado de solidão, mas coisas demais o levavam para sua própria vida. O que fizera! O que tem feito! E o que quer fazer... Toda aquela aparente fragilidade de Fernando, que esconde uma hostilidade latente, faz Luciano se imaginar também escondido; só que dentro do policial: esperto, irônico, forte. Não consegue se negar... A coisa que ele via de mais claro em Fernando, estava claro nele também: está apaixonado por Carol. Foi o que mais o atraiu em Fernando... Mas diferente dele, Luciano tem uma escolha. Ele tem Carol. Para Fernando, só aquilo que Luciano se propusera: culpa. Existir. Ser.

Sonda

No auditório do Nina Rodrigues estão alguns estudantes, um grupo de policiais interessados, especialistas que irão se dirigir e Luciano. Estão todos reunidos para analisar os resultados das investigações técnicas a respeito do assassinato da jovem Ilena Fernandes. A demora com resultados químicos e patológicos é normal numa cidade tão pouco preparada como Salvador. Mas havia um interesse especial por aquele crime, por parte de todos; por isso tantas pessoas presentes. Luciano que vira tudo desde o começo: o corpo desfigurado, a família desolada, os amigos, a entrada no mundo de Ilena; ele se sentia fazendo parte de toda aquela trama. Aguardava as informações com expectativa. Não sabia o que se podia esperar. Sua tensão ia além do interesse que os outros presentes sentiam. Era amargar a continuidade do contato... Não conseguia parar de pensar em Carol e eventualmente em Fernando... O doutor Azevedo abre os relatórios. Era o patologista mais experiente e teve o contato inicial com o corpo. Ele estava par e iria colocar também os outros:


Boa tarde. As informações que temos a dar são extremamente fortes. Demonstram uma crueldade e destreza que nas mãos desse assassino se tornam uma força de enorme capacidade visceral. A vítima, Ilena Fernandes, foi morta por força de uma hemorragia generalizada. Além da desfiguração do rosto e de partes do corpo, ocorrida “pós-morten” , existem duas profundas penetrações no peito causadas por instrumento pontiagudo, aplicadas com extrema força física. Há sinais de asfixia e provavelmente ela já estava inconsciente quando sofreu as duas estocadas no peito. Há sinais de penetração sexual tanto na vagina quanto no ânus. A rigidez dos órgãos demonstra que essa violação também foi “pós-morten”. A análise química demonstrou sinais de esperma dentro da vítima. O tipo sangüíneo do elemento é O-Positivo. Não havia sinais de drogas ou álcool no organismo da vítima e sinais encontrados nos dedos dela demonstram que ela estava lúcida e tentou reagir ao atacante. Infelizmente, como as pontas de seus dedos foram cortadas não se pôde averiguar qualquer conteúdo que pudesse estar em suas unhas. O atacante deve ter ficado com algum arranhão no braço ou no rosto... Não se pode afirmar nada. Biologicamente foi o que se pôde aferir a partir do corpo da vítima. Como patologista devo registrar que nunca vi tal minúcia ou crueldade. O relatório do psicólogo irá confirmar as condições dos traumas corporais. Obrigado pela atenção. - Todos ficaram afetados de maneiras diferentes. Os estudantes faziam anotações apressadas e detalhadas. Era material para pesquisa futura; realmente. Tanto em investigações policial quanto em patologia. Luciano conhecia muitos daqueles fatores. Alguns dos outros policiais presentes o olhavam com certo interesse e admiração. Eles sabiam que Luciano estava encarregado de procurar e enfrentar tamanha força e destreza. A crueldade que o doutor Azevedo tanto falava era uma realidade inegável. Um homem com tal poder não tinha respeito pela vida humana; ou mesmo pela sua representação: a total figuração da vítima não só feria os olhos de todos, mas também massacrava aqueles que a conheciam (sua imagem). Luciano, como todos ali com alguma sensibilidade, via que para aqueles que conheceram a verdadeira expressão da vítima, o assassinato a havia matado mais de uma vez: ele tirou a sua consciência, tirou sua vida, sua dignidade e por fim tirou a sua imagem. O trabalho policial e a convivência com o mesmo endurecem o comportamento, mas mesmo os mais profissionais declinavam em suas certezas sobre a humanidade ao entrarem em contato com tal poder. O assassino no era louco, com certeza, mas sua defesa era a própria loucura e o poder que ele descobrira: matar e com crueldade. Era um prazer além... O doutor Mattos; psicólogo da Universidade Federal da Bahia; ele pode ir além: • Junto com as análises patológicas e químicas o corpo da vítima, eu tentei avaliar através do “modus operandi” do elemento, como pode ser o seu perfil psicológico. A extrema crueldade aplicada indica um comportamento preso para com os outros. Esse ato demonstrou sua libertação. Os seus fatores de relação social devem ser extremamente confusos; podem ser fechados e dissimulados ou até avessamente sadios. A meticulosidade que o levou a cortar os dedos da vítima demonstra isso, a aparência saudável que ele nutre, e também um grande cuidado em se proteger. De certo modo eu acredito que nem ele mesmo esperava conseguir gerar tanta violência. Provavelmente ele tinha a intenção primária de deixá-la inconsciente e daí tirar satisfação sexual, mas quando em suas mãos; o poder de causar dor, sofrimento e medo; a sua excitação deve ter rompido a barreira da psicose que provavelmente estava latente nele; escondida como ele mesmo estava do mundo... Esse homem não hesitará em matar de novo quando sentir em suas mãos, novamente, o poder que ele descobrira; no caso dele eu diria que


o primeiro ato foi como uma primeira dose de um entorpecente: ele sente poder, depois culpa, depressão; mas por fim ele vai sentir necessidade, novamente... Agora que sua hostilidade, sua psicose foi libertada; cedo ou tarde, ela vai exigir “alimento”. É o que eu posso dizer... Espero que ajude. Obrigado. Os próximos passos da investigação deveriam ser procurar suspeitos com sangue tipo O-Positivo e talvez com marcas de unhas; procurar a arma do crime, e pessoas próximas a Ilena com esses comportamentos descritos... Os presentes sabem disso... Luciano se lembra da fonte no Ateliê. Cláudio falou de um elemento que ligava muito para Ilena. Talvez esse comportamento obsessivo fosse uma possibilidade. Se o psicólogo estava certo sobre o modo como o assassino se esconde; dentro de outra pessoa; então seria realmente difícil. Luciano tenta manter os fatos em perspectiva... Por um momento pensa em Fernando (aquela fragilidade...), ele pensa também em Cláudio (aquela espontaneidade de músico...); queria saber mais. O assassino é um namorado, ou pelo menos um pretendente. A cabeça de Luciano fervilhava com as palavras do psicólogo. A intenção sexual sempre presente nesses casos era realmente anômala. O nível de anormalidade que o atingia era tanto que mal podia controlar a extrema confluência de pensamentos em sua cabeça. Conseguiria pegar o assassino? - Não só ele se perguntava isso; os outros policiais presentes o olhavam com interesse. No que aquelas sondagens podiam ajudar afinal...: anatomia, patologia, química, psicologia, violência... Dava para sentir cada mente naquele recinto formar a imagem do assassino na cabeça: o monstro ideal! Ele matara Ilena, iria matar de novo; eles quase torciam por isso; e ninguém tinha idéia do que viria pela frente... No palco, os doutores Azevedo e Mattos relêem seus relatórios: estavam certos? Conseguiria alguém pegá-lo!? Luciano se entristecia e pensava em Carol. Após toda aquela tempestade de dia: ele ainda ligava uma ponta de sua solidão com a imagem de Fernando. Não tinha mais o que fazer nesse dia... Quer ver Carol. Quer esquecer! Esperará que o tempo se encarregue daquilo... No momento a última pertinência é ele... E Carol.


Terceira visão Um tipo de música diferente está no ar. O ritmo é forte; uma batida contínua. É também um tipo de arpejo, mas é sedutor. Tem um lado alegre. E é a alegria que está ao redor agora. De um canto escondido do bar, sozinho, um par de olhos se fixa na visão familiar do seu próprio desejo, ao lado de um ascendente algoz. Ele o combate, mas o admira. Ela está com ele. Carol e Luciano... É ao ar livre. O bar fica dentro de uma casa, mas todos ficam ao lado de fora, sentados em várias mesas. Aquilo é tão normal que é uma atração turística... Não é uma festa; acontece todos os dias. O pelourinho mantém uma seqüência de eventos festivos em cada alameda. É um bairro antigo de Salvador que recebe e distribui a alegria de visitantes e moradores todos os dias... Luciano e Carol decidiram vir aqui nesse dia. O dia cansativo fez Luciano procurar Carol ainda no estágio dela. Ele queria fugir das indecisões e indagações do momento e ela foi receptiva à oferta; também estava sentindo falta de momentos juntos; fora do sistema; não faziam isso desde que os Fernandes identificaram o corpo de Ilena e o “trabalho” começou... Mas agora, eles dançam. Ao som renitente daqueles “atabaques” e tambores, o som familiar da cultura afro-baiana, eles se divertem. Sorriem. Eles singram um no corpo e na mente do outro... Vivendo. Mas o olhar que seguira Carol o dia todo estava lá também. Ele não participa da alegria. Não gosta daquela música; a batida contínua em seus ouvidos os machuca, algo além do próprio arpejo musical. Ele está vendo Carolina sorrir, dançar, pular nos braços de outro homem. Fernando observa aquele corpo atlético que tanto deseja; ela se movimenta com sensualidade; era algo próprio das músicas da Bahia; mas nela se tornavam movimentos naturais. Seus quadris deslizam de um lado para outro, revezando lento e veloz. O “jeans” apertado ajuda a evidenciar suas formas. A camiseta levemente suada começa a grudar no seu corpo, revelando suas formas posteriores. Seus cabelos giram com a cabeça, tocando o rosto, aumentando ainda mais sua “perfeição”. Era uma beleza inalcançável. - Ele pensa; mas as mãos que tocam seu corpo a alcançaram. A excitação por observar Carol se transformava em ira a cada vez que Luciano entrava em seu campo de visão; não queria pensar, mas só tinha uma imagem se formando na cabeça, além do visível: Carol e Luciano juntos. Imaginar o corpo dela nu era algo de corriqueiro na mente de Fernando, quase automático; ele sabia que era uma tortura, que nunca iria tê-la, mas não podia parar de imaginar, de sonhar; a toda oportunidade sozinho... Mas sua consciência rejeitava veementemente ela com Luciano... Ele a tendo; em sua cama; em sua vida; em seu sexo; possuindo-a . Ele vê aqueles dois juntos e não quer mais suportar aquilo. Os movimentos dos corpos dos dois já diziam como a noite terminaria. Fernando se enfurece e se entristece. Não queria mais tê-los em sua vista, mesmo ainda desejando Carol. Nem queria imaginá-los juntos mais tarde, como provavelmente aconteceria... Ele sabe que nunca tirará isso da cabeça. Teme por si próprio; seu futuro. Não agüenta mais aquele “barulho” no ouvido... Vê-los, pensamentos e música. Ele estava cedendo. Quer ir embora! Ele se levanta, olha para ver se é notado pelos dois, mas um só nota o outro... Anda rápido, driblando as mesas, cadeiras e pessoas. Todos se mexem ao som da música e um esbarrão o faz girar. Estava com a palavra “desculpa” na boca. Já imaginava ser algum bêbado grandalhão que iria querer surrar até sua alma por ter derrubado uma gota de cerveja. Mas esse dia não é o de sorte de Fernando. Ele dá de cara com: • “FRIDA”! - Ela sorri um sorriso medonho. Sua ironia estava a postos para massacrar o pobre Fernando. Nunca perde a oportunidade de tirar dos outros desconforto. São frases sem resposta e observações desdenhosas que provocam asco em qualquer uma de suas vítimas. Era aquela espontaneidade que incomoda. Que tira as defesas de todos com uma


• • •

honestidade abrupta. Frida é assim e a imagem infeliz e deslocada de Fernando não lhe deixa dúvida: Nunca imaginei ver você aqui, Fernando! Está com alguém? - E ela sabe que não, só por isso pergunta. Uma coisa ela tem de sobra: poder de observação, avaliação e desdém. É um talento de aversão. Desperdício...Não - a rispidez de Fernando não foi suficiente para Frida se calar. Ela conseguia tirar ironia de sua honestidade e timidez... Não sabia que gostava de “axé”... Veio procurar namorada, foi? - O rubro tomou o rosto de Fernando. Mais uma vez não tinha resposta para Frida. Imagina ele o que ela iria pensar quando visse Carol e Luciano lá; talvez o óbvio, talvez mais. Fernando se enfurece de novo com aquela nova ameaça. Sua personalidade e alma sempre tão protegidas corriam risco nas mãos (e boca) daquela desdenhosa mulher. Queria inventar uma desculpa e sumir dali: quem sabe um dia se desfaria de tamanho revés... Eu estou indo embora, Frida. Vim pra cá por acidente. Até logo! - Ela não se conformou, nem se conteve: Espere (um sorriso superior brotou no seu rosto), dance um pouco comigo! - Ele olhou tanto irado quanto receoso para ela. O que ela pretendia? Eu não sei dançar, Frida! Tchau!! - Ele sai da visão dela. Não mais se preocupa em esbarrar em alguém. Sua presença ali seria explicitada de qualquer maneira. Tentava não pensar nas conseqüências disso: Carol... o policial... sua presença. Sua cabeça explodia diante de tanta desarmonia. Ele desaparece em meio ao público. Frida observa sua obra: a consternação que ela tinha causado nele era maior do que esperava. Ela sentia um momentâneo prazer, mas também um certa culpa e medo. Não o conhecia tão bem e há pouco tinham-se imaginado ele como um assassino. Ela se abatia com tal incerteza. Ela era assim: desbravadora, incomodava os outros com tanta clareza e exuberância no modo de encarar as coisas, mas era uma forma de ver o mundo. Talvez um pouco arriscado e também único. Poucas pessoas têm a capacidade de expor uma personalidade tão livre e expressiva. Ela ainda procura Fernando, mas ele já desaparecera em alguma das esquinas do Pelourinho. Ele estava lá contra a vontade; isso era claro. E algo lá o incomodava. Seu desconforto ia além do encontro com Frida; foi a prova final. A perspicácia de Frida queria entender aquilo e sua curiosidade também. Talvez fosse uma maneira de se recompensar... Ela se vira e vê Carol com o policial; o sorriso em seu rosto deixa claro... Ela adora descobrir segredos; atingir os centros nervosos; e ganhar. Ela consegue. 2

Luciano levanta para pegar a cerveja. O ritmo da música ainda persistia mas a energia que se gasta é muito grande, em algum momento tem-se que parar. Frida havia se juntado a eles, o que não agradou muito, mas logo iriam embora. Aquela “festa” era só o começo... • Carol, ele é mesmo um gato. Nunca imaginei um policial tão legal... - Carol já era familiar ao comportamento de Frida, mas ainda se incomodava com alguns de seus comentários. E ela sempre falava tudo; e sempre de um jeito desconcertante... Luciano as olhava de dentro do bar, não estava de serviço, mas a mente policial não parava de funcionar. Ele observava as feições de Carol a cada coisa que Frida dizia e ela falava muito. O aparecimento dela ali tinha tirado um pouco do prazer da noite. Era uma desagradável


coincidência e ela tinha o incrível poder de notar “climas” . Ela tinha quebrado o deles! Luciano tem outras intenções para o resto da noite e Carol está com a mesma inclinação... Ele olha para ela e lembra daquele corpo mexendo ao som da música; transmitia uma sensualidade transcendental, uma sexualidade perfeita; querendo o desenvolvimento... Olhava Carol e Frida juntas: tinha o duplo sentido do momento na cabeça. Queria se livrar de Frida... As expressões que Carol fazia também diziam isso. Ele via que a trama estava começando a formar o seu melhor lado. Luciano põe a cerveja na mesa. Seus olhos estão em Carol e ela mantém a reciprocidade. Ele se senta; Frida continua falando, mas nenhum dos dois a ouve: um só vê o outro. A visão dos dois se perde em desejos e emoções comuns. O rosto de Carol se ilumina com o assédio do olhar de Luciano. Nem mesmo a música os interrompe. É um prelúdio do contato. Suas almas já pareciam se amar... se tocar. O que Frida falava, não mais importava. Ela tinha sumido; a antecipação da despedida. O fim. Carol sente o seu peso. Por dias ambos desejaram isso. Cada movimento dos seus corpos exala prazer. Luciano tinha finalmente aquele corpo em contato com o dele. A pele sentia todos os toques. Cada curva era satisfeita com novas sensações. Suas epidermes se arrepiam a cada rompante de um novo espasmo. Os movimentos que os levam a cada segundo de prazer e se encaminha para um supremo momento final dura tão pouco tempo que eles se sentem injustiçados. Querem mais e mais, sentir um ao outro. Carol tem lampejos de seus sonhos com os olhos fechados e então os abre para senti-los realizados. Nunca teve tanto prazer antes... Em nenhuma das duas oportunidades anteriores de sua vida o homem que ali estava lhe dera tanto para sentir. As palavras chegam às suas cordas vocais em forma de gemidos e é uma língua que Luciano entende pois ele também sente... Tem mais experiência, mas a mulher ali com ele sentindo-o, é a mais magnífica de todas. Também ele tem lampejos de sonhos... O beijo que tiveram dias atrás era uma gota na tempestade que eles sentem agora. Não querem acabar. Seus olhos se cruzam e se fecham. Seus lábios se encontram novamente. Seus poros transpiram prazer de um para o outro. Como uma transferência. A sensação já os domina completamente. Sentem como se flutuassem num plano sem dor. Viajando para dentro de seus olhos... Suas respirações se tornam cada vez mais ofegantes e as “palavras” sem significado se tornam mais constantes. Eles vibram. Cada parte em contato está tremendo; pulsando. Carol e Luciano quase não acreditam um no outro. É perfeito; é sublime; quase onírico... Finalmente seus movimentos os levam para longe... Num grito em comum eles atingem o centro um do outro. Carol libera uma lágrima que se mistura ao suor. Um sorriso quase mágico os toma. Eles ainda se movimentam, buscam alguns segundos finais; queriam mais, mas aquilo os consumiu. Seus corpos tremem levemente antes de cederem à exaustão. Eles param... Estão abraçados. Sentem um o corpo do outro; suados, cansados, satisfeitos... Por um segundo eles se sentiram fora do planeta e agora sorriem em contato. Não conseguem acreditar. Foi a explosão do universo dentro de ambos. Foi a vida além da vida. O prazer. 3 Luciano observa Carol se vestir. Se sente tão bem que a observação parece ser um espetáculo. Uma obra prima particular que ele possuiu por quase um hora. Ela colocava o jeans e à medida que sobe ele sente de novo a textura do toque daquela pele. Ele vê que ela também está satisfeita; se sente bem com isso também; é um tipo de realização machista, mas que o eleva em saber que conseguiu saciar a parceira e Carol era muito especial... Ele sentia isso além do próprio prazer que teve com ela. Aquele quarto de motel foi testemunha de um encontro dos deuses; algo que inveja a muitos seres humanos: toda a lembrança daquele momento de prazer e consumição os elevava, os aproximava; tirava-os


