Violência Sexual - Nº 01 - 2006

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O IBISS|CO é uma organização não-governamental que tem como missão institucional, a defesa e a vivência dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, cuja atuação se pauta: pelo protagonismo das suas ações e dos sujeitos envolvidos; pela luta na democratização das políticas públicas; pelo compromisso com os grupos mais vulneráveis; com vistas à construção de uma sociedade equânime, saudável, solidária e democrática.


EDITORIAL

Talvez a minha dificuldade e relutância em escrever um editorial, não se deva ao fato de não ter prática ou conhecimento metodológico para elaborar tal documento, mas sim, por pesar a delicadeza do tema abordado e a responsabilidade de tal publicação. Com essa publicação o IBISS-CO inova mais uma vez trazendo informações objetivas ao mesmo tempo em que reforça o arsenal literário, educativo e de pesquisa tanto para a região Centro-Oeste como para o Brasil e todos que dela tomem conhecimento. A decisão de dar visibilidade e permitir que outros atores tomem conhecimento e se comprometam com o tema, facilita a discussão e reflexão possibilitando a busca de estratégias e metodologias de intervenção, que sejam mais eficientes e eficazes para mudança desse universo triste que é o da violência. Com a elaboração e divulgação desse material esperamos estar contribuindo com a desmistificação do tema em relação à violência, exploração sexual e educação de rua, ao mesmo tempo em que auxilia na tomada de decisão daquelas pessoas que ainda se indignam e lutam pela construção de um mundo melhor.

Maria Roney de Queiroz Leandro Assistente Social - Sanitarista Conselheira do IBISS-CO


FICHA TÉCNICA

Jornalista responsável: Edilce Mesnerovicz/DRT/MS104 Colaboração: Gilherme Soares Dias Diagramação e arte: Sandro Roberto Carvalho Fotos: Girassolidário e Corbis Impressão: Gráfica e Editora Ltda Publicação: Instituto Brasileiro de Inovações pró-Sociedade Saudável Centro-Oeste (IBISS-CO) Tiragem: 1780 exemplares Data: abril de 2006

Fica autorizada a reprodução total ou parcial desta revista, desde que utilizada para fins não lucrativos e citadas as fontes, inclusive as originárias.


SUMÁRIO

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.......... Violência, Sociedade e Direitos Humanos

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......... Mais que peixe fresco

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......... Por que calar quem tem voz?

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......... Conversando com educador

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......... É possível viver melhor Fotos: Girassolidário

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......... Apontamentos de pesquisadoras

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......... Carta de Goiânia


Violência, Sociedade e Direitos Humanos Uma proposta de roteiro para início de conversa *Estela Márcia Scandola

1. A violência sempre é resultante de uma relação em que há desequilíbrio de poder. Poder econômico, poder de coação e poder de coerção. A percepção da violência, no entanto, é determinada pelos que exercitam o contra-poder sob a ótica dos destinatários da violência. A compreensão do ato de violência depende do local ocupado pelos sujeitos coletivos. A violência para uns pode não ser para outros. Justiça e violência não são necessariamente antagonismos, mas podem ser compreensões diferentes de um mesmo fato. 2. Assim, falar de violência em nosso caso tem os óculos dos grupos sociais que estão envolvidos nos movimentos de contrapoder da macroeconomia liberal, de movimentos setoriais, tem estudo universitário, ganha mais que um salário mínimo, tem emprego e participa de ações contestatórias, escreve artigos, dá entrevistas, tem visibilidade social, ou seja, é um grupo que expressa sua indignação diante da miséria animal e humana e tem algumas condições de sobrevivência supridas. É desse lócus a nossa fala. 3. A temática da violência tem ganhado visibilidade na contemporaneidade mais pelos direitos animais (aqueles que comumente chamamos de básicos) não supridos historicamente do que pelos direitos emergentes do desenvolvimento humano. A visibilidade tem sido assumida 6

inclusive pelos violentadores, na medida em que sua ação histórica tem proporcionado uma escalada tão rápida que coloca suas próprias vidas em risco. Nesta perspectiva, também os violentadores estão assumindo a “luta pela paz”. No entanto, a grande parte dos movimentos surgidos nesse processo, é destinada a construir a paz a partir da ótica da harmonia entre violados e violentadores, mantidas as desigualdades de acesso a bens, serviços e sonhos. Paz calada, sem vibração, sem diferenças não é paz. 4. Os projetos de segurança pública são destinados prioritariamente à compra de logística para combate ao crime. A criminalidade, em que pese todos sermos vulneráveis, tem um recorte econômico. É histórica a imagem pública de que no sistema prisional só estão aqueles que não têm sistema de garantia de direitos alicerçado no poder econômico. O número de assassinatos, latrocínios e roubos, cresce mesmo com investimentos pesados no sistema de coação e penalização em detrimento dos investimentos nas áreas básicas de seguridade social, emprego, educação, lazer... O investimento colocado na ponta do iceberg não o degela, o suspende. 5. Ao contrário da visibilidade da violência que já afeta os violentadores (menos que os violados, mas com mais visibilidade), há um processo de ocultamento da violência que engendra toda a sociedade e vai matando aos


poucos: a violência ideológica. Há um processo de diminuição da expectativa sobre a qualidade de vida que tem tomado conta de muitos, senão da maioria da população. A incerteza sobre a capacidade de sobreviver no mundo globalizado e quais as possibilidades de identidade em espaços dignos a cada um, faz com que não se agarre a vida coletivamente, mas apenas constitua na resistência pessoal a teimosia em sobreviver. Em muitos casos, os grupos violados reproduzem o discurso e a defesa da prática dos violadores como a única possibilidade de regras sociais. 6. A convivência com a luta cotidiana por comida, emprego, atenção em saúde, freqüência à escola, terra para plantar que são históricas na humanidade, convivem agora com desafios coletivos como acesso à água e ar de qualidade. Em uma região como a nossa, o Centro-Oeste brasileiro, discussões como estas já passam a fazer parte da nova agenda, como o processo de privatização da água que está em nossos calcanhares. 7. Velhos direitos historicamente inquestionáveis passam para nossas agendas como se fossem direitos contemporâneos. Não são. São direitos inerentes às condições de sobrevivência (portanto direitos universais) que são trazidos às agendas das relações do capital globalizado. Não será, no futuro, o acesso à água de qualidade um direito somente de quem tem poder

econômico, sobrando a nós a luta? 8. Na outra vertente, direitos que vão sendo erguidos pelas lutas dos grupos que conquistam visibilidade e vão sendo inscritos no processo contraditório das discriminações, juntam-se às lutas históricas, como ocorre hoje com os homossexuais, travestis, mulheres, portadores de necessidades especiais, negros, índios, ambientalistas, gordos... enfim, todos os grupos que empunhem combate à sociedade hegemônica. A visibilidade, no entanto, não cessa a violência. Aquela modifica a forma de expressão desta, passando da direta para a dissimulada, fraudada, justificada na vulnerabilidade dos destinatários. 9. É possível que todos tenhamos nos sentido violentados de forma direta, visível ou indireta, imperceptível aos nossos próprios sentimentos ou de outrem. O desvio de orçamento público das políticas sociais para o pagamento de juros da dívida externa foi sentido de forma direta? Houve uma relação entre a corrupção pública e a falta de educação em saúde que nos assolou de dengue? 10. O Estado Brasileiro, que se apresenta liberal para os pobres e “welfare state” para os ricos, de que maneira atinge cada um individualmente, nossa família, nosso grupo social, nossa localidade? Onde reside nosso olhar sobre o micro e o macro? Nossa indignação, nossa intolerância, nossa responsabilização? 7


11. Por certo, muitos movimentos estão se levantando no Brasil e no mundo contra o processo atual de globalização. É um movimento que contrapõe a soberania dos Estados nacionais frente ao imperialismo dos capitais sediados no norte. As lutas contra a ALCA, a privatização da água, dos serviços básicos se contrapõem ao capital sem pátria, mas com o regozijo nos países ricos. 12. Outros movimentos estão se internacionalizando como o dos sindicatos, o das mulheres, pelos direitos da criança, dos negros, dos índios... É como se todos sentissem a necessidade de criar comunidade de idéias e de fraternidade. Quanto mais movimentos criamos, mais enfrentamos as raízes da violência, mas a cada movimento segmentado, que não se articula e não se junta nas lutas gerais e específicas, constitui-se também numa violência imposta pelo liberalismo que nos divide, fragmenta, enfraquece. 13. Participar na construção da contra-corrente é a nossa missão - difícil e possível. A luta pelos direitos humanos é indivisível e específica. Cada movimento requer todos os demais movimentos. Cada luta global requer óculos específicos que ultrapassem a visão da homogeneidade do movimento mais visível. Viver sob o mando dos Direitos Humanos é transcender o limite do seu grupo e deixar-se mesclar pelos vieses dos outros e, avançar nos demais pintando as cores do grupo vivido.

*Assistente Social, Mestre em Saúde Coletiva, Gerente Executiva do IBISS-CO e professora de Política Social Brasileira da UNIGRAN.

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Foto: Girassolidário


*Sérgio Abranches

Mais que peixe fresco A tabuleta no restaurante do barco deixa claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, que não é só atrás de peixe vivo que os passageiros desse tipo de barco vão ao Pantanal

Fresh fish, good food. Rooms available with female attendants: peixe fresco, boa comida e quartos disponíveis com acompanhantes femininas, diz, em mau inglês, a placa pregada na parede do restaurante de um dos maiores barcos que atendem a turistas no Pantanal. As várias e enormes geladeiras vazias, no seu deque inferior, anunciam que a observação da esfuziante natureza pantaneira não é o objeto central dos usuários do barco. Seus clientes principais são pescadores suficientemente abonados para pagar a diária de 1.500 reais, fora os extras. A grande geladeira dos camarotes – são 28, dispostos em dois deques superiores – desproporcional para o tamanho do quarto, já levanta a suspeita de que há algo mais ali que puro passeio pesqueiro ou entusiasmo ecológico: são 24 latas de cerveja, 24 de água e 24 de refrigerantes diversos. Parte dos vários extras que serão oferecidos aos embarcados. E, em cada um deles, apesar da decoração simples, há uma ducha para higiene íntima que não parece de primeira necessidade para a clientela típica do barco, que é quase exclusivamente masculina. A tabuleta no restaurante do barco deixa claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, que não é só atrás de peixe vivo que os passageiros desse tipo de barco vão ao Pantanal. Quando Estela Scandola, do Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde Social (Ibiss), começou a explicar a uma platéia de lideranças de ONGs como se dava o processo de aliciamento e tráfico de meninas e meninos, com objetivo de exploração sexual, todos se deram conta de que as onças, os tuiuius e as araras são menos visíveis e ostensivos, hoje, no Pantanal, do que a prostituição de jovens e adultos, brancos, negros e indígenas, brasileiros, paraguaios e bolivianos. À fragilidade do ecossistema pantaneiro e às ameaças à sua sustentabilidade soma-se, sem dúvida, a dissolução da ordem social, que não apenas permite esse tráfico indecoroso, mas o banaliza. Quando entramos no barco, um menino abordou alguns dos homens, oferecendo camisinha. Ele é tratado, localmente, às vezes, até como piada. Esse esporte começa a se tornar generalizado no Brasil: considerar normal as aberrações e tolerável o intolerável. Apesar do trabalho com as prostitutas, desenvolvido por Estela e pelo Ibiss, elas não têm alternativa e não vêem a exploração que sofrem como agressão. Uma delas, quando é escalada para um programa, agora procura a ONG, para pedir um pacote de camisinha. Porque nem isso os comerciantes de carne 9