da realidade que estava fora daquele quarto.. Eles não conseguem parar de sorrir um para o outro. • Temos que ir! - Carol olha em volta. A cama desarrumada a faz lembrar de cada detalhe. Aquele momento não podia ser menos que perfeito. Ela se aproxima de Luciano e o beija; seus corpos ainda se agitam com as lembranças, mas eles têm que ir... A caminho do carro, abraçados, finalmente saindo do mundo das fantasias perfeitas e dos prazeres realizados, Carol se lembra do que Frida lhe contou no Pelourinho. Daquele momento até agora não tinha dado importância; seu corpo entorpecia qualquer raciocínio; mas agora, já realizada; ainda meio receiosa de mencionar; ela consegue uma expressão: • ...Lu... Frida disse que Fernando estava lá no Pelourinho, hoje; no mesmo bar que a gente... - Ela observa Luciano para sentir sua reação. A privacidade dos dois já tinha sido invadida por Frida e agora, se sabendo, por Fernando. Todas as tensões do dia e as suspeitas pareciam violar algo além da investigação. Luciano absorve certa raiva... O seu momento sublime estava sendo poluído. Ele não queria perder de novo. • Sua amiga fala demais! (Alguns segundos de seriedade silenciosa.) O que mais ela disse? - Carol não compreendia muito bem a atitude de Luciano. Ele não parecia se interessar pelo fato de Fernando a ter seguido ou ter seguido a eles dois; parecia esperar por isso... Mas ele se preocupava com a intromissão de Frida. De certo modo Carol sabe porque Fernando estava lá, mesmo sendo algo imencionável entre eles. (Era ela mesma.) Sua vaidade não consegue crer em coincidência e ela sabe que Luciano também não acredita nisso. Mas existia a outra possibilidade; a gerada pelo caso: o investigado seguir o investigador. Carol ainda resiste a isso e Luciano parece saber que não é... Ambos viam a dor de Fernando, mas por lados opostos. O interesse de Luciano ainda era em Frida... • Ela disse algo sobre Ilena. De ver o ex-namorado dela; ainda hoje. • Sua amiga devia entrar pra polícia se pensa ser capaz de pegar um assassino! _ Ele usa um tom de desdém familiar... Era como Frida falando. Mas com uma certa dose de ressentimento. • Você acha que ela vai estar em perigo? • - Eu disse... que elas eram muito amigas! • Pois pra mim ela é uma grande pedra no sapato! - Carol via certa razão no descontentamento de Luciano. Ela ter aparecido no Pelourinho, no bar onde eles estavam, trazendo tais informações... Carol sabe que é o jeito de Frida agir, mas mesmo assim não deixa de se preocupar um pouco... Por Frida e também pelo futuro dos dois. Ela também não queria perder aquilo. O momento... Entrando no carro e indo embora do motel ela começa a, definitivamente, voltar ao mundo em que vive. Imagine: se, realmente, Fernando estava lá (Frida não costuma mentir); quão torturante deve ter sido vê-la dançar, abraçar, beijar, estar; com Luciano. Além dos sentimentos por ela... Luciano era o policial que nesse mesmo dia o despira de seu mundo fechado para investigar um crime. E ela desconfiou dele. Talvez ainda esteja se enganando ou talvez não. Carolina detesta a idéia de sua felicidade e prazer provocar dor em outra pessoa. Ela pensa naquele frágil olhar de Fernando... Quase que, intimamente, ela sente vergonha pelo que acabou de ter com Luciano. Olha-o meio de lado e se imagina nua, perdida... Nesse momento Carol se sente incrivelmente vulnerável. Só queria ser feliz!


“Flashback” e futuro Arpejo é uma sequência musical contínua. Ele toca seguidamente até mudar o acorde. O arpejo pode ter só um pedaço, um só relance musical; ou pode se manter indefinidamente... A mudança de acorde é opcional. “O arpejo começou em sua cabeça há dois anos. Nessa época ainda era insonoro, mas definitivamente presente. Tudo que acontecera em sua vida o tornara sozinho e delimitado socialmente e nunca há de se saber que origens mais pode ter sua agressividade: família, criação, convivências, genes, maldade... Quem sabe? Ele vira Ilena e a desejara. As vontades de seu corpo guiavam os atos. Quando falava com ela, pensava em possuí-la. Quando a tocava pensava em prazeres mais proibidos que a própria posse. Tê-la era tudo. Não se considerava obsessivo; só seguia seu desejo. Mas por muito foi rejeitado. E nas poucas oportunidades que teve de chegar perto, ela se retraíra. Culpava-a; nunca imaginava em sua honestidade. Via Ilena no limite da sua vontade de ter prazer com ela e nunca na margem dela querer ou não. Se considerava torturado. Por tempos a procurou, mas ela sempre o dispensava. Era forte demais para ela. Intenso além da própria atração por homens; mesmo aquele. Ele não podia aceitar; não queria aceitar. Mesmo que outras mulheres aparecessem, ele queria Ilena; mesmo que seu rosto e boca dissessem não. Mesmo que seu sorriso morresse por algum tempo... Quando voltasse não se lembraria de nada e o desejo seria satisfeito. A pessoa que conhecia e sabia que era amada por todos, inclusive por ele; era diferente daquele corpo que ele tanto queria possuir. Viajaria por ele enquanto estivesse inconsciente. Tocaria em cada parte. Conheceria cada curva. Possuiria tudo que desejasse. Tudo que ela lhe negara. Até mesmo seus lábios... Ela foi em sua casa. Foi uma batalha convencê-la, mas ela também queria terminar com aquela situação incômoda. Ele a olhava de longe e já sentia seu corpo se alterar. O plano em sua cabeça era perfeito: inconsciência, sexo e finalmente a paz. Mas o arpejo pediu mais... Ele a agarrou por trás. Seu braço forte a faria desacordada rapidamente e logo ele teria o que desejava. Sua cabeça não considerava isso imoral, apenas necessário. Ele tiroulhe a roupa vagarosamente e seus olhos vislumbravam a abertura de uma nudez perfeita, a qual ele tanto havia imaginado. Finalmente ele a tem. Sentindo seu calor interno e toda maciez daquele corpo... Mas seu golpe não foi suficiente... Ela acorda. O peso daquele homem sobre ela a faz enjoada. Ela o rejeitara, mas o considerava um amigo. Como ele podia fazer isso!? Era detestável! Ilena dá-lhe um tapa no rosto e foge de debaixo dele. Tentando ocultar sua nudez com o que encontrara mais próximo, pergunta: • Como você pode fazer isso? - Mas ele não ouvia. Também estava nu, mas não ligava. Pela primeira vez se sentia livre das suas inibições. Se sentia poderoso. O arpejo se tornara sonoro e estava num volume ensurdecedor em seus ouvidos. Olhava aquela mulher encolhida num canto de seu próprio quarto e queria não só possuí-la, queria fazer dela o seu brinquedo. Seus punhos também estavam alterados; estavam fortes; livres. Ele pula sobre ela, que tenta se defender; mas tapas, empurrões e gritos não poderiam segurar o arpejo. Ele não sente a dor como dor... Faz parte do prazer. O prazer de usar sua livre violência sobre ela. Era melhor que o próprio sexo. Vibrava ao ver Ilena definhar diante de seu poder... Sua voz sumia. Suas unhas não mais o arranhavam. O corpo em suas mãos morria. Os hematomas no rosto o deixavam orgulhoso e excitado. Ele queria mais. Ele agora pode experimentar outros prazeres. O arpejo tinha se acalmado. Sua satisfação básica já tinha sido alcançada. Agora teria tempo, mas não muito... A Lâmina próxima e uma estocada final completariam o serviço. Agora... Ilena estava morta.”


Ele quer mais. O tempo está se esgotando e o arpejo está começando a aumentar de volume novamente. A memória de Ilena morta tanto o rende à força quanto o deprime. Com o arpejo recomeçado ele teria que satisfazê-lo, mesmo que em parte. Tinha que escolher de novo. Ele agora conhece a sensação; ainda teme sua força, mas gosta de sentir no corpo aquele poder; o mesmo que se expande para a trama que havia se formado depois da primeira vez. Também gosta desse poder, mesmo que involuntário. Mas o poder primário está começando a pedir alimento. E ele não tem escolha. Também quer. Provavelmente vai gostar... Ele não consegue evitar de sorrir, mesmo tendo o frio no estômago. Ele já fez a escolha. É ela...


Presa e predador A música que regia o ambiente agora era diferente. Muito distante dos atabaques do Pelourinho e também um pouco diferente do “blues” de noites anteriores. Frida se senta sozinha numa das mesas do Ateliê e assiste calma ao show da banda de Cláudio. Ela só o vira uma vez, num encontro em grupo, quando Ilena ainda estava na faculdade; nunca o vira tocar e começava a ficar enfeitiçada por aquele ritmo suave, forte e contínuo. Frida o reconhece. Ele é o guitarrista. Estava um pouco diferente de quando o vira; o cabelo estava um pouco maior. Achava-o atraente... Estava ali para saber mais sobre a morte de Ilena. Não conseguia evitar de querer desbravar sua curiosidade. Tinha um certo senso de perigo, com o assassino e tudo que o envolvia, mas sentia vontade e fascinação por entrar num mundo novo. Talvez fosse um desejo perigoso demais. Frida estava começando a se interessar pelo próprio Cláudio... Devia ser a música, ou um tipo de transferência. Sua amizade com Ilena, a surpreendente morte dela; ela fazia uma estranha junção de imagens, onde ela não conseguia evitar de imaginar Cláudio em contato com Ilena, contato carnal e logo em seguida vê-la morta, do modo que lhe havia sido descrito. Uma estranha excitação a tomava ao lembrar como Ilena era feliz com Cláudio; talvez a vida inteira. Era até ofuscante às outras pessoas. Diante de tudo aquilo Frida também se entristecia. Sabia que Ilena não mais sentiria tais coisas, estava morta... Ela olhava para o seu ex-namorado e se auto-repreendia por sentir o que sua amiga um dia sentiu e que não vai mais sentir: atração por um homem; mesmo que um homem que ela sabia que já estivera com Ilena... Tentava se concentrar em sua “missão”. Tinha um nome além em sua intenção. Queria descobrir o que havia realmente acontecido. O show termina. Olhos alcoolizados localizam a bela descendente de alemães sentada sozinha numa mesa ao fundo. Longe em sua memória, já muito afetada pela noite de “blues” e cerveja, ele a reconhece. Não sabia bem de onde, mas a sua beleza e o fato de ela estar sozinha, assistindo a seu show e no seu bar, são razões suficientes para ele andar até ela e lhe dirigir a palavra: mesmo que pareça uma simples cantada. • A gente já se viu antes, não foi?! - Frida sabia que sim, mas os olhos avermelhados e o sorriso puramente lascivo demonstravam que ele diria aquilo mesmo se nunca a tivesse visto... Diria isso ou qualquer coisa do gênero “quebrar o gelo”. Ela se sentia envaidecida. Mais e mais ela queria não estar ali para falar de Ilena. Em outra oportunidade não teria nenhuma restrição em se deixar levar pelo cortejo, mesmo que levemente entorpecido. • Já sim... Eu sou... era amiga de Ilena. - Se constrangia duplamente em mudar o tempo do verbo. Não queria “trair” a amiga, nem depois dela ter ido... • Ah, Ilena... - Ele estava cambaleante e se escornava na mesa; antes de continuar a falar ele se senta. Arrastou a cadeira de um jeito agonizante... Devia estar em outro planeta. • Ela morreu! • Eu sei. Eu vim pa... • Morreu... - O nível de entorpecimento do rapaz começava a irritar Frida. Não tinha nada contra bebida, mas não estava com paciência de agüentar vitrola quebrada. • Eu já ouvi! Você não sabe de... • Ela morreu... era tão gostosa! - A conversa começava a tomar um rumo desagradável. Frida não queria ouvir lembrança da vida de Ilena; muito


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menos da vida sexual dela. A atração que sentira por Cláudio começava a se tornar uma leve retração. Estava tentada a desistir e voltar outro dia, mas... Você sabe dela com alguém chamado Fernando?... Cláudio!... Você já o viu... Então a gata sabe o nome, não é?!... Talvez queira saber mais... Ilena nunca disse como eu sou bom... - Frida sabia o resto daquela sentença. Não queria mais agüentar aquela cantada de bêbado. Ainda mais um bêbado que se acha gostoso. Sua paciência se esgotou naquele momento: Esquece!... Eu falo com você outro dia; quando estiver sóbrio. - Ela se levanta rapidamente. Cláudio também, mas a tontura o toma de assalto... Queria mantê-la perto. Tá. Fernando. (Frida deu atenção.) Acho que era o nome do cara que ligava para ela na época que a gente terminou... Ou era Leandro. Ah! Eu não sei direito. Já faz tanto tempo. - Frida o olhava com interesse. Afinal um informação que compensasse aquele “contato alcoólico”. Ela estava pensativa... Agora... (Ele se aproxima dela.) Não quer dançar comigo?! - A música não era mais ao vivo. Parecia uma gravação mais lenta do que eles costumava tocar. Frida estava com a informação sendo processada na cabeça: as conseqüências daquilo; mas as palavras de um músico entorpecido não são de muita confiança. O modo dela raciocinar não foi impedimento para ela atacar o colega de faculdade. Tão estranho; sozinho; anti-social. Na mente dela aquilo começava a se constituir uma trama; que se cruzava com a investigação de Luciano. Será que ele já sabe disso? - Pensou ela... Os braços de Cláudio a despertam de sua reflexão sobre Fernando e as palavras de seu “interlocutor”, que agora a puxa para a pista: Vem, gata. É minha música. - Frida se retrai. Não estava mais interessada em Cláudio. Infelizmente no inverso isso não ocorreu... Ele começou a se roçar ao ritmo da música. O que começara como um cortejo simpático ao som de “blues” estava se tornando algo repulsivo. Frida custava a acreditar que aquele era o mesmo rapaz que namorava Ilena, de quem ela gostava e que parecia tão fascinante. Talvez fosse o álcool. Era triste ver a que ponto chegava a degradação humana pelo vício... Ela tentou ser política: Não, Cláudio. Obrigada. Eu tenho que ir. Está tarde... Que isso? Só uma dança... - Ele continuava a se roçar nela. Frida nunca foi uma pessoa paciente. Aquele agarramento forçado a irritava muito. Detesta fazer algo sem vontade e odeia ser objeto nas mãos dos outros. Por ele ser quem é, por Ilena e pelo seu nível de entorpecimento; ela ainda tenta ser educada mais uma vez: Não mesmo... Obrigada! Eu volto outro dia. - Ela tentava sair dos braços fortes do guitarrista. Já estava quase explodindo. Vem... Olha... Meu quarto é lá em cima... - Esse foi o último momento suportável. Me larga, seu bêbado! - Ela imprimiu mais força para se soltar e os braços dele, sem ter muito controle motor, a soltaram. Ainda tonto, ele olhou para ela com o olhar completamente congestionado. Sem se segurar em nada, ele parecia a todo momento que iria cair para trás... Sua paciência também não podia ir mais longe... Ele deu um grunhido e disse: ... Sai daqui; vagabunda. Gostosa... Ilena morreu. Esquece! - Frida deu dois passos para trás. Ele ainda olhou para ela por um momento antes de se


virar e andar cambaleante para outra mesa. Não parecia ligar para o que tinha dito ou para o que tinha ouvido. Provavelmente nem se lembraria do que tinha feito. Frida se entristecia novamente ao vê-lo se afastar... Ele também estava sofrendo. Era uma maneira mais brutal de fugir da angústia. Envolvia álcool, música e esquecimento. Ela podia enxergar que Cláudio estava com Ilena na cabeça o tempo todo. Se ele foi um dia realmente apaixonado por ela, com certeza ainda era; a perda sempre traz tudo à tona: o bom e o ruim. Ele tentava diminuí-la, tratá-la como a um pedaço de carne; assim como o assassino o fez; mas só o álcool lhe permitia isso. Frida sentia pena dele e também um certo medo, por si mesma; de um dia também cair nessa mesma armadilha. Mais uma vez se sente culpada por ter sentido atração por Cláudio quando o vira tocar. Talvez, também, fosse uma fuga, uma transferência. Naquele momento ela sentiu a perda de Ilena mais do que nunca. Sentia vontade de chorar: por Ilena, por ela, por Cláudio, por Carol; agora podia ver pelo que ela teve de passar; e até Fernando; mesmo com aquela informação na cabeça, não podia evitar de lamentar por pensar algo tão terrível de alguém que ela nem conhece direito. Naquele momento estava realmente difícil de se raciocinar. Queria esfriar a cabeça. Detesta estar triste... Finalmente ela vai embora. O encontro com Cláudio tinha sido um misto de horror, prazer (no começo) e profunda tristeza (no fim). Ela agora quer paz. Caminhando para o carro, Frida notava que toda a fascinação que ela tinha começado a sentir por aquela trama não atingia a fundo como ela pensava. Agora, podia entender melhor a frieza com que Luciano tratava o assunto. As advertências dele faziam sentido: para se entrar naquele mundo obscuro precisaria se estar preparado. Ela não estava. Era uma postura que se precisava assumir para entender o comportamento de criminoso e vítima; para poder manter contato com as diferentes personalidades envolvidas: talvez inclusive um bêbado triste, fugindo da realidade em falsas ações agressivas. Novamente ela sentia pena de Cláudio; afinal, deveria ter dançado com ele. Não seria tão grande sacrifício... Se sentia tentada a voltar no Ateliê, mas não o fez; achava melhor manter esse contato em outra oportunidade, sem a presença do álcool. Não se sentia culpada por isso; provavelmente Ilena gostaria de ver as pessoas que ela gostava juntas. Com as boas lembranças... Frida chega ao carro um pouco mais aliviada. O ar frio da noite espanta o calor úmido do dia, do Pelourinho e daquele bar. Ela sente o vento por um segundo. Tentava lembrar que ainda estava viva... • Ah... Ilena... • Isso mesmo. Ilena! - A fonte da voz não pôde ser vista por Frida. Antes que ela se virasse um golpe na nuca a faz apagar. A rua deserta não apresenta testemunhas para o atacante; ele podia liberar toda sua hostilidade; com a ferocidade de sempre... • Agora você vai aprender, desgraçada... - Com Frida caída no chão o feroz atacante começa a projetar chutes em seu abdômen e costelas. Os únicos sons que ecoam são as pancadas abafadas. Ela está inconsciente; não pode agonizar com os golpes; mas ele sabe o quanto vai ser doloroso quando ela acordar. Ele pára os chutes e se agacha para dar socos no rosto da pobre vítima. A pele branca de Frida começa a enrubescer com as pancadas. Logo se tornariam terríveis hematomas. Esse pensamento o excita e aumenta a sua violência; mais ele só tem intenção de machucá-la... Ele quer aliviar o arpejo. Os golpes se tornam mais lentos. Seus braços estão cansados. As forças do seu corpo começam a se exaurir. O arpejo ainda tocava de leve pedindo mais. Ele olhava para o


corpo de Frida todo coberto de manchas e alguns cortes, por causa do asfalto. Ela ainda estava viva; podia-se ver. Ele estava ofegante. Observava a sua obra e não podia evitar de se excitar. Ela era bonita; apesar dele não sentir muita atração; mas o arpejo não estava completo. Tenta se convencer a ir embora, mas sua mão começa a tocar os seios de Frida. A lembrança dos momentos com Ilena o transformava. Era o terrível choque entre hostilidade, sensualidade e poder. “Não!” - Ele pensa. - “Já é o suficiente!” Ela não o tinha visto. E provavelmente demoraria para se recuperar. Ele se levanta com decisão. Dá uma olhada ao redor. A rua estava deserta como antes. Olha novamente Frida e finalmente vai embora. A presa daquela noite já estava abatida; mesmo que incompletamente; mas já fora um alívio. O corpo de Frida, totalmente machucado por toda aquela violência, seria uma eterna visão de poder em si próprio para o predador. Eventualmente precisaria de mais; sabia disso; mas no momento se contentava com a sua nova obra: Frida.

Se fechando

Para alguém com apensas quatorze anos de idade, sua expressão demonstrava seriedade e amadurecimento. Luciano tinha o irmão mais novo de Ilena e também o mais chegado, Carlos, à sua frente. O choque nos dias iniciais da perda de Ilena parecia ter transportado o jovem garoto da terra maravilhosa da adolescência para o terrível mundo real, onde assassinos cruéis tiram a vida de muitas “irmãs”, de muitos garotos, que de repente têm de crescer. Luciano conseguira falar com Carlos no dia anterior, por telefone. Esperara alguns dias para entrevistar, possivelmente, a pessoa que mais sabia Ilena, e que também era a que mais sentia a sua falta. O garoto se dirigia ao policial como se fosse o último sobrevivente de uma guerra: mudado; renascido. Luciano conhecia aquele jeito de atuar. Ao conseguir passar pela dor da perda, ele se sentia poderoso; capaz de enfrentar qualquer outro desafio. Era uma nobre maneira de se enganar. O próprio Luciano sentira isso quando perdeu seu amigo, Cristiano, o irmão mais velho de Carol. Por muito tempo ele se considerou o único policial capaz de combater o crime... Sobreviver ao abatimento do amigo em meio a um tiroteio. Passar por sentimentos de culpa, por não ter podido ajudar; sentir impotência e fragilidade pela falta do amigo... Ele superou tudo sozinho e também se sentiu forte. Teve de aprender com o tempo que nada nunca se resolve com simples transposições, pequenas vitórias. Ainda sentia vontade de se livrar das lembranças e das sensações. Ver aquele jovem garoto se sobrepor em palavras firmes de justiça, consternação e inconformidade, o fazia lembrar de como passar por aquilo é difícil. Mas não podia ajudar Carlos; ele aprenderia sozinho e talvez conseguisse vencer. Por enquanto o máximo que ele podia fazer era tirar as informações dele e daí tentar deslanchar aquela velha trama: o assassinato de Ilena. • Você não se lembra de nenhum outro namorado dela? Ou talvez; alguém que estivesse a fim dela? ... - Carlos olhava ao redor e para Luciano. Era sinal de raciocínio. Queria muito pegar o elemento. Desconfiava da competência e da honestidade do policial à sua frente (algo natural). Um pouco além de sua recém adquirida força de pós-queda, ele sentia algo mais... Todas as memórias vinham junto com a imagem de Ilena e ele não conseguia evitar de se incomodar com isso. Aquele jovem ainda estava muito perturbado; tinha fome de atitude... Ele responde: • Depois de Cláudio, ela ficou um bom tempo sem ninguém... • Ele mencionou sobre alguém que ligava muito pra ela. • Ah, é. Coitado. Ele era doido por ela, mas ela nunca quis nada. Ele ligava muito, é verdade; mas antes mesmo dela largar a faculdade ele já tinha parado. Deve ter cansado de rastejar. • E o nome dele é? ...


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Fernando. Eu me lembro bem, porque eu pegava muitos recados dele. Ele esteve aqui uma vez. Acho que ela gostava dele, mas não estava afim... Ele se deu bem com o nosso cachorro. - Carlos se deixava levar por cada lembrança que tinha de Ilena. A menção sobre Fernando o fazia recordar mais ainda como ela era apaixonante. Ele via a imagem daquele jovem que era tão ligado nela e não podia evitar de imaginar aquilo como mais uma coisa perdida na vida da irmã. Um homem que se dedicava a ela, mesmo sendo rejeitado. Imagina ele o que ela faria naquela situação se tivesse outra oportunidade... Mesmo de um jeito melancólico, Fernando a fazia rir e Carlos sabe que ela não mais vai poder rir... Vem o pensamento: “O que o policial queria com aquela pergunta?!” O senhor suspeita dele? - Luciano não queria responder. Não queria outro intrometido, como Frida, se metendo na investigação. Principalmente um irmão revoltado... Mas não tinha muita saída. Já havia mencionado sobre sua visita ao Ateliê. E as duas informações se encaixavam. O que mais poderia dizer? talvez. Eu, quando falei com ele, notei um comportamento bastante obsessivo e potencialmente agressivo. - Novamente Carlos duvidava da competência do policial. É algo normal em jovens, tirar o crédito de uma autoridade... Eu duvido. Aquele cara era tão gentil; frágil. Era até um dos motivos porque Ilena não ficou atraída por ele. Ela gosta de tipos mais, arrojados... Luciano via que, como todos, Carlos notava a face dócil de Fernando. Principalmente só o vendo uma vez. Carlos não parecia enxergar que aquilo poderia justamente ser o motivador que faltava em Fernando. Ao ser levado a querer mudar para agradar Ilena, ele cruzou mais que a linha entre dócil e arrojado. Era uma boa teoria. Luciano via uma real possibilidade ali. As palavras de Carlos haviam exposto aquela oportunidade que já deveria estar na mente de Luciano há muito tempo. Ele acreditava na lei do paradoxo ativado pela paixão; mais do que nunca... Talvez você esteja certo, Carlos. Mas eu tenho de checar todas as possibilidades. - Carlos não precisava saber que tinha dado uma pista perfeita para Luciano. Ele sabia que era melhor manter a perspectiva; e a expectativa. Continua: E houve mais alguém? Bom... Nos últimos meses eu sei que ela estava saindo com alguém, mas nunca me disse quem era. Algumas semanas antes dela... (A hesitação era solene à palavra “morrer”.) Há algumas semanas ela tinha brigado com ele. Também nunca me disse porque. No último dia que... eu... a vi... eu acho que ela estava indo acertar as contas com esse cara. Você nunca falou com ele por telefone? Não sei. Talvez. Muita gente não diz o nome quando liga. É verdade... - Aquela estava sendo a entrevista mais produtiva de todas. Luciano via e se preocupava um pouco com a firmeza e serenidade que aquele jovem utilizava para responder às perguntas. Depois de tanta dor, agora tantas recordações; diferentes dos outros, ele não ficava dizendo como Ilena era uma boa pessoa e como não merecia morrer. E provavelmente era quem mais sentia isso. Luciano olhava e ouvia Carlos, e o admirava pela sua capacidade. Sabe que é uma corda bamba... Foi quem mais sofreu e agora é quem mais ajuda. Imagina o que mais ele não poderia


fazer... Talvez ele tivesse a verdade e não sabia. Tudo que ele aprendera e sentira com a irmã tinha que ser exposto, para se descobrir que lhe havia privado a vida... Ele, com certeza, ajudaria. • E você não lembra de mais nada?... Alguém que a ameaçasse, ou que ela temesse. • Não. Acho que não. Era difícil alguém ficar muito tempo bravo com ela. O tal Fernando mesmo; (o nome ligava Luciano/qualquer coisa...) quando ele parou de ligar, ela ficou até magoada. Sabia o que ele sentia, mas não queria perder o amigo. Imagino como devia ser a situação dele... • É. Eu sei bem como é isso. - Luciano estava sendo testemunha do mesmo fato, só que desta vez com Carol. Aproximação e afastamento contínuos. Novamente ele via a fonte de uma agressividade muito perigosa... Não havia muito mais a perguntar: • Bom. Eu acho que é só. Qualquer coisa seu pai tem o número do meu bipe. • Claro... • Por falar nisso. Como está o resto de sua família? • É... Aos poucos eles estão conseguindo ir em frente... Eu também. • Dê tempo ao tempo. É sempre difícil. - Carlos se deteve ao silêncio. Luciano via seu trabalho completo ali. Aquela família agora tinha é que se reestruturar. Novamente pensa em Cristiano, o amigo caído morto aos seus pés; a sua família; Carolina: essa era a melhor lembrança de todas. O que sentira no dia anterior ainda parecia o tomar por completo... “Carol!”- É seu pensamento. • Então... - O bipe de Luciano toca. • Eu posso usar o telefone? • Claro! - Carlos aponta o aparelho e o segue com os olhos. Após todo aquele confronto verbal, ele se sentia um tanto aliviado. Tinha dito tudo que pôde se lembrar e ainda forçava a memória, mas agora só restavam as imagens da felicidade de Ilena. Ele pensa quanta sorte tinha de ter tido uma irmã mais velha tão sua amiga. Algo único. Ele lembra do sonho que tivera com ela... Mentalmente ele pede para que ela volte e lhe mostre o rosto do assassino, mas sua visão é apenas a do mundo à sua frente e do policial que volta do telefone... • Eu tenho que ir! • Algo errado? - Carlos via a expressão séria de Luciano. Responde: • Sabe quem é Frida? • Sei sim. Era amiga de Ilena... • Isso mesmo... Ela foi encontrada toda arrebentada no Jardim Bahiano, perto do Ateliê. • Cláudio!? -Carlos demonstrava conhecimento, mas... • Eu duvido. Isso é coisa do nosso homem! - Carlos se admirava da segurança do policial. Poderia ele estar tão certo? • Mas ela ainda está viva, não está? •Está. Mas há coisas que só os psicólogos conseguem entender e eu sei pra onde as explicações deles apontam. - Luciano não participou Carlos totalmente. Quem mais teria motivo para utilizar de defesa?... Luciano sabia que uma hora a intromissão de Frida iria levar a algo assim. Ela se expôs e de certo modo expôs o atacante: Luciano, agora, queria Fernando; mais do que nunca.


Até logo, garoto. Eu tenho que pegar o assassino de sua irmã. - Perplexo, Carlos via Luciano ir embora; da janela, vendo ele partir no carro. Luciano parecia agir como um herói que desvendara uma trama demoníaca e escondia o jogo em seu ego. Carlos mais uma vez duvidava da capacidade da polícia. Ele parecia falar aquilo como se fosse um remédio... Como ele pegaria esse assassino? - O pensamento de Carlos se trava: “Ilena. Fernando... Frida... Luciano! Morte!” Parecia uma parede: ela se fecha ao seu redor, mas há uma porta oculta. Carlos quer vê-la, mas ainda não pode. Precisa procurar...


Impressão de força A imagem é uma sobra da pessoa radiante que antes existia. Deitada no leito do hospital, Frida se encontra irreconhecível. Coberta por bandagens e curativos; sedada para não sofrer com as dores dos fortes hematomas; ela está rodeada pelos pais e por alguns amigos. Sua mãe a olhava, abraçada com o marido; não conseguia acreditar no estado que haviam deixado sua linda filha. Ela parecia tão frágil, deitada lá, inconsciente, completamente machucada. A imagem da garota alegre e falante permeava as lágrimas da pobre mulher. Agradecia a Deus por ela ainda estar viva, mas não podia parar de se perguntar: “Como puderam fazer isso?” Foi sem dúvida o despejo de muita força. Os médicos se impressionaram por ela ter sobrevivido; de algum modo o atacante sabia onde bater para machucar e não para matar. Era alguém de extrema violência, mas também de muita minúcia nos atos. Os outros ao redor também se espantaram com o estado da amiga. Eles sabiam que iria demorar muito para que ela se recuperasse completamente, e isso fisicamente; era provável que ela guardaria um grande trauma para o resto da vida. Era realmente triste ver como a insanidade de alguém podia violentar tanto a imagem de outro. Todos, cada um à sua maneira, tentavam imaginar que razão podia levar alguém a ser tão violento, tão cruel; que mórbida motivação povoava a cabeça desse monstro... Até mesmo Luciano, que tentava olhar para Frida como um “corpo de delito”, não conseguia deixar de compartilhar da consternação geral. Ele a avisara sobre os perigos vindos da mente de um assassino. Tentava se convencer que tinha feito a sua parte, mas sempre perdura um certo ressentimento. Carol, também lá, o olhava em silêncio e ele podia sentir como a memória dela estava voltada para a noite passada: Frida ainda “inteira”; eles dois; o encontro desavisado no Pelourinho; o modo como Luciano havia chamado Frida de intrometida. Não via senso em mais nada. Luciano não tinha dito nenhuma palavra desde que chegara ao hospital, mas Carol via aquele ataque a Frida como senso mais que uma coincidência. Sua mente aferia a mesma coisa que Luciano já tinha como certeza: quem atacou Frida foi o assassino de Ilena. Ele se sentiu ameaçado por ela. Mas pior de tudo, Carol não se perdoava por pensar; também o mesmo Luciano pensava; que o causador de toda aquela dor e violência era Fernando. Tentava desesperadamente procurar uma resposta contrária; um erro nas mãos de Luciano; algo que a lançasse de volta à imagem do amigo triste e frágil, que mesmo sofrendo por ela, ainda fazia rir e sempre lhe dizia algo que seu ego não podia evitar de gostar. Ela olhava ao redor, Frida, os pais dela, os outros amigos presentes, Luciano, o quarto de hospital, a tristeza, a dor... Mais do que todos ela sentia uma angústia tão grande que mal conseguia se agüentar de pé. Era forte demais. Irreal: “Como Fernando pôde fazer isso?” - Ela pensa sem querer pensar. Luciano sai do quarto seguido pelos olhos de Carol. Se encontrou no corredor com o médico que atendeu Frida e com o policial que a encontrou e a trouxe para o hospital. Sua mente já tinha os passos do que havia ocorrido, mas ele tinha que juntar todas as partes. Queria apresentar o suspeito com a melhor quantidade de fatos possível. Ele se lembra do corpo de Ilena... Que outro fato mais deveria ser necessário? - Imagina com revolta. O médico disse que a maioria dos ferimentos causados pelo atacante tinha sido no rosto e no tronco. Uma costela foi quebrada e a mandíbula foi deslocada. Não houve nenhuma hemorragia interna; foi o que provavelmente a manteve viva. O atacante, apesar de claramente perpetrar uma alta dose de violência, soube deter os golpes no limite para conservá-la viva. Havia uma clara intenção de fazê-la sofrer. O cirurgião, apesar de sua experiência, admirava a capacidade humana de produzir tal dor. Era realmente alguém de poder surpreendente. Luciano ouvia e figurava em sua cabeça a real imagem do assassino. Um monstro revoltado envolto numa fachada totalmente irreal que não inspirava suspeita nem nos mais perspicazes dos mortais. Quanta ironia; afinal a insanidade podia ser detida e