fresca de gente pantaneira fornecem. Perguntadas sobre as agressões que estão sofrendo, dizem que não foram agredidas, não. “Isso, não. Graças a Deus nunca sofri violência”, respondeu uma delas, que trabalhava com todos os documentos pessoais retidos pelo agenciador e dividindo com mais oito meninas um quarto de três metros por dois. Violência, para elas, é porrada. O resto é mole. Muitas dizem que têm medo de serem estranguladas, durante o sexo. São inúmeras as histórias de cárcere privado. De menina que entra iludida no programa, achando que está sendo convidada para um passeio e se recusa, quando descobre que tem de servir sexualmente, às vezes a vários homens, alternada ou simultaneamente. A teimosia lhe custa o resto do período fechada em um cubículo, no deque inferior do barco, comendo os restos que a tripulação, por generosidade, lhe sirva. Os “ongueiros” ficaram sabendo, naquela noite de conversa quieta, em que os olhos vez por outra brilhavam marejados de indignação, que a piscina na qual se refrescavam nos intervalos das sessões em que discutiam ações voluntárias voltadas para o meio ambiente e para o bem-estar social, era, muito mais freqüentemente, usada para a prática do sexo grupal. O avesso da paisagem Essa brutal ecologia da mixórdia em que se transformou o ecoturismo pantaneiro ia sendo relatada por Estela, enquanto o solícito bartender do barco assentia com a cabeça, os olhos estatelados na perplexidade de ver o seu dia-adia revelado como uma expressão de agressão sexual, tráfico de pessoas e violentação dos mais elementares direitos da pessoa humana. A paisagem exuberante, que desfilava pelas janelas do restaurante do barco, fazia um contraponto inquietante. O vermelho escandaloso do pôr-do-sol denunciava o excesso de fumaça na atmosfera por causa das queimadas, presença incômoda que acompanha o viajante, do aeroporto ao ponto mais longínquo do Parque, já na fronteira com a Bolívia. O lixo orgânico e o esgoto do barco são atirados diretamente no rio Paraguai, a principal e insubstituível artéria que faz do Pantanal o que ele é. Junte-se essas histórias de prostituição e violência e

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o que aparece por trás do deslumbramento paisagístico e ecológico é um espetáculo deprimente de degradação e desrespeito ao ser humano e à natureza. Guerra justa Para quem ouviu a esplêndida explicação sobre a dinâmica das águas, os abusos contra o meio ambiente pantaneiro e os riscos para o futuro do Pantanal, de Adalberto Erberhard, da ONG Ecotrópica, que investiu mais de US$ 3 milhões para adquirir três fazendas vizinhas ao Parque Nacional do Pantanal, transformá-las em RPPNs e, desta forma, retificar tecnicamente o desenho do Parque, tudo isso se transformava em penosa constatação de que não se trata mais de uma situação de risco. Risco é um potencial de dano. Ali, o dano ocorre, diariamente, em intensidade e freqüência muito preocupantes. Apesar de todos os argumentos dos especialistas, as fronteiras do Parque não foram demarcadas de modo a preservar um conjunto exaustivo dos vários componentes do bioma pantaneiro. Também não defendem as cabeceiras, que garantem as águas do Pantanal. Com o investimento da Ecotrópica, as RPPNs corrigiram, quase integralmente, os erros oficiais de demarcação. Falta apenas uma fazenda, ainda em atividade, que deveria ser adquirida ou expropriada, para completar inteiramente, até a fronteira da Bolívia, o desenho recomendado. Nela está o único exemplar íntegro da floresta Chiquitana, típica da Amazônia boliviana, em território brasileiro. Precisam captar recursos para viabilizar a aquisição, uma vez que dificilmente obteriam do governo a desapropriação, e contar com a compreensão do proprietário de que essa terra vale mais para seus conterrâneos e para seus descendentes, em um projeto de preservação, do que para a atividade pecuária. Se conseguirem, não terão ganho a guerra pela preservação do Pantanal. Faltará, ainda, a mais importante e mais difícil das batalhas: reverter os danos, de grande teor de ameaça à existência do Pantanal, porque podem destruir o regime de águas que garante aquela extraordinária fatia de nosso território, que todo brasileiro deveria fazer questão de conhecer.


A sorte do Pantanal Não há como descrever a beleza e a surpresa que aquela natureza generosamente oferece aos olhos de quem lá está. É preciso ver para crer, ver para entender. O Pantanal é um alagado sem águas próprias. Vive das águas que lhe são ofertadas pelos rios e chuvas que correm do altiplano para aquela depressão impermeável que conhecemos como Pantanal. A degradação das cabeceiras que servem ao Pantanal pode prejudicá-lo irremediavelmente. Ele é lindo, frágil e perecível, como suas meninas. A sorte do Pantanal será a mesma das suas meninas. Se uma não for protegida, o outro tampouco será. O pescador que lá vai para pescar nas águas turvas do tráfico de sexo, jamais respeitará as águas limpas de seus rios e lagoas. Nem obedecerá às regras da pesca ecológica e esportiva. De nada adianta pesar os peixes apresentados pelos pescadores, para ver se estão na cota de 15 quilos, mais um exemplar como troféu, se as caixas de isopor desembarcaram juntamente com meninas violentadas entre uma pescada e outra. Se as ameaças ao ecossistema pantaneiro não forem contidas e essa forma depravada de turismo não for eliminada, em mais alguns anos, o Pantanal será mais um ponto desolado da paisagem ambiental e social do Brasil, desenhada pelo descaso brasileiro consigo mesmo e teremos perdido mais um naco de nossa dignidade e, de quebra, um dos mais belos complexos naturais do mundo. Matéria publicada no site O Eco em 2004.

*Mestre em Sociologia pela UnB, PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell, professor visitante do Instituto Coppead de Administração, UFRJ e colunista do site O Eco.

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*Jucylleyde Macedo Lopes dos Santos

Para que crianças e adolescentes tenham seus direitos validados na prática, é preciso, em primeiro lugar, dar atenção às suas vozes e perceber que possuem consciência sobre si mesmos e sobre o meio em que vivem, mesmo que esta não venha ao encontro das percepções e valores adultos. Nos relatos da história brasileira é possível perceber a precariedade sobre as citações da existência do público infanto-juvenil. Os relatos não traduzem suas percepções, anseios, participações e a própria existência enquanto público particular. Silva e Nunes, citando Mead, no livro Crianças Indígenas: ensaios antropológicos (2002) escrevem que uma das explicações possíveis para a falta de interesse pelo público infanto-juvenil nos escritos antropológicos deve-se à cultura ocidental dos antropólogos influenciada pela história européia, em que crianças e adolescentes nem sempre foram considerados seres sociais completos ou nem mesmo seres sociais. O estudo das categorias de idade socialmente definidas faz chegar à compreensão da categoria criança e seu lugar e sentido em contextos socioculturais específicos. O termo adolescência é contemporâneo e construído socialmente, visto não ser citado nos escritos históricos e antropológicos. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, adolescente é definido como pessoa entre doze e dezoito anos incompletos.

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A partir da história social da infância, vê-se o processo de inferioridade pelo qual passaram crianças e adolescentes, sendo considerados somente como depósitos de informações. A eles não era permitido qualquer tipo de aversão às orientações provindas dos socialmente detentores do poder, da moral e da ordem: os adultos do sexo masculino. Nas relações de geração é percebido que crianças e adolescentes são vítimas da violência sexual. Esta, caracterizase como um ato contra a liberdade sexual de uma pessoa, sendo reconhecido através do abuso sexual e da exploração sexual. O abuso ocorre quando um adulto ou adolescente mais velho usa uma criança ou adolescente para satisfação sexual. A exploração sexual acontece quando crianças e adolescentes são utilizados para satisfação sexual de outrem em troca de dinheiro ou outras gratificações. Milhares de meninos são explorados sexualmente, sendo estes dados camuflados pela educação machista que insiste em demonstrar a superioridade masculina através da inferioridade feminina. Os meninos, por meio desta percepção, não possuem o direito de se mostrarem vítimas. No entanto, a maior parte é do sexo feminino, de baixa renda e da cor parda. Seguindo essa compreensão, é possível falar da subordinação da menina, em que, além de sofrer discriminações relacionadas ao seu sexo, sofre também pela inferioridade na


? Por que calar quem tem voz?

relação de geração, na qual o adulto pensa ser “dono” e “senhor” das decisões e modos de vivência da criança e da adolescente. A violência sexual infanto-juvenil é um crime mergulhado em um contexto social injusto em suas relações, sejam econômicas, sociais e culturais. O mesmo crime pode ser enfrentado com êxito a partir do momento em que adolescentes inseridos na prostituição forem respeitados em sua percepção enquanto parte do mundo, mesmo que este ainda seja adultocêntrico e machista. Na área central e nos bairros da cidade de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, existem pontos de prostituição e de exploração sexual contra crianças e adolescentes. Nos locais de rua, adolescentes de ambos os sexos dividem espaço com demais trabalhadores sexuais, aqui entendidos como pessoas que fazem programas sexuais em troca de dinheiro. Não são em todos os pontos que adolescentes são aceitas, pois mulheres, michês e travestis não permitem a permanência das mesmas e, quando persistem, são obrigadas a dar-lhes dinheiro. Nas boates, casas de massagem, wisquerias e bares, as adolescentes permanecem, muitas vezes, com o porte de documentação falsa; quando não, são discretas e quase imperceptíveis, ou seja, procuram não aparentar física e comportadamente ter menos de dezoito anos.