controlada. Isso liquidava com todas as possibilidades de padronização. Apesar de se ter, agora mais do que nunca, um suspeito; ele seria quase que inalcançável... O policial disse que ela tinha sido encontrada ao lado do carro, inconsciente, de madrugada, por um grupo de pessoas que passava no lugar. Luciano sabia muito bem a que lugar o guarda se referia. Com a informação dada por Carol na noite passada ele tinha quase certeza que Frida, cedo ou tarde, iria enfrentar a cólera de alguém por sua intromissão. Ele não imaginava que seria tão cedo e nem tão grotesca... A pessoa central do caso estava se esclarecendo a cada informação, mas ainda lhe fugia a percepção de toda aquela agressividade e detalhamento. O controle que esse elemento consegue exercer é algo que coloca em dúvida o próprio sentido da existência da carne... A fascinação. Luciano agradece ao policial e ao médico, e volta seus olhos para dentro do quarto. A visão de Frida naquela cama lhe dava uma sensação incômoda de fraqueza e temor. Para um policial investigador, tirava muito de sua perspicácia, tal sensação. Enfrentar tal monstro... Ele vê Carol; novamente se remete à noite passada. O que eles sentiram juntos era muito importante e seria dificilmente esquecido. Também temia por ela; a proximidade de Carol, a compaixão que ela tinha e o que ele sentia, mesmo sem querer... Ele anda até o quarto e a puxa pelo braço. Em voz baixa: • Eu tenho que ir. • Você vai ao Ateliê? • Vou! • Eu posso ir junto? • É melhor não. Vá para faculdade. Tente ter um dia normal... pra variar. • Acho difícil. • Eu sei. Mas vá! Mais tarde eu devo passar lá. - Carol tentava declinar ao seu pensamento, mas sabia que Luciano provavelmente iria lá por causa de Fernando. De certo modo ela até duvidava que o próprio aparecesse, mas ela não sabia o quanto a situação era incomum. Eles se olham por um segundo e a viva memória da noite passada lhes fornece a coragem necessária para satisfazer suas vontades, mesmo em público; não havia porque esconder. Eles se beijam, em despedida. • Até mais tarde! - Carol o observa entrar no elevador e tenta manter claros seus pensamentos. Até quando teria que viver à sombra daquele monstro... Quando poderia ser completamente feliz? Quando?... Ela volta ao quarto. 2 Outros olhos surgem na manhã para visitar Frida. Seus pais estavam fora do quarto e os amigos tinham ido embora. Ele se sentia deslocado e constrangido para aparecer ali em público, mas estava no hospital há tempo suficiente para ver seu provável algoz beijar a mulher que ele não conseguia evitar de desejar, cada vez mais. E mesmo diante daquela situação, alimentada pelos momentos da noite anterior, Fernando não podia deixar de querer ver Frida no hospital. No dia anterior ele a desejou morta por tanto desagrado. O encontro com ela no Pelourinho estaria sempre em sua memória como um dos mais desconfortáveis momentos de sua vida. Mas ele sabia o que era dor, todas as dores. A fragilidade que ela se apresentava agora não podia deixar de consterná-lo, também. Fernando olha para a imagem de Frida, desacordada, ferida, maculada; à sua frente. Também não queria acreditar... • Me desculpe, Frida. Eu sinto muito mesmo. - Ela não ouvia mas ele tinha que dizer. Toda sua vida se protegeu de qualquer sinal de fraqueza. Eram preços pagos por se ser sozinho, mas ainda restava muita compaixão em


sua consciência. Uma consciência extremamente ferida e calejada, que tanto o fazia sofrer, quanto o protegia das maneiras mais fortes. Se sentia mais só ainda ao estar naquele cenário; queria ele estar em outro mundo... Mas tem de continuar, ir embora; não há muito mais tempo. Ele sabe. Adeus, Frida...


Última atenção A palidez e a congestão do rosto de Cláudio não dão margens a dúvida a respeito do que ele fez na noite passada. Luciano chegara no Ateliê e teve que esperar um bom tempo até que a ressaca do jovem músico permitisse que ele se levantasse. Nesse período ele pôde receber dois recados do seu superior. Teria de comparecer no Complexo de Delegacias ainda na manhã. Já imaginava qual seria o assunto: um suspeito. Mas ele sabia que teria uma resposta. A visita a Cláudio era só a peça final para ele se apresentar. Mas ainda era o primeiro passo. Todas as facetas apresentadas por aqueles elementos davam a margem para as dificuldades que ainda viriam. Novamente ele sente a desconfortável sensação de temor... Mas o momento o faz seguir na profissão: • Frida estava com alguém? • Acho que não. • O que mais ela disse? • Falou sobre os telefonemas para Ilena e ... • Quais? Aqueles que você mencionou? • Não sei. Pode ser. Eu não lembro muito bem... • Você se lembra dela ter dito algum nome? • Sei lá... Leandro. Não... Fernando. • Você conhece? • Acho que não. • E você não viu ninguém olhando ou seguindo Frida? • Eu nem vi ela saindo! • Tudo bem. - Não estava sendo de grande ajuda, mas a confirmação do nome era tudo que ele precisava. Ele precisava confirmar o motivo... A voz arrastada e a expressão cansada de Cláudio pediam cama. Ele estava muito diferente da noite passada quando expôs sua confusão e demência musical e alcoólica. Luciano sabia que só tinha que apresentar aqueles fatos e teria o elemento comprometido. Olhava o detrimento do músico e se admirava de tanta repúdia. Toda aquela dispersão e ainda assim um nome. Não havia mais o que fazer. • Obrigado pela atenção! • Ah... De nada. Espero que ajude. • Vai ajudar! - Luciano já estava perto da porta. • E ela vai ficar boa? • Claro. Só está machucada. - Luciano parte. Cláudio olha ao redor seu bar vazio. Ainda tinha na memória a noite passada. Talvez Frida estivesse “inteira” se tivesse dançado com ele, ou mais. Tentava não sentir culpa, mas não podia. Tentava se desligar mas não podia. O álcool não estava mais em sua cabeça. Gostaria de um dia se desculpar com aquela jovem mulher, que só queria entender melhor as atrocidades cometidas na amiga. Mas ele sabia que nunca o faria. Como o mundo pôde se tornar tão terrível, tão de repente. Ele olha para o palco, lá está sua guitarra. Sua alma em “blues” procura a lembrança de uma música. Ele se senta e uma profunda depressão o atinge. Não podia fugir de novo. Lágrimas surgem em seus olhos. Seu rosto já abatido olha o vazio procurando algo em que se segurar. Não fez nada e por esse nada estava doente. Culpa. Entorpecimento. Dor. • Meu Deus, Ilena. Como você faz falta!


Ordem / Fato As circunferências de corredores que formam o Complexo de Delegacias dos Barris sempre terminam em alguma sala, minimamente maior que os cubículos dos investigadores, onde se encontram os delegados. Sentados em suas posições de autoridade, eles regem seus nobres e sacrificados investigadores para dentro do mundo do crime. Muito além da compreensão de seus reais valores está a inevitável necessidade de ordem. São todos heróis e vilões. O último traço para o sub-mundo. O delegado Adroaldo Macedo vive o “conforto” de sua sala, enquanto aguarda a chegada de um dos seus investigadores. Homicídios! Essa é a vida deles. O detetive Luciano está a cargo de descobrir o assassino de Ilena Fernandes e o delegado Adroaldo está a cargo de lidar com o Secretário de Segurança Pública e também com a imprensa. Com a expressão ele podia dizer que o assassino ainda está solto e que na noite passada atacou outra vítima?! Por sorte ela estava viva. Ou por escolha do assassino. Mas a experiência dizia que o elemento estava começando a abusar da demora da polícia. Ele se sentia poderoso; não só por ter tirado uma vida; mas também por conseguir se safar. O vivido delegado sabe que a imprensa e a opinião pública irão usar mais um argumento para demonstrar a ineficiência do poder público. E o Secretário irá detonar no homem que é o responsável... Ele. E ele, agora, quer uma cabeça... Luciano chega. • Quando é que vai me trazer esse assassino?! - O fervoroso cumprimento do seu chefe revelava que a notícia sobre Frida havia se espalhado. Ele foi o primeiro a aferir que o assassino de Ilena era o mesmo atacante de Frida; tomaram como verdade; apesar de somente ele conhecer todos os fatos e as razões. Era impressionante ver o poder de sua autoridade pessoal. O seu próprio chefe estava irritado por causa de uma simples informação que ele emitira. Era uma grande ironia... Tal poder! • Mais cedo do que pensa, chefe! Hoje mesmo eu trago o suspeito para um interrogatório oficial. • Por que demorou tanto? • Há certos problemas de circunstâncias que ajudam mais a ele do que a nós. Eu tive de esperar até a última informação para ter certeza. E ele não vai ser fácil... - Com um leve sorriso no rosto, Luciano diz o que o delegado mais queria ouvir: • ... Mas trazê-lo vai acalmar a imprensa e o Secretário. - Já mais aliviado, o delegado refaz sua carranca; voltando ao seu estado normal e se propondo a contribuir... • Do que você vai precisar? • Bom... Eu gostaria que o psicólogo da polícia assistisse e avaliasse o interrogatório. O elemento tem um grande poder de auto-alienação e creio que vamos precisar de toda ajuda. - O delegado, já se expressando como um velho amigo, admira a requisição daquele procedimento. Se o suspeito era tão dissimulado, como Luciano conseguira expô-lo? - A experiência policial do delegado agora toma sua mente. Com a exclusão dos problemas políticos, a velha perspicácia de rua voltava a dominar. É um dom de vivência... • Como você pegou esse sujeito? • Eu ainda não o peguei, mas sei que é ele. Na verdade, foi graças a um envolvimento pessoal meu que consegui focalizar todos esses traços no suspeito.


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Que envolvimento pessoal? - Luciano hesitava, mas a autoridade de seu superior lhe impedia de manter pessoal, sua vida pessoal. Teria de se sacrificar. Cedo ou tarde. Bom! Ele é um “amigo” de minha namorada. - O delegado Adroaldo observava a tentativa de seu policial em manter a situação firme. No trabalho policial, lidar com situações de alto índice de desumanização, de certo modo, fortalece o lado emocional do ser (um tipo de alienação); mas quando a vida pessoal de um policial se encontra com os choques mórbidos de seu trabalho, geralmente, acontece um tipo de obstinação que prejudica a todos. E mais ainda quando a história cai na imprensa... As marcas na vida do delegado diziam isso e ele podia ver as marcas começarem a surgir no policial à sua frente. Temia pela investigação, mas queria confiar em Luciano. Conhecia a história dele com Cristiano... Ele conseguiu superar. Agora, ele teria de se superar, de novo. Tudo bem. Eu vou chamar o psicólogo que está encarregado do caso. Mas eu vou querer um relatório com os passos de sua investigação. Com tanta repercussão, eu não vou admitir a prisão de um homem errado. Não se preocupe. - Luciano sai da sala. Se preocupar era o que o delegado mais fazia. Tensão... parecia ser o preço de seu cargo. Via as certezas do policial, quase vinte anos mais novo que ele, e o invejava. Até atingir aquela função tão conturbada passou por diversos momentos incertos; a vida em risco. Também ele perdeu companheiros por meio de balas criminosas, e agora tinha que fazer política. Era combater o crime por dois lados: o errado e o que deveria ser o certo, mas também é errado... Sentado em sua pequena sala, o nobre delegado pensa sobre aquele caso e sobre sua vida: “Estou velho demais para idealismo!” Era triste, mas parecia ser verdade. Ele torce pelo futuro de Luciano. É o melhor que ele pode fazer.


Exposto O centro das atenções. Fernando sente o “stress” do momento em sua coluna. Sentado numa cadeira desconfortável, dentro de uma sala extremamente abafada e com três homens ao seu redor. Sentado atrás dele está o psicólogo criminalista que assim que se apresentou começou a analisá-lo. Ele pôde sentir pela postura do homem: cada coisa que ele dissesse seria interpretada e analisada. Queria estar em qualquer lugar; mesmo sozinho; menos ali. Sentado atrás de uma mesa à sua frente estava o delegado Adroaldo. Não podia aferir muito a respeito daquele homem. Com certeza analisaria cada afirmação sua, só que sob a ótica policial. De certo modo confiava mais no julgamento dele, por ele estar mais fora da situação... Confiaria em seu comando, mas seria muito mais imparcial do que ele; e Fernando sabia disso. À sua volta estava Luciano, andando muito enquanto lhe fazia as perguntas. Era sem dúvida um algoz de ferrenha determinação. Não poupava Fernando de nenhum constrangimento, mesmo com ele se defendendo de todos com diligência. O que mais Fernando queria era esquecer o que estava se passando, mas a todo momento se lembra do fim da manhã na faculdade: sua exposição... “Todos saiam da última aula. Fernando pegava seu material com desânimo. Mais do que o normal ele se sentia abandonado. Sua própria vontade de viver parecia não estar mais se sustentando. A visão de Frida na cama do hospital parecia ter capturado sua sensibilidade para vida. Também pela presença de Carol no seu dia. Mesmo sozinho e à distância, ele conseguia sentir e até apreciar, mesmo sofrendo, o amor que lhe era presente. Mas as circunstâncias do tempo modificaram tudo. Parecia ser uma avalanche inevitável. Ele não podia mais evitar o que viria à frente. Se sentia conformado, até morto por dentro. Na noite anterior ele acumulara dores diversas: ciúmes de Carol com Luciano; raiva de Frida; sua própria frustração. Imaginava se algum dia haveria um melhor caminho a seguir. Nada mais parecia fazer sentido... Mesmo no momento que ele focalizou Luciano conversando com Carol e os outros, olhando para ele; sabia o que vinha pela frente. Sua mente já montava toda situação e mesmo não fazendo sentido ele iria cooperar. Não tinha mais nada a perder. Ele mesmo já se sentia condenado. Luciano vinha em sua direção devagar. Todos parados atrás observavam aquela cadeia. O olhar de todos julgava Fernando. Conheciam ele pouco, mas resistiam em crer na proposição. Os que viram o estado de Frida continham certa revolta pela falta de certeza. E Carol... Ela tinha múltiplas visões de tudo aquilo. Sabia que Luciano viria “pegar” Fernando e de certo modo admirava a passividade dele. Era como se ele, simplesmente, estivesse de acordo; sendo ou não culpado. Aumentava ainda mais sua consternação ao ver Fernando naquele estado... Como compreender ou julgar alguém daquele modo? ... Um aperto no coração de Carol se formou quando Luciano chegou a seu suspeito. Ainda se punia por acreditar em alguma coisa. O olhar de Fernando chegou até ela. Não tinha como fugir. Ela não tinha certeza de que lado estava. Aqueles dois homens, completamente diferentes, a atingiram, de maneiras diferentes. A busca de um por amor e compreensão lhe dava uma vertente de fragilidade, mas Carol sabe que as circunstâncias são motivadores poderosos. De uma maneira diferente, também ela se sentia perdida; amedrontada com o modo como as coisas de deram. E o outro... Lembrava do toque de Luciano. A atração que ele lhe proporcionava. O prazer que ele lhe dera... Luciano estava atrás de um assassino e naquele momento estava levando Fernando para ser interrogado. Como as coisas podem ter um caminho tão triste; tão confuso? - Queria Carol voltar a ter simples sensações de conforto... Mas o que ela via era o seu namorado levar Fernando e ele simplesmente olha para ela; triste, passivo, parece morto. Como pode ser?” Fernando pensa em como será julgado agora. Pensa se liga para o que seja que lhe aconteça. Sente culpa pela própria existência. Sente dor por estar vivo. Sente remorso por todas as dores do mundo... O policial/algoz ao seu redor desejava todo tipo de alusões que


maculavam tudo que ele um dia poderia ter acreditado. A própria privacidade de sua vida parecia ser de interesse daqueles homens. Nunca imaginou ser tão importante. O vazio dentro dele crescia à medida que era exposto e de certo modo, se sentia preenchido pelo vazio. Tirava poder daquilo. O policial parecia julgá-lo e rejulgá-lo a cada pergunta. Ele não se importava. Sobreviveu ao reencontro com Carol. Não disse uma palavra, mas tinha visto com o olhar que estava “livre”. Uma espécie de morte interna o levara àquele momento. Também sobrevivera à visita a Frida no hospital. Sabia que nunca mais seria a mesma... Sabia que nada mais seria o mesmo. Fernando se libertara do julgamento de todos aqueles olhares. Se sentia auto-condenado. Sabia o que tinha de fazer. Ele, agora, seria o monstro; mas ele não liga. Não se importa mais, apenas se desprende... • Que importância tem isso afinal? - A voz de Fernando não demonstra uma emoção. • Foi notado o seu envolvimento emocional por ela! • E daí!? Isso me dá motivo? • Ela o rejeitou! Você se enfureceu! • Eu nunca me enfureço. • Não brinque rapaz. Há muitas circunstâncias contra você. • Mas não há provas. Eu não via Ilena há muito tempo. - O delegado via que Luciano não tinha argumentos para aquilo. Ele notava que havia algo não mencionado entre os dois... Mas ambos sabiam o que era: Carol. Luciano sabia que se expusesse o sentimento de Fernando por ela, tiraria todo o crédito de sua investigação sobre o assassinato de Ilena. Ele não queria deixar Fernando escapar. • E quanto a ontem à noite? Onde você estava na hora do ataque a Frida? • Pelo horário mencionado eu deveria estar chegando em casa. • Pode provar? • Não senhor. Eu moro sozinho! E também... eu não tinha motivo para querer machucá-la. • Ela o enfureceu publicamente no Pelourinho. • Ela enfurece qualquer um. Sempre foi o jeito dela. Nem por isso as pessoas a atacam o tempo todo. • Talvez ela tenha descoberto algo sobre você e você não quis que ela contasse. • Se fosse o caso não seria mais seguro tê-la matado? - Novamente Luciano tinha ficado sem resposta. O delegado Adroaldo e o psicólogo também começaram a notar a capacidade de Fernando em se auto-alienar. Ele conseguia encontrar forças na sua própria obscuridade. Todos, inclusive Luciano, notavam que não seria tarefa fácil lidar com tal pessoa. Ele tanto dava margem para a culpa, quanto dava argumentos para a sua inocência. O raro poder de não se expor. Dentro dele o vazio e fora, o poder... • Voltando a Ilena... Os telefonemas... - A exaustão aparecia no rosto do obstinado investigador, enquanto Fernando continuava a se sentir forte, pelo vazio dentro dele. Entre as respostas se refugiava no seu passado, quando até sua solidão parecia ser um parceiro melhor que o vazio. Tinha as imagens de Ilena, Frida e Carol na memória. Em seu íntimo ainda procurava um sentido naquilo, mas parecia não haver... • Pode repetir a pergunta, por favor. - E a tarde passou arrastada. Incertos, todos se prendiam à procura da paz. Fernando foi liberado... Não pode