Entender a exploração sexual é acima de tudo, saber como as meninas inseridas na prostituição se percebem, entendem e pensam sobre o tema. Meninas de 14 a 17 anos que são atendidas pelo Projeto Acelerando Passos do IBISS-CO e que tiveram atenção às suas vozes, disseram ser inseridas na prostituição a partir do incentivo de pessoas próximas e de confiança, ou seja, não restando dúvidas de que isso seria bom para suas vidas, pois este processo de socialização foi norteado pelo valor e desejo do responsável pela orientação, cabendo a elas imaginar que seria por decisão própria: “Quando eu conheci minha mãe em outra cidade, ela me colocou pra trabalhar na boate de uma amiga, onde ela e minha irmã de 13 anos já trabalhavam”. (15 anos) De acordo com a percepção das meninas, o “bom” de estar na prostituição é possuir autonomia financeira capaz de sustentar o forte apelo consumista que cerca o público juvenil, até mesmo para conseguir se alimentar, se vestir e obter substâncias psicoativas. A satisfação de possuírem algumas coisas que desejam através do dinheiro, completa-se com a satisfação sexual que alguns clientes as proporcionam. Algumas citaram sentir prazer no sexo além de estarem em uma casa 13


bonita, serem chamadas de princesa e sairem com rapazes lindos, reforçando o imaginário social da princesa repassado de geração para geração: “Em menos de uma semana eu estava com R$ 300, fora o que o patrão pegava pra ele, e aí eu comprava tudo o que eu queria”. (16 anos) “Um dia um homem me levou para sua casa e seu quarto tinha até banheira, era tudo muito chique e lindo, eu me senti uma princesa”. (17 anos) No entanto, as meninas disseram que o “ruim” da prostituição são as vulnerabilidades que ela proporciona com relação a DST’s (Doenças Sexualmente Transmissíveis), a violências e a preconceitos. As mulheres que possuem comportamento fora da moralidade, da monogamia são chamadas de puta e de vagabunda: “Eu não gosto de ser chamada de puta! Quando eu estava na boate, eu não podia sair de lá sem que algum cliente pagasse a mais. Lá eu perdi a minha liberdade! Agora o meu pai não confia mais em mim”. (15 anos) Na vivência da prostituição, as meninas percebem e aceitam as substâncias psicoativas como uma necessidade para o exercício da atividade. As que ficam nas ruas, o uso torna-se necessário para a distração. As que exercem a atividade nas boates são obrigadas a fumar e a tomar bebidas alcoólicas para os clientes gastarem mais; uma das formas de

lucro para o estabelecimento: “Eu ganho dinheiro e compro maconha, bebo, porque assim eu me distraio e me divirto”. (17 anos) As meninas não têm conhecimento dos direitos infanto-juvenis e não se vêem como adolescentes, considerando-se responsáveis por si mesmas e por seus atos. Percebem a atividade da prostituição como uma normalidade e não sabem que a exploração sexual é um crime previsto em lei. Elas não possuem referência imposta sobre a fase da adolescência. Cada uma tem sua própria concepção de rito inicial à fase adulta: uma delas falou sobre a ausência de uma referência adulta, sendo responsável por si mesma; outra citou a virgindade, ou seja, a partir do momento em que perdeu a virgindade deixou de ser criança: “Eu achava normal trabalhar na boate, não conhecia os direitos. Hoje não me vejo mais adolescente, porque não sou mais virgem e conheci bastante da vida”. (15 anos) Os sonhos citados pelas meninas exploradas sexualmente são caracterizados como diferentes da atividade atual. O desejo para o futuro não está relacionado com a prostituição, mas sim com a composição de um núcleo familiar e com a profissionalização através de um curso universitário, além de empregos como babá e diarista. A violência sexual sob a ótica das meninas exploradas sexualmente em Campo Grande, dá-se de forma deficiente, misturada e quase inexistente, mostrando a falha de uma sociedade possuidora de um modelo de lei específica na área da infância e da adolescência. No entanto, a efetivação de muitas ações são insuficientes devido ao fato de que os próprios beneficiados não possuem conhecimento adequado para concordar e ser ator no processo de realização de seus direitos. Que as políticas de Atendimento e Proteção à Criança e ao Adolescente percebam e exerçam a importância do protagonismo infanto-juvenil com expressividade e rapidez. Para enfrentar a exploração sexual é preciso sobrepor-se à rede criminosa e organizada da exploração que, há muito tempo, vê crianças e adolescentes como seres possuidores de desejos e

*Socióloga Foto: Robin Romano

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Por Edilce Mesnerovicz

Foto: Arquivo

Conversando com educadora

Márcia Acioli é coordenadora Nacional do Programa de Defesa e Promoção dos Direitos da Infância, Adolescência e Juventude da Caritas Brasil, autora da cartilha “Construindo o Protagonismo de Crianças e Adolescentes” e foi integrante da equipe que elaborou o projeto pedagógico do Criança Esperança, projeto vinculado ao UNICEF e Rede Globo. Sua vida é cheia de observações e registros. Logo que se formou em Educação Artística pela UnB, em 1984, Márcia assumiu importantes coordenações ligadas à área educacional no Distrito Federal. Desenvolveu um trabalho destinado a meninos e meninas de rua, onde criou laços de confiança e aprendeu a lidar com os diferentes grupos de rua. Um trabalho que lhe rendeu novos métodos de trabalho e grandes aprendizados e amizades. Depois de passar por escolas e faculdades, a arte-educadora assumiu a coordenação do Setor de Projetos Especiais do DF, que trabalhava com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade cujos direitos haviam sido ameaçados ou violados. Trabalhou no programa de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes do Governo do Distrito Federal, criando, juntamente com o grupo, uma rotina de trabalho integrando todas as secretarias e ONGs no objetivo de assegurar políticas públicas comprometidas com os direitos da criança e do adolescente. Márcia também desenvolveu um projeto de pesquisa de âmbito nacional sobre metodologias de inclusão social pela educação. Nesse trabalho, ela visitou 70 entidades entre governamentais e não governamentais, de 13 estados brasileiros. A proposta foi a de observar e registrar as formas como cada entidade concebe o seu trabalho pedagógico, a ética e como isso se traduz na prática. Na entrevista concedida à Revista, a arte-educadora diz que não é apenas a palavra dita que traz conteúdo, mas a palavra integrada a linguagem da arte. Para Márcia, a voz de crianças e adolescentes verdadeiramente ouvida é transformadora, comentando que atualmente a promoção do protagonismo acontece nos moldes adultos. “Ainda aplaudimos os adolescentes que chegam a um comportamento próximo ao nosso”, disse, comentando que os modelos de protagonismo mais autênticos são aqueles ousados, atrevidos e corajosos. 15


IBISS - Por que a sociedade reprime os adolescentes, culpabilizando-os de toda desordem social? Márcia - Creio que seja porque a sociedade está cega quanto às origens dos grandes conflitos e injustiças sociais. Está cega também para perceber a complexidade da existência humana que faz de qualquer um uma peça na engrenagem da violência. Assim, é mais fácil apontar o outro como responsável por qualquer coisa que não esteja bem do que perceber a si mesmo no ciclo da violência. A voz dominante na sociedade ainda é a do homem (adulto), branco e rico e a sua fala reflete este olhar discriminatório. Cada vez que o discurso se repete consolida-se este texto que adquire status de verdade. Não demora muito e grande parte da sociedade repete seu teor. Enquanto isso a população jovem está no auge de sua inquietação e da capacidade de se indignar e não quer se conformar com o estado de coisas. Negar o estado de coisas pode conferir ao jovem uma condição de transgressor ou de marginalidade, uma vez que a ordem é mantida por quem tem o interesse pela forma como o poder está distribuído (ou concentrado). Então, é muito fácil atribuir à juventude um título de rebelde e com o título, o estigma. O jovem não é especialmente violento e nem escapa da possibilidade de sê-lo, mas certamente não pode carregar a culpa por toda a desordem social. Violenta está a sociedade que é composta por gente de todas as idades, no entanto, os adultos estão nela há mais tempo, sendo, por isso, mais responsáveis pelos valores que a fundamentam. IBISS - Como agir com uma sociedade pensando dessa forma? Márcia - O importante é que os adolescentes falem e é igualmente fundamental criar disposição para ouvi-los. É importante que todos os grupos possam manifestar seus pensamentos, suas reflexões e as análises que fazem acerca do que acontece na atualidade. Tenho segurança de que quando a sociedade souber ouvir os adolescentes, verá o quanto podem contribuir para fundar uma nova ordem social baseada na justiça, na solidariedade e na ética. IBISS - Nesse sentido, como dar voz e oportunidades para os jovens se organizarem e participarem de fóruns e seminários, por exemplo. Atuarem de forma dinâmica e eficiente? Márcia - O termo “dar voz” já é um termo autoritário uma vez que sugere que a voz está conosco (sociedade adulta). Se repararem bem, podem observar que a juventude clama por ser ouvida de muitas formas e em muitos lugares, e é convocada a calar-se nestes mesmos lugares: na escola; nas famílias; nas ruas em manifestações; passeatas; nas pinturas murais. Quando a “voz” não tem repercussão, os

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jovens ousam conquistar novos espaços. Temos de ter muito cuidado, pois é comum as organizações confundirem o protagonismo, por exemplo, com fórmulas adultas de participação e a tendência torna-se domesticar a energia da juventude em modelos ditos comportados de participação social. Não é o caso de dizer que há um modelo correto de participação, mas existem várias possibilidades. E, é certo que, se a juventude nega uma ordem social excludente, suas iniciativas, terão um caráter mais criativo, pois não estarão presas às camisas de força das instâncias instituídas. IBISS - Os jovens estão preparados para defenderem suas idéias e interagirem com a realidade? Márcia - Claro, só que, assim como todas as pessoas, devem sempre apurar a leitura da realidade e aprimorar a capacidade expressiva. É necessário perceber o mundo e saber falar sobre ele. Isso é exercício e todos/as têm um potencial que quando desenvolvido, causa impacto. Porém, chamo atenção para o fato de que a linguagem da “fala” não é apenas a palavra. Muitos são os que expõem suas idéias pelo desenho, outros pela dança, outros pelo teatro e assim por diante. Nem todo mundo quer falar em público, embora todos tenham muito a dizer. IBISS - O protagonismo é parte importante do processo, que avaliação você faz do protagonismo atual? Porque ele ocorre nos moldes adultos? Márcia - Há muita fantasia em torno do termo protagonismo e muitas interpretações diferentes. Acredito que o protagonismo seja uma das perspectivas do comportamento humano que permitiu à humanidade sua sobrevivência. Portanto, não é novidade. Ser capaz de atuar na própria vida é pressuposto da condição humana. O que marca nosso tempo é que esta postura pedagógica passou a ser uma intenção dos movimentos sociais. No entanto, vivemos uma sociedade que adestra pessoas para a busca desenfreada por consumo, tal que, atuar na vida com autonomia passou a ser um desafio imenso. Agora, é necessário um esforço muito grande para desenvolver uma consciência e uma sensibilidade para não agirmos como carneirinhos adestrados até mesmo quando a proposta é ser protagonista. O protagonismo exige uma postura inédita, mais ousada, mais simples também. IBISS - Qual é o protagonismo ideal para a juventude? Márcia - A que ela desejar. Organizei a primeira participação de adolescentes na Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e quase foi um fiasco. Um grupo de educadores acreditava que a discussão por meio de linguagens artísticas poderia ser mais interessante e fomos fundo nesta idéia. No entanto, os adolescentes queriam ocupar os espaços convencionais da Conferência.