deixar a cidade. Não liga. Tudo parecia ser uma grande e inesgotável fonte de falta de sentido... 2 Ele sai pela porta. Sua transformação tinha realmente atraído as pessoas. Os seres humanos tanto necessitam de heróis quanto de vilões; e ele era o vilão. Estava livre, por enquanto, mas para o mundo do lado de fora ele era quem tinha levado pela polícia. Um suspeito; praticamente um monstro. Por trás do pequeno cinturão de repórteres que o cercava com perguntas tão ou mais constrangedoras que as de Luciano, Fernando localizava quatro pessoas e uma delas invadia sua memória de maneira devastadora: ele não lembrava seu nome, mas já o tinha visto e o seu olhar frio demonstrava que também se lembrava. Era o irmão mais novo de Ilena. Por dedução de Fernando imaginou que as outras três pessoas eram o pai dela e suas duas outras irmãs... Imagina o que eles foram fazer lá: conhecer o rosto do monstro. Ele... Sua visão estava fixa com a visão de Carlos. As perguntas que lhe eram feitas não importavam. Ele não seria um espetáculo televisivo ou jornalístico. Uma aberração no mundo dos que se acham intocáveis. Simplesmente se calaria... Começa a andar em direção à saída; devagar; terá de passar pela família. Talvez o irmão de Ilena lhe bata. Não se importará... Se aproxima. Os repórteres ainda estão ao seu redor. Ele sente os olhos dos quatro sobre si, enquanto ainda olha para Carlos. Havia algo diferente no olhar dele. De perto Fernando podia ver que havia não apenas a acusação, mas teorias da polícia. O que ele poderia saber? - Pensa Fernando. Carlos não irá atacá-lo. Está analisando. Procurando... Fernando lembra de Ilena. Não pensava nela há um tempo. Tinha somente se fixado na profundeza de seu vazio. Se esquecera que outras pessoas também gostavam dela... Finalmente deixa para trás a visão daqueles rostos desolados. De todas as dificuldades daquele dia, encarar aquela família foi o momento mais doloroso. Seu rosto se enrubesce de leve; sente uma modesta vontade de chorar. Nunca teve família de verdade; nunca teve por quem chorar. Queria sofrer como todos, mas já estava à frente. Estava num momento mais visceral. Um período de dor inimaginável. 3 A porta se fecha. Quem estava dentro não tinha a mesma capacidade de enfrentar a mídia e não queria enfrentar a pergunta óbvia: “Por que deixaram ele ir?” O delegado Adroaldo olhava perplexo para a seriedade de Luciano, sentado no sofá da sala. Teve de liberar o suspeito. Luciano, simplesmente não conseguia mais encarar o rapaz. O delegado sentia que havia mais do que se havia aferido durante o interrogatório, mas não sabia até que ponto esse mais envolvia o seu policial. A aproximação dele com o suspeito através de Carolina tinha alguma outra conotação mais forte. Talvez Fernando também esteja envolvido com Carolina! - O experiente delegado sabia chegar às conclusões certas, mas não queria aborrecer mais ainda Luciano, que ainda se sentia traído por si mesmo, não sabendo de todo potencial dissimulador de Fernando. Não queria acreditar, mas o estudante o havia deixado sem base; além de não querer revelar seu próprio envolvimento... E Fernando sabia disso, usando esse poder com destreza. • O que o senhor acha, doutor? - O delegado se voltava para o psicólogo e chamava a atenção de Luciano para a dissertação. Talvez fosse o único ganho do dia. • Devo confessar que estou impressionado. Aquela é a pessoa mais fechada que já encontrei. Deve ser uma experiência interessante analisá-lo. Não há dados sobre seus pais e os pais adotivos parecem não ter tido nenhuma


influência drástica sobre o comportamento dele. Suas respostas foram todas diretas e duras. Não houve hesitação na hora de responder a nenhuma delas. Tanto tudo pode ser verdade quanto mentira. (Ele folheava anotações enquanto falava.) Suas expressões não diziam muito. Algum desconforto, talvez. Mas a maior parte do tempo parecia que não havia ninguém por trás do rosto. Eu consegui notar algum pesar quando o detetive mencionou as duas garotas atacadas. Ele podia estar fingindo, o que com certeza seria com perfeição, mas eu não duvidaria de ele estar realmente sentindo. Como eu já disse antes, esses assassinos emotivos sofrem muito remorso, apesar de não conseguirem evitar de sentir prazer com a agressão. É como um compositor e sua música: ele sofre mas gosta. É um som inevitável e ininterrupto... - Luciano ouvia as afirmações do psicólogo. Se lamentava... Não havia muito mais que ele já não tivesse aferido sozinho. Para os observadores de convivência, Fernando era somente um solitário, mas quem se aprofundava podia ver a sua força. Ele se defendia com tanto empenho e se escondia tão bem em seu próprio mundo vazio, que se tornava quase inalcançável. Talvez por isso ser tão solitário. Ele tinha em sua consciência seu maior aliado e amigo, e era ela mesmo quem lhe empurrava, tanto para a auto-preservação quanto para a sólida e mórbida tristeza. O psicólogo não conhecia a fundo a situação emocional de Fernando. Suas paixões e conseqüentes frustrações constituíam também outro grande motivador para a sua alienação do mundo... Estavam todos numa progressão. Luciano, inevitavelmente, pensa em Carol. Como ela reagiria a esse outro lado do seu mundo? Como acertar sobre tais situações da vida? - Ele pensava, enquanto o psicólogo prosseguia: - Não há como garantir seu envolvimento. Eu acredito que o tempo que ele tem sozinho, o que parece ser muito, o treina na arte da introspecção. Ele passa tanto tempo se auto-analisando, que sobrevive com facilidade às análises externas... Analisá-lo deve realmente ser fascinante... - Enquanto o psicólogo admirava os detalhes comportamentais daquela pessoa, Luciano e o delegado Adroaldo contorciam suas idéias dentro de toda aquela trama. Eram dois lados de uma mesma fascinação pelo crime... Psicologia e investigação. • Bom... De qualquer jeito é difícil prever o que o inconsciente dele está preparando agora. Ele parece estar tão dentro de si mesmo que a sua própria consciência deve interferir nos atos inconscientes... Se ele for o assassino, esse ego deve estar se regozijando por ter nos vencido e ele sabe disso. Se ele não for, por dentro ele até pode estar um tanto satisfeito, mas também pode estar sentindo-se um tanto humilhado... • Ele é o assassino! - Exclama Luciano com segurança. • Eu não posso afirmar isso, detetive. Acho que o único jeito de pegar esse rapaz; se ele é realmente culpado; é pegá-lo no ato. Ele não vai se revelar. Ele não é burro; sabe o poder que tem e vai usá-lo, sempre. Você afirmando isso já devia saber, pelo estado das vítimas, como ele é minucioso e frio no momento de se esconder. • Ele vai cometer um erro! Cedo ou tarde! - O delegado Adroaldo também conhecia essa regra. • Talvez. Apesar de tudo, ele ainda é humano... - Luciano olha para o delegado Adroaldo. Uma idéia surge em sua mente. Toda segurança de Fernando podia ser a falha que ele procurava. Alguma coisa não vista por ele em si próprio talvez fosse a arma que Luciano procurava para pegá-lo... Um ato.


Delegado... Eu preciso de um mandato de busca! A casa de Fernando. 4

Os três saem da sala. Não havia mais nenhum repórter; somente a família Fernandes. Pai e filhos se mantinham esgotados, enquanto Carlos não perdia um movimento e não parava de pensar. Desde o momento que falara com o detetive Luciano notara que aquela situação não era normal. O encontro de olhares com Fernando tinha lhe dado a certeza de tal anomalia. Ele viu dor em Fernando, enquanto que o policial tinha lhe passado apenas uma falsa certeza de justiça. Ver o “suspeito” sair dali mostrava o quanto ele estava certo em não acreditar no policial... Toda aquela aparente força e segurança. Pensa no que podia se basear tal segurança. Sentia uma força e uma tristeza naquele ambiente que rodeavam seu raciocínio; o deixava confuso e fascinado. Não queria estar errado: o que mais os olhos de Fernando poderiam estar dizendo? - Pensa... Talvez Carlos estivesse superestimando sua capacidade de observação, sendo apenas um garoto; mas nada conseguia lhe tirar da cabeça a desconfiança de que tudo aquilo estava trilhando um caminho que não lhe fora totalmente revelado. Queria se confortar com o pai, mas via que ele não tinha muito a oferecer... O que Carlos mais queria mesmo era conhecer aquele homem com quem cruzara olhares. Queria conhecer Fernando Vainarde. Ver o que Luciano não via; ouvia e ignorava. Achar o verdadeiro monstro... Quem matou Ilena.


O monstro A humilhação e o constrangimento que não pareciam transparecer no dia anterior, se mostravam com força agora. Cada olhar acusador reconhecia o rosto familiar, que sempre esteve perto, mas nunca notado. Fernando não sabia porque fora à faculdade. Notava em cada pessoa que o encontrava que tudo que aprendera sobre o poder da mídia era verdade. Na tela aparecera por menos de três minutos; calado, sóbrio, inexpressivo; mas um texto e um contexto qualquer o faziam já idealizado. Nunca foi motivo da atenção de ninguém além dele mesmo. Sentia como se seu mundo tivesse sido invadido. Ele era cheio de vazio; verdade! Mas era dele... E agora todos estavam querendo entrar, acusá-lo, julgá-lo. O que todos podiam saber? - Uma fúria súbita o toma. (Luciano!) No dia anterior sobrepujara toda a indolência da polícia; especificamente Luciano. Agora passava por aquelas pessoas e se sentia despido. Até mesmo a leve culpa que o tomara no dia anterior tinha desaparecido momentaneamente; dando lugar a uma imensa vontade de explodir... Perderia parte de sua proteção, talvez... Mas não queria se importar. O vazio de toda aquela situação parecia agora inflar em seu peito. “Por que vim cá?” - Pensa. Nunca imaginou a faculdade sendo um ambiente tão opressivo; mais até que o lugar onde estivera no dia anterior. A beleza da vida acadêmica nunca fora algo atraente. Os prédios e a natureza rodeados dos mais diversos tipos de pessoas transmitiam um certa angústia à sua solidão: tantos rostos se cruzando e muitos não se viam. O campus era um grande centro, que naquele momento só parecia querer transportá-lo para fora... Talvez por causa da mesma opressão; talvez sentisse falta. Estava perdido... Que terrível angústia podia se atingir ao final de tantas imposições. Era um monstro. Uma criatura detestável. Era ele. Parte do dia se passa. Os olhares persistem. Fernando se sente sozinho em meio a toda aquela atenção adversa.. A cada minuto sente vontade de ir embora, mas não sabe onde ir. Em casa iria se perder em lembranças; voltar em depressões do passado e piorar as do presente. Se sentia aprisionado. Preso no vazio. Imagina ele o que mais lhe pode vir que piore o momento. Não parecia haver resposta para nada. Somente os pesares da vida e sua própria exposição... • Fernando! - A voz fez parar seu caminho para saída, mesmo sem destino sabia que tinha que sair dali. Tinha medo da voz. Era conhecida. Talvez devesse ter saído mais cedo. A fúria ainda o tomava e temia fazer algo que a expressão em seu rosto já parecia transmitir... Ela com certeza já sabia de tudo; mais até que os outros. A última lembrança dela é na companhia de seu lépido algoz; alguém que Fernando queria esquecer. Ele havia desmanchado a sua vida, mesmo sem se garantir disso. Mas mais do que tudo: Fernando sabia que Luciano tinha tido Carol; a dor, a frustração, o ciúme e o constrangimento desenhavam no rosto o que Carol nunca gostaria de ter visto ao chamar o seu nome: • Fernando! Não ouviu!? - Era tarde demais. • Ouvi, mas preferia não ter ouvido! - Carol se espanta com a rispidez de Fernando. Tentava manter uma perspectiva de compreensão. • Como foi ontem? - Machucava o coração de Fernando ver aquela mulher em sua frente e não poder tocá-la. Era a única pessoa capaz de sentir muita resposta para tal afirmação. Era verdade... Tudo. Queria poder dizer algo confortante, mas a incerteza também pesava em sua consciência. • Eu sinto muito, Fernando. É triste ver você assim. • Guarde seu ressentimento. A vida que foi maculada foi a minha e você já escolheu o seu lado... - Carol começava a se incomodar. Era difícil para ela também, mas ele parecia não ligar.


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Você tem que entender que era necessário. Mas agora você está livre... Quanto à minha... - Ele interrompeu raivoso: Livre! ... Olhe ao redor, Carol. Eu sou a aberração do campus e você também acha isso. Fernando, eu sei que você é mais que isso. Se você se sente lesado, procure um advogado... - Um sorriso compulsivo atinge Fernando. Ele não podia crer no rumo daquela conversa. Carol não fazia sentido algum; como tudo mais. Ela parecia expressar tanto culpa quanto medo; se prendia em defender o namorado de maneira esquivada e se desculpar por não corresponder aos sentimentos de Fernando. Se transformava numa estranha mistura de paixão e raiva, que de certo modo dava poder a Fernando... A mulher à sua frente; que por meses o fez tremer calado diante da rejeição e da atração; ela estava com medo dele. Podia-se sentir seu incômodo e desagrado diante dos insultos indiretos, mas não havia revolta, ela não se expunha; apresentava argumentos sobre argumento, mas na verdade não sabia o que dizer. Eu não preciso de advogado! Eu não preciso de nada! - A imponência e segurança no tom de Fernando davam mais medo ainda em Carol. Ela tentava se sustentar: Eu imagino como tem sido difícil, mas você pode contar... comigo.- Sua voz parecia se arrepender do que dizia. Fernando a olhou por um minuto. Direto nos olhos. Estava sério; não havia mais sentido nem em sua paixão. Ela simplesmente desviava o olhar. Toda sua luminosidade e beleza pareciam morrer diante da situação. Se sentia totalmente perdida dentro daquela trama. Parecia não ter mais função. Ela falava com o monstro e todos no campus eram testemunha... Estava totalmente tolhida. Aquele lugar parecia girar em expectativa, e ela ainda tinha que ouvir mais uma coisa: Carol (ela olha/Fernando ainda consegue queimar um pouco por dentro), eu teria feito qualquer coisa por você; qualquer sacrifício seria válido; minha própria vida, mas agora eu estou longe, distante demais para ser alcançado. Você e seu namorado podem ficar com suas vidas... Eu vou me afastar. Vou encontrar a distância onde já estou. Nada mais importa: se eu sou o monstro, dane-se! Serei o monstro; eu não ligo... Não dou a mínima. - Ele se afasta de costas alguns passos. Ela observa sua expressão. Não parecia restar muita coisa daquele jovem que ela admirava e que a fazia sentir-se tão vaidosa por seus sentimentos por ela. Um dia Carol viu em Fernando algo que ninguém mais via; e agora ela via o último vestígio do que todos, agora, conheciam. Fernando continuaria triste e solitário, mas não mais frágil. Carol vê ele se virar e atravessar o portão principal do campus; ela fica parada em meio às pessoas, às árvores e os prédios. Não via muito sentido no que havia acontecido. Pensa em Ilena e Frida: não conseguia ter certeza nenhuma nas teorias de Luciano. Aquele rapaz, que acabara de despi-la de sua imagem final a respeito dele mesmo, não parecia representar nada. Não conseguia imaginá-lo matando ou ferindo alguém, mas toda aquela nova face fria e segura dava uma margem de dúvida. Ela se lembra do “estrago” em Frida: como ser capaz de causar tanta dor... Não havia culpa em seu rosto. Apenas um leve ressentimento do passado se esvaindo no presente; e o vazio. Ela imagina o que pode estar nesse vazio: talvez a resposta. Carol se sente muito só naquele instante. Não queria nunca estar assim, mas era verdade.