No final, grande parte ficou nas atividades de arte e cultura debatendo os temas, a outra participou das discussões nas plenárias. Alguns adultos desejavam ocupar as oficinas e outros dormiam nas plenárias. Quando os adolescentes leram o documento produzido por eles, a platéia, majoritariamente adulta, fazia mais barulho do que grupos de adolescentes indisciplinados numa escola pública. Concluímos que havia muita coisa errada no formato desses grandes debates. Mas há perfis diferenciados de adolescentes e jovens, assim como de adultos, de modo que sempre haverá aquele ou aquela que se afine com uma linguagem mais formal ou mais alternativa. O protagonismo ideal seria aquele que refletisse as preocupações mais autênticas da juventude representada naquele ambiente (não dá para pensarmos que a juventude é uma coisa só representada por qualquer um que tenha uma idade compatível com este segmento). As preocupações da juventude do campo serão diferentes das da juventude de um grande centro urbano; a linguagem de um grupo da Quixadá, por exemplo, é diferente da linguagem de um grupo de Curitiba, embora possam ter preocupações similares. A nossa socialização se dá por modelos, a nossa aprendizagem necessariamente incorpora modelos, porém a liberdade e o conhecimento podem fundamentar a ruptura com as formas vigentes e a criação de novas atitudes. Então novas formas surgirão, novas atitudes, novas perspectivas se adequarão às pessoas e ao ambiente. IBISS - Como avalia o protagonismo dentro dos movimentos sociais? Márcia - Os movimentos sociais no Brasil deram passos importantes. Exemplo maior é a conquista do Estatuto da Criança e do Adolescente, fruto de uma grande articulação nacional e de uma mobilização de forças nunca antes vistas da própria população interessada (crianças e adolescentes). Hoje, o protagonismo deixou de ser discurso e passou a ser método de grande parte dos movimentos sociais, embora restem ainda muitas dúvidas. Há educadores/as despreparados/as que tendem a atribuir diversas responsabilidades nos ombros dos adolescentes como se o protagonismo fosse uma mera transferência de papéis e responsabilidades. Esse é um debate que surge em inúmeras capacitações. Algumas pessoas chegam a temer virar reféns da vontade e do desejo dos/as adolescentes como se o protagonismo invertesse a direção das estruturas de poder das relações. Isso é um equívoco enorme. Entendemos que o protagonismo exige diálogo e a construção permanente de relações democráticas. Neste sentido os movimentos sociais caminham bem, mesmo com os problemas de compreensão. A tendência é a construção coletiva de um método que aponte crianças e adolescentes como sujeitos sociais e não mais objetos das políticas. Agora

falta às áreas governamentais incorporarem os avanços conquistados pela sociedade civil. IBISS - Como recuperar a autenticidade dos jovens que é a força criadora e que se difere da sociedade? Márcia - Primeiro é necessário intensificar a relação da criança e do adolescente com a própria vida. Isso parece óbvio, mas não é quando somos bombardeados por seduções de toda ordem para o consumo. Muitas crianças aprendem a desenhar o pássaro de desenho animado da TV antes de um beija-flor do próprio quintal ou um tuiuiú do Pantanal. É preciso que se conecte com seu ambiente e com a sua comunidade; que ouça muita música e dance diversos ritmos, que pense e aprenda a se expressar cada vez mais e que desenvolva a sensibilidade ao outro, que aprenda a debater em grupo, que descubra a linguagem de sua preferência (nem todo mundo será bom orador). Quanto mais contato tiver com arte e com múltiplos canais de informação, mais conteúdo terá para falar sobre. IBISS - Como chegar ao protagonismo por exemplo, quando uma criança vive um ambiente familiar onde a violência e o abuso são a realidade vivida por ela? Márcia - Isso é dificílimo, pois ela aprendeu a vida inteira uma verdade imposta por forças violentas. Para ela a realidade é composta por relações de anulação de sua pessoa e desprezo pelo seu desejo e suas necessidades. Romper com esta verdade soa como algo impossível. É preciso ir com delicadeza, com cuidados éticos e preparo profissional para oferecer primeiro o amparo para que a criança e/ou adolescente saibam (e sintam) que são pessoas de direitos. IBISS - Como essa questão deve ser trabalhada, como atuam as políticas públicas nesses casos? Márcia - As políticas públicas devem atuar coletivamente, numa abordagem coerente e sempre atentas às pessoas sem burocratizar o atendimento. As pessoas não são casos, são indivíduos com histórias de vida e necessidades bem pessoais, o que faz com que o que seja adequado para uma pessoa, não seja necessariamente para outra. Se pensarmos as políticas como direito universal, estamos muito longe do ideal. Conseguimos, quando muito, um amparo, uma proteção e a responsabilização dos agressores, mas reverter as relações de violência em relações de afeto e proteção e ressignificar as experiências é algo muito raro no serviço público. IBISS - Onde está a esperança? Márcia - Na alegria da juventude, que, conforme Espinoza, representa a força interna e o aumento da capacidade de agir.

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“O homem está no menino, só que o menino não sabe. O menino está no homem, só que o homem o esqueceu. O bom de ser menino, o bom de ser criança, é poder ser este susto, mas deixa o menino lá. O homem que há no menino dorme tão feliz lá dentro... Não se acorde no menino o homem que ele será” Ziraldo

Foto: Robin Romano

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Por Edilce Mesnerovicz

Viver em um mundo possível O sonho de ser ouvido e compreendido: talvez esse seja o maior desejo de crianças e adolescentes que têm suas “reais e legítimas necessidades humanas cerceadas”

A rua é um lugar que desperta a atenção para o imprevisível, o complexo e o contraditório. Será esse espaço uma passagem de descobertas e atitudes em que a cidadania e a educação é possível? A rua é um lugar de encontros e de conversas? São questionamentos que devem ser discutidos na sua amplitude e complexidade. O projeto Acelerando Passos, desenvolvido pelo IBISS-CO há dois anos, faz esse trabalho de conversação com meninos e meninas de rua. A proposta principal é enfrentar a violência sexual cometida contra crianças e adolescentes mediante ações de mobilização, articulação, prevenção, atendimento e desenvolvimento do protagonismo infanto-juvenil. A metodologia, segundo a socióloga e coordenadora do projeto Jucylleyde Lopes dos Santos, é ouvir o que eles têm a falar. Escutar suas histórias e compreender seu contexto social. As ações realizadas não são na perspectiva de ensinar meninos (as) a se comportar ou agir, explica Jucylleyde, mas no de compreender seus valores e sua conduta social, permitindo, a partir daí, uma reflexão. “Entender o sentido que cada um dá à sua vida é o primeiro passo para estabelecer o vínculo. Sendo ouvidos, eles se sentem importantes”, frisou. A equipe do projeto vai para a rua e é lá que as atividades acontecem, nos locais onde os meninos (as) estão. A chave mestra é 19


A rua deve ser entendida como um lugar temporário, onde, no encontro de todos, transita a sabedoria e o conhecimento, a capacidade criadora e a possibilidade de transformação”. Angelo Motti.

“ouvir”. “Isso significa dar sentido a vida deles, entrar no mundo deles e entender as diferenças”, disse Jucylleyde, comentando que a visão das pessoas ainda é de muito preconceito e julgamento e dessa forma meninos e meninas não se sentem importantes, mas sim, como se estivessem sujando o espaço social que é de todos. É através de rodas de conversa e momentos de lazer que crianças e adolescentes são estimulados a falar. Eles aprendem a ter consciência dos seus direitos e também a desenvolver o lado artístico, como é o caso de uma adolescente de rua que sofreu violência sexual e aprendeu a gostar de escrever poesias. Durante as ações, os profissionais também discutem temáticas relacionadas à adolescência. “Meninos (as) aprendem a se comunicar, depois de terem estabelecido a confiança, tudo através do amor e do afeto”, comentou a coordenadora. Segundo ela, a maioria das crianças e dos adolescentes atendidos pelo projeto estão nas ruas porque buscam liberdade e autonomia, o que não tem em casa, principalmente porque há uma imposição dos responsáveis sobre suas ações e idéias. Jucylleyde atribui o sucesso de ações executadas com o público infanto-juvenil a educadores de rua que se empenham e se dedicam ao trabalho. O primeiro passo para isso, afirmou, é não deixar os valores individuais de lado, mas ir com o objetivo de aprender. “A questão de que o adulto sabe mais do que o adolescente deve ser substituído pelo ouvir, e nesse objetivo muitos valores são modificados. A partir daí, conseguimos ver o adolescente e o seu mundo segundo o olhar deles”. Para Jucylleyde, meninos e meninas estão nas ruas porque em algum momento houve falha no atendimento. Nesse aspecto, ir para a rua e

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conversar é o mais importante porque é possível transformar uma realidade. E na perspectiva de modificar algumas realidades é expressa nessa reportagem aspectos relevantes sobre educação social e posturas críticoeducativas. O exercício da paciência Milhares de crianças e adolescentes vivem nas ruas mediante o imprevisível, mas muitas delas, através de um trabalho de educação de rua contínuo, transformam esse espaço em local de possibilidades. A rua deve ser um espaço para a educação na medida que se possa diminuir os riscos e potencializar formas para que meninos e meninas saibam enfrentar os problemas e possam dizer sim e não. Nesse sentido, educar na rua deve ser uma prioridade absoluta, um momento de conversa, de grupalização, de entendimento, de manifestação e principalmente de saber escutar. O coordenador do Projeto Camará de São Vicente (SP), João Carlos Gilhermino da França, explica que o educador tem de construir com meninos e meninas de rua uma visão crítica daquela condição em que estão, saber olhar, escutar, respeitar e compreender a fala de cada um, tendo em mente as possibilidades de conectá-los ao campo social. “As ações não podem surgir de condições apressadas, mas de considerações objetivas após ouvir a história deles”, frisou. Reconhecido pelos projetos de promoção dos direitos de jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade pessoal e social, o Centro Camará tem uma metodologia distinta de trabalho. Acompanha os sujeitos da forma como estão circulando no mundo, ou seja, nos grupos familiares


e ambientes da justiça, da saúde e da escola. O coordenador e educador social criticou os manicômios que afastam as pessoas dos espaços sociais e os abrigos, “que a despeito do que propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca), de ser um campo social, é um espaço de confinamento”. João Carlos comentou que o trabalho é feito não na perspectiva de ir para a rua e abordar uma menina, por exemplo, no momento em que ela está se preparando para fazer o programa, mas em vários outros momentos que estará disposta a dialogar e conversar. Ele acredita que “limpar a cidade” é algo revelador das dificuldades da sociedade e que direitos e deveres não estão sendo cumpridos. Para o educador, a fuga de crianças e/ou adolescentes dos abrigos, na verdade é um sinal do quanto eles não estão sendo olhados e cuidados, um resultado da falência das políticas públicas que não cumprem a responsabilidade de oferecer os direitos às famílias. João Carlos afirmou ainda que não são raras as falas de educadores como: “você não tem jeito mesmo”, “o seu lugar social é esse”, “não se rebele contra isso porque você não vai conseguir” e que podem definir o destino da criança ou do adolescente. “Não se deve atuar conforme valores individuais, tendo como concepção limpar as ruas retirando os sujeitos para manter a ordem social”, frisou. Os educadores, segundo ele, precisam unir ações educativas com as técnico psicossociais e culturais e levar esse conjunto de práticas para discutir nas políticas que estão sendo articuladas e nos orçamentos que estão sendo definidos. “É importante levar os diálogos dos que estão na prática para que seja a base da ação política”, alega o educador.