Paixões e retorno Sete da noite. O telefone na casa de Carol toca. Ela mesma atende. Estava sozinha e se preparava para ir à academia. Era um relaxamento para ela além da vontade de sempre manter o corpo em forma; e naquele dia em especial, não só a faculdade e o trabalho a haviam consumido. As palavras de Fernando ainda rebatiam sua confusa mente... • Alô! - A voz do outro lado da linha trazia tanto esperança quanto ressentimento. Um mundo de possibilidades poderia se apresentar; inclusive mais consternação: • Carol!? ... É Fernando. - Seu corpo e sua mente queriam saber o que dizer; acabara de pensar nele... Após o desabafo da manhã, não imaginava o que ele teria para lhe dizer. Talvez ele também não soubesse... • Oi! • Oi! Eu estou ligando para me desculpar. Eu sinto por ter explodido com você hoje. Passei todo o dia pensando em você e no que eu fiz... • Eu entendo! - Ela admirava a honestidade dele, novamente. Sentia, como antigamente, o tom sensível de sua voz. Envaidecida, de novo, por ter a sua atenção. Era, provavelmente, a última vez que ouviria aquela voz; a última memória do Fernando frágil. Ela sentia que a mudança dele era irreversível; com certeza se tornaria uma pessoa mais dura, fria... Mesmo assim, não conseguindo evitar, ela sente uma leve atração por esse novo ser; não o que lhe falava pelo telefone, mas o que explodira naquela manhã. Ela ouvia: • Mas como eu disse de manhã, eu vou me afastar por um tempo. Eu estou me sentindo exposto; vulnerável. Acho que o pior vai ser me afastar de você... Mas eu não tenho mais retorno. • O que você quer dizer? • Eu estou preso num mundo sem volta; meu mundo. É uma coisa difícil de entender... Eu quero que saiba que eu nunca... vou... esquecer você... Foi pra isso que eu liguei. Espero que você fique bem. - Carol não tinha palavras. Segurava o telefone e sentia a tensão em seu corpo. Não conseguia fazer uma distinção racional de tudo pelo que ela estava passando, ou do quão real era aquilo que ela ouvia. Talvez estivesse se enganando com tudo aquilo... Ela se lembra da atuação de Fernando de manhã... Só restava, agora, se despedir. • Adeus, Carol... • A ... Adeus, Fernando. Até um dia... - Ela desliga o telefone. Se espantava com o que sentia. Como podia estar triste por Fernando? A suspeita ainda rondava seus pensamentos: ele nunca mencionara nada de seu envolvimento com Ilena. Talvez ela tivesse sentido o mesmo tipo de compaixão por ele e acabara daquele jeito: a imagem do corpo de Ilena voltava à sua cabeça... Seria mesmo Fernando? Talvez fosse um jogo de sua parte: envolvê-la, trazê-la para seu lado... Tentava desesperadamente racionalizar a situação. Procurava em sua mente algum traço do raciocínio de Luciano. Alguma razão ele deveria ter para suspeitar de Fernando. Assim como Frida: ela o acusara indiretamente e agora estava no hospital. Imagina se teria coragem suficiente para se arriscar em tais situações: se fosse dirigida... Seria essa pessoa, e aquela com quem acabara de falar no telefone; tão triste, tão emotivo e verdadeiro; a mesma pessoa? - Carol se sentia


intuitivamente culpada por simplesmente não saber o que pensar ou o que sentir. Definitivamente ela precisa se libertar: a academia... 2 “Eu nunca senti isso por ninguém! É muito forte.”- Essas foram as palavras. Sentados numa das escadarias do campus, Fernando revelava para Carol seu mais profundo sentimento. A breve sensação de medo e insegurança era rapidamente substituída pela vaidade e admiração. Nunca imaginou alguém se declarar para ela de maneira tão direta e honesta. Ela tinha sido apanhada de surpresa pelo forte sentimento de alguém, que ela sempre vira como amigo. Ela imagina como aqueles últimos dois meses devem ter sido realmente dolorosos para ele, culminando nos últimos dias com a morte de Ilena, o seu envolvimento com Luciano e a suspeita sobre ele... Carol tentava manter a sanidade enquanto repassava todos os pensamentos e sentimentos em uma avaliação pessoal e sóbria. O suor escorria pelo corpo. Cuidar o corpo era sempre uma prioridade para ela, mas nesse momento, mais do que nunca, era uma terapia... Ela ouvia novamente as palavras de Fernando ao telefone e as comparava com as da manhã, no campus... Pensava em qual seria a reação de Luciano. Por observação ele sabia que Fernando sentia algo forte por ela, mas nunca houve contato. Nem mesmo quando ele soube que Fernando estava no Pelourinho, os observando, ficou irritado ou preocupado. Talvez ele só enxergasse Fernando como suspeito, e não como homem. Deveria se preocupar, pois Carol estava preenchendo muitos de seus pensamentos com lembranças de Fernando; mesmo que ligado a toda aquela complicada situação: Ilena, Frida, violência, morte... Cada movimento de Carol no aparelho de ginástica trazia uma imagem diferente, e sempre continha Fernando na mesma... Pensava em Luciano como forma de repreensão. Sentia perder o sentido das sensações de seu corpo e não queria entrar em nenhuma situação fora do seu alcance... Se sentiu vulnerável, pois o suspeito de um assassinato povoava os seus pensamentos; e isso assustava. Ela está no último aparelho. Já se sente muito melhor. Queimar energia traz muito alívio, tanto ao corpo quanto à mente, mas alguns pensamentos conturbados ainda estão em sua cabeça: Fernando... • Carol! - Ela se vira. Quase pôde ouvir a voz da pessoa que ela tinha na cabeça; mas não o era. É justamente o seu oposto... • Oh, Luciano... Oi! - Não o vira desde o dia anterior quando foi buscar Fernando, mas não conseguia demonstrar muita excitação. Ele não pôde deixar de notar a falta de entusiasmo dela... • Oi! Eu passei em sua casa e disseram que você poderia estar aqui. • Aconteceu alguma coisa? Ela continuava o exercício. • De certo modo. Eu fui à casa de Fernando com um mandado de busca e ele havia desaparecido. Os vizinhos disseram que ninguém tinha estado na casa hoje e na faculdade disseram que ele saiu cedo e que você foi a última pessoa a falar com ele. - Luciano tinha um tom profissional, mas Carol sabia que ele deveria estar afetado por ter aquela informação. Não queria atrair constrangimentos, por isso seguiu o exemplo de seriedade... • Bom... Ele disse que ia se afastar por um tempo, mas... • Ele não disse para onde? • Não... mas ele me ligou agora de noite. (Luciano alterava levemente sua expressão.) Ele parecia normal; meio triste, mas normal. - Luciano começava a ver que Carol também estava começando a ser afetada pelo


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“toque” de Fernando; o mesmo que o derrotou no interrogatório e que provocou tanto fascínio no psicólogo. Luciano começa a odiar Fernando. E por acaso ele disse aonde estava? Não! - Certa frustração atingia Luciano, além da raiva emergente. É! Bom... Amanhã eu vou ter de arranjar um outro mandato que me permita entrar na casa sem que ele esteja... - Carol termina o exercício. Pega uma toalha e começa a enxugar o rosto. Luciano volta seu olhar e seu pensamento para Carol. Como no dia em que se reencontraram, ela está de malha, desenhando com perfeição o seu corpo. Luciano se lembra da noite em que estiveram juntos... Vendo aquele gesto, de enxugar o suor do rosto, ele não consegue evitar de desejá-la; do mesmo modo que antes. Mesmo à sombra de Fernando e seu desaparecimento; e o seu telefonema; Luciano sente uma vontade louca de possuí-la, novamente... Ela olha para ele. O que você pretende encontrar lá? A arma do crime; talvez! - Ele se aproxima. Você tem certeza que... - Ela sente a aproximação dele e interrompe seu raciocínio. Seus olhos já diziam o que seu corpo desejava. Carol vira a mesma expressão no Pelourinho. Era quase irresistível. Ela não se sentia muito a fim, mas se ela estava procurando relaxar e esquecer todas as confusões de sua cabeça, não haveria solução melhor... Você não quer fazer sauna comigo?? - A expressão e a imagem de Carol não davam margem de dúvida para a resposta que Luciano daria... Eles seguem para o vestuário e depois para a sauna. Já passava das nove da noite e a academia estava quase vazia. A leve tensão que a situação traria seria um acréscimo às suas sensações. Seria algo novo para os dois... Uma nova libertação.

3 O calor rege o momento. O ambiente eleva a transpiração e seus corpos conseguem produzir tanto calor quanto a sauna. Suas peles e poros se contraem juntos à medida que seus desejos tomam forma. Os movimentos contínuos são agraciados com as lisuras de seus suores. Luciano acompanha os movimentos de Carol, sentindo seu peso. Sua pele lisa, molhada do calor, escorrega pelo corpo dela. Ele é um homem, e um policial; não consegue acreditar no que está sentindo. O prazer que aquela mulher dá a ele é muito grande... Se sente dependente. Seu coração bate rápido, enquanto seu corpo aguarda impaciente a explosão no final. Ele olha para ela. Seu rosto iluminado e seus cabelos, acompanhando seus movimentos, o instigam ao prazer... Toda aquela beleza! Sente o desejo com muita força. Suas mãos envoltas na pele dela sentem cada curva daquele corpo. Não consegue acreditar no que está prestes a sentir. Vai vibrar mais forte que da primeira vez. Aquele ambiente branco e esfumaçado; o presente riso de uma inconveniente testemunha... Como podia sentir isso por uma mulher? Como Carol podia ser tão perfeita!? Seu olhar a capta em meio aos momentos de olhos fechados... Estavam diferentes. Ela estava visceral; talvez fosse o local ou a agitação do seu corpo. Ele estava cativado, preso. Não importava o que havia a mais ou diferente. Luciano só nota Carol em seu colo; seu movimento; o prazer... Sua fonte parece diferente, mas ele se punha ao final... Seria um universo. Carol também sente, mas não é como da primeira vez. O prazer que ela mostra está com outro peso. Ela curva o corpo para trás. Vê que Luciano se satisfazia. Evitava beijá-lo. Não queria admitir, mas estava atuando com outra pessoa. Gostava; tinha lampejos da vez


anterior, mas outro nome vinha à sua garganta e ela o transmitia como gemidos. Temia que Luciano descobrisse. Não podia evitar. A nova face estava em sua visão: não era o homem à sua frente; era Fernando. Eles terminam. Sorrisos ao além, ambos tinham paixões a esconder. Revelar a verdade parecia ser algo não permitido. Sórdido.

Armas?

As batidas na porta são de lei. O mandado permitia invadir o lar de um cidadão sem a sua permissão ou mesmo presença, mas eram exigidas batidas de advertência. Luciano se afasta. Os outros dois policiais se aproximam para arrombar a porta. À todos aqueles gestos e movimentos policiais, a memória de Luciano começa a remetê-lo ao momento mais trágico de sua vida como policial. Muito semelhante à situação, ele e seu parceiro, desde a academia, Cristiano, se preparava para entrar na casa de um suspeito. Diferente do momento, eles tinham um mandado de prisão para um traficante. Não era um grande criminoso. Era apenas um rapaz, filho de pais ricos, que traficava para manter o vício. Mas era a primeira grande batida dos dois; era como a primeira grande aventura... • Abram! É a polícia! Temos um mandado de prisão! - Cristiano olha sorrindo para o amigo. Era como nos filmes: tinham armas à mão; criminosos; drogas; tudo... • Nós vamos entrar! - Luciano observava a “pose” do amigo enquanto ele faz o tipo policial durão da TV... Eram como irmãos. Se conheceram na academia; ficaram amigos e Luciano praticamente foi adotado pela família de Cristiano. A perda da sua, parecia algo distante, algo que comovia, mas era esquecido à medida que ele se ajustava àquela profissão e àquela nova família... • Lu, se prepara! - Armas em punho, e uma vitalidade e heroísmo, que só se vê em jovens; nos seus corpos... Tudo estava pronto... Do outro lado: • Você é rico! Seus pais vão livrar sua cara na maior! Eu é que vou me... • Cala essa boca, Martin... Toma, pega a arma! • Não, David! É melhor a gente se entregar... - David dá um pulo sobre Martin e agarra-o pelo colarinho já rasgado. Seus olhos viajavam todas as viagens. Martin não estava tão longe, ainda havia um leve sinal de sanidade em suas ações; não havia mais nada em David... • Escuta aqui... (falava saltado, idéias descoordenadas) uma picada a mais vai levar pra desgraça! Cala essa boca, pega o “berro” e o primeiro desgraçado que entrar você apaga; eu pego outro dali... - Martin não tinha muita condição para argumentar. Entrou naquilo por acidente: estava um dia num bar e amigos de amigos dos amigos o fizeram experimentar um primeira ida ao paraíso... Se tivesse um pouco mais de juízo; sentado naquele chão, com uma arma na mão, no escuro, com dois policiais a ponto de invadir a casa e um lunático prestes a explodir, os aguardando para matá-los; talvez ele pudesse ver que na verdade estava era no inferno. Do outro canto da sala, David esperava. Se pudesse “enxergar” veria Martin chorar no outro canto. Ele não existia mais, ninguém mais existia... Só ele e a arma em sua mão. • Tô pronto, Cris! - Cristiano dá um último sorriso para Luciano. A simpatia dele dava confiança a qualquer um. Alto, forte e gentil. Mesmo com uma arma na mão e prestes a dar um pontapé feroz naquela porta, ele ainda parecia aquele amigo da academia, o irmão de sua casa, tendo sempre ele ao lado em todos os momentos, lhe dando as razões certas para se manter naquela carreira... Luciano pensa na família de Cristiano; em Carol; ele agora


tinha ela; seguiu a carreira como o amigo o indicara, mas perdera um pouco da vitalidade, mas agora tinha Carol; era uma nova força. Ele se lembra do dia anterior na sauna da academia... Toda aquela energia; a vitalidade de volta... O policial dá um forte pontapé na porta de Fernando. O barulho inicial é logo cortado pelo silêncio sepulcral da parte interna da casa. Está escuro e há um cheiro de podridão que incomoda todos os três experientes policiais... Uma pergunta óbvia atinge os três: • Será que tem alguém morto aí?! - Luciano nutre tanto esperança quanto o oposto: outro corpo, o próprio Fernando (Carol disse que ele iria se afastar... Não há lugar mais distante), ou simplesmente era parte do cenário da vida de Fernando... Eles entram... Luciano volta a se lembrar: a porta se abre violentamente ao chute de Cristiano. A luz da rua ilumina a escuridão da casa. Da parte iluminada se revela um rosto pálido e assustado. Suor e lágrimas brilhavam azulados em sua face quase morta; era Martin. A arma em sua mão foi a primeira coisa vista... • Cuidado, Lu! - Cristiano se põe à frente do parceiro, o tiro ecoa, foi mais o susto de uma mão trêmula do que uma real intenção, mas foi fatal a mesma maneira... Luciano aponta instintivamente para o atirador e dispara diversas vezes. O azulado agora estava coberto de vermelho. Martin estava morto. O silêncio volta... Luciano olha aos seus pés; Cristiano não tinha movimentos. Também estava morto. Um tiro no peito de um viciado sem controle e um jovem perdia a vida, fazendo outro, ele mesmo, de certo modo, perder o recomeço que tinha tido: família, amigo, tudo. Olhava para o corpo do homem que ele acabara de matar, era o primeiro; não queria se importar. Imaginara várias vezes qual seria sua reação ao matar alguém, fazia parte da profissão, e agora ele tinha a resposta... Seu amigo estava morto. Luciano caminha pela casa. Sua bagunça parece metódica. Cama desarrumada e parece nunca ter sido arrumada antes. Espelhos quebrados no quarto e no banheiro: não era psicólogo, mas parecia sinal de frustração e complexo de inferioridade; ou talvez apenas azar... Não é supersticioso, mas é baiano; não pode evitar de conviver com tantas crendices e superstições; ainda mais sendo um policial, em contato com todos os tipos de gente... O mau cheiro vinha da cozinha. Quem comandava o lugar eram as baratas: aqueles pratos e panelas pareciam nunca ter visto água na vida. Luciano tenta interpretar mais como deve ser o comportamento de Fernando, através da observação de seu habitat; procura pistas, ou provas, indicativos de sua personalidade... Os outros dois policiais rondam a casa... ...Não havia outros policiais daquela primeira vez! Ele salta o corpo do amigo; precisa continuar o trabalho. Um já estava morto... Ele anda pela casa à procura do outro. A escuridão daquele único cômodo se tornava familiar e revelava o outro elemento daquela peça. David treme. Sua expressão era vazia. Seus olhos pareciam enxergar outro mundo. Ele repete: • Vou pegá-los! Vou pegá-los! - Ele parecia não ter visto nada do que acontecera. Luciano se aproxima dele. A arma em sua mão treme no mesmo ritmo do corpo. Luciano tira o revólver de sua mão e ele nem sente; seu cérebro está completamente entorpecido... Luciano aponta sua arma para a cabeça do elemento. David nem ao menos sente o perigo. Ele olha novamente para o corpo de Cristiano. Seu último momento foi primeiro sorrindo e em seguida levando uma bala no peito, salvando a sua vida... Já conhecia, agora, a sensação de matar! Por que desperdiçar o momento? Um viciado/traficante a menos...? O ódio e o rancor estão dentro dele pela morte do amigo; mas não é essa a sua função. Ele ainda acredita...


Luciano não acredita tanto agora. Acumula! A justiça não precisa ser algo que devesse ser mais levada a sério. Ele se lembra de David, o jovem viciado/traficante, saindo livre do tribunal. Sua família era rica... Que importância podia ter seu parceiro morto, ou até mesmo o outro rapaz morto naquela noite, Martin? ... A justiça teria que vir de uma maneira mais firme. Ele morreu de overdose, dois meses depois: essa parecia ser a justiça... Na cozinha, onde ele está olhando: na pia. Todos podem ver... O erro: • Ei! Eu acho que achei alguma coisa! - Um punhal. Era a possível arma do crime... Estava limpa como nova, mas deixá-la ali foi, ou seria o erro fatal de Fernando... Luciano tem seu último pensamento com Cristiano: “No final a justiça é sempre feita!” - Volta a pensar em Carol: “A paixão, o amor; a lembrança, o prazer!”- Luciano agora tem a arma.