O psicólogo social Antônio Ângelo Motti, consultor técnico da Partners/USAID-PAIR (Agência Norte-americana para o Desenvolvimento Internacional - Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-juvenil no Território Brasileiro), explica que o comportamento atual das pessoas acontece de maneira ambivalente aos adolescentes, exigindolhes atitudes maduras e equilibradas ao mesmo tempo em que não confiam nas suas capacidades de discernir o certo do errado, de assumir responsabilidades que são próprias dos adultos. Vários são os fatores que determinam condições favoráveis para essa ambivalência, um deles é em decorrência do padrão adultocêntrico, de relações adulto-criança. “Nós reprimimos os adolescentes como forma de controlar suas atitudes em relação ao modelo que a eles impomos”, afirma Motti. Na família, há uma natural reprodução desse modelo, comenta o psicólogo, e, geralmente de forma personalizada, o que acirra ainda mais as situações de embates. Por um lado, no mundo contemporâneo os jovens recebem um número exorbitante de informações e contra-informações pelos diversos canais extrafamiliares. Por outro os pais e responsáveis, além de terem pouco acesso a essas informações, via de regra, estão precariamente preparados para o processo de educação de seus filhos. Isso gera um descompasso acentuado entre as partes, facilitando ou acirrando ainda mais os conflitos. Por fim, quase não existe iniciativas ou serviços voltados a apoiar a família para a redução de conflitos ou mesmo de suporte psicossocial a pais e filhos em situação de confrontos de natureza educativa ou psicossocial.

“As ações não podem surgir de condições apressadas, mas de considerações objetivas após ouvir a história de meninos e meninas” 21


Muitas crianças e adolescentes sofrem violência diariamente, seja de ordem física ou psíquica. Elas estão inseridas em um ambiente no qual a proteção e os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente são violados, principalmente pelo contexto socioeconômico vivido pela família. Foto: Corbis

A assistente social Mônica Nonato, responsável pela área da Criança e do Adolescente da Secretaria de Assistência Social da prefeitura de Campo Grande, explica que existem vários projetos direcionados a crianças e adolescentes que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Um dos objetivos dentro da área de proteção é não só atender a parte curativa mas, principalmente, o preventivo para evitar que uma situação aconteça ou que se evite a reincidência de casos ligados à violência e exploração sexual. Nesse sentido, toda a família recebe atendimento desde o psicossocial, visitas in loco, encaminhamento para a rede de saúde, de qualificação profissional e mercado de trabalho. “Buscamos atender a família em todos os aspectos para que ela possa ter suporte necessário, pois as seqüelas deixadas na questão de violência não atinge somente a vítima, mas todo o contexto familiar”, afirmou Mônica.

Direito de ser feliz

Atuar na prevenção é uma necessidade para mudar posturas repressivas; é uma prioridade para evitar uma geração de vítimas

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Segundo ela, é necessário agir na perspectiva de fortalecer os valores da família, caso contrário, as medidas serão paliativas. “A família perdeu o seu papel de transmitir aos filhos


os valores físico, psíquico e moral”, frisou, comentando que a secretaria realiza oficinas em que mães expõem suas dificuldades para serem trabalhadas dentro do grupo, monitorado por assistente social e psicóloga. Mônica informou que o maior número de casos de agressão física e psicológica dentro do lar acontece por parte das mães. Isso, segundo ela, em função da própria estrutura que as mulheres estão inseridas atualmente que não possibilita que tenham condições de exercer seu papel como deveriam, ou seja, mercado de trabalho, estudo, casa. “A mãe hoje sai para várias jornadas e deixa o papel que executava quando o esposo estava em casa. Ela tem de estar bem na profissão, no estudo e psicologicamente. Esse acúmulo de responsabilidade gera problemas como estresse e acaba descarregando dentro do lar”, afirma a assistente social, citando a necessidade de se ter investimentos na qualificação profissional da família. Na área de proteção, qualquer resultado é bastante comemorado comentou Mônica. O mais difícil disse, é tirar uma criança, principalmente em situação de rua e colocá-la em família substituta, através de apadrinhamento, adoção. “Temos buscado a família acolhedora - aquela que fica temporariamente com a criança -, mas os resultados maiores são com a própria família, ou mesmo com outros familiares que se prontificam a ficar com a

criança”, relatou. Darcy Alves Garcia, coordenadora do Criac (Centro Integrado de Proteção à Criança e ao Adolescente de Campo Grande/MS), que falou pelo Programa Sentinela, explica que o programa recebe os encaminhamentos tanto de abuso, maus tratos como de exploração sexual dos conselhos tutelares e um grupo composto por assistente social e psicóloga faz o acompanhamento da família e da criança ou do adolescente para que as medidas prescritas sejam cumpridas. “Nós fazemos a avaliação do caso, tratamento psicológico e encaminhamento para a área da saúde sempre quando há necessidade”, afirmou Darcy. Segundo ela, fica fácil falar de responsabilidade familiar quando se tem uma lei (Estatuto da Criança e do Adolescente) que aplica penalidades para pais ou responsáveis negligentes. Ela comenta que um dos motivos de crianças nas ruas, ou que sofreram violência ou abuso é resultado de uma família desestruturada, ou seja, pai usuário de droga, ou alcoólatra. “Na realidade, o Programa Sentinela atende muito mais os adultos, que refletem suas ações nas crianças, e a família é acompanhada por um determinado tempo”. O problema é complexo, e durante todos esses procedimentos crianças e adolescentes acabam indo parar nas ruas. A juíza da 1ª Vara da Infância e Juventude de Campo Grande, Maria Isabel de Matos Rocha, avalia o atendimento

“O importante é orientar a criança e o adolescente porque estão sem rumo, confusos e o atendimento psicológico é bom para isso, é preciso tirar a culpa da criança pelo crime cometido contra ela”

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voltado para crianças e adolescentes como ações pulverizadas e desconexas. “Não se olha para o que o outro está fazendo e as crianças e os adolescentes ficam revoltados porque recebem influência de todos os lados”, afirmou, analisando que seria necessário desenvolver um plano de ação mais individualizado, ou seja, para cada criança que tem sua própria história, e não de forma massificada como vem sendo feita. O recolhimento das crianças e dos adolescentes das ruas, corforme Maria Isabel, é uma medida legal e elas devem receber um bom atendimento nos abrigos porque estão em crise e conflito. As instituições, segundo ela, não estão aparelhadas para ir para a rua. “O importante é orientar a criança e o adolescente porque estão sem rumo, confusos e o atendimento psicológico é bom para isso, é preciso tirar a culpa da criança pelo crime cometido contra ela”. A juíza questiona a eficácia das medidas aplicadas ao agressor, que paga pelo crime com cesta básica, por exemplo, quando na verdade precisaria de atendimento terapêutico. O psicólogo social Ângelo Motti frisa que o atendimento ao agressor é antes de tudo um direito da criança e, subsidiariamente um direito do agressor, pois ao cidadão deve ser assegurado o pleno acesso aos serviços de educação, saúde, assistência. Ele explica que o agressor sexual pode ser um pedófilo e pedofilia é uma doença, portanto, deve ser tratado, mesmo que tenha sido condenado à prisão. Outras perturbações mentais trazem como sintoma a exacerbação da libido e a compulsão sexual e igualmente precisam de intervenção especializada, psicoterapia ou medicamentosa. “É isso que devemos buscar em Campo Grande ou em qualquer outro lugar. Serviços de saúde que tratem do agressor, pois a criança detém o direito de não continuar sendo agredida”, acentuou. Estela Scandola, gerente executiva do

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IBISS-CO, informou que a maioria dos agressores foi agredida durante a infância, viveu na questão da violência sexual e teve vivências sexuais que pautaram a sua vida sexual na fase adulta. “Isso é gravíssimo, ou seja, os agressores de hoje são pessoas que não foram atendidas ontem, e atendê-los é uma forma de prevenção”, reforçou. A dificuldade primeira está em não ter programas específicos para o agressor, além de ser difícil afastá-lo da criança pela conivência das mães com a situação. Nesses casos, segundo Maria Isabel, a criança é transferida de lar, mas a adaptação à nova família não é tarefa fácil e muitas vezes a criança acaba indo para o abrigo. “O abrigo é um lugar difícil para a criança porque fica isolada e privada do seu ambiente familiar. Já constatamos maus tratos nesses espaços, tentamos fiscalizar, mas sabemos que muitas pessoas não são bem escolhidas, já afastamos muitos, mas também não apagamos o mal que foi feito à criança”, relatou a juíza da Infância. A assistente social Mônica Nonato disse que não há programas destinados ao agressor e falou das dificuldades de executar um trabalho efetivo, principalmente porque a Justiça não repassa informações quanto ao resultado dos processos instaurados contra os agressores para que se possam fazer os encaminhamentos para o tratamento. “Se o agressor não for tratado, irá fazer novas vítimas ou revitimizar a criança, o adolescente. Conseqüentemente irá gerar novos agressores porque a criança vai perpetuar a violência sofrida”, frisou. “Se esse ciclo não for quebrado. Se não tratarmos estas pessoas não vamos ter sucesso. Vamos executar quase que um trabalho de bombeiro, que é de apagar o fogo no momento em que ele está instalado e não é esse o nosso papel enquanto componentes do sistema de defesa e garantia de direitos”, esclareceu.


Um caminho de desafios O Programa Sentinela de Campo Grande também faz o serviço de acolhimento que funciona 24 horas. Recentemente, segundo a coordenadora do Criac, Darcy Alves, foi realizado um grande trabalho de conscientização para que as pessoas não dêem dinheiro a crianças e adolescentes de rua. “Estamos sempre fazendo essas campanhas de prevenção à população e tem surgido um bom resultado. Eles estão mais em comércios do que em sinaleiros”, ressaltou.

Foto: Corbis

Para Mônica Nonato, da Secretaria de Assistência Social da prefeitura, as crianças de rua estão expostas a vícios, violações e aliciadores, o que irá influir negativamente no seu desenvolvimento. A questão principal é que os laços afetivos estão abalados e a união não se perpetua mais. A mãe e o pai já não sabem mais qual o seu papel enquanto provedores e, conseqüentemente a criança não se sente firme na família, daí a necessidade de novos programas que enfoquem a família. Integrar uma criança em situação de rua ou que está no abrigo ao ambiente familiar não é tarefa das mais fáceis. O abrigo é uma medida útil a ser tomada, disse Mônica mas é a última alternativa. “A criança é enviada para o abrigo quando todas as possibilidades foram esgotadas”. Ela comenta que, muitas vezes, dentro da aplicação das medidas de proteção, o abrigo acaba sendo a primeira alternativa e considera o fato como revitimização. “A criança tem o direito de estar com o tio, a avó ou parente mais próximo. Por mais que

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A rua é um canal aberto para viver, com inúmeros desafios para enfrentar. Um deles em que o “não”, muitas vezes é difícil de dizer é a questão da droga que se oferece pelas mãos dos outros meninos de rua e de traficantes. O Programa Sentinela faz encaminhamento de meninos (as) dependentes químicos para tratamento em locais específicos de Campo Grande. Após o tratamento, segundo Darcy Alves, os meninos voltam para a família. Mas, depoimentos de adolescentes exibem uma diferente realidade.

dia todo”. O jovem conta que já foi para o abrigo e não achou ruim, mas não quer voltar. “Lá, a gente só come e dorme, mas não consigo ficar trancado, me sinto preso”. Ele se acostumou com a rua. Cuida de carros e pede dinheiro. Para casa não quer voltar porque discute muito com o padrasto. “Foi difícil o primeiro dia que fiquei na rua, comecei a lembrar da minha família. Hoje, a melhor coisa que tem aqui são as amizades”, afirma. O jovem usou diversos tipos de drogas, mas conta que parou porque estava se prejudicando e hoje sonha com uma casa, estudos e um trabalho. “Gostaria de fazer teatro, música só assim a gente pode chegar a algum lugar né?”.

Um menino de rua de 13 anos relatou com angústia o que passou quando se submeteu ao tratamento. “Eles davam muito remédio, ficávamos dopados, não conversam, o remédio deixava a gente babando, muitos meninos de rua não gostam de ir para lá”, conta. Uma educadora social relatou sua preocupação quanto à saúde de meninos que recebem esse tipo de tratamento, não aceitam e voltam para as ruas. Ela lamenta por não ter nada que atraia a atenção dos jovens nesses espaços e por serem submetidos a regras sem que sejam ouvidos. Ela também criticou a atuação de muitos educadores sociais dizendo que falta vocação para trabalhar com o público infanto-juvenil.

Estela Scandola, gerente executiva do IBISS-CO, diz que a presença de meninos na rua é a denúncia de que alguma coisa não está bem no bairro, nas residências, na escola, no mundo do trabalho, na instituição pública e de que algo precisa ser feito. Segundo ela, o menino não é a causa da baderna, mas a demonstração do desconcerto que está colocado no mundo. “O menino de classe média, por exemplo, pode ficar na rua, fazer racha e tudo mais e ninguém vai dizer que ele é a causa do problema”, argumentou, salientando que a luta contra a violência só começa quando a classe mais alta é atingida pela violência que ela própria causou através da desigualdade social.

oferecemos o atendimento necessário para a criança estar bem acolhida no abrigo, não irá se sentir bem porque não é uma família”, analisou.

Outro menino, 16 anos, que mora na rua, também já fez tratamento e não tem boas recordações. “Lá eles dopam a gente e dormimos o

“A criança tem o direito de estar com o tio, a avó ou parente mais próximo. Por mais que oferecemos o atendimento necessário para a criança estar bem acolhida no abrigo, não irá se sentir bem porque não é uma família”

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A arte da aproximação

O trato com a causa infanto-juvenil deve vir do coração e ser a canção da esperança para meninos e meninas

“A adolescência apresenta aquilo que a sociedade de regras e padrões de condutas quer evitar: contestação e enfrentamento. Por isso a estratégia mais fácil é a da repressão e punição”. A frase é do consultor do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca) na Bahia, Altair Lira. Para ele, o adolescente acaba sendo o bode expiatório de uma sociedade que não cria suas possibilidades concretas de avaliação interna, seja para a fase infantil onde toda a ação da criança é vista com graça, ou na fase adulta onde a ação é vista como desvio da conduta social passível de punição. Lira afirma que a realidade de crianças e adolescentes já deveria ter entrado nas universidades auxiliando na formação dos profissionais ou daqueles que fazem a política pública. O que se tem encontrado muito, segundo ele, são profissionais sem um dos principais elementos que Paulo Freire considerava como importante para um educador: vocação. “Sem vocação é complicado exercer esta difícil tarefa de ‘educar a dor’ e é somente com o trabalho contínuo que se adquire experiência para tal finalidade”, apontou. Entretanto, além do olhar para crianças e adolescentes é necessário voltar-se para a formação dos próprios pais e construção do diálogo 27


“A rua que passa do espaço lúdico para o espaço da dor é ao mesmo tempo, um espaço de aprendizagem”

intrafamiliar. O que se constata, é que nos tempos atuais, os conflitos familiares se acentuam, sobretudo, porque valores capitalistas de consumo estão muito mais presentes no cotidiano familiar do que os valores morais embasados na conversa, no diálogo e no entendimento da coletividade familiar, tendo como agravantes desse processo as causas sociais e econômicas. Tudo isso leva a um confronto e a divergências nos interesses de pais e filhos. “Os pais não sabem construir o diálogo e partem para uma repressão mais forte ou uma permissividade, lavando as mãos”, frisou Lira. É uma situação que leva muitas crianças e/ou adolescentes a irem para as ruas e os arteeducadores tem uma grande responsabilidade com esses meninos (as). A este profissional, segundo Lira, não cabe tratar somente o lado psicológico, mas criar estratégias para abrir a ponte entre a criança e a certeza de sair da rua. “A rua liberta e aprisiona”, disse, citando a importância dos meninos (as) serem os protagonistas da sua história. “O protagonismo deve ser estimulado não como um elemento qualquer, mas como a razão do próprio ser da criança, sujeito da sua realidade, dono das suas opções, não aquele que sai da rua porque o educador quer, mas aquele que opta em sair mesmo sem o educador, que consegue conceber o seu tempo a partir das provocações daquele adulto”, afirmou Altair Lira. A arte-educadora Márcia Acioli, coordenadora Nacional do Programa de Defesa e Promoção dos Direitos da Infância, Adolescência e Juventude da Caritas Brasil, comenta que a rua é um local

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onde educar é possível. “Basta olhar para perceber que meninos e meninas se socializam para aquele estilo de vida, portanto, se educam”. Para ela, a educação de rua é um desafio bem complexo, principalmente porque os objetivos e a percepção que se tem sobre aquela realidade pode entrar em conflito com os objetivos e a percepção que as crianças têm sobre suas realidades. Márcia explicou que a vivência na rua é uma opção em maior ou menor grau. Segundo ela, muda para a rua quem tem uma necessidade ou um desejo a “empurrando” para lá. Pode ser a necessidade de fugir de violências, maus tratos, da fome, ou mesmo ir em busca de alegria e de liberdade. “Não gosto do velho discurso de que ‘é preciso tirar as crianças da rua’ , afinal a rua é de quem? Quais são as crianças que podem andar pelas ruas? Eu adoro ver meninos e meninas brincando de carrinho de rolimã, chutando bola, brincando de pique esconde, pulando corda... na rua. O que interessa observar são as condições da existência humana nesse espaço”, avaliou. Para a arte-educadora, a rua torna-se um lar com noções claras de dentro e fora a partir das relações sociais estabelecidas nela. Meninos e meninas se organizam e organizam um novo sentido na vida a partir do espaço público tomado como privado. Este novo sentido é construído com a sua teia de relações que produz novas concepções de parentesco. “Na rua todos são irmãos, o ‘nós’ indica o quanto da noção de família é transferido para o grupo”. Isso, segundo a arteeducadora, vai exigir dos programas governa-


“O grande desafio é saber até que ponto os educadores estão capacitados para recolocar para a criança e para este jovem o direito de ser criança e de ser jovem”

mentais ou não um cuidado e uma atenção especial para que aos poucos meninos e meninas desfaçam as referências de rua para reconstruírem-nas em ambiente mais protegido. Mas isso deve ser feito com um ritmo próprio. “As instituições costumam acreditar, de forma arrogante até, que sabem o que é melhor para as crianças e adolescentes que moram nas ruas e esquecem de ouvir e de olhar para elas”, enfatizou Márcia, comentando que os bens materiais são o grande argumento “como se justificassem tudo, quando o mais importante e o mais difícil de se reproduzir são as relações de amizade e solidariedade que só são estruturadas nas ruas. É claro que há violência e precariedades várias, mas os seus elos são muito fortes e bonitos”, comentou. Para o educador Altair Lira a rua não deve ser vista somente como um lugar ruim. É o espaço da convivência, da troca e do encontro. A criança que sobrevive no espaço de disputa da rua e de enfrentamento da violência é uma criança que adquire determinados códigos e para sobreviver tem de ter coragem e inteligência. “A rua que passa do espaço lúdico para o espaço da dor é ao mesmo tempo, um espaço de aprendizagem. “A resposta de parcela da sociedade para esta pergunta seria: a rua forma sim! Forma ladrões e assassinos! Mas por que esperar formação se o que oferecem não é carinho, cuidado e atenção?”, questiona Lira, citando o papel do educador como fator determinante da vida de meninos e meninas. “É o educador que faz a transformação do olhar para

que a criança não veja somente este lado da rua e que possa vir a explorar esta mesma rua em sintonia com os seus anseios e desejos”. Estela Scandola explica que para se inserir no trabalho de educação de rua é necessário que o educador tenha uma postura ideológica, de convencimento, de vínculo com a causa da criança e do adolescente. Em muitos casos este vínculo não existe e muitas pessoas optam por esse trabalho porque se abriu um espaço de contratação. “Não se torna educador da noite para o dia. Muitos vão para a rua por causa do vínculo com o trabalho e não com a causa”, contestou. Na verdade, segundo Estela, é necessário recompor os valores de respeito ao corpo, às regras de convivência em grupo, tanto em meninos quanto em meninas em situação de rua, violência e exploração sexual. “O grande desafio é saber até que ponto os educadores estão capacitados para recolocar para a criança e para este jovem o direito de ser criança e de ser jovem”. A questão é que os educadores devem instaurar um conflito para que possam estabelecer um diálogo com crianças e adolescentes em situação de rua, a partir de uma outra visão. É necessário mostrar a meninos e meninas que ao escolherem a rua estão abrindo mão de outros espaços sociais. Porém, ao afirmar isso é preciso trabalhar para que de fato os espaços sociais estejam disponíveis a eles. É necessário instaurar um conflito e um diálogo com todos os atores sociais que trabalham com meninos e meninas, contrapor a visão, mas a partir do respeito. Colaboração: Guilherme Soares Dias, Marinete Pinheiro e Luiz Patroni

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Apontamentos de pesquisadoras

*Lidiane kasiorowski Borges, *Samuara Alves de Morais, *Silvana Colombelli Parra Sanches.

Em 2004 as pesquisadoras realizaram o mapeamento da exploração sexual, do município de Campo Grande-MS. Esta pesquisa foi nacionalmente proposta pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) e coordenada pelo INDEX (Instituto Nacional de Desenvolvimento e Experiência) com o objetivo de identificar as características da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, o perfil socioeconômico das vítimas e de suas famílias em dez municípios dos Estados do Brasil, e a percepção das principais instituições governamentais e não-governamentais e suas respostas relacionadas a este tema.