Incompleto Estar sozinho sempre foi um exercício de auto-análise para Fernando. Ficar distante de todos e de tudo dentro de si mesmo era uma atividade comum em toda sua vida. A perda da família quando criança o fez aprender a sobreviver a quase todo tipo de provação, sempre preso dentro de si mesmo. Sua família adotiva não pode ser considerada nem má, nem boa; sua atitude independente e fechada a manteve distante. Ela pode ser considerada uma estadia temporária até que Fernando pudesse assumir os poucos bens de sua verdadeira família. Não pode ser considerada o tipo de vivência emocional que prepara uma pessoa para vida, apenas a protege dela. Como uma armadura construída aos poucos, por ele mesmo; sua consciência, que o cerca, protegendo e também isolando; podendo a qualquer hora desmoronar e liberar tudo que há ou pode haver de hostil, suave; terrível e adorável, dentro de sua alma... Duas vezes ele tirou a armadura para revelar seus sentimentos. Nas duas vezes foi rejeitado. Expondo, de dentro de sua face sempre séria e triste, o ar de desolação... Em ambas as oportunidades fora digno de compaixão e respeito. Às vezes não entendia que razão poderia haver para tal sofrimento. Agora ele sabe que seu nexo humano de dedicação e fidelidade possui a mórbida fachada de monstro. Foi preciso Ilena rejeitá-lo para expô-lo pela primeira vez ao mundo real. Fernando a odiou por isso: se sentia desprotegido, vulnerável; mortal... Como agora. Não podia acreditar que alguém pudesse ver sua transparência tão facilmente: alguém que muitas vezes era temido pelos que estavam próximos, naquele momento estava sucumbindo nas mãos daquela mulher; mas houve o doloroso afastamento... Como agora: ele se afastaria de tudo, fisicamente; se sentia exposto mais do que nunca: sua fragilidade, força, hostilidade e paixão eram razões de comentários para todos; seu rosto em jornais e TVs; ainda se lembra da família de Ilena na polícia (expostos, também)... mas na verdade se afastara de Carol: vê-la temendo sua presença, pondo em dúvida sua sinceridade, desdenhando sua dedicação, se entregando para o seu algoz (Luciano)... Era demais para ele. De todas as dores por ter sido revelado como o monstro, a pior era ter os olhos de Carol sobre ele sem a admiração daquele que é alvo de sua dedicação... Acima de tudo, Fernando se afastou de Carol, por temer que tudo acabasse do mesmo jeito que acabou com Ilena... Ele não se importava consigo mesmo. Estava visando de qualquer maneira; mesmo preso em seu mundo vazio, Luciano acharia um jeito de alcançá-lo. Ele quer isso... Da primeira vez o subestimara, mas não vai ser tão ineficaz da próxima vez; talvez seja definitivo... De todas as culpas que Fernando sente ao caminhar sozinho; afastado do mundo em que vive, e onde até não deveria ir (a polícia o proibiu); mas ele não se importa; é o “monstro”... a culpa mais terrível é a de nunca ter podido oferecer o que Carol (ou Ilena antes) poderia querer. A incapacidade em descobrir o que elas desejavam... Só podia oferecer dedicação; talvez elas estivessem erradas, mas o mais provável é que ele estivesse errado; antes, agora e sempre... Fernando anda sozinho por lugares que ele não conhece; vê pessoas também desconhecidas: algumas o reconhecem da mídia (o julgam). Ele não gosta, mas suporta; não quer ser mau, mas é o monstro: não pode evitar. Ele está sozinho, como nunca esteve; até sua consciência, tão companheira, parecia perdida... Ele pensa no futuro: provavelmente tão vazio quanto o presente... Não pode evitar: ele pensa em Carol (seu julgamento/é o que mais importa!). Fernando se sente... incompleto.


Reflexos laminosos A ausência do ser incomoda, mas a sua sombra está presente e Luciano a consegue enxergar, e até sentir... O punhal é levado de mão em mão para peritos que no final só conseguirão dizer o evidente: a arma se encaixa, mas somente o fato de ter sido encontrada na pia da cozinha do suspeito a liga com ele. Não há sinal de impressão digital e muito menos de sangue da vítima. Não só na cabeça de Luciano, mas na de todos presentes uma voz dizia que seria estupidez demais Fernando manter a arma do crime em sua casa; e num lugar tão exposto... O delegado Adroaldo é o primeiro a pôr a voz para fora: • ...não seria tão burro! Principalmente depois do que nós vimos. • Talvez seja culpa!... Não pode ser culpa, doutor? • Não sei. Ele me pareceu tão seguro de si durante o interrogatório... talvez ele queira jogar conosco! • Ele é um garoto, doutor! - Luciano percebe a mágica de Fernando, novamente. O delegado Adroaldo era o policial mais experiente que conhecia e mesmo assim parecia não enxergar a totalidade do poder agressivo de Fernando; além de sua dissimulação. O psicólogo podia ver mais; podia-se sentir. Ele se colocava em dúvida, mas fazia parte do seu trabalho; analisar todos os pontos... Somente Luciano possuía a certeza; isso incomodava a todos... Certezas são riscos demais para evidências humanas demasiadamente fracas. Ninguém queria se arriscar; só: • Não, delegado! Ele é um animal! O senhor precisava ver a casa do elemento; parecia a toca de um bicho... • Não quer dizer nada... Você já viu o quarto de meu filho?! • Deus! A frustração era física. Em voz e em atos. • Desculpe, Luciano. Não podemos pedir prisão preventiva. Mas você pode ficar de vigilância. • Eu nem sei aonde ele está! - O delegado avivar-lhe o ânimo... Também queria respostas; talvez até de perguntas que o próprio Luciano ignorava. • Ele vai voltar pra casa! ... Espere lá! • Sim, senhor. - Luciano não possuía mais argumentos para exaurir sua raiva: Fernando parecia se safar de cada situação; mesmo saindo da cidade e com aquele punhal sendo encontrado em sua casa, ele ainda parecia intocável; e pior: todos pareciam entorpecidos por aquela falsa fragilidade e introspecção. Acima de tudo, o que mais incomodava, era o fato de Fernando ter tido o seu último contato, com Carol. Ela tinha sido dispersiva, desinteressada; fugia a imagem da garota que queria pegar o assassino a qualquer custo. Justiça por Ilena. Luciano tem medo do que ela pode vir a sentir por Fernando, agora: sua nova e terrível influência... Mais importante, talvez: o que sente por ele... Não agüentaria perder de novo. (Não queria...) Os lampejos de solidão o atacam novamente... O punhal em sua mão; que ele carrega para a sala de arquivo de provas; o lembra da sombra que ainda tem de sustentar nas suas costas; não seria derrotado: tem que pegar Fernando. 2 A lâmina está na prateleira. Seu brilho quase novo; só tocado por mãos cuidadosas que não queriam deixar nenhuma marca pré ou pós exame; reflete a memória do arpejo... Foi forte e consciente inconcebível pela racional mente humana... Como um instrumento final


de uma orquestra arpejante também formada por mãos e braços poderosos, ela penetrou num peito já quase sem vida; e pela vontade de um corpo (de certo modo) também inconsciente, ela experimentou o sangue de Ilena. O calor em sua frieza metálica. As mãos e olhos que a examinaram não foram capazes de ver nem uma ponta do que ela foi encarregada de prover: provavelmente, apenas a sua forma. A lâmina se encaixa no formato, mas podia ser qualquer outra coisa; aos olhos dos especialistas; mas era ela: seu brilho é inegável. Ela foi parte do arpejo... Sua ponta final. O instrumento que foi usado para tirar a vida de Ilena. 3 Luciano sai do Complexo de Delegacias. Olhos experientes o seguem: o delegado Adroaldo tanto sentia orgulho pelo empenho de seu comando, como também um forte senso de curiosidade... o porquê do empenho. Cai no delegado a lembrança da namorada de Luciano; ele a mencionara. Via que o incomodava ter o suspeito tão perto, e livre. Provavelmente temia pela garota... Ainda era jovem; não viu tudo que ele vira: tantos rostos desolados e tantos outros amedrontados; criaturas que vivem em todas as cidades, nas entranhas da sociedade, afetadas pela cultura ou não, e que só não se impregnavam mais na comunidade por causa de homens como ele. Luciano aprenderia que está além do pessoal; é maior! Tenta não ter ressentimento; o delegado acredita ter feito a sua parte; e acredita em Luciano. É um homem de meia-idade, que viu horrores, provocou horrores e que agora vê Luciano agir; sob sua influência... Todos precisam de influência. Ele sabe. Esse é o ponto: ajudar! Luciano vai para uma vigilância. O “velho” delegado não faz mais isso, foi parte do aprendizado, mas sente como se também estivesse lá: observando seu comando, ajudandoo a aprender, como ele... “Não haverá surpresas.” - Ele pensa. 4 O rosto que surge no caminho: Carol! ... Admiração? Beleza? Atração? Esquecimento?... Está de volta! - Ela.


De dentro para fora Nazaré é um bairro do centro de Salvador habitado por classe média quase em extinção. Sobreviventes! Levemente comercial, o bairro vive passo a passo; todos os dias... O “monstro” vive nesse bairro. Luciano vigia sua casa (esconderijo). Ele não pode fazer nada, apenas observá-lo, esperando que em algum momento ele traia sua própria segurança e fidelidade; saia da armadura por alguma razão... Já traiu em um momento: não sabe que Luciano está ali... Destruiu sua auto-observação; olhos o vêem sem ele ver. Fernando chegara em sua casa no dia anterior. Um dia depois do delegado Adroaldo ter-lhe afirmado que ele voltaria. Era memorável a destreza do seu superior. Ele mesmo duvidara... Luciano tinha certeza a respeito de sua presa, mas não conseguia entender algumas de suas ações: o punhal (foi o mais fácil, apesar de sem utilidade); sua disposição em não negar nada (proteção, ou talvez um clamor...); a viagem para fora da cidade e o principal: a volta. Se imagina, também, influenciado por Fernando: o que ele realmente sabia? O que ele realmente pretendia? Luciano pensa em alguma razão para seu suspeito ter voltado e (infelizmente) só consegue pensar em uma: Carol; a necessidade... Nas duas últimas vezes que falou com ela por telefone, em meio às trocas de vigilância, notou uma crescente distância entre os dois. Tenta manter os pensamentos em um nível profissional, mas não conseguia parar de imaginar o motivo daquilo... Imaginava se ela teve algum outro contato com Fernando; outro telefonema; outro “toque”. Luciano pensa se talvez Ilena não tinha tido o mesmo tipo de envolvimento: apreciando à distância; desejando o retorno; querendo após rejeitar... Provavelmente não! Luciano não consegue evitar de pensar em Carol também morta; a outra vítima que a polícia esperava que aparecesse para assim pegar o assassino. O jovem policial tem dúvidas do que eles seriam capazes de fazer se Carol morresse... Ele tem dúvidas sobre o que ele próprio faria... Com os olhos atentos naquela casa, Luciano tenta ver seu interior para buscar a razão de tanta morbidez; não só nas atitudes do assassino; mas em seu próprio pensamento: Ilena, Frida; Carol... A frieza dos tratamentos daquela profissão; inclusive com as pessoas queridas: pensa em Cristiano; como sua família era especial; como havia uma vida e agora só parece haver a dor.

Segurança

Duas vezes. Dois telefonemas foram atendidos por Carol nos últimos dias. Ela estava em casa. Nas duas oportunidades ela correra para o telefone com pensamentos confusos na cabeça e desejos incertos no corpo... Parecia atitude de sua “distante” adolescência; correr esperando o telefonema de alguém: ela responde a si mesma por essa suposta regressão. Se segurou em mais uma oportunidade, quando o telefone tocou e não foi para ela. Deitada em sua cama, no seu quarto, sozinha ela reflete sobre essa atitude nos últimos dias: nos dois telefonemas atendidos o interlocutor fora Luciano... Ela recorda do telefonema ao meiodia: estava almoçando no horário entre a faculdade e o estágio. Ela saíra da mesa para pegar o aparelho; no momento em que falara e em seguida ouvira a voz de Luciano se arrependera, tanto de sua atitude “pouco madura” quanto da pessoa do outro lado ser quem era: Luciano... Passara toda tarde se ressentindo do modo como falara com ele. Não demonstrara interesse ou entusiasmo por falar com ele... O jovem detetive não deixou de notar; toda sua perspicácia policial não o deixou com dúvida. No primeiro telefonema ela não tinha sido tão alheia... Mas algo estava presente na consciência de Carol; e era o que Luciano não queria admitir que podia (e é) ser verdade... Carol olha para o teto de seu quarto; não é normal dela passar tanto tempo ociosa; mas a situação não é normal; ela pensa nos últimos três dias: o estranho modo como as coisas se encaminham; a mudança dos seus sentimentos e de suas atitudes; achava que nunca mais se surpreenderia... Fica até um pouco feliz por sentir que algo de novo e “bom” ainda pode acontecer em sua vida... Se sente também culpada por Luciano: se lembra das duas vezes em que estiveram juntos: foi um prazer supremo; mas agora não consegue se negar ao que está em sua cabeça... desde a


última vez: em duas oportunidades nos últimos dois dias foi traída por sua vontade; deixou transparecer sua decepção para alguém que ela ainda queria muito; não tinha intenção de machucá-lo; mas via uma inversão de papéis se formar em sua vida: que estranha relação podia haver entre aquele algoz e aquela “vítima” que a afetava antes com consternação e dúvida, e que agora a confunde mais ainda só que com uma inversão de sentimentos: atração por um e compaixão pelo outro?! ... Talvez fosse assim desde o começo, mas diferentes conjunturas não a deixaram notar essas diferenças. Luciano aparecera como uma forte imagem do passado; ligado a uma época mais completa, quando Cristiano ainda estava por perto. E a outra imagem era recente em relação ao passado do policial com seu irmão, mas muito constante, agradável em muitos momentos; lhe provocava satisfação por ser apreciada; atingia sua vaidade. Por muito ela o considerou uma dedicação incômoda e compassiva; mas agora que ele “não mais existe” Carol sente que sente a sua falta... Não o tem visto. Suas últimas lembranças são a imagem de um novo ser mais forte e seguro, e a despedida do antigo ser que por tanto tempo desconsiderara... O teto branco à sua frente trás à sua mente as imagens daquele rosto em todas as situações que ela consegue recordar: parecia uma pessoa diferente, mas eram os olhos que estavam diferentes... Foram mudados pelas mudanças do mundo ao seu redor, as dúvidas, as incertezas, as palavras fortes, as suspeitas... Carol recorda de Ilena: gostaria de falar com ela para saber como ela reagiu à mesma dedicação em sua época... Nesse momento parece uma coisa completamente impossível para Carol pensar em Fernando como o assassino de Ilena... Pensar em seu nome parece algo de criminoso em sua cabeça; mas ela sabe em quem está pensando. Tenta algumas vezes ligar aos pensamentos do crime; mas eles se tornam cada vez mais escassos. Cada vez mais seus pensamentos estão em Fernando; e cada vez que ela se repreende por isso, mais tudo volta e com mais força. Põe em dúvida a própria sanidade. Suas reações não parecem normais. Se sente fora de controle: por que pensar que Fernando ligaria? Já quase nem pensa em Luciano... Só pensa que não vê Fernando há quase três dias e gostaria de vêlo de novo; nem que fosse só para dizer que acredita nele, mesmo ainda sustentando dúvidas distantes e persistentes. Remeteria ele de volta à sua confiança nela. Teria sua atenção novamente. Talvez ainda a tenha, então espera que ele ligue; mas ele foi magoado. Carol não acredita que está se culpando por Fernando ter se afastado; mas seu ego está intuindo certo... O que Luciano pensaria? Onde ele estaria agora para não ver isso em Carol?... Ela está rindo sozinha; sem aparente razão; está sentindo leve. A segurança que se apresenta em seu coração agora é tão grande que tudo aquilo que gerou essa situação tão conturbada que se tornou sua vida parece não mais existir... Se repreende novamente por Ilena: ela está morta e o suspeito da morte povoa seu pensamento... Frida está hospitalizada e novamente o possível culpado está em sua cabeça... Ela continua a sorrir; os seus olhos enxergam o rosto desse homem: ele começou agora e está em seu coração como parece ter sempre estado, mas nunca visto... Fernando! - Carol pensa como nunca pensou. O telefone toca na casa de Carol. Ela sabe quem é... Sente.


A última visão Era a espera do inesperado que não se queria prever... Mas Luciano podia ver a cada momento. Não tinha raciocínio que pudesse conter a sensação de medo e dor ao ver o carro de Carol parar em frente à casa de Fernando. - Será que ela não tinha o mínimo de senso! - Era a mesma situação, como a de Ilena: foi descrito e revisto; Carol conhecia cada momento, mas mesmo assim estava a caminho de encontrar o monstro... Luciano olhava e derramava seu último lamento para dentro de si mesmo... É um policial e o trabalho precisa ser feito!... Suas mãos suam e torcem o volante do carro; não conseguia crer nos seus olhos. Ali estava a resposta para o distanciamento de Carol. Estava também a consolidação do seu pior medo; algo que Luciano se negara a pensar desde o momento em que sentara de guarda em frente daquela casa, desde que sentiu a decepção de Carol ao telefone por estar falando com ele; algo que Luciano teme desde o dia em que a reencontrou na estátua do Cristo e começara a se sentir vivo de novo (Se lembra do Pelourinho, do motel no mesmo dia e da sauna da academia...); algo que dizia: Carol é a vítima. A porta se abre e um sorri para o outro (Carol-Fernando versus Luciano)... A dor.