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Estar decididas a realizar pesquisas em ambiente cotidiano envolve muito mais que conhecimento científico, envolve a nossa vida e a vida na nossa cidade. Mesmo com instrumentais semi-estruturados, reconhecer a realidade que vivemos significa re-apreender o próprio movimento em que vivemos e até mesmo compreender melhor os papéis desempenhados pelos atores que estão à nossa volta e que, com alguns convivemos e outros, sequer víamos. O primeiro passo, ao aceitarmos realizar a pesquisa “Diagnóstico Rápido da Exploração Sexual Comercial”, nacionalmente proposta pela OIT sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes em 10 municípios do Brasil, foi aprofundar o conhecimento sobre os motivos e as situações que favorecem a exploração sexual de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial, bem como as dimensões sociais e econômicas que determinam e concorrem para a vulnerabilidade dos sujeitos e da sociedade. O caminho inicial da pesquisa foi conhecer a história do Estado de Mato Grosso do Sul, a composição de sua gente, a economia e a forma como se opera a garantia dos direitos. De outro lado, também nos aproximar do mundo da prostituição, inclusive lendo os anúncios e publicações de jornal, pois é através desse meio que pessoas se dispõem a realizar diversas atividades eróticas. Boates e casas de shows são utilizadas como atrativos para quem pretende usufruir desses serviços. Então, também para nós, tornou-se objeto de observação e abordagem. A meta da pesquisa em Mato Grosso do Sul, foi desenvolvida no município de Campo Grande, compreendendo 39 entrevistas de atores responsáveis pelas políticas públicas voltadas à criança e ao adolescente, 14 entrevistas com pessoas adultas da comunidade e 40 entrevistas com crianças e adolescentes em situação de

exploração sexual comercial. Para realizarmos as entrevistas, pautamos o assunto em quatro reuniões da rede de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, com entidades não-governamentais, polícias civil, militar e rodoviária federal, além de representantes de secretarias estaduais e colegiados de políticas públicas, todos integrantes de fóruns e comitês. A primeira constatação importante é que Mato Grosso do Sul mantém, embora em diferentes estágios de organização, um número considerável de agrupamentos que se articulam para garantir direitos e para enfrentar problemas. Em algumas entrevistas constatamos muita sapiência e facilidade de resolutibilidade dos fatos; em outras falta de conhecimento de algumas questões como encaminhamento dos fatos e visão macro da problemática. Superamos a meta em 390%, ou seja, a meta era de 10 entrevistas e foram realizadas 39, e isso registra o grande número de organizações que estão envolvidas com o enfrentamento da temática da exploração sexual, como também a facilidade de acesso aos atores sociais quando as pesquisadoras são partícipes do mesmo processo histórico que estão desvelando cientificamente. As reuniões dos colegiados pautaram a pesquisa e foram os locais de coleta de dados. Após este primeiro momento, começamos a aplicar os instrumentais as pessoas adultas da comunidade, de forma aleatória, buscando pessoas que se situavam perto de locais possíveis de estarem crianças e adolescentes em situação de exploração sexual comercial, como a região central, especialmente os bairros Amambaí, Vila Carvalho, Vila Glória, Monte Líbano e Vila Planalto. Foram abordadas pessoas jovens que se encontravam em pontos de ônibus próximos às casas de massagem e boates que só abrem à noite. 31


A invisibilidade das problemáticas e dos cidadãos parece ser a regra. A problemática pode estar acontecendo a metros de sua casa e, no entanto nunca se atentou para o fato de que esta situação existe e que se pode fazer alguma coisa, como denunciar, por exemplo. O “natural” é não ver o ilícito, não ver que uma adolescente é vítima da exploração sexual na esquina de sua casa, como também não vêem o faxineiro da universidade em que estudam, ou o gari e o lixeiro que passa por eles nas ruas onde andam e vivem. É certo que se a sociedade “não vê” e não se envolve, os programas e ações de enfrentamento têm poder de ação reduzido. Daí a necessidade de manter um trabalho contínuo de sensibilização de toda sociedade. É uma maneira de comprometer os agentes de transformação e erradicação de chagas sociais, envolvendo inclusive o “pacato cidadão”. A próxima etapa da pesquisa foi realizada, em grande parte, percorrendo a pé as ruas da cidade. Duas semanas de reconhecimento do centro de Campo Grande. De posse do mapeamento realizado pelo projeto “Acelerando Passos”, executado pelo IBISS, localizamos as primeiras casas e, uma referenciando a outra, fomos encontrando becos, casas sem identificação com pouca ou muita estrutura, com propaganda por panfleto e/ou jornais, permanentes e passageiras... Foram 14 entrevistas em condições diversas, todas no interior das casas. No decorrer da pesquisa, percebemos que o tráfico, o aliciamento e a exploração sexual comercial são serviços

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gerados por uma grande rede de interlocutores, e tem como principais mantenedores pessoas com alto padrão ou comerciantes estabelecidos na cidade. Os nomes citados nas entrevistas vão se repetindo e sempre há conexões com o lícito, o legal. A relação de poder entre as pessoas envolvidas é uma realidade, uns dispondo de outros, sem considerar a liberdade individual de escolha e expressão. O mando existente nas casas desconsidera o ser humano e as propostas se baseiam nos aspectos de maior vulnerabilidade dos indivíduos, como mencionados em vários formulários, que são: o desemprego, as questões ligadas à desigualdade de gênero, às condições sociais, econômicas, financeiras e familiares. Agrupando os dados existentes no IBISS-CO pode-se afirmar que há mais de 400 locais possíveis de exploração sexual em Campo Grande, compreendendo casas de massagem, boates noturnas, motéis, hotéis e bares e pontos de prostituição no centro da cidade. Não há centralização geográfica como pensamos outrora. Há pontos com maior ou menor permanência de jovens. Mudam tanto por fuga da fiscalização como em busca de maior clientela. Também o horário de funcionamento e o tipo de comércio tem a ver com qual clientela se quer atingir. Em alguns locais, ao chegarmos, nos deparamos com a preparação de festas e recepção de clientela em grupo, sejam clientes locais ou que estejam participando de algum evento na cidade. Nestes casos, o preferível era perguntar o melhor horário para voltar e adiar o


trabalho. Há muitas similaridades nos problemas levantados pela observação de cada localidade, como também nas entrelinhas dos entrevistados: medo e existência de violência física; utilização de substâncias psicoativas; falsificação de documentos; gravidez por relacionamento com clientes e aliciamento para tráfico interno e internacional. Muitas das crianças e adolescentes entrevistadas já receberam propostas para trabalhar no mercado do sexo na Espanha e Portugal, sendo relatados fatos que configuram a relação do mercado sexual local com o internacional. A presença de drogas lícitas como álcool e fumo é visto pelo comércio sexual, e também pelas meninas, como um consumo natural inerente ao trabalho. No caso do álcool, há incentivo ao consumo pelos clientes visando o lucro das casas. Das meninas é exigido comedimento para que continuem atendendo outros clientes. Algumas delas informaram que nem precisam comprar bebidas alcoólicas, cigarros ou drogas, porque geralmente o próprio cliente traz a elas e pede para, por exemplo, cheirar cocaína com ele ou fumar maconha e crack. A convivência com o cotidiano das casas foi um aprendizado permanente. Numa boate com cerca de 15 quartos e um bar na frente, uma manicure atendia as meninas e podia se ver que, pelas portas entreabertas, os quartos pareciam quartos de criança, com ursos e bonecas. Indagadas se é permitido enfeitar o quarto em que dormem como quiserem, ela disse que sim, que só ela tem nove ursos em seu quarto. A entrevistada é

também muito criança, mas um pouco mais viva e elétrica que a outra. Já esteve internada em casa de recuperação para dependentes químicos, mas disse que hoje não se considera mais “viciada”, pois “só de vez em quando cheira cocaína”. Durante a entrevista nos contou que utiliza preservativo em todas as suas relações com os clientes, menos com seu namorado de 13 anos. Logo depois informou que tem um filho de 10 meses de um cliente. As perguntas sobre idade causavam sempre, certa confusão. Sempre se confundem sobre a idade que têm e o tempo que estão na casa...; nesse momento, é preciso ter muito jogo de cintura e calma para desviar do assunto idade e buscar outras informações também importantes, já que a idade pode não ser corretíssima e, as observações e as histórias que vão contando, podem ajudar a completar o quadro da adolescência. Alguns locais foram acessados pela identificação externa das casas: número grande escrito na parede ou placa ou, quando o número não é grande, ao lado do número pequeno se escreve “AQUI”. Os serviços de embelezamento, manicure e cabeleireiro, podem ser oferecidos pela casa ou contratados externamente. No entanto, o preço não é combinado entre as meninas e os profissionais de estética. A casa negocia os serviços, horário e preço e isso é deduzido dos ganhos das meninas. A estada na casa, mesmo quando as meninas são de Campo Grande, pode ser também para dormir. Cumprem horário “de sala” e ganham sobre programas, independente-

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mente do horário que esteve à disposição. Avistar meninas em tão tenra idade, preparadas para a sedução, consumo de marcas e vivendo sob vigia de olhos desconfiados de nossa presença, podia sempre ter diversidade na forma como fomos recebidas como também influenciava nosso desempenho nas entrevistas. Em uma das casas (em que elas estavam arrumadas de forma mais fina), pareciam ansiosas por faturar com os clientes e era tanto movimento na Casa de Massagem que, a certa altura das entrevistas, uma das pesquisadoras foi assediada para realizar o programa com a profissional do sexo que estava entrevistando. O cliente perguntou se a pesquisadora não queria fazer entrevista com ele também... O inesperado era respondido sempre com a ajuda de uma auxiliar de pesquisa presente. O fato de estarmos sempre em duas pesquisadoras melhorava nosso sentimento de segurança como também procurar saída para situações inusitadas, como ocorreu quando um dos gerentes tentou aliciar uma das pesquisadoras, buscando fazer acreditar que aquele é o melhor lugar para se trabalhar... nos mostrou o salão de festas e mais de quarenta fotos, inclusive dizendo: Aqui você não precisa fazer programas! Basta sentar com os clientes trocar alguns telefones e por meia hora de conversa já se ganha 100 a 200 reais. Tem menina que chega a ganhar aqui 5.000 reais por mês. Eu sou professor de stripper profissional, posso ensinar e se não quiser tirar a roupa toda não há necessidade, é só ficar de lingerie bonito, fazer uma boa dança que já se pode atrair a atenção de muita gente e fazer amizades! Nós selecionamos os clientes e as meninas. Não entra droga aqui, só cigarro e bebidas. Só permanecem clientes ricos e milionários, como fazendeiros da região e políticos, como vocês vêem nas fotos vem artistas e compositores tocar para a gente, semana passada veio ....... dupla, semana que vem, se vocês quiserem vir e trazer amigas, vai estar aqui a dupla ....... A nossa intenção é fazer daqui um ponto de encontro como se faz em São Paulo e Rio de Janeiro, cobrar 20 reais das garotas que entram e só”. Este momento foi muito importante porque, pela primeira vez nos sentimos como nosso público de pesquisa: abordadas, seduzidas! Tentaram nos aliciar e sentimos na pele a sedução do negócio. Percebemos que uma menina, uma

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criança que abandonou a escola, não tem motivações, gosta da vida noturna ou de festas, não pensaria duas vezes se estivesse no nosso lugar. É muito tentador porque o aliciador age com o nosso imaginário, o cowboy olhava e conversava conosco como se fôssemos bonitas, lindas! Ele aumenta a auto-estima das meninas e faz com que elas pensem que aquele lugar é um paraíso, não há coisa melhor! A dominação de gênero, geração, raça/etnia e dominação econômica entre brasileiros e europeus, homens e mulheres, adultos e crianças, está intimamente vinculada ao aliciamento para a exploração sexual de crianças e adolescentes. Muito embora em muitas casas houvesse boa receptividade, as donas das casas, gerentes ou mesmo uma pessoa mais velha sem identificação nos supervisionaram sutilmente. Isso dificultou a indagação sobre modo e condições de trabalho, sendo necessário extrair respostas por meio de outras questões e pela observação. Se as meninas eram muito novas, elas próprias diziam que não queriam ser entrevistadas. Diziam que não e saíam de cena. Sem conversa. A depender do tamanho da boate e de quem são seus clientes, percebemos que há um conjunto hierárquico de trabalhadores no seu interior e todos obedecem um comando superior que decide quem entra na casa, inclusive em nosso caso, cuja permissão era decidida sempre pelos que detém o mando do processo de trabalho das casas. Em poucas casas há caracterização das meninas com o estereótipo histórico de roupa chamativa e maquiagem pesada. Em um dos casos encontrado, uma menina de aproximadamente 17 anos, estava bastante maquiada, com saia e top vermelhos e se identificou como garota de programa. Relatou que adora o que faz e nos disse, em tom de cantada, que adoraria ter mais clientes mulheres. Ela tinha a aparência física de ser bastante saudável, o que identificamos como comum em todas as casas. Um outro fato que chamou a atenção é que, nos relatos do dia-a-dia e de suas aspirações, as meninas afirmam com freqüência que estão ali temporariamente, querem sair e já têm até planejado o que vão fazer com o dinheiro que estão ganhando. Relatam sempre que o que ganham atualmente é uma quantia bem maior do que ganhavam como domésticas, vendedoras, cabeleireiras ou babás. Há boates, por exemplo, que trabalham somente com garotas vindas do Sul do País. Elas relatam que estão vindo de boate em boate à convite de amigas ou de agência. Ao serem questionadas sobre qual o tipo de agência disseram que podem


ser pessoas que estão ligadas diretamente a boates e que tem contato com outras boates ou agências de acompanhantes e modelos. As meninas ainda afirmaram que só tem pessoas da Região Sul naquela casa e que recebem muitos estrangeiros. Uma delas falou que na noite passada enquanto atendia alguns mexicanos, sua colega estava com alemães. No caso de meninos que conseguimos entrevistar, foi por meio de contatos já estabelecidos pelos educadores do IBISS-CO e que fazem programas nas ruas e às vezes se organizam com programas agenciados por celular. Também podem se ordenar em um grupo e alugar casa específica para meninos. Percebemos que na casa há sempre um “cabeçante”, geralmente maior de idade, que organiza os serviços e o pagamento dos custos da casa. Observamos que o universo masculino é menos visível que o comércio sexual envolvendo meninas e que uma pesquisa específica poderia conhecer melhor a situação. As crianças e adolescentes que estão abrigadas, geralmente provêm de família que também estava envolvida com a situação de exploração sexual. Entrevistar crianças nessa situação requer um cuidado ainda maior que é a não revitimização. Não é necessário reviver sofrimentos para satisfazer a necessidade dos pesquisadores. Optamos por levantar os dados no trabalho em grupo realizado pela equipe técnica como também nos documentos existentes na casa. Em abordagem, uma menina contou a sua história que tem a conivência da própria mãe na situação de exploração sexual. Quem a explorava sexualmente era um pai de santo, que a sustentava economicamente, explorava a menina e o irmão. Pelo que tudo indica outras crianças ainda estão em poder deste indivíduo. Quando o caso veio à tona, até amigos e residentes da própria casa onde moravam ajudaram o pai de santo a fugir. A menina conta que ingeria doses altas de “cachaça” nesta localidade. Tendo em vista a realidade vivenciada por nós pesquisadoras, percebemos a cruel dinâmica de vida das crianças e adolescentes que estão em situação de exploração sexual, seja das que estão sediadas em boates de luxo até as que estão em pontos de rua que em sua maioria não percebem que estão sendo vítimas do processo de uma rede que promove a exploração sexual dentro e fora do município e do Estado.

*Socióloga *Assistente Social *Socióloga 35


NOVAS PARCERIAS NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA COMETIDA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

O enfrentamento à violência junta gente, ganha parcerias, movimenta os movimentos. Assim foi o acontecido em Goiânia - fato inédito no Brasil - organizações de trabalhadoras sexuais de diferentes Estados, com apoio do Ministério do Desenvolvimento Social, se reuniram e se incorporaram à luta nacional. A Carta de Goiânia fala por si.

COLÓQUIO NACIONAL CARTA DE GOIÂNIA O movimento organizado de prostitutas do Brasil, reunido no Colóquio Nacional Os profissionais do sexo contribuindo para o enfrentamento da exploração sexual infanto-juvenil no Brasil, promovido pelo Projeto Inverten-

do a Rota do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil da Universidade Católica de Goiás – UCG, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, realizado em Goiânia nos dias 13, 14 e

15 de abril de 2005, se compromete a enfrentar o abuso e a exploração sexual cometida contra crianças e adolescentes.

Para isso propomos: - Participar de ações de mapeamento e diagnóstico da exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil; - Realizar atividades de sensibilização e capacitação das prostitutas sobre os direitos da criança e do adolescente; - Realizar capacitações em conjunto com a rede de garantia de direitos, aprendendo e ensinando as melhores formas de abordagem com crianças e adolescentes;

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- Ações dirigidas à mídia para que sejam oferecidos programas educativos que valorizem a afetividade nas relações humanas; - A formação continuada de professores, com a inclusão nos currículos escolares de temas relacionados à sexualidade, gravidez na adolescência, abuso, violência, exploração sexual e drogas, utilizando como base o Guia Escolar: Métodos de Identificação de Sinais de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes;

- Fortalecer as prostitutas através de cursos de capacitação, palestras, para que as mesmas se tornem agentes multiplicadores conscientes do seu papel social no processo de esclarecimento e prevenção do abuso e exploração sexual, valorizando e resgatando a sua auto-estima;

- Que os profissionais da rede de proteção que trabalham com crianças e adolescentes passem por um processo de seleção e capacitação levando em consideração a experiência e a sensibilidade nas relações adulto-criança.

- Que cada prostituta faça com o cliente um trabalho de conscientização sociopolítico sobre as causas e conseqüências do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes;

- Que a segurança pública oriente os agentes aplicadores da lei no uso de métodos não violentos na abordagem de crianças e adolescentes e que respeitem a sua condição de seres em desenvolvimento, inserindo as organizações de prostitutas nos cursos de formação;

- Sensibilizar os sindicatos do setor turístico hoteleiro, proprietários de casas noturnas, sindicato do transporte para que não sejam coniventes com a exploração sexual de crianças e adolescentes, através de oficinas, palestras e campanhas;

- O fortalecimento institucional das organizações de trabalhadores sexuais como forma de consolidar o processo organizativo e a qualidade de suas intervenções.


Solicitamos às autoridades:

Assinam esta carta:

- A participação do movimento organizado de prostitutas em todas as instâncias organizadas de defesa dos direitos da criança e do adolescente e na formação de recursos humanos;

APROCE – Associação de Prostitutas do Estado do Ceará GEMPAC – Grupo de Mulheres Prostitutas da Área Central de Belém APPS – Associação de Pernambucana das Profissionais do Sexo de Pernambuco APROFS – Associação de Prostitutas de Feira de Santana APROMA – Associação de Prostitutas do Maranhão APRONAC – Associação de Prostitutas de Maracanaú ASPRORN – Associação de Prostitutas do Rio Grande do Norte ASTRAS – Associação Sobralense de Profissionais do Sexo APROTIRUS – Associação de Prostitutas de Russas ASTRAES – Associação dos Transgêneros do Estado do Espírito Santo AMPAP – Associação de Mulheres Profissionais do Sexo do Amapá AMOCAVIM – Associação de Moradores do Condomínio e Amigos da Vila Mimosa/Rio de Janeiro Movimento em prol da criação da Associação de Prostitutas de Goiânia.

- A realização de uma campanha nacional em parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o Ministério de Educação, de Saúde, de Justiça, do Turismo, da Cultura, do Esporte e do Desenvolvimento Social e Combate a Fome para sensibilizar a sociedade como um todo no sentido de enfrentar o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes; - O desenvolvimento de projetos sociais com ênfase nos programas de geração de renda para as famílias vítimas de abuso e exploração sexual com garantia e prioridade da participação de filhos de prostitutas de baixa renda; - Consolidar a relação entre o Conselho Tutelar e as organizações de prostitutas para a qualificação do atendimento e o efetivo encaminhamento das crianças e dos adolescentes; - Melhorar o sistema de acolhimento e atendimento para não expor as crianças e os adolescentes às situações de perigo e revitimização. Nós, do movimento das prostitutas, apoiamos todos os esforços efetivos dos órgãos públicos e das organizações não-governamentais no âmbito municipal, estadual e federal, reafirmando, assim, o nosso compromisso contra qualquer tipo de violência contra crianças e adolescentes no nosso país. Goiânia, 14 abril de 2005

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Foto: Corbis


“Dançar é bom porque faz a gente aprender a ficar feliz”, disse um menino de cinco anos quando ouviu uma canção e sorriu. A simplicidade da frase é significativa o suficiente para causar um momento de alegria e de esquecimento das coisas feias que fazemos Para o mundo melhorar, talvez devessemos aprender a ficar feliz Pensar como criança, Nos preocupar como criança, Sonhar como criança, Amar como criança, Aprender com as crianças. Elas são portas que se abrem para um mundo mais fácil, mais humano e mais possível. Elas aliviam a dor do coração, não compreendem o pensamento capitalista mas sabem o sentido do amor. O importante é que ainda “não estamos terminados”, como dizia João Guimarães Rosa, E se existir saberes em nós, O melhor a fazer é ouvir essas pequenas canções que se apresentam nas pequenas coisas do cotidiano que podem mudar o coração. Deixemos a vida nos ensinar! Edilce Mesnerovicz ,2006


Realização:

Apoio:

FMAS/CMAS

Parceiros:

SAS Secretaria de Assistência Social

Fórum DCA/MS

Grupo Municipal de Trabalho para Enfrentamento da Violência Sexual I n f a n t o - J u

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CEDCA

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