Situação em cena “O carro parou em frente à casa às nove e trinta. A ... vítima entrou na casa sem maiores restrições. Passaram-se vinte minutos e movido pela suspeita e pelo prévio comportamento do elemento, decidi fazer uma observação aproximada. Eu olhei pela janela da frente e não vi sinal de movimento. Dei uma volta cautelosa pela casa e cheguei a uma pequena janela nos fundos. Era o banheiro. Dela pude ver o elemento por sobre a vítima e com algum tipo de faca na mão direita... Acreditando estar acontecendo um crime, dei a volta rapidamente para a porta e a arrombei... Ao entrar, o elemento, com o susto, se levantou despido e com a arma na mão... Eu olhei para a vítima e ela estava com a garganta cortada, sem sinal de vida... Eu, já apontando minha arma para o suspeito, ordenei que ele largasse a faca; ele não o fez. Claramente fora de controle ele correu em minha direção com intenção agressiva: sem ver alternativa eu atirei no suspeito; duas vezes; e ele caiu morto.” O delegado Adroaldo ouviu todo aquele relatório: conciso, direto e claro; e observou a expressão de seu jovem comando. Era uma expressão abatida, desolada. Seus lábios proferiam as palavras com destreza, mas o resto de seu rosto não estava presente ao momento. Como ele poderia estar se sentindo?... Estava lá o tempo todo, mas ainda assim a perdeu. O delegado não via muita esperança no rosto daquele rapaz: uma dose forte de culpa e dor; e acima de tudo havia a perda... Como manter os dois lados daquela vida em separado? - Imagina que esforço sobre-humano Luciano deve estar tendo para não explodir naquele momento: podia-se ver ele tremer em meio ao suor... Que futuro mais poderia haver: ele pegou o assassino, mas deixou escapar algo extremamente simples e importante: o empenho dele não parece ter sido suficiente. Não conseguiu evitar que outra vítima fosse atingida pelo toque do monstro, antes de pegá-lo... Não conseguiu evitar a morte de outra pessoa; outra garota; sua garota: Carolina. Havia um estranho senso em tudo aquilo. O delegado via a imagem de um policial extremamente eficiente e honesto; e também via um rapaz muito confuso. Lembra da situação que teve no começo da carreira: a perda do seu parceiro... Por que para crescer ele tinha que sofrer tanto? Ele próprio teve suas decepções e desastres, e com nó na garganta ou orgulho no peito ele enfrentou cada momento... Vê aquele jovem passar por tudo aquilo; via que sempre haveria algo mais, algo irrevelável; o consumira até o fim: deixar escapar pelos dedos uma vida importante; alguém muito próximo... Ser um policial não é uma aventura nas ruas... é uma batalha de emoções e de consciências. Não resta dúvida:


Luciano é um grande herói; não por pegar o assassino, mas por também conseguir sobrepor aquela contenda interna. - O delegado Adroaldo se orgulha!... 2 O que pode estar passando na mente de Luciano agora?! Ainda não acredita! As imagens se recompõem em sua cabeça; repetidas; insistentes. Alguns minutos teriam sido suficiente. Ela ainda estaria viva. Poderia ter evitado, mas não pôde... Poucas horas antes imaginou o que se confirmou depois: Carol morta! Queria Luciano horas antes conseguir chorar por ela, mas se sentia apático, como se estivesse num sonho, ou melhor, pesadelo: via as coisas acontecerem e simplesmente não podia interferir... O barulho dos outros policiais ao seu redor não o incomodava, nem o barulho dos repórteres do lado de fora, nem mesmo o olhar de seu comandante... Imagina qual a reação da família de Carol: primeiro o filho e depois a filhas; todos dois com ele próximo; todos dois sem ele conseguir evitar. Perdera totalmente aquela família; não mais poderia olhar para eles; já tinha dificuldades antes, agora seria pior, impossível... Carol estava morta. Seu corpo podia estar em melhor estado que o de Ilena, mas o choque seria o mesmo; talvez maior. Ele seria visto como herói, mas uma corrosão interna dizia que ele não era nada, mais nada; nem policial, nem homem, nem mesmo uma pessoa... Ele revê a cena, se lembra da situação: não há mais nada naquilo; é o fim. O fim de tudo.


Xeque A casa parece mais vazia que o normal. Tira a arma e põe sobre a mesa. Acende somente a luz do abajur; não quer ver muita coisa da própria solidão... Olha em volta: “Carol nunca veio aqui!” - pensa. Olha para o pobre bar; não há muito, mas há muita vontade de esquecer tudo... Se lembra de Cláudio: não quer ficar como ele; não quer fugir. A situação já parece suficientemente irreal; não precisa de subterfúgios entorpecedores... O que havia de errado? Pegou o monstro. - Ou o monstro o pegou? “Carol.” - Luciano pensa. Alguém bate na porta. Mesmo querendo não sentir nada vindo do exterior, Luciano ouve as batidas. Ele olha para porta; está parado: talvez seja Carol vindo visitá-lo em sua casa; como nunca veio. Fazer amor no seu ambiente: a memória das duas vezes que estiveram juntos surge no fundo de olhos praticamente sem vida... Seus braços cansados, caídos na poltrona, tentam fazer movimentos, mas não há vontade suficiente. Ele é quem parecia morto... Queria estar, mas as batidas continuam... Ele se levanta. O corpo parece não sentir nada. Abre a porta: • Carlos?!- Não havia muita clareza no que Luciano pensava, mas o irmão de Ilena estava à sua frente, e parecia real... • Oi, detetive Luciano. • Somente Luciano, por favor. - Carlos não sabia interpretar direito aquilo. Parecia uma sombra do “super-policial”, que alguns dias antes saiu de sua casa dizendo que iria pegar o assassino; e assim o fez. Luciano abriu a porta e em seguida voltou para a poltrona semiiluminada. Era como uma criatura sem vida; lenta, sem motivos... • Eu vim aqui para agradecer... • Agradecer! - Um grunhido semelhante a um riso é liberado pelo policial. Era óbvio que o garoto não sabia nem metade da história. Toda aquela esperteza de quando Luciano o entrevistou parecia ter virado uma nobre ingenuidade adolescente. A irmã dele estava morta; não havia retorno: a morte do assassino não a trazia de volta... nem Carol. A motivação para a verdade parecia ter ido junto, para ambos; em extremos diferentes. • Tudo bem, garoto... É o meu trabalho. - Por que ele deveria saber mais? Mas ele sabia... • É uma pena que a moça... - Luciano olha para ele. Parecia um olhar repreensivo, mas ele concorda como que Carlos estava para dizer... Mesmo sendo além do que realmente era: • É... Eu sei... • Meu pai também mandou agradecer. • Obrigado, Carlos... - Carlos sentia que não tinha mais função naquele cenário. Era o momento do policial. Só: estava tudo acabado... Só queria ir para casa e recomeçar tudo de novo: ajudar a mãe a se recuperar; as irmãs a continuarem vivendo; e o pai a se manter firme, como já o é. A batalha que ele sentia que tinha tido de enfrentar estava terminada, talvez até antes do previsto; agora tinha em seus corações, mas pelo menos agora podiam se despedir com dignidade de Ilena; enviá-la para a paz: e com o tempo... ter paz. • Adeus, detetive! - O peso do ambiente parecia já se despedir. • Feche a porta ao sair. - Luciano fala isso fazendo gesto quase invisível de despedida com a mão. Não conseguia imaginar como seria o futuro


daquele garoto daquele momento em diante, nem o da sua família; mas sabia que, com certeza, nunca mais o veria. Imagina, como Carlos verá tudo isso um dia: se entenderá; se conseguirá ser feliz; pelo menos ele não está sozinho. - Pensa Luciano. Com o tempo ele irá aprender. Pelo menos, por enquanto, poderá ser um garoto novamente; não exatamente normal, mas na medida das perspectivas; e ele sabe que é um pouco responsável por isso; não é uma reparação... A culpa permanece: “Carol!” Carlos vai embora. Tenta se livrar de todas as lembranças ruins que ainda restam. Demorará muito ainda para ficar livre de tudo, mas saber que o monstro estava destruído era o suficiente... por hora. E o último pensamento que tem é a visão de Fernando na polícia, no dia do interrogatório. Ele o encarou como ele próprio o havia encarado. Sua expressão não dizia nada. Era vazia... Tenta se lembrar daquele rosto: é um julgamento, uma finalização... Aquele assassino não só matou Ilena, mas também tirou um pedaço de sua vida, sua juventude; e não só Ilena, mas também isso, jamais seriam entregues de volta. Sua morte só diminuía o peso, mas nunca eliminaria o fardo a ser carregado... Carlos sabia disso e à medida que crescesse aprenderia ainda mais; procurar por paz e auto-alcance, naquele momento singular, como aquele “fantasma” que ele acabara de deixar... Carlos dá um último suspiro de lamento: não mais quer sofrer; nem irá mais chorar. É o fim da dor... A dor do desconhecimento. 2 Luciano está sozinho. Está sentado em casa semi-iluminada lembrando a cada momento, cada momento daquela mesma noite: cerca de uma hora e meia atrás. Ainda parece um pesadelo. Ele não consegue acordar, contorcido em pensamentos. Sua visão se aprofunda cada vez mais em si mesmo... Está sozinho. Carol está morta. O monstro estava destruído. Não resta mais nada, apenas...


...o Arpejo Ele a conheceu há dois anos atrás; num bar chamado Ateliê. Um lugar onde se toca “blues”. Estava sozinho; não como agora; mas estava... Ela era namorada de um dos músicos: um guitarrista, e ele a desejou desde o primeiro momento que a viu... Ninguém notou sua presença; estava numa mesa ao fundo e só falou com o garçom que o atendeu; mas desde aquele momento quis saber tudo sobre ela; seguindo-a, depois cortejando-a e por fim revelando-se... Mas as coisas não correram como planejado; Ilena o rejeitou e através de um mórbido período de incubação ele fez algo que se auto-julgou como sendo natural, mas sabia que não era; era o arpejo em sua cabeça, gritando: Desejo... “Eu matei Ilena!” 2 Ele a conheceu há pouco tempo; numa faculdade, em meio à conturbada investigação. Era amiga da vítima. Conhecia muito pouco dela, mas ela o enfureceu. Se intrometeu demais aonde não deveria; ia fundo em coisas que lhe incomodavam; tirava sua paz... A dor pode parecer menor, mas é de quem menos vê motivos, talvez por isso não a destruiu; completamente. Foi uma necessidade que surgira após o sexo com sua amada; seu corpo parecia satisfeito, mas sua mente se recusava em separar um prazer carnal daquele outro prazer visceral. Precisava de violência... Foi uma escolha política; mas estava lá...: Frida estava inconsciente num hospital e provavelmente ficaria desfigurada para sempre... Não pôde evitar; era o arpejo em sua cabeça, gritando: Raiva... “Eu espanquei Frida!” 3 Ele a conheceu há mais de seis anos. Era irmã mais nova de seu único e melhor amigo. A outra filha da família que praticamente o abandonara. Com a morte do amigo ele se afastara, mas há pouco tempo ele a reencontrou e seu amadurecimento o havia atraído como nenhuma outra mulher antes: se aproximou, se sentiu bem novamente, a teve em duas vezes espetaculares, e a sentiu se afastar aos poucos pela presença de uma criatura que ele simplesmente escolhera para ser o “monstro”: Fernando... Não consegue acreditar no que aconteceu; no que fez: “Carol parou o carro em frente à casa de Fernando. Seus olhos não podiam suportar tal visão. Era como uma pancada no meio da cabeça. Ele sai do seu carro e se esgueira até uma janela; ouve a conversa: • Eu nunca quis acreditar, Fernando... • Eu sinto muito, Carol... Por tudo. Nunca quis magoar ninguém, somente quis me dedicar à pessoa... que... eu... amo. - Ele imagina como ela deve estar olhando para Fernando nesse momento... • Eu amo... você, Carol! - Sua respiração aumentava a cada palavra, a cada imagem que via, a cada uma que ele não conseguia ver... • E quanto a Ilena? - Era uma pergunta intencional, como uma possível razão; mas era mais: era sua própria descoberta... • Eu também a amava, mas não foi tão forte... • Não é isso... - Ele ouvia a porta da racionalidade se abrir em Carol, talvez se revelasse... Era a última chance de evitar; o fim... • Eu não fiz nada! - Era a voz do vazio. Era a primeira vez que Fernando negava alguma coisa e soava tão convincente quanto a própria voz da verdade: era a verdade... Ele sabe. Não pode mais evitar.


Carol se aproxima de Fernando. Não pode deixar acontecer! Não quer perder, mas sabe que também não vai ganhar... Nunca mais. • Eu acho que também te... - A porta é arrebentada. Não queria ouvir aquilo. Os lábios de Carol nunca disseram aquilo para ele. Luciano a teve, por duas vezes, mas era Fernando quem tinha seu coração... Não queria ter que ouvir seu inimigo, seu perseguido, ouvir da mulher que ele próprio ama, as palavras: te amo... • Não! - A surpresa aparece nos olhos de Carol; ela se assusta; mas não Fernando. Sabia que cedo ou tarde seu algoz e rival viria à sua procura: era o monstro. Tinha tido o rápido pensamento, ao voltar para casa, de que alguém o estivesse vigiando; ainda era visado; mas sabia que Luciano estava ali sendo mais que um policial atrás de um suspeito: era um homem apaixonado à procura de uma retratação, com o rival e com a mulher amada... Vitória! - Ele pensa. Ao ver aquele homem invadir sua casa no momento em que Carol ia dizer que o amava: a primeira mulher, pela primeira vez... Fernando sabia que tinha ganho, não importava o que acontecesse; ele sabia que era amado; vivo... Ele só não podia imaginar o que estava por acontecer... • Se afaste dele, Carol! - Ele aponta a arma para Fernando. Sua expressão é séria e tensa. Aparenta o policial, mas algo de dentro (o arpejo) dizendo que havia mais. Seus atos o revelariam... • Ele é inocente, Lu! - Ele olha para ela. Carol sabia que, de certo modo, o tinha traído, Mas ELA estava totalmente inocente para a real situação... Não havia outra solução ou esperança... Luciano estava “condenado”; por si mesmo. • Eu... sei, Carol. - Ela se surpreende novamente. Ele olha para Fernando; seus olhos pareciam dizer sua intenção... Agora, Fernando olha com surpresa... Entendia tudo. • Meu Deus... Foi você! - Carol olha confusa para ambos. Não sabia do que aquilo realmente se tratava: não era um policial invadindo a casa de um suspeito... Era mais. Era a remontagem da verdadeira trama. • Você matou Ilena! - Seus olhos não conseguem mais se fixar em Carol, ele só consegue ver o “monstro” que o fez se revelar. Ele já perdeu; sabe disso. Perdeu Carol... Perdeu tudo. • Tire a roupa! - A visão de Carol começa a embaçar (a dor das lágrimas): ela também entendia tudo; não tinha mais palavras; não tem mais nada... • O quê?! • Tire a roupa! - Ele grita abafado para Fernando. A imagem já estava em sua cabeça. Não pode haver roupas com manchas de sangue... Sabe o que tem de fazer; já foi tão longe; tem que atingir o ponto final... Fernando tira a roupa. Sua vergonha se estampa no rosto. Seu conhecimento carnal é pouco maior que seu conhecimento emocional: sofre por isso; nos seus últimos momentos; despido de roupas e também de falsidades; ele vê e sabe o quanto ama Carol e quanto ela também o ama, mesmo sem terem nunca se tocado. É a única coisa que resta; muito além do embaraço... O instinto: Carol se desvia para diminuir o constrangimento de Fernando e o seu próprio, mas ele não dura tanto... São os últimos momentos. Serão... Fernando olha para Luciano. Sabe o que ele vai fazer. Só há um leve temor; está frio... Olha para Carol, seu rosto está inflamado; ela chora por dor, decepção e amor. Ela também teme; é o choque. Fernando sabe que, de um certo modo, ganhou: com segurança ele


enche o peito e começa a proferir; sem medo; sem ressentimento... Sabia que Carol acreditava nele, mais que nunca. Voltava a admiração e com a carga maior da verdade, ela também o amava. Nunca a terá, mas é a última e melhor sensação. • Amo você... - O tiro atinge seu peito, calando sua redenção com a vida; vida que ele nunca teve... O atirador é impiedoso; queria o mínimo... Luciano anda até o corpo e dá outro tiro; não queria falhas: policiais sempre dão mais de um tiro. Ele é um policial. Age! Do outro lado da sala os soluços de Carol abafam qualquer tentativa de grito. Ela parecia simplesmente não estar mais viva. Não acreditava no que via; no que sentia. Havia como uma corda de forca em seu pescoço... Agora era sua vez. O monstro estava exposto; o verdadeiro: Luciano a agarra. Ela não tem forças para resistir; ainda está em choque; seus olhos vislumbram o corpo de Fernando no chão próximo (o fim) e isso enfurece Luciano mais e mais; faz dele um perdedor maior ainda; ele sabe... Ele a prende pelo pescoço; é forte; como fez com Ilena, a deixa inconsciente, mas desta vez o plano será cumprido como planejado; é o arpejo quem comanda os atos agora. Do início ao fim... Ele matou Fernando porque era preciso; por ciúmes e porque era uma testemunha (porque tinha ganho)... Agora o verdadeiro monstro assumira; não havia mais volta: a despiu (sua nudez não era a atração), cortou-lhe a garganta com uma faca da casa do recém-finado (seus olhos não pareciam ver o que faziam, era algo que fazia parte da trama; o fim dela; o contexto) e por fim a possuiu depois de morta: precisava de um crime completo; tanto ele quanto Fernando tinham sangue tipo O-positivo, ele sabe, sempre soube; e sua palavra seria, com certeza, suficiente. O monstro já estava destruído, de qualquer maneira; só agia por instinto; a sobrevivência final. O cenário estava pronto, perfeito. Era o fim do arpejo; não havia mais para onde ir, não havia a quem mais recorrer: só restava agora o pesadelo para ser vivido.” Não pôde evitar. Sentado sozinho em sua casa semi-iluminada, Luciano vê o futuro: só a vida num pesadelo. - Ele próprio. O monstro estava morto, derrotado; não tinha mais poder, mais nada. Ele agia pela ordem do arpejo, e ele gritava: “Amor!”- “Carol...” FIM Fabiano Viana Oliveira 1995


